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O presente artigo pretende discutir a questo da apatia poltica
que, segundo um diagnstico comum, domina em nossas democracias.
Para tanto, confrontaremos dois discursos dominantes com dois
discursos antagnicos. Pri-meiramente, oporemos ao modelo
constitucionalista de democracia o modelo de soberania popular. Em
segundo lugar, oporemos ao discurso tecnocrtico a ideia de uma
democracia radical.
O problema de partida: apatia poltica nas democracias
contemporneasNos ltimos anos formou-se um consenso surpreendente
entre muitos autores sobre a crise do sistema democr-tico. A
surpresa deriva do fato de que, depois da Que-da do Muro de Berlim,
a democracia ocidental parecia triunfar definitiva e
incontrastavelmente. De fato, havia tempo que alguns tericos j
tinham alertado para pro-blemas irresolvidos e dilemas que
caracterizam nossas sociedades democrticas. J na dcada de 1970,
Jrgen Habermas e Claus Offe tinham chamado ateno para
DemOcracia versus tecnOcracia: apatia e participaO em sOcieDaDes
cOmplexas
Alessandro Pinzani
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Democracia versus tecnocracia: apatia e participao em sociedades
complexas
os desafios que o Estado democrtico de bem-estar social tinha
que enfrentar na Europa (Habermas, [1973] 1980; Offe, [1972] 1984).
Com o desenvolvimento da econo-mia capitalista e o multiplicar-se
das crises econmicas e financeiras, provocadas na leitura marxista
desses auto-res pela prpria lgica do sistema capitalista, o Estado
se viu na obrigao de encontrar remdios para os efeitos negativos de
tais crises e para obviar s correspondentes crises de legitimao que
ameaavam o sistema econmi-co e poltico. Um dos instrumentos
utilizados para esse fim foi a adoo de polticas de segurana social,
que foram aprofundando-se e transformando-se em polticas de
bem-estar social. Ora, apesar de considerar esse pro-cesso em geral
de maneira positiva, Habermas em vrias obras alerta para um efeito
negativo: o cidado tende a transformar-se em cliente, renunciando
participao ativa e assumindo a atitude passiva de quem se limita a
aguardar servios do Estado (Habermas, 1973, pp. 9 e ss., 2012, pp.
626 e ss.).
Mais ou menos na mesma poca, Niklas Luhmann, ao discutir a noo
de democratizao da poltica, afirma-va que as sociedades
contemporneas so to complexas que as teorias clssicas da democracia
parecem ultrapas-sadas e incapazes de entender adequadamente a
realida-de poltica (Luhmann, [1965] 1983, p. 153). A ideia de uma
vontade popular inspirada por uma analogia com os indivduos, mas no
se deixa aplicar a sistemas altamen-te complexos. Essa complexidade
faz com que o nvel de informao do pblico seja extremamente baixo.
At em casos que dizem respeito ao interesse pessoal dos cida-dos,
como no do direito tributrio, ou daqueles relativos aos seguros e s
penses, improvvel que o indivduo conhea as leis em questo. Longe de
considerar isso lamentvel, Luhmann pensa que ignorncia e apatia so
as condies mais importantes para uma mudana das leis,
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que segue passando despercebida, e para a variabilida-de do
direito e, portanto, so funcionais para o sistema (Luhmann, [1965]
1983, p. 191).
Como se v, o diagnstico de uma crescente apatia poltica por
parte dos cidados das democracias avanadas fora formulado, j na
dcada de 1970, a partir de pers-pectivas diferentes ou at opostas
(Habermas lamenta o fato, Luhmann o considera positivo). Nas ltimas
dcadas, esse diagnstico no foi desmentido, ao contrrio, tornou--se
um lugar comum na anlise sociolgica e poltica. Muitas vezes
utilizado para se lamentar o individualis-mo que caracterizaria
nossas sociedades, como no caso da crtica dos comunitaristas e dos
neorrepublicanos1, cujos argumentos apresentam uma forte analogia
com os dos crticos reacionrios ou conservadores Revoluo Fran-cesa
(acusada justamente de fomentar esse individualismo dissolvendo os
laos sociais tradicionais e isolando os indi-vduos, fazendo deles
egostas desenraizados2).
No nossa inteno neste artigo averiguar se o diag-nstico em
questo de fato demonstrado pelas observa-es empricas ou se existem
fenmenos de engajamento poltico que o desmintam ao menos
parcialmente. Tam-pouco pretendemos discutir as crticas ao
individua-lismo democrtico, embora pretendamos voltar a um aspecto
delas na seo O que soberania popular?. Interessa-nos, antes, pensar
acerca de possveis solues ao problema da apatia poltica nas
sociedades democrti-cas, qualquer que seja sua difuso e
gravidade.
1 Refiro-me a autores como Michael Sandel, Amitai Etzioni,
Philip Pettit e Quen-tin Skinner.2 Uma eficaz reconstruo dessa
crtica antirrevolucionria est presente no clssico Hirschman (1991)
e, mais recentemente, em Rancire (2005).
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Democracia versus tecnocracia: apatia e participao em sociedades
complexas
desejvel uma maior participao poltica?3Poder-se-ia observar que
a prpria definio de demo-cracia implica a necessidade de tal
participao, mas, de fato, no assim. Sabemos que existem inmeras
defi-nies de democracia e a expresso governo do povo, que frequen
temente usada como definio, na realida-de representa uma
tautologia, pois a mera traduo da palavra grega (que deriva do
verbo = governar, dominar e do substantivo = povo). Alm disso, essa
expresso ambgua e apresenta, pelo menos, dois problemas.
O primeiro deles: quem o povo? Habitualmente se pensa que o povo
seja constitudo por indivduos que, no momento especfico, formam o
corpo poltico dos cida-dos; mas possvel incluir em tal conceito
tambm as gera-es passadas e futuras de cidados. O povo pode ser
pensa-do, ento, nas formas sincrnica ou diacrnica. primeira
perspectiva corresponde um conceito de vontade popular assimilvel
volont de tous mencionada por Rousseau no livro II, captulo III do
Contrato social, isto , vontade de todos os indivduos concretos que
formam neste momento o corpo dos cidados. segunda perspectiva
corresponde mais o conceito (tambm rousseauniano) de vontade geral
(volont gnrale), que transcende as vontades particulares de tais
indivduos. Deparamo-nos aqui com uma viso em paralaxe, na qual o
mesmo objeto, se observado por pers-
3 Nosso ponto de partida oposto ao de Luhmann, naturalmente.
Para o soci-logo alemo, uma participao mais ativa no somente
desnecessria: ela se-quer desejvel, pois atrapalharia o
funcionamento do sistema, ou seja, repre-sentaria um fator de
instabilidade. Se nossa preocupao for com a estabilidade, portanto,
deveramos ou considerar a participao ativa dos cidados como
dese-jvel, se ela aumentar a estabilidade do sistema, ou seguir
Luhmann e consider--la inoportuna. Se, ao contrrio, partimos da
ideia de que a democracia deve ser preferida aos outros sistemas
por outras razes que no sua maior estabilidade, devemos nos
perguntar se uma participao ativa dos cidados nos processos
deci-srios necessria ou no.
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pectivas diversas, assume contornos e formas diferentes4: ou
tomar a perspectiva do Povo com P maisculo, pen-sado
diacronicamente que vai alm daqueles que so os cidados atuais; ou a
do povo, com p minsculo, pensado sincronicamente. A dificuldade em
assumir a primeira pers-pectiva consiste na quase impossibilidade
de definir a vonta-de popular ou geral. O Povo se tornaria uma
entidade qua-se mstica; sua vontade, algo a ser atingido por uma
espcie de iluminao, ao se escutar a voz da prpria conscincia, como
afirma Rousseau no livro IV, captulo I do Contrato Social, ou,
ainda pior, uma vontade que s alguns poucos podem conhecer e impor
aos demais. O risco da segunda perspectiva (a do povo pensado
sincronicamente) , nota-velmente, o de uma tirania da maioria. Se o
povo sincr-nico decidisse discriminar alguns cidados, no haveria
razo para negar-lhe esse poder a no ser a existncia de direitos
individuais subtrados ao arbtrio dele. Assim, che-garamos ao
conflito entre direito e poltica, entre Poder Judicirio e Poder
Legislativo, entre direitos individuais e soberania popular. Cabe
salientar que ambos os conceitos (mas especialmente o diacrnico,
por razes bvias) ten-dem a fazer do povo um indivduo dotado de uma
vonta-de nica, seja esta ltima pensada como vontade geral ou como
vontade de todos, como unanimidade ou como von-tade de uma maioria.
