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OS DELEGADOS DE POLCIA ENTRE O PROFISSIONALISMO
E A POLTICA NO BRASIL, 1842-2000
MARIA DA GLORIA BONELLI
Departamento de Cincias Sociais
Universidade Federal de So Carlos
So Paulo/Brasil
Prepared for delivery at the 2003 meeting of the Latin American
Studies Association,
Dallas, Texas, March, 27-29, 2003.
Email: [email protected]
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INTRODUO
Sob a lgica do profissionalismo, os delegados de polcia
constituem o grupo ocupacional mais vulnervel entre as carreiras
jurdicas pblicas. Vrios fatores se articulam para formar este
quadro, reunindo caractersticas sociais, profissionais, polticas e
institucionais.
Os delegados de polcia so formados em Direito se identificam
como possudores do conhecimento tcnico-jurdico desta rea, mas no so
reconhecidos assim por outros "doutores". Os delegados reivindicam
um valor social que lhes negado por outros parceiros do mundo do
Direito. Embora tenham obtido o diploma superior, a legalidade
desse ato no lhes conferiu legitimidade. A "nata" dos bacharis que
freqentou as faculdades tradicionais e mais competitivas
estigmatiza a formao do delegado, cuja maioria proveniente de
cursos de baixa competitividade. H, acoplada nas disputas simblicas
por mrito, uma distino de origem e recursos sociais. Junto com o
saber desdenham-se o iderio e o estilo de vida dessas autoridades
policiais.
A funo do delegado junta duas atividades associadas a valores
opostos. Ele tanto lida com o saber jurdico tpico do conhecimento
intelectual quanto com a arma e seu significado prtico, manual,
violento e sujo. O esteretipo do demrito - que mescla formao
superior, recursos sociais e atribuies da carreira - realimenta a
vulnerabilidade da posio do delegado na hierarquia do mundo do
Direito. Sua funo o coloca em contato direto com os grupos de mais
baixa estima social e com o universo do crime. O poder das
profisses est relacionado ao controle de suas atividades, mas os
delegados no controlam o risco de serem alvo da ao de outras
pessoas com inteno de matar. O fato de o delegado lidar com a
"escria social" e o de estar sujeito a imprevistos que ameaam sua
vida tambm se somam para desvalorizar a profisso.
Em contraste com os oficiais da polcia militar, organizados sob
a lgica burocrtica sujeita hierarquia interna e a cumprir ordens,
os delegados de polcia usufruem de uma estrutura organizacional
mais horizontalizada e baseada no princpio da autonomia
profissional, o que os vincula ao tipo ideal do profissionalismo.
Eles controlam o inqurito policial como uma rea de saber exclusiva,
e quando investigam a autoria do delito, o fazem com uma autonomia
semelhante a dos mdicos quando diagnosticam a doena.
A debilidade de sua posio no modelo do profissionalismo no
decorre apenas das caractersticas sociais e funcionais apontadas
acima. Elas so potencializadas pela politizao de suas atribuies,
pela insero institucional e pela inconsistncia da ideologia
profissional entre os delegados. Tal iderio enraza-se na crena de
que as profisses tm como misso a prestao de servios de qualidade
sustentada pela expertise, agindo com independncia em relao ao
cliente, ao capital e ao Estado. Estes no so os valores dominantes
partilhados no cotidiano da instituio e nem correspondem imagem
pblica da profisso.
Segundo Halliday (1987) as profisses normativas como as do mundo
do Direito diferenciam-se das profisses cientficas, por reunirem as
formas tcnicas e morais de autoridade profissional.
"As profisses normativas perdem a autoridade da cincia mas assim
obtm um mandato mais amplo que se estende extensivamente sobre o
terreno da moral." (Halliday, 1987:36) "Pode-se afirmar que, quanto
mais normativo o ncleo epistemolgico do conhecimento profissional,
mais preparada estar a profisso para exercer a autoridade moral em
nome da expertise, e assim, maior ser o potencial de sua amplitude
de influncia" (Halliday, 1987:41). Para esse autor, o fato de o
Direito lidar com normas sociais lhe confere um mandato moral
perante a sociedade, para alm da autoridade tcnica tpica das
profisses cientficas e acima dos interesses especficos da poltica
convencional, mas as instituies onde esta autoridade exercida
influenciam seu resultado, podendo favorec-la ou constrang-la. As
esferas institucionais primrias so aquelas centrais profisso,
portanto propcias para se obter legitimidade profissional completa.
No caso do Direito, trata-se do sistema legal e das instituies
como, Judicirio, Ministrio Pblico,
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OAB e advocacia. As esferas institucionais secundrias so
definidas como aquelas onde a prtica dos profissionais limitada e
eles tm uma legitimidade circunscrita porque o foco de atuao da
organizao no pertence ao ncleo do conhecimento especializado
obtido. Isso ocorre com a segurana pblica e a polcia em relao ao
campo jurdico, havendo perda de legitimidade e contestao do
monoplio profissional (Halliday, 1987:41-2).
Exercer o mandato do conhecimento nas instituies primrias, como
os fruns resulta em maior legitimidade profissional do que nas
delegacias. Se a esse dado do sistema das profisses e de sua
competio interna se juntar a imagem pblica da polcia exposta hoje
politizao do debate sobre o policiamento, s crticas de
especialistas e leigos sobre sua atuao, s denncias de conduta
imprpria e de envolvimento da "banda pobre" com o crime organizado,
ao questionamento sobre seu mrito e sua formao acadmica, mina-se o
alicerce da autoridade profissional e da ideologia de prestar
servios de qualidade com independncia. Quando todos esses fatores
se juntam, a reputao da carreira est em perigo para alm da perda de
legitimidade perante a elite de bacharis, j que a contestao da
legitimidade profissional comum no mundo do Direito, que se espalha
por uma ampla gama de esferas institucionais secundrias pblicas e
privadas.
A maior vulnerabilidade que a carreira de delegado de polcia
experimenta hoje como profisso reside na ambigidade do apego do
grupo ao ethos do profissionalismo. Embora seu contedo seja
apregoado h dcadas por grupos dentro da corporao, os critrios da
poltica convencional predominaram historicamente. Na ordem
democrtica, a autoridade da carreira no se sustenta apenas por elos
com os poderes estabelecidos. Junto com o ideal de prestar servios
especializados de qualidade, a transparncia ganha valor para
legitimar as instituies pblicas, entre elas a polcia.
Na origem da funo de policiar a sociedade escravocrata
brasileira, o conflito social entre ordem e resistncia, entre
estabelecidos e outsiders deixou evidente a diviso entre aqueles
que delegavam o mandato moral e aqueles que eram o alvo da ao
policial. Naquela estrutura, as atribuies dos delegados eram
cindidas na essncia de suas relaes com a sociedade, constrangendo a
germinao do ethos profissional que brotou no mundo do Direito.
Quando a carreira surge em So Paulo, ela decorre de uma iniciativa
governamental centralizadora, no incio do sculo XX, para controlar
o vnculo dos delegados com o mandonismo local.
As dificuldades cotidianas dos delegados em partilharem os
valores do profissionalismo foram sentidas pela populao e formaram
a base da opinio pblica. A percepo que os delegados tm disso se
revela na nfase discursiva que hoje do s tarefas voltadas para a
comunidade, resoluo de pequenos conflitos, assistncia e ao
atendimento do cidado destacando como as delegacias constituem-se
em instituio nica, com as portas abertas 24 horas por dia para
atender s mais diversas demandas ali encaminhadas pela populao.
Essas atribuies denominadas de "feijo com arroz", subestimadas
internamente frente ao prestgio da investigao e identificao da
autoria do delito, ganham relevncia quando a questo da legitimidade
sobe na estima coletiva, fragilizando a autoridade da fora
policial.
Sob a ordem democrtica em vigor, com mais possibilidades de
vocalizao do interesse pblico e melhores recursos institucionais
para defend-lo, a prestao de servios comunidade torna-se chave para
a redefinio da imagem da polcia junto sociedade. Nos primrdios da
carreira de delegado de polcia, a funo repressiva no precisou ser
balanceada pela funo comunitria da atividade policial. Neste
sentido, a sociedade brasileira tem hoje mais instrumentos para
constranger a ao policial do que tinha quando os valores
determinantes estavam relacionados apenas s elites dominantes. A
mudana na composio dos grupos sociais que influenciam os valores e
a opinio pblica tambm chegou ao mundo da polcia alterando o contedo
do que compete ao grupo profissional realizar .
Em resumo, este estudo explora os fatores internos e externos
profisso de delegado de polcia para condicionar sua morfologia
atual, que analisado atravs de dados coletados no survey
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"Perfil social e ideolgico dos delegados de polcia"1, realizado
pelo IDESP, em 2001/2002, com apoio da Fundao Ford e da Fapesp.
Partindo de uma perspectiva histrica, o paper vai acompanhar a
trajetria desta carreira, identificando os constrangimentos ao
profissionalismo. O MODELO TERICO DO PROFISSIONALISMO
Segundo Freidson (2001) , a lgica de mercado baseia-se no
princpio da livre-concorrncia; a lgica burocrtica baseia-se no
princpio gerencial da administrao racional-legal e a lgica do
profissionalismo sustentada pelo princpio ocupacional. Cada uma
dessas lgicas so alimentadas por ideologias distintas que competem
para influenciar a opinio pblica e apresentar-se como alternativas
mais apropriadas para a organizao do trabalho. O iderio neoliberal
da lgica de mercado critica a forma como o profissionalismo se
estrutura, atacando o monoplio de mercado que acompanha a
obrigatoriedade de possuir diploma superior da profisso que se vai
desenvolver. Essa crtica foi reforada pelos movimentos dos
consumidores (Consumer's Choice), que advoga pela liberdade de
escolha do servio que o cliente quer contratar. Tambm se condena o
fechamento profissional, sua elitizao e distanciamento do universo
dos clientes. Competio e consumismo so as palavras-chave que
resumem a ideologia do mercado livre. O saber prtico predomina, o
tempo de permanncia na mesma ocupao baixo, com muita mobilidade
ocupacional e geogrfica, a especializao da diviso do trabalho de
tipo cotidiano, desencorajando-se a padronizao j que as trajetrias
de carreira so irregulares. A porta de entrada no mercado de
trabalho aberta e decorre muitas vezes da escolha do consumidor. O
treinamento escolar baixo frente ao treinamento no trabalho.
O iderio burocrtico ataca o profissionalismo principalmente a
partir da ao do Estado procurando controlar as profisses atravs de
mecanismos de superviso/avaliao, concebendo-as como sinecuras e/ou
como organizaes corporativas. As vises difundidas por essas formas
concorrentes procuram minar a aceitao pblica do profissionalismo,
que se alastrou no sculo XX, denunciando o ideal de servio como
recurso discursivo para acobertar os interesses especficos desses
grupos sociais. A ideologia burocrtica sintetizada pela valorizao
do carter administrativo e da eficincia. O tipo de especializao que
predomina na diviso do trabalho do modelo burocrtico de base
mecnica, j que ele controlado hierarquicamente; a forma de ingresso
controlada pelo pessoal administrativo; a trajetria de carreira
vertical dentro da mesma firma, e o tempo de permanncia na ocupao
mdio, havendo significativo treinamento escolar.
