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Democracia de Assembleia e Democracia de Parlamento: uma breve
histria das instituies democrticas
Resumo
No debate sobre o imenso legado cultural da Grcia antiga, a
questo da democracia sempre evocada como ideal de participao direta
dos cidados nas decises coletivas, em oposio ao conceito moderno de
representao poltica. Na busca no somente de oposies, mas de reas
comuns entre os dois concei-tos, este artigo procura demonstrar que
a teoria dos trs poderes propugnada por Aristteles e posteriormente
retomado por Montesquieu nos conduz a um proe-minente fio condutor
nas relaes que se estabelecem entre antigos e modernos
Palavras-chave: Democracia. Participao. Representao.
* Professora do Instituto de Cincia Poltica Universidade de
Braslia. Doutora em Sociologia pela cole des Hautes tudes en
Sciences Sociales - Paris. Ps Doutorado em Teoria e Filosofia da
Histria - Centre Louis-Gernet de Recherches Compares sur les Socits
Anciennes - EHESS, Paris. (Bolsista CAPES jun 2006/jul 2007)
Marilde loiola de Menezes*
DOSSI
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Introduo
Desde os gregos at ns, a ideia de que a democracia sig-
nifica governo do povo ou governo da maioria tem
um significado que via de regra denota um governo vol-
tado para a distribuio mais equitativa do poder e da
riqueza social. Todavia, entre a cidade-Estado e o Estado
moderno, o conceito de democracia sofreu deslocamentos
importantes
que proporcionam grande diversidade de abordagens que ora se
aproxi-
mam, ora se distanciam, de seu modelo inicial.
Uma das modificaes mais significativas no dilogo entre
antigos
e modernos foi certamente a transferncia do processo de
participao
direta do cidado nos negcios pblicos para um sistema
centralizado de
representao poltica. Para os antigos, a esfera pblica dizia
respeito ao
lugar especfico de tomada de deciso poltica por parte de seus
cidados.
No Estado moderno, a participao poltica mediada por um corpo
in-
dependente de polticos profissionais com legitimidade para
decidir em
nome dos cidados. Essa talvez seja a maior diferena entre a
democracia
antiga e a democracia moderna de nossos dias.
Ao perscrutar oposies e reas comuns entre os dois conceitos
de-
monstramos que a reflexo poltica de Montesquieu nos encaminha
ao
profcuo dilogo entre antigos e modernos.
Os primrdios
Ao explicar a etimologia de maldito, Herdoto narra um dos
pri-
meiros episdios que inauguram a histria poltica ateniense.
Trata-se de
um jovem aristocrata que, orgulhoso por ter vencido nos jogos
olmpicos,
recruta um bando de gente de sua idade e tenta se apoderar da
Acr-
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pole, mas fracassa no seu empreendimento e se refugia suplicante
ao lado
da esttua de Atenas (HERDOTO, 1964, Livro V, p. 384). Cylon e
seus
seguidores se rendem sob a condio de no serem condenados
morte,
mas a promessa quebrada e os cmplices de Cylon so todos
massacra-
dos. Posteriormente, em funo do carter sagrado da acrpole, o
arconte1,
responsabilizado e julgado por sacrilgio, seria condenado ao
exlio, e to-
dos os membros de sua famlia, os Alcmenidas, considerados
malditos.
Esta era a lei na cit: se um membro da famlia cometesse um
crime
por homicdio ou sacrilgio, a punio recairia sobre toda a sua
famlia e
todas as geraes futuras. Depois disso, continua Aristteles, os
nobres
e o povo entraram em conflito durante longo tempo.
Seja pelo carter sagrado da acrpole, seja pela participao
popular ou
pelo conflito aberto que se instaura entre povo e aristocracia,
dez anos mais
tarde tais disputas provavelmente motivaram a entrada na cena
poltica do
que hoje conhecemos como Cdigo de Drcon2. Supostamente escrito
em
621 a.C., a formulao dessas leis tinha como objetivo limitar as
vinganas de
morte entre famlias, prescrevendo punies para os casos de
assassinato.
Aristteles indica algumas pistas do impacto dessas primeiras
inicia-
tivas de regulamentao da vida social: na Constituio de Atenas,
chega
mesmo a induzir uma forma de clivagem na histria poltica de
Atenas,
antes e depois de Drcon, qualificando de regime primitivo as
formas
de organizao social anteriores a Drcon (ARISTTELES, 1967, p.
17-22).
Quanto tradio hostil que se desenvolve a esse modesto conjunto
de
leis, devemos em parte a Plutarco, na medida em que coloca em
dvida
a eficcia de um cdigo que s conhece como sano a pena de morte
(PLUTARCO, 2001, p. 213). Mesmo assim, a lei sobre o homicdio
conti-
1 O termo designa o supremo magistrado da cidade. 2 Grande parte
de helenistas (Finley, Hansen, Moss) considera improvvel que Drcon
tenha redigido um cdigo de leis ou dotado Atenas de uma
Constituio.
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nuou em vigor at o fim do sculo V antes de Cristo, e uma
codificao
total da vida social s foi implementada bem mais tarde, por meio
de Slon. Designado arconte, Slon (entre 594-593 a.C.) assumiu a
posio
de conciliador e legislador ante os problemas econmicos que
assolavam
a sociedade ateniense (ARITTELES, 1967). Os campesinos, em
funo
de suas dvidas progressivas, encontravam-se em situao de total
depen-
dncia em relao aos proprietrios senhores da terra3. Segundo o
relato
de Plutarco, mesmo sendo um euptrida4, somente Slon poderia
for-
mular um pacto entre ricos e pobres: os ricos, em funo das
condies
materiais satisfatrias de Slon; os pobres, por suas qualidades
morais5.
Assim, o lema A igualdade no engendra a guerra, adotado por
Slon,
agradava ricos e pobres: os primeiros porque julgavam que a
igualdade
era fundada em funo de seus prprios mritos e de seus
respectivos
valores; os segundos porque avaliavam a igualdade como um
direito de
todos. (PLUTARCO, 2001, p. 209).
