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DECRETO-LEI Nº 869, de 12 DE SETEMBRO De 1969.Dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e
Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País, e dá outras providências.
OS MINISTROS DA MARINHA DE GUERRA, DO EXÉRCITO E DA
AERONÁUTICA MILITAR, usando das atribuições que lhes
confere o artigo 1º do Ato Institucional nº 12, de 31 te
agosto de 1969, combinado com o § 1º do artigo 2º do Ato
Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, decretam:
Art. 1º É instituída, em caráter obrigatório, como
disciplina e, também, como prática educativa, a Educação
Moral e Cívica, nas estolas de todos os graus e
modalidades, dos sistemas de ensino no País.
Art. 2º A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas
tradições nacionais, tem como finalidade:
a) a defesa do princípio democrático, através da
preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa
humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a
inspiração de Deus;
b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos
valores espirituais e éticos da nacionalidade;
c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento
de solidariedade humana;
d) a culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições,
instituições e aos grandes vultos de sua historia;
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e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na
dedicação à família e à comunidade;
f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros
e o conhecimento da organização sócio-político-ecônomica do
País;
g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades
cívicas com fundamento na moral, no patriotismo e na ação
construtiva, visando ao bem comum;
h) o culto da obediência à Lei, da fidelidade ao
trabalho e da integração na comunidade.
Parágrafo único. As bases filosóficas de que trata este
artigo, deverão motivar:
a) a ação nas respectivas disciplinas, de todos os
titulares do magistério nacional, público ou privado, tendo
em vista a formação da consciência cívica do aluno;
b) a prática educativa da moral é do civismo nos
estabelecimentos de ensino, através de todas as atividades
escolares, inclusive quanto ao desenvolvimento de hábitos
democráticos, movimentos de juventude, estudos de problemas
brasileiros, atos cívicos, promoções extraclasse e
orientação dos pais.
Art. 3º A Educação Moral e Cívica, com disciplina e
prática, educativa, será ministrada com a apropriada
adequação, em todos os graus e ramos de escolarização.
§ 1º Nos estabelecimentos de grau médio, além da
Educação Moral e Cívica, deverá ser ministrado curso
curricular de “Organização Social e Política Brasileira.”
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§ 2º No sistema de ensino superior, inclusive pós-
graduado, a Educação Moral e Cívica será realizada, como
complemento, sob a forma de Estudos de Problemas
Brasileiros,” sem prejuízo de outras atividade culturais
visando ao mesmo objetivo.
Art. 4º Os currículos e programas básicos, para os
diferentes cursos e áreas de ensino, com as respectivas
metodologias, serão elaborados pelo Conselho Federal de
Educação, com a colaboração do órgão de que trata o artigo
5º, e aprovados pelos Ministros da Educação e Cultura.
Art. 5º É criada, no Ministério da Educação e Cultura,
diretamente subordinada ao Ministro de Estado, a Comissão
Nacional de Moral e Civismo (CNMC).
§ 1º A CNMC será integrada por nove membros, nomeados
pelo Presidente da República, por seis anos, dentre pessoas
delicadas à causa da Educação Moral e Cívica.
§ 2º ApIica-se aos integrantes da CNMC o disposto nos
§§ 2º, 3º, e 5º, do art. 8º da Lei nº 4.024, de 20 de
dezembro de 1961.
Art. 6º Caberá especialmente à CNMC:
a) articular-se com as autoridades civis e militares,
de todos os níveis de governo, para implantação e
manutenção da doutrina de Educação Moral e Cívica, de
acordo com os princípios estabelecidos no artigo 2º;
b) colaborar com o Conselho Federal de Educação, na
elaboração de currículos e programas de Educação Moral e
Cívica;
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c) colaborar com as organizações sindicais de todos os
graus, para o desenvolvimento e intensificação de suas
atividades relacionadas com a Educação Moral e Cívica;
d) influenciar e convocar a cooperação, para servir aos
objetivos da Educação Moral e Cívica, das Instituições e
dos órgãos formadores da opinião pública e de difusão
cultural, inclusive jornais, revistas editoras, teatros,
cinemas, estações de rádio e de televisão; das entidades
esportivas e de recreação, das entidades de casses e dos
órgãos profissionais; e das empresas gráficas e de
publicidade;
e) assessorar o Ministro de Estado na aprovação dos
livros didáticos, sob o ponto de vista de moral e civismo,
e colaborar com os demais órgãos do Ministério da Educação
e Cultura, na execução das providências e iniciativas que
se fizerem necessárias, dentro do espírito deste Decreto-
lei.
Parágrafo único. As demais atribuições da CNMC, bem
como os recursos e meios necessários, em pessoal e
material, serão objeto da regulamentação deste Decreto-lei.
Art. 7º A formação de professores e orientadores da
disciplina “Educação Moral e Cívica,” far-se-á em nível
universitário, e para o ensino primário, nos cursos
normais.
§ 1º Competirá ao Conselho Federal e aos Conselhos
Estaduais de Educação, adotar as medidas necessárias à
formação de que trata este artigo.
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§ 2º Aos Centros Regionais de Pós-Graduação incumbirá o
preparo de professores dessa área, em cursos de mestrado.
§ 3º Enquanto não houver, em número bastante,
professores e orientadores de Educação Moral e Cívica, a
habilitação de candidatos será feita por meio de exame de
suficiência, na forma da legislação em vigor.
§ 4º No ensino primário, a disciplina “Educação Moral e
Cívica” será ministrada pelos professores, cumulativamente
com as funções próprias.
§ 5º O aproveitamento de professores e orientadores na
forma do § 3º, será feito sempre a título precário, devendo
a respectiva remuneração subordinar-se, nos
estabelecimentos oficiais de ensino, ao regime previsto no
artigo 111 do Decreto-lei nº ?00, de 25 de fevereiro de
1967.
§ 6º Até que o estabelecimento de ensino disponha de
professor ou orientador, regularmente formado ou habilitado
em exame de suficiência, o seu diretor avocará o ensino da
Educação Moral e Cívica, a qual, sob nenhum pretexto,
poderá deixar de ser ministrada na forma prevista.
