QUEIROZ, V.M.; SALUM, M.J.L. Ensaios para uma nova abordagem em Enfermagem em Saúde Coletiva: resistindo às armadilhas da globalização subordinada e construindo a globalização da solidariedade social em direção à sociedade do tipo novo. FASM em Revista. n. 1, vol. especial, p.11-31, 2001. 1 Ensaios para uma nova abordagem em Enfermagem em Saúde Coletiva: resistindo às armadilhas da globalização subordinada e construindo a globalização da solidariedade social em direção à sociedade do tipo novo a Vilma Machado de Queiroz b Maria Josefina Leuba Salum c 1. Considerações introdutórias Este final de século veio sendo assaltado pelo recrudescimento e disseminação dos princípios liberais consolidados, sobretudo nos países dependentes como o Brasil, por um processo de destruição criadora sob o projeto de globalização subordinada 1 . Este projeto, encaminhado através da proposta de monetarização e desregulamentação da economia, fraturou o Estado provedor e as estratégias de proteção social, redefinindo as hierarquias e os espaços de exercício dos Estados nacionais. 2 A resistência, a coragem e a obstinação de seus defensores em levar ao limite da desumanidade a construção da nova ordem social às custas da desigualdade e da exclusão social nos atiçam a fazer como eles fizeram: a remar contra a corrente, a reafirmar princípios e a recusar-se a aceitar a inevitabilidade dos fatos sociais, em busca da reversão da fragmentação e dualização social que abatem o mundo contemporâneo. 3 É preciso dar um basta para a nossa subserviência e co-optação a pretensas novas propostas para velhos e novos problemas, travestidas de humanitárias mas, de fato, inscritas no conjunto de encaminhamentos sociais públicos destinados a abrandar as tensões sociais e com isso proporcionar o tempo e o espaço necessários para dar o pulo do gato. Na área da saúde e na enfermagem, especificamente, já são poucos os que reservaram energias para estes anos de vacas magras que vêm consumindo paulatinamente as conquistas alcançadas, em nosso meio, no plano jurídico-político e institucional nas duas últimas décadas do século XX. a Este texto é produto da revisão de artigo original que fundamentou a participação das autoras na MESA REDONDA: GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA E A APARTAÇÃO NA SAÚDE: REFLEXÃO CRÍTICA PARA O PENSAR/FAZER NA ENFERMAGEM, durante o 48º Congresso Brasileiro de Enfermagem em outubro de 1996 e publicado em Anais do Congresso, de restrita circulação aos congressistas (QUEIROZ, V.M.; SALUM, M.J.L. Globalização econômica e a apartação na saúde: reflexão crítica para o pensar/ fazer na enfermagem. In: 48º Congresso Brasileiro de Enfermagem. Anais, 06 a 11 de outubro de 1996. São Paulo, 1997, p. 190-207). Foi recentemente apresentado aos Congressos Latinoamericano de Medicina Social, 8º e Internacional de Políticas Públicas, 11º, de 1 a 7 de julho em La Habana, Cuba, devendo ser divulgado em disquete distribuído aos congressistas e que acumulará as Memórias dos referidos eventos. b Enfermeira de Saúde Pública, Mestre e Doutor em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP, Professor Doutor Inativo do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da EEUSP.
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QUEIROZ, V.M.; SALUM, M.J.L. Ensaios para uma nova abordagem em Enfermagem em Saúde Coletiva:
resistindo às armadilhas da globalização subordinada e construindo a globalização da solidariedade social em
direção à sociedade do tipo novo. FASM em Revista. n. 1, vol. especial, p.11-31, 2001.