Com o objetivo de colaborar para o amadurecimento analtico das
profisses superiores, Freidson (2001: 127) rene cinco
caractersticas que tipificam o profissionalismo de forma ampla e
abrangente, a saber: 1) um tipo de trabalho especializado da
economia formal, com um corpo de base terica de
conhecimento e habilidades discricionrios e que receba um status
especial na fora de trabalho; 2) jurisdio exclusiva em uma dada
diviso do trabalho controlada pela negociao entre as
ocupaes; 3) uma posio protegida no mercado de trabalho interno e
externo, baseada em credenciais
qualificadas criadas pela ocupao; 4) um programa formal de
treinamento desenvolvido fora do mercado de trabalho , que
produza
credenciais qualificadas controladas pela ocupao em associao com
o ensino superior, e 5) uma ideologia que priorize o compromisso
com a realizao de um bom trabalho em vez do
ganho financeiro e da qualidade em vez da eficincia econmica da
atividade. Tendo o modelo terico de Freidson (2001) como referncia
para a anlise da carreira de
delegado de polcia, resgataremos a trajetria desta ocupao
comparando-a com a lgica de classe,
1 Esse projeto foi coordenado por Maria Tereza Sadek e
participaram Maria da Gloria Bonelli, Rogrio Bastos Arantes,
Luciana Gross Cunha, Rosngela Cavalcante, Alvino Sanches, Humberto
Mizuca e Sergio Miceli. A parte histrica apresentada neste trabalho
contou com o apoio do CNPq, atravs de uma bolsa de produtividade em
pesquisa concedida a autora do paper.
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da burocracia e da profisso. Como as atividades dos delegados de
polcia foram se aproximando de uns e se distanciando de outros
desses tipos ideais no seu percurso histrico no Brasil? Quais os
contrastes com as demais carreiras do Direito no que se refere ao
profissionalismo? Quais os constrangimentos ao ethos profissional?
A relao de represso e resistncia entre a polcia e os grupos sociais
subalternos, que marcou a construo da ordem durante o perodo
imperial brasileiro (Holloway, 1997), poder dar lugar ao elo entre
mandato moral e prestao de servios de qualidade (Halliday, 1987)
como valor a orientar a relao entre os delegados e a
comunidade?
PROFISSO E POLTICA
Na concepo apresentada acima, a poltica convencional um dos
interesses especficos que concorre com a ideologia profissional.
Ela vai no sentido oposto ao da crena na misso de prestar servio de
qualidade com independncia. Halliday (1999) enfatiza que o fato de
a profisso delimitar sua fronteira com a politizao no significa que
ela exclui-se da poltica. Ao procurar se identificar assim, a
profisso faz uma poltica prpria protegendo-se do custo da poltica
convencional, ao mesmo tempo que se pe em um patamar
ideologicamente acima dos embates pelos interesses especficos.
Os elos polticos dos delegados de polcia so conhecidos da
historiografia brasileira. Muitas das reformas implementadas nos
servios policiais do pas foram motivadas pelo propsito de controlar
tal politizao. A literatura estrangeira sobre a polcia tambm
enfatiza seu papel poltico e a preocupao dos governantes em mant-la
sob seu comando, j que essas organizaes no ficariam inertes, apenas
executando o ordenado por tais autoridades. A maioria dos estudos
reconhece que, apesar do iderio da neutralidade da polcia, policiar
uma dimenso de poder, sendo de essncia poltica.
Reiner (2000) parte deste pressuposto para distinguir o
significado poltico do sentido politizado do policiamento. Segundo
ele:
"Em um sentido amplo, todas as relaes que tm uma dimenso de
poder so polticas. O policiamento inerentemente e inevitavelmente
poltico neste sentido"(Reiner, 2000: 8). Mas do fato de ser poltico
no decorre que tenha de ser politizado. Analisando a histria
da polcia inglesa, ele mostra como a necessidade de
despolitiz-la decorre da forte oposio poltica que a criao desse
tipo de organizao enfrentou na Gr-Bretanha, nas primeiras dcadas de
seu estabelecimento, que data de 1829. A aceitao legtima do
policiamento foi sendo construda por cerca de cem anos (1856-1959),
atingindo seu pice na dcada de 1950, com alto grau de insulamento e
consentimento para com a polcia, em um contexto de pacificao das
relaes sociais. As mudanas dos anos 60 politizaram de novo a
polcia, com a insubordinao social , a intensificao dos conflitos e
a violncia policial. Surgem as denncias de corrupo, preconceitos e
de abuso de poder. No fim da dcada de 70 e incio de 80, predominou
o conflito poltico sobre o rumo e o controle do policiamento,
polarizado entre concepes ortodoxas (lei e ordem) e revisionistas
(direitos humanos). A partir da, os partidos Conservador e
Trabalhista construram algum consenso sobre o papel da polcia,
buscando despolitiz-la e retomar a legitimidade perdida, atravs do
policiamento comunitrio voltado para a soluo de problemas e para a
qualidade do servio.
Monet (2001) parte de uma perspectiva mais preocupada com as
conseqncias perigosas da autonomia do profissionalismo no mbito da
polcia. Segundo ele, a questo sociolgica colocada :
"At que ponto as formas de organizao policial facilitam, ou ao
contrrio conseguem limitar, a inevitvel propenso dos corpos
policiais - e de todos os corpos de profissionais incumbidos de uma
funo social importante - a se autonomizar, a tentar se libertar de
todos os controles que tentam enquadr-los, para escapar dupla
presso, a do poder poltico e a das expectativas sociais, que tende
a instrumentaliz-los?" ( p. 27).
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Seu olhar reconhece a funo da polcia como eminentemente poltica,
apoiando sua instrumentalizao pelo poder poltico. Para conter a
tendncia a tornar-se independente, concebe-a como uma estrutura
hierarquizada cujo topo est sempre no governo. A fora policial
exercida por agentes subordinados a autoridades pblicas que os
recrutam, remuneram e controlam. A autoridade policial (como os
chefes de polcia e o delegados) se diferencia dos agentes e usufrui
de mais independncia. A reconstruo histrica das relaes entre
autoridade policial e poltica ser focalizada a seguir,
procurando-se definir a autonomia profissional que compete a eles e
as possibilidades de controle da politizao deste corpo, dentro do
modelo do profissionalismo. ORIGEM DA CARREIRA DE DELEGADO DE
POLCIA NO BRASIL E SEU DESENVOLVIMENTO EM SO PAULO
O quadro funcional composto de "chefe de polcia", "delegado de
polcia" e "subdelegado" surgiu com a centralizao poltica no Imprio,
em 1841. Elas sinalizavam a preocupao com a construo de uma
estrutura hierrquica para a funo de polcia judicial e investigativa
de cunho civil, sujeita ao controle do Gabinete e do imperador,
portanto, ainda no organizada com as caractersticas de carreira .2
Os delegados substituram os juzes de paz do perodo regencial em
vrias atribuies, com o objetivo de conter o poder local frente
autoridade central. O predomnio dos juzes de paz na viabilizao da
descentralizao poltica na funo policial ps-Independncia foi de 1827
at a reforma de 3 de dezembro de 1841.
Com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, ocorreu
a primeira mudana no formato organizacional da atividade de polcia
durante o perodo monrquico, com a criao da Intendncia Geral de
Polcia . O intendente de polcia tinha cargo de desembargador e
posio de ministro de Estado, ficando lotado no Rio de Janeiro. O
intendente podia autorizar outra pessoa a represent-lo, surgindo
desta atribuio o uso do termo "delegado" no Brasil.
Vieira e Silva (1955) contabilizam trs grandes reformas3 na
esfera policial durante o Imprio, procurando "deter a marcha
inexorvel da criminalidade" (p.146). Em 1825, houve uma tentativa
de mudana, com a designao de comissrios de polcia para atuar nas
provncias como assistentes dos intendentes, auxiliados por cabos de
polcia nas tarefas do policiamento. Segundo Holloway (1997), essas
medidas no chegaram a vigorar plenamente, sendo substitudas dois
anos depois. O regulamento do novo cargo indicava um retorno ao
esprito absolutista, refletindo as preocupaes com a ordem pblica e
com as atividades consideradas ameaadoras a ela, que vinham
ocupando a ateno das elites. A primeira reforma que foi
efetivamente implementada esteve em vigor entre 1827 e 1841. Ela
introduziu o juiz de paz previsto na Constituio de 1824, com
atribuio policial e judiciria, e extinguiu os comissrios e os cabos
de polcia. A principal
2 A estrutura de carreira comea a ser montada em So Paulo a
partir de 1905 com a nomeao de bacharis para as trs primeiras
classes de delegados, pelo presidente do Estado, com remunerao. A
vitaliciedade proposta no projeto da primeira regulamentao no foi
aprovada ento. Em 1948 estabelecido o ingresso por concurso de
provas e ttulos e as classes passam a ser ocupadas por bacharis.
Hoje a carreira tem 6 classes ( 1a, 2a, 3a, 4a, 5a, e especial). O
Delegado Geral de Polcia no possui mandato, sendo escolhido e
dispensado pelo governador. A carreira possui vitaliciedade,
irredutibilidade dos salrios, mas no regida pela inamovibilidade,
permitindo as transferncias e remoes de delegados. Tambm perderam a
equiparao salarial com as carreiras jurdicas de juiz e promotor. O
critrio de promoo atual divide-se em metade por mrito e metade por
antigidade, alternadamente. A demisso se d por justa causa ou a
pedido. 3 A palavra reforma na anlise destes dois autores tem
significado de reorganizao policial, aumento de pessoal e modificao
na estrutura interna, preservando um sentido de evoluo e, por
vezes, de continuidade. Embora essas reformas tenham, em geral,
razes polticas e de interesse do governo, a ideologia que os
autores recorrem para justific-las reproduz o padro comum na
polcia, de enfatizar problemas na sociedade. Assim, inicialmente
atribui-se a necessidade de mudanas avalanche de crimes e, a partir
do difuso de idias anarquistas, de movimentos grevistas no incio do
sculo XX e da Revoluo de 1924, d-se nfase tambm preocupao com a
ordem poltica e social.
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diferena entre os comissrios de polcia e os juzes de paz vinha
da origem da autoridade judicial. Enquanto a autoridade do
intendente e do comissrio emanava do monarca, a do juiz de paz
vinha da eleio na localidade.
Em 1831, aps agitaes armadas que culminaram na abdicao de D.
Pedro I, foi aprovada na Assemblia Geral a lei de 6 de junho de
1831, dando poderes ao governo central na manuteno da ordem pblica.
"Essa lei marcou o incio da centralizao conservadora, pelo menos no
exerccio do poder policial " (Holloway, 1997:76). As preocupaes com
a ordem social e com a montagem de um estrutura repressiva 4 capaz
de garanti-la resultaram na criao da Polcia Militar em 1831 e na
Secretaria de Polcia em 1833, que foi o embrio da Polcia Civil, em
substituio Intendncia Geral de Polcia, na Corte. No comando da
Polcia Militar, ficou Caxias e na Secretaria de Polcia, Eusbio de
Queiroz. Eles foram os responsveis pela construo institucional de
uma aparato policial repressivo slido. Eusbio de Queiroz pde pensar
a organizao policial na perspectiva da centralizao, j que
permaneceu na funo entre 1833 e 1844. Participou da montagem do
modelo que substituiu os juzes de paz pelos delegados redefinindo
suas responsabilidades e assumiu a chefia de polcia do Rio quando o
cargo foi criado, em 1841,com a Polcia Militar respondendo Chefia
de Polcia Civil.