Art. 8º É criada a Cruz do Mérito da Educação Moral e
Cívica a ser conferida pelo Ministro da Educação e Cultura,
mediante proposta da CNMC, a personalidades que se
salientarem, em esforços e em dedicação à causa da Educação
Moral e Cívica.
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Parágrafo único. A CNMC proporá ao Ministro da Educação
e Cultura as instruções necessárias ao cumprimento do
disposto neste artigo.
Art. 9º A CNMC elaborará projeto de regulamentação do
presente Decreto-lei, a ser encaminhada ao Presidente da
República, por intermédio do Ministro da Educação e
Cultura, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, a contar da
data da publicação deste Decreto-lei.
Art. 10. Este Decreto-lei entrará em vigor na data de
sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Brasília, 12 de setembro de 1969; 148º da Independênciae 81º da República.
AUGUSTO HAMANN RADEMAKER GRÜNEWALD
Aurélio de Lyra Tavares
Márcio de Souza e MelloTarso Dutra
O ensino da Educação Moral e Cívica durante aditadura militar
Durante a ditadura militar no Brasil pretendia-se
formar indivíduos que se adequassem à nova ordem social. O
Estado mudou a sua forma de intervenção sobre todas as
instituições, inclusive na área educacional. Pretende-se,
neste trabalho, discutir uma destas mudanças: a
implementação e obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica.
O objetivo era moldar o comportamento e convencer a
população acerca das benesses do regime militar. Tem se que
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os conteúdos transmitidos aos alunos pelos livros
didáticos, são utilizados de acordo com o contexto
político, econômico e social de uma determinada época,
exatamente como ocorre durante a ditadura militar.
A ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a
1984, foi um período marcado por momentos de extremo
autoritarismo, violência, repressão e por diversos outros
meios de manter o regime. Compreender o conjunto de
interesses e valores dos segmentos sociais que faziam parte
do poder, naquele momento, é fundamental para entender como
vários mecanismos autoritários, que buscavam o controle e o
consenso da população, tentavam atuar nas diversas esferas
da sociedade.
Diante disto cabe a pergunta: de que modo um regime
político autoritário e repressivo construiu formas de
perdurar por pouco mais de vinte anos? Esta questão revela
a necessidade de considerar e analisar a atuação do grupo
de poder (formado por militares e civis), na tentativa de
controlar todos os aspectos da vida social, político,
econômico, cultural e educacional. Tinha-se a intenção de
convencer os indivíduos de que as diversas ações colocadas
em prática, pelos dirigentes do regime, fossem beneficiar a
todos. O governo divulgava, nos diversos meios, inclusive
na área educacional, que havia um projeto de “integração
nacional” e de que o Brasil vivia, plenamente, os ideais
democráticos. Ao mesmo tempo em que a sociedade civil, nos
seus diversos aspectos, era reorganizada para atender os
interesses do regime militar; estratégias eram criadas para
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atuar até mesmo nos valores individuais. Buscava-se
interferir nas formas de pensar e de agir dos indivíduos,
de modo a garantir legitimidade da ditadura:
A afirmativa de que a ditadura tentava legitimar suas
ações e medidas através da construção de um suposto ideário
de democracia significa que se está empregando o sentido de
legitimidade como busca de reconhecimento, por parte da
maioria dos segmentos sociais, em torno dos valores
propalados como fundantes do regime militar, bem como a
procura de adesão ás suas pressuposições em torno da
convivência social
Tinha-se o objetivo de fazer valer os ideais da
chamada “revolução de 1964”, para tanto, os membros do
governo procuravam intervir em todos os recôndidos da vida
social. Diversas instituições, grupos e indivíduos eram, de
alguma forma, controlados, e até mesmo manipulados, por
estratégias arquitetadas pelo regime. A intenção, aqui, é
procurar demonstrar que estes atos, que visavam o controle,
o consenso e a legitimidade do regime militar, se
manifestavam também na área educacional, principalmente,
através da disciplina Educação Moral e Cívica.
A EMC atuava, inclusive, na mente das crianças,
inculcando valores tais como: obediência; passividade;
ordem; fé; “liberdade com responsabilidade” e patriotismo.
Estes valores faziam parte dos conteúdos presentes nos
livros didáticos de EMC, o que leva a considerar a
disciplina como parte da estratégia psicossocial elaborada
pelo governo militar, uma vez que atuava nas formas de
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pensamentos e nas subjetividades individuais com o objetivo
de interferir na dinâmica social. Desejava-se moldar
comportamentos e convencer os alunos acerca das benesses do
regime para que estes contribuíssem com a manutenção do
regime.
A obrigatoriedade e a implementação da Educação Moral
e Cívica faz parte do contexto pesquisado – a ditadura
militar. Para compreender seus desdobramentos, faz-se
necessário mencionar a reestruturação que houve no setor
educacional naquele momento. A educação passou a refletir
os aspectos antidemocráticos existentes no período, o
processo de tramitação das novas leis, 5540/68 que
estabeleceu a reforma universitária e da lei 5692/71,
responsável pela reforma do 1º e 2º graus, já refletia:
“Art. 1º - É revogado o Decreto-Lei nº 869, de 12 de
dezembro de 1969, que dispõe sobre a inclusão da Educação
Moral e Cívica como disciplina obrigatória [...]. Art. 2º -
A carga horária destinada às disciplinas de Educação Moral
e Cívica, de Organização Social e Política do Brasil e
Estudos dos Problemas Brasileiros, nos currículos do ensino
fundamental, médio e superior, bem como seu objetivo
formador de cidadania e de conhecimento da realidade
brasileira.” (BRASIL, 1969). Excesso de autoritarismo por
parte do executivo. Ficava evidente, também, a forte
influência dos Estados Unidos, uma vez que os acordos MEC-
USAID, seguindo o modelo norte-americano de educação,
deliberaram as reformas educacionais no período em questão.
Desta forma, foram desconsideradas as reivindicações do
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movimento estudantil (priorizou-se um modelo de educação
“vindo de fora”), fato que revelava a prioridade dada aos
interesses particulares. A EMC faz parte deste contexto: as
mudanças que ocorriam na área educacional eram determinadas
pelos objetivos do grupo que se encontrava no poder durante
a ditadura militar.