Rousseau e a maioria dos pensadores modernos acreditam ser possvel
falar em um povo, no povo, como se este fosse algo unitrio e
compacto. Veremos na seo Democracia radical que esse conceito est
longe de ser bvio.
O segundo problema implicado na ideia de um gover-no do povo diz
respeito s formas em que tal governo rea-lizado concretamente. De
que maneira o povo exerce seu poder? Em outras palavras: como se
manifesta a soberania
4 O conceito de viso em paralaxe aplicado filosofia utilizado
por iek (2008).
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Democracia versus tecnocracia: apatia e participao em sociedades
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popular? Como se v, trata-se de uma questo essencial para
responder questo da participao popular, pois corres-ponde a
perguntar-se em que consiste concretamente tal participao.
Respondendo a esse segundo problema, por-tanto, teramos dado um
passo importante em relao questo central que nos ocupa aqui.
O que soberania popular?Em seu recente livro ber Volkssouvernitt
[Sobre a sobera-nia popular], Ingeborg Maus critica a prxis de
substituir a formao democrtica da vontade popular pelo recurso aos
tribunais, em particular, ao tribunal constitucional (Maus, 2011,
p. 27 et passim). A autora lembra que as teorias demo-crticas do
sculo XVIII insistiam na ideia de que a vontade soberana do povo
deveria expressar-se livremente em uma ao continuada de legislao,
enquanto as instituies criadas pela Constituio s revestiriam o
papel secundrio (embora necessrio) de implementar tal vontade por
meio de atos de governo e sentenas jurdicas. Essa ideia, ainda
dominante em Rousseau e em Kant, assim como na teoria e na prxis
dos revolucionrios franceses, substituda nos Estados Unidos dos
founding fathers pela concepo segundo a qual o ato constituinte, no
qual o povo exerce diretamen-te sua soberania, nico: uma vez criada
a Constituio, o poder constituinte passaria ao tribunal
constitucional, que avocaria para si o poder de interpretar a
vontade soberana, inclusive em ocasio de modificaes prpria
Constituio (como acontece no Brasil). Em vez de limitar-se a
verificar a conformidade formal das leis emitidas pelo Parlamento,
o tribunal constitucional assume um papel de colegislador, ou
impondo ao Parlamento determinada interpretao das normas
constitucionais e dos valores nelas refletidos, ou decidindo
diretamente sobre questes concretas em lugar do Parlamento. Dessa
maneira, diz a autora, referindo-se situao alem com argumentos que,
contudo, poderiam
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ser aplicados tambm ao Brasil, o Tribunal Federal
Cons-titucional [Bundesverfassungsgericht] trata a lei fundamental
[Grundgesetz, isto , a Constituio alem] como se fosse um cdigo de
direito civil formulado de maneira ambgua (Maus, 2011, p. 47). Por
isso, comea a decidir sobre questes pontuais como a composio dos
rgos decisrios das uni-versidades, assumindo, de fato, funes
legislativas.
Segundo Maus (2011, p. 48 e ss.), h duas maneiras de pensar a
Constituio. A primeira dominada pela ideia (originria em
Montesquieu) do controle recproco dos poderes e da distino entre
estes, sem que haja, contudo, uma separao das competncias, de modo
que um poder pode interferir nas competncias de outro para
control--lo, como quando o tribunal constitucional anula uma lei do
Parlamento em nome de diferente interpretao de certa norma
constitucional. Esse modelo, que Maus chama de constitucionalista,
compartilhado pelos pensadores norte-americanos anteriormente
mencionados. Eles veem na existncia do poder poltico o problema
principal e nos direitos individuais somente instrumentos para
controlar tal poder. Da uma viso negativa das liberdades: elas
defi-nem os limites que o poder poltico no pode ultrapassar sem
cair no abuso5. No segundo modelo, o da soberania popular, as
liberdades so vistas, em primeiro lugar, como instrumento que
garante a participao do indivduo no processo decisrio. Nesse
modelo, separao dos poderes corresponde uma separao das
competncias: s o Legisla-tivo tem a faculdade de fazer leis,
enquanto o Executivo e o Judicirio se limitam a implement-las.
5 Maus (2011, p. 52) lembra que, no caso da Constituio
estadunidense, os direitos individuais no so enunciados no prprio
corpo do texto originrio, mas so garantidos por uma emenda
constitucional (a primeira) que foi in-troduzida por iniciativa dos
chamados antifederalistas, que eram contrrios aprovao da nova
Constituio de 1788 em substituio dos antigos Artigos da Confederao,
de 1777.
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Democracia versus tecnocracia: apatia e participao em sociedades
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Maus explica o triunfo do primeiro modelo em anos recentes
apontando para a crescente complexidade da sociedade, que faz com
que seja difcil entender em que lugares e por quais atores so
tomadas as decises relevan-tes, tais como, por exemplo, as que
regem a vida econmica. Dessa forma, a prpria ideia de participao
perderia senti-do e os indivduos prefeririam servir-se de seus
direitos para garantir um espao de iseno da ao do Estado, em vez de
us-los para influenci-la diretamente. Isso leva a atribuir um peso
sempre crescente ao Poder Judicirio e a ampliar o conceito de
Constituio, conferindo carta fundamental o papel de elencar
objetivos materiais que devem ser reali-zados independentemente da
ao do Legislativo: quando este no o fizesse, caberia aos tribunais
impor tal realiza-o. Destarte, a prpria noo de direito acaba
mudando seu sentido, pois o direito passa assim a regulamentar a
normalidade do comportamento social, enquanto sua tare-fa deveria
ser a de regulamentar a anormalidade de um conflito pontual, no
qual os indivduos, no representveis, se confrontam como partes num
processo civil ou so iso-lados literalmente como rus num processo
penal (Maus, 2011, p. 59 e ss.). Longe de entrar em ao nessas
situaes anormais, o direito acaba por oferecer os critrios com base
nos quais organizamos nossa vida cotidiana, substi-tuindo assim as
normas sociais.
Essa tendncia j foi descrita por inmeros autores, frequentemente
com o nome de juridificao ou judicia-lizao, mas uma das anlises
mais interessantes foi feita por Axel Honneth em seu livro mais
recente, Das Recht der Freiheit [O direito da liberdade], no qual o
autor, ao ana-lisar a liberdade jurdica como uma das diferentes
formas de exerccio da liberdade individual, afirma que nela
esta-ria presente o risco de uma patologia social, a saber: a total
identificao, pelos indivduos, de sua liberdade com a liberdade
jurdica, isto , com seus direitos negativos, fazen-
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do com que tais direitos acabem tornando-se os elementos
constitutivos do plano de vida de seus titulares. Assim, os
sujeitos tendem a retirar-se para a gaiola de seus direitos
subjetivos e a pr-se perante os outros exclusivamente como pessoas
jurdicas, demandando a resoluo de todos os seus conflitos
unicamente aos tribunais. A pessoa se reduz assim soma de suas
pretenses jurdicas (Honneth, 2011, pp. 161, 164), fechando-se ao
fluxo comunicativo que a une s outras pessoas. Os direitos so
usados, portanto, como uma barreira s exigncias de justificao que
provm dos outros indivduos. Isso, por um lado, protege os
indivdu-os da tirania tica da comunidade na qual vivem, mas, por
outro, os isola dos outros membros de tal comunidade, que passam a
ser vistos como meros obstculos prpria liber-dade individual. Mais
uma vez, assistimos tendncia de os cidados se fecharem em sua
esfera privada, considerando sua liberdade somente no sentido
negativo de uma prote-o da ingerncia alheia (in primis por parte do
Estado), e no no sentido positivo da possibilidade de participar
ativa-mente no processo decisrio democrtico. Tal participao
pressupe, segundo Honneth (2011, pp. 219 e ss.), que os indivduos
concebam sua liberdade como liberdade social, ou seja, como algo
que s pode ser exercido em conjun-to com outros indivduos e que s
se realiza na dimenso comunitria ou social. Experimentamos nossa
liberdade individual somente no contexto de obrigaes sociais que
surgem do fato de desempenharmos certos papis sociais (por exemplo,
enquanto parceiros, pais, amigos, agentes econmicos, produtores,
consumidores, cidados etc.). Essa liberdade social, pois, longe de
isolar o indivduo do contexto social no qual se encontra, s vivida
em tal con-texto, isto , na interao com outros indivduos. O mode-lo
constituinte ameaa obscurecer essa dimenso social da liberdade
individual, reduzindo-a mera defesa de uma esfera privada subtrada
ao poder estatal e deixando que
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Democracia versus tecnocracia: apatia e participao em sociedades
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este ltimo se controle autonomamente por meio de meca-nismos de
checks and balances (quase em analogia ao modelo sistmico de
Luhmann). O modelo da soberania popular, pelo contrrio, torna
explcito em que sentido a liberdade individual s pode ser exercida
no contexto social da parti-cipao no processo decisrio.