Em 1841, houve a segunda reforma, com a centralizao poltica no
Imprio, modificando-se a estrutura da polcia. A Lei 261, de 3 de
dezembro, determinou que os chefes de polcia seriam escolhidos
entre os desembargadores e juzes de direito, e que os delegados e
os subdelegados podiam ser nomeados entre juzes e demais cidados,
tendo autoridade para julgar e punir. A lei estabeleceu as funes de
polcia administrativa e de polcia judiciria. Na primeira, os
delegados assumiam atribuies da Cmara Municipal, como as de
higiene, assistncia pblica e viao pblica, alm daquelas de preveno
do crime e manuteno da ordem. Na funo judicante, podiam conceder
mandados de busca e apreenso, proceder a corpo de delito, julgar
crimes com penas at seis meses e multa at cem mil-ris. O
regulamento de julho de 1842 , instituiu o controle civil sobre a
polcia militar 5 , que foi reforado pelo regulamento de janeiro de
1858. (Holloway, 1997: 170)
Segundo Vieira e Silva (1955: 166), a posse do primeiro chefe de
polcia de So Paulo, em 1842, marca o incio de uma fase
"semi-autnoma" da atividade policial da provncia, em relao Corte. O
nomeado foi o desembargador Rodrigo Antonio Monteiro de Barros,
filho do Visconde de Congonhas do Campo. A organizao policial de So
Paulo, tal como o desenvolvimento da provncia, era bem incipiente
perto da vida na corte do Rio de Janeiro, caracterizando o cargo de
chefe de polcia da provncia de So Paulo no como uma misso desejada,
mas como um patamar a impulsionar a ascenso, um trampolim de
carreira para nova posio. Assim, no se identifica uma permanncia no
posto como a de Eusbio de Queiroz, que liderou a organizao da
polcia por 11 anos no Rio. O desembargador Monteiro de Barros
ocupou este cargo por trs meses e meio. Os dois chefes de polcia
seguintes ficaram em torno de um ano. Se as caractersticas da
provncia em termos de urbanizao e desenvolvimento foram melhorando,
o que poderia tornar a nomeao mais cobiada, a posio revela-se muito
sujeita instabilidade poltica. Durante o Imprio, houve uma
estabilidade maior entre 1844 e 1857, com trs chefes de polcia
ocupando o cargo por perodos prximos a quatro anos. Nos 47 anos que
vo da criao do cargo em 1842 at a queda do Imprio, a provncia de So
Paulo teve 36 chefes de polcia, uma mdia de dezesseis meses de
permanncia para cada um. 6
Alm da instabilidade na permanncia frente da Chefia de Polcia ,
registra-se uma srie de disputas tentando moldar os rgos de
segurana mais adequados s distintas concepes que 4 J existiam a
Guarda Municipal e a Guarda Nacional. 5 A fora militar provincial /
estadual recebeu as seguintes denominaes antes de chamar-se Polcia
Militar: Guarda Municipal Permanente, Corpo Policial Permanente e
Fora Pblica. 6 A lista de todos os chefes de polcia e secretrios de
segurana de So Paulo entre 1842 e 1944 est em Vieira e Silva
(1955). Love (1982) possui estes dados para o perodo 1889-1930. As
informaes para os anos subsequentes foram fornecidas pela Delegacia
Geral de Polcia e esto em Bonelli (2002).
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priorizavam a perspectiva central, provincial ou local.
Fernandes ( 1973: 79) apresenta as foras repressivas que existiram
na provncia de So Paulo durante o Imprio, apontando as dificuldades
para a preservao da ordem pblica e para se institucionalizar uma
ordem dominante na organizao da polcia. Alm da Guarda Municipal
criada e extinta em 1831, montada a Guarda Nacional no mesmo ano, a
Guarda Municipal Permanente em 1832, a Guarda Policial em 1834, a
Companhia de Pedestres em 1850, a Guarda Municipal da Provncia em
1866, a Polcia Local em 1868 e a Guarda Urbana em 1875. Metade
delas teve curta durao.
A terceira reforma na estrutura da polcia civil foi a de 1871.
Ela separou a funo judicial da policial e regulamentou o inqurito
policial, definindo as funes dos delegados de forma mais restrita
do que a estabelecida em 1841, separando o poder de prender do
poder de julgar, reservado aos magistrados. A partir da, os chefes
e delegados de polcia no poderiam mais exercer a magistratura ao
mesmo tempo. Holloway (1997:228) aponta duas conseqncias relevantes
desta reforma: a diferenciao do sistema policial e do judicial, com
os delegados e subdelegados mantendo a responsabilidade pela formao
de culpa no inqurito policial, encaminhando-o a seguir para os
promotores ou juzes; e a queda no prestgio social dessas posies,
deixando de ser uma ocupao exclusiva de bacharis quando os
magistrados pararam de exerc-la. A origem de classe partilhada com
as elites dominantes comeou a se diversificar.
A separao da funo judicial da policial teve outras conseqncias,
que levaram ao enfraquecimento da polcia civil. Os delegados e
subdelegados passaram a ser dependentes financeiramente dos coronis
locais, ocupando um posto com poder poltico. Na provncia de So
Paulo s havia remunerao para os chefes de polcia e para os
funcionrios superiores da capital, de Santos e de Campinas (Love,
1982:178). Essa debilidade tambm repercutiu na perda de fora da
polcia civil frente militar. O delegado de polcia, que surgiu em
1841 como uma interveno centralizadora nas localidades, tornou-se
dependente das elites locais a partir de 1871. O cargo do delegado
ficou comprimido entre a inteno de sua criao e as condies objetivas
de seu exerccio. J ter uma fora estadual armada representava para o
presidente da provncia a garantia de autonomia poltica perante o
poder central e os interesses locais. A perda de prestgio social do
cargo de delegado neste cenrio foi decisivo para desequilibrar a
balana entre polcia civil e polcia militar.
O carter poltico da Chefia de Polcia tornou o exerccio da funo
mais instvel com a chegada da Repblica, que trouxe consigo
dificuldades para se construir um novo pacto de governabilidade. Em
So Paulo, para ocupar um cargo carregado de conotao poltica como o
de chefe de polcia aps a Proclamao da Repblica, o primeiro nomeado
foi Bernardino de Campos, com perfil de poltico tarimbado, sendo
deputado provincial e presidente da Comisso Executiva do Partido
Republicano Paulista. O problema da politizao do cargo que ela tem
um custo elevado, proporcional ao atrito que gera. Assim, a posio
da cpula da polcia civil fica instvel tanto devido militarizao de
outro rgo, quanto instabilidade que sua fora poltica provoca (tambm
sendo armada). Nos sete primeiros anos da Repblica (1889-1906) ,
outros dezenove doutores ocuparam o posto de chefe de polcia do
Estado de So Paulo, mas estabelecida a governabilidade, tratou-se
de extinguir o cargo em 1906, que se chocava com o secretrio de
Justia. Uma permanncia semelhante de Eusbio de Queiroz na
Secretaria de Polcia do Rio s vai ocorrer com Washington Luiz,
nomeado para a Secretaria de Justia, acumulando a chefia de polcia
entre 1906 e 1912. Esta pasta passou a ser denominada de Secretaria
da Justia e da Segurana Pblica at 1924. Segundo Souza (1992: 114),
Washington Luis foi o principal beneficiado com a extino da Chefia
de Polcia, acabando com a diviso de funes entre o chefe e o
secretrio. "Com a reforma, portanto, o Secretrio de Justia saiu
fortalecido pois passou a acumular e a centralizar as atividades
polticas e policiais de todo o Estado nas suas prprias mos." Foi
nesse contexto que se impulsionou a segurana pblica em So Paulo,
sob o governo de Jorge Tibiri, com a organizao inicial da carreira
e a institucionalizao da rea partindo diretamente da Secretaria. O
intuito era o de criar uma estrutura burocrtica, controlada pelo
governante e distanciada da poltica convencional.
-
9
AS REFORMAS DA POLCIA PAULISTA NA PRIMEIRA REPBLICA
A lei 979, de 23/12/1905, reorganizou o servio policial do
Estado e estabeleceu que os chefes de polcia, os delegados de
polcia e os subdelegados seriam de livre nomeao e demisso do
presidente do Estado; que das cinco classes da carreira, as trs
primeiras s poderiam ser preenchidas por bacharis em Direito, e que
estes teriam preferncia nas nomeaes para quarta e quinta classes.
Definiu tambm os vencimentos e a progresso na carreira, com a
exigncia de que o nomeado para uma classe estivesse servindo
naquela imediatamente inferior. A partir de 1906, os delegados
comearam a construo de uma carreira menos atrelada ao mandonismo
local, mas controlados pelo governo do Estado, que podia
demiti-los. Este ponto foi polmico na Assemblia Legislativa, j que
o projeto inicial previa a vitaliciedade do delegado, mas
predominou o entendimento de que se tratava de um cargo de confiana
do presidente do Estado e, portanto, demissvel. Em termos de tipo
ideal, a carreira aproximava-se da lgica burocrtica, mas permeada
pela poltica.
Na dcada de 1910, teve incio o processo de especializao do
aparato da polcia civil dentro de uma perspectiva cientfica , com o
desenvolvimento de tcnicas de investigao e identificao criminal -
como a datiloscopia, o retrato falado, o uso da fotografia e a
percia - o registro civil da populao alm da emisso dos passaportes,
os servios mdico-legais, a inspeo e fiscalizao de veculos, a
fiscalizao e censura das diverses pblicas, e a assistncia policial
para os acidentados nas ruas, os desabrigados e desocupados.7
A perspectiva cientfica, com o aprimoramento do conhecimento
especializado sobre o trabalho policial preventivo, repressivo e
investigativo foi estimulada como alternativa aos elos com a
poltica convencional. A despolitizao ficou na aparncia da carreira
de perfil burocrtico, com recursos tcnicos para o exerccio da funo.
Na prtica, ela foi introduzida para favorecer um lado da luta
poltica entre centralizao e descentralizao. A carreira era
politicamente controlada de cima, j que o presidente do Estado
nomeava e demitia os membros. O percurso da trajetria profissional
comeou para os delegados de polcia por razes polticas e com formato
burocrtico. Eles enfrentaram maiores dificuldades para avanar neste
caminho do que os magistrados. A perda do prestgio social dos
delegados, a elevada politizao do cargo, o temor dos governantes de
perder o controle sobre a polcia e a baixa identificao do grupo com
o iderio da expertise atuaram como constrangimentos
profissionalizao. Os juzes conseguiram de Washington Luis o
estabelecimento do ingresso na magistratura atravs de concurso na
Reforma de 1921, resultando em maior independncia funcional. Em
1926 os magistrados contavam com a inamovibilidade, a
irredutibilidade de vencimentos e a vitaliciedade.
O regulamento da carreira de delegado foi criado para dar alguma
padronizao a situaes de prtica da autoridade policial muito
diversas, inclusive na posse ou no de conhecimentos jurdicos, que
distinguiam a condio social. Com a carreira, a dedicao exclusiva e
contnua funo garantia uma perspectiva mais profissionalizada. A
passagem abaixo ilustra a vulnerabilidade dos vnculos dos delegados
com a atividade policial, na poca de organizao da carreira, no caso
em Campinas, ento a regio mais relevante do Estado. O trecho foi
extrado de um artigo de Pelgio Lobo no peridico Investigaes,
revista do Departamento de Investigaes, sobre os precursores da
polcia de carreira, no qual homenageava Raul Soares, senador
hermista e governador de Minas Gerais, que havia sido delegado em
Campinas antes de voltar terra da famlia para substituir um irmo na
poltica, depois de este ter sido assassinado a mando de um
adversrio.
