FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS MARIA DO CARMO LOPES TOFFANETTO R. BASSETTO DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA: ANÁLISE DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS ITINERANTES NA AMAZÔNIA LEGAL BRASILEIRA POUSO ALEGRE – MG 2015
FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS
MARIA DO CARMO LOPES TOFFANETTO R. BASSETTO
DEMOCRATIZAO DO ACESSO JUSTIA:
ANLISE DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS
ITINERANTES NA AMAZNIA LEGAL BRASILEIRA
POUSO ALEGRE MG
2015
MARIA DO CARMO LOPES TOFFANETTO R. BASSETTO
DEMOCRATIZAO DO ACESSO JUSTIA:
ANLISE DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS
ITINERANTES NA AMAZNIA LEGAL BRASILEIRA
Dissertao apresentada como exigncia parcial para
obteno do ttulo de Mestre em Direito, ao Programa de
Ps-Graduao em Direito da Faculdade de Direito do
Sul de Minas FDSM.
Orientador: Prof. Dr. Jos Luiz Ragazzi
FDSM - MG
2015
B319d Bassetto, Maria do Carmo Lopes Toffanetto Rossitto
Democratizao do acesso justia: anlise dos
Juizados Especiais Federais Itinerantes na Amaznia
Legal Brasileira. POUSO Alegre MG: FDSM, 2015.
275p.
Orientador: Prof. Dr. Jos Luiz Ragazzi.
Dissertao (Mestrado) Faculdade de Direito do Sul
de Minas, Programa de Ps-Graduao em Direito.
1. Acesso justia. 2. Juizados Especiais Federais Itinerantes. 3.
Amaznia Legal Brasileira. I. Bassetto, Maria do Carmo Lopes Toffanetto
Rossitto. II. Faculdade de Direito do Sul de Minas. Mestrado em Direito. III.
Ttulo.
CDU 340
MARIA DO CARMO LOPES TOFFANETTO ROSSITTO BASSETTO
DEMOCRATIZAO DO ACESSO JUSTIA: ANLISE DOS JUIZADOS ESPECIAIS
FEDERAIS ITINERANTES NA AMAZNIA LEGAL BRASILEIRA
FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS
Data da Aprovao ____ / ____ / 2015.
Banca Examinadora:
____________________________________________
Prof. Dr. Jos Luiz Ragazzi
Orientador - FDSM
____________________________________________
Prof. Dr. Paulo Srgio Restiffe
PUC-SP
____________________________________________
Prof. Dr. Cludia M. Queda de Toledo
FDSM
POUSO ALEGRE - MG
2015
A Marcelo, por tudo.
AGRADECIMENTOS
A concluso desta dissertao de mestrado encerra uma importante etapa de
minha vida acadmica, cuja realizao s foi possvel devido ajuda recebida de todos
aqueles que me acompanharam durante os ltimos dois anos dedicados a este trabalho.
Aqui, quero deixar registrado o meu profundo reconhecimento.
Em especial, agradeo a meu orientador, Professor Dr. Jos Luiz Ragazzi. O
incentivo, a confiana, a liberdade e as valiosas lies foram fundamentais para o
desenvolvimento e a concluso desta pesquisa.
Agradeo aos colegas e amigos do mestrado que compartilharam comigo as
dificuldades, angstias, alegrias e realizaes, tornando esta jornada menos rdua.
Aos professores do mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas e em
especial ao Professor Dr. Elias Kalls Filho, coordenador do Programa de Ps-Graduao em
Direito da FDSM, pelo apoio, confiana e serenidade nas horas mais difceis.
A Juliana Rebello e Maryane Mendes, pela ateno e gentileza.
A todos de minha grande famlia, que me do foras para superar os obstculos.
A meu pequeno acreano, Willian, que me fez companhia em todos os dias e noites
dedicados realizao deste trabalho.
E aos meus dois rondonienses, Amanda e Ettore, que todos os dias renovaram
minhas esperanas e crenas, no permitindo que eu desistisse ao longo do caminho.
A todos vocs, meus sinceros e eternos agradecimentos.
RESUMO
BASSETTO, Maria do Carmo Lopes Toffanetto. Democratizao do acesso justia: anlise
dos Juizados Especiais Federais Itinerantes na Amaznia Legal Brasileira. 2015. 275p.
Dissertao (Mestrado em Direito) Faculdade de Direito do Sul de Minas. Programa de Ps-
Graduao em Direito, Pouso Alegre, Minas Gerais, 2015.
A Justia Federal brasileira, desde a criao dos Juizados Especiais Federais em 2001, que
tem como fundamentos os princpios da celeridade, simplicidade, informalidade e economia
processual, tem se preocupado em encontrar alternativas capazes de ampliar e efetivar o
acesso justia para todos os jurisdicionados, sem qualquer distino. Neste contexto, a
experincia dos Juizados Especiais Federais Itinerantes, realizados no mbito da Primeira
Regio, destaca-se exatamente pelo fato de buscar a supresso das enormes dificuldades de
acesso ao Poder Judicirio que so vivenciadas pelos cidados menos favorecidos das
populaes isoladas por aspectos geogrficos, climticos e socioeconmicos. A presente
dissertao tem como objetivo pesquisar e avaliar em que medida o funcionamento dos
Juizados Especiais Federais Itinerantes e suas inovaes na busca da reduo dos bices
encontrados pelos jurisdicionados econmicos, sociais, polticos, psicolgicos, geogrficos
e processuais constitui um importante instrumental para nortear polticas de promoo do
acesso justia e, mais especificamente, de efetivao dos direitos sociais previdncia e
assistncia social, sobretudo da parcela mais carente da populao, que reside nos municpios
e comunidades mais longnquos da regio ocupada pela Amaznia Legal brasileira.
Palavras-chave: Acesso justia, Juizados Especiais Federais Itinerantes, Amaznia Legal
Brasileira.
ABSTRACT
BASSETTO, Maria do Carmo Lopes Toffanetto. Democratization of the access to justice:
analysis of Special Courts Federal Itinerant in the Brazilian Legal Amazon. 2015. 275p.
Dissertation (Maters in Law) Faculty of Law of Southern Minas Gerais. Postgraduate
Program in Law. Pouso Alegre, 2014. Pouso Alegre, Minas Gerais, 2015.
The Brazilian Federal Justice, since the creation of Federal Small Claims Courts in 2001,
which is founded on the principles of speed, simplicity, informality and procedural economy,
has been concerned with alternatives able to expand and accomplish access to justice for all
jurisdictional, without any discrimination. In this context, the experience of the Federal
Courts Itinerant is what draws the most attention, in the First Region of the Federal Court of
Brazil, precisely because of seeking the removal of the enormous difficulties of access to the
judiciary experienced by disadvantaged citizens of the isolated populations by geographical,
climatic and socio-economic aspects. The present work aims to research and evaluate to what
extent the operation of the Special Federal Courts Itinerant and their innovations in pursuit of
reducing obstacles encountered by jurisdictional - economic, social, political, psychological,
geographical and procedural - is an important instrument to guide policies to promote access
to justice and therefore of attaining social rights social security and social assistance,
especially the poorest segment of the population that reside in the most remote towns and
communities of the region occupied by the Brazilian Legal Amazon.
Key words: Access to justice, Special Federal Courts itinerant, Brazilian Legal Amazon.
.
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................. 10
1 O ACESSO JUSTIA NO BRASIL ................................................. 14
1.1 O QUE O ACESSO JUSTIA? ................................................................................. 16
1.1.1 Acepes do termo Acesso Justia ...................................................................... 18
1.1.2 Evoluo do Acesso Justia ................................................................................. 21
1.1.3 As ondas reformatrias de Cappelletti e Garth ....................................................... 26
1.2 ORIGEM DO ACESSO JUSTIA NO BRASIL ......................................................... 29
1.3 O ACESSO JUSTIA PS CONSTITUIO DE 1988 ............................................. 34
1.4 IDENTIFICAO DA REALIDADE BRASILEIRA ..................................................... 37
1.4.1 Dificuldades de acesso fsico justia ....................................................................... 39
1.4.2 Os ndices sociais e os custos do processo ................................................................. 46
1.4.3 Demanda reprimida e volume de processos ............................................................... 53
1.4.4 Tempo de tramitao dos processos ........................................................................... 59
1.4.5 Direitos transindividuais............................................................................................. 66
1.5 ALTERNATIVAS PARA EFETIVAO DO ACESSO JUSTIA NO BRASIL ..... 72
1.5.1 Assistncia Judiciria ................................................................................................. 72
1.5.2 Fortalecimento do Ministrio Pblico ........................................................................ 76
1.5.3 Instituio das Defensorias Pblicas .......................................................................... 79
1.5.5 Tutela coletiva ............................................................................................................ 88
1.5.6 Tratamento das pequenas causas ................................................................................ 93
2 JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS CVEIS .................................... 95
2.1 HISTRICO ...................................................................................................................... 96
2.1.1 Origem e evoluo dos Juizados Especiais no Brasil ................................................. 98
2.1.2 Os Juizados Especiais de Pequenas Causas ............................................................. 102
2.1.3 Juizados Especiais Estaduais .................................................................................... 107
2.1.4 Juizados Especiais Federais ...................................................................................... 116
2.2 PRINCPIOS INFORMADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS ................................. 124
2.2.1 Princpio da Oralidade .............................................................................................. 128
2.2.1.1 Princpio da Imediao ............................................................................................. 130
2.2.1.2 Princpio da identidade fsica do juiz ....................................................................... 131
2.2.1.3 Princpio da concentrao dos atos processuais ....................................................... 132
2.2.1.4 Princpio da irrecorribilidade das decises interlocutrias....................................... 134
2.2.2 Princpio da simplicidade ......................................................................................... 136
2.2.3 Princpio da informalidade ....................................................................................... 138
2.2.4 Princpio da economia processual ............................................................................ 139
2.2.5 Princpio da celeridade processual ........................................................................... 142
2.3 INOVAES E PECULIARIDADES DA LEI N 10.259/2001 ................................... 150
2.4 O TRATAMENTO DAS AES PREVIDENCIRIAS E ASSISTENCIAIS ............ 162
2.4.1 Os direitos previdncia e assistncia sociais ....................................................... 163
2.4.1.1 Processo previdencirio nos Juizados Especiais Federais ........................................ 167
2.4.2 Processamento dos feitos nos JEFs .......................................................................... 171
2.4.3 Os nmeros dos JEFS ............................................................................................... 175
2.4.3.1 O processo de interiorizao .................................................................................... 175
3 OS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS ITINERANTES NA
REGIO AMAZNICA ............................................................................. 188
3.1 A JUSTIA ITINERANTE ............................................................................................ 189
3.1.1 Origem e conceito da Justia Itinerante brasileira .................................................... 190
3.1.1.1 O novo modelo de Justia Itinerante ........................................................................ 192
3.1.1.2 Um novo conceito de Justia Itinerante ................................................................... 195
3.1.2 Previso legal da Justia Itinerante e a Emenda Constitucional n 45/2004 ............ 196
3.2 OS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS ITINERANTES ............................................ 201
3.2.1 Jurisdio e Competncia dos Juizados Especiais Federais Itinerantes ................... 205
3.2.1.1 Evoluo e conceito .................................................................................................. 205
3.2.1.1.1 As concepes de Chiovenda e Carnelutti ............................................................... 207
3.2.1.1.2 A concepo contempornea de jurisdio .............................................................. 209
3.2.2 Competncia ............................................................................................................. 211
3.2.2.1 Competncia dos Juizados Especiais Federais ......................................................... 213
3.2.2.2 Competncia dos Juizados Especiais Federais Itinerantes ....................................... 218
3.2 OS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS ITINERANTES NO MBITO DA PRIMEIRA
REGIO ............................................................................................................................. 221
3.2.3 Organizao e funcionamento .................................................................................. 222
3.2.4 Modalidades dos Juizados Especiais Federais Itinerantes ....................................... 225
3.2.5 Realidade regional e obstculos encontrados ........................................................... 227
3.3 A EXPERINCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS ITINERANTES NA
AMAZNIA LEGAL E A EFETIVAO DO ACESSO JUSTIA ........................... 232
3.3.1 Alternativas e solues ............................................................................................. 232
3.3.2 Juizados Especiais Federais Itinerantes realizados na Amaznia Legal .................. 236
3.3.2.1 Nmero de processos julgados ................................................................................. 243
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 252
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................... 255
10
INTRODUO
No Brasil contemporneo, verifica-se que a estrutura e o funcionamento do
sistema judicirio reproduzem os abismos sociais do pas, nos quais os grupos socialmente
vulnerveis so tambm os grupos legalmente fracos e desprivilegiados1.