Uma das primeiras medidas de Slon foi abolir dvidas e
decretar
tambm a interdio de qualquer forma de emprstimo tendo como
ga-
rantia a pessoa do prprio credor. Na esfera da justia, uma de
suas pri-
meiras medidas foi a abolio - salvo a lei sobre homicdio - das
leis de
Drcon. Slon considerava que as penas fixadas por Drcon, no
sendo
escritas com tinta, mas com sangue no distinguiam quem rouba
uma
fruta de quem comete o sacrilgio de um assassinato (PLUTARCO,
2001,
3 Dentre eles alguns trabalhavam a terra em troca da hectmores;
havia os assalariados e mais outros que ofereciam sua existncia
como garantia das prprias dvidas: tornavam-se escravos de Atenas ou
eram vendidos no estrangeiro. Ainda existiam os que eram obrigados
a vender seus filhos para escapar da crueldade dos credores. 4
Proveniente da aristocracia.5 Referindo-se a essa passagem da vida
de Slon, Plutarco acrescenta que Phanias de Lesbos, filsofo da
Escola peripattica, considerava que para salvar a cite Slon
enganava as duas par-tes. Em segredo, prometia aos pobres a
partilha dos bens; aos ricos, a confirmao das dvidas por parte dos
credores (PLUTARQUE, 2001, Vie Parallles, p. 209).
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p. 212). No que concerne s magistraturas, Slon no operou
grandes
mudanas, e os cargos continuaram a ser ocupados pelos ricos.
Atribui-se tambm a Slon a mudana de critrio na diviso do
con-
junto dos cidados atenienses em quatro classes sociais: os
pentacosio-
medimnos, os hippeis, os zeugitas e os tetes seriam
classificados no mais
a partir de seu nascimento, mas a partir de sua fortuna
calculada pela
produo de suas respectivas propriedades (ARISTTELES, 1967, p.
8).
Ao modificar o critrio de nascimento pelo da aquisio de fortuna
na
diviso do conjunto de cidados, Slon inaugura a possibilidade de
par-
ticipao popular no processo de eleio s mais altas magistraturas.
As
duas primeiras classes (pentacosiomedimnos e hippeis) poderiam
compor
o Tribunal do Aerpago6, e a terceira classe (os zeugitas)
poderia igual-
mente se eleger s magistraturas inferiores. Os ltimos, os tetes,
no eram
contemplados por cargos, mas tinham acesso s assembleias.
Slon criou o Conselho dos Quatrocentos, composto por cem
mem-
bros de cada tribo, e lhes confiou a tarefa de examinar e
avaliar com ante-
cedncia todos os assuntos a serem debatidos pela assembleia.
Tais medi-
das no impediam a participao do cidado, ao mesmo tempo em
que
impunham certo controle em eventuais excessos por parte do povo.
Por
outro lado, tendo dividido no s a sociedade, mas tambm o acesso
aos
cargos pblicos a partir da fortuna mensurada pela propriedade da
terra,
no era de espantar que os bemnascidos ocupassem posies
hegem-
nicas, ficando o povo com a participao restrita s
Assembleias.
Esses trs ncleos o Conselho dos Aerpagos, o Conselho dos
Quatrocentos e a Assembleia co nstituam a base de poder das
reformas
solonianas. A Constituio de Slon no era obviamente um corpo
siste-
mtico de leis no sentido moderno do termo, no entanto
representava
uma tentativa bem sucedida de regulamentao da vida social, na
qual se
6 Tribunal ateniense que na poca clssica era formado pelos
antigos arcontes.
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podia estabelecer determinado equilbrio entre a ao dos
proprietrios
de terra e a maioria campesina.
Em 507, Clstenes substitui a tradicional Constituio
aristocrtica
por uma nova forma de Constituio democrata. As reformas no
interior
da velha ordem social se operam a partir de uma vertente que
institui
uma nova diviso geogrfica e poltica da tica e outra que amplia
o
Conselho dos Quatrocentos, que passa a ter quinhentos membros. A
nova
Boul dos Quinhentos, a Assembleia e o Tribunal do Povo
constituem os
principais fundamentos de uma estrutura poltica que vai perdurar
por
mais 700 anos (HANSEN, 1993).
Ekklsia, Boul , Hli
A ekklsia era a Assembleia do Povo e nela o cidado ateniense
adulto de sexo masculino tinha direito a palavra e voto. Reunia-se
com um mnimo de seis mil cidados, numa colina chamada Pnyx, nas
pro-ximidades da gora. Dela estavam excludos escravos,
estrangeiros, mu-lheres, crianas e cidados privados de seus
direitos polticos (atimoi).7 Caso algum representante desses
segmentos fosse encontrado durante a realizao de uma Assembleia,
poderia ser condenado a srias punies.
Aristteles descreve a ekklsia como o frum credenciado para
deci-dir a paz e a guerra; para construo e/ou rompimentos de
alianas; para a promoo de leis, bem como para aplic-las em caso de
banimentos, de confiscaes ou de pena de morte. Era tambm atravs da
Assembleia que os magistrados prestavam contas de suas decises
durante (ou ao trmino de) seus respectivos mandatos (ARISTTELES,
1964, Cap. X, p. 115).
A Assembleia era convocada pela Boul dos Quinhentos e se reunia
quarenta vezes por ano ou quatro vezes por pritania. Os prtanes
(em
7 A perda dos direitos polticos era causada por delitos como
maus-tratos aos pais, no-cum-primento dos deveres militares;
dilapidao do patrimnio; prostituio etc.
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nmero de nove) presidiam a Boul dos Quinhentos e a Assembleia do
Povo. Eram compostos pelos cinquenta membros de uma das tribos que
compunham a Boul dos Quinhentos e que durante um dcimo do ano
exercia a pritania, ou seja, a Presidncia da Boul. A ordem pela
qual as dez tribos da tica se sucediam exercendo a pritania era
sorteada a cada ano (ARISTTELES, 1967, p. 46). Alm das reunies
semanais, a Ekklsia kyria era uma Assembleia maior, mais longa e se
reunia uma vez por pritania.
A Constituio de Atenas, de Aristteles, fornece-nos exemplos de
variadas formas de deliberaes das assembleias: decidiam com a mo
elevada se os magistrados deveriam (ou no) continuar nos
respectivos cargos; deliberavam sobre questes ligadas defesa do
pas; faziam a lei-tura dos bens confiscados pelo Estado, das
denncias de alta traio e do julgamento sobre os direitos de sucesso
de uma filha piclre8.