1
Ensaios para uma nova abordagem em Enfermagem em Saúde Coletiva: resistindo
às armadilhas da globalização subordinada e construindo a globalização da
solidariedade social em direção à sociedade do tipo novoa
Vilma Machado de Queirozb
Maria Josefina Leuba Salumc
1. Considerações introdutórias
Este final de século veio sendo assaltado pelo recrudescimento e disseminação dos
princípios liberais consolidados, sobretudo nos países dependentes como o Brasil, por um
processo de destruição criadora sob o projeto de globalização subordinada1. Este projeto,
encaminhado através da proposta de monetarização e desregulamentação da economia,
fraturou o Estado provedor e as estratégias de proteção social, redefinindo as hierarquias e
os espaços de exercício dos Estados nacionais. 2 A resistência, a coragem e a obstinação
de seus defensores em levar ao limite da desumanidade a construção da nova ordem social
às custas da desigualdade e da exclusão social nos atiçam a fazer como eles fizeram: a
remar contra a corrente, a reafirmar princípios e a recusar-se a aceitar a inevitabilidade dos
fatos sociais, em busca da reversão da fragmentação e dualização social que abatem o
mundo contemporâneo. 3
É preciso dar um basta para a nossa subserviência e co-optação a pretensas novas
propostas para velhos e novos problemas, travestidas de humanitárias mas, de fato, inscritas
no conjunto de encaminhamentos sociais públicos destinados a abrandar as tensões sociais
e com isso proporcionar o tempo e o espaço necessários para dar o pulo do gato. Na área
da saúde e na enfermagem, especificamente, já são poucos os que reservaram energias
para estes anos de vacas magras que vêm consumindo paulatinamente as conquistas
alcançadas, em nosso meio, no plano jurídico-político e institucional nas duas últimas
décadas do século XX.
a Este texto é produto da revisão de artigo original que fundamentou a participação das autoras na MESA REDONDA:
GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA E A APARTAÇÃO NA SAÚDE: REFLEXÃO CRÍTICA PARA O PENSAR/FAZER NA
ENFERMAGEM, durante o 48º Congresso Brasileiro de Enfermagem em outubro de 1996 e publicado em Anais do
Congresso, de restrita circulação aos congressistas (QUEIROZ, V.M.; SALUM, M.J.L. Globalização econômica e a
apartação na saúde: reflexão crítica para o pensar/ fazer na enfermagem. In: 48º Congresso Brasileiro de Enfermagem.
Anais, 06 a 11 de outubro de 1996. São Paulo, 1997, p. 190-207). Foi recentemente apresentado aos Congressos
Latinoamericano de Medicina Social, 8º e Internacional de Políticas Públicas, 11º, de 1 a 7 de julho em La Habana,
Cuba, devendo ser divulgado em disquete distribuído aos congressistas e que acumulará as Memórias dos referidos
eventos. b Enfermeira de Saúde Pública, Mestre e Doutor em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP,
Professor Doutor Inativo do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da EEUSP.
QUEIROZ, V.M.; SALUM, M.J.L. Ensaios para uma nova abordagem em Enfermagem em Saúde Coletiva:
resistindo às armadilhas da globalização subordinada e construindo a globalização da solidariedade social em
direção à sociedade do tipo novo. FASM em Revista. n. 1, vol. especial, p.11-31, 2001.
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Mas é preciso reinventar o novo para superar a degradação da realidade social e de
saúde, resultado daquele que inevitavelmente representa o último suspiro - quase um
estertor - das “velhas” relações sociais de produção4. É preciso reinventar o novo,
especialmente se não nos deixamos passar ao largo do entendimento de que "a globalização
constitui (...) a finalidade última do economicismo: construir um homem 'global', esvaziado de
cultura, de sentimento e de consciência do outro. E impor um pensamento único ao
planeta."5
Diante dessas premissas, desde os primeiros anos da década de 90, temos buscado
sistematizar os conteúdos pedagógicos e o trabalho de pesquisa e extensão em Saúde
Coletiva em torno da compreensão acerca da evolução e do impacto das transformações
contemporâneas nas sociedades capitalistas, das particularidades atuais da produção de
serviços de saúde e sua inserção na economia nacional, tendo como ponto de partida a
defesa de que as práticas sociais em saúde têm como tarefa assegurar os direitos sociais,
esfera perversamente tocada pela regressão e falência do Estado.6
Temos defendido à exaustão que repensar o saber/fazer da enfermagem implica
reconhecer os meandros que se interpuseram e que se interpõem no seu percurso numa
sociedade contaminada pelo projeto da globalização do capital e, que, nas suas idas e
vindas, instaurou, manteve e transformou todos os setores da produção, particularmente o
setor terciário e a produção de serviços sociais, entre eles a produção de serviços de saúde.