Dentre o universo de pessoas destitudas de privilgios, encontram-se os
jurisdicionados que buscam os Juizados Especiais Federais para reclamar a efetivao dos
seus direitos previdencirios ou assistenciais que foram indeferidos administrativamente.
Muitos deles conseguem chegar s portas do Judicirio para fazerem seu pedido.
Entretanto, outros (e essa a grande preocupao) no possuem o conhecimento nem os
instrumentos necessrios para vencer todos os obstculos que encontram durante a longa,
rdua e demorada jornada que precisam percorrer at a efetivao de seu direito prestao
jurisdicional.
Nessa trilha at as portas da justia, muitos daqueles que iniciam sua caminhada
desistem diante de obstculos que, para eles, so intransponveis. Os outros, aqueles ainda
mais excludos, desinformados sobre seus direitos e descrentes no sistema judicirio, nem
mesmo conseguem vencer a inrcia que sobre eles se abate.
Diante desse quadro de excluso social, torna-se imprescindvel para o Estado
adotar medidas capazes de atender s necessidades desses cidados, por meio da
democratizao do acesso aos servios pblicos, dentre os quais os servios prestados pelo
Poder Judicirio, principalmente depois de promulgada a Constituio da Repblica
Federativa do Brasil de 1988.
Justamente nesse cenrio, redesenhado pelas mudanas ocorridas com a
redemocratizao do Brasil, que eclode com toda fora a demanda reprimida por anos de
descaso do Estado para com seus cidados, extravasada pelos diversos mecanismos
igualmente contemplados pela atual Constituio, como as aes coletivas e os Juizados
Especiais Estaduais2.
Os Juizados Especiais Federais, institudos por meio da Lei 10.259/2001, e,
posteriormente, o desenvolvimento e operacionalizao dos Juizados Especiais Federais
Itinerantes, fazem parte das alteraes do sistema judicirio brasileiro, iniciadas com a
1 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Access to justice and the welfare state: an introduction. In:
CAPPELLETTI, Mauro (ed.). Access to justice and the welfare state. Alphen aan den Rijn: Sijthoff; Bruxelles:
Bruylant; Firenze: Le Monnier; Stuttgart: Klett-Cotta, 1981, p. 03.
2 Os Juizados Especiais Estaduais foram institudos pela Lei 9.099 de 26 de setembro de 1955, em cumprimento
ao disposto no art. 98, caput, e inciso I ,da Constituio Brasileira de 1988.
11
Constituio de 1988, como alternativas a suplantar a inrcia dos cidados excludos e
desinformados, possibilitando, pelo menos em tese, o acesso a uma justia desburocratizada,
informal, menos onerosa, mais clere e efetiva.
Nesse contexto, pesquisar e avaliar o funcionamento dos Juizados Especiais
Federais Itinerantes e suas inovaes na busca da reduo dos bices encontrados pelos
jurisdicionados econmicos, sociais, polticos, psicolgicos, geogrficos e processuais
constitui um importante instrumental para nortear polticas de promoo do acesso justia e,
portanto, de efetivao dos direitos sociais previdncia e assistncia social, sobretudo da
parcela mais carente da populao.
Segundo Maria Tereza Sadek, A literatura terica e jurdica sobre os Juizados
Especiais j bastante extensa, particularmente na rea do direito 3. No entanto, O foco
desta pesquisa dirige-se para o mapeamento e a anlise da experincia concreta dos Juizados
Especiais Federais Itinerantes realizados na Amaznia Legal, tendo como parmetros os
princpios que norteiam os Juizados Especiais e a garantia constitucional do acesso justia,
prevista expressamente no artigo 5, inciso XXXV, da Constituio Federal de 1988, para
todos, indistintamente.
No mbito cientfico, a literatura produzida sobre os Juizados Especiais Federais
Itinerantes ainda escassa, principalmente quanto aos itinerantes realizados na regio da
Amaznia Legal, o que requer um aprofundamento terico sobre esse sistema de prestao
judiciria, adotado pela Justia Federal da Primeira Regio para vencer as barreiras existentes
e democratizar o acesso justia.
O desenvolvimento da dissertao tem como ponto de partida a definio do
seguinte problema: No contexto do movimento universal da democratizao do direito de
acesso justia, quais so os desafios encontrados para os jurisdicionados carentes que
residem nas regies mais isoladas da Amaznia Legal?
Para tanto, parte-se da hiptese de que os Juizados Especiais Federais Itinerantes
so indispensveis para garantir o acesso justia s pessoas que residem nas comunidades
mais carentes e geograficamente distantes das Sees e/ou Subsees Judicirias Federais
existentes na regio da Amaznia Legal.
A partir dessa hiptese, analisa-se a realidade brasileira com o intuito de
identificar os bices ao acesso justia, apontando as alternativas propostas para facilitar e
3 SADEK, Maria Tereza. Juizados Especiais: o processo inexorvel da mudana. In: SLAKMON, Catherine;
MACHADO, Mara Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (orgs). Novas direes na governana da justia e da
segurana. Braslia: Ministrio da Justia, Secretaria de Reforma do Judicirio, 2006. p. 249.
12
efetivar a prestao jurisdicional aos cidados, com nfase nas lides de naturezas
previdencirias e assistenciais que so demandadas nos Juizados Especiais Federais
Itinerantes.
A abrangncia da pesquisa restringe-se aos estados-membros da Amaznia Legal
Brasileira que fazem parte do Tribunal Regional Federal da 1 Regio TRF1, cuja jurisdio
engloba o Distrito Federal e mais treze estados brasileiros: Acre, Amap, Amazonas, Bahia,
Gois, Maranho, Mato Grosso, Minas Gerais, Par, Piau, Rondnia, Roraima e Tocantins.
A escolha por essa regio fundamenta-se no fato de que a Amaznia Legal
Brasileira4, composta pelos estados do Acre, Amap, Amazonas, Mato Grosso, Par,
Rondnia, Roraima, Tocantins e parte do estado do Maranho, possui peculiaridades5
geogrficas, climticas e socioeconmicas que demandam um modelo diferenciado de
prestao jurisdicional, capaz de alcanar os jurisdicionados, em condio de miserabilidade,
que habitam locais isolados e distantes das instalaes permanentes da Justia Federal.
A metodologia empregada neste estudo inclui o levantamento bibliogrfico
necessrio para a fundamentao terica da dissertao, de forma a desenvolver a relao
existente entre acesso justia, Juizados Especiais Federais e a Justia Itinerante. Para tanto,
utiliza-se o mtodo dedutivo, por meio do desenvolvimento do raciocnio lgico, partindo de
uma ideia geral sobre o tema em estudo at chegar s concluses particulares.
Alm da pesquisa bibliogrfica realizada, utiliza-se como instrumento de pesquisa
o levantamento de dados estatsticos relevantes para a realizao do estudo, dentre os quais:
rea territorial; densidade demogrfica; IDH; nmero de municpios sede de Comarca, Seo
ou Subseo Judiciria; nmero de Juizados Especiais Federais Cveis; quantidade de
processos distribudos e julgados anualmente.
Tambm foi utilizada a pesquisa emprica, por meio do levantamento, compilao
e anlise de dados especficos sobre os Juizados Especiais Federais Itinerantes realizados no
territrio da Amaznia Legal Brasileira, durante os anos de 2002 a 2014.