Tambm cabia Assembleia, na sua sexta prytania, incluir na ordem
do dia a aplicao (ou no) do voto sobre o ostracismo, assim como
sobre a aplicao (ou no) de votao contra os sykophantes9 ou contra
todo aquele sobre os quais pesavam acusaes de eventuais omisses em
rela-o aos interesses do povo. Tais acusaes, provenientes de
atenienses ou de metecas10, s poderiam ser realizadas em nmero de
seis: trs denn-cias por categoria (ARISTTELES, 1967, p. 47).
Uma outra assembleia era consagrada aos suplcios. Nesta, todo
cidado poderia colocar um ramo de suplicante, significando que
gos-taria de propor uma discusso ou deliberao sobre outros assuntos
(pri-vados e pblicos) que no necessariamente constassem da pauta da
as-sembleia. Duas outras Assembleias eram consagradas a assuntos
gerais, porm as leis ordenavam que em cada uma delas deveriam ser
debatidas
8 A filha que herdou o patrimnio, em caso de ausncia de herdeiro
do sexo masculino.9Os sykophantes eram acusadores quase
profissionais. A justia ateniense no possua algo como o Ministrio
Pblico, que em nome da cite defendesse os interesses da
coletividade. A defesa dos interesses pblicos ficava ao encargo do
conjunto dos cidados.10 Estrangeiro autorizado a viver na cit.
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trs questes relativas a coisas sagradas, trs questes relativas a
arautos ou embaixadores e mais trs questes profanas.
Quanto pauta das assembleias, no se tinha direito de votar
ne-nhuma questo sem o parecer da Boul. A pauta eram examinada com
antecedncia pela Boul dos Quinhentos, e era essa instncia que
decidia a ordem do dia da ekklsia. Da mesma forma que a probouleuma
era um projeto elaborado pela Boul e submetido votao da ekklsia.
Para ser ratificado, a Assembleia precisava do qurum mnimo de seis
mil cida-dos votando com seus jetons (psphoi) com a mo para o alto.
Os jetons eram distribudos aos participantes da Assembleia no
momento de sua chegada. Como ningum poderia ter dois psphoi mo,
isso garantia a contagem correta dos votos (HANSEN, 1993, p.
160).
As eleies dos estrategos, dos hipparques e dos outros
funcion-rios militares era tambm feita pela Assembleia. Os
estrategos eram os generais comandantes do exrcito em terra e mar,
investidos de plenos poderes nos campos de batalha. Em Atenas esse
colegiado trabalhava jun-to com a Boul dos Quinhentos e presidiam a
Helli, o Tribunal do Povo. Constituam um colegiado de dez cidados
eleitos por um ano e renova-o indefinida. Hipparques era a
denominao que se dava lista de ca-valeiros eleitos na Assembleia11.
A escolha dos estrategos e dos hipparques ocorria a partir da
primeira aps a sexta prytania se os pressgios fossem favorveis
(ARISTTELES, 1967, p. 48). Essa operao exigia igualmente o voto
preliminar da Boul.
Constituindo-se na principal instncia de participao poltica, a
ekklsia ocupava lugar e excelncia como principal base poltica das
ins-tituies democrticas atenienses. a instncia direta de participao
do cidado. Entretanto, apesar de tal participao ser aberta a todos,
Arist-teles chama a ateno para o fato de que as assembleias eram
dominadas
11 Segundo o testemunho de Tucdides, nas vsperas da guerra do
Peloponeso existiam mil hippar-ques (Hrodote - Thucydides. Oeuvres
completes. Paris: Edio Bibliothque Pliade, 1964).
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pelos demagogos, que com sua retrica conduziam o povo a
aprofundar
a clivagem entre ricos e pobres e ao mesmo tempo o induzia a
confiscar
recursos do Estado por meio da distribuio irresponsvel do
dinheiro p-
blico com os pequenos espritos12. Esses oradores (rhtors) tinham
bas-
tante domnio sobre as assembleias. Mesmo que todo cidado, em
tese,
tivesse direito palavra, eram os demagogos verdadeiros
profissionais da
poltica, que se sucediam na tribuna.
Para o filsofo, deliberamos melhor quando todos deliberam em
comum: o povo com os nobres e os nobres com o povo
(ARISTTELES,
1964, cap. X, p. 115). Isso significa que os membros da
Assembleia deve-
riam ser escolhidos de forma igual, por eleio ou por sorteio, a
partir das
diversas classes da cidade-Estado. Como os cidados do povo
constituam
a maioria, os sorteios ou os pagamentos dos salrios deveriam ser
feitos
tendo como base o mesmo nmero dos nobres presentes na
Assembleia.
Por esse artifcio, tanto o povo como os nobres teriam
asseguradas suas
participaes, de forma equilibrada, nas assembleias do povo.
A caracterizao do meio termo aristotlico entrava assim em
con-
tradio com a noo democrtica de governo do povo, governo de
maioria. Para os filsofos do sculo IV, a democracia se
caracteriza pela
participao do povo em todas as matrias e em todos os assuntos. O
regi-
me democrtico teria assim como princpio bsico a participao
popular
em todas as instncias da cidade-Estado. A possibilidade de
representa-
o justa e equilibrada dos dois segmentos sociais - povo e
aristocracia
- se chocava com o princpio da isonomia democrtica.13
12 Aristteles se refere a misthoforia, lei de Pricles que obriga
a cite a um pagamento aos pobres que comparecem Assembleia. Para
Aristteles, quando o Estado no tem muitos recursos preciso s
raramente convocar a ekklsia (ARISTTELES, La Politique, op. cit
cap. XVIII, p. 212-213).13 A isonomia o princpio bsico da igualdade
poltica, o que no significa igualdade diante da lei dos modernos,
embora fosse a igualdade de todos cidados para exercer seus
direitos polticos.
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A Constituio de Atenas se refere a uma outra instituio central
na
compreenso da democracia ateniense: a Boul dos Quinhentos
(ARIS-
TTELES, 1967, p. 48). Este Conselho foi institudo por Clstenes
em 507
a.C. e tinha como base organizacional uma nova diviso poltica e
militar
da tica: dez tribos, trinta circunscries e 139 municipalidades
(dmes).
