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Eixo: Poltica social, desenvolvimento e proteo social.
DEMOCRATIZAO DO ENSINO SUPERIOR PBLICO NO BRASIL: CONTROVRSIAS
DO DISCURSO OFICIAL SOBRE A INTERIORIZAO
UNIVERSITRIA
Sueli Maria do Nascimento* Resumo: Neste texto, problematiza-se
o conceito de democratizao presente nos documentos oficiais do
governo federal brasileiro e em outras fontes de divulgao e mesmo
de discusso terica acerca do processo de expanso do acesso ao
ensino superior pblico no Brasil no incio do sculo XXI, mais
precisamente durante o perodo de direo poltica do Partido dos
Trabalhadores, compreendido no decnio entre 2003 e 2013. A partir
de uma abordagem fundamentada no materialismo histrico, so
suscitadas reflexes em torno dos dissensos do discurso sobre a
interiorizao das instituies federais de ensino superior IFES, com
recorte nas universidades. Palavras-chave: democratizao; expanso do
ensino superior pblico; interiorizao universitria. Abstract: This
text discusses the concept of this democratization in the official
documents of the Brazilian federal government and other sources to
disseminate and even theoretical discussion about the process of
expanding access to higher education in Brazil at the beginning of
the century, more precisely, during the political leadership of the
Labor Party in the decade between 2003 and 2013. From an approach
based on historical materialism, reflections are raised around
disagreements between discourse and experience of expansion to
countryside of the federal institutions of higher education with
cut in the universities. Keywords: democratization; expansion of
public higher education; university expansion to countryside.
1. INTRODUO O governo federal tem veiculado na mdia televisiva e
outras campanhas
publicitrias que aludem ampliao do acesso educao, em todas as
etapas da vida
escolar, como uma questo de oportunidades abertas, as quais todo
e qualquer * Assistente Social. Mestre em Servio Social pela UFPE.
Doutoranda do Programa de Ps-graduao da
Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Doutorado Interinstitucional DINTER UERJ/UFAL. Professora
Assistente da Faculdade de Servio Social da Universidade Federal de
Alagoas FSSO/UFAL.
2 Encontro Internacional de Poltica Social
9 Encontro Nacional de Poltica Social Tema: Lutas sociais no
capitalismo contemporneo
Vitria (ES, Brasil), 4 a 7 de agosto de 2014
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brasileiro precisa conhecer e aproveitar. Um vdeo exibido em
2013, com durao de
um minuto, apresentava as vrias ofertas proporcionadas pelo
Ministrio da Educao
(MEC), desde a educao infantil at a ps-graduao. O discurso
miditico refletia
uma aparente igualdade de oportunidades, para cujo acesso basta
a sua vontade de
estudar, o seu compromisso com a educao, [que] faz muita
diferena para voc e para
o Brasil.1
A divulgao dos feitos governamentais, em nome de um Estado
democrtico de
direitos que viabiliza por meio do fundo pblico variadas
oportunidades para que os
indivduos comprometidos possam auto promover a reduo das
desigualdades sociais,
d o mote para tentar compreender qual a noo de democracia que
permeia a relao
entre Estado e sociedade civil no mbito da direo poltica do pas,
presumidamente
matizada pelo socialismo h uma dcada.
O propsito deste artigo desmistificar os vieses democrticos da
poltica de
educao vigente, com nfase sobre o processo de expanso do acesso
ao ensino
superior pblico no Brasil no incio do sculo XXI, mais
precisamente durante o
perodo de direo poltica do Partido dos Trabalhadores PT,
compreendido no
decnio entre 2003 e 2013.2
Intenciona-se, pois, problematizar o conceito democratizao
contido nos
documentos oficiais do governo federal brasileiro e em outras
fontes de divulgao e
mesmo de discusso terica acerca da expanso e, particularmente,
da interiorizao das
universidades pblicas federais.
O termo democratizao, em si, no comparece necessariamente de
forma
explcita nos documentos normativos e de planificao da poltica de
educao superior,
mas recorrentemente utilizado como recurso argumentativo para
justificar a reforma
universitria no perodo estudado. 1 Refere-se ao vdeo apresentado
nos intervalos comerciais da programao de emissoras de televiso
em
canal aberto, entre os meses de agosto e setembro de 2013. Em
seu inteiro teor, o texto da pea publicitria acompanhado por
imagens informativas, com nmeros referentes cobertura do
atendimento em creches e pr-escolas (5.591 financiadas at julho de
2013), em escolas de tempo integral (49 mil escolas inscritas no
programa mais educao), no ensino tcnico e profissionalizante (4
milhes de pessoas matriculadas no PRONATEC). Sobre o ensino
superior, destacamos: As portas das universidades esto abertas para
todos [mais de 1 milho de contratos pelo novo FIES], com ateno para
quem mais precisa [mais de 1,2 milho de bolsas PROUNI]. Sem falar
na chance de estudar nas melhores instituies de ensino superior do
mundo [mais de 43 mil bolsas para estgios em nvel de graduao ou
ps-graduao no exterior financiadas atravs do programa Cincia sem
Fronteiras]. Disponvel em: . Acesso em: 8 set. 2013.
2 Perodos do governo federal liderados pelo PT: Presidente Lus
Incio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010). Presidenta Dilma Vana
Rousseff (2011-atual).
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Nas diretrizes do Programa de Apoio a Planos de Reestruturao e
Expanso das
Universidades Federais REUNI (MINISTRIO DA EDUCAO, 2007),
por
exemplo, democratizao aparece associada a diversificao e ampliao
do acesso
educao superior, como definio de incluso estudantil, no glossrio
do documento.
Restringe-se, neste caso, condio de acesso e permanncia.
nesta perspectiva que, desde os primeiros anos de governo do
Presidente Lula,
lanou-se um efetivo processo de construo de hegemonia em torno
do projeto de
reforma universitria.3 Como estratgia de produo de consenso, o
Ministro de Estado
da Educao Tarso Genro (entre 2004 e 2005), atravs de uma profuso
de entrevistas,
discursos e artigos publicados em jornais e revistas, fez
ressonar a ideia de urgncia e
imprescindibilidade da reforma, repetindo (quase como um mantra)
que a premissa da
qual partia o empenho do governo [alicerado] no interesse da
sociedade seria a
compreenso da educao como vital para romper com a histrica
dependncia
cientfica, tecnolgica e cultural de nosso pas e consolidar o
projeto de nao
democrtica, autnoma, soberana e solidria. (GENRO, 2004b)4
Na produo terica que inspira o projeto governamental,
localiza-se alguma
contribuio referente perspectiva de reforma democrtica e
emancipatria da
Universidade, traduzida por Boaventura de Sousa Santos (SANTOS;
ALMEIDA
FILHO, 2008, p. 14) como tarefa de enfrentamento da contradio
expressa na crise de
legitimidade da instituio universitria nos pases centrais, qual
seja: os divergentes
interesses entre as exigncias de democratizao e os imperativos
da economia. Isto
, a universidade do sculo XXI deve responder a uma crise de
hegemonia, conciliando
o avano do desenvolvimento tecnolgico com a incluso das classes
populares no
espao do saber e fazer cientficos, por excelncia.