Implica remeter a nossa fala ao entendimento de que não se pode gerar
transformações no saber/fazer da enfermagem desarticuladas das transformações da
sociedade capitalista neoliberal - excludente e geradora da exclusão - tampouco do
movimento que, desde a década de 70, busca fecundar a produção de serviços de saúde no
solo da universalidade, da equidade e da integralidade, reconstruindo o “novo” objeto da
intervenção em saúde: a totalidade da população brasileira, decodificada no jargão: “Saúde,
c Enfermeira de Saúde Pública, Mestre e Doutor em Fisiologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas da USP,
Professor Doutor do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da EEUSP.
QUEIROZ, V.M.; SALUM, M.J.L. Ensaios para uma nova abordagem em Enfermagem em Saúde Coletiva:
resistindo às armadilhas da globalização subordinada e construindo a globalização da solidariedade social em
direção à sociedade do tipo novo. FASM em Revista. n. 1, vol. especial, p.11-31, 2001.
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direito de todos e dever do Estado”. Em poucas palavras, a enfermagem não vai se
transformar “olhando para o próprio umbigo e a partir do próprio umbigo”. Eqüivale dizer que
não se faz a crítica da prática se não se fizer a crítica da economia capitalista7 hoje
estruturada em torno das relações sociais de produção, aqui entendidas como as relações
da esfera produtiva e as relações de “todas as esferas necessárias para a reprodução do
capital, como a circulação, a distribuição e o consumo”.8
O neoliberalismo que aqui está não é eterno nem imutável, ele pode e deve ser
combatido. Para tanto, tomamos de empréstimo os encaminhamentos do Prof. Perry
Anderson: “Se olharmos as perspectivas que poderiam emergir mais além do neoliberalismo
vigente, como deveríamos orientar-nos na luta política contra o neoliberalismo, não devemos
esquecer três lições básicas, dadas pelo próprio neoliberalismo.
Primeira lição: não ter nenhum medo de estar absolutamente contra a corrente
política do nosso tempo. (...)
Segunda lição: não transigir em idéias, não aceitar nenhuma diluição de
princípios.(...)
Terceira lição: não aceitar nenhuma instituição estabelecida como imutável". 9
Nesse sentido, pautando-nos nessas três lições que nos ensinam a resistir com
coragem e obstinação, encaminhamos a nossa proposta de trabalho e estudo - seja no
âmbito do ensino, da pesquisa ou da extensão de serviços à comunidade - em torno de três
momentos de análise: a) a situação e as perspectivas da sociedade capitalista neoliberal
brasileira, b) a situação e as perspectivas da produção de serviços de saúde no Brasil
enquanto situação de saúde e de assistência à saúde, e c) a situação e as perspectivas da
enfermagem brasileira.
2. Situação da sociedade capitalista neoliberal e perspectivas para uma sociedade do
tipo novo
2.1. A contemporaneidade
O neoliberalismo, movimento que se opôs ao projeto do capitalismo fundamentado
no Estado de Bem Estar Social, foi moldando seu espaço e seu peso remando contra a
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maré (Estado de Bem Estar Social), baseando sua prática num movimento simultâneo de
resistência e de ação contra-ideológica durante cerca de 30 anos. Na resistência e na ação,
diante das vulnerabilidades que o processo histórico favorecia, encontrou na crise dos anos
70 (estagnação econômica e inflação, a estagflação) a possibilidade de se consolidar como
movimento dominante e de ser operacionalizado através das políticas e práticas econômicas
e políticas e práticas sociais pelas grandes potências capitalistas. Na Inglaterra ganhou vulto
com Tatcher, nos EEUU com Reagan, na Alemanha com Khol, minando inclusive os
governos euro-socialistas da França, Espanha, Portugal e Grécia. Na América Latina, foi o
Chile de Pinochet, na análise de Perry Anderson, o “laboratório do neoliberalismo da história
contemporânea”; sucessivamente aderiram ao padrão de acumulação10 neoliberal Bolívia,
México, Argentina e Perú. O Brasil foi o último país latino-americano a entrar "no circuito de
submissão (...), a qualquer custo, inserindo-se de forma subordinada no novo quadro
financeiro mundial."11
O ideário do neoliberalismo está fundado na desigualdade como valor fundamental
para estimular a vitalidade da concorrência da qual depende a prosperidade de todos .