Em consequncia do exposto anteriormente, o primeiro ponto sobre
o qual construir a resposta questo da parti-cipao poltica nas
democracias contemporneas o de que no h democracia sem exerccio
concreto da sobera-nia popular e que este se d em forma de
atividade legislati-va continuada, no somente no exerccio pontual
do poder constituinte. Em segundo lugar, se quisermos repensar a
participao democrtica, particularmente em vista a um aprofundamento
da democracia em nossa sociedade, seria necessrio primeiramente
resgatar essa dimenso social da li - berdade individual, que
justamente a primeira vtima da mencionada judicializao ou
juridificao, isto , enfim, do modelo constitucionalista. Em outras
palavras, seria neces-srio fortalecer as formas de participao
direta no processo decisrio. Ao mesmo tempo, contudo, no devemos
pensar que a participao cidad se esgote em atos como o de votar em
uma eleio ou referendo. H outras formas de participa-o democrtica
que devemos agora considerar.
Desconfiana democrtica e ativismo cidadoRosanvallon (2006)
identifica um problema que consi-dera caracterstico de toda
democracia real: a dissociao entre legitimidade e confiana. Em
outros termos, os cida-dos reconhecem a legitimidade das principais
instncias de deciso democrtica (parlamentos, governos, partidos,
administraes pblicas, tribunais etc.), mas no confiam nelas, ou
melhor, desconfiam que abusem do poder que lhes democrtica e
legitimamente atribudo. Segundo Rosanvallon, essa desconfiana no um
fenmeno novo
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ou tpico das democracias contemporneas, mas perten-ce prpria
democracia desde seu nascimento e se exer-ce de trs formas: como ao
de vigiar (surveillance), como impeachment e como questionamento de
juzos (polticos e jurdicos). No se trata de formas institucionais
de exerccio da desconfiana, embora no tenham faltado tentativas de
institucionaliz-las, como, por exemplo, no plano de Cons-tituio
elaborado por Condorcet [no prelo]. Por isso, o termo
contrademocracia, utilizado por Rosanvallon para designar essas trs
formas de controle, no aponta para o eventual carter antidemocrtico
das mesmas, mas indica a forma de democracia que contraria a outra,
a democracia dos poderes indiretos disseminados no corpo social, a
demo-cracia da desconfiana organizada oposta democracia da
legitimidade eleitoral (Rosanvallon, 2006, p. 16). Sob essa
perspectiva, o povo no se limita a escolher seus represen-tantes
por meio de eleies ou, onde isso esteja previsto, a participar
diretamente de escolhas por meio de plebiscitos, referendos e
iniciativas populares; ele efetua uma atividade continuada de
controle no s sobre os governantes eleitos, mas tambm sobre os
tcnicos no eleitos tais como juzes, funcionrios pblicos etc. O povo
exerce, assim, o que pode ser chamado de soberania social negativa
no contexto daquela que, por sua vez, pode ser denominada, alm de
contrademocracia, de democracia negativa (Rosanvallon, 2006, p.
21); de democracia da recusa (dmocratie de rejet) enquanto oposta
democracia de projeto (dmocratie de projet), j que o poder de veto
do povo (isto , o poder de rechaar polticas pblicas ou homens
polticos) prevalece sobre a capacidade dos estadistas de ganhar a
confiana dos eleitores por meio de suas propostas; de democracia de
imputao (na qual os governantes esto sob contnua ameaa de serem
chamados a responder juridicamente por suas aes) enquanto oposta
democracia de confronta-o (na qual a luta poltica no acontecia nos
tribunais ou
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por meio de acusaes recprocas de improbidade e cor-rupo, mas
pela oposio de diferentes vises polticas). Rosanvallon ainda tenta
mostrar como nenhuma dessas diferentes faces da democracia
completamente nova e defende a ideia de que nelas o povo demonstra
uma pre-sena ativa e permanente (2006, p. 37). Nosso autor cita um
manifesto de 1790 elaborado pelo Cercle Social (um crculo poltico
ao qual pertenciam, entre outros, Brissot e o prprio Condorcet), no
qual se afirma: O poder de vigiar e de expressar sua opinio (o
quarto poder, o da censura, do qual no se fala nunca), enquanto
pertence a cada indi-vduo e enquanto cada indivduo o pode exercer
por si, sem representao e sem perigo para o corpo poltico,
constitui de maneira essencial a soberania nacional (apud
Rosanvallon, 2006, p. 44). Como se v, estamos alm da tradicional
opo-sio entre pouvoir constituant e pouvoir constitu , pela qual a
soberania popular se exerce plenamente no ato consti-tuinte e,
depois, somente de forma irregular (nas emendas constitucionais
submetidas a referendo) ou indireta (por meio dos tribunais
constitucionais, por exemplo). Na viso da democracia negativa ou
contrademocracia, a soberania segue, ao contrrio, sendo exercida
diretamente pelo povo em formas no institucionais, isto , no
pertencentes ao mbito do poder constitudo, mas estritamente
polticas.
Contudo, essas formas de controle direto no so isentas de
riscos. Colin Crouch (2004) aponta para um deles em par-ticular, ao
distinguir duas formas de ativismo dos cidados. H uma cidadania
positiva que visa desenvolver identida-des coletivas, definir seus
interesses e, baseando-se nestes, formular exigncias6; e h um
ativismo negativo que se limi-ta a acusar e a lamentar-se, que tem
como fim principal o de exigir prestao de contas aos polticos.
Segundo Crouch, a democracia precisa de ambas aproximaes cidadania,
mas
6 Exemplos de tal ativismo por baixo so descritos em Chatterjee
(2004).
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no momento presente a negativa est recebendo uma nfase
consideravelmente maior (2004, p. 13). No modelo nega-tivo, a
poltica segue sendo exclusividade das elites, embora estas possam
ser acusadas e culpadas por uma multido rai-vosa de espectadores,
quando se descobre que fizeram algo errado (Crouch, 2004, p. 14).
Essa raiva pode levar, porm, ao cinismo e desiluso em relao poltica
e prpria democracia algo muito diferente da desconfiana democr-tica
de Rosanvallon. Crouch lamenta, nesse contexto, uma degradao da
comunicao poltica de massa (2004, p. 26), marcada por vrios
fenmenos: a crescente personali-zao da poltica eleitoral (vota-se
na pessoa e no no par-tido ou em certo projeto de sociedade); o
sensacionalismo da mdia (interessada em descobrir escndalos para
aumen-tar seus lucros em termos de cpias vendidas ou de espaos
publicitrios, mais do que para exercer a funo de vigilante da
transparncia); a crescente complexidade do mundo, em particular da
economia, que torna quase impossvel aos cida-dos identificar
claramente seus interesses e formular seus pedidos classe poltica,
que, por sua vez, parece incapaz de uma gesto eficaz da realidade.
Por essa razo muito mais simples, para os polticos, promoverem
imagens de sua integridade e retido, para seus opositores,
pesquisar suas vidas privadas para encontrar evidncias do contrrio
e para os cidados permanecerem simples espectadores, prontos a
indignar-se quando tais provas forem exibidas (Crouch, 2004, p.