3 Importante registrar que a reforma universitria esteve no
plano prioritrio do Ministrio da Educao,
desde o primeiro ano do governo Lula, sob a batuta do Senador
Cristovam Buarque (entre janeiro de 2003 e janeiro de 2004), o qual
defendia que s h uma forma da Universidade servir ao povo e
renovar-se: ser pblica e gratuita. Mas gratuita no sinnimo de
pblica. O Estado tem Universidade gratuita que no pblica, pois no
est servindo ao povo. Enquanto esse governo estiver a, no vamos
abrir mo da gratuidade, mas preciso publicizar o estatal no Brasil.
(CRISTOVAM BUARQUE, 2003). Cabe ressaltar que Cristovam Buarque foi
afastado do cargo, em janeiro de 2004, por fazer crticas pblicas ao
prprio governo federal, principalmente no que dizia respeito aos
investimentos prioritrios.
4 Muitos dos discursos, entrevistas e artigos publicados quela
poca encontram-se disponveis para consulta e download, no portal do
Ministrio da Educao, na aba (link) Institucional Galeria de
Ministros.
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No Brasil, esta percepo nos parece evidentemente capturada no
discurso
ministerial de Genro (2004b), ao afirmar que: Ao optar pela
valorizao da universidade pblica e defesa da educao como um direito
de todos os brasileiros, o governo Lula sinalizou que a
universidade tem um papel estratgico na construo de um novo projeto
de desenvolvimento, que compatibilize crescimento sustentvel com
justia social.
Dada a histrica elitizao da formao universitria e incontestvel
demanda e
elevao dos nveis quantitativos de ingresso ao ensino superior
pblico, a meta do
Plano Nacional de Educao PNE 2001-2010 (BRASIL, 2001) j previa a
expanso
do nmero de vagas em uma proporo nunca inferior a 40% do total
de vagas do
ensino superior (pblico e privado), planejada com qualidade,
evitando-se o fcil
caminho da massificao.
Em que pese a relevncia dessa compreenso e opo poltica
estratgica
assimilada pelos governos petistas, ressalta-se aqui que o
caminho apontado se assenta
na nfase ao aumento de vagas decorrente do aumento acelerado do
nmero de egressos
da educao mdia, tendencialmente crescente, e na necessidade da
expanso das
universidades pblicas para atender demanda crescente dos alunos,
sobretudo os
carentes (e a se revela o parmetro de justia social), bem como
ao desenvolvimento
da pesquisa necessria ao Pas, que depende dessas instituies [as
universidades
federais], uma vez que realizam mais de 90% da pesquisa e da
ps-graduao nacionais
em sintonia com o papel constitucional a elas reservado (onde se
circunscreve a
perspectiva de crescimento sustentvel). (BRASIL, 2001)
Parte-se, assim, do pressuposto que a ampliao do nmero de vagas
e, portanto,
a propalada expanso democrtica do acesso e permanncia de
estudantes das classes
populares, nas grandes cidades e especialmente no interior do
pas, tem se revelado
como um mero processo de quantificao, em detrimento da qualidade
dos servios
ofertados e dos necessrios aportes formao profissional em nvel
superior em termos
de sua utilidade social.
Para alm desta caracterizao, porm, Ronaldo Teixeira5 (2006, p.
76) informa
que o anteprojeto de Lei da Educao Superior, no qual se desenha
a reforma
5 Ronaldo Teixeira foi Chefe de Gabinete do Ministrio da Educao,
durante a gesto de Tarso Genro
(Ministro da Educao entre 2004 e 2005, que antecedeu Fernando
Hadadd, o qual efetivamente encampou o processo de expanso
universitria, no exerccio da sua gesto ministerial entre julho de
2005 e janeiro de 2012).
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universitria proposta, contempla a previso do exerccio da
democracia interna e
externa universidade. A democracia interna implica na abertura
de assentos aos
diversos grupos sociais, respondendo aos diversos interesses da
comunidade, nos
Conselhos superiores das instituies federais de ensino superior.
Quanto democracia
externa, trata-se de corrigir o dficit de acesso, como j
apontado at aqui. Em sua
opinio, a resistncia proposta de democracia interna se apresenta
como combate por
uma viso autoritria, de poder da classe dominante sobre a
universidade, que, ento,
faz gerar o conhecimento que lhe interessa e, portanto, combate
a tese do Conselho,
combate a tese da participao. (TEIXEIRA, 2006, p. 76)
Interessante notar como o discurso distorce o ponto de vista,
uma vez que a
resistncia reforma universitria, do lado dos defensores
socialistas, vinha exatamente
combater o falso consenso6 erigido por um trip constitudo pelo
Banco Mundial, pelo
prprio governo Lula da Silva e por uma ONG francesa, ORUS,
dirigida por Edgar
Morin (LEHER, 2004?), o qual representaria a vitria de um
projeto asperamente
combatido por sindicatos, estudantes, reitores, entidades
cientficas, fruns de
educadores e partidos, no curso da ltima dcada: a conexo com o
mercado e, mais
amplamente, a converso da educao em um mercado. (LEHER, 2004?).
Isto, porque
a abertura de assentos para representantes do capital nos
Conselhos Superiores das
Universidades, certamente retardaria um processo democrtico de
reforma, a partir de
seus protagonistas, para afirm-la [a Universidade] como
instituio pblica, gratuita,
autnoma, universal, locus de socializao e de produo de
conhecimento novo.
(LEHER, 2004?).
Face ao carter restritivo que se identifica nos termos acima
expostos, so
suscitadas neste artigo breves reflexes em torno dos dissensos
entre esse discurso da
expanso universitria como ampliao democrtica do acesso e
permanncia na
educao superior pblica e as particularidades do processo
interiorizao das
universidades federais.
Algumas indagaes referentes quilo que se acredita ser uma
maior
aproximao possvel da democratizao da educao superior pblica
circunscrevem
os termos desse debate, centrado na relao entre Estado (provedor
dos servios, das
instituies federais de ensino superior) e sociedade civil (razo
de ser das
6 Sobre a falsificao do consenso, cf. GENTILI, 2002.
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universidades) e, dentro desta, a relao entre estudantes
(demandadores e usurios) e
professores (promotores institucionais da atividade fim, ou
seja, ensino-pesquisa-
extenso):
1) Quais as condies reais, em termos de estrutura fsica e
recursos
infraestruturais no mbito institucional da expanso universitria
para o interior, esto
disponveis comunidade acadmica para garantir a realizao do
ensino-pesquisa-
extenso com seriedade, rigor e compromisso social?