Todas as informaes analisadas nesta dissertao so provenientes de dados
oficiais divulgados nos sites de seus respectivos rgos, quais sejam: IBGE; Banco Mundial;
Tribunais Regionais Federais; Tribunais de Justia; Conselho Nacional de Justia; Conselho
4 Conceito poltico institudo pela Lei 1.806, de 1953. Senado Federal. Disponvel em: <
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=1806&tipo_norma=LEI&data=19530106&lin
k=s>. Acesso em: 11 abr. 2014. 5 Na regio em estudo predomina o clima tropical semimido, com temperaturas elevadas todo o ano e duas
estaes definidas pela distribuio espacial e temporal das chuvas: uma estao seca e uma estao chuvosa.
Em alguns estados da regio, como Mato Grosso, Rondnia, Amaznia e Acre, as condies trmicas regionais
so modificadas de forma significativa durante alguns dias pela friagem, fenmeno meteorolgico causado
pela influncia das frentes frias originrias do Sul do pas, provocando a diminuio brusca de temperatura.
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=1806&tipo_norma=LEI&data=19530106&link=shttp://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=1806&tipo_norma=LEI&data=19530106&link=s
13
da Justia Federal; Superior Tribunal de Justia e Supremo Tribunal Federal, cujos endereos
eletrnicos esto devidamente citados.
O desenvolvimento da dissertao foi dividido em trs captulos. O primeiro
captulo tem como objeto de estudo o problema do acesso justia, com o objetivo de
demonstrar os obstculos encontrados pela populao que reside na regio em estudo e, ainda,
as alternativas adotadas visando democratizao do acesso justia no Brasil. Para a
construo do conceito de acesso justia, parte-se dos aportes tericos de Mauro Cappelletti
e Bryant Garth, compilados no livro Acesso Justia, at o iderio de acesso ordem
jurdica justa, desenvolvido pelo jurista brasileiro Kazuo Watanabe.
O captulo seguinte trata especificamente dos Juizados Especiais Federais. Por
meio de um breve estudo sobre as condies histricas que possibilitaram a criao dos
Juizados de Pequenas Causas e sua evoluo no Brasil, da implementao, caractersticas e
princpios que norteiam os Juizados Especiais e, ainda, da anlise das especificidades da Lei
10.259/2001, busca-se abordar a relevncia dos Juizados Especiais Federais Cveis no
tratamento e resoluo das lides previdencirias e assistenciais.
Por fim, no ltimo captulo analisam-se os principais aspectos dos Juizados
Especiais Federais Itinerantes, a partir de sua origem no ordenamento jurdico brasileiro, com
o escopo de verificar a relevncia desse modelo peculiar de Justia Itinerante rumo
democratizao do acesso justia, notadamente, para as comunidades que habitam a
Amaznia Legal Brasileira.
Pretende-se, com o presente estudo, demonstrar que o acesso justia no Brasil
est muito aqum dos estudos consagrados por Cappelletti e Garth6, ainda na dcada de 1970,
principalmente para a populao que reside nas comunidades mais carentes e isoladas da
Regio Amaznica, em muitas das quais o Judicirio ainda desconhecido e inatingvel.
Nesse contexto, objetiva-se comprovar que, para tais comunidades, ainda
imprescindvel buscar alternativas que possibilitem o acesso Justia enquanto instituio
estatal 7, para que se possa almejar, em um momento posterior, a viabilizao do acesso
ordem jurdica justa idealizado por Watanabe.
.
6 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso justia. Traduo de Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre, Fabris, 1988. 7 WATANABE, Kazuo Acesso justia sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini. (Org.).
Participao e Processo. So Paulo: Ed Revista dos Tribunais, 1988, v., p. 128.
14
1 O ACESSO JUSTIA NO BRASIL
A Constituio da Repblica Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro
de 1988, consagra o Brasil como um Estado Democrtico de Direito8, destinado a assegurar o
exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a soluo pacfica das controvrsias, sendo que, em seu artigo 1, inciso
III, a atual Constituio elege expressamente a dignidade da pessoa humana9 como um dos
seus fundamentos.
A partir dessa nova ordem constitucional brasileira, a ampliao dos direitos
fundamentais aparece necessariamente como um de seus corolrios, assim como a ampliao
dos direitos prestacionais a serem exigveis do Estado, em consequncia da aplicao do
artigo 5, inciso XXXIV, que assegura a todos, independentemente do pagamento de taxas, o
direito de petio aos Poderes Pblicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso
de poder, e, tambm, do princpio constitucional de acesso justia, expresso no inciso
XXXV do art. 5 da Constituio Federal Brasileira garantindo que a lei no excluir da
apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito 10.
Todavia, o fato preocupante que, apesar de o artigo 5, XXXV, da CF/88
garantir o acesso justia como um dos direitos fundamentais, a situao traz uma
contrapartida desafiadora para o Estado, consubstanciada na necessidade de se obter uma
resposta clere e satisfatria a cada demanda proposta ao Judicirio11
. Tal exigncia decorre
8 BRASIL. Constituio da Repblica Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. DOU de
05.10.1988. Disponvel em: . Acesso em:
14 ago. 2014. 9
Art. 1. A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II -
a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V -
o pluralismo poltico. (Original sem grifos). 10
Art. 5, inciso XXXV, CF 1988. 11
Muitos dos problemas de congestionamento, e consequentemente de atraso, e dos custos sistmicos so
gerados das prticas oportunistas adotadas por alguns atores extremamente poderosos o governo, os
advogados particulares e, em menor escala, bancos e concessionrias de servios pblicos. Se essas entidades
pudessem ser convencidas a controlar o seu oportunismo, os tribunais poderiam concentrar-se na soluo dos
problemas por eles mesmos gerados. BANCO MUNDIAL. Unidade de Reduo da Pobreza e Gesto
Econmica da Amrica Latina e Caribe. Fazendo com que a justia conte. Medindo e aprimorando o
desempenho do Judicirio no Brasil, p. 23. Disponvel em: . Acesso em: 06 ago. 2014.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
15
do texto do artigo 5, inciso LXXVIII12
, que assegurou a todos a razovel durao do processo
e os meios que garantam a celeridade de sua tramitao, tanto no mbito judicial quanto na
esfera administrativa.
De fato, o ordenamento jurdico tem como principal tarefa estabelecer uma
tutela de direitos eficaz, no sentido de no apenas assegur-los, mas tambm garantir sua
satisfao 13
, pois, se a Constituio assegura a todos o direito de acesso ao Judicirio, a tal
direito corresponde um dever do Estado de tutelar, efetivamente, os direitos lesados ou
ameaados.
No entanto, a anlise do acesso justia, princpio visto por Cappelletti e Garth14
como pressuposto para se alcanar a almejada justia social, evidencia a tenso constante que
existe entre a igualdade jurdico-formal e as desigualdades socioeconmicas e ressalta a
relevncia da efetivao, e no apenas da simples proclamao, dos direitos dos cidados15
.
Para esses autores, no contexto de um dado direito substantivo, a efetividade
perfeita poderia ser expressa como a completa igualdade de armas, ou seja, a garantia de
que a concluso final no depende apenas dos mritos jurdicos relativos das partes
antagnicas, sem relao com diferenas que sejam estranhas ao Direito e que, no entanto,
afetam a afirmao e reivindicao dos direitos 16
.
Ocorre que, no ltimo sculo, as mudanas pelas quais passaram o Estado, a
sociedade e a economia induziram a ampliao da demanda judicial em vrios domnios17
. A
litigao em termos de direitos sociais e direitos do consumidor so exemplos de um novo
padro de lutas que se traduziram em um aumento exponencial da procura judiciria 18
.
Diante do novo contexto social, as dificuldades de oferta da prestao
jurisdicional colocaram em pauta as questes da eficcia, eficincia e do acesso ao sistema
12
O inciso LXXVIII, do artigo 5, introduzido ao texto constitucional pela EC n 45/04, assim dispe: a todos,
no mbito judicial e administrativo, so assegurados a razovel durao do processo e os meios que garantam a
celeridade de sua tramitao. 13
BEDAQUE, Jos Roberto dos Santos. Direito e Processo: Influncia do direito material sobre o processo. 6.
ed., rev. e ampl. So Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 23. 14
CAPPELLETTI; GARTH. Op. Cit. p. 8. 15
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mo de Alice: o social e o poltico na ps-modernidade. 7. ed. Porto:
Afrontamento, 1999. Cit. p. 168-171. 16
CAPPELETTI, Op. cit. p.15 17
SANTOS, Boaventura de Sousa, MARQUES, Maria Manuel Leito; PEDROSO, Joo; FERREIRA, Pedro
Lopes. Os tribunais nas sociedades contemporneas: o caso portugus. Porto: Edies Afrontamento, 1996. 18
AVRITZER, Leonardo; MARONA, Marjorie; GOMES, Lilian. Cartografia da Justia no Brasil: uma anlise
a partir de atores e territrios/ Leonardo Avritzer, Marjorie Marona; Lilian Gomes (orgs.). So Paulo: Saraiva,
2014, p. 29.
16
formal de justia, apontando a necessidade da incluso, nas agendas polticas de diversos
pases, das reformas do Judicirio19
.
No Brasil, o tema do acesso justia relativamente novo.
Pesquisadores brasileiros iniciaram os estudos sobre os problemas da
acessibilidade ao Judicirio na dcada de 1980, com nfase na ampliao da cidadania
participativa, na afirmao e garantia das liberdades negativas, e no papel dos movimentos
sociais que, no contexto de abertura poltica vivenciada pelo Brasil, tornaram-se uma
importante referncia na avaliao do funcionamento e da estrutura do sistema judicial
brasileiro20
.
Atualmente, embora o acesso justia figure entre os direitos e garantias
fundamentais, previstos na Constituio da Republica de 1988, faz-se necessrio um reexame
do conceito do termo em suas principais acepes, para que o instituto em estudo no seja
reduzido mera oferta generalizada e incondicionada do servio judicirio estatal21
.
1.1 O QUE O ACESSO JUSTIA?
O termo acesso justia no to fcil de ser conceituado como pode parecer.
Alm das vrias acepes que foram, e ainda so dadas, expresso, o tema em estudo
suscetvel ao tempo e s ideologias22
e, como tal, comporta diversas interpretaes e
abordagens23
.