Os membros do Conselho, os quinhentos bouleutes, eram escolhidos
por
sorteio: cinquenta representantes do conjunto de cidados de cada
tribo
(ARISTTELES, 1967, p. 46). Para ser bouleute era necessrio ter
pelo
menos trinta anos de idade e ter passado com sucesso pela
dokimasie, isto
, um exame prvio magistratura.14
Cada tribo exercia uma prytania fixada nesta ordem: as quatro
pri-
meiras durante 36 dias, as seis ltimas durante 35 dias. Os
cinquenta
membros de cada tribo deveriam servir no comit executivo do
Conselho
por um dcimo do ano. O Conselho era guiado pelo ano
bouleutique,
cuja durao era de dez meses (prytaneiai) e no de doze meses,
como no
ano civil atual. A ordem de sucesso das tribos, a prytania, era
igualmente
sorteada ao final de cada pritania.
Os prytanes faziam suas refeies em comum na rotonde (tholos)
re-
cebendo do Estado uma recompensa em dinheiro. Eram responsveis
pela
convocao da Boul e da Assembleia do Povo. O Conselho se reunia
to-
dos os dias, exceo dos feriados, e a Assembleia quatro vezes por
pryta-
nia. Os prytanes se responsabilizavam por todas as tarefas do
Conselho,
como tambm faziam uma sntese de todos os assuntos em pauta a
serem
debatidos pela Assembleia do Povo. Eram igualmente os prytanes
que fa-
ziam a seleo do que deveria ser tratado na ordem do dia das
Assembleias.
Ao Conselho cabia julgar a ao dos magistrados, principalmente
os
responsveis pela manipulao de fundos. Aqui tambm o julgamen-
14 Aristteles nos d uma indicao do que seriam essas questes:
Quem o teu pai e a qual dme ele pertence? Quem o pai de teu pai?
Quem a tua me? Quem o pai da tua me e a qual dme ele pertence?
(Constitution d'Athnes,op.cit., p. 46).
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to no era definitivo, havendo a possibilidade de apelar para uma
outra
instncia, o Tribunal do Povo (Hli), que em Atenas julgava
processos
civis e criminais, aes de ordem privada e de ordem pblica. Alm
disso,
examinava as questes ligadas a denncias de magistrados, bem
como
julgava os processos polticos. Algumas vezes anulava os decretos
que
haviam sido votados pela Assembleia e as leis votadas pelos
nomothtes15.
Poderia fazer parte do Tribunal do Povo (Hli) todo cidado
com
mais de trinta anos, condio de que no fosse devedor do
tesouro
pblico ou estivesse privado de seus direitos polticos. Qualquer
cidado
que tentasse assumir o jri sem preencher esses pr-requisitos e
fosse
delatado e reconhecido como culpado seria condenado e mantido
em
priso at o dia em que quitasse a dvida que lhe causara a delao e
mais
uma multa imposta pelo Tribunal.
A cada ano, um corpo de seis mil pessoas era sorteado entre os
ci-
dados voluntrios de mais de trinta anos. Uma vez sorteados
prestavam
o sermo (hliastique) no qual se engajavam a votar de acordo com
a lei
os decretos da Assembleia e do Conselho; prometiam tambm que
iriam
escutar imparcialmente a defesa e a acusao. A partir desse
momen-
to os cidados formavam um corpo de hliastes que seria sorteado
para
compor um jri que normalmente variava entre duzentos e
quinhentos
cidados, podendo chegar a 1.500, dependendo do porte da
acusao.
Em geral, as questes de ordem privada envolviam cerca de 201 a
401
cidados. As demais, de ordem pblica, 501 cidados.
So essas trs instituies que originadas no sculo V vo
encarnar
os principais fundamentos do pensamento poltico moderno. Nesse
di-
logo constante com o legado dos antigos, cremos ser em
Montesquieu
que podemos encontrar o fio condutor dessas zonas comuns que
se
15 Comisso legislativa constituda por cidados (cem, por exemplo)
sorteados por meio de um painel de seis mil jurados, para legislar
durante uma jornada.
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estabelecem entre as instituies polticas dos antigos e dos
modernos.
Mesmo se no Esprit des Lois o autor se demonstra fascinado pela
histria
de Roma, no se pode negar a influncia da Grcia antiga na obra
de
Montesquieu sobretudo na figura do grande legislador Slon e na
herana
do pensamento filosfico de Plato e Aristteles.
Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judicirio
Analisando a Constituio Inglesa no famoso Livro IX do Esprit des
Lois, Montesquieu reflete sobre a relao entre as leis fiadoras da
liber-dade poltica e suas respectivas constituies. A ideia geral do
autor era analisar os mais variados significados da palavra
liberdade, assim como a suposta relao entre liberdade e democracia.
Em outras palavras, se o objetivo da sociedade a liberdade de seus
membros, que tipo de gover-no poder garantir tal liberdade?
Montesquieu se empenha em primeiro lugar em fazer a diferena entre
a liberdade filosfica, ligada questo da vontade do agente, e a
liberdade poltica, ligada ao cumprimento das leis. Um povo livre na
medida em que suas leis esto em consonncia com seus costumes e
tendncias. Em um estado guiado pelas leis, a liberdade consiste em
fazer no aquilo que queremos fazer, mas aquilo que deve-mos fazer
(MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. III, p. 395).
Dessa forma, a liberdade poltica deriva no da vontade
individual, mas do exerccio do cumprimento da lei. Entretanto,
sendo os homens [...] seres particulares inteligentes, podem ter
leis que eles fizeram, mas que tambm no fizeram (MONTESQUIEU, 1951,
Livro I, cap. I, p. 232). As primeiras so as leis positivas, que
podem ser criadas, mudadas e supri-midas pelas autoridades
estabelecidas. As segundas so as leis absolutas, universais e
eternas. Sendo as leis eternas naturalmente justas, nenhuma
autoridade constituda poder mud-las ou aboli-las. Na medida em que
nenhuma lei positiva pode ofender o ideal de justia divina, pode-se
pen-
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sar numa justia que seja universal e ao mesmo tempo derivada da
razo
humana. Nessa hiptese a lei se constitui na prpria razo humana,
no
sentido de que ela governa todos os povos da terra; as leis
polticas e civis
de cada nao so casos particulares onde se aplica essa razo
humana
(MONTESQUIEU, 1951, Livro I, cap. III, p. 237). Dessa forma,
Montes-
quieu recusa a ideia de que o homem possa de forma autnoma e
arbitrria
constituir suas prprias leis. Estas devem resultar de uma relao
ontolgica
entre o mundo natural universal e o mundo singular dos
homens.