A construção do programa de Educação Moral e Cívica
consta de documentos oficiais, tais como o Decreto 869/69
que tornou a disciplina obrigatória e o documento A
amplitude e desenvolvimento dos programas de Educação Moral
e Cívica em todos os níveis de ensino, que tinha o objetivo
de definir os programas de EMC. Estes documentos revelam as
reais intenções da disciplina, entre elas: “aperfeiçoamento
do caráter do brasileiro e ao seu preparo para o perfeito
exercício da cidadania democrática” (BRASIL, 1970, p. 9).
Os documentos oficiais são instrumentos formulados sob
coordenação dos condutores do regime em vigor,
consequentemente, expressam os reais objetivos dos membros
do poder. Tais documentos revelam os propósitos que
dirigentes do governo tinham em relação à EMC, o que também
contribui na análise dos livros didáticos.
A pesquisa centra-se, principalmente, na análise dos
conteúdos dos livros didáticos de Educação Moral e Cívica.
Mas, como o próprio trabalho irá demonstrar, a construção
de uma disciplina está relacionada com as determinações
políticas e econômicas de uma determinada época. Portanto,
a análise dos conteúdos depende da contextualização de todo
o período. Junto às reformas educacionais e aos documentos
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oficiais, é preciso compreender os objetivos dos que se
encontram no poder. De um modo geral, estes objetivos
compreendem: a necessidade do progresso econômico
dependente do capital externo e a manutenção do regime
militar centrado em um suposto ideal democrático.
A intenção é demonstrar, através da análise de quatro
livros didáticos de EMC, que ninguém ficava de fora do
chamado “projeto de integração nacional”, nem mesmo as
crianças que eram bombardeadas com conteúdos sempre
favoráveis às intenções do governo militar. Os conteúdos
destes livros abarcam todos os aspectos possíveis da vida
social. Em todos os capítulos os livros procuravam
interferir tanto no que diz respeito aos valores,
proporcionando a formação de comportamentos, quanto nas
questões relacionadas à política e à economia. Tentava-se
formar idéias favoráveis ao processo político em curso.
Buscava-se convencer os estudantes de que os militares eram
os únicos capazes de consolidar uma suposta forma de
democracia, onde não havia espaço para contestação de
qualquer natureza. Os conteúdos relacionados com as
questões econômicas afirmavam que todos os brasileiros, das
diversas regiões do país, participavam da construção do
“Brasil grande potência” e também desfrutavam dos lucros do
desenvolvimento econômico.
Os conteúdos dos livros didáticos de Educação Moral e
Cívica, como também as demais reformas educacionais do
período militar, revelam que os aspectos sociais, políticos
e econômicos eram utilizados pelo grupo de poder na
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tentativa de homogeneizar valores e ações favoráveis ao
projeto empreendido pelos segmentos sociais que formavam o
grupo dos que governavam o país durante a ditadura militar.
É fundamental mencionar que não se pretende validar as
determinações realizadas pelo grupo dirigente.
Principalmente, no que diz respeito aos conteúdos
trabalhados pelos livros didáticos de Educação Moral e
Cívica. A intenção, antes de mais nada, é
revelar a disciplina como um mecanismo, dentro de um
conjunto de outros mecanismos, que visava o fortalecimento
de formas de agir e de pensar favoráveis aos objetivos
sociais, políticos e econômicos postos em andamento desde
março de 1964.
O grupo que conduziu a ditadura militar enfatizava que
a “revolução” seria a favor da democracia, que o golpe em
si já era democrático, ou seja, que respondia aos anseios
de toda a população. Todas as ações eram colocadas como
sendo a serviço do povo, tudo que o grupo dirigente
realizava no interior da política, era, segundo eles,
democrático, até mesmo o AI5 que representou o momento de
maior repressão e autoritarismo durante a ditadura militar.
O uso do termo democracia era utilizado para justificar as
medidas adotadas tanto na economia, na educação quanto na
política e estava diretamente ligado à necessidade de
legitimar o governo e suas ações. Com base nisto é que os
livros didáticos de Educação Moral e Cívica, também
tornavam comum o uso do termo democracia, porém, eram
transmitidos aos alunos conceitos que viessem a confirmar a
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idéia de democracia imposta pelos condutores do regime
militar. Isto porque nos livros de EMC do 1º grau, o
governo e o Estado brasileiro eram demonstrados como sendo
democráticos e como se todas as suas ações fossem
determinadas por tais princípios. Vinculava-se, assim, nos
livros didáticos de Educação Moral e Cívica, a ditadura
militar à forma mais legítima de democracia. No livro
didático Educação Moral e Cívica consta que: De cinco em
cinco anos, o povo brasileiro, por intermédio dos seus
representantes, escolhe (elege) o Presidente da República.
O povo também escolhe os Deputados Federais e os Senadores
[...] Cada presidente faz o que lhe cabe para que todos os
brasileiros sejam felizes e possam prosperar.
As duas principais leis referentes à educação durante
a ditadura foram aprovadas de acordo com os interesses do
Executivo; a oposição no Senado foi silenciada, sujeita à
cassação. Agora, como é possível conceber a ideia de que os
representantes do povo escolhiam o presidente da República?
Que o povo indiretamente escolhia os presidentes? Se nem as
leis passavam por processos de tramitação democráticos, se
os senadores, principalmente os da oposição, não tinham
liberdade de voto. E mais, o livro didático, destinado
neste caso para os alunos da 4ª série, além de sugerir a
existência da democracia nas eleições para presidente,
justifica as ações do mesmo a favor do povo, negando sempre
os interesses particulares de alguns setores da sociedade.
Em Educação Moral e Cívica na Escola de primeiro Grau,
a defesa de um suposto ideário de democracia também é
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evidente nos conteúdos: O fato das eleições serem diretas
ou indiretas, não é o que caracteriza uma democracia. Para
que um regime seja realmente democrático, é preciso que os
mandatos eletivos, isto é, o exercício dos cargos de
governo sejam por tempo determinado. Só nas ditaduras é que
os chefes se perpetuam nos cargos e nunca os cedem a outros
.