Apesar de fazer parte do cotidiano jurdico, o significado de difcil
compreenso, devido influncia de aspectos filosficos, polticos, econmicos e sociais que
se entrelaam aos aspectos meramente jurdicos. comum a associao do acesso justia s
questes ligadas s injustias sociais, lutas de classes, reivindicaes das minorias e grupos
vulnerveis, incorporando um sentido social ao meio jurdico24
.
Ao analisar o tema acesso justia, encontram-se diferentes consideraes que,
muitas vezes sugerem a obviedade do sentido social do direito ao se tratar de justia, e outras,
19
AVRITZER; MARONA; GOMES. Op. Cit. p. 29. 20
AVRITZER; MARONA; GOMES.. Op. cit. p. 22. 21
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resoluo dos conflitos e a funo judicial no contemporneo estado de
direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 58. 22
CICHOCKI NETO, Jos. Limitaes ao acesso justia. Curitiba: Juru, 1998. p. 85. 23
FALCO, Joaquim. Acesso justia: diagnstico e tratamento. In: Justia: promessa e realidade: acesso
justia em pases ibero-americanos. Associao dos Magistrados Brasileiros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1996, p. 271. 24
PORTO, Jlia Pinto Ferreira. Acesso justia: Projeto Florena e Banco Mundial. (Dissertao de Mestrado
em Direito Poltico e Econmico). So Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2009, p. 11.
17
apenas fazem parte de um discurso tcnico e restrito, socialmente neutro, voltado
simplesmente para o instrumentalismo do processo, sem qualquer preocupao com os
problemas sociais.
Mas, qual a justia25
que se deseja ou se espera obter do Poder Judicirio?
Seria a resposta do Judicirio que, aps anos de litgio, emite uma sentena de
mrito determinando quem tem direito ao bem da vida, independentemente dos danos
causados pela demora do processo e do sofrimento do jurisdicionado? 26
Seria a justia
proveniente de uma deciso j desprovida de utilidade, diante da demora do processo? Seria a
justia que trata a todos indistintamente, sem levar em considerao as desigualdades sociais
existentes?
Utilizando as palavras de Cruz e Tucci, a resposta, em senso negativo, para
todas estas indagaes, elementar... 27
.
Ento, qual a real dimenso do termo acesso justia, ou access to justice,
como amplamente utilizado pela doutrina saxnica28
?
25
A questo da justia constitui um tema clssico da teoria do direito que, diante de sua complexidade, tem
atravessado os sculos, sem que se chegue a um consenso. As teorias da justia podem ser divididas basicamente
em dois grupos: i) metafsico-religioso como os pensamentos de Plato e Jesus essa teoria busca um conceito
absoluto de justia, deslocado do mundo fsico para um patamar transcendental, que no pode ser alcanado nem
compreendido pelo homem, restando-lhe apenas acreditar em sua existncia; ii) racionalista teorias da justia
que formulam normas de justia que podem ser pensadas racionalmente e estatudas por atos de vontade.
SCHWARTZ. Germano; SANTOS NETO, Arnaldo Bastos. O direito necessita da justia? Reflexes sobre o
tema em Kelsen e Luhmann. In: Veredas do Direito. Belo Horizonte, v-6, n-11, p. 31-44. Janeiro Junho de
2009, p.34. O primeiro a desenvolver uma teoria da justia racionalista foi Aristteles que, em sua obra tica a
Nicmaco, parte de uma definio de senso comum, na qual a justia significa a virtude que nos leva a desejar o
que justo. Para ele, o gnero justia subdividido em trs espcies: justia geral, justia distributiva e justia
corretiva. ARISTTELES. tica a Nicmaco. In: Aristteles. Traduo de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim
da Verso inglesa de W. D. Ross. So Paulo: Victor Civita, 1984, p. 121-138. A acepo mais conhecida do
termo justia atribuda a Ulpiano e est descrita no Digesto Antigo, livro I, ttulo I, lei nmero 10, que
conceitua a justia como a "vontade constante e perptua de dar a cada um o que lhe compete". AQUINO, So
Toms. Questes discutidas sobre a verdade. In: Seleo de textos/Sto. Toms de Aquino, Dante Alighieri ;
traduo Luiz Joo Barana... [et al.]. So Paulo: Nova Cultural, 1988 (Os pensadores), p. 66. Por sua vez,
Kelsen estabelece sua concepo de justia e elege o relativismo dos valores como ideal numa sociedade
democrtica, em contraposio ao absolutismo filosfico das sociedades autoritrias. SCHWARTZ. Germano,
Op. cit. p. 33. A ideia de Justia como Equidade (desenvolvida sob as perspectivas liberal, libertria,
utilitarista e comunitarista) vem sendo afirmada nas ltimas dcadas. Jonhn Rawls, principal expoente da
perspectiva liberal, defende que os princpios da justia como equidade consistem na melhor entre as piores
alternativas existentes para ordenar-se a sociedade. RAWLS, John. Uma Teoria da Justia. Trad. Almiro Pisetta
e Lenita M.R. Esteves. So Paulo: Martins Fontes, 2000 (4 ed.). Ronald Dworkin desenvolve uma teoria da
justia sob a perspectiva igualitria, por meio da concepo de igualdade de bem-estar, de um lado, e a
concepo de igualdade de recursos, de outro, que, sopesadas, professam o que ele chama de a virtude
soberana, ou seja, a igualdade de considerao que o Estado deve garantir aos cidados. DWORKIN, Ronald. A
virtude soberana. So Paulo: Martins Fontes, 2005. p. IX. 26
RAGAZZI, Jos Luiz. Tutela antecipada nas relaes de consumo. So Paulo: Editora Juarez de Oliveira,
2002, p. 4. 27
TUCCI, Jos Rogrio Cruz e. Tempo e processo. Disponvel em: < http://tucci.adv.br/publicacoes
/JRCTucci%20-%20livro%20-%20Tempo%20e%20processo.pdf>. Acesso em: 30 set. 2014., p. 141. 28
ARNAUD, Andr-Jean et. al. (org.). Dicionrio enciclopdico de teoria e de sociologia do direito. 2 ed. Rio
de Janeiro: Renovar, 1999. p. 448.
http://tucci.adv.br/publicacoes
18
Em um sentido scio filosfico, Boaventura explica que o tema acesso justia
aquele que mais directamente equaciona as relaes entre processo civil e a justia social,
entre igualdade jurdico-formal e a desigualdade scio-econmica 29
. Em sentido amplo, a
ideia de acesso justia estaria ligada via jurisdicional, aos meios processuais necessrios
para obter uma resposta do Judicirio, e, tambm, aos custos inerentes a tal demanda.
1.1.1 Acepes do termo Acesso Justia
De acordo com o Dicionrio Enciclopdico de Teoria e Sociologia do Direito, h
trs concepes distintas para o termo Acesso Justia:
1. Corrente de pensamento que se interroga sobre as condies de passagem de um
estado formal a um estado real do direito de ver sua causa ouvida pelas cortes e
pelos tribunais;
2. Teoria crtica vis--vis o centralismo poltico da primeira acepo, que procura
ampliar o campo de investigao e visando principalmente a melhoria do
regulamento dos litgios e das transaes fora das cortes e dos tribunais.
3. Conceito sinttico que rene as diferentes exigncias processuais para assegurar a
implementao desse direito de acesso s cortes e aos tribunais. 30
Em sua primeira acepo, o acesso justia representa a corrente de pensamento
prpria das sociedades ps-industriais, consagrada juridicamente por algumas constituies e
legislaes31
.
Nesse sentido, o acesso justia coloca em evidncia as diferenas existentes no
tratamento das pretenses de ver um litgio resolvido pelo Judicirio, evidenciando a
29
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mo de Alice: O Social e o Poltico na Ps-Modernidade. 7. ed. Porto:
Afrontamento, 1999. p. 146. 30
Dicionrio enciclopdico de teoria e de sociologia do direito. Cit, p. 447. 31
Por exemplo: Cdigo Austraco de 1895 provavelmente o primeiro reconhecimento explcito de Dever do
Estado de assegurar igual acesso justia (...) conferiu ao juiz um papel ativo para equalizar as partes;
CAPPELLETTI; GARTH. Op. cit., p. 11; Constituio Italiana de1948; Constituio Espanhola de 1978;
Conveno de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 4 de novembro de 1950
Art. 6. 1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo
razovel por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidir, quer sobre a
determinao dos seus direitos e obrigaes de carcter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusao em
matria penal dirigida contra ela. OEA. Comisin Interamericana de Derechos Humanos. Relatora Especial para
la Libertad de Expresin. Conveno Europeia de Direitos Humanos. Disponvel em: < http://www.oas.org/es/
cidh/expresion/showarticle.asp?artID=536&lID=4 Acesso em: 14 ago. 2014; Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Polticos, de 19 de dezembro de 1966 Art. 14. Todas as pessoas so iguais perante os tribunais e as
cortes de justia. Toda pessoa ter o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal
competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apurao de qualquer acusao de carter penal
formulada contra ela ou na determinao de seus direitos e obrigaes de carter civil. (Promulgado no Brasil
pelo Decreto no 592, de 6 de julho de 1992). BRASIL. Decreto 592/1992. DOU de 07.07.1992. Disponvel em:
. Acesso em: 14 ago. 2014.
http://www.oas.org/es/http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/DEC%20592-1992?OpenDocument
19
segregao de uma ampla faixa da populao que nem mesmo possui o conhecimento do fato
de que as situaes de insatisfao que sofrem podem ser expressas juridicamente32
.
Em sua segunda acepo, o termo acesso justia significa a teoria crtica
que se interessa principalmente pela anlise dos fatores que afastam os interessados dos
tribunais e os impedem de buscar uma soluo jurdica para seus conflitos.
A partir da constatao de que vrios litgios so resolvidos sem a necessidade de
recorrer aos tribunais, essa corrente examina as mltiplas instncias de resoluo de conflitos,
analisando a organizao de instituies que tendam a regulamentar os conflitos sem que
disponham da coero estatal33
.