De outro modo, a liberdade de um povo, de um Estado, depende
tambm da justia de suas leis. Entretanto, para que estas leis
sejam real-
mente justas preciso que consigam obstar as ambies humanas. A
ideia
de justia de Montesquieu est diretamente relacionada sua
concepo
de natureza humana: qualquer pessoa que detenha um mnimo de
po-
der tentar exced-lo. Portanto, todo poder de um homem ou de
muitos
sobre os outros conduz inexoravelmente a um aumento de poder.
Todo
aquele investido de poder poder ficar vulnervel a cometer
excessos.
Por esse motivo, nem a democracia nem a aristocracia se
constituem, de
forma espontnea, em Estados livres. S se encontra liberdade
poltica
nos governos moderados. Somente estando os poderes
contrabalanados,
separados, equilibrados por um corpo intermedirio, que se pode
limi-
tar a inclinao natural ao abuso de poder.
Para que se possa preservar o poder de todos os excessos
preciso
que o poder detenha o poder (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI,
cap.
IV, p. 395). Sendo o homem limitado por sua prpria natureza
(MON-
TESQUIEU, 1951, Livro I, cap. I, p. 233), encontra-se sempre
sujeito a
erros e a imprevisibilidades. Como ser inteligente, consegue
constante-
mente violar as leis estabelecidas por Deus e aquelas que
estabelece para
si prprio (MONTESQUIEU, 1951, Livro I, cap. I, p. 234). Para no
se
entregar a mil paixes o homem deve ser constantemente
reconduzi-
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SOCIOLOGIAS 33
do. Sujeito a tanta vulnerabilidade, coube aos filsofos
adverti-los com
leis morais, ticas. Para viver em sociedade, aos legisladores
igualmente
compete advertirem-nos com leis polticas e civis. As liberdades
moral e
poltica s podero ser atingidas com a prtica da moderao.
Embora
o Esprit des Lois no se proponha a ser uma obra de cunho moral,
nada
impede que o bem moral e o bem poltico possam se unir em nome
da
paz e do bem coletivos.
com essa expectativa que se refere ao Estado como detendo
trs
tipos de poderes: o legislativo, o executivo e o judicirio: No h
li-
berdade se o poder de julgar no for separado do poder
legislativo e do
executivo (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. IV, p. 396). A
ideia de
Montesquieu era impedir que um mesmo homem exercesse os trs
pode-
res: o de fazer as leis, o de executar as resolues pblicas e o
de julgar os
crimes ou as contendas entre particulares. A autoridade poltica
deve ser
exercida por mecanismos institucionais que assegurem o
funcionamento
equilibrado entre os trs poderes. Os mecanismos incluem uma
Consti-
tuio moderada, na qual a colaborao entre os trs poderes
permita
cooperao e complementaridade funcional articuladas, que os
obrigaro
a agir em concerto (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. VI, p.
405).
Assim, no fazendo parte do poder legislativo, o poder
executivo
no poder entrar nas disputas que se travam na formulao e na
apro-
vao das leis. Por sua vez, estando o poder executivo isento da
reda-
o das leis, detm, dessa forma, o direito de impedimento, isto ,
o
direito de anular uma resoluo tomada por outro (MONTESQUIEU,
1951, Livro XI, cap. VI, p. 401), o direito de veto.
Considerando que a
sociedade tem necessidade de leis que possam regulamentar a
conduta
de cada um em particular e da sociedade em geral, as leis
regulamentam
melhor aquilo que devemos aos outros do que tudo que se deve a
si
mesmo(MONTESQUIEU, 1951, Livro VII, cap. X, p. 343).
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SOCIOLOGIAS34
Recusando a via aberta por Hobbes, em que o Leviatan se
constitui
no nico legislador em todos os domnios da sociedade, para
Montes-
quieu as leis positivas no devem sua existncia nem sua
justificao ao
domnio restrito dos homens. Dada a precariedade do homem
sempre
sujeito ignorncia e ao erro as leis positivas devem ter como
modelo
as leis naturais, nicas a atingirem a infinita perfeio
divina.
Para atingir essa justia universal, Montesquieu afirma que ao
contr-
rio do poder executivo, que deve ficar nas mos de um monarca,
uma vez
que precisando tomar decises rpidas ser mais bem administrado
por um
do que por muitos (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. VI, p.
401-402),
o poder legislativo ficar mais bem ordenado se administrado por
muitos
do que somente por um. A ideia de um executivo solitrio e um
legislativo
coletivo reflete bem o mago das preocupaes do pensamento
poltico
montesquiano: a delimitao do poder e a consolidao de
mecanismos
institucionais que possam oferecer estabilidade ao sistema
poltico.
Montesquieu v nos mecanismos institucionais uma garantia
face
capacidade do homem em violar sem cessar as leis que Deus
estabe-
leceu e mudar as que ele mesmo estabeleceu (MONTESQUIEU,
1951,
Livro I, cap. I, p. 234). A consolidao de instituies polticas
pautadas
na justia e na impessoalidade constituiriam uma proteo confivel
para
que o homem no ficasse sujeito a mil paixes, esquecendo a si
mesmo
e ao seu prprio criador: por essa razo que os filsofos devem
adverti-
los com suas leis morais, e os legisladores atravs de suas leis
polticas e
civis (MONTESQUIEU, 1951, Livro I, cap. I, p. 234).
Aos legisladores compete aproximarem a terra do cu,
transfor-
mando-se no segundo vetor que compe o equilbrio institucional:
o
poder legislativo, a ser composto de duas cmaras: uma cmara alta
e
outra cmara baixa.
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SOCIOLOGIAS 35
Para Montesquieu, em todos Estados livres cabe ao povo o
poder
de se governar e de fazer as leis. Sendo impossvel nos grandes
Estados e
problemtico nos pequenos, preciso que tenham seus
representan-
tes, porque um dos grandes embaraos causados pela democracia
a limitao do povo quanto a suas respectivas capacidades no
exerccio
dos cargos pblicos. A grande vantagem dos representantes que
seriam
capazes de discutir os negcios do Estado e ao mesmo tempo
superar um
dos grandes vcios das democracias antigas, ou seja, o excesso de
poder
proveniente do povo.