Abole a democracia como valor central pois a vontade democrática da maioria é
incompatível com a liberdade individual dos agentes econômicos.12 Utiliza o processo de
globalização do capital para veicular e expandir seu ideário e sua prática pelos diferentes
continentes, que viajam “pelo mundo à velocidade quase da luz” 13.
A conversão desse ideário em prática, veio se traduzindo: a) na marcha acelerada de
reversão das nacionalizações efetuadas no pós-guerra; b) na crescente desregulamentação
das atividades econômicas e sociais pelo Estado; c) na reversão dos padrões universais de
proteção social estabelecidos em diversos países, no pós-guerra, pelos Estados de Bem
Estar Social.14 Concretamente, essa prática se encaminhou para consolidar um Estado forte,
que fosse capaz de “romper com o poder dos sindicatos e [o] controle do dinheiro, mas parco
em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária [veio
sendo] a meta suprema de qualquer governo. Para isso (...) uma disciplina orçamentária
com contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da taxa ‘natural’ de desemprego,
ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos.
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Ademais, reformas fiscais [foram e vêm sendo] imprescindíveis, para incentivar os agentes
econômicos. Em outras palavras (...) reduções de impostos sobre os rendimentos mais altos
e sobre as rendas [de modo que] uma nova e saudável desigualdade (...) [dinamize] as
economias avançadas”15.
O Brasil implantou seu projeto neoliberal, seguindo o mesmo receituário; para nós,
hoje, por mais que nos violente, não mais nos estranha conviver com expressões como:
privatização e quebra de monopólios estatais (todas elas feitas por valores abaixo dos do
mercado, que converte em capital privado o investimento público financiado pela sociedade
como um todo durante décadas)16; Estado Mínimo (é mínimo na intervenção e regulação
do mercado, é mínimo no alcance das políticas sociais, porém é máximo no financiamento
e na garantia da acumulação do capital privado, o que faz o Prof. Wanderley Guilherme dos
Santos cunhá-lo como Estado mini-max17); Comunidade Solidária (como expressão do
descompromisso do Estado com os movimentos sociais, com as conquistas sociais
arduamente adquiridas como trabalho registrado, e um pseudo-compromisso com a horda
dos excluídos sociais - simbolicamente denominados de apartados sociais18 - que o próprio
Estado mini-max patrocinou).
Muitos outros termos nossos conhecidos como flexibilização das relações
trabalhistas, qualidade total, livre iniciativa, trabalho autônomo, gente que faz,
cunhados pelo neoliberalismo, também mereceriam ser denunciados, mas fugiríamos aos
limites do conteúdo desta nossa fala.19 “Trata-se, na verdade de uma metamorfose de
conceitos sem, todavia, alterar-se fundamentalmente as relações sociais que mascaram”,
como bem assinala o Prof. Gaudêncio Frigotto.20
A despeito da destruição avassaladora que fez do patrimônio social, dos homens e
das instituições, lamentavelmente, como assinala o Prof. José Paulo Neto, “a proposta
neoliberal, nos seus vários matizes, tem encontrado legitimação por via democrática”21. A
eleição de vários representantes deste projeto nos Estados e Municípios brasileiros são
demonstrativos dessa realidade.
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Além de vivenciarmos essa situação na condição de cidadãos comuns, enquanto
trabalhadores de saúde - na verdade, executores da política pública de saúde -
dramaticamente convivemos com a reversão dos padrões de proteção social (que no nosso
caso brasileiro já era quase que inexpressivo) explicitados pela adoção de políticas públicas
que se caracterizam pela sustentação de que “(...) pertence[m] ao âmbito privado, e que
suas fontes ‘naturais’ são a família, a comunidade e os serviços privados. Por isso, o Estado
só deve intervir com o intuito de garantir um mínimo para aliviar a pobreza e produzir
serviços que os privados não podem ou não querem produzir, além daqueles que são, a
rigor, de apropriação coletiva.(...) Propõem uma política de beneficência pública ou
assistencialista com um forte grau de imposição governamental sobre que programas
instrumentar e quem incluir, para evitar que se gerem ‘direitos’. Além disso, para se ter
acesso aos benefícios dos programas públicos, deve-se comprovar a condição de indigência.