Recusando-se a considerar que todas essas contestaes sejam resolvidas por um
julgamento, essa escola se interroga, antes, sobre os efeitos indiretos das decises
judicirias e administrativas nesses modos de regulamento (theory of the bargaining
power in shadow of the law) para desembocar numa anlise das condies de
produo do direito espontneo entendido como sendo o conjunto dos
comportamentos que se impem numa variedade de contextos sociais.34
Observa-se que, essa compreenso de acesso justia coloca em evidncia a viso
do processo como instrumento para a realizao dos direitos individuais, como um direito de
ingresso em juzo, significando o mero exerccio de direito de ao. Jos Cichocki Neto
afirma que dentro dessa concepo, as inibies ao acesso justia correspondem a
fenmenos puramente tcnicos do direito ou poder de exercitar a ao, ou seja, aos bices
referentes quele que tomava a iniciativa de provocar a jurisdio 35
.
Outro sentido diz respeito ao conceito sinttico do acesso justia. Essa
corrente de pensamento, essencialmente de natureza jurdica, derivada da primeira acepo
de acesso justia e trata do contedo mesmo da garantia que o Estado deve oferecer e,
mais precisamente, do aparelho judicirio deste, para assegurar a todos os interessados o
acesso efetivo 36
.
Entre essas garantias, consagradas em diversas constituies democrticas, nos
cdigos de processo e, tambm, em alguns tratados internacionais, esto:
- a aceitao e o exame da demanda por um tribunal independente, - o direito obteno de medidas urgentes e provisrias para a salvaguarda dos
interesses ou dos direitos em perigo ou gravemente ameaados,
- o exame contraditrio dos fatos e meios de direito avenados por algumas das partes,
32
Dicionrio enciclopdico de teoria e de sociologia do direito. Cit., p. 448 33
Dicionrio enciclopdico de teoria e de sociologia do direito. Cit. p.448-449. 34
Dicionrio enciclopdico de teoria e de sociologia do direito. Cit. p 449. 35
CICHOCKI NETO. Op. Cit. p. 61-62, 86. 36
Dicionrio enciclopdico de teoria e de sociologia do direito. Cit. p 449.
20
- o direito recusa do magistrado, - a instalao de um sistema de colaborao ativa entre as partes e o juiz em
matria de administrao da prova,
- o direito de obter um julgamento dentro de um prazo razovel, - o direito de apelar. 37
Percebe-se que, atualmente, a ideia de acesso justia no significa apenas o
acesso tutela jurisdicional do Estado. Traduz, ainda, que tal acesso seja generalizado, efetivo
e igualitrio proporcionando a todos o acesso a uma ordem jurdica justa. Como explica
Kazuo Watanabe, a problemtica do acesso Justia no pode ser estudada nos acanhados
limites dos rgos judiciais j existentes. No se trata apenas de possibilitar o acesso
Justia enquanto instituio estatal, e sim de viabilizar o acesso ordem jurdica justa38
.
Portanto, a concepo atual do acesso justia, assim como a percepo dos
problemas a serem enfrentados para sua plena realizao, muito mais ampla.
Nesse sentido, Flvio Lus de Oliveira sintetiza que o princpio previsto no art. 5,
inc. XXXV, da Constituio Federal de 1988,
No pode ser visto como um direito meramente formal e abstrato, ou seja, como um
simples direito de propor a ao em juzo. (...) Assim sendo, o Acesso Justia
requer um processo justo, luz de uma Justia imparcial, que permita no apenas a
participao igualitria das partes, independentemente das diferentes posies
sociais, mas, sobretudo, a efetiva realizao de direitos. 39
Se a sntese apresentada, por um lado, est longe de esgotar a discusso sobre o
assunto, por outro lado, fornece uma premissa segura para traar concluses verdadeiras sobre
o tema em estudo40
.
No contexto atual, o acesso no significaria simplesmente um direito social
fundamental, ou o mais bsico de todos os direitos 41
. Para Cappelletti e Garth, seria
necessariamente, o ponto central da moderna processualstica 42
, sendo necessria a
37
Dicionrio enciclopdico de teoria e de sociologia do direito. Cit. p. 449. 38
WATANABE, Kazuo Acesso justia sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini. (Org.).
Participao e Processo. So Paulo: Ed Revista dos Tribunais, 1988, v., p. 128 39
OLIVEIRA, Flvio Luiz de. In: OLIVEIRA NETO, Olavo de; LOPES, Maria Elizabeth de Castro. Princpios
processuais civis na Constituio. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 79. Apud: SERAU JR. Marco Aurlio;
DONOSO, Denis. Os Juizados Especiais Federais e a retrica do acesso justia. In: Juizados especiais
Federais: reflexes nos dez anos de sua instalao. SERAU JR. Marco Aurlio; DONOSO, Denis (coords.).
Curitiba: Juru, 2012, p. 24. 40
SERAU JR. Marco Aurlio; DONOSO, Denis. Os Juizados Especiais Federais e a retrica do acesso justia.
In: Juizados especiais Federais: reflexes nos dez anos de sua instalao. SERAU JR. Marco Aurlio;
DONOSO, Denis (coords.). Curitiba: Juru, 2012, p. 24. 41
CAPPELLETTI; GARTH. Cit. p. 12. 42
CAPPELLETTI; GARTH. Cit. p. 13.
21
ampliao das pesquisas para alm dos tribunais, com o devido alargamento e
aprofundamento dos objetivos e mtodos da moderna cincia jurdica 43
.
Significa romper barreiras e introduzir mecanismos de facilitao, no apenas do
ingresso em juzo, mas tambm durante todo o desenvolvimento processual44
. Significa,
tambm, reduzir os custos, encurtar as distncias, diminuir o tempo de resoluo dos
processos, garantir assistncia jurdica de qualidade, simplificar os mtodos e procedimentos,
diminuir os recursos processuais e garantir uma ordem jurdica justa para todos que
necessitam recorrer ao Judicirio.
1.1.2 Evoluo do Acesso Justia
A partir do momento em que o homem comea a viver em grupos, observa-se o
estabelecimento da desigualdade na sociedade, pois a vontade daqueles que eram
considerados mais fortes, geis e sbios prevaleciam sobre os demais membros da
comunidade. Nessas primeiras formas de sociedade, no existia sequer a ideia de igualdade, j
que sempre prevalecia a vontade do mais forte na resoluo dos conflitos.
Com o aumento do tamanho e da complexidade das sociedades, surge a figura do
Estado, que, por meio de sua funo jurisdicional, toma para si a responsabilidade e o dever
de resolver os conflitos no solucionados de forma pacfica entre as partes envolvidas.
A ideia de acesso justia e aos direitos desenvolve-se, de forma ainda tmida,
juntamente com a necessidade de interveno do Estado nos conflitos, e da necessidade de
equacionar tais problemas de forma justa, procurando meios de equilibrar as desigualdades
existentes entre os litigantes.
Entretanto, apesar de o tema acesso justia no ser uma preocupao de
apario recente no mundo jurdico, somente a partir dos sculos XVIII e XIX que seu
conceito comeou a evoluir no sentido de passar de uma mera declarao de possibilidade de
defesa dos direitos individuais, a uma concepo que envolve o dever estatal de proporcionar
um servio pblico, capaz de proteger tambm os novos tipos de direitos advindos das
sociedades industriais: os direitos sociais e os direitos coletivos.
43
FERNANDES; PEDRON. Cit. p. 97. 44
PAROSKI, Mauro Vasni. A constituio e os direitos fundamentais: do acesso justia e suas limitaes no
Brasil. Dissertao, Mestrado em Direito. Universidade Estadual de Londrina. Londrina-PR, 2006, p. 198.
22
Ressalta-se que os procedimentos adotados pelos Estados liberais burgueses,
durante os sculos XVIII e XIX, refletiam a filosofia meramente individualista dos direitos e,
nesse contexto, o direito ao acesso proteo judicial significava apenas o direito formal do
indivduo agravado de propor ou contestar uma ao 45
. Esse direito formal no
correspondia a um acesso justia efetivo, pois disciplinava apenas que todas as pessoas que
possussem recursos poderiam reclamar perante o Judicirio46
.
Nesse contexto, o conceito de acesso justia, ento ignorado pela teoria das
liberdades e dos direitos consagrados pelos Estados burgueses do sculo XIX, coloca em
evidncia as diferenas existentes no tratamento das pretenses de ver um litgio resolvido
pelo Judicirio47
.
Como no havia preocupao, por parte do Estado, nas sociedades do laissez-
faire, em proporcionar aos indivduos as condies necessrias para que a justia e suas
instituies fossem utilizadas plenamente, o Estado mantinha-se passivo com relao aos
problemas enfrentados pelas pessoas para reconhecer seus direitos e defend-los
adequadamente, de forma que o acesso formal, mas no efetivo justia, correspondia
igualdade, apenas formal, mas no efetiva 48
.
Aqueles que no possuam recursos para custear uma ao judicial ou que no
tivessem conhecimento suficiente para reconhecer e defender seus direitos estavam lanados
prpria sorte49
.
No entanto, essa realidade foi modificando-se, juntamente com a nova concepo
do Estado e de suas atribuies. Influenciado pelos movimentos dos trabalhadores
reivindicando um Estado que protegesse a classe trabalhista dos abusos dos detentores do
45
CAPPELLETTI; GARTH. Op. Cit., p. 9. 46
SILVA, Adriana dos Santos. Desenvolvimento e acesso justia. In: Direito e Desenvolvimento: Anlise da
ordem jurdica brasileira sob a tica do desenvolvimento. Welber Barral (org.). So Paulo: Editora Singular,
2005, p. 120. 47
A partir do ponto de vista histrico, o conceito de acesso justia era apenas a assistncia legal ligada
caridade. J em 1495, sob o reinado de Henrique VII, o Parlamento ingls aprovou uma lei especial para garantir
o direito assistncia jurdica gratuita e eximir as pessoas indigentes dos custos judiciais nos processos civis
perante os tribunais do common law. No final do sculo XVIII, com as Revolues Francesa e Norte-Americana,
a assistncia jurdica comeou a ser considerada um direito associado s ideias de igualdade perante a lei e a
justia. Posteriormente, esta ideia foi evoluindo junto com os ideais de bem estar social, com a distribuio de
ingressos e servios disponveis. BIRGEN, Hayde; KOHEN, Beatriz. El acceso a la justicia como derecho. In:
El acceso a la justicia como garant de igualdad: instituciones, actores Y experincias comparadas/Hayde
Birgen y Beatriz Kohen (orgs.). Buenos Aires: Biblos, 2006. 48
CAPPELLETTI; GARTH. Op. Cit., p. 9. 49
FONTAINHA, Fernando de Castro. Acesso Justia: da contribuio de Mauro Cappelletti realidade
brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 17.