2) Qual o nexo entre as expectativas discentes de obteno de
ttulos acadmicos
(de graduao e ps-graduao), bem como, de expandir seu
conhecimento e contribuir
para o desenvolvimento cientfico e inovao tecnolgica e as
efetivas possibilidades de
prosseguir no processo de formao dedicando-se privilegiadamente
aos estudos, sem
atrasos ou rompimento dos cursos, concluindo-os nos prazos
mnimos de integralizao,
participando ativamente de projetos acadmicos?
3) Qual o nexo entre os projetos profissionais docentes, os
apoios institucionais
requeridos e conquistados (para sua qualificao e para a realizao
de atividades
acadmicas) e o compromisso social com discentes e comunidade
local?
No limite deste artigo, no h pretenso de ser responder a
esses
questionamentos amiudadamente, sendo aqui apenas esboados e
sugeridos para
posterior aprofundamento. Todavia, tendo por certo que tais
respostas s faro sentido a
partir do entendimento das mltiplas determinaes que lhe conferem
concretude
histrica, buscar-se- compreender, em princpio, a quem
(realmente) interessa a
democratizao do ensino superior pblico e o que justifica tal opo
poltica no
mbito da direo do PT no plano do governo federal.
Esse exerccio de reflexo crtica recorre, portanto, a uma
abordagem
fundamentada no materialismo histrico, especialmente na
perspectiva gramsciana da
construo consensual da hegemonia.
Tendo por objetivo confrontar o discurso governamental com a
implantao de
novas universidades, novos campi, novos cursos, novas turmas,
conforme revelam as
estatsticas do MEC, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Ansio
Teixeira (INEP) e outras tantas, o texto est organizado de modo
a traar uma linha
argumentativa que situe os parmetros oficiais e tericos acerca
do que se est
chamando de democratizao do acesso ao ensino superior pblico,
trazendo, paralela e
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concomitantemente, uma discusso, a partir das contribuies de
autores marxistas, que
permita desvelar os limites dessa concepo.
Em se tratando de um trabalho ensasta, a construo deste artigo
careceu ainda
de subsdios empricos e aportes tericos mais consistentes. ,
portanto, despretensioso
em termos de apresentar proposies conclusivas, vindo mais a
levantar
questionamentos e suscitar reflexes que a trazer respostas.
2. QUE DEMOCRATIZAO ESSA? Situando os termos do debate, as
controvrsias do discurso oficial acerca da
democratizao do ensino superior pblico, no contexto da reforma
universitria posta
em curso durante o governo do PT na esfera federal brasileira,
so aqui apresentadas
quase como parfrase da clebre indagao (cano) do compositor
musical Renato
Russo: Que Pas Este? (1978/1987).
Como se afirma logo no primeiro artigo da Constituio vigente
desde 1988, a
Repblica Federativa do Brasil constitui-se em Estado democrtico
de direito que tem
como princpios fundamentais a soberania, a cidadania, a
dignidade da pessoa humana,
os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o
pluralismo poltico, sendo a
democracia representativa o regime primordial de exerccio de
poder do povo.
Assume-se, desta forma, como parmetro de relao entre Estado e
sociedade
civil, a noo de cidadania democrtica moderna, a qual, segundo
Ellen Wood (2011, p.
177), origina-se no feudalismo europeu e culmina no capitalismo
liberal, marcando a
ascenso das classes proprietrias e a auto declarao da
independncia dos prprios
senhores em relao aos governos monrquicos. Os princpios
constitucionais
modernos, portanto, deslocaram as implicaes do governo pelo
demos como
equilbrio de poder entre ricos e pobres como critrio central da
democracia.
(WOOD, 2011, p. 177). Desta forma, como aludido por Wood (ibid.,
p. 178), [...] a afirmao do privilgio aristocrtico contra a invaso
das monarquias produziu a tradio da soberania popular de que deriva
a concepo moderna de democracia; ainda assim, o povo em questo no
era o demos, mas um estrato privilegiado que constituiu uma nao
poltica exclusiva situada no espao pblico entre a monarquia e a
multido. [...] (grifo nosso)
preciso destacar que, nestes termos, tomando como exemplo a
supremacia
parlamentar na Inglaterra, o povo no realmente soberano,
revelando-se a crescente
centralizao do poder parlamentar no executivo, produzindo algo
semelhante
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soberanizao do gabinete, ou at mesmo do prprio cargo de
primeiro-ministro.
(WOOD, 2011, p. 178-179)
Pois bem. Situado o limite do alcance pretensamente democrtico
do Estado
liberal idealizado na Constituio Federal (CF) brasileira,
prossegue-se apontando que o
texto constitucional propugna que a educao direito de todos e
dever do Estado e da
famlia, a ser promovida e incentivada com a colaborao da
sociedade, visando ao -
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exerccio da
cidadania e sua
qualificao para o trabalho. (BRASIL, 1988, art. 205, grifos
nossos)
Os princpios que regem o ensino so, ento, enumerados no artigo
206 da CF
(BRASIL, 1988, grifos nossos): I igualdade de condies para o
acesso e permanncia na escola; II liberdade de aprender, ensinar,
pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III pluralismo
de ideias e de concepes pedaggicas, e coexistncia de instituies
pblicas e privadas de ensino; IV gratuidade do ensino pblico em
estabelecimentos oficiais; V valorizao dos profissionais do ensino,
garantidos, na forma da lei, -planos de carreira para o magistrio
pblico, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente
por concurso pblico de provas e ttulos; VI gesto democrtica do
ensino pblico, na forma da lei; VII garantia de padro de
qualidade.
Em relao educao superior, a CF estabelece que a efetivao do
dever do
Estado dar-se- mediante o acesso aos nveis mais elevados do
ensino, da pesquisa e da
criao artstica, segundo a capacidade de cada um (BRASIL, 1988,
art. 208, inc. V,
grifo nosso). O gozo de autonomia didtico-cientfica,
administrativa e de gesto
financeira e patrimonial, bem como, a indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e
extenso nas universidades (BRASIL, 1988, art. 207), so tambm
afirmados como
pressupostos e prerrogativas da instituio universitria, vindo a
estabelecer as diretrizes
para sua gesto e a definio de sua prpria razo de ser (sua
natureza), de sua
finalidade e utilidade social.