28). No somente a participao democrtica reduzida ao momento
eleitoral, pela incapacidade de os cidados se organizarem de
maneira positiva para exigir polticas liga-das aos prprios
interesses, como tambm a competio eleitoral assume a forma de uma
busca de indivduos dota-dos de carter e integridade (Crouch, 2004,
p. 28), como se isso em si fosse garantia de bom governo. Essa
atitude no leva em conta dois aspectos fundamentais. O primeiro a
no transparncia dos mecanismos econmicos impessoais
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Democracia versus tecnocracia: apatia e participao em sociedades
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que operam na vida de uma sociedade. Constatar tal car-ter no
transparente e impessoal no significa, contudo, afir-mar a
inevitabilidade da ao desses mecanismos. Por mais obscuros que
sejam, eles representam a consequncia de determinadas escolhas
polticas, como, por exemplo, a libe-ralizao do mercado financeiro,
as privatizaes dos anos de 1980 e das dcadas seguintes, a criao da
OMC etc. O segun-do aspecto diz respeito ao fato de que, em muitos
casos, o poder segue sendo exercido de forma no transparente por
atores que so capazes de impor sua agenda aos governos e, ao mesmo
tempo, permanecem nos bastidores, imunes ao escrutnio do pblico. A
transparncia que o cidado exige dos representantes eleitos no
exigida em igual medida dos representantes dos lobbies, dos
executivos de empresas e gru-pos econmicos, dos banqueiros ou dos
donos dos meios de comunicao de massa. Em outras palavras, a
desconfiana democrtica que anima o modelo da contrademocracia pode
rapidamente transformar-se na postura negativa que carac-teriza,
segundo Crouch, a ps-democracia, a saber: cinismo e desiluso com a
poltica; atitude passiva de simples indig-nao; renncia capacidade
de influenciar ativamente o processo democrtico, que o relega,
assim, influncia de outros atores, mais organizados, e que
transforma a democra-cia, de fato, em oligarquia.
Um dos desafios centrais com o qual nossas democra-cias hoje se
deparam consiste em encontrar equilbrio entre as legtimas exigncias
de transparncia e controle da con-trademocracia, por um lado, e a
conscincia de que existem formas de exercer o poder que, por sua
natureza, tendem a permanecer opacas e a escapar ao controle
democrtico, por outro. As foras que se servem de tais formas
aumentam seu poder justamente medida que, desviando a opinio pblica
de suas manobras e de seus interesses, conseguem debru-la sobre
escndalos dos polticos. Nisso so ajuda-das muitas vezes por uma
mdia cmplice ou cointeressada,
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Alessandro Pinzani
que considera seu dever vigiar a moralidade dos polticos, mas no
os negcios e as atividades de empresas, bancos, grupos financeiros
etc. E frequentemente so ajudadas tam-bm por elementos do prprio
sistema institucional que, por vrias razes e s vezes de boa f,
acabam solapando totalmente a confiana nas instituies democrticas,
con-tribuindo assim para que os cidados identifiquem o grau de
legitimidade democrtica de um governo com o grau de moralidade
pessoal de seus membros. Isso no significa, natu-ralmente,
justificar a corrupo ou endossar o ditado, tris-temente popular no
Brasil, rouba, mas faz. Como vimos anteriormente, controlar a ao
dos polticos e cham-los a responder por seus atos uma forma
fundamental de exercer a soberania popular j que o carter
democrtico de nossas sociedades assegurado por formas no
institu-cionais de exerccio da soberania. Tais formas, contudo, no
deveriam limitar-se ao controle dos governantes pelos governados,
mas estender-se a todas as formas de poder, em especial as que se
prestam ao abuso e que ameaam esvaziar o sentido da prpria
participao democrtica, uma vez que so exercidas de maneira opaca e
so subtra-das ao escrutnio dos cidados.
Por outro lado, como j observamos, em sociedades complexas como
a nossa, operam mecanismos impessoais que so dificilmente
controlveis pelas instituies demo-crticas, cujo funcionamento
permanece obscuro at para os indivduos neles envolvidos. No
necessrio seguir aqui Luhmann ou o prprio Habermas e falar de
sistemas auto-poiticos, que se tornaram autnomos uns em relao aos
outros, portanto, tambm em relao esfera da poltica e, sobretudo, ao
mundo da vida dos indivduos que perten-cem a uma sociedade7;
suficiente constatar que as interco-
7 Este um tema que perpassa a obra habermasiana desde os anos de
1970. Ver particularmente Habermas (2012, p. 205 e ss.).
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Democracia versus tecnocracia: apatia e participao em sociedades
complexas
nexes e as influncias recprocas que caracterizam nosso mundo
globalizado e, em particular, a economia globa-lizada atingiram um
nvel de complexidade que as tornam praticamente incompreensveis, at
na reconstruo ex post de acontecimentos como a crise de 2008 da
qual foram dadas as explicaes mais divergentes. Nesse sentido, ao
preocuparmo-nos com as consequncias do ativismo nega-tivo, no
podemos cair no erro (simtrico quele de quem se indigna com os
polticos) de atribuir a culpa dos pro-blemas que assombram nossa
sociedade exclusivamente aos sujeitos econmicos mais poderosos. Tal
erro foi cometido, por exemplo, por boa parte da mdia
estadunidense, que preferiu culpar os banqueiros e sua ganncia pela
crise eco-nmica de 2008, ao invs de identificar as causas sistmicas
que levaram a ela. Ora, refletir sobre essas causas no tarefa fcil
para economistas profissionais, muito menos para cidados comuns.
Isso parece sugerir que esses pro-blemas com os quais se deparam
nossas democracias sejam complexos demais para serem resolvidos
democraticamen-te, isto , por meio da participao ativa dos cidados.
Tal impresso , contudo, profundamente equivocada. Os pro-blemas em
questo no so de natureza meramente tcnica e exigem respostas
polticas. As medidas tomadas para com-bater a crise econmica atual
so quase todas medidas pol-ticas, ainda que sejam apresentadas como
medidas tcnicas. Tanto a escolha entre austeridade e investimento
pblico, quanto aquela entre cortes nas despesas estatais e aumento
da presso fiscal sobre os cidados mais ricos, tratam-se de escolhas
polticas que pressupem no apenas o conheci-mento de dados
macroeconmicos, mas tambm certa viso da sociedade e certos
conceitos de justia social. Ora, esses elementos so precisamente
aqueles que deveriam ser obje-to do escrutnio popular: os cidados
devem poder esco-lher entre diferentes vises da sociedade e os
candidatos a govern-los deveriam explicitar qual a sua, ao invs
de
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Alessandro Pinzani
esconder-se atrs da personalidade de seus lderes ou dos defeitos
pessoais dos adversrios. A escolha entre vises e valores polticos
diversos mais relevante do que a escolha entre indivduos dotados de
caractersticas diferentes.
Diante do exposto, o terceiro ponto da nossa resposta questo da
participao poltica diz respeito ao fato de que tal participao se d
de vrias formas alm daquelas insti-tucionais previstas na
Constituio, mas pode rapidamen-te degenerar em atitudes negativas
de cinismo, desiluso, moralismo cego etc. Para evitar isso, seria
necessrio man-ter viva nos cidados a conscincia de que eles, apesar
da existncia de mecanismos no transparentes e impessoais, podem
contribuir para decidir os destinos de sua socieda-de atravs de
escolhas polticas concretas. H uma srie de fatores que, porm,
dificultam essa tomada de conscincia, quer do ponto de vista
objetivo de representar obstculos implementao da vontade popular,
quer do ponto de vista subjetivo de desmotivar a participao ativa
dos cidados. O primeiro a mencionada presena de mecanismos
impes-soais que parecem obedecer a uma lgica prpria, indepen-dente
de qualquer tentativa de controle poltico. Trata-se da tendncia a
naturalizar tais mecanismos e os fenmenos que deles se originam. O
segundo fator consiste na ideia, derivada de tal naturalizao, de
que a poltica se reduz mera administrao do existente, visando
minimizar os efeitos negativos de fenmenos socioeconmicos
naturali-zados. Disso nasce o discurso tecnocrtico, que
considera-remos na prxima seo. Um terceiro fator o interesse de
determinados sujeitos sociais a minimizar a participao popular. No
novidade que tambm nas sociedades mais democrticas existem grupos
ou indivduos que tentam uti-lizar o poder poltico para perseguir
seus interesses parti-culares. As estratgias utilizadas por tais
sujeitos consistem justamente em defender a mencionada naturalizao
dos fenmenos socioeconmicos e em servir-se do discurso tec-
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Democracia versus tecnocracia: apatia e participao em sociedades
complexas
nocrtico, que nega qualquer valor participao democr-tica. Por
fim, h um quarto fator que diz respeito mais teoria da democracia
do que prxis democrtica concreta: a ideia de que a poltica deve
basear-se no consenso ou ter este como seu fim. J que todos esses
fatores esto entre-laados, nas prximas sees os tratarei sem muitas
distin-es, comeando por uma anlise do discurso tecnocrtico que, a
meu ver, representa o maior obstculo democratiza-o de nossa
sociedade por ser compartilhado no somente por quase todos os
polticos, mas tambm por boa parte dos cidados comuns
(contrariamente a teorias tais como a de Luhmann, que so
excessivamente complexas).