"Em cidades maiores e de mais alto nvel de cultura cvica, como,
por exemplo, Campinas, as funes de delegado de polcia antes mesmo
da instituio da polcia de carreira eram confiadas a bacharis de
direito, alguns dles juristas consagrados que deram aos cargos um
prestgio extraordinrio. De minha terra lembrarei, entre os
delegados de polcia que eram
7 Sobre a especializao da polcia durante a Primeira Repblica ver
Souza (1998).
-
10
grandes advogados criminais - Jos Manoel Lobo, que deixou a
delegacia para assumir uma cadeira de deputado federal, em 1903,
conservando-se na representao da bancada paulista at 1924, quando
veio a ocupar a pasta de Secretario do Interior (Educao e Sade), do
governo de Carlos de Campos; Paulo Machado Florence, que da polcia
passou a promotoria pblica, servindo com brilho perante os dois
grandes juzes, Soriano de Souza e Pinto de Toledo; e Raul Soares de
Souza, jurista de polpa e homem de raro denodo pessoal, que,
nascido em Minas, e fixando-se em Campinas de 1901 a 1909, passou
pela Delegacia de Polcia com proveito para o servio e modelar
circunspeo. At ento no militara na poltica e em Campinas s se
consagrara advocacia e s belas artes." (Lobo, Investigaes 3, 1949:
18)
O exemplo mostra a facilidade com que aqueles que tinham as
relaes apropriadas
transitavam entre a advocacia criminal, a promotoria pblica, a
delegacia de polcia e a poltica sem impedimentos e delimitaes de
jurisdio, o que j no ocorria com a magistratura de So Paulo desde a
criao do Tribunal da Relao, em 1873. Quando o Tribunal foi
organizado, a dedicao exclusiva dos juzes e desembargadores
carreira j estava estabelecida. A construo da identidade
profissional e de um ethos prprio pressupe a permanncia na
atividade para se partilhar valores, sociabilidade e interesse
comum. Isso um contraste evidente dos magistrados com as demais
trajetrias profissionais no mundo do Direito desta poca, e ter
conseqncia sobre o prestgio dessas atividades.
Outro aspecto que o exemplo acima evidencia o significado que o
prestgio e o verniz social desses delegados tm para as geraes
subseqentes. O status do grupo profissional um ponto sensvel,
permanentemente sujeito s disputas por poder simblico no mundo do
Direito.
Em 1916, ocorre a criao da Delegacia Geral de Polcia com a
segunda reforma no perodo republicano, avanando na
institucionalizao da polcia civil dentro da perspectiva burocrtica.
8 Embora o delegado geral tivesse alguma autonomia sobre a
administrao da polcia, seguia respondendo ao secretrio, sem o papel
poltico que teve quando a Chefia de Polcia reportava-se diretamente
ao presidente do Estado. A concepo de segurana que orientou a ao
dos governos vinculados ao PRP - Partido Republicano Paulista, na
Primeira Repblica foi a de montar uma polcia estadual
'profissionalizada', controlada pelo governo, tendo um corpo com
treinamento militar. Quanto politizao do cargo de chefe de polcia,
os governos do PRP oscilaram, extinguindo ou restabelecendo o posto
diversas vezes durante o perodo.
A militarizao da polcia no mbito do Estado de So Paulo tambm
teve incio com Jorge Tibiri, contratando a Misso Francesa para
instruir a Fora Pblica.
"A Misso chega a 6 de maro de 1906 e s viria a se retirar em 5
de agosto de 1914, em virtude da declarao da Primeira Guerra
Mundial. Em 1919 a Misso retorna a So Paulo, sendo chefiada pelo
prprio Nrel. " (Fernandes: 1973: 159). "E em termos de 'pequeno
exrcito' que passam a ser encaradas as necessidades da Fora Pblica.
At 1930 esta sofrer melhoramentos contnuos, desde prdios,
armamentos, meios de locomoo, assistncia mdico-hospitalar, canil,
pombal, telgrafo, artilharia, at a criao de uma esquadrilha de
aviao. A Primeira Repblica inaugura, de fato, o perodo ureo desta
fora repressiva."( p. 161)
As conseqncias da militarizao da polcia foram sentidas na Chefia
de Polcia e na
Secretaria de Segurana Pblica por vrias dcadas. No perodo
imperial e na Primeira Repblica
8 Nesta reforma foram tambm criadas sete delegacias regionais
reorganizando-se anteriores e abrindo-se novas ( Santos, Campinas,
Ribeiro Preto, Guaratinguet, Botucatu, Araraquara e
Itapetininga).
-
11
nomearam-se apenas desembargadores e bacharis para esses cargos,
mas entre 1930-45, onze titulares destes postos tinham patentes
militares. 9
A ameaa que a Revoluo de 1924 representou ordem estabelecida
influiu na mudana da situao institucional da polcia civil10 , com o
restabelecimento da Chefia de Polcia e a extino do cargo de
delegado geral. A carreira, que surgira como uma medida para
controlar as autoridades policiais atravs dos recursos burocrticos
que o governo estadual tinha s mos (nomeao de bacharis para as
posies e cargo remunerado), voltou a ter comando mais autnomo, com
fora poltica e melhor remunerado11. Mas o momento em que ocorreu a
terceira reforma da polcia durante a Primeira Repblica foi o da
sucesso de Washington Lus, na presidncia do Estado, por Carlos de
Campos. Washington Lus esteve frente da lei que introduziu a
carreira no servio policial em 1905 e a Reforma do Judicirio de
1921. Com Carlos de Campos, filho do lder do PRP e ex-chefe de
polcia Bernardino de Campos12, restabeleceu-se o cargo sem a
aparncia despolitizada . O nomeado - Roberto Moreira, tambm do PRP
- aps sua exonerao seguiu a militncia poltica no partido e na Cmara
de Deputados.
Alm do cenrio mundial do ps-Primeira Grande Guerra, que trouxe a
questo do comunismo, as preocupaes com a ordem poltica e social
dentro do Estado de So Paulo ocuparam o centro das preocupaes da
polcia, e a sua reorganizao foi conseqncia deste quadro. Obteve-se
maior autonomia para a pasta policial e ampliaram-se as delegacias
auxiliares da capital, as circunscricionais e as regionais. O novo
Gabinete Geral de Investigaes passou a reunir sete delegacias
especializadas, entre elas a de Ordem Poltica e Social que ganhou
porte de especializao pela primeira vez. Outras reas auxiliares da
polcia foram criadas ou ganharam status superior na Reforma de
1924, como a Escola de Polcia13, o Gabinete Mdico Legal, o Posto
Mdico de Assistncia Policial, a Inspetoria da Polcia Martima do
Porto de Santos e algumas delegacias tiveram nova classificao. A
investigao criminal destacava-se como a atividade mais prestigiada
e a que melhor reproduzia a valorizao da perspectiva cientfica para
a identificao da autoria do delito. Segundo Souza (1998), na
Primeira Repblica priorizaram-se as investigaes dos crimes de
sangue, e entre estes os sexuais e contra a honra. Em 1926,
voltou-se a ter uma Guarda Civil da capital - questo sempre polmica
entre a polcia civil e a polcia militar, por alterar a distribuio
de foras entre as duas polcias - elevando a institucionalizao, o
contingente e os recursos da polcia civil em relao ao que ela tinha
antes.14 Com a sada de Carlos de Campos e de Roberto Moreira em
1927 e aps a posse de Julio Prestes na presidncia do Estado,
reestruturou-se a Secretaria de Justia e Segurana Pblica,
transformando-se a Chefia de Polcia em Repartio Geral de Polcia
subordinada a ela. Embora a autonomia das
9 No interregno democrtico de 1946-1964, 4 secretrios de
Segurana eram militares, e sob o regime autoritrio de 1964 at a
posse de Franco Montoro, em So Paulo, em 1983, outros seis
secretrios foram provenientes das Foras Armadas ou da Polcia
Militar. A partir da, volta-se ao padro anterior de s nomear
bacharis e desembargadores. 10 Sobre a maneira como a polcia viu a
Revoluo de 1924, h um artigo do delegado Guido Fonseca, ex-diretor
da ACADEPOL, na revista da ADPESP 21, 1996). 11 O salrio do
delegado geral de polcia em 1910 era de 18.000$ e o de coronel da
Fora Pblica, que ocupava o mesmo degrau na hierarquia da Secretaria
de Justia e Segurana Pblica, era de 13.200$. O chefe de polcia
recebia 20.000$. Em 1924, aps a extino do cargo de delegado geral,
o chefe de polcia recebia 36.000$ e o coronel da Fora Pblica
24.000$, portanto 50% menos. Dados obtidos em Souza (1998:347-55).
12 Depois do cargo de chefe de polcia, Bernardino de Campos seguiu
sua carreira poltica, sendo deputado na Cmara Federal, presidente
do Estado (duas vezes) , ministro da Fazenda e senador. 13 No Rio
de Janeiro, a Escola de Polcia foi criada em 1910, mas em So Paulo
s se reuniram as condies para tal em 1924. J para a Fora Pblica, a
lei 1244 de 27/12/1910 havia estabelecido o batalho escola com
programas para instruir recrutas e oficiais. ( Souza, 1992: 159).
14 Desde 1897, quando a Guarda Cvica foi organizada, ela era um
grupamento da Fora Pblica.
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12
atribuies policiais ficasse preservada, politicamente
predominava o secretrio de Justia, Antonio Carlos de Sales Jr.
15
A quarta reforma da polcia na Primeira Repblica ocorre em 1928.
A principal caracterstica das medidas adotadas foi a de definir as
atribuies das autoridades regionais, municipais, distritais e dos
inspetores de quarteiro tanto em termos das atividades de polcia
administrativa quanto de polcia judiciria, evitando-se conflitos de
competncia na hierarquia interna. O decreto de Julio Prestes com o
regulamento policial ampliava a obrigatoriedade de o delegado de
quinta classe e de o comissrio de polcia terem diploma de Direito,
e reservava o cargo de chefe de polcia para os doutores ou
bacharis. A hierarquizao do quadro funcional ficou com a seguinte
composio: chefe de polcia, delegados auxiliares, chefe do Gabinete
de Investigao, delegados especializados, delegados de 1a , 2a, 3a ,
4a, 5a, 6a classes, comissrios de polcia, subdelegados de polcia,
suplentes de delegados e subdelegados, inspetores de quarteiro. As
principais posies auxiliares da administrao policial eram:
mdico-legista, escrivo de polcia, escrevente de polcia, inspetor de
segurana, oficiais de justia e a Diretoria da Repartio Central de
Polcia.
Embora a carreira ganhasse maior definio de seus degraus, ela
seguia sem a crucial caracterstica profissional da autonomia,
centralizada e nomeada pelo governo, sujeita demisso, prtica das
remoes e das transferncias por razes externas aos da prestao do
servio policial. As constantes mudanas no rgo de direo da polcia,
afetando sua jurisdio, sua independncia e seu poder demonstram como
a poltica convencional tinha um alto custo para a estabilidade de
sua institucionalizao, sempre que as autoridades policiais de So
Paulo resistiam implementao das medidas ordenadas pelo governo do
qual discordavam. A carreira estava longe de possuir as
caractersticas do profissionalismo. O comando da organizao policial
no possua legitimidade profissional entre os pares. Por outro lado,
quando da mudana na presidncia do Estado, a autoridade do
governante se via ameaada por uma polcia chefiada por um adversrio
ou por um delegado que no era de sua confiana. A autoridade que
guiava o ethos da corporao no era proveniente da ideologia
profissional, mas da concentrao de poder poltico.