Rechaça-se o conceito dos direitos sociais e a obrigação da sociedade de garanti-los através
da ação estatal. Portanto, o neoliberalismo opõe-se radicalmente à universalidade,
igualdade e gratuidade dos serviços sociais”(...).22
Na transposição do ideário neoliberal para o patamar das políticas públicas, a Profa.
Asa Cristina Laurel elenca as seguintes estratégias que o concretizam: privatização do
financiamento e da produção de serviços; corte dos gastos sociais, eliminando-se
programas e reduzindo-se benefícios; canalização dos gastos sociais públicos em
programas seletivos contra a pobreza; descentralização em nível local.23
E é nesse sentido que a Profa. Laura Tavares Ribeiro Soares destaca que “o perfil
neoliberal adotado pelas políticas de ajuste é responsável tanto pelo agravamento das
condições sociais, como pela deterioração dos programas sociais pré-existentes nos países
latino-americanos (...) [que] no caso brasileiro (...) [combina a desestruturação] (...) de
políticas já consolidadas (Previdência), ou em vias de consolidação dentro de um novo
padrão (Saúde), como na de desmantelar programas frágeis e dispersos (Assistência Social
e Alimentação e Nutrição)”24
2.2. O projeto utópico para a sociedade
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Ao estabelecer as perspectivas para uma nova sociedade, reiteramos a necessidade
de conceber a sociedade como totalidade, como totalidade concreta e articulada nas suas
partes, sem o que incorreríamos no erro de analisar a parte - setor saúde - e a ela propor
soluções endógenas. A resistência e a ação revolucionária em direção ao projeto neoliberal,
devem ser construídas a partir de um projeto geral da sociedade que queremos, da
construção de uma nova utopia - uma sociedade do tipo novo - que encaminhe ao
estabelecimento de novos laços de solidariedade, da busca da liberdade e da igualdade,
utopia, compreendida como uma antevisão da sociedade que queremos, porém com os pés
fincados na realidade a ser transformada. Pressupõe não somente estar em contradição com
a realidade presente mas também romper os liames da ordem existente25, fundamentando,
na perspectiva do vir-a-ser, a nossa prática transformadora no cotidiano.
2.2.1 A primeira lição
Vamos começar integrando a primeira lição ao nosso trajeto: não ter nenhum medo
de estar absolutamente contra a corrente política do nosso tempo .
1) Integrá-la, significa vislumbrar o patrimônio histórico que queremos entregar às
futuras gerações. Significa construir aquilo que Antonio Gramsci chamava de momento
“catártico”, em que, passando do momento meramente egoístico-passional, os homens
constróem o momento ético-político, “afirma[m] sua liberdade em face das estruturas sociais,
revelando que - embora condicionado[s] pelas estruturas e, em particular, pelas estruturas
econômicas - [são] capaz[es], ao mesmo tempo, de utilizar o conhecimento dessas
estruturas como fundamento para uma práxis autônoma, para a criação de novas estruturas,
ou, como ele diz, para ‘gerar novas iniciativas’. 26
2) Integrá-la só será possível porque, ao viver os impactos da corrente política de nosso
tempo, não hesitaremos em manter a nossa indignação diante do que há de mais perverso!
Quem pode negar que o neoliberalismo “conseguiu acentuar, multiplicar, estender o
processo de fragmentação social de nossas sociedades [?] (...) a heterogeneidade social,
especialmente entre as classes subalternas é cada vez maior. As diferenças entre as
formas de reprodução de suas condições de vida entre um e outro trabalhador e entre o
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mesmo trabalhador num mês e no mês seguinte, são cada vez mais acentuadas.” 27
“Nos países-com-maioria-rica, criou-se uma sociedade de abundância, ao mesmo tempo
em que o desemprego e a falta de perspectivas [jogam] na marginalidade uma parcela
da população, especialmente de jovens. Nos países-com-maioria-pobre, a situação é
muito mais grave, porque, ao lado da riqueza de uma elite minoritária, que muitas vezes
supera a ostentação dos ricos dos países-com-maioria-rica, observa-se um
empobrecimento ainda mais drástico da população, que se antes não consumia bens
industriais, agora nem ao menos come (...)."28
Quem há de voltar os olhos para esta realidade que traduz “o objetivo do liberalismo
clássico - isto é, reduzir as pessoas à sua individualidade, à sua atomização no
mercado, dificultando a afirmação dos laços sociais, dos conflitos sociais expressos de
forma coletiva, dificultando [mesmo] a resistência social ao neoliberalismo [?].(...) O
neoliberalismo voltou a dar vigor ao argumento da desigualdade como fator positivo. (...)