a produo do discurso tecnocrticoNo ano de 1976, portanto oito
anos depois do movimento estudantil de 1968, foi publicado na
revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales um estudo que
teve grande repercusso e que, apesar de ser assinado por Pierre
Bourdieu e Luc Boltanski, era o resultado de um trabalho de grupo,
como o prprio Boltanski (2008) salientou. O estudo, cujo ttulo era
La production de lidologie dominante consistia em uma anlise de
diferentes textos que compartilhavam uma mesma ideia de fundo: a de
que a poltica, em particular a poltica econmica, seria uma espcie
de cincia que pode ser exer-cida unicamente por experts, j que
somente eles conhecem as leis que regulamentam a vida da sociedade
e seu sistema econmico (Bourdieu e Boltanski, 1976).
As fontes, nas quais se baseia aquela pesquisa, so de natureza
variada: publicaes acadmicas, discursos de polticos, entrevistas
com estadistas e experts, pesquisas de opinio, artigos de peridicos
e de revistas, mas tambm manuais usados em institutos de formao da
elite polti-co-econmica como o Institut dtudes Politiques (IEP),
conhecido tambm como Science Po, e o Institut National de la
Statistique et des tudes conomiques (INSEE). Os
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Alessandro Pinzani
autores pretendem mostrar, a partir desses textos, a existn-cia
de um discurso annimo ( impossvel determinar sua origem ou quem o
utilizou primeiro), que se desenvolveu at tomar forma de uma
verdadeira ideologia dominante. Mas o que entendem os autores por
ideologia? E o que seria uma ideologia dominante?
O termo ideologia deve ser entendido, em primeiro lugar, em
sentido neutro: como expresso de uma viso da sociedade que se compe
de uma pluralidade de elemen-tos heterogneos entre si, os quais,
contudo, formam um conjunto coerente. Dessa forma, entre esses
elementos h uma determinada concepo de cincia, uma determina-da
teoria do agir humano, uma determinada doutrina do Estado e,
sobretudo, um sistema de valores e de finalidades sociais
principais que no apenas no so questionados, mas tambm, na verdade,
considerados inquestionveis, como, por exemplo: crescimento
econmico ilimitado, estabilidade financeira, aumento constante do
PIB etc. Tra-ta-se da ideologia da classe dominante em duplo
sentido: de ideologia da classe dominante in primis, torna-se tambm
o discurso mais influente ou at o mais utilizado no interior da
prpria sociedade (na mdia, na academia, na poltica etc.). Para
obter uma aceitao desse tipo, contudo, deve demonstrar ser neutra,
isto , no ser uma ideologia no sentido mais restrito do termo (ou
seja, uma viso da socie-dade que possui um vis especfico e , por
definio, par-cial e no objetiva). Esse discurso deve apresentar-se
como representao sbria, objetiva, at cientfica do mundo social, que
se eleva acima dos cotidianos conflitos ideol-gicos e polticos. Por
simplicidade, em seguida, utilizarei o termo ideologia dominante
tambm quando no me refe-rir ao ensaio de Bourdieu e Boltanski,
embora me parea que simplifique excessivamente algo muito mais
complexo.
Antes de prosseguir na anlise da pesquisa feita pelos dois
autores franceses, gostaria de responder de antemo a
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Democracia versus tecnocracia: apatia e participao em sociedades
complexas
algumas possveis objees. A primeira diz respeito ao fato de que
a ideia de classe dominante pode parecer obsoleta nos dias de hoje.
Contudo, essa impresso poderia ser interpreta-da justamente como
uma prova de que o discurso dominan-te segue cumprindo sua funo.
Ele nega, nesse caso, no simplesmente a existncia da luta de classe
nos moldes do marxismo tradicional, mas antes a prpria existncia
das clas-ses sociais. Destarte, negada tambm a existncia de
confli-tos em sentido prprio. As tenses sociais so descritas como
resultado a se lastimar de uma srie de atitudes erradas: igno-rncia
das verdadeiras leis sociais, ms interpretaes da situ-ao social e
posies ideolgicas (no sentido de vises no cientficas e parciais). A
ideologia dominante apresenta a sociedade como uma totalidade
relativamente homognea, na qual possvel harmonizar os interesses
divergentes entre si que, inegavelmente, esto presentes nela. H
divergn-cia de opinies somente sobre a questo da melhor manei-ra
para chegar a essa harmonizao: se por meio da sbia direo de um
governo de experts ou da plena liberdade aos interesses, na convico
de que o equilbrio resultar deste livre- jogo de opostos (no
podemos cometer o erro de con-fundir a ideologia expertocrtica ou
tecnocrtica com outra ideologia, a neoliberal: apesar de possuirem
algo em comum, e de ambas poderem ser chamadas de dominantes, elas
se distinguem medida que os tecnocratas confiam na ao dirigente das
instituies estatais e os neoliberais na capaci-dade autoreguladora
do livre-mercado).
Para seu estudo, Bourdieu e Boltanski reuniram uma coletnea de
definies, afirmaes e declaraes que pos-suem natureza ideolgica
(tomada em sentido neutro, a saber, como expresso de uma viso
complexa e coerente da sociedade entre as vrias vises possveis),
mas que so apresentadas pelos indivduos ou pelos textos que as
formu-lam como sendo obviedades triviais, constataes objetivas,
resultados cientficos ou pura e simplesmente expresses da
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nica verdade. A essa coleo eles deram, inspirando-se no
Dicionrio das ideias feitas de Flaubert, o ttulo de Enciclop-dia
das ideias feitas e dos lugares comuns usados nos lugares neutros
(Bourdieu e Boltanski, 1976, p. 9 e ss.). Nela esto presentes
pensadores e polticos que pertencem s mais dife-rentes correntes:
de esquerda e de direita, conservadores e progressistas. Em
seguida, apresentaremos quatro exemplos (dos mais de cem itens que
compem a coleo), que me parecem particularmente relevantes para
nosso assunto.
No item Cooperao citada a seguinte declarao de Louis Armand8:
Este tipo de trabalho, que eleva o esprito (como dizia
Saint-Exupry: Faam com que eles construam uma catedral e eles se
amaro), completamente diferente do trabalho de negociao antes,
praticamente o seu contrrio (apud Bourdieu e Boltanski, 1976, p.
15). Em outras palavras: as negociaes entre interesses divergentes
de diferentes grupos sociais so uma atividade que avilta o esprito
e ameaa a coeso social. A vida social deveria antes ser vista como
a cooperao espiritual e comunitria entre parceiros sociais.
No item Ideologia citado, entre outros, Michel Poniatowski, que
foi vrias vezes ministro: As ideologias que se apresentam como
contemporneas o marxismo, o socialismo, o capitalismo, o
liberalismo etc. so superadas pela civilizao que est se
desenvolvendo perante nossos olhos (apud Bourdieu e Boltanski,
1976, p. 21). notvel que o capitalismo seja definido aqui como uma
ideologia. Destarte, no se nega que a sociedade contempornea seja
capitalista; ela se situa, antes, acima de qualquer ideologia e se
encontra num processo de transformao que deixa pare-cer anacrnicas
e inadequadas todas as ideologias. Quem a denomina de capitalista
no somente se serve de um concei-
8 Engenheiro, primeiro presidente da Comunidade Atmica Europeia
(Euratom) e membro da Acadmie Franaise.