Justificando os grifos s citaes do texto constitucional,
observa-se que a
presuno do pleno desenvolvimento da pessoa h de se realizar
atravs do trabalho,
que por sua vez a qualifica como cidad; portanto, preparar para
o exerccio da
cidadania implica em preparar a pessoa para o trabalho, conforme
a diviso social e
tcnica do trabalho no modo de produo capitalista. Sendo esta a
finalidade precpua
da educao, a participao democrtica das pessoas no ensino
superior, acompanhando
a lgica gradativa do direito instruo assente na Declarao
Universal dos Direitos
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Humanos7, limita-se a esse tipo de formao segundo a capacidade
de cada um. Ou
seja, o critrio meritocrtico, seletivo de ingresso aos nveis
hierarquizados mais
elevados de ensino carrega em seu bojo o pressuposto da
liberdade de escolha, a qual,
no entanto, j dialeticamente tolhida desde a raiz, quando
lastreada pela definio das
capacidades individuais, em detrimento de uma viso
universalizadora que tenha como
propsito um processo de formao contnua dos indivduos, no sentido
de um
desenvolvimento integral de capacidades mltiplas, no
fragmentadas. O carter
seletivo e no universal do acesso Universidade, por si s, j nega
alguns dos
princpios que regem o ensino.
Os princpios grifados (art. 206) remetem aos questionamentos
elaborados na
introduo deste artigo, em relao s condies concretas de acesso,
permanncia e
desempenho dos estudantes nas universidades federais
interiorizadas, considerando no
apenas o aumento significativo do nmero de ingressantes ao longo
dos anos de
implantao da reforma universitria dita democrtica, mas tomando
em conta,
principalmente, a qualidade da formao profissional em nvel
superior e o
aproveitamento do capital social produzido nesse processo.
Retomando as consideraes de Ellen Wood acima referidas,
remetem-se
reflexo: qual o sentido, a direo e a fruio da poltica nacional
de educao, no
Brasil, enraizada nos padres do Estado liberal capitalista, sob
a direo de um partido
poltico fundado em teses de cunho socialista? Em outras
palavras, questiona-se: a
quem, no mbito dos governos de Lula e Dilma Roussef, (realmente)
interessa a
democratizao da educao superior pblica nos moldes do processo de
reforma
universitria em curso? E quem (verdadeiramente) usufrui dos
ganhos da expanso das
instituies federais de ensino superior, particularmente da
interiorizao?
Conforme se anunciava em pea publicitria do MEC, veiculada na
mdia
televisiva no ms de maio8 e atualizada em setembro de 2013, o
ingresso para as
7 A Declarao Universal dos Direitos Humanos (Adotada e
proclamada pela resoluo 217 A (III) da
Assembleia Geral das Naes Unidas em 10 de dezembro de 1948), no
seu Artigo XXVI, item 1, proclama que: Toda pessoa tem direito
instruo. A instruo ser gratuita, pelo menos nos graus elementares e
fundamentais. A instruo elementar ser obrigatria. A instruo
tcnico-profissional ser acessvel a todos, bem como a instruo
superior, esta baseada no mrito. (grifos nossos)
8 Vdeo com durao de um minuto, apresentado nos intervalos
comerciais da programao de emissoras de televiso em canal aberto,
em maio de 2013, fazendo a chamada para inscries de interessados no
Enem. Mostra o depoimento de uma estudante do curso de Pedagogia
sobre a conquista de um bom resultado no Enem, graas ao seu empenho
pessoal em estudar e manter-se atualizada. Disponvel em: . Acesso
em: 27 set. 2013.
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universidades e institutos federais, atravs do Sistema de Seleo
Unificada (Sisu), alm
do Programa Universidade para Todos (ProUni), do Fundo de
Financiamento Estudantil
(Fies) e do Programa Cincia sem Fronteiras, tem sido
oportunizado pelo MEC a
milhes de brasileiros que fazem o Exame Nacional do Ensino Mdio
(Enem)9.
Enfatiza-se na propaganda governamental que: O direito de
estudar de todos. O
mrito da conquista sempre seu. (mensagem de campanha
publicitria)10.
Mais recentemente, em 2014, a estratgia de propaganda do Enem
que vem
sendo veiculada nos vrios meios de comunicao, apresenta-o como
caminho de
oportunidades que torna acessvel a abertura de portas do
conhecimento. A
mensagem publicitria11 enaltece o esforo individual bem ao modo
liberal, pois,
conforme o jingle: [Para] ter uma vida feliz, com qualidade, o
caminho j existe, basta
ter vontade. s querer, se dedicar e estudar. Muitas portas
abertas para voc em todas
as etapas da sua vida escolar. [...].
No que tange ao assunto tratado neste artigo, essas campanhas
chamam a
ateno para a relevncia do Enem no conjunto de estratgias
governamentais para
promover a democratizao aqui problematizada. Insinua-se uma
pretensa justia
social, caracterizada na mensagem publicitria como acesso
democrtico, atravs da
gama de oportunidades de acesso ao ensino superior pblico e
privado, nas diversas
modalidades apresentadas: Sisu, ProUni, Fies e Cincia sem
Fronteiras12, como
tambm, mediante a iseno de taxa de inscrio para estudantes da
rede pblica ou 9 Criado em 1998, pelo Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (INEP), o
Exame Nacional do Ensino Mdio (Enem) foi idealizado como
(simples) mecanismo de avaliao do desempenho do aluno ao trmino da
escolaridade bsica. Hoje, serve como modalidade alternativa ou
complementar aos processos de seleo para o acesso ao ensino
superior e ao mercado de trabalho. (INSTITUTO..., 2005, p. 7)
10 Disponvel em: . Acesso em: 27 set. 2013. 11 Disponvel em: .
Acesso em: 25 maio 2014. 12 De acordo com as informaes disponveis
no Portal do MEC na internet (.
Acesso em: 30 set. 2013), o Sisu um sistema de seleo de
candidatos para as vagas das instituies pblicas de ensino superior
que utilizam a nota do Enem como nica fase de seu processo
seletivo; o ProUni concede bolsas de estudos integrais e parciais a
estudantes em instituies privadas de educao superior; o Fies,
operacionalizado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao
(FNDE), oferece crdito a estudantes matriculados em instituies de
ensino no gratuitas cadastradas no programa, em cursos com avaliao
positiva no Sistema Nacional de Avaliao da Educao Superior
(SINAES). O Programa Cincia sem Fronteiras, por sua vez, uma ao
interministerial do Ministrio da Cincia, Tecnologia e Inovao (MCTI)
e do Ministrio da Educao (MEC), por meio de suas respectivas
instituies de fomento CNPq e Capes , e Secretarias de Ensino
Superior e de Ensino Tecnolgico do MEC, cujo objetivo promover a
consolidao, expanso e internacionalizao da cincia e tecnologia, da
inovao e da competitividade brasileira por meio do intercmbio e da
mobilidade internacional, como informado em seu Portal especfico na
internet (. Acesso em: 30 set. 2013).