Confiado a duas cmaras, o poder legislativo teria esta
configurao:
uma cmara alta, composta de um corpo de nobres; e uma cmara
baixa,
composta por um corpo a ser escolhido para representar o povo. O
corpo
de nobres deveria ser hereditrio pela sua prpria natureza,
enquanto o
povo deveria ter o direito de escolher seus representantes. As
duas cmaras
teriam suas Assembleias com suas respectivas deliberaes, de
acordo com
seus interesses e suas distintas posies. Tendo em vista que o
equilbrio
deve tambm prevalecer no interior dessas duas cmaras, a parte do
po-
der legislativo composta pelos nobres seria mais indicada para
cumprir essa
funo. Sendo o povo conduzido por suas paixes, os nobres
assumiriam
um poder moderador. Como o poder hereditrio pode ser
eventualmente
potencializado e se transformar num poder autoritrio, vulnervel
a ponto
de seguir seus prprios interesses e a esquecer os interesses do
povo, esse
poder dever sempre deter a faculdade de impedir, mas nunca a
facul-
dade de estatuir. Montesquieu distingue a faculdade de impedir
como
sendo o direito de tornar nula uma resoluo tomada por outra
pessoa,
enquanto que a faculdade de estatuir o direito de conceder por
si mes-
mo ou de corrigir aquilo que concedido por outro. Dessa forma,
cabe ao
corpo representativo impedir abusos e no conceder direitos.
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SOCIOLOGIAS36
Quanto ao poder judicirio, Montesquieu o considera um poder
menor16: Os juzes da nao representam apenas a boca que
pronuncia
as palavras da lei; seres humanos que no podem moderar nem a
fora
nem o rigor da lei (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. V, p.
404). Sendo
prerrogativa do legislativo operar qualquer mudana nas leis, ao
judicirio
compete apenas a tarefa de a elas se submeter. Por outro lado, o
poder de
julgar no deve ser dado a um corpo permanente, mas exercido por
pessoas
sorteadas do conjunto do povo, em certas pocas do ano, de acordo
com a
lei, para formar um tribunal cuja durao deve ser estabelecida de
acordo
com as necessidades de cada caso: Dessa forma, o poder de julgar
um
dos poderes mais terrveis entre os homens no sendo vinculado nem
a
um certo estado nem a uma certa profisso, torna-se, de certa
forma, um
poder invisvel e nulo (MONTESQUIEU, 1951, Livro XI, cap. V, p.
388).
Montesquieu entende por poder invisvel e nulo o fato de se
tratar
de um corpo que apesar de no congregar os juzes de forma
permanente
e duradoura se legitima enquanto instncia capaz de garantir a
justia ao
conjunto da coletividade. E por que tal distino? Para ele, os
outros dois
poderes executivo e legislativo podem ter como agentes um
corpo
ou um s representante permanente, uma vez que no exercem o poder
diretamente sob um particular: sendo o poder legislativo
representante
da vontade geral do Estado, e o poder executivo a execuo dessa
von-
tade geral, estes poderiam agir com iseno e distncia. Quanto ao
poder
judicirio, a nica forma de transform-lo em poder neutro, no
aderente
a nenhuma das partes integrantes do conflito, quando seus
integrantes
so escolhidos de forma imparcial. Entende-se dessa forma a razo
pela
qual Montesquieu considera o judicirio como um poder menor, na
justa
medida em que ele se dirige ao particular e no ao geral, ao
universal.
16 Guardando todas as reservas de uma traduo literal, no Livro
XI, cap. VI, p. 401, Montesquieu afirma que: Dos trs poderes que ns
falamos, o de julgar , de certa maneira, nulo (nulle).
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SOCIOLOGIAS 37
Transformando o judicirio em um corpo voltil, Montesquieu d
mostras de sua inquietao em relao a um corpo que por sua prpria
na-
tureza poder julgar a conduta individual de todo cidado da
coletividade.
Como garantir a imparcialidade de um poder que julga os membros
da co-
munidade? Enquanto nos demais poderes a subjetividade
continuamente
protegida pelo apelo sociedade e ao bem-comum, o que fazer de
um
poder que exerce funes invisveis, quase divinas? Tais inquietaes
so
contornadas por Montesquieu atravs de duas proposies
complemen-
tares. A primeira, de ordem subjetiva, procura assegurar a adoo
de leis
precisas que possam evitar a opinio particular do juiz
(MONTESQUIEU,
1951, Livro XI, cap. VI, p. 399). A segunda, de ordem objetiva,
assegura o
direito de que em casos extremos, de grandes acusaes, o prprio
infra-
tor possa escolher aquele que lhe ir julgar. Ambas as propostas
buscam a
imparcialidade e a neutralidade como forma de contornar um dos
poderes
mais problemticos das democracias modernas: o sistema
judicirio.
Democracia de Assembleia e Democracia de Parlamento
A anlise das trs principais instituies polticas atenienses
indica que
a participao direta nas decises coletivas constitui a base da
democracia
na Grcia antiga. Tendo como princpio bsico o exerccio do poder
pelo
povo (dmos), a democracia antiga se ope democracia dos
modernos,
cujo nico poder se resume escolha daquele que vai decidir em
nome
do povo. Deste modo, o estudo sobre o legado cultural de Atenas
parece
reforar a oposio clssica entre a chamada democracia
participativa e a
democracia representativa. A partir dessa tica, a to propalada
crise da
democracia se confunde com a crise do sistema de representao
poltica.
Como consequncia da falta de credibilidade do atual sistema,
apontam-se duas grandes mazelas: a apatia poltica e a
corrupo.
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SOCIOLOGIAS38
A apatia pode ser a consequncia natural da falta de confiana
nos
polticos e em suas respectivas capacidades de defender os
interesses da
coletividade. Estando em crise o sistema poltico, os eleitores
no se sen-
tem estimulados a participar da vida pblica e dos negcios do
Estado.
Quanto aos polticos, suas aes ficam condicionadas aos interesses
de
seus partidos e s estratgias pessoais que lhes possam garantir
vitria no
prximo pleito. A progressiva autonomia da classe poltica em
relao ao
conjunto da coletividade pode ser a consequncia natural do
processo.
Quanto corrupo, passa a ser igualmente considerada conse-
quncia natural do sistema de representao poltica, considerado
lugar
prprio para os descalabros do funcionamento dos governos e das
ins-
tituies. Os polticos vm a ser considerados como suspeitos face
ao
decoro parlamentar e distribuio equitativa dos recursos pblicos.
Na
conscincia difusa da sociedade, os representantes subordinam os
inte-
resses pblicos aos interesses individuais, ao mesmo tempo em que
no
operacionalizam a separao entre o pblico e o privado.