Os livros didáticos de EMC como parte da estratégia
psicossocial vigente durante a ditadura militar pretendiam,
de fato, fazer acreditar que, naquele momento, o Brasil
realmente era um país democrático. Os conteúdos dos livros
didáticos eram utilizados como um mecanismo para convencer
a população de que não se vivia em tempos de ditadura. Mas
a realidade política durante a ditadura militar é
reveladora de que o período era marcado por medidas
antidemocráticas, pois, mesmo que durante todo o período de
1964 a 1984, tenham se alternado no poder quatro
presidentes, o que mudava era apenas a pessoa, ou seja, a
figura do presidente. Uma vez que todos eram militares e do
mesmo partido político, os interesses, objetivos e valores
permaneciam os mesmos. É relevante considerar que se
alterava em alguns momentos a política adotada (há momentos
de intensa concentração de poder por parte do Executivo,
como também momentos de abertura política), mas tudo como
estratégia para manter os ideais e valores e para atingir
os objetivos da chamada “revolução de 64”
“(...) Uma fração dos setores empresariais (industriais
principalmente), passou (...) a exigir que se abrissem
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alguns canais efetivos de participação; o que levou a
partir de 1974, as tentativas de realinhamento no interior
do poder (entre os setores empresariais) efetivando
veladamente demandas que se constituiriam numa necessária
redefinição do processo político que culminou na política
de distensão no governo Geisel”. Outros livros didáticos
de EMC também reforçam as duas idéias referidas acima (de
que o povo escolhia através do voto os presidentes e de que
estes se alternavam no poder, configurando, assim, a
democracia), com o objetivo de inculcar nas crianças que o
regime militar era, realmente, democrático, permitindo a
participação do povo e tendo as ações políticas voltadas
para ele e para toda a nação, ou seja, para o “bem comum”;
Você, eu, todos nós estamos subordinados às leis
brasileiras; as maiores autoridades do governo, também.
Para quê? [...] O Estado tem como fim a conquista, a
manutenção e o desenvolvimento do bem comum nacional, isto
é, de todos nós, que formamos a nação brasileira. [...] O
poder pertence ao povo. A isto se chama soberania popular.
Em outras palavras, a soberania do Brasil é o poder de seu
povo. Mas, como poderiam 104 milhões de brasileiros
decretam:
governar? Seria balbúrdia. Ninguém se entenderia. É por
isto que o povo concede sua soberania, isto é confia seu
poder a poucos brasileiros, os quais, na condição de
“representantes” (do povo), exercem o governo. [...] É
imoral para um representante trair o povo que nele confiou
e, em vez de trabalhar pelo bem público, aproveitar-se do
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cargo para tirar vantagens pessoais ou defender indevidos
interesses de pequenos grupos em detrimento do bem comum
(No livro Estudo Dirigido de Educação Moral e Cívica, é
possível perceber um apelo ainda maior, que demonstra o
quanto os condutores do regime, que se expressavam também
pelos livros didáticos, eram dissimulados ao afirmarem que
o regime político existente no Brasil era a democracia e
que os governantes dirigiam suas ações em beneficio de
todos os brasileiros, sem distinção de grupo social. É
interessante destacar um exercício que consta no livro: O
Brasil é uma República de regime representativo. Num país
representativo:
a) ( X ) o Governo é exercido pelos representantes do povo.
b) ( ) o Governo é exercido pelos representantes dos
industriais, bancários e comerciários.
Na alternativa “b” constam exatamente os segmentos
sociais que faziam parte do chamado grupo de poder e que se
beneficiaram com a política adotada pelo regime militar,
principalmente com o milagre econômico. Porém, o livro
didático tentava convencer de que não existiam segmentos
sociais beneficiados pela política adotada.
Este convencimento se dava sem receios, pois o livro,
para demonstrar o contrário do que mencionava, utiliza
exatamente os segmentos sociais beneficiados pela política
econômica, contrapondo-os ao bem comum, para demonstrar que
não existiam setores favorecidos, que os interesses do povo
prevaleciam sobre qualquer interesse particular.
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Note-se que a Educação Moral e Cívica foi uma
disciplina que visava ao convencimento de que a ditadura
militar tinha como fundamento o povo, que os governantes
respondiam aos interesses e aspirações de todos. Pretendia-
se formar, com isto, cidadãos favoráveis ao governo.
Buscava-se o consenso como forma de garantir a
legitimidade. Para tanto, era utilizado também o
patriotismo. Nesta linha, o livro Estudo Dirigido de
Educação Moral e Cívica segue: Quanto mais amamos a Pátria,
mais democratas somos. O voto, com que se elegem os
representantes do povo, pode ser um ato de amor à Pátria ou
um ato de egoísmo. Eleitores e políticos devem visar, em
primeiro lugar, aos interesses da Pátria. Quando a Pátria é
servida por todos, todos são beneficiados. O livro afirma
que o voto elege os representantes e que, não só os
eleitores, mas também os políticos devem visar os
interesses de todos como um gesto de amor à Pátria e, ainda
enfatiza que “a democracia representativa é o melhor regime
político que existe”. Com isto, é possível dizer que três
pontos se cruzam em torno da democracia anunciada nos
livros didáticos de Educação Moral e Cívica: 1º) é a melhor
forma de governo, 2º) é a forma de governo existente no
Brasil e, por fim, se pretende convencer, de que, se no
Brasil existe a democracia a melhor forma de governo, são
os militares que a realizam. Como visto, o regime militar
utilizava a educação, mais especificamente a disciplina
Educação Moral e Cívica para atingir seus objetivos e
interesses, instruindo crianças e jovens sobre uma ideia
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deturpada de democracia. Isto era fato, se comparada a
teoria vista nos livros de Educação Moral e Cívica com a
realidade política presente no Brasil naquele momento. O
que a disciplina pretendia, e é possível constatar pela
análise dos livros didáticos, era fazer com que os alunos
acreditassem que o povo tinha a liberdade de escolher seus
representantes e de que seus direitos e interesses seriam
defendidos por eles, sempre com respeito a vontade da
maioria. Ou seja, de que a ditadura militar era um regime
político democrático e que mesmo suas atitudes autoritárias
eram a favor de todos os brasileiros.