23
poder econmico, o paradigma do acesso justia sofre uma mudana entre o final do sculo
XIX e incio do sculo XX50
.
medida que o Estado de Bem-Estar-Social se estabelece, so includos aos
textos legais e constitucionais dos Estados vrios dispositivos a respeito dos direitos sociais
dos indivduos51
, ocasionando novas demandas judiciais. Os indivduos comeam a recorrer
ao Judicirio no apenas para conservar o que j possuem, mas tambm para obter do Estado
o que se deseja e est contido em promessas polticas, legais ou constitucionais52
.
Esse novo comportamento da populao teve um impacto fundamental no Poder
Judicirio, pois se passa a colocar em evidncia a questo crucial do acesso justia para a
efetivao de direitos53
. As aes e relacionamentos passaram a assumir um carter diferente,
mais coletivo que individual, e as sociedades, cada vez mais complexas, comearam a
visualizar uma nova ideia do direito, afastando a concepo meramente individualista das
declaraes de direitos tpicas dos sculos XVIII e XIX54
.
Foi, no entanto, no ps-guerra que esta questo explodiu. Por um lado, a
consagrao constitucional dos novos direitos econmicos e sociais e sua expanso
paralela do Estado-Providncia transformou o direito ao acesso efetivo num direito
charneira, um direito cuja denegao acarretaria a de todos os demais. 55
No perodo ps Segunda Guerra mundial, intensifica-se na Europa a discusso
decorrente da formao dos Estados de Bem-Estar-Social, dando incio ao debate sobre o
acesso justia enquanto direito social56
.
A partir de ento, o direito de acesso justia passou a ser requisito bsico para a
garantia e efetivao dos demais direitos da cidadania57
, que segundo Marshall, exige um elo
de natureza diferente, um sentimento direto de participao numa comunidade baseado numa
50
ANNONI, Danielle. O direito humano ao acesso justia no Brasil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editos, 2008, p. 61. 51
CAMPANTE, Rubens Goyat. Direitos sociais e justia. In: Dimenses polticas da justia. Leonardo
Avritzer... [et al]. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2013, p. 375. 52
SANTOS. Boaventura de Sousa. Introduo Sociologia da Administrao da Justia. In: Faria, Jos
Eduardo de (org.) Direito e Justia: a funo social do judicirio. So Paulo: tica, 1990. 53
CAMPANTE. Op. cit. p. 375. 54
CAPPELLETTI; GARTH. Op. cit., p. 10. 55
SANTOS. Boaventura de Sousa. Pela mo de Alice. Cit. p. 146. 56
AVRITZER, Leonardo; MARONA, Marjorie; GOMES, Lilian. Cartografia da Justia no Brasil: uma anlise
a partir de atores e territrios. Cit., p. 16. 57
T. H. Marshall, socilogo britnico, em sua construo clssica do conceito de cidadania, inclui o direito de
acesso justia no rol dos direitos civis, como a possibilidade de ter acesso aos tribunais. A cidadania um
status concedido queles que so membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status
so iguais com respeito aos direitos e obrigaes pertinentes ao status. No h nenhum princpio universal que
determine o que estes direitos e obrigaes sero, mas as sociedades nas quais a cidadania uma instituio em
desenvolvimento criam uma imagem de uma cidadania ideal em relao qual o sucesso pode ser medido e em
relao qual a aspirao pode ser dirigida. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. So Paulo:
Zahar, 1967.
24
lealdade a uma civilizao que patrimnio comum. Compreende a lealdade de homens
livres, imbudos de direitos e protegidos por uma lei comum 58
.
Marshall esclarece que as medidas tomadas no final do sculo XIX para permitir
o acesso justia59
, denotam o desenvolvimento de um interesse pela igualdade como um
princpio de justia social e uma conscincia do fato de que o reconhecimento formal de uma
capacidade igual no que diz respeito a direitos no era suficiente 60
. Assim, o
desenvolvimento da cidadania estimulado pela luta para adquirir esses direitos e tambm
pelo gozo dos mesmos61
, cuja efetivao, para a grande maioria das pessoas, dependia da
atuao positiva do Estado.
Para atender demanda por esses novos direitos, a interveno pblica do Estado,
baseada na funo social, surge primeiro na Alemanha conservadora, no final do sculo XIX e
incio do sculo XX, por meio do experimento de unificao e construo do Estado
nacional liderado por Otto von Bismarck 62
, influenciando o desenvolvimento do Estado
Social em outros pases, como bem ilustra Erik J. Hobsbawm:
Bismarck, lgico como sempre, j na dcada de 1880 decidira cortar as razes da
agitao socialista por meio de um ambicioso esquema de previdncia social; foi
seguido, nesta orientao, pela ustria e pelos governos liberais ingleses de 1906-
1914 (aposentadorias, bolsas de trabalho, seguros de sade e desemprego) e mesmo
pela Frana, aps algumas hesitaes (aposentadorias em 1911). interessante que
os pases escandinavos, hoje "Estados do bem-estar social" par excellence, fossem
ento alheios ao assunto; e diversos pases fizeram apenas gestos simblicos nessa
direo, e os EUA do tempo de Carnegie, Rockefeller e Morgan, nem isso. Nesse
paraso da iniciativa privada, mesmo o trabalho de menores permanecia fora da
alada da lei federal, embora por volta de 1914 existissem leis que o proibiam,
teoricamente, at na Itlia, na Grcia e na Bulgria. Por volta de 1905, leis
geralmente disponveis estipulavam indenizaes a operrios em caso de acidente,
mas no interessaram o Congresso e foram condenadas pelos tribunais como
inconstitucionais. Exceto na Alemanha, tais esquemas de bem-estar social eram
modestos at os ltimos anos que precederam 1914, e mesmo na Alemanha
malograram visivelmente na tentativa de sustar o crescimento do partido socialista.
No obstante, ficou estabelecida uma tendncia nesse sentido, notavelmente mais
acelerada nos pases protestantes da Europa e da Australsia. 63
58
MARSHALL. Op. Cit. p. 84. 59
Marshall cita o estabelecimento dos Tribunais dos Condados, em 1846, para proporcionar justia barata aos
pobres, que foi seguido do desenvolvimento da justia gratuita, destinados a uma frao dos membros mais
pobres da comunidade. MARSHALL. Op. Cit. p. 82-83. 60
MARSHALL. Op. Cit. p. 83. 61
MARSHALL. Op. Cit. p. 83. 62
KERSTENETZKY, Celia Lessa. O estado do bem-estar social na idade da razo: a reinveno do estado
social no mundo contemporneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 5 63
HOBSBAWM. Eric J. A era dos imprios. Traduo de Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo;
reviso tcnica Maria Clia Paoli. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. pp. 95-96.
25
Algumas dcadas mais tarde, o Estado intervencionista foi institudo na Inglaterra
trabalhista do ps Segunda Guerra Mundial, como resposta ao prolongado esforo de
reviso crtica das leis dos pobres e da reconstruo nacional do ps-guerra britnico 64
/65
.
Nesse cenrio ps-guerra, destaca-se a promulgao da Constituio Francesa de
194666
, na qual so acrescidos os direitos sociais e econmicos, necessrios para tornar
efetivos, quer dizer, realmente acessveis a todos, os direitos antes proclamados67
.
Em 1948, elaborada a Declarao Universal dos Direitos Humanos68
, que
refletia uma profunda mudana no pensamento social radical no mundo em transformao do
sculo XX. A Declarao da ONU passou a abranger uma lista muito maior de pretenses e
liberdades, incluindo no apenas os direitos polticos bsicos, mas tambm o direito ao
trabalho e educao, a proteo contra o desemprego e a pobreza, o direito de sindicalizao
e mesmo o direito a uma remunerao justa69
.
Inicia-se o debate da ideia de os direitos sociais, diferentemente do que ocorre
com os direitos de liberdade, no serem autoaplicveis, o que colocou em pauta uma dupla
questo para o sistema de justia que, a partir de ento, precisa reestruturar-se administrativa e
burocraticamente para atender e efetivar os direitos sociais70
. Nesse momento, o acesso
justia passa a assumir, tambm, uma dimenso administrativo burocrata71
.
64
HOBSBAWM. Eric J. A era dos imprios. Cit., p. 5 65
Marshall denomina o modelo alemo de modelo do contrato, e o modelo ingls de modelo do status.