Nestes termos aumenta o fosso entre antigos e modernos. Sendo
asse-
gurada aos povos antigos a participao direta nos negcios
pblicos, a ten-
so entre governantes e governados torna-se constitutiva das
democracias
representativas. A ideia subjacente a esse tipo de formulao a
certeza de
que o povo estaria naturalmente credenciado a escolher
alternativas mais
justas para a coletividade, enquanto as escolhas dos
representantes esta-
riam pautadas pelos interesses pessoais e pelo desejo nico de
reeleio.
Opor a democracia participativa como expresso de um consenso
forjado a partir dos interesses coletivos e a democracia
representativa como
expresso dos interesses individuais reduzir a democracia a um
consenso
que (embora desejado) dificilmente se realiza. Sendo a
democracia no s
o modelo de um regime poltico, mas tambm a expresso de uma
experi-
ncia histrica, antigos e modernos sabem que somente atravs das
tiranias
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SOCIOLOGIAS 39
ou de monarquias absolutas possvel eliminar a tenso entre
gover-nantes e governados. A prpria Assembleia do Povo era
constantemente palco de cises e dissensos. O embate clssico entre
filsofos e sofistas o exemplo mais expressivo que desautoriza
qualquer ideia de convivncia harmnica entre os cidados e o poder,
na Grcia antiga.
Apesar de se constituir numa importante fonte de reflexo, a
alter-nativa terica estritamente baseada na oposio entre democracia
par-ticipativa e democracia representativa nos parece estril.
Opostamente, se incorporarmos reas comuns s tradicionais oposies
clssicas entre um e outro modelo podemos constatar que em ambos os
regimes de historicidades17 a base da democracia e de toda deciso
feita por maioria atravessada de tenses, conflitos e muitas vezes
de fortes cises entre governantes e governados. O povo, tal como
qualquer outra classe social, no se comporta de forma homognea, e
no seu interior guarda cises, dissensos incontornveis. Logo, quer
na ekklsia, quer no parlamento, a tenso entre governantes e
governados no representa uma fratura no regime poltico. Ao
contrrio, constitutiva do regime democrtico.
Uma outra rea comum a ser destacada no estudo dos antigos e dos
modernos se refere questo da busca de equilbrio entre os poderes
cons-titucionais e o cidado. Sem querer forar uma continuidade
entre a Boul dos Quinhentos, a Assembleia, o Tribunal do Povo e os
Trs Poderes Consti-tucionais, podemos indicar que as preocupaes
modernas em estabelecer equilbrio entre os poderes do povo e de
seus respectivos representantes certamente no eram totalmente
ignoradas pelo modelo ateniense.
Em Montesquieu, a autoridade poltica deveria ser exercida por
me-canismos institucionais que pudessem assegurar o funcionamento
equili-
brado entre os poderes, permitindo que fossem eles obrigados a
agir em
17 Esta expresso usada por Franois Hartog, quando se refere
relao que cada sociedade em particular estabelece com o passado, o
presente e o futuro. Essa multiplicidade do tempo definida pelo
autor como rgimes d'historicit (HARTOG, Franois. Rgimes
D'Historicit: prsentisme et expriences du temps. Paris: Seuil,
2003).
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SOCIOLOGIAS40
concerto (MONTESQUIEU, Livro XI, cap. VI, p. 405). Os dados
histricos
demonstram que os eleitos da Boul dos Quinhentos eram
responsveis pela
pauta da Assembleia e pela execuo de suas respectivas
deliberaes. Qual-
quer proposio proveniente do Conselho considerada ofensiva s
leis da
cit poderia ser levada para o julgamento do Tribunal do Povo18.
A descrio
dessas atribuies sugere que a Boul dos Quinhentos e o Tribunal
do Povo
funcionavam como um contrapoder da Assembleia, da mesma forma
que a
anlise indica tambm a existncia de cooperao e vigilncia mtuas
entre a
Assembleia do Povo, a Boul dos Quinhentos e o Tribunal do
Povo.
Reforando essa pista analtica, se recorrermos aos filsofos do
sculo
IV, a filiao entre antigos e modernos torna-se mais clara. Na
Apologia (de
Plato), Scrates se refere s trs principais instituies da cit: a
Ekklsia,
a Boul e a Heliia (PLATO, 1966, Tomo I, 25a/25b). No captulo X
da
Poltica, Aristteles se refere igualmente a essa estrutura
poltica como cons-
tituda por trs poderes essenciais a toda forma de governo: um
poder
deliberativo que se ocupa de todos os negcios do Estado; um
poder exe-
cutivo composto pelas magistraturas; e um terceiro poder
constitudo pe-
los magistrados, o poder judicirio (ARISTTELES, 1964, cap. X, p.
115).
Um terceiro aspecto ou uma terceira rea comum a ressaltar
estaria
circunscrito no prprio conceito de representao: como o povo em
As-
sembleia no exercia todas as funes governamentais, a
representao
no era totalmente desconhecida na Grcia antiga. Certas tarefas
de
ordem do executivo em particular eram delegadas aos
magistrados.
Atenas possua aproximadamente setecentos postos para os
magistrados,
sendo seiscentos deles sorteados e o restante escolhido por
eleies.19 A
18 Hansen esclarece, inclusive, que mais da metade dos decretos
votados pela Assembleia sofriam retificaes da parte da Boul dos
Quinhentos (La democratie athenienne. lpoque de Dmosthne, op.cit.,
p. 138-140).19 Mogens Hansen, na obra La democratie athenienne.
lpoque de Dmosthne op. cit, rea-liza uma das mais arrojadas
pesquisas sobre o desenho organizacional das instituies
atenienses.
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SOCIOLOGIAS 41
diferena entre um e outro regime histrico era que, no caso dos
antigos,
todos os magistrados estavam sob o controle da Assembleia.Os
atenienses reservavam a designao por eleio s magistraturas
que eram consideradas vitais: os generais (estrategos), os altos
funcion-rios militares e os das finanas pblicas. Era atravs de
cargos eletivos que se encontravam as maiores personalidades da
cidade-Estado. Os magis-trados eleitos poderiam ser reeleitos
indefinidamente20.