Um outro aspecto relevante presente nos livros
didáticos, como forma de supor a existência da democracia
durante o período do regime militar, diz respeito à atuação
de trabalho em conjunto do Legislativo com o Executivo, o
livro Educação Moral e Cívica, revela o seguinte: Juntos,
Câmara e Senado constituem o Congresso Nacional, que é o
poder Legislativo, assim chamado porque lhe cabe estudar as
leis propostas pelo Poder Executivo ou tomar a iniciativa
de elaborá-las. O Presidente da República e o Congresso
Nacional governam em harmonia. Essa convivência entre os
dois poderes (Executivo e Legislativo) chama-se paz
política.
A atuação livre de vereadores, deputados e senadores,
no momento de aprovação e/ou elaboração das leis, é um dos
elementos da política que caracteriza a democracia, uma vez
que são representantes da sociedade civil, estão no poder
para defender os interesses do povo que os elegeu.
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Considerando esta importância em relação à liberdade dos
legisladores para a democracia, é que os livros didáticos
sugeriam a chamada paz política. Na realidade, não era isto
que se operava, naqueles tempos de autoritarismo em que
prevalecia o Executivo sobre o Legislativo e, quando o
Congresso não se encontrava fechado, deputados e senadores
trabalhavam sobre pressão. Se não agissem de acordo com os
interesses do Executivo eram ameaçados de cassação e de
perder os direitos políticos. Diante disto, os alunos além
de aprenderem noções contraditórias de democracia, também
recebiam informações falseadas da realidade.
Todas as novas leis e decretos que o regime militar
estabelecia tinham o objetivo de atender o conjunto de
interesses dos componentes civis e militares do grupo de
poder (industriais, banqueiros, estamento militar,
tecnoburocratas civis e até mesmo a classe média), o que
exercício número 8, do livro Estudo Dirigido de Educação
Moral e Cívica tentava falsear. Como o próprio exercício
procurava ensinar aos alunos, as novas leis eram
consideradas a favor de todas as classes sociais, de toda a
nação, mesmo que, na realidade, não fosse isto que se
observava. Esta artimanha era utilizada para conquistar o
consenso da população e, assim, legitimar o regime. É o que
se pode observar também em relação às leis e às autoridades
políticas, principalmente em relação ao Presidente da
República – todas as leis e ações do Presidente da
República visavam, segundo os conteúdos dos livros
didáticos, ao bem comum. Em Estudo Dirigido de Educação
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Moral e Cívica, o capítulo intitulado Estado de bem comum,
inicia com uma ilustração de dois “homens da caverna”
brigando pela posse de uma onça morta, na seqüência aparece
um terceiro dizendo: “A onça pertence àquele que a matou”.
Neste momento a briga termina e o capítulo segue com a
seguinte conclusão: “Os primeiros grupos humanos sentiram a
necessidade de leis e autoridades para cuidar do bem comum
(...). Com o tempo, a humanidade cresceu e progrediu.
Surgiram as cidades. Aumentou então a necessidade de leis e
governantes que cuidassem do bem comum.
Pretendia-se passar para os alunos que as leis e as
autoridades eram naturalmente necessárias para a manutenção
da ordem e da convivência em sociedade.
Em relação a isto, é possível afirmar que os
condutores do regime militar pretendiam justificar o
excesso de autoridade por parte dos seus governantes, assim
como das promulgações de decretos-lei e dos Atos
Institucionais, como sendo fundamentais para a manutenção
da vida em sociedade, respeitando sempre os princípios
democráticos.
O livro Educação Moral e Cívica utiliza um outro viés
para justificar a necessidade de leis e autoridades. Neste
caso, parte-se da família: Em casa, os pais fazem as
principais determinações sobre a vida da família. E se
alguém fica doente, o médico prescreve remédios que tomamos
direitinho.
Tudo para o bem de todos. Quer dizer: em casa temos
determinações sobre o nosso comportamento. Na escola também
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existem determinações que constituem o regulamento Escolar.
[...] no Brasil, há igualmente determinações que se chamam
leis, a que todos os brasileiros obedecem, para o beneficio
de todos! [...] As leis são feitas pelos legisladores. São
legisladores: os Vereadores, Deputados, os Senadores e, em
casos especiais, o Presidente da República.
É comum o termo “para o bem de todos” e, neste caso, o
livro didático parte da naturalização das leis e das
arbitrariedades realizadas pelos que conduziam o governo, a
partir da família. Sugere que, assim como elas existem no
lar, existem também, como que espontaneamente no país. E é
também neste momento que o livro procura justificar os
chamados casos especiais, em que os próprios presidentes
sancionavam novas leis, pois, assim como em uma família os
pais determinam sobre o que é bom e ruim para os filhos, os
“representantes do povo” também podiam determinar as leis
que consideravam necessárias para o bem da nação.
A análise dos conteúdos dos livros didáticos de EMC
permite constatar que os alunos eram induzidos a pensar o
seguinte: “se na minha casa existe autoridade, também deve
existir no Brasil. Confiar nos meus pais é o mesmo que
confiar no Presidente da República, já que os dois querem o
bem de todos”. Assim, o apelo à família nos livros de
Educação Moral e Cívica torna-se comum, isto pode ser
considerado como uma estratégia, já que os laços de
confiança, principalmente das crianças, estão vinculados ao
ambiente familiar. Desta maneira, não deveria ser difícil
para os alunos acreditarem que realmente a política adotada
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pelo regime militar estivesse a serviço de toda a nação e
que todos os brasileiros, independente de classe social,
eram representados pelo Presidente da República. Mais uma
vez, é possível considerar a veiculação e utilização dos
livros didáticos de Educação Moral e Cívica como parte da
estratégia psicossocial, pois é evidente que seus conteúdos
pretendiam trabalhar com os valores dos alunos e
transformá-los a favor da legitimidade do autoritarismo
vigente.