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to ideolgico (no sentido ruim do termo), mas demonstra que seu
pensamento completamente inatual e obsoleto.
No item Informao citado o clebre economista Jean Fourasti:
De fato preciso convencer as pessoas a fazer algo, mas isso
[deveria ser feito] somente apresentando-lhes a situao, ou seja,
fazendo que tomem conscincia da realidade, e no por meio de regras.
No se trata de obrigar as pessoas a agir, mas de inform-las sobre
certa realidade, de lev-las constatao de que est no seu interesse,
na sua natureza, agir conforme certas linhas de ao e conforme
certos mtodos (apud Bourdieu e Boltanski, 1976, p. 23).
Em outras palavras: trata-se de abrir os olhos das pessoas para
a realidade, para que tomem conscincia dela. Essa obra de
esclarecimento deveria ser realizada pelo expert, que informa as
pessoas simples quais so os verdadeiros interesses delas e quais os
mtodos certos para persegui-los.
Por fim, e ainda mais relevante para nossa discusso, no item
Parlamentarismo citado o texto de uma ques-to da prova de admisso
escola de elite cole Nationale dAdministration (ENA) do ano 1966: O
parlamentaris-mo, em cujo centro est a assembleia popular, parece
no ser mais adequado s necessidades do mundo hodierno (apud
Bourdieu e Boltanski, 1976, p. 26). O parlamentaris-mo
representaria uma viso obsoleta do mundo, segundo a qual a poltica
tem a ver com a barganha entre interesses divergentes e a busca de
acordos. Os tecnocratas da ENA criticam o parlamentarismo em nome
de uma forma mais eficiente de governo, a saber, em nome do governo
dos especialistas, que no precisa submeter-se a negociaes
desgastantes que custam tempo e energia, mas pode tomar suas
decises conforme critrios cientficos objetivos.
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Esse ltimo ponto decisivo. Para Bourdieu e Boltanski (1976), a
ideologia dominante produzida em lugares que se apresentam como
neutros universidades, institutos de pesquisa, mdia que do a ela o
aspecto de ser cientfica e imparcial, o qual deveria negar o carter
ideolgico do saber produzido em tais lugares. Destarte, o expert,
em seus vrios avatares (cientista poltico, jurista, economista,
cien-tista social, especialista em estatstica etc.), se torna o
pro-ttipo do sbio imparcial, que se situa acima dos conflitos
cotidianos e cuja posio se funda sobre uma avaliao neu-tra de fatos
objetivos. Se ele for chamado a influenciar ou at a tomar
diretamente decises polticas (por exemplo, no caso de ser indicado
para um cargo de governo), servir--se- presumidamente de seus
conhecimentos cientficos, sem seguir motivaes partidrias ou
ideolgicas.
Embora essas anlises sejam de 1976 e as afirmaes sobre as quais
se baseiam datem das dcadas de 1960 e 1970, elas parecem
incrivelmente atuais se considerarmos alguns acontecimentos
recentes (a formao do governo Monti na Itlia, por exemplo).
Contudo, o que me interessa aqui menos a aplicao concreta da
ideologia dominante na Europa atual e antes a concepo de poltica e
de comuni-dade poltica que lhe subjaz.
Antes de tudo, devemos constatar que estamos diante de um grave
dficit epistemolgico: o debate sobre o esta-tuto das cincias
sociais da discusso sobre o positivismo dos anos de 1960 discusso
metaterica atual, conduzida, entre outros, pelo prprio Boltanski
simplesmente dei-xado de lado. No discurso tecnocrtico no se coloca
em dvida em momento nenhum se sua prpria viso social, econmica e
poltica possui carter cientfico (naturalmen-te, esta no a posio de
todos os cientistas sociais, mas somente dos que defendem o
discurso tecnocrtico). Isso possibilita que os experts ativos
politicamente vejam suas decises luz de nexos causais necessrios,
segundo os
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quais os efeitos almejados deveriam sempre ser alcanados. Ainda
mais problemtica, do ponto de vista da teoria ou da filosofia
poltica, a viso social e poltica que subjaz ide-ologia dominante
dos tecnocratas. Tal viso se fundamen-ta sobre cinco premissas,
todas questionveis e todas com conse quncias prticas muito
graves.
A primeira premissa consiste em uma viso implicita-mente
normativa da sociedade, que v nela um jogo har-mnico de interesses
diferentes, pois estes nunca chegam (melhor: nunca deveriam chegar)
a entrar em conflito. A ideologia dominante parte da imagem utpica
de uma sociedade pacfica e sem conflito e oferece tal imagem como
mera descrio, embora seja evidente que esta impli-ca tambm uma
avaliao positiva. Segundo essa imagem, na sociedade no haveria
conflito social se seus membros entendessem a maneira como ela
realmente funciona. Se todos dispusessem do saber necessrio,
aceitariam pacifi-camente aquilo que lhes aparece como o resultado
inquo de injustias sociais e de ilegtimas assimetrias de poder. Da
ignorncia das verdadeiras leis sociais deriva a incapa-cidade de
reconhecer que o desmantelamento das garan-tias oferecidas pelo
Estado no campo social representa um ingrediente necessrio do
crescimento econmico, ou que a retirada de direitos trabalhistas
torna, por um lado, mais precrios os empregos, mas, por outro, os
asseguram con-tra a concorrncia dos mercados de trabalho
estrangeiros etc. Em suma, se os membros da sociedade dispusessem
do conhecimento correto das leis que regem a economia e a vida da
sociedade, isso eliminaria inteis tenses sociais e no somente
facilitaria a ao dos governos tecnocrticos, mas a tornaria at mais
eficiente.
A segunda premissa fundamental estritamente ligada primeira e
consiste em negar a natureza conflituosa da poltica. Esta deveria
fundar-se no consenso, entendido como condio prvia de qualquer
poltica democrtica e
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no como resultado de confrontaes e negociaes (isto , como o
resultado final da poltica democrtica).
A terceira premissa da ideologia dominante concerne ideia da ao
poltica como exerccio de cincia aplica-da. Os problemas que a
poltica enfrenta seriam de natu-reza meramente tcnica, cuja soluo
consistiria na corre-ta aplicao prtica do saber especializado
fornecido pelas cincias sociais. Correspondentemente, do homem
poltico no se espera que disponha de vises prprias acerca desses
problemas e da organizao da sociedade, mas que siga as indicaes dos
experts. Destarte, a poltica perde o carter de uma atividade que
tem a ver com os desejos, anseios, sonhos e sentimentos das pessoas
e se torna antes uma for-ma aplicada de saber a qual se fundamenta
em pressupo-sies antropolgicas. Estas, por sua vez, so bastante
pro-blemticas, pois, a ideologia dominante parte da ideia de que
possvel identificar fortes regularidades ou at leis do
comportamento humano e, nesse sentido, formular prognsticos
suficientemente exatos sobre o futuro. Por exemplo, ela parte da
ideia de que determinadas medidas tomadas por um governo
provocariam automaticamente determinadas consequncias nos mercados
financeiros internacionais (suscitando a confiana ou a desconfiana
dos investidores estrangeiros, favorecendo ou retardando o
crescimento econmico etc.). Isso pressupe uma viso antropolgica
segundo a qual o ser humano se comporta sempre de maneira racional
no sentido de uma raciona-lidade econmica , perseguindo seus
interesses e esco-lhendo sempre as estratgias de ao que os
maximizam. Essa viso aplicada tambm a macroatores como institu-tos
bancrios, empresas, Estados etc. Sem esse pressuposto seria
extremamente complicado falar do carter cientfi-co de disciplinas
como a macroeconomia. Cabe duvidar, contudo, que tal pressuposto
seja correto e no faltam estu-dos que o pem em questo, a partir dos
trabalhos clssi-
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cos de Albert Hirschman (2002) at chegar aos estudos mais
recentes de Elster (1999a, 1999b), de Sousa (1987), Lakoff (2008) e
Green e Shapiro (1994). Mark Taylor avanou a tese sugestiva de que
haveria uma relao estrita entre f religiosa e racionalidade
econmica, que vai muito alm da influncia analisada por Weber (2004)
do calvinismo sobre o esprito capitalista e que torna a prpria
economia uma espcie de religio sucednea (Taylor, 2004). Por fim,
vrios autores tentam demonstrar com base em dados de pesquisas
empricas que as decises tomadas nos merca-dos e na esfera poltica
no so racionais, mas obedecem a fatores emocionais dificilmente
previsveis (Caplan, 2007; Haidt, 2012). No obstante isso, o
discurso dominante afirma que a poltica deve seguir a lgica dos
mercados e tomar medidas racionais, ainda que estas possam causar
descontentamento e sofrimento social. A resistncia con-tra tais
medidas representada, ento, como irracional e carente de
objetividade.