A idéia de justiça social é substituída (...) pela idéia de oportunidade. O que a sociedade
deveria fazer é dar oportunidade às pessoas [o que] na perspectiva do neoliberalismo
significa ‘se virar’ no mercado.(...) [No plano das idéias] o neoliberalismo conseguiu
tentar caracterizar a sua solução como a única solução possível. (...) O mercado voltaria
a ser o melhor alocador de recursos e praticamente o único alocador equilibrado de
recursos na sociedade. [ Do ponto de vista político] o neoliberalismo [que] havia se
iniciado na extrema direita (...) [contaminou a social democracia européia e os partidos
progressistas latino-americanos que] (...) fizeram sua reconversão neoliberal.”29.
2.2.2 A segunda lição
Se estes são os eixos para que integremos a primeira lição, como cumprirmos a
segunda lição que é - Não transigir em idéias, não aceitar nenhuma diluição de
princípios?
1) Na perspectiva da construção de uma sociedade do tipo novo significa defender um
ideário - um conjunto de idéias e de princípios - que serão a base fundante dessa nova
sociedade, tais como:
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a construção do “homem novo” como “ponto máximo atingido pela historicidade da
essência humana objetivada; o indivíduo “(...) cujo comportamento ético-político é
orientado por necessidades radicais de transcendência”30;
a reconquista do trabalho como “ponto de partida do processo de humanização do ser
social”, superando a alienação do trabalho sob o capitalismo. Aqui, uma frase de Marx
explicita claramente o conceito: “Meu trabalho seria livre projeção exterior de minha vida,
portanto desfrute de vida. Sob o pressuposto da propriedade privada (em troca) é
estranhamento de minha vida, posto que trabalho para viver, para conseguir os meios
de vida. Meu trabalho não é vida." 31
a defesa do direito ao trabalho como a real possibilidade do aperfeiçoamento da
qualidade de vida32;
a reconquista - no espaço da subjetividade - do desejo e da paixão, que, articulados à
vontade e à razão33 - no espaço da racionalidade - encaminharão o projeto de
transformação tanto das “pessoas, dos seus valores, da sua cultura ou ideologia, quanto
(...) no funcionamento das instituições sociais” 34.
2) Integrar essa segunda lição só será possível porque, ao tomar consciência de que
somos, como trabalhadores públicos, os executores da política pública de saúde, não
poderemos nos furtar a restituir para a sociedade o investimento que em nós ela depositou
ao financiar indiretamente nossa formação e nossos espaços de trabalho. Será preciso pois
que nos exercitemos a reconhecer que "superar a alienação econômica é condição
necessária, mas não suficiente, para a realização integral das potencialidades abertas pela
crescente socialização do homem; essa realização implica também o fim da alienação
política, o que, no limite, torna-se realidade mediante a reabsorção dos aparelhos estatais
pela sociedade que os produziu e da qual eles se alienaram."35
Como deixar de reconhecer as evidências de que estamos construindo a
desumanização na corrosão do caráter, na perda de controle de nossas vidas,
na constituição de laços frouxos e, enfim, de uma vida social em que ninguém
mais se torna testemunha a longo prazo da vida de outra pessoa, produtos da
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subtração insidiosa da possibilidade de confronto duradouro e cotidiano com o
objeto de trabalho, conseqüências da flexibilização e da reengenharia dos
processos de trabalho?36
Quem há de negar que, contemporaneamente, declina-se o indivíduo na mesma
fábrica da sociedade global em que se inseriu e que ajudou a criar e a recriar
continuamente (...) [pois] ela agora é o cenário em que desaparece ?37
Quem há de fechar os olhos para as perversidades geradas na progressiva e
refinada degradação da classe-que-vive-do-trabalho, que, sob fogo cruzado,