A questão das leis, liderança e autoridade
relacionadas à família estão presentes, de forma ainda mais
enfática e subjetiva, no livro Educação Moral e Cívica na
escola de primeiro grau: Vovô é uma verdadeira autoridade
aqui em casa. O que ele fala, esta falado, ninguém discute
porque tem sempre razão. Tem uma maneira de falar, até
papai cede! E, olhe que nosso pai é um líder. Muita coisa
do que vovô diz, vem do que a vovó pensa. Já notei isso:
uns pensam outros dizem: uns mandam outros obedecem. É como
um rodízio que a gente faz num jogo de bola: às vezes é um
grupo que manda e o outro recebe as ordens, outras vezes, é
a vez do outro grupo mandar. Penso que minha vez de mandar
vai ser quando eu for pai e chefe de alguma coisa. [...]
Na nossa casa há divisão de poderes – como diz meu pai –
“cada macaco no seu galho!” Não há brigas. Mamãe pede para
fazer o que é bom para nós e para o grupo [...]. No país,
diz tio Pedro, há várias autoridades com seus poderes.
[...] Marisa saiu-se com uma que é preciso anotar. Tio
Pedro explicava um montão de coisas que eu escrevi aí em
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cima quando ela disse: - E ninguém manda no Presidente da
República? [...] Pensei que tio Pedro fosse ficar
atrapalhado, mas ele riu e disse: - No Brasil, havendo
democracia, o presidente também obedece às leis e faz com
que elas sejam cumpridas [...] o presidente também pode
fazer leis, principalmente quando o Congresso está em
recesso – isto é, não funciona. O fragmento acima revela
bem o jogo de artifícios utilizado pelo grupo de poder, na
tentativa de convencer os alunos de que é necessária a
existência do autoritarismo, ou melhor, de que alguns
possuem a capacidade e as características necessárias para
mandar, enquanto que a outros cabe obedecer. Mas este
convencimento se opera com certa sutileza, ou seja, existe
a tentativa de disfarce, pois, ao mesmo tempo em que o
livro utiliza a linguagem de uma criança escrevendo em seu
diário, utilizando termos como, por exemplo, mamãe e vovô
utilizam também termos grosseiros como ninguém discute e um
manda outro obedece.
Após toda uma exposição de relações de poder e de
hierarquia dentro da família, o livro menciona o Presidente
da República e suas formas de ação, como uma maneira de
preparar o aluno para que agisse de acordo com o que
propunham os condutores do regime. As relações familiares
eram utilizadas para justificar o poder, a autoridade e,
até mesmo, a elaboração de leis pelo presidente da
república, pois o próprio livro sugere que ninguém deveria
discutir com uma verdadeira autoridade. Como já foi
observado, existe certa sutileza e a utilização de valores
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subjetivos para legitimar o excesso de autoritarismo, pois
o excerto acima revela metáforas como “vovô é uma
verdadeira autoridade” e “em casa há divisão de poderes”.
Assim, busca-se a justificar a organização política
durante a ditadura militar, pois as formas de mando
constatadas no período pelos dirigentes políticos são
transmitidas, aos alunos, como se fossem naturais e
necessárias para o bem de todos.
A Educação Moral e Cívica é expressão da “guerra
total” estabelecida pela Escola Superior de Guerra (ESG):
era uma batalha contra tudo o que poderia fragilizar o
regime (valores, idéias, manifestações e ações). Tem-se que
a imposição dos conteúdos de EMC, assim como as demais
reformas da educação, durante o período de 1964 a 1984,
esteve a serviço de um projeto de poder. Desconsiderou-se,
assim, o papel social que a educação deveria cumprir. Mesmo
sem quantificar as influências da disciplina na aquisição
de valores e comportamentos, tem-se que a EMC foi um
mecanismo muito bem articulado pelos dirigentes do governo
na busca da formação de uma mentalidade favorável aos
caminhos propostos pelos condutores do regime instaurado em
1964.
A análise elaborada por Moacir Araújo Lopes se pauta
bastante num olhar sobre os jovens e as mulheres, talvez
por serem considerados os elementos mais vulneráveis ao
desvio da moral. A partir da década de 1970 uma série de
obras será publicada no país, na tentativa de atender a
nova demanda dos currículos escolares, a disciplina de
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Educação Moral e Cívica. Segundo afirma Filgueiras, a
disciplina tornou-se obrigatória em 1969, mas em 1970 “já
existiam dez livros no mercado. No ano de 1971 foram
publicados mais treze livros da disciplina. As editoras
didáticas atenderam rapidamente a demanda do marcado da
Educação Moral e Cívica.” Os elementos destacados por
Moacir Araujo Lopes acerca do desvio da moral serão
expressamente difundidos nos livros didáticos de EMC,
sobretudo aqueles que se detêm no tema “família”. O lugar
da família na sociedade, sua atuação na educação dos novos
cidadãos, o caráter cristão que a constituiu, além do
estabelecimento de papéis de mães e pais, mulheres e
homens, no convívio familiar vão marcar as principais
preocupações, envolvendo a família. Os discursos marcados
pelo gênero serão encontrados nos livros didáticos dos
diferentes níveis de ensino, ou seja, 1° e 2° graus. Um
exemplo disso está no seguinte trecho extraído do livro
“Curso de Educação Moral e Cívica” de Pinto Ferreira: Vê-se
assim a formulação de uma nova moral sexual, coadjuvada
pela onda de erotismo, pelos festivais de pornografia,
pelos hippies, pelos vestidos transparentes, pelas revistas
de nudismo, pelo cinema, pelo desnudamento progressivo da
mulher, pelo maiô topless, em ondas desagregadoras da
estabilidade da família e do casamento. [...] Essa nova
moral sexual, contudo deve ser combatida. É preciso
contestá-la e superá-la. [...] É preciso então conter esta
fúria agressiva e demolidora contra as instituições da
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família e do casamento, como medida indispensável de coesão
e estabilidade social.
O livro de Pinto Ferreira, voltado para o 2° grau (1°
e 2° ano colegial) traduz um pouco o clima vivenciado pelo
país na década de 1970, em que a difusão de novos modelos
de sexualidade e comportamento emergia no Brasil
contrapondo-se ao tipo ideal proposto para o próprio
desenvolvimento da nação. Dessa forma, a moral sexual
encontraria na moral cristã o seu lugar, pois somente a
instituição da família, devidamente constituída por
princípios cívicos, traria a almejada “estabilidade social”
ao país.