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com renda familiar de at um salrio mnimo em meio per capita, alm
da reserva de
cota de 50% das matrculas por curso e turno da IFES a alunos
oriundos integralmente
do ensino mdio pblico, definida pela Lei n 12.711/2012
(conhecida com lei das
cotas), regulamentada pelo Decreto n 7.824/2012 e pela Portaria
Normativa n 18/2012,
do Ministrio da Educao.
Cabe, ento, situar que das 63 universidades federais hoje
existentes13, 18 foram
criadas ou implantadas a partir de 2003, no bojo do processo de
reforma universitria,
contemplando novas instituies e transformao de faculdades ou
centros
universitrios em universidades.
De acordo com o MEC (MINISTRIO DA EDUCAO, 2011?), a expanso
das universidades federais em todo o Brasil ter alcanado at 2014
um total de 321
campus, abrangendo 275 municpios. Isso equivale a um crescimento
de 173 campus
em 161 municpios alm da oferta pr-existente (no perodo de 1808 a
2002 = 148
campus / 114 municpios). Em termos percentuais, o governo
federal ter alcanado o
feito de expandir e interiorizar 117% das instituies federais de
ensino superior isto
s para dizer das universidades (pois esto excludas deste clculo
as instituies
federais de ensino profissional tecnolgico de nvel superior);
isto representar a
incluso de 141% de municpios com abertura de oportunidades para
acesso formao
universitria.
Todo esse processo tem ocorrido de modo planejado, em ciclos de
expanso, a
saber (FORPLAD, 2008): 1) Primeiro Ciclo Expanso para o Interior
2003/2006; 2)
Segundo Ciclo Expanso com Reestruturao 2007/2012 REUNI (Decreto
6.096
de 24.04.2007 Programa de Apoio a Planos de Reestruturao e
Expanso das
Universidades Federais); 3) Terceiro Ciclo Expanso com nfase nas
interfaces
internacionais 2008/201014.
Importante registrar que os planos de desenvolvimento
institucional (PDI) das
universidades recm-criadas com seus respectivos projetos
pedaggicos , bem como,
13 Conforme pesquisa na base de dados do Sistema e-MEC.
Disponvel em: .
Acesso em: 25 maio 2014. Chave de busca em Consulta Textual: IES
/ Categoria Administrativa / Pblica Federal.
14 Informaes atualizadas, atravs de pesquisas diversas na
internet, do conta de que j esto em funcionamento as 4
universidades planejadas no terceiro ciclo de expanso: Universidade
Federal da Integrao Latino-Americana UNILA, Foz do Iguau-PR;
Universidade Federal do Oeste do Par UFOPA, Santarm-PA;
Universidade Luso Afro-Brasileira- Universidade UNILAB, Redeno-CE;
e Universidade Federal da Fronteira Sul UFFS.
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Anais do 2 Encontro Internacional de Poltica social e 9 Encontro
Nacional de Poltica Social
ISSN 2175-098X
das universidades antigas que aderiram ao REUNI, ampliando sua
estrutura com novos
campi, novos cursos, novas turmas, encontram lastro na filosofia
da universidade nova.
Isto , a inspirao do REUNI no chamado processo de Bolonha, que
estabelece o
Espao Europeu de Ensino Superior, pressupe implantao de um
sistema de graus
acadmicos facilmente reconhecveis e comparveis, que promova a
mobilidade dos
estudantes, dos professores e dos investigadores, assegurando a
elevao da qualidade
da docncia, incorporando uma dimenso sistmica continental e
intercontinental no
ensino superior baseado em trs ciclos: Licenciatura Mestrado
Doutoramento e
ampliando as chances de empregabilidade. Uma importante
caracterstica deste processo
a implantao dos bacharelados interdisciplinares (BI).
Sobre a importao do modelo europeu para a educao superior pblica
no
Brasil, Leher (2004?) adverte que: [...] Essa ofensiva, presente
tambm na agenda do ALCA, tem como meta edificar um mercado
educacional ultramar, sacramentando a heteronomia cultural. Mas o
pr-requisito converter, no plano do imaginrio social, a educao da
esfera do direito para a esfera do mercado, por isso o uso de um
lxico empresarial: excelncia, eficincia, gesto por objetivos,
clientes e usurios, empreendedorismo, produtividade,
profissionalizao por competncias, etc.
Ora, tal perspectiva de reforma democrtica e emancipatria da
Universidade
encontra respaldo terico na seguinte avaliao de Boaventura de
Sousa Santos
(SANTOS; ALMEIDA FILHO, 2008, p. 25): O desenvolvimento do
ensino universitrio nos pases centrais, nos trinta ou quarenta anos
depois da segunda guerra mundial, assentou, por um lado, nos xitos
da luta social pelo direito educao, traduzida na exigncia da
democratizao do acesso universidade, e, por outro lado, nos
imperativos da economia que exigia uma maior qualificao da
mo-de-obra nos sectores chave da indstria. A situao alterou-se
significativamente a partir de meados da dcada de setenta com a
crise econmica que ento estalou. A partir de ento gerou-se uma
contradio entre a reduo dos investimentos pblicos na educao
superior e a intensificao da concorrncia entre empresas, assente na
busca da inovao tecnolgica e, portanto, no conhecimento tcnico
cientfico que a tornava possvel e na formao de uma mo-de-obra
altamente qualificada.
No Brasil, o foco na profissionalizao tcnica em nvel mdio, para
atender s
demandas de modernizao da economia teria promovido a crescente
elitizao da
instituio universitria e mercantilizao do ensino superior, ao
reduzir os
investimentos pblicos e, mais adiante, jogar para o setor
privado tanto a oferta do
ensino quanto o financiamento de pesquisas e inovao tecnolgica
mesmo dentro das
estruturas das universidades pblicas.
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Nacional de Poltica Social
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Ratificando os propsitos expansionistas e o fortalecimento do
setor pblico, o
Plano Nacional de Educao PNE 2011-2020 (CMARA DOS DEPUTADOS,
2011,
p. 39-41), prev na meta 12: Elevar a taxa bruta de matrcula na
educao superior para
cinquenta por cento e a taxa lquida para trinta e trs por cento
da populao de dezoito
a vinte e quatro anos, assegurando a qualidade da oferta. Para
tanto, apresentam-se
como estratgias referentes ao ensino pblico, dentre outras: a
ampliao e
interiorizao do ensino em nvel de graduao, territorialmente
uniforme, com aumento
da oferta de vagas proporcional densidade populacional, sendo um
tero das vagas em
cursos noturnos; a otimizao da capacidade instalada da estrutura
fsica e dos recursos
humanos; a elevao gradual da taxa de concluso mdia dos cursos de
graduao
presenciais para 90%; prioridade para a formao de professores
para a educao
bsica, sobretudo nas reas de cincias e matemtica; fomento de
polticas de incluso e
de assistncia estudantil, de modo a ampliar as taxas de acesso
de estudantes egressos
da escola pblica, apoiando seu sucesso acadmico; fomento da
ampliao da oferta de
estgio como parte da formao de nvel superior; ampliao
proporcional de grupos
historicamente desfavorecidos na educao superior, mediante a
adoo de polticas
afirmativas.