A politizao inviabiliza a deferncia e o respeito da organizao
pela autoridade profissional, quando ela facilmente substituda por
razes externas carreira. Nesta situao, os valores partilhados pelos
delegados no so aqueles relacionados expertise, como o conhecimento
cientfico, o mrito, a opinio dos pares, o compromisso com a misso
de prestar servios de qualidade com independncia, que justifique a
exclusividade sobre a rea profissional. Em vez da poltica das
profisses, predomina a poltica convencional.
O topo da organizao era nomeado com base em laos sociais e
polticos, e o conjunto dos delegados de polcia preservava um status
social mais baixo do que aquele que marcara as nomeaes at a Reforma
de 1871. Embora aumentasse o nmero de bacharis, muitas posies ainda
eram ocupadas por leigos, e os titulados eram identificados pela
elite dos doutores como provenientes de cursos mais fracos,
carentes de boa formao. Isso deixava a Chefia de Polcia vulnervel.
Ela no se resguardava atravs do profissionalismo, resistia ao
comando dos adversrios e pagava um preo institucional elevado
quando os ventos da poltica mudavam de lado. A DUALIDADE
PROFISSIONALIZAO - POLITIZAO DA POLCIA NO PERODO GETULISTA
O predomnio da poltica sobre o ethos profissional seguiu durante
os anos 30. O prestgio social atribudo promoo pela via poltica
indicativo de que os valores do profissionalismo no eram a
referncia daquele grupo social. A citao seguinte exemplifica como a
poltica convencional alavancava carreiras e rendia distino social
aos delegados, alm de lhes fornecer autoridade e poder.
15 Genro de Antonio de Pdua Sales, que foi secretrio da
Agricultura (1909-1912) no governo de Albuquerque Lins. Sales Jr.
esteve na Comisso Executiva do PRP entre 1933-34. (Love, 1982).
-
13
A prtica da ocupao patrimonial de cargos policiais ainda era
vigorosa nos anos 1930. Numa relao datilografada, o diretrio do
Partido Democrtico da Lapa indicava os ocupantes dos cargos de
polcia nos bairros da Lapa, gua Branca, Vila Ipojuca, Vila
Leopoldina e Pirituba. Todas as indicaes, sem excees, receberam o
'de acordo' do combativo poltico Adriano Marrey Jr., em 31/10/1930.
Em carta do escritrio de advocacia de J. Pinto Antunes e Lineu
Prestes, endereada ao presidente do Partido Democrtico, em 28 de
fevereiro de 1932, pode-se encontrar a receita para uma boa indicao
de ocupantes de cargos na administrao em geral e na polcia em
particular: "Promover o Dr. Oswaldo Rodrigues Silva que actualmente
delegado em So Joaquim, medida justa e poltica porque trar adheso
de uma grande famlia perrepista de Lorena. No esquecer isto, porque
para nosso prestgio muito representa; o nosso partido ter
extraordinrio impulso . " (Fundo do PD, IHGSP)" (Souza, 1998:
95-96).
A vulnerabilidade poltica do cargo superior da polcia se
intensificou novamente com a
Revoluo de 30. Para um perodo de quinze anos (1930-45),
encontraram-se 39 nomes ocupando a posio de chefe de polcia ou de
secretrio de Segurana Pblica em So Paulo, j que a estrutura da rea
sofreu modificaes constantes, e quando se tinha um deles no
comando, no se tinha o outro. A mdia de permanncia no cargo foi de
menos de cinco meses para cada um. A gesto mais prolongada foi
civil, de Arthur Leite de Barros Jnior, com durao de dois anos e
meio.
No Rio, houve maior estabilidade, com um total de dez chefes
para a mesma poca (Cancelli, 1993:51). S o ano de 1932, marcado
pelo Movimento Constitucionalista, teve dez chefes de polcia em So
Paulo. 16
Getlio Vargas conseguiu manter tal controle sobre a polcia do
Rio de Janeiro com a colaborao de Filinto Muller, que ficou frente
da Chefia de Polcia do Distrito Federal por dez anos (1933-42).
Segundo Cancelli, o aparelho policial do DF no respondia hierarquia
a que estava atrelado, no caso o Ministrio da Justia. De fato, o
chefe de polcia reportava-se diretamente a Getlio. A Presidncia da
Repblica tambm tomou medidas para ter controle sobre o sistema
policial dos estados. Estes, que eram subordinados aos governos
estaduais, passaram a responder polcia do Rio de Janeiro. A enorme
instabilidade em So Paulo demonstra a resistncia da autoridade
policial a tais medidas.
Entre 1930 e 1936, as disputas em torno das distintas concepes
sobre segurana pblica e polcia, sua subordinao justia, sua
autonomia, sua burocratizao ou sua politizao estiveram no centro
das mudanas aprovadas e depois derrubadas. Vieira e Silva (1955)
identificaram quatro alteraes com este contedo no perodo. A Revoluo
de 30 criou a Secretaria de Segurana Pblica em 5/12/1930,
desanexando-a da pasta da Justia em So Paulo e extinguiu os cargos
de chefe de polcia e de diretor da Repartio Central de Polcia. Dias
antes, j havia extinguido a Delegacia de Ordem Poltica e Social,
para deix-la subordinada ao novo comando. Com atribuio policial,
mas sem papel poltico aglutinador, criou os cargos de delegado
geral da capital, delegado geral do interior, superintendente de
Ordem Poltica e Social e inspetor geral da Fora Pblica. O
interventor, coronel Joo Alberto Lins de Barros, reorganizou os
servios policiais dentro da nova tica, em 28/1/1931. Quando foi
substitudo na interventoria, no final de julho de 1931, pelo
desembargador Laudo Ferreira de Camargo, a Segurana Pblica foi
reanexada Secretaria da Justia. O prximo interventor coronel Manoel
Rabelo restabeleceu, em maio de 1932, a Repartio Geral de Polcia e
o cargo de chefe de polcia. O Movimento Constitucionalista eclodiu
depois disso, e a Chefia da Polcia tornou-se muito mais
instvel.
Em 1934, a Secretaria da Segurana volta separada da pasta da
Justia, por determinao de Armando de Salles Oliveira. Embora
ocorressem outras modificaes na organizao da polcia,
16 A instabilidade desta posio fica mais evidente se comparada
com o total de presidentes do Tribunal de Justia de So Paulo. Para
o perodo entre 1930 e 1945, nove desembargadores ocuparam a
presidncia do Tribunal. (Bonelli, 1999).
-
14
como a criao do Instituto de Criminalstica, do Departamento de
Trnsito, da Guarda Noturna da Capital e a redefinio de atribuies
dos delegados de circunscrio, a principal novidade de 1935 foi a
criao da Polcia Especial, subordinada Superintendncia de Ordem
Poltica e Social, com o intuito de reprimir a efervescncia de
correntes ideolgicas no pas, especialmente o comunismo. Neste
sentido, em 1936, realiza-se um congresso de secretrios de Segurana
Pblica e de chefes de polcia, "com o objetivo de unificar e
intensificar a ao policial em defesa da ordem poltica e social do
territrio ptrio" (Vieira e Silva, 1955: 285). Essa especializao,
que surge nos anos 20, passa a ser partilhada pela polcia civil
como um aspecto relevante de suas atribuies e de sua identidade
profissional. A investigao dos crimes, que se destacava como a funo
mais valorizada, comeou a deparar-se com a importncia da polcia
especial e do crime poltico.
Na vigncia do Estado Novo, continuou predominando um padro de
institucionalizao da Segurana Pblica muito politizado e
intermitente, agora tambm acompanhado da instabilidade no rgo da
Ordem Poltica e Social. O processo de especializao poderia ser uma
forma de expandir o profissionalismo, abrindo uma porta de sada da
politizao. No foi o que ocorreu com a organizao policial aqui,
estreitando-se os laos entre a poltica convencional e a polcia
poltica. Por essa razo, com a ascenso da Ordem Poltica e Social,
reproduziu-se nela a relao de conflito que marcou a Chefia de
Polcia e a Secretaria de Segurana. Para esse perodo (1937-1945)
Vieira e Silva (1955) identificaram outras cinco mudanas. Em 1938,
a Superintendncia foi transformada em Delegacia Especializada de
Ordem Poltica e Social, voltando a ser Superintendncia no incio de
1940. Antes disso, em 1939, a Secretaria de Segurana Pblica foi
suprimida tornando-se novamente repartio da Justia. A Segunda
Guerra Mundial ajudou a consolidar a Secretaria de Segurana Pblica,
que restabelecida em 1941, conseguiu preservar essa condio a partir
de ento.
Na perspectiva profissional, este ano foi marcado por um
adensamento burocrtico nas carreiras ligadas ao servio pblico, em
decorrncia da poltica de Vargas para reformar o aparelho de Estado
adotando critrios para insular o funcionalismo de influncias
externas. As razes apresentadas publicamente eram as de coibir as
nomeaes clientelistas. Em So Paulo, o interventor ps em vigor, em
1941, o decreto do Estatuto dos Funcionrios Pblicos Civis do Estado
de So Paulo, estabelecendo garantias aos servidores, embora no
mencionasse especificamente a polcia civil. Dentro dessa
perspectiva, a Repartio Central de Polcia passou a publicar o
peridico Arquivos da Polcia Civil, uma iniciativa de autoridades
policiais saudosas dos tempos da Academia de Direito, tendo por
objetivo divulgar as atividades cientficas, operacionais e tcnicas
da Polcia Civil de So Paulo.
O pndulo entre a profissionalizao e a politizao da polcia
persistiu por todo o perodo getulista porque as prprias medidas do
governo tinham essa ambigidade. Por um lado, instituam regras mais
definidas de carreira, estimulavam a especializao e o domnio de
tcnicas cientficas para investigar a criminalidade. Por outro,
atropelavam as regras do mrito com clientelismo e perseguio
poltica, com uso abusivo da fora e com a conseqente
partidarizao.
A percepo dessa dualidade na cpula da Polcia Civil foi
organizada internamente dando sentido s distintas formas da
instituio lidar com esta oscilao no comando da polcia. Em artigo
publicado no Arquivos da Polcia Civil, Plnio Cavalcanti de
Albuquerque,17 homenageando dois chefes de polcia dos anos 30/40,
constri sua tipologia hbrida:
"Aconselha-se a experincia a julgar o valor de uma administrao
policial segundo critrio objetivo, formado ao contacto de duas
idias: a idia tcnica que inspira reformas e amplia a eficincia do
aparelhamento policial e a idia de energia e de autoridade que
assegura a manuteno da ordem pblica nos momentos difceis da vida do
Estado, em que instintos e paixes desenfreadas ameaam destruir as
condies normais de coexistncia social. Prevaleceu, na administrao
do desembargador Mario Guimares, a idia tcnica; na administrao do
saudosssimo dr. Accio Nogueira, o princpio do respeito ordem. Um,
juiz ilustrado, o reformador, com o esprito preso s necessidades da
organizao cientfica
17 Foi Secretrio de Segurana Pblica entre 12/5/1954 e
30/1/1955.