No livro “Construindo o Brasil” de Maria T. Pimentel
(1977, p. 101), voltado para o 1° e 2° graus, as
formulações acerca do lugar dos pais na sociedade se tornam
mais clara, a partir do seguinte trecho. O esposo:
apresenta características físicas e psicológicas diferentes
da mulher. Tem maior força física e uma musculatura
apropriada para trabalhos mais pesados. É mais racional,
lógico e organizador que a mulher, faz planos a longo
prazo. Tem o dom da organização, lançando-se por causa
disso, a empresas difíceis e corajosas. A esposa: tem o
corpo apto para a maternidade. É dotada de grande
capacidade de sentimento e amor, delicada, com inteligência
e perspicácia, especialmente encaminhadas à missão de ser
mãe. É mais intuitiva e mais sagaz que o homem, tem maior
resistência à dor e capacidade de praticar o “altruísmo”,
que quer dizer abertura para o outro, possui as qualidades
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essenciais de que a criança vai precisar nos primeiros anos
de vida.
A clara definição dos papéis exercidos por homens e
mulheres no âmbito da família, constituindo aí identidades
de gênero a estes sujeitos, demarca a linha em que se
orienta esta pesquisa. As mobilizações em torno do gênero,
atribuições de 7características específicas a homens e
mulheres, a naturalização de determinados tipos de
comportamentos, vão configurar uma espécie de modelo ideal
de cidadão, considerado absolutamente necessário naquela
conjuntura sociopolítica. Diante de tal contexto, podemos
perceber, inclusive, um duplo movimento ao pensar as
relações entre público e privado. O primeiro, encontrado
nos livros didáticos, está no próprio estabelecimento de
modelos, para homens e mulheres na sociedade, o âmbito
público constituído pelo elemento masculino e o privado
pelo feminino. O segundo movimento compreende o fato da
preocupação em encerrar o feminino no privado estar
diretamente ligada ao próprio projeto elaborado para o
país. Dessa forma, o privado se inscreve no campo político.
As problemáticas formuladas, na tentativa de entender as
formas pelas quais se sustentam os perfis de gênero
elaborados pelos manuais e livros didáticos de moral e
civismo, nos levam a questionamentos ainda mais
desafiadores, como: havia divergências, entre as diferentes
frentes que atuavam na Comissão de Moral e Civismo, na
Escola Superior de Guerra e no próprio governo na
fomentação de modelos identitários de gênero considerados
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adequados? É na análise destes discursos que notaremos como
isso se deu no âmbito das relações de poder que, no sentido
dado por Michel Foucault , atravessam, caracterizam e
constituem o corpo social e que estas relações de poder não
podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma
produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento
do discurso.
Tal prerrogativa se insere naquilo que Michel Foucault
vai chamar de caráter descontínuo dos discursos, na medida
em que não se deve pensar em discursos reinantes
ilimitados, mas no intercruzamento entre eles,
contabilizando aí a instituição das práticas. A profusão de
discursos estabelecendo modelos de gênero ganhará espaço no
âmbito da educação, pois este exerce influência sobre os
campos da cultura, do comportamento e até mesmo da censura,
estando os três imbricados no campo do discurso e das
práticas. Analisar a construção destes discursos, seus
deslocamentos e articulações no campo político se
apresentam como um desafio para esta pesquisa, na medida em
que estas questões norteiam os objetivos a que pretendemos
alcançar. Nesse sentido, as contribuições teóricas de
Foucault e Scott, referências nos estudos de gênero, bem
como o diálogo constante com dissertações de mestrado,
livros, artigos e demais obras sobre o período, inseridas
dentro do recorte aqui esboçado, são altamente relevantes
para esta pesquisa.
A ditadura militar brasileira (1964 – 1985) se
estabeleceu como uma alternativa para grupos sociais que
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acreditavam em uma evidente deflagração de uma revolução
comunista no país. Um governo identificado como comunista
alteraria não só as relações com as noções de propriedade,
economia, desenvolvimento e consumo, como também traria em
seu bojo um arsenal de comportamentos, condutas e
percepções no que tange ao lugar do masculino e do feminino
no corpo social. Estas possíveis transformações surgiram,
no início dos anos de 1960, como preocupações primordiais
em torno de uma “onda comunista” que estaria pronta para
tomar o poder no Brasil.
Nesse sentido, o regime militar pós 1964 se alicerçava sob
a hipótese de uma ameaça comunista, considerando que
somente um governo forte, dirigido por militares, seria
capaz de combater esse “mal” insurgente.
A pesquisa aqui empreendida analisa, dentro do recorte
temático-temporal da ditadura civil-militar brasileira
(1964-1985), de que forma as estratégias psicossociais
formuladas pelo Estado, baseado na Doutrina de Segurança
Nacional, em combate ao comunismo, mobilizaram identidades
de gênero na construção de um ideário patriótico.
Nesse sentido, busca-se entender as articulações da
Doutrina em torno do “inimigo interno”, personificado por
setores da sociedade que promoviam ações comunistas. A
estratégia de caráter psicossocial centralizava-se nas
questões morais de comportamento e identidade, pois,
segundo a Doutrina, a degradação da moral era um mecanismo
utilizado pelos comunistas na tentativa de ganhar terreno
para a divulgação e implementação de seus ideais (MOTTA,
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2002). Diante desse quadro, foi criada, em âmbito nacional,
a disciplina de Educação Moral e Cívica com a finalidade de
promover um perfil ideal de cidadão comprometido com os
valores e fundamentos que constituem
os pilares da nação e com o fortalecimento de um povo unido
em torno de um “bem comum”. Este artigo irá se deter em um
recorte, dentro da pesquisa maior, analisando
especificamente as mobilizações de gênero em torno da
disciplina Educação Moral e Cívica (EMC), a partir da forma
como as identidades masculinas e femininas foram pensadas
tanto no âmbito da família quanto em âmbito nacional. Para
isso, alguns livros-fonte serão fundamentais nesta
pesquisa, tais como livros didáticos de EMC,“Moral e
Civismo” de Moacir Araújo Lopes e o Manual Básico da Escola
Superior de Guerra.