Os parmetros situados nas estratgias do governo federal revelam
que a
democratizao do ensino superior pblico, como incluso social por
meio da ampliao
do acesso e garantia da permanncia das classes populares,
justificam-se, ento, como
um enfrentamento contradio entre as exigncias de democratizao e
os
imperativos da economia, considerada por Santos (SANTOS; ALMEIDA
FILHO,
2008, p. 14) como um dos vetores da crise de hegemonia das
universidades, expressa na
crise de legitimidade: de um lado, a defesa da autonomia
universitria na definio de
valores e objetivos, com exigncias sociais e polticas para
garantia de igualdade de
oportunidades para os filhos das classes populares e, de outro,
a hierarquizao dos
saberes especializados atravs das restries do acesso e submisso
das universidades a
critrios de eficcia e de produtividade de natureza empresarial
ou de responsabilidade
social.
Portanto, justifica-se a expanso universitria como tarefa
eminentemente
governamental, no sentido da oferta do servio pblico federal
(MINISTRIO DA
EDUCAO, 2011?):
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[...] Por isto, a expanso das universidades federais
constituiu-se [...] em conexo com os grandes impasses e dilemas
[...] entre os quais se sobressaem a superao das desigualdades e a
construo de um modelo desenvolvimento sustentvel, capaz de
conciliar crescimento econmico com justia social e equilbrio
ambiental. As universidades federais foram chamadas a interagir com
as vocaes e as culturas regionais repartindo o saber e a tecnologia
com toda a sociedade. A interiorizao foi uma das principais
diretrizes norteadoras do mapa da expanso com foco voltado para as
necessidade e vocaes econmicas de cada regio.
Buscando argumentos para uma aproximao com a realidade
brasileira e
atualizao da anlise conjuntural durante os governos petistas,
recorre-se ao artigo
Hegemonia da pequena poltica, no qual Carlos Nelson Coutinho
(2010) colhe do
arcabouo categorial de Gramsci o conceito de contrarreforma para
caracterizar o
perodo contemporneo ps-Welfare (contrarreforma neoliberal) e
mais precisamente a
ascenso do PT, tendo frente o ex-sindicalista Lus Incio Lula da
Silva, enquanto
dirigente cultural no bloco histrico hegemnico brasileiro.
Em sua argumentao, o autor afirma que aps o fim da ditadura, o
Brasil se viu
diante de duas possibilidades de reorganizao de sua recm-criada
sociedade
ocidental15: ou adotava o modelo americano (neoliberal), ou o
modelo europeu
(democrtico) (COUTINHO, 2010, p. 41). Na sequncia, Coutinho
(2010, p. 42)
conclui que A presena simultnea de aparelhos de hegemonia
prprios desses dois diferentes modelos revelava, de certo modo, a
persistncia de uma indefinio quanto ao tipo de sociedade ocidental
que iramos construir. Infelizmente, a chegada do PT ao governo
federal em 2003, longe de contribuir para minar a hegemonia
neoliberal, como muitos esperavam, reforou-a de modo
significativo.
Citando Gramsci (1999-2003 apud COUTINHO, 2010, p. 29), o autor
distingue
a hegemonia da grande poltica, isto , projeto de disputas
ideolgicas em termos
organizao societria, ligadas fundao de novos Estados, luta pela
destruio,
pela defesa e pela conservao de determinadas estruturas orgnicas
econmico-sociais
da hegemonia da pequena poltica, que diz respeito s crenas e
valores fundados em
questes parciais e cotidianas que se apresentam no interior de
uma estrutura j
estabelecida [...] (poltica do dia a dia, poltica parlamentar,
de corredor, de intrigas).
15 Segundo Coutinho (2010, p. 40), [...] o Brasil, aps mais de
vinte anos de ditadura, havia se tornado
preponderantemente uma sociedade ocidental no sentido gramsciano
do termo, ou seja, na qual existe uma justa relao entre Estado e
sociedade civil.
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Nessa perspectiva, o neoliberalismo , assim, um projeto
hegemnico da grande
poltica que, como tal, intenta excluir a grande poltica do mbito
interno da vida
estatal e reduzir tudo a pequena poltica. (GRAMSCI, 1999-2003,
p. 21 apud
COUTINHO, 2010, p. 29). Seguindo este raciocnio, Coutinho retoca
as provocaes
formuladas por Francisco Oliveira no artigo que antecede o seu
na mesma coletnea
(OLIVEIRA; BRAGA; RIZEK, 2010), contestando a expresso hegemonia
s
avessas, cunhada por Oliveira e afirmando preferir caracterizar
as relaes
hegemnicas analisadas como hegemonia da pequena poltica.
Por sua vez, Francisco Oliveira (2010, p. 369) encontrou no
termo utilizado um
modo irnico para referir-se aos regimes polticos que, fundados
na categoria
gramsciana socializao da poltica, ao chegar ao poder, praticam
polticas que so o
avesso do mandato de classes recebido nas urnas, como seria o
caso das presidncias
do Partido dos Trabalhadores no Brasil.
Nestes termos, Oliveira (2010, p. 376) ilustra a expresso por
ele inventada com
a hilria analogia de algum que vestiu a roupa s pressas e no
percebeu que saiu
rua do avesso. O avesso do avesso da hegemonia s avessas
representa a regresso
poltica, a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda do
lulismo.
Lembrando que hegemonia consenso e no coero, Coutinho (2010, p.
30)
adverte que ela nem sempre se baseia em ideologias orgnicas.
Portanto,
independente de tal fundamento, [...] uma relao de hegemonia
estabelecida quando um conjunto de crenas e valores se enraza no
senso comum, naquela concepo do mundo que Gramsci definiu como
bizarra e heterclita, com frequncia contraditria, que orientaa
muitas vezes sem plena conscincia o pensamento e a ao de grandes
massas de mulheres e homens. [...] predominam, hoje, no senso
comum, determinados valores que asseguram a reproduo do
capitalismo, ainda que nem sempre o defendam diretamente.
Tendo por certo que existe hegemonia quando h adeso consensual,
ativa ou
passiva, a certos valores, Coutinho (2010, p. 31) afirma que a
hegemonia da pequena
poltica baseia-se precisamente no consenso passivo, o qual se
expressa pela aceitao
resignada do existente como algo natural. Mais precisamente, da
transformao das
ideias e dos valores das classes dominantes em senso comum de
grandes massas,
inclusive das classes subalternas.