-
15
da polcia paulista. O outro, o policial experimentado, s voltas
com os delicados problemas da segurana, apreendendo-os com incrvel
rapidez e dando a eles solues a que deve a populao paulista a
tranqilidade que desfrutou nos momentos mais graves de sua
existncia." (Albuquerque, Arquivos da Polcia Civil 6,
1943::300)
Segundo a tipologia de Albuquerque, o chefe tcnico criou a
Escola de Polcia, o
Laboratrio de Polcia Tcnica, o Servio de Antropologia e
Psiquiatria, o Servio de Estatstica Policial do Gabinete de
Investigao e fundou o Instituto de Criminalstica unificando todos
os servios tcnicos. O chefe policial suprimiu as delegacias leigas,
extinguindo "a nefasta sobrevivncia da polcia de inspirao
poltico-partidria", que com toda a celebrao da organizao da
carreira a partir de 1905 ainda persistiam no Estado de So Paulo.
Constituiu tambm as guardas policiais e garantiu a ordem pblica,
por ocasio das manifestaes sobre a Segunda Guerra Mundial e os
conflitos sobre que bloco de pases seria apoiado pelo Brasil, em um
estado com forte presena italiana.
Em 1944, a Delegacia de Ordem Poltica e Social retorna junto com
outra reorganizao das delegacias. Em 1945, ocorre uma reclassificao
de delegacias, reestruturando as atribuies das autoridades
policiais e ampliando as especializadas. A Polcia Especial, que
ficara subordinada ao chefe de polcia em 1939, volta como Servio
Secreto para o novo Departamento de Ordem Poltica e Social - DOPS,
que tambm se firma. 18
Em termos de status profissional , em 1944 a carreira de
delegado de polcia sofre outro ataque, desta vez perdendo a
paridade salarial que tinha com os promotores. Os delegados tiveram
fora para reverter este cenrio. Instituda a comisso para a
reestruturao da carreira, em 23/8/1945 foi publicado novo
decreto-lei (14.934) restabelecendo a paridade com os promotores.
Tambm se redefiniram os cargos superiores exercidos em comisso como
funes de carreira includos na escala salarial acima, em vez de
funes de chefia com a perda da remunerao aps concludo o perodo.
O fim do Estado Novo foi acompanhado pela extino da Repartio
Central de Polcia. Outra questo que repercutiu na atividade da
autoridade policial no final do perodo getulista foi a entrada em
vigor do Cdigo de Processo Penal, em 1942. Nele, os delegados de
polcia mantiveram a prerrogativa de presidir o inqurito policial,
instrumento que fundamenta a autoridade de sua funo, criado pela
Reforma de 1871. Desde ento, ele tem sido criticado apresentando-se
a alternativa de substituir a Polcia Judiciria e o inqurito
policial pelo juizado de instruo. O juzo de instruo restringe o
poder do delegado de polcia e vincula-o pasta da Justia. O inqurito
policial tem para o delegado o mesmo papel que o monoplio de
mercado tem para o poder profissional dos advogados, dos juzes e
dos mdicos, entre outros. As disputas em torno dele tm
caractersticas de luta jurisdicional para preservao de poder
profissional, de luta por poder simblico e por poder poltico.
Portanto, na primeira metade dos anos 40, os delegados conseguiram
proteger sua posio profissional, que esteve ameaada em termos de
salrio e de jurisdio.
Na opinio de Bayley (1994), a atividade mais demandante da
investigao criminal desenvolver a expertise sobre os requisitos
legais para coletar e relatar evidncias. No caso do Brasil, ela
feita atravs do inqurito policial. Embora a investigao seja
considerada como a nata da atividade policial, o autor no acha
claro que tal atividade demande habilidades especficas da
autoridade policial. Sem assumir publicamente, afirma Bayley,
autoridades policiais admitem que a investigao pode ser feita por
qualquer pessoa inteligente, persistente, equilibrada e com vontade
de aprender os meandros do direito penal. Mas a viso interna
organizao policial que a investigao no para iniciantes. Ela conta
com mais autonomia e possui mais benefcios.
18 O livro coordenado por Maria Aparecida de Aquino et alii
(2001) traz toda a legislao estadual relativa ao DOPS entre 1924 e
1983 e todos os organogramas com as diferentes estruturas do DEOPS
neste perodo.
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16
Segundo Bayley, esse status estaria mais associado aos
interesses do grupo que internamente poderoso do que cincia ou sua
eficcia.
Vencido o embate dos anos 1940, a controvrsia sobre o monoplio
do inqurito policial pelos delegados voltar nas ocasies em que a
reforma do Cdigo de Processo Penal entrar na agenda de discusses
polticas.
Tal como a especializao, o inqurito policial poderia ter sido a
porta de acesso ao profissionalismo, mas o hibridismo com a poltica
convencional no deu longevidade s condies propcias para a
consolidao desta forma de organizao do trabalho e de seu ethos sob
o Estado getulista. A AUTORIDADE POLICIAL NO PERODO DEMOCRTICO DE
1946-64
Na ordem democrtica, a Polcia Civil ficou subordinada Secretaria
de Segurana Pblica, sem a posio de chefe ou delegado geral de
polcia. Na cpula, alm do secretrio, havia o cargo de diretor geral
da Secretaria, ocupado algumas vezes por delegados e outras por
oficiais militares. Nesse contexto, as nomeaes para chefiar o DOPS
apareceram como o terceiro posto em relevncia nessa hierarquia,
dando-lhe mais prestgio do que a Delegacia de Investigaes. A
estabilidade no posto de secretrio durante esse perodo foi maior,
mas no ultrapassou a mdia de um ano e trs meses de permanncia no
cargo, para os catorze secretrios nomeados. Deste total, nove eram
doutores e cinco oficiais militares. Foi o civil Elpidio Reali que
permaneceu mais tempo no cargo, ocupando-o por um pouco mais de trs
anos (1951-54).
Alm dessa estabilidade, deu-se relevncia a algumas
caractersticas do profissionalismo, como a realizao do primeiro
concurso pblico para delegados de polcia em agosto de 1946, 25 anos
depois de sua introduo na magistratura. Dos cem candidatos que se
inscreveram, 92 foram habilitados. O regulamento de 1948, da
Assemblia Legislativa do Estado, organizando a carreira de delegado
consolidou este procedimento, estabelecendo o concurso de provas e
ttulos para o ingresso, a obrigatoriedade do ttulo de bacharel para
todos os cargos, e a criao do Conselho de Polcia Civil. Entretanto,
o sistema de promoo, de transferncia e de remoo indicava que a
dualidade entre profisso e poltica persistia na forma de organizar
a carreira. As promoes ficaram regidas pela diviso entre 1/3 do
acesso por antigidade e 2/3 por merecimento, predominando o critrio
dos laos pessoais e polticos para a ascenso por "mrito". As
transferncias e remoes seguiram como instrumentos de controle da
corporao.
Outras medidas profissionalizantes desse perodo foram a
intensificao dos investimentos na formao de policiais e a maior
diviso e especializao do trabalho. O Conselho de Polcia passou a
ser uma instncia relevante na estrutura de poder da polcia civil ,
o que deu mais legitimidade ao topo da organizao. Na ordem
democrtica, a Guarda Civil foi reorganizada e sob o governo de
Ademar de Barros, a Secretaria de Segurana foi entregue ao comando
de oficiais militares ligados ao Partido Social Progressista. Aps
sua posse, o secretrio de Segurana, tenente-coronel Flodoardo
Gonalves Maia, editou uma portaria da Secretaria para enfatizar a
necessria colaborao da Fora Policial com a Polcia Civil, evidncia
das relaes pouco amistosas entre as duas corporaes.
Embora a competncia tcnica tenha ganho mais valor na organizao
da carreira, a fora da poltica convencional para definir nomeaes
aos cargos de confiana, promoes, transferncias e remoes manteve-se
firme na ordem democrtica, o que diferenciava a carreira de
delegado das de promotor e juiz. Em ambas, o insulamento
institucional em termos de garantias e de autonomia para definir a
mobilidade na carreira era significativamente maior.
Trs outras caractersticas dos processos de profissionalizao
foram observadas no final da dcada de 40 e incio dos anos 50. Em
1949, ocorreram a fundao da Associao dos Delegados de Polcia de So
Paulo - ADPESP e a criao do peridico Investigaes19, da Delegacia
de
19 Os dois peridicos da Polcia Civil criados nesta dcada -
Arquivos da Polcia Civil do Estado de So Paulo e Investigaes - tm
sua publicao interrompida, o primeiro em 1953 e o segundo em 1954.
Investigaes
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17
Investigaes, reforando o aspecto tcnico-cientfico da atividade.
Essas iniciativas tambm deixaram evidente a reao desses setores ao
avano do DOPS, no contexto da Segunda Guerra. A investigao
criminal, especializao que tradicionalmente reuniu mais prestgio
dentro das organizaes policiais, estava sendo ofuscada pela polcia
poltica. So os delegados da Delegacia de Investigaes que lideram a
organizao da ADPESP, cuja primeira reivindicao neste contexto era
pela equiparao salarial dos delegados com os promotores, que esteve
novamente desvinculada em 1950.
Em 1951, organizou-se a 2a Conferncia Nacional de Polcia, cuja
marca foi avanar a identidade dos delegados em torno da defesa da
ordem poltica e social, tema j abordado na Conferncia anterior de
1936. perceptvel que a nfase discursiva no aumento do crime
demandando polticas de segurana e recursos para investigao no foi o
fator que unificou os delegados presentes no evento, como ocorrido
em outras ocasies. Alm da ordem poltico-social, a conferncia teve
como preocupao a busca de uma regulamento nacional comum,
preconizando a uniformidade de organizao do sistema policial, que
envolvesse as atribuies da polcia militar, da polcia civil e da
polcia federal.
Em 1956, o cargo de delegado geral de polcia voltou a existir.
Se a dcada de 40 consolidou a Secretaria de Segurana Pblica
separada da pasta de Justia, a partir da segunda metade da dcada de
50 consolidou-se a Delegacia Geral de Polcia. Da em diante, os dois
postos preservaram-se na estrutura organizacional da rea. Neste
perodo, dois delegados gerais de polcia foram tambm presidentes da
ADPESP: Coriolano Nogueira Cobra e Guilherme Pires de Carvalho
Albuquerque. Coriolano Cobra foi delegado geral entre 1956-58. Em
1966 assumiu a presidncia da associao mantendo-se nela por dois
binios consecutivos 66/67 e 68/69. Foi reconduzido delegacia geral
em 1966/67, durante seu primeiro mandato na ADPESP. Guilherme
Albuquerque foi primeiro eleito presidente da associao (binio
60/61), sendo nomeado delegado geral dois anos depois. A gerao que
estabeleceu o vnculo entre ADPESP e Delegacia Geral de Polcia deu
sustentao ao comando prprio consolidando-o no organograma da
Secretaria de Segurana Pblica. OS DELEGADOS DE POLCIA NO GOVERNO
MILITAR: A GANGORRA DOPS X DEIC
Nos 21 anos do regime militar, a Delegacia Geral de Polcia foi
chefiada por catorze delegados, com uma mdia de permanncia no cargo
de um ano e meio. Foi Walter de Moraes Machado Suppo que se manteve
mais tempo frente da Delegacia Geral, entre maro de 1971 a maro de
1975, poca muito marcada pela ao do DOPS no desmantelamento das
organizaes clandestinas de esquerda e pela prtica da tortura aos
presos polticos.