Sendo a designao dos governantes realizada por meio de eleies em
intervalos regulares, um dos princpios bsicos do regime
representativo, po-demos admitir que o conceito de representao no
era completamente des-conhecido pelos atenienses. Aristteles, na
Poltica, parece confirmar nossa hiptese: [...] so consideradas como
democratas as magistraturas atribudas pela sorte, e como
oligrquicas as que so atribudas por eleio (ARIST-TELES, 1964, p.
105). Seguindo Aristteles, a grande oposio operada entre a
democracia antiga e a democracia moderna, ou seja, o fiel da balana
que opera a separao entre uma e outra seria o uso das eleies em
detri-mento do sorteio. E por que o sorteio se constitui no
principal fundamento do regime democrtico? Porque obedece a dois
princpios constitutivos da democracia ateniense: o princpio da
isonomia e o princpio da isegoria.
A isonomia o princpio da igualdade poltica, isto , igualdade
perante a lei e direitos iguais a todos os cidados para o exerccio
de seus direitos polticos. O segundo princpio, a isegoria,
fundamenta-se na igualdade de condio em relao ao uso da palavra.
Isto , o direito igual de cada cidado de fazer proposies na
Assembleia.
Quanto s eleies, princpio bsico da democracia representativa, a
escolha dos cidados se d baseada no princpio da competncia, isto ,
da certeza de que somente os melhores, os notveis, os aristos, os
bem-nascidos, poderiam conduzir os negcios do Estado. Nunca o
regime
20 O mais famoso general do sculo V, Pricles, foi eleito
estratego entre 20 a 22 vezes segui-das, e Phocion ficou no posto
durante 45 anos (Plutarco. Vie Parallles).
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SOCIOLOGIAS42
representativo utilizou o sorteio como forma de escolha de seus
repre-sentantes. Dessa forma, para ns contemporneos, parece curioso
ou at inslito pensarmos no uso do sorteio como forma legtima de
participao poltica. Enquanto a oposio participao versus representao
forjou uma base rica de discusses, de debates e querelas, poucas so
as refe-rncias analticas que fazem meno s relaes que envolvem o
sorteio e a eleio entre antigos e modernos. E por qu?
Referindo-se s abordagens pautadas na oposio entre antigos e
modernos, Franois Hartog sugere que subjacente a todas essas
grandes querelas pode-se encontrar uma construo social sobre o
presente. As-sim, a clssica querela animada por Benjamin Constant
Libert des An-ciens compare celle des modernes (CONSTANT, 1997)
tinha como interesse principal formular uma resposta que pudesse
substituir os valo-res herdados da Revoluo por uma viso mais
liberal da sociedade.
Em Constant a liberdade moderna a liberdade civil ou individual.
A liberdade antiga era a participao coletiva dos cidados no
exerccio da soberania. Sob o pretexto de uma recusa a uma volta
incua ao pas-sado, Constant se reserva o direito de omitir que sua
reflexo concerne muito mais ao presente do que ao passado da Frana.
Seu adversrio principal seria Rousseau, no os antigos21. Para
Hartog, no o presente, mas o passado que atravessa essa fico
terica. (HARTOG, 2005a).
Depois de sublinhar a ligao existente entre a liberdade de uns e
a escravido de outros, Rousseau se refere soberania como o exerccio
pleno da vontade geral: sendo o soberano um ser coletivo, s pode
ser representado por ele mesmo: o poder pode muito bem ser
transmi-tido; mas a vontade, no (ROUSSEAU, 1962). A ideia de
representao rousseauniana contribuiria no para a liberdade, mas
para a escravizao do cidado moderno. Para Constant, longe de ser
sinal de servilismo, a representao significaria a libertao do
indivduo para que este no se
21 Hartog se refere clssica querela Libert des Anciens et Libert
des Modernes.
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SOCIOLOGIAS 43
tornasse escravo da vida pblica. Assim, os antigos seriam livres
e escra-
vos. Quanto aos modernos, seriam livres e representados.
Essa foi uma das proeminentes querelas que deram origem a
in-
meras clivagens entre antigos e modernos. Dentre elas a clssica
discusso
entre participao e representao22. Enquanto inveno dos antigos, a
par-ticipao s poderia ser utilizada pelos gregos, uma vez que seria
incompa-
tvel com as dimenses do Estado moderno. Tal impossibilidade
tcnica
levou os antigos a ignorarem a representao, que seria uma
descoberta
dos modernos. Quanto ao sorteio, mesmo no sendo incompatvel
com
as dimenses do Estado moderno, foi praticamente banido da prtica
pol-
tica e pouco desenvolvido no campo da reflexo filosfica23.
evidente que a fico terica a que se refere Hartog est no
fato de que nem a representao uma inveno do Estado moderno,
tampouco a participao privilgio da cidade-Estado. A inverso de
ti-
pos ideais em experincias histricas submerge os antigos num
patamar
sagrado, cujo valor arqueolgico apreciado por diletantes
portadores
de uma singular curiosidade intelectual. parte o valor catrtico
da ex-
perincia, resta-nos o saudosismo de um passado idealizado trado
pelos
atributos da modernidade. Sendo os antigos o ideal de perfeio, e
os
modernos os profanos do templo, seria o caso de nos
perguntarmos:
por que ainda estudamos os gregos?
Longe de nos lanarmos a uma nova querela Sorteio dos antigos
e Eleio dos modernos este artigo se prope a uma linha de
reflexo
em que oposies e reas comuns entre antigos e modernos possam
se
constituir em importantes fontes de anlise e debate no contexto
das de-
mocracias contemporneas.
22 Nos anos sessenta Finley escreveu uma interessante anlise
sobre a democracia dos anti-gos e a dos modernos (Dmocratie antique
et dmocratie moderne. Paris: Petite Biblithque Payort, 1976).23 No
domnio da filosofia poltica podemos destacar autores como Finley,
Hansen, Lenoir, Manin, que sob ngulos diferentes insistem nesse
debate.
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SOCIOLOGIAS44
Direct Democracy and Parliamentary Democracy: a brief history of
the democratic institutions
Abstract
In the debate on the immense cultural legacy of ancient Greece,
the issue of democracy is always mentioned as an example of the
direct participation of citizens in collective decisions, as
opposed to the modern concept of political representation. In the
search not only for differences but also for similarities be-tween
the two concepts, this article intends to demonstrate that the
theory of the separation of powers, advocated by Aristotle, and
later Montesquieu, leads to a prominent connection between ancient
and modern democracy.
Keywords: Democracy. Participation. Representation.
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