HOBSBAWM. Eric J. A era dos imprios. Cit., p. 6 66
Consta no Prembulo da Constituio Francesa de 1946, posteriormente incorporado ao Prembulo da
Constituio Francesa de 1958, o reconhecimento dos direitos sociais e econmicos como direitos particularmente
necessrios em nosso tempo; Au lendemain de la victoire remporte par les peuples libres sur les rgimes qui ont
tent d'asservir et de dgrader la personne humaine, le peuple franais proclame nouveau que tout tre humain,
sans distinction de race, de religion ni de croyance, possde des droits inalinables et sacrs. Il raffirme
solennellement les droits et liberts de l'homme et du citoyen consacrs par la Dclaration des droits de 1789 et les
principes fondamentaux reconnus par les lois de la Rpublique. Il proclame, en outre, comme particulirement
ncessaires notre temps, les principes politiques, conomiques et sociaux ci-aprs. CONSEIL
CONSTITUTIONNEL. Les Constitutions de la France. Constitution de 1946, IVe Rpublique - 27 octobre 1946,
Disponvel em: < http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-
constitutions-de-la-france/constitution-de-1946-ive-republique.5109.html>. Acesso em: 13 ago. 2014. 67
CAPPELLETTI; GARTH. Op. cit., p. 11. 68
A Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948 reconhece como ncleo bsico dos direitos
fundamentais da pessoa humana: o do direito vida (III e VI), liberdade (IV, IX, XIII, XVIII, XIX, XX e
XXVII), igualdade (I, II e VII), justia (VIII, X, XI e XXVIII) segurana (V, XII, XIV, XXII, XXIX e XXX),
famlia (XVI), propriedade (XVII), ao trabalho (XXIII e XXIV), sade (XXV), educao (XXVI) e
cidadania (XV e XXI). MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Os direitos fundamentais e os direitos
sociais na Constituio de 1988 e sua defesa. In: Revista Jurdica Virtual, Braslia, n. 4, ago. 1999. Disponvel
em: < www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_04/direitos_fundamentais.htm>. Acesso em: 23 fev. 2014. 69
Esse fato considerado um avano radical, muito alm dos limites da Declarao Americana de 1776 ou da
Proclamao Francesa de 1789. SEN, Amartya. A ideia de justia. Trad. de Denise Bottmann e Ricardo
Doninelli Mendes. 1 reimp. So Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.415. 70
HABERMAS, Jrgen. Mudana estrutural da esfera pblica: investigaes quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. Apud: AVRITZER. Op. cit., p. 16. 71
AVRITZER. Op. cit., p. 16
http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/constitution-de-1946-ive-republique.5109.htmlhttp://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/constitution-de-1946-ive-republique.5109.html
26
Nesse novo cenrio, o problema de garantir o acesso justia passa a ter mais
visibilidade e o Estado, que vai assumindo contornos cada vez mais democrticos, v-se
pressionado a intervir e a buscar alternativas para garantir a prestao dos servios
jurisdicionais a todos, indistintamente.
Essa corrente de pensamento que se formou em diversos pases foi impulsionada
pela pesquisa desenvolvida a partir do Projeto Florena de Acesso Justia, comandada por
Mauro Cappelletti e Bryant Garth entre 1973 e 1978, que tinha como objetivo principal
identificar as causas da falta de acesso justia. O projeto envolveu vinte e trs pases, que
apontaram em seus relatrios os problemas encontrados e as possveis solues tcnicas para
a resoluo dos litgios72
.
Pela primeira vez o tema amplamente discutido em todo o mundo e o conceito
de acesso justia passa por nova transformao, adquirindo um carter ainda mais
democrtico, sendo utilizado por Cappelletti e Garth para determinar o sistema pelo qual as
pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litgios sob os auspcios do
Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessvel a todos; segundo, ele deve produzir
resultados que sejam individual e socialmente justos73
.
1.1.3 As ondas reformatrias de Cappelletti e Garth
Sob a influncia da legislao elaborada por Franz Klein, a Ordenana Processual
Civil do Imprio Austro-Hngaro, de 189574
, que reestrutura o processo civil a partir de uma
concepo publicstica, implicando a modificao nos papis do juiz e das partes no processo,
o movimento de acesso justia, coordenado pelos estudos desenvolvidos por Cappelletti e
Garth, identificou e relacionou as barreiras tradicionalmente encontradas por aqueles que
buscam a justia, que foram assim denominadas e subdivididas:
a) Custas Judiciais (1. Em geral; 2. Pequenas causas; 3. Tempo);
b) Possibilidades das partes (1. Recursos Financeiros para litigar; para
suportar o tempo do processo; para apresentar argumentos mais eficientes.
2. Aptido para reconhecer um direito e propor uma ao ou sua defesa
reconhecimento do direito juridicamente exigvel; conhecimento sobre
72
DAMASCENO, Adriano Antunes. Acesso justia penal? No, obrigado! In: Revista da Faculdade de
Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 29, n. 1: 9-38, jan./jun. 2013, p. 17. 73
CAPPELLETTI; GARTH. Op. Cit. p. 8. 74
NUNES, Dierle Jos Coelho. Processo jurisdicional democrtico: uma anlise crtica das reformas
processuais. Curitiba: Juru, 2011, p. 81.
27
como ajuizar a demanda; disposio psicolgica para litigar. 3. Litigantes
eventuais e habituais);
c) Problemas especiais dos interesses difusos.
De forma sinttica, esses obstculos, que dificultam e at mesmo impedem o
acesso justia, podem ser classificados em obstculos econmicos, culturais e sociais.
Os obstculos de natureza econmica referem-se aos altos valores cobrados em
custas judiciais, honorrios advocatcios, nus da sucumbncia, tempo gasto na resoluo da
lide. Observou-se que, nas sociedades capitalistas em geral, os custos dos litgios eram muito
elevados e que a relao entre o valor da causa e os custos da demanda judicial aumentava
significativamente medida que diminua o valor da ao.
Isso significa que a justia proporcionalmente mais onerosa para os
jurisdicionados economicamente mais fracos, pois so eles fundamentalmente os
protagonistas e os interessados nas aces de menor valor e nessas aes que a justia
proporcionalmente mais cara, o que configura um fenmeno da dupla vitimizao das classes
populares face administrao da justia75
.
Alm dos aspectos econmicos, tambm os obstculos socioculturais causam o
distanciamento das pessoas ao acesso justia. Quanto menor for o nvel de
desfavorecimento social do indivduo, maior ser a distncia da pessoa em relao
soluo de seu conflito76
. Os obstculos socioculturais dizem respeito falta de aptido que as
classes menos favorecidas tm em reconhecer os direitos juridicamente exigveis e de propor
uma ao ou buscar sua defesa. Tambm esto relacionados intimidao das pessoas diante
do formalismo jurdico, desconfiana de grande parte dos indivduos em relao aos
advogados e demais profissionais do direito e, ainda, descrena no sistema Judicirio.
A partir da identificao desses obstculos ao acesso justia, Cappelletti e Garth
idealizaram trs ondas reformatrias, estruturadas em etapas que seguiam uma ordem
praticamente sequencial, cronolgica. Essas ondas so provenientes de uma sistematizao
de transformaes comuns percebidas em diversos pases, principalmente na segunda metade
do sculo XX77
, ou seja, para cada tipo de barreira ou problema de acesso justia, foram
apontadas solues prticas, quais sejam: a assistncia Judiciria, a representao jurdica
para os interesses difusos e, por ltimo, o enfoque de acesso justia78
.
75
Essa vitimizao torna-se tripla na medida em que a morosidade processual, que pode ser convertida em custo
econmico adicional, mais gravosa para os cidados de menos recursos. SOUSA. Boaventura, p. 147. 76
SANTOS. Boaventura de Souza. Justia. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1966. p. 405. 77
FONTAINHA, Op. cit. p. 70 78
CAPPELLETTI; GARTH. Op. cit. p. 31
28
Assim, como resposta aos obstculos econmicos ao acesso justia, a primeira
onda diz respeito concesso e disponibilizao da assistncia judiciria, que passou a
assegurar aos necessitados a possibilidade de acesso justia79
, buscando solues antes do
incio da ao, como a conscientizao dos direitos e a orientao dos envolvidos por meio da
assistncia jurdica, e, tambm, durante o processo, como o patrocnio para a ao e a defesa
dos direitos na esfera judicial, por meio da Defensoria Pblica ou da constituio de advogado
dativo, e da iseno dos honorrios advocatcios e das demais custas processuais80
.
Por sua vez, a segunda onda identificada e analisada por Cappelletti refere-se
tutela dos direitos e interesses difusos, assim chamados os interesses coletivos ou grupais,
diversos daqueles dos pobres81
, cuja proteo era dificultada pela concepo
tradicionalmente individualista do processo civil, sendo necessria a criao de mecanismos
processuais aptos defesa dos direitos coletivos82
.
Entre os anos de 1960 e 1970 vrios pases j haviam tomado tais providncias,
entretanto, os resultados no resolveram satisfatoriamente o problema do acesso justia.
Assim, foi proposta a terceira onda, um enfoque mais sistmico e abrangente, que
reclama por mudanas profundas na administrao da justia, uma alterao de paradigmas,
por meio do questionamento sobre o instrumental das instituies e dos meios de favorecer
esse acesso justia, visando a uma reformulao completa dos modos de distribuio dos
servios jurdicos e judicirios83
.
Salienta-se que a ltima fase no desconsidera as duas ondas anteriores. Pelo
contrrio, para que surtam os efeitos desejados, as trs fases devem coexistir de modo a atacar
as barreiras ao acesso de modo mais articulado, abrangente e eficaz84
.
Ns o denominamos enfoque ao acesso justia por sua abrangncia. Seu mtodo
no consiste em abandonar as tcnicas das duas ltimas ondas de reforma, mas em
trat-las como apenas algumas de uma srie de possibilidades para melhorar o
acesso85
.
79
Foram implementados sistemas de assistncia judiciria particularmente sofisticados, inicialmente na Gr-
Bretanha, em 1949, em seguida pelos Pases Baixos em 1957 e depois pelos Estados Unidos, Canad, Austrlia,
Nova Zelndia, Frana, Sucia, Finlndia, Repblica Federal Alem e Blgica. Dicionrio enciclopdico de
teoria e de sociologia do direito. Cit., p. 448. 80
CAPPELLETTI; GARTH. Op. cit. p. 16. 81
CAPPELLETTI; GARTH. Op. cit. p. 49. 82
CASTILHO, Ricardo. Acesso justia: tutela coletiva de direitos pelo Ministrio Pblico: uma nova viso.
So Paulo: Atlas, 2006. p. 25 83
Dicionrio enciclopdico de teoria e de sociologia do direito. Cit., p. 448 84
CAPPELLETTI; GARTH. Op. cit. p. 67-73. 85
CAPPELLETTI; GARTH. Op. cit. p. 68
29
Esse novo enfoque do acesso justia leva a questionamentos que envolvem
um nvel elevado de conhecimento tcnico, mas tambm possuem componentes
irremediavelmente polticos86
. Ao mesmo tempo em que se faz necessria uma atuao mais
humana do julgador, para acolher e proteger aqueles que acorrem ao Judicirio, sem recusar-
lhes a justia, contempla a necessidade de simplificao dos procedimentos e dos atos
judiciais, alm do prprio direito material87
.