A figura de destaque na polcia poltica durante os anos 70 o
delegado Sergio Paranhos Fleury, cuja a ascenso na carreira da
polcia civil atinge seu apogeu quando vai do DOPS para o DOI-CODI,
em atuao conjunta com o II Exrcito20. A expanso histrica do DOPS
acompanha o combate s ideologias que a polcia identificava como
desestruturadoras do Estado. Segundo o professor da ACADEPOL Guido
Fonseca, este percurso marcado pela represso aos anarquistas no
incio do sculo XX, aos comunistas nos anos 1930, aos nazi-fascistas
no contexto da Segunda Guerra Mundial e aos terroristas durante o
governo militar (Fonseca, 1989: 41).
Entre 1968 e 1969, um conjunto de trs leis sobre segurana pblica
e polcia deu-lhes novo perfil institucional. Elas so a Lei Orgnica
da Polcia, Lei 10.123, de 27/5/1968, o decreto 50.300, que a
regulamenta e o decreto estadual 52.213, de 24/7/1969. No novo
formato, a Guarda Civil e a Fora Pblica deram origem Polcia
Militar, extinguindo-se o carter civil, e a Ordem Poltica e
desaparece e Arquivos retorna em 1975 circulando at 1984, quando
novamente suspenso. Em 1993, este peridico volta a ser publicado,
mas sem nenhuma periodicidade regular. Entre 1993 e 2001,
circularam apenas quatro volumes. O outro peridico que analisamos a
Revista da ADPESP, que substitui o Boletim da Associao em 1980 e
segue sendo publicada at hoje. 20 Sobre os bastidores da polcia
poltica e Sergio Paranhos Fleury, ver Souza (2000).
-
18
Social ganha denominao de Departamento. Segundo Kfouri Filho
(1991: 28) , os tpicos abaixo foram os principais aspectos da
reforma administrativa na Secretaria de Segurana Pblica decorrente
do decreto estadual : "a) como rgo policial, passa a figurar a
Polcia Civil, ao invs de 'Delegados de Polcia e demais carreiras
policiais civis'; b) incumbiu a Polcia Civil de exercer em todo o
Estado o policiamento civil , as atribuies de polcia judiciria e as
atividades tcnico-cientficas e administrativas conexas; c) criou a
unidade Delegacia Geral de Polcia; transformou a Escola de Polcia
em Academia de Polcia de So Paulo; transferiu a Casa de Deteno da
Secretaria da Segurana Pblica para a Secretaria de Justia; d) criou
as primeiras dez regies policiais do Estado."
Est em vigor a Lei Orgnica da Polcia do Estado de So Paulo, Lei
Complementar 207, de 5/1/1979, encaminhada sob a gesto do delegado
geral Tcito Pinheiro Machado, que tambm formulou o Estatuto dos
Policiais Civis e a Lei de Reforma Administrativa da Polcia Civil,
substituindo o conjunto de decretos do final dos anos 60.21 A
reforma modernizante na estrutura da organizao foi marcada pelo
predomnio militar sobre o civil. Na Secretaria de Segurana, at o
governo de Montoro em 1983, dos dez secretrios nomeados na vigncia
do autoritarismo quatro eram generais e trs eram coronis. Montoro
nomeou trs secretrios civis at 1985.
Passado o impacto dos primeiros anos do governo militar, a
mobilizao profissional dos delegados foi intensificada a partir de
1970, com a realizao do I Encontro Nacional dos Delegados de
Polcia, em So Paulo e a criao da ADEPOL (Associao Nacional dos
Delegados de Polcia). At 1976, ocorreram oito dessas reunies
nacionais, mostrando a intensidade da organizao neste contexto.
Em 1974, o quadro de delegados de So Paulo se expande em 108
novas posies. Em 1975 volta a publicao da revista Arquivos de
Polcia Civil do Estado de So Paulo. Este reflorescimento
profissional e tcnico-cientfico ocorre durante o perodo de
estabilidade do delegado geral Walter Suppo, tendo Antonio Erasmo
Dias na Secretaria de Segurana Pblica onde permaneceu por cinco
anos (74-79). A Reforma de 1975, reestruturou os departamentos da
Polcia Civil, criou a Corregedoria de Polcia Civil, o Centro de
Planejamento e Controle e o Centro de Comunicao Social. O delegado
geral passou a presidir o Conselho de Polcia Civil, at ento de
competncia do secretrio de Segurana. Tambm em 1975 houve o
preenchimento 7.723 cargos recentemente criados e nova regulamentao
para o DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Poltica e Social) ,
DEIC (Departamento Estadual de Investigaes Criminais), DERIN
(Departamento das Delegacias de Polcia de So Paulo e Interior) e
DEGRAN (Departamento das Delegacias Regionais de Polcia da Grande
So Paulo).
O clima de distenso poltica da segunda metade da dcada de 70 foi
sentido tanto no contedo da revista quanto na pauta do VIII
Encontro de Delegados, realizado em Belo Horizonte, em 1976.
claramente dissonante da predominncia da polcia poltica,
voltando-se para ampliar o profissionalismo, o controle de condutas
antiticas e os crimes de colarinho branco .
Os tpicos mais relevantes da moo de Belo Horizonte foram: 1)
Profissionalizao dos quadros policiais. Restrio a empresas
particulares de Vigilncia Privada, algumas multinacionais e outras
com capital estrangeiro; 2) "a polcia deve ser antes de mais nada
um instrumento, alheio tanto quanto possvel a interesses
divergentes da paz social. (negrito no original) Este objetivo no
pode ser atingido com uma mentalidade marcada fortemente de conotao
repressiva" (Arquivos 28: 239); 3) Leis que amparem e defendam o
policial; 4) Preveno da delinqncia juvenil; 5) Misso protetora da
polcia deve preponderar sobre as demais; respeito aos direitos
humanos, preservao do DETRAN; fundo de auxlio federal para as
polcias estaduais; atuao contra os crimes que lesam um nmero
indefinido de pessoas (contra a economia popular, abuso de poder
econmico, dumpings, sonegao fiscal, crimes contra a sade
pblica).
A preocupao de legitimar a polcia na sua integrao com o povo
tornou-se uma tnica permanente. Em 1979, o delegado geral Celso
Telles, nomeado no governo de Paulo Maluf,
21 Sobre a carreira de delegado de polcia nesta reforma ver
Rocha (1979).
Comment [P1]:
-
19
publica no Arquivos da Polcia Civil do Estado de So Paulo,
revista que passou a ser de responsabilidade da ACADEPOL, os
princpios bsicos que formam o trip de sua concepo para tal
integrao: melhorar a imagem da polcia, tratar diretamente com o
povo e prestar servios. (Arquivos 32: 8). O DEIC voltou a ser o
carro-chefe da Polcia Civil nesta concepo. Em 1980, a Associao dos
Delegados de Polcia de So Paulo transformou seu boletim na Revista
ADPESP reforando a ideologia da polcia profissional, da valorao
tcnico-cientfica e da integrao social do policial civil (Revista
ADPESP, 1). A viso da relao polcia - povo foi enfaticamente
apregoada em ambos os peridicos.
No clima de transio para a democracia, a associao pressionou o
governador Marin para modificar a cpula da Polcia Civil e da
Segurana Pblica. A ADPESP apresentou a proposta de diminuir o
afunilamento na classe especial, criando novos cargos no topo da
carreira e a aposentadoria compulsria depois de 35 anos de servio,
tendo o delegado exercido cinco anos na classe especial. Props
tambm a substituio dos assessores da Secretaria tidos como "leigos"
em Segurana Pblica e o provimento efetivo do delegado geral, em vez
de seu comissionamento, que torna a posio vulnervel exonerao.
No contexto das eleies estaduais e municipais de 1982, 26
delegados do estado de So Paulo saram candidatos: trs a deputado
estadual, sete para prefeituras municipais, um para vice-prefeitura
e quinze para cmaras municipais. Em 1985, a ADPESP chegou a fazer
um plebiscito entre os delegados para indicao de nomes como futuros
candidatos s Cmaras Federal e Estadual, com o envolvimento direto
da associao fundindo a poltica da profisso com a poltica
convencional.
As resistncias e dificuldades para se realizar a passagem entre
a polcia do regime de exceo e a nova polcia, sujeita s regras
democrticas foram intensas no governo de Franco Montoro, que
experimentou forte instabilidade nos postos de delegado geral e de
secretrio de Segurana, se comparados ao tempo em que o antecessor
de cada um destes cargos manteve-se na posio. Montoro nomeou cinco
secretrios de Segurana e cinco delegados gerais em 4 anos.
Internamente, o profissionalismo expande-se quando os delegados
legitimam sua chefia e a politizao prevalece quando eles resistem
cpula nomeada.
A ampliao dos conflitos entre a Polcia Militar e a Polcia Civil
que percorria a hierarquia das duas corporaes, chegando ao choque
de rua entre policiais, aguou a crise na Segurana Pblica,
provocando a queda do principal articulador das reformas na Polcia
Civil, o delegado-geral Maurcio Henrique Guimares Pereira. As
propostas implantadas modificaram a estrutura anterior, com a criao
do DECON - Departamento Estadual de Polcia do Consumidor no lugar
do DEOPS22, e a transformao da ACADEPOL e da Corregedoria de Polcia
em departamentos. Atravs de decreto do governador Franco Montoro
foi possibilitada a eleio de cinco dos treze membros do Conselho
Superior de Polcia, pelos delegados.(Moraes, 1999: 107-108, Revista
ADPESP, 27). Montoro tambm implementou a proposta da ADPESP de
aposentadoria compulsria aos 35 anos de servio, com cinco de
exerccio na classe especial, ampliando e renovando a cpula da
polcia. Alguns delegados atingidos, entre eles Walter Suppo,
entraram com Ao Direta de Inconstitucionalidade no STF
representando contra a medida, que foi mantida. Dois dos
delegados-gerais neste governo foram tambm presidentes da ADPESP:
Maurcio Henrique G. Pereira e Abraho Jos Kfouri Jr.
22 O governador Jos Maria Marin extinguiu o DEOPS, s vsperas da
posse de Franco Montoro, eleito pelo PMDB. "Para evitar que o rgo
fosse submetido ao controle direto da oposio, Marin decidiu
extingui-lo atravs do decreto 20.728/83, em um de seus ltimos atos
de governo. Entre outras disposies previstas nesse decreto, os
funcionrios do extinto rgo deveriam ser alocados em outros setores
da Polcia Civil do Estado, e o Delegado Geral de Polcia deveria
decidir sobre o destino do acervo documental do DEOPS. Dessa forma,
durante quase dez anos (entre 1983 e 1991) este acervo foi guardado
pela agncia paulista da Polcia Federal, organismo diretamente
subordinado ao Executivo Federal, atravs do Ministrio da Justia."(
Aquino et alli, 2001: 25).
-
20
Segundo Mingardi (1992), a ausncia de conexes polticas da cpula
da nova polcia debilitou-a para enfrentar um perodo muito adverso.
Crescia a sensao de insegurana na populao, que associava o aumento
da criminalidade com os conflitos entre as polcias e identificava
uma prioridade para combater a corrupo interna em vez do crime. Com
a queda deste grupo inicial que articulou as reformas da Polcia
Civil, a Delegacia Geral voltou a ser ocupada por um ex-chefe do
DEIC (Jos Vidal Pilar Fernandes), nomeado em 1983, tendo como
conseqncia a mistura entre a velha e a nova polcia, a amortizao da
mudana e a estabilidade poltica. A eleio para o Conselho Superior
da Polcia foi revogada pelo governo seguinte, de Orestes Qurcia, e
a ACADEPOL perdeu sua posio de direo como departamento com assento
no Conselho.