De acordo com Leher (2004?), o lxico empresarial que orienta o
processo de
expanso universitria como uma estratgia de ampliao de
oportunidades de
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desenvolvimento de competncias e habilidades especializadas numa
sociedade
altamente competitiva [...] contraposto s polticas pblicas
universais e ao modelo universitrio consagrado na Carta de 1988,
cujos defensores so desqualificados como corporativistas,
elitistas, privilegiados, insensveis ao drama social. Nesse jogo de
significaes aparentemente difusas, o governo joga o povo pobre (os
camponeses, citados por Lula da Silva) contra os privilegiados
servidores da universidade (os professores, conforme o mesmo Lula
da Silva) (mensagem: o campons pobre porque os professores tm
muitos privilgios, nada tendo a ver com a estrutura fundiria!), a
exemplo do que fizera na reforma da previdncia. Assim, reformas
regressivas, privatistas, anti-republicanas e que beneficiam os
ricos, so apresentadas aos de baixo como uma vitria da justia
frente aos privilgios.
Essas consideraes remetem compreenso do triunfo da pequena
poltica,
dado pela fragmentao das lutas setoriais que no pem em questo o
domnio do
capital e alienam a poltica como simples questo de administrao
do existente,
revelando-se a apatia como um fenmeno de massa, teorizada pelos
neoliberais como
um fator positivo para a conservao da democracia [...].
(COUTINHO, 2010, p. 31-
32)
Virgnia Fontes (2008, p. 33) por sua vez, ir referir-se a um
programa
educativo de subalternizao das massas, numa meno ao adestramento
e
disciplinamento pelo capital de enormes massas de trabalhadores
desprovidos de
direitos, muitas vezes sem contrato formal de trabalho, atravs
de requalificaes para
a empregabilidade que, com recursos pblicos, formam uma
mo-de-obra disponvel
para o capital, na modalidade de empresrios de si mesmos,
empreendedores.
Ainda de acordo com Coutinho (2010, p. 37), a luta de classes
certamente no
deixou de existir, porm, no se trava mais em nome da conquista
de novos direitos,
mas da defesa daqueles j conquistados no passado. Desta forma,
as reformas
presentes na agenda poltica tanto dos pases capitalistas
centrais como tambm dos
perifricos ou emergentes objetivam a restaurao de um capitalismo
selvagem,
cuja descrio se aproxima mais do conceito gramsciano de
contrarreforma que do
conceito de revoluo passiva. O que caracteriza um processo de
contrarreforma no
a completa ausncia do novo, mas a enorme preponderncia da
conservao (ou mesmo
da restaurao) em face das eventuais e tmidas novidades.
(COUTINHO, 2010, p. 38)
Esta uma linha argumentativa esclarecedora da massificao da
educao
superior, que, pautada na crescente especializao da diviso
social e tcnica do
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trabalho, expressa na dimenso sistmica dos ciclos de graduao e
ps-graduao
desenhada no processo de Bolonha, inspira a reforma universitria
brasileira.
Na defesa de uma opo clara pelo fortalecimento do ensino pblico,
Teixeira
(2006, p. 77-78) evoca, ento, o princpio que considera mais
revolucionrio da
sociedade democrtica: o princpio jurdico da igualdade formal, o
qual, no
conseguindo integrar a vida das pessoas, requer outra norma
jurdica necessria sua
recomposio, como, por exemplo, a oferta de vagas em cursos
noturnos, uma poltica
afirmativa de cotas, assim como uma poltica de assistncia
estudantil. Isso o que
concebe como democracia, como possibilidade de democratizar o
acesso.
Para desmistificar esta lgica, parece pertinente entender que
Ellen Wood (2011,
passim) proporciona alguns elementos reflexivos a respeito dos
limites da democracia
burguesa, especialmente no que tange individualizao crescente da
sociedade
capitalista, haja vista, os princpios antidemocrticos da
cidadania democrtica
inventada pelos Pais Fundadores [os federalistas] da democracia
representativa
americana. Ou seja, a democracia moderna fruto da inovao
norte-americana
estabelece uma ideia constitutiva essencial, qual seja, a
alienao do poder, o
distanciamento do povo da poltica. Na democracia capitalista
[...] a posio socioeconmica no determina o direito cidadania e isso
o democrtico da democracia capitalista , mas [...] a igualdade
civil no afeta diretamente nem modifica significativamente a
desigualdade de classe e isso que limita a democracia no
capitalismo. As relaes de classe entre capital e trabalho podem
sobreviver at mesmo igualdade jurdica e ao sufrgio universal. Neste
sentido, a igualdade poltica na democracia capitalista no somente
coexiste com a desigualdade socioeconmica, mas a deixa
fundamentalmente intacta. (WOOD, 2011, p. 184)
Acompanhando as contribuies de Wood, possvel compreender que
a
formao profissional fragmentada, como desenvolvimento de
competncia e
exclusividade, a especializao, afasta os trabalhadores da
cidadania, da vida poltica.
Tal acepo encontra aporte no princpio socrtico de que a virtude
conhecimento.
Esse princpio funda o ataque de Plato, nO Poltico e nA Repblica,
democracia
universal, tal qual em Atenas. Isto , [...] a arte da poltica
deve ser praticada apenas
por quem nela se especializa. No deve haver sapateiros e
ferreiros na Assembleia. A
essncia da justia no Estado o princpio de que o sapateiro deve
se ater sua frma.
(WOOD, 2011, p . 167)
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Seguindo outro vis interpretativo, Pablo Gentili (2002) vai
chamar de simulacro
o jogo de palavras nos discursos oficiais, cuja finalidade
retrica do neoliberalismo,
como perspectiva doutrinria, mesmo a falsificao do consenso em
torno de uma
democracia mnima, atravs de uma argumentao instrumental e
fundamentalista.
Como retrica do governo, destaca-se o discurso de Teixeira
(2006, p. 71): Na verdade, se vive um processo, muito cedo ainda
para falar em democracia na universidade. E isso muito difcil
quando ns vivemos nesse mundo capitalista, conhecido de todos, esse
modo de produo que a est, que muito mais compatvel com a
desigualdade, porque exige competio e a competio exclui e,
portanto, elitiza, e isso rivaliza com o sentido de democracia.
Essa relao entre Estado, mercado e democracia cada vez mais o
problema central de todas as nossas aes, seja na educao, seja em
qualquer outra rea de atuao do governo.
Aparentemente avanado, embora traga baila a compatibilizao
do
desenvolvimento econmico pautado no desenvolvimento cientfico e
tecnolgico
com uma possvel redistribuio do conhecimento que a chave para o
futuro
representada pelos jarges do crescimento sustentvel e da justia
social, o sentido da
democratizao da educao superior permanece restrito, comparecendo
nos discursos
do ento Ministro Tarso Genro (2004a) claramente associado
ampliao do nmero de
ingressos nas instituies universitrias pblicas e congneres, como
se pode extrair na
seguinte afirmao: So pelo menos cinco as razes que motivam a
reforma [universitria]: o fortalecimento da universidade pblica, o
combate mercantilizao do ensino, a democratizao do acesso, a
garantia da qualidade e a busca de uma gesto democrtica e
eficiente.