A quarta premissa deriva da terceira e consiste na ideia de que
o homem poltico que toma suas decises com base no saber
especializado dos experts no responsvel pessoal-mente por elas,
pois so a consequncia lgica da aplicao prtica de tal saber. Isso
significa, em primeiro lugar, a des-personalizao da poltica. O
poltico se torna um simples tcnico que reage a fatores externos ao
adotar as medidas necessrias. Seu espao de manobra extremamente
redu-zido e seu lugar pode ser tomado, a qualquer momento e sem
nenhum problema, por outro tcnico sob condio de que este disponha
do mesmo saber que aquele. Isso sig-nifica tambm, em segundo lugar,
a definitiva desvincula-o entre poltica e tica. Medidas que
resultam em sofri-mento evitvel socialmente (se polticas diferentes
tivessem sido adotadas) so apresentadas como resposta inelutvel a
problemas que surgem por causa dos mecanismos impesso-ais da
economia. O processo inteiro descrito como moral-
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mente neutro: os mecanismos em questo obedecem a leis annimas,
representadas como uma espcie de leis natu-rais. A naturalizao da
economia (isto , a ideia de que na esfera da economia tudo acontece
de maneira necessria, segundo leis imutveis e independentemente da
vontade dos atores) leva ao mencionado fatalismo, pelo qual os
pol-ticos enquanto tcnicos se limitam a tomar decises inevit-veis.
A tarefa principal destes passa a ser a de convencer os cidados
dessa inevitabilidade.
A quinta premissa consiste em aceitar que have-r sempre e
inevitavelmente vtimas do progresso, ou seja, vtimas das leis
frreas que regem os fatos sociais, em particular os econmicos.
Trata-se, em certo sentido, de uma variante do darwinismo social,
que condiz parti-cularmente com a naturalizao da economia. A
exclu-so social vista como o resultado inevitvel de uma lei natural
eticamente neutra e no como o resultado de decises polticas que
poderiam ter sido diferentes. O dis-curso tecnocrtico leva,
portanto, a uma forma de fatalis-mo poltico e moral, pelo qual a
poltica tem unicamente a tarefa de tornar mais palatvel o inevitvel
e de mini-mizar suas consequncias negativas, sem, porm, poder
impedi-las. Em outras palavras, seu espao de manobra extremamente
reduzido. O discurso tecnocrtico repre-senta, portanto, a
definitiva naturalizao da poltica e, enfim, da prpria vida social.
Ele trata os fenmenos como fenmenos naturais e presumidamente os
descre-ve com exatido, para tirar deles as leis que permitam operar
prognsticos certos e ofeream orientao aos tecnocratas. O Parlamento
e os cidados servem somente para garantir uma legitimidade formal a
decises que so tomadas acima deles. A prpria legitimidade formal
almejada somente por razes de eficcia: decises formal-mente
legitimadas por rgos decisrios democrticos sero mais provavelmente
aceitas e obedecidas.
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viso tecnocrtica, que parece prevalecer no momen-to atual em
muitos pases industrializados, que est pre-sente tambm no discurso
de alguns polticos brasileiros e na lgica de certas polticas
pblicas (cujos efeitos so calculados estatisticamente como se a
realidade social pudesse ser modificada de maneira clara e certa
por quem conhea suas leis), se contrapem vrios discursos teri-cos.
Em seguida, faremos algumas consideraes a partir de uma destas
teorias: a da democracia radical defendida por Ernesto Laclau e
Chantal Mouffe.
Democracia radicalEssa teoria se caracteriza por questionar
diretamente a ideia de que a realidade social obedece a leis
imutveis e , por-tanto, planificvel. Podemos dizer que seu ponto de
partida o de que o nico consenso necessrio em uma democracia
refere-se existncia de certas regras que impeam a trans-formao de
conflitos de interesse em conflitos armados, que os cidados
recorram violncia fsica para implemen-tar suas vises de sociedade.
Nesse sentido, a constituio democrtica no pressupe homogeneidade
social ou iden-tidade coletiva alm daquela criada pela adeso s
prprias instituies democrticas9. Em outras palavras, os cidados de
uma democracia no precisam compartilhar entre si inte-resses
materiais ou ideais, valores ticos ou morais, vises do mundo ou da
natureza humana. Muito menos esto vincu-lados aos interesses,
valores e vises prprios da gerao dos pais constitucionais. A
constituio define a arena na qual interesses, valores e vises
diferentes ou at opostos podem se enfrentar, sem que isso resulte
em conflito aberto ou em guerra civil exatamente como defendido por
Laclau e Mou-ffe (1985), Laclau (1996) e Mouffe (2000).
9 Nos moldes do patriotismo constitucional defendido, entre
outros, por Habermas (2003). A esse respeito, ver tambm Bunchaft
(2011).
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Mouffe critica as teorias tradicionais de democracia (inclusive
as teorias de democracia deliberativa de cunho rawlsiano e
habermasiano) por oferecerem uma imagem negativa do conflito de
interesses presente na sociedade e por privilegiarem a
racionalidade dos sujeitos, deixando de lado elementos centrais
tais como as paixes e os afetos (Mouffe, 2000, p. 95). Essas
teorias concebem o indivduo como anterior sociedade, portador de
direitos naturais, e como um agente que maximiza sua utilidade ou
como um sujeito racional; assim fazendo, eles desconsideram rela-es
sociais e de poder, linguagem, cultura e todo o conjun-to de
prticas que possibilita o fato de tornar-se um agente (Mouffe,
2000, p. 95). Em outras palavras, desconsideram as condies que
permitem a existncia de sujeitos concretos em uma sociedade e em
uma democracia. Contrariamente a essas teorias, Mouffe insiste na
importncia das prticas, mais do que dos argumentos: juzos polticos
e regras jur-dicas so aceitos porque esto inscritos em formas
compar-tilhadas de vida e porque h um consenso sobre valores, vises
do mundo etc. (Mouffe, 2000, p. 97).
Contudo, contrariamente aos comunitaristas, com os quais ela
compartilha a crtica viso individualista liberal, Mouffe no coloca
a nfase nos traos comuns (valores etc.), mas antes nas diferenas
entre distintas vises e interesses. Sua crtica principal ao modelo
deliberativo o fato de esta negligenciar a dimenso do poder ao
postular a possibilida-de de se chegar livremente a um consenso
racional. Segundo Mouffe, as relaes assimtricas de poder que
caracterizam a vida socioeconmica de uma dada sociedade no podem
ser canceladas quando se entra em uma argumentao racional; o melhor
argumento reconhecido como tal somente porque naquela sociedade
prevalecem determinados valores e deter-minadas vises que levam a
esta concluso. Mas esses valores e essas vises no so neutros e so,
antes, expresso de certa hegemonia ideolgica inevitvel. A realidade
social constitu-
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Democracia versus tecnocracia: apatia e participao em sociedades
complexas
da por relaes de poder e , portanto, sempre de natureza poltica.
Este ponto de convergncia [...] entre objetividade e poder o que
entendemos por hegemonia (Mouffe, 2000, p. 99). O poder constitui a
prpria identidade dos sujeitos sociais e, portanto, no eliminvel.