Dessa forma, a terceira onda concentra sua anlise sobre as estruturas do
Judicirio, os procedimentos, as funes dos auxiliares da justia, as mudanas que so
necessrias no direito material e, por fim, a utilizao de formas alternativas de resoluo de
conflitos, como as tcnicas de conciliao e mediao, na busca dos meios passveis de
favorecer o acesso justia de forma mais simplificada, menos onerosa e mais efetiva88
.
A partir da identificao dos obstculos e das ondas reformatrias propostas por
Cappelletti e Garth, observa-se que o acesso justia compreende o direito a que sejam
eliminados todos e cada um dos obstculos que impedem sua consecuo89
.
Para tanto, necessrio desenvolver uma srie de medidas que envolvem desde a
informao jurdica bsica90
, orientando a populao quanto aos direitos que podem ser
reivindicados juridicamente, at a adoo de polticas pblicas visando eliminao dos
bices que dificultam e at mesmo impedem o acesso das pessoas aos sistemas judiciais e
administrativos.
1.2 ORIGEM DO ACESSO JUSTIA NO BRASIL
Como foi analisada, a necessidade de tornar a justia acessvel a todos os
indivduos impulsionou o movimento por acesso justia em diversos pases, o qual ecoou
no apenas no Direito, mas em diversos ramos da cincia, provocando mudanas
significativas no Direito Processual91
.
86
CAMPANTE. Op. Cit. p. 377. 87
CAPPELLETTI; GARTH. Op. cit.. p. 71. 88
Dicionrio enciclopdico de teoria e de sociologia do direito. Cit. p. 448. 89
VALLE, Mariano Fernndez. El acceso a la justicia de los sectores em desventaja enconmica y social. In:
Acceso a la justicia Como garanta de igualdad: instituciones, actores y experincias comparadas. BIRGIN,
Haydee; KOHEN, Beatriz (organiz.). Buenos Aires: Editorial Biblos, 2006. pp. 39-58. 90
Dicionrio enciclopdico de teoria e de sociologia do direito. Cit. p. 448. 91
CAPPELLETTI; GARTH p. 144.
30
O grande mrito do movimento, no aspecto terico, foi ampliar o mbito da
cincia jurdica que, alm do estudo das normas, passou a se ocupar tambm dos problemas
sociais que antecedem e justificam sua elaborao e dos seus impactos na comunidade92
.
Os estudos empricos realizados durante o Projeto Florena revelaram que, nos
pases desenvolvidos, as ondas renovatrias obedecem a uma ordem praticamente
cronolgica, sequencial, na qual cada onda surge aps a implementao e consolidao,
mesmo que parcial, da onda anterior93
.
Todavia, no Brasil, essa tendncia mundial no se deu da mesma forma, nem no
mesmo perodo de tempo94
: as trs ondas emergiram de forma praticamente concomitante, na
dcada de 1980, devido conjugao de fatores de cunho poltico, econmico, social, jurdico
e cultural95
. Pesquisadores brasileiros so enfticos ao negar qualquer entidade metdica entre
os estudos do Projeto Florena, realizados nas dcadas de 1960 e 1970, e o advento do acesso
justia ocorrido no Brasil no contexto da redemocratizao96
.
Observa-se que, no Relatrio Geral do Projeto Florena, a nica meno feita ao
Brasil refere-se Lei 4.717, de 29 de junho de 1965 Lei da Ao Popular97
, que serviu como
exemplo da capacitao dos demandantes ideolgicos98
para agir em defesa dos interesses
pblicos ou coletivos. Historicamente, o instituto da ao popular antigo no ordenamento
jurdico brasileiro. O artigo 157, da Constituio Poltica do Imprio do Brazil, de 25 de
maro de 1824, j previa uma ao popular de carter penal, dirigida contra juzes e oficiais
de justia, a ser proposta pelo prprio queixoso ou por qualquer um do povo:
92
FERRAZ, Leslie Shrida. Acesso justia: uma anlise dos juizados especiais cveis no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 78. 93
FERRAZ. Op. cit. p. 78. 94
Maria Tereza Sadek afirma que a dcada de 1980 foi palco de uma extraordinria transformao no sistema de
justia brasileiro. Embora as sementes lanadas nem sempre tenham encontrado um solo frtil para germinar,
cravaram um potencial transformador, desencadeando um processo inexorvel de mudanas. SADEK, Maria
Tereza. Juizados Especiais: o processo inexorvel da mudana. In: SLAKMON, Catherine; MACHADO, Mara
Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (orgs). Novas direes na governana da justia e da segurana. Braslia:
Ministrio da Justia, Secretaria de Reforma do Judicirio, 2006. p. 249. 95
FERRAZ. Op. cit. p. 78. 96
Entre os quais se destacam os estudos realizados por JUNQUEIRA, Eliane Botelho; Acesso Justia: um olhar
retrospectivo. Revista Estudos Histricos, n. 18 Justia e Cidadania. So Paulo: CPDOC/FGV, 1996-2. p.1
CARVALHO, Jos Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 7. Ed. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira,
2005; FALCO, Joaquim. (org.) Justia: promessa e realidade: acesso justia em pases ibero-americanos. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1996; SILVA, Larissa Tenfn. Cidadania e acesso justia: a experincia florianopolitana
do juizado especial civil itinerante. Revista Sequncia, Florianpolis. N. 48. Jul. 2004, p. 73-89; SANCHES
FILHO, Alvino Oliveira. Experincias institucionais de acesso justia no estado da Bahia. In: SADEK, Maria
Tereza Aina (org). Acesso justia. So Paulo: Fundao Konrad Adenauer, 2001. TEIXEIRA. Ludmila Ferreira.
Acesso justia qualitativo. Dissertao de Mestrado apresentada ao. Programa de Ps-Graduao da Faculdade de
Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, 2013. p. 45-46. 97
acrescente-se o Brasil, que permite o uso de aes populares para reprimir a conduta da administrao
pblica ou das instituies financeiras com recursos pblicos que causem danos a bens e direitos de valor
econmico, artstico, esttico, histrico ou turstico. CAPPELLETTI; GARTH. Op. cit. p. 56. Nota 106. Fine. 98
CAPPELLETTI, GARTH. Op. cit. p. 55.
31
Art. 157. Por suborno, peita, peculato, e concusso haver contra elles aco
popular, que poder ser intentada dentro de anno, e dia pelo proprio queixoso, ou
por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na Lei.99
A Constituio de 1824 assegurava a igualdade de todos perante a lei, a liberdade
de trabalho e a instruo primria gratuita100
. Entretanto, no havia qualquer meno, no texto
constitucional do Imprio, sobre o direito do acesso justia, que era substancialmente
inexpressivo no perodo, pois somente para uma pequena parte da populao era possvel
demandar judicialmente.
Promulgada em 24 de fevereiro de 1891, a primeira Constituio da Repblica
suprimiu a ao popular do seu texto. Nem mesmo acolheu a ao popular de aspecto penal
prevista na Constituio do Imprio. Tambm no havia qualquer dispositivo relacionado ao
direito de acesso justia.
Oficializando os direitos fundamentais sociais emergidos das ideias
revolucionrias em 1930, a Constituio de 1934 inaugurou as bases doutrinrias dos direitos
fundamentais trabalhistas, bem como introduziu a preocupao profundamente social na
evoluo do Constitucionalismo brasileiro101
.
A Repblica que teve incio em 1930, com o golpe liderado por Getlio Vargas,
incluiu uma extensa pauta de direitos sociais, atendendo os pontos principais do movimento
operrio (...) pela primeira vez em sua histria, o pas conhecer polticas sociais nacionais
(...) devidamente constitucionalizadas nas Cartas de 1934 e 1937102
.
Considerada um avano no reconhecimento dos direitos sociais no Brasil, a
Constituio de 1934, alm de instituir a justia do trabalho, trouxe a autorizao
constitucional para a concesso da assistncia judiciria gratuita103
aos necessitados, com a
99
BRASIL. Constituio Poltica do Imprio do Brasil. Outorgada em 25 de mar. de 1824. Disponvel em:
. Acesso em: 12 ago. 2014. 100
Os direitos segurana pblica, ao trabalho e educao so tratados indistintamente como direitos civis e
polticos na Constituio do Imprio: Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidados
Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurana individual, e a propriedade, garantida pela
Constituio do Imperio, pela maneira seguinte. (...) XXIV. Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria,
ou commercio pde ser prohibido, uma vez que no se opponha aos costumes publicos, segurana, e saude
dos Cidados. (...) XXXI. A Constituio tambm garante os soccorros publicos. XXXII. A Instruco primaria,
e gratuita a todos os Cidados. XXXIII. Collegios, e Universidades, aonde sero ensinados os elementos das
Sciencias, Bellas Letras, e Artes. BRASIL. Constituio Poltica do Imprio do Brasil. 101
WOLKMER, Antnio Carlos. Histria do direito no Brasil. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 190. 102
KERSTENETZKY.Op.Cit., p. 189. 103
BRASIL. Constituio 1934. Art. 113 - A Constituio assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no
Pas a inviolabilidade dos direitos concernentes liberdade, subsistncia, segurana individual e
propriedade, nos termos seguintes: (...) 32) A Unio e os Estados concedero aos necessitados assistncia
judiciria, criando, para esse efeito, rgos especiais assegurando a iseno de emolumentos, custas, taxas e
32
iseno de pagamento de emolumentos, custas, taxas e selos, alm de prever a obrigao dos
estados e da Unio acerca da criao de rgos especiais para o exerccio do direito104
.
Aps o hiato da Constituio de 1937, que representou um grande retrocesso ao
suprimir garantias j conquistadas, a Constituio brasileira de 1946105
garante novamente, de
forma explcita, o direito assistncia judiciria gratuita106
. No entanto, o estabelecimento das
normas para a concesso da justia gratuita s foi realizado dezesseis anos mais tarde, por
meio da Lei 1.060, de 5 de fevereiro de 1950.
Nesse nterim, destaca-se, na rea infraconstitucional, o Decreto-Lei n. 5.452, de
1 de maio de 1943, que dispe sobre a Consolidao das Leis do Trabalho CLT, relevando
uma preocupao com a coletividade que se opunha ao individualismo que dominava na
poca107
. A CLT regulou a organizao sindical, conferiu legitimidade