Se o ano de 1983 foi de maior instabilidade sob o governo
Montoro, 1985 e 1986 foram anos em que os delegados de polcia
obtiveram reajustes salariais expressivos deste governador, que
procurou atender reivindicao da ADPESP de equivalncia com as
carreiras jurdicas. Esse perodo de conquistas para a carreira teve
como delegado geral Jos Oswaldo Pereira Vieira. AUTORIDADE POLICIAL
E AUTORIDADE PROFISSIONAL: O DELEGADO NA ORDEM DEMOCRTICA
As medidas adotadas pelo governador Orestes Qurcia, tendo Luis
Antonio Fleury Filho como secretrio de Segurana Pblica,
retrocederam as mudanas mas resultaram em estabilizao. Em 1987,
comeou a gesto mais longa da Delegacia Geral e da Secretaria de
Segurana ao mesmo tempo. Fleury Filho ocupou este ltimo posto entre
maro de 1987 a maro de 1990, e Amandio Augusto Malheiros Lopes
manteve-se na Delegacia Geral entre setembro de 1986 a maro de
1991. Outro fator que atuou para amenizar as tenses em torno da
polcia foi a discusso e aprovao da Constituio de 1988. A elaborao
da Carta Magna ocupou os polticos, as cpulas das polcias, o mundo
do Direito e os jornalistas, desviando o foco sobre a Segurana
Pblica. Entre 1985 e 2001, So Paulo teve oito delegados gerais, o
que representa uma permanncia mdia no cargo de dois anos, sendo a
mais alta encontrada em todo o perodo republicano e tambm durante o
Segundo Reinado. O delegado geral em exerccio em 2002, Marco
Antonio Desgualdo, proveniente do DHPP (Departamento de Homicdios e
Proteo Pessoa), assumiu a posio em fevereiro de 1998, permanecendo
nela por mais de quatro anos.23
Com o objetivo de subsidiar os constituintes com pareceres
jurdicos sobre questes relevantes para a carreira de delegado, a
ADPESP publicou um nmero da revista defendendo o inqurito policial
e apontando as deficincias da proposta do juizado de instruo,
pregando a sujeio da Polcia Militar e refinando a distino
conceitual entre autoridade policial e agente policial. O resultado
da ao organizada dos delegados foi significativo na Carta
aprovada.
Para Kfouri Filho, a Constituio de 1988 representa o grande
momento da Polcia Civil, quando obtm seu reconhecimento
constitucional no art. 144 pargrafo 4 , que estabelece "s polcias
civis, dirigidas por delegados de polcia de carreira, incumbem,
ressalvada a competncia da Unio, as funes da Polcia judiciria e a
apurao de infraes penais, exceto as militares". 23 A estrutura da
Delegacia Geral de Polcia, que o rgo de direo, era a seguinte em
2001: a) rgos de apoio: Assessoria Tcnica da Polcia Civil - ATPC,
Corregedoria de Polcia Civil -CORREGEPOL, Departamento de
Administrao e Planejamento -DAP, Departamento de Telemtica da
Polcia Civil - DETEL; b) rgo de execuo: Departamento de Investigaes
contra o Patrimnio - DEPATRI, Departamento de Polcia Judiciria da
Capital - DECAP, Departamento de Polcia Judiciria da Macro So Paulo
- DEMACRO, Departamento de Polcia Judiciria de So Paulo Interior
DEINTER 1 (So Jos dos Campos), DEINTER 2 (Campinas), DEINTER 3
(Ribeiro Preto), DEINTER 4 ( Bauru), DEINTER 5 (So Jos do Rio
Preto), DEINTER 6 (Santos), DEINTER 7 (Sorocaba), Departamento de
Homicdios e Proteo Pessoa - DHPP, Departamento de Investigaes sobre
Narcticos - DENARC; c) rgos de apoio aos de execuo: Departamento de
Identificao e Registros Diversos - DIRD, Academia de Polcia -
ACADEPOL; d) rgo consultivo: Conselho de Polcia Civil - CPC.
-
21
"Merece destaque, alm do primeiro registro constitucional, a
definitiva institucionalizao da carreira de Delegado de Polcia,
consolidando sua profissionalizao em nvel nacional e dando fim a
nomeaes de leigos e 'afilhados polticos'. Releva gizar tambm a
institucionalizao do inqurito policial (art.129, inciso VIII, da
CF), como definitivo instrumento formal da polcia judiciria."
(Kfouri Filho, 1991: 29). Apesar da conquista do registro
constitucional de questes cruciais para os delegados de
polcia, pelas quais eles vm se batendo h dezenas e dezenas de
anos, como o inqurito policial, a obrigatoriedade da carreira e do
diploma de bacharel em Direito e a isonomia salarial com as demais
carreiras jurdicas, todas includas na Constituio de 1988, tal
resultado no est garantido.
A equiparao salarial com os promotores de justia no foi cumprida
em So Paulo. O salrio pago para os delegados neste estado em 2001
era o segundo pior do Brasil. O provento inicial para ingresso na
quinta classe da carreira estava em R$ 1.652,00 em So Paulo, R$
3.600,00 no Rio de Janeiro e R$ 4.000,00 em Sergipe. Os promotores
de Justia possuem as mesmas garantias dos juzes e percebem o mesmo
salrio, que em So Paulo mais que o dobro do delegado. Outro grande
foco de tenso com o Ministrio Pblico a discusso do controle externo
da atividade policial pelo MP. No entendimento dos delegados, esta
medida viola preceito constitucional.
A elaborao da Lei Orgnica Nacional da Polcia , a reforma do
Cdigo Penal e do Cdigo de Processo Penal, todos em curso, podem
modificar as atribuies dos delegados e o inqurito policial como
instrumento da polcia judiciria, restringindo a jurisdio sob
controle da carreira. Como o ltimo secretrio da Segurana Pblica,
Marco Vinicio Petreluzzi, era promotor de justia,24 as tenses
histricas entre delegados de polcia e membros do Ministrio Pblico
Paulista estavam muito sensveis. Os delegados de polcia atribuem
sua perda de status e de poder aquisitivo diretamente adversidade
entre os dois grupos profissionais. As crticas dos promotores atuao
dos delegados tm sido amplamente noticiada na imprensa escrita,
particularmente na Folha de So Paulo25. Atacam o despreparo
jurdico, os erros procedimentais, os inquritos mal
circunstanciados, o desrespeito aos direitos humanos, a corrupo, o
abuso de poder, a participao nos negcios da segurana privada, a
"banda podre" e o envolvimento de policiais no crime
organizado.
O cenrio que o novo sculo trouxe para a Polcia Civil de So Paulo
acabou reunindo trs aspectos relevantes para modificar as condies
da carreira dos delegados: 1) a mais alta estabilidade
institucional da cpula da polcia, 2) as conquistas constitucionais
sob disputa em decorrncia das reformas em discusso no Congresso
Nacional e 3) a queda mais acelerada de posio social devido perda
de equivalncia salarial com os promotores. Foi nesse momento que o
IDESP realizou a pesquisa por amostragem com os delegados de polcia
visando identificar o perfil social e ideolgico do grupo. A anlise
dos dados demogrficos, sociais, ocupacionais e as opinies sobre a
carreira, a polcia civil e a segurana pblica permitiram observar
quais caractersticas do passado ainda persistem na corporao. Por
outro lado, revelaram o que h de novo na esfera do profissionalismo
e das relaes com a poltica. A PESQUISA POR AMOSTRAGEM NO ESTADO DE
SO PAULO26 . Perfil social e ocupacional
24 O secretrio que assumiu no incio de 2002, Saulo de Castro
Abreu Filho, tambm promotor de justia. 25 Sobre os promotores de
justia de So Paulo e as disputas por poder simblico na mdia, ver a
monografia de Ubialli (2002), que apresenta um levantamento do
noticirio sobre as tenses do Ministrio Pblico Paulista com a polcia
civil e militar. 26 A amostra ultrapassou os 20% do universo total,
que em 2001 era de 3.200. Ela foi estratificada por reas geogrficas
do Estado (capital, rea metropolitana e interior) e por sexo.
Quanto s classes da carreira, procurou-se distribuir a amostra
atentando para o tamanho de cada um dos seis degraus da carreira,
embora neste aspecto no tenha havido rigor na proporo.
-
22
Foram entrevistados 660 delegados de polcia, sendo 87,1 % do
sexo masculino e 94,2% de brancos. Predominam os nascidos a partir
de 1960, com 54,9% da amostra, provenientes do Estado de So Paulo (
93,8%) . Quanto escola onde se graduaram em Direito, 17,4%
freqentaram as universidades pblicas ou privadas mais competitivas
como a USP, a Unesp, as PUC's e o Mackenzie, e 82,4% cursaram
faculdades privadas de mais fcil admisso; 97% estudaram em So
Paulo.
A concentrao de titulados nos cursos superiores menos
valorizados tem sido utilizada por outras carreiras do mundo do
Direito na luta concorrencial entre elas. Segundo Bourdieu
(1983:122-3):
"O que est em jogo especificamente nessa luta o monoplio da
autoridade cientfica definida, de maneira inseparvel como
capacidade tcnica e poder social: ou se quisermos, o monoplio da
competncia cientfica, compreendida enquanto capacidade de falar e
de agir legitimamente (isto , de maneira autorizada e com
autoridade), que socialmente outorgada a um agente
determinado."
Defendendo sua legitimidade para conduzir o inqurito policial
apesar de seu capital
universitrio mais reduzido, os delegados contra-atacam as
crticas provenientes principalmente dos membros do Ministrio Pblico
Paulista , com quem h dcadas procuram preservar a equivalncia
salarial perdida. A essas estratgias de subverso dos procedimentos
tradicionais na rea de Segurana Pblica, os delegados respondem com
estratgias de conservao da ordem estabelecida no campo, com a
crtica 'vida mansa' que os promotores levam em sua prtica
profissional, comeando a trabalhar apenas depois do almoo, com
jornada reduzida, sem experincia na conduo do inqurito e da
investigao, desconhecendo o dia-a-dia da polcia.
O esteretipo da formao deficiente dos delegados devido qualidade
do curso superior reforado pelo tempo gasto para a concluso do
curso. Espera-se que um aluno padro obtenha seu diploma aps cinco
anos de freqncia s aulas, o que ocorreu para a metade da amostra
(50,8%). Mas a outra parte no se formou no tempo regular de durao,
com 26,5% conseguindo terminar a faculdade em um prazo menor do que
o estabelecido pelo MEC e outros 21,1% demorando seis anos ou mais
para conclu-lo. H, at hoje, alguns casos de delegados que
ingressaram na carreira antes de possuir o ttulo de bacharel em
Direito embora todos j tenham se graduado. H quase um sculo,
iniciou-se a carreira de delegado tendo como exigncia o ttulo
superior, mas ficaram abertas portas paralelas de entrada que
permitiram o acesso dos "cala-curta"27.
Os delegados que nasceram antes de 1950, formaram-se mais velhos
com uma mdia de idade de 33 anos, o que decai conforme rejuvenesce
o corpo profissional. Assim, para os nascidos na dcada de 1950, a
mdia de idade com que concluram o curso de 29 anos; para os
nascidos na dcada de 60 de 25 anos, e na dcada de 70 de 23
anos.
O ano em que foi nomeado delegado revela que o incio na carreira
para a grande maioria deu-se dep