Nas prticas polticas, no h identidades pr-formadas em busca de
poder para realizar seus interesses, mas h, antes, identidades que
se constituem de maneira precria e sempre vulnervel por intermdio
de relaes de poder (Mouffe, 2000, p. 100). Nesse processo de formao
de identidade, os indivduos se orientam por con-ceitos e valores
que, embora tenham se tornado hegemnicos (o de liberdade
individual, por exemplo), eles prprios podem colocar em questo. O
carter democrtico de uma sociedade dado justamente pelo fato de que
nenhum ator social pode reclamar para si representar a totalidade
da sociedade (Mou-ffe, 2000, p. 100), como, pelo contrrio, acontece
quando uma minoria se autoproclama opinio pblica (como no caso da
chamada classe mdia no Brasil) e pretende impor seus inte-resses
como o interesse geral de toda a sociedade.
As prticas democrticas implicam, portanto, uma luta de poder
para estabelecer os valores hegemnicos e/ou para estabelecer as
identidades dos sujeitos sociais. A viso agni-ca de democracia
defendida por Mouffe requer que as par-tes em luta se vejam como
adversrias, cujos direitos devem ser respeitados, mas no como
inimigos a serem destrudos (como numa viso de mero antagonismo).
Tal viso mantm ao mesmo tempo firmemente a ideia de que as prticas
polti-cas so conflituosas e que dizem respeito a relaes de poder, a
comear pelo poder de certos sujeitos sociais definirem a si mesmos,
em vez de terem que aceitar uma definio imposta de fora (por
exemplo a de marginais, de ral).
A viso radical de democracia, assim como Laclau e Mouffe a
defendem, se ope, portanto, ao discurso tec-nocrtico, que quer
eliminar de vez a ao poltica, substi-tuindo-a por uma atividade
presumidamente cientfica de
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Alessandro Pinzani
administrao e de gesto da vida social e econmica de uma dada
sociedade, que, por essa perspectiva, deveria ser subtrada vontade
popular, pois esta desconhece as leis objetivas que regram a esfera
da economia. Em lugar disso, a teoria da democracia radical
reconhece que as prticas democrticas tm como objeto relaes de
poder, que aca-bam definindo a identidade dos sujeitos sociais e os
valores dominantes em uma sociedade (e, portanto, a racionalida-de
dos argumentos usados nas deliberaes pblicas).
Em consequncia do exposto, podemos formular os seguintes pontos
relativos questo central deste escrito: para que os cidados
participem ativamente do processo decisrio, necessrio mostrar o
carter ideolgico (no sentido negati-vo do termo) do discurso
tecnocrtico e da correspondente naturalizao do status quo. Ao mesmo
tempo, necessrio pr em questo aquelas que so apresentadas como
finalidades bvias, indiscutidas e indiscutveis da sociedade:
crescimento econmico ilimitado, privatizao indiscriminada do setor
pblico, incentivos pblicos s empresas etc. Pr em questo no
significa aqui negar a importncia de tais finalidades, mas repensar
suas modalidades, estabelecer novas prioridades10. Tudo isso tarefa
de uma crtica social inspirada nos mtodos da teoria crtica (como no
caso de Boltanski). Naturalmente, esse trabalho de crtica ser intil
se no conseguir alcanar a maioria dos cidados. Isso pressupe a
existncia de uma mdia plural e aberta a todos uma circunstncia
praticamen-te inexistente no Brasil, onde os rgos de comunicao de
massa esto nas mos de poucos grupos que os usam para per-seguir
seus interesses econmicos e, portanto, polticos (sem, contudo,
admitir isso abertamente)11.
10 Exemplos de como repensar as modalidades seriam privilegiar
uma distribuio mais justa da riqueza j existente no pas, antes de
fomentar a produo de nova riqueza destinada a uma minoria; ou
ainda, ao fazer privatizaes, estabelecer con-dies favorveis ao
Estado, e no apenas aos sujeitos privados.11 Sobre esse ponto, ver
Reprteres Sem Fronteiras (2013)
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Democracia versus tecnocracia: apatia e participao em sociedades
complexas
Como se v, os desafios so muitos e os obstculos democratizao
real (a qual se daria por meio de uma maior participao ativa dos
cidados no processo decisrio) so aparentemente insuperveis. Os
cidados tm a percepo de que sua voz no ouvida e de que seu
engajamento no possui relevncia nenhuma para influenciar os
mecanismos globais e impessoais que dominam suas vidas. Tal percepo
est correta medida que, de fato, a participao se reduz ao voto ou
indignao pblica perante os escndalos dos pol-ticos. Dessa forma, os
cidados preferem se refugiar na esfera privada a qual garantida por
direitos individuais: os sujeitos entendem sua liberdade como mera
liberdade jurdica, iso-lando-se ainda mais do conjunto dos
concidados e renun-ciando ainda mais faculdade de exercer seu poder
sobera-no, o que s pode ser feito conjuntamente a tais concidados.
Essa contrao da participao abre espao para outros sujei-tos, cujo
poder e cuja influncia nos processos decisrios se tornam cada vez
maiores. O discurso tecnocrtico e a naturali-zao do status quo, que
se tornaram dominantes, contribuem a desincentivar ainda mais os
indivduos e a suscitar neles a ideia de que a poltica um mbito
reservado aos tcnicos, no qual no h espao para novidades e
experimentos sociais. Nesse contexto, a participao se limita
escolha de polti-cos que possuam as qualidades consideradas
necessrias para implementar as medidas tcnicas inevitveis. Em tudo
isso, a mdia deixa de exercer um papel verdadeiramente crtico e se
limita tendenciosamente a defender interesses particulares ou a
denunciar polticos em vez de discutir polticas. Perante essa
situao, no fcil pensar em formas de restituir aos cidados a
confiana em sua capacidade de tomar decises e de influenciar a
realidade, e tampouco era nossa inteno apontar para sadas concretas
desse dilema no espao limi-tado de um artigo cientfico. Faz-se
mister, contudo, refletir sobre essas questes, se quisermos que
nossa sociedade se tor-ne uma sociedade verdadeiramente
democrtica.
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Alessandro Pinzani
alessandro pinzani professor de filosofia poltica da UFSC e
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Lua Nova, So Paulo, 89: 2013
Resumos / Abstracts
DEMOCRACIA vERSUS TECNOCRACIA: APATIA E PARTICIPAO EM SOCIEDADES
COMPlExAS
AlessAndro PinzAniResumo: Discutimos no presente artigo a questo
da apatia pol-tica em nossas democracias no do ponto de vista
emprico, mas por meio da anlise de vrios discursos e modelos
teri-cos que resultam ser, respectivamente, dominantes e
anta-gnicos tanto na academia quanto na prpria esfera pbli-ca. A
primeira oposio analisada aquela entre o modelo constitucionalista
da democracia e o modelo da soberania popular. A partir dessa
anlise, passamos discusso dos fen-menos sociais de judicializao e
de indignao por parte dos cidados. Indignao esta, que, por sua vez,
se ope ao ativis-mo positivo de quem est disposto a participar
diretamente do processo decisrio, inclusive em formas no
instituciona-lizadas de participao. Por fim, analisamos a oposio
entre o discurso tecnocrtico, caracterizado pela nfase no consen-so
sobre leis socioeconmicas presumidamente formulveis de maneira
cientfica, e a ideia de uma democracia radical, caracterizada por
uma viso de agonismo democrtico.
Palavras-chave: Democracia Radical; Tecnocracia; Apatia
Pol-tica; Constitucionalismo; Soberania Popular.
DEMOCRACY vERSUS TECHNOCRACY: APATHY AND PARTICIPATION IN
COMPlEx SOCIETIESAbstract: We discuss in this article the topic of
political apathy in our democracy; it does it not from an empirical
perspective, but through an analysis of several discourses and
theoretical models, which are considered to be, alternately,
dominant or antagonist both in academy and in public sphere. The
first opposition to be analyzed is that between constitutionalist
model and popular sovereignty model. From this analysis, we start
the discussion about the social phenomena of judicialization and of
indignation among citizens,
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Lua Nova, So Paulo, 89: 2013
Resumos / Abstracts
which stands opposite to the positive activism of those, who are
willing to participate directly in decisional processes, including
through not institutionalized forms of participation. Finally, we
analyze the opposition between technocratic discourse and the idea
of a radical democracy, with its vision of a democratic
agonism.
Keywords: Radical Democracy; Technocracy; Political Apathy;
Constitutionalism; Popular Sovereignty.