Todavia, tecida como crtica e contraposio a uma distorcida
deciso de
governos anteriores, que teria promovido uma expanso desordenada
do ensino
privado a partir da metade da dcada de 90 (GENRO, 2004a),
compreende-se que essa
viso no vai alm de uma farsa reducionista do alcance democrtico,
que preconiza a
quantidade em detrimento da qualidade. A reforma deve afirmar e
expandir a universidade pblica para regies estratgicas e reas de
conhecimento estratgico. Deve criar condies para que a universidade
impulsione a reduo das desigualdades regionais, inclusive ampliando
as oportunidades para os jovens originrios das classes populares.
No somente porque isto uma necessidade da construo democrtica, mas
tambm pelo fato objetivo de que estamos perante um processo brutal
de perdas de crebros, de no aproveitamento dos recursos humanos do
nosso pas e de desperdcio dos prprios recursos naturais que o pas
dispe. (GENRO, 25 abr. 2005)
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Em Coutinho, com evidncia para a Democracia como valor universal
artigo
que, publicado em 1979, no apagar do regime de exceo da ditadura
militar, causou
polmica entre os militantes da esquerda ,16 busca-se compreender
as influncias da
renovao democrtica, enquanto elemento indispensvel para criao
dos
pressupostos do socialismo [...] (COUTINHO, 1979, p. 35), que
aparece como
contedo estratgico revolucionrio no processo de ascenso das
massas condio de
sujeitos polticos coletivos como foi o caso, vinte e trs anos
aps a publicao desse
artigo, do PT alado Presidncia da Repblica , numa perspectiva da
democracia
poltica como um valor estratgico permanente, pressuposto da
criao uma nova
democracia, organizada de baixo para cima. (COUTINHO, 1979, p.
37)
Ao contrrio da concepo equivocada dos socialistas que no superam
a viso
estreita da democracia poltica como instrumento das elites
dominantes e dirigentes,
esse autor opina que a tarefa das foras populares no combate ao
regime de exceo a
criao dos pressupostos polticos, econmicos e ideolgicos como
estratgia
permanente para a conquista, a consolidao e o aprofundamento do
socialismo.
Sua tese se fundamenta numa nova concepo do vnculo entre
socialismo e
democracia por parte dos marxistas, face anlise crtica do
"socialismo real", no final
dos anos 70. E a base desse novo modo de conceber o Estado
dentro da prpria teoria
marxista assenta-se nas teses de Antnio Gramsci, que coloca a
questo democrtica no
centro da transio para o socialismo.
Atualizando seu discurso, em entrevista concedida revista Caros
Amigos
(ENTREVISTA..., 2009), Coutinho reafirma a radicalizao da
democracia como
elemento crucial para esse projeto estratgico: A democratizao o
processo de crescente socializao da poltica com maior participao na
poltica, e, sobretudo, a socializao do poder poltico. Ento, eu
acredito que a plena socializao do poder poltico, ou seja, da
democracia, s pode ocorrer no socialismo, porque numa sociedade
capitalista sempre h dficit de cidadania. Em uma sociedade de
classes, por mais que sejam universalizados os direitos, o exerccio
deles limitado pela condio classista das pessoas. Neste sentido,
para a plena realizao da democracia, o autogoverno da sociedade s
pode ser realizado no socialismo. Ento, eu diria que sem democracia
no h socialismo, e sem socialismo no h democracia. Acho que as duas
coisas devem ser sublinhadas com igual nfase.
16 O posicionamento de Coutinho foi criticado por autores
marxistas mais ortodoxos, como o caso de
Caio Navarro de Toledo que postulou a mistificao da perspectiva
do socialismo como resultado da radicalizao da democracia,
apontando-a como um equvoco idealista, alegando que a valorizao
exacerbada da democracia nega a possibilidade de confrontos e
rupturas com os setores dominantes (TOLEDO, 1994 apud NASCIMENTO,
2000, p. 69).
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Em que pese o contexto histrico mundial e nacional sob a
influncia do qual
Coutinho elaborou sua tese, o projeto de renovao democrtica por
ele proposto
revela-se bastante pertinente anlise aqui desenvolvida. A
renovao democrtica
compreende, portanto, um processo de transio para o socialismo,
que se faz pela
criao de novos institutos polticos inexistentes na democracia
liberal clssica.
Institutos dos quais, como j se analisou neste artigo, o PT
contrariando as
expectativas depositadas nas urnas jamais tratou de se
aproximar.
3. CONSIDERAES FINAIS Finaliza-se provisoriamente o debate aqui
apenas ensaiado, apontando os
controvertidos termos contidos no discurso oficial extensamente
problematizado neste
artigo.
Perseguindo o propsito de desmistificar os vieses dos limites
democrticos do
processo de expanso do acesso ao ensino superior pblico no
Brasil durante o perodo
de governo do Partido dos Trabalhadores PT, entre 2003 e 2013, o
conceito de
democratizao revelou-se avesso ao ideal socialista, ainda que no
mbito estrito do
reformismo.
Tratando-se de uma anlise da opo poltica do PT assumida na
chegada ao
governo federal, os discursos governamentais em prol da reforma
e expanso
universitria como estratgia de democratizao da educao superior
pblica no Brasil
podem ser criticamente interpretados, segundo um ou outro dos
pressupostos marxistas
enunciados neste artigo os quais no se excluem, antes se
complementam.
Com destaque, a contribuio de Carlos Nelson Coutinho acerca do
reformismo
revolucionrio traz a ideia central da democracia com valor
estratgico universal.
Amparado na concepo gramsciana da luta pela hegemonia, Coutinho
vai alm da
democracia enquanto mero princpio ttico (meio) e aponta o
reformismo revolucionrio
como projeto estratgico (meio e fim) que venha a gerar mudanas
no Brasil, tornando
este pas uma nao extremamente democrtica que permita a integrao
poltica e
econmica do conjunto da populao aos benefcios do progresso
nacional.
Fica sugerido o aprofundamento do estudo e discusso do tema a
partir de uma
reflexo crtica acerca da constituio de uma contra hegemonia
capaz de promover
alteraes substantivas no bloco histrico, de modo a viabilizar a
oferta e a fruio do
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ensino superior pblico como direito universal e no como mrito de
capacidades
individuais privilegiadas com as oportunidades financiadas pelo
fundo pblico.
REFERNCIAS
BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil. 5 out.
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. Decreto n 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa
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