As mobilizações de gênero a partir da disciplina de
Educação Moral e Cívica.A implementação da Ditadura Civil
Militar no Brasil respondeu a expectativa de setores
militares e civis temerosos a uma maior difusão de ideias
comunistas no país, o que poderia levar a ações mais
enérgicas de grupos sociais vinculados a este ideário.
Considerado o “inimigo interno”, o comunismo será foco
de violentas investidas por parte do Estado, que tomará
como base a Doutrina de Segurança Nacional e
Desenvolvimento para justificar seus atos. À frente das
medidas acerca da segurança nacional estava a Escola
Superior de Guerra (ESG), órgão que exercia funções de
direção e planejamento da segurança nacional, o qual
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estabelecia as diretrizes que configuraram as estratégias
de defesa do país. Segundo a cientista política Maria
Helena Moreira Alves (1984, p. 26), a Doutrina de Segurança
Nacional e Desenvolvimento Efetivamente prevê que o Estado
conquistará certo grau de legitimidade graças a um
constante desenvolvimento capitalista e a seu desempenho
como defensor da nação contra a ameaça dos „inimigos
internos‟ e da „guerra psicológica‟. A legitimidade é
vinculada aos conceitos de desenvolvimento econômico e
segurança interna.
Tal acepção nos faz indagar acerca de que ações foram
mobilizadas para que os objetivos estatais fossem
alcançados, bem como sua inserção na sociedade. Para ajudar
a pensar essas questões nos são muito caras as
contribuições do General Golbery de Couto e Silva, um dos
maiores teóricos da Escola Superior de Guerra (ESG) sobre a
segurança nacional, em seu livro “Conjuntura Política
Nacional – O Poder Executivo e Geopolítica do Brasil”, obra
sobre os aspectos da Segurança Nacional no período do
Regime Militar.
Golbery nos apresenta as configurações da Segurança
Nacional a partir de um quadro em que a política de
segurança fomentava o conceito estratégico no qual estavam
inseridas diretrizes governamentais que direcionavam
estratégias para quatro âmbitos: o Político, o Econômico, o
Psicossocial e o Militar. O recorte utilizado por esta
pesquisa centralizar-se-á na Estratégia Psicossocial, na
medida em que esta atuará no campo da moral tendo em vista
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setores específicos da sociedade civil, tais como a
família, as escolas e as universidades. O Manual Básico da
Escola Superior de Guerra (1977), obra organizada e
frequentemente atualizada pela ESG, que concentra grande
parte das estratégias elaboradas no âmbito da Segurança
Interna e Externa, expressa que a Estratégia Psicossocial
visa à motivação de pessoas e da sociedade, com a
finalidade de criar condições psicológicas favoráveis ao
apoio das atividades de mobilização.
[...] O impacto dessa influência se faz de maneira
muito intensa na Expressão Psicossocial, alterando hábitos,
costumes, padrões de comportamento, contribuindo para o
surgimento de novas formas de pensar, sentir e agir, com
efeitos profundos sobre o tecido social.
O Estado de Segurança Nacional, tendo como base a
Estratégia Psicossocial, preocupou-se de forma particular
com a questão da degradação da moral, desestruturação
familiar e com o desvio sexual. Como afirma Rodrigo Patto
de Sá Motta (2002, p. 64) “o comunismo significaria um
desafio à sobrevivência da própria sociedade civilizada,
ameaçada em seus fundamentos por estes bárbaros do mundo
contemporâneo”. Na perspectiva da Doutrina, uma sociedade
marcada pela mudança de comportamento no sentido da
desarticulação dos princípios morais cristãos se tornaria
campo fértil para a difusão do ideário comunista no país.
Dessa forma, estratégias serão pensadas na tentativa de
instituir valores cristãos no âmbito social em detrimento
da ameaça comunista que, supostamente, se instalava no
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país. Um dos mecanismos utilizados pelo Estado com o
intuito de fortalecer os valores morais, foi a criação da
disciplina de Educação Moral e Cívica, segundo o Decreto-
Lei 869/69. Tal iniciativa tornou obrigatório o ensino da
disciplina em todas as escolas brasileiras, de todos os
níveis de ensino, tendo em vista a formação de um
brasileiro consciente de suas obrigações com a nação. Uma
das fontes utilizadas para o desenvolvimento deste trabalho
de pesquisa será o livro “Moral e Civismo” de Moacir Araujo
Lopes, principal idealizador da disciplina de Educação
Moral e Cívica e primeiro presidente da Comissão de Moral e
Civismo. Esta obra é composta por uma série de palestras,
realizadas em diferentes oportunidades entre os anos de
1966 e 1970, pelo general. Segundo Araújo Lopes (1971, p.
121), a constituição do “caráter com base na moral,
originária da ética, tendo como fonte Deus” bem como o
“amor a pátria e às suas tradições, com capacidade de
renúncia” levaria a “ação intensa e permanente, em
benefício do Brasil”. Estes elementos constituíam o
conceito de civismo que funcionava como chave para a defesa
do princípio democrático, a preservação dos valores
espirituais e o aprimoramento do caráter, com apoio na
moral, na dedicação à família e à comunidade.
Nesse sentido, a elaboração de um princípio cívico
será bastante justificada a partir dos problemas os quais o
país vinha enfrentando, apontados como “grave fase atual da
nação”. Segundo afirma Juliana Miranda Filgueiras (2006) a
Comissão de Moral e Civismo é vinculada diretamente à
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Doutrina de Segurança Nacional e à Escola Superior de
Guerra e seus membros eram preferencialmente diplomados
pelas ESG.
As mobilizações em torno do exercício da cidadania
contribuiriam para o estabelecimento de uma nação forte
construída pelos jovens do país, pois estes deveriam se
preparar para exercer uma função na sociedade, por isso, a
disciplina de Educação Moral e Cívica traria em seu
currículo a apreensão de direitos e deveres, do amor à
pátria e, ainda dentro dessa perspectiva, o estabelecimento
de identidades para homens e mulheres na construção desta
nação. Refletir sobre as iniciativas estatais em torno da
educação e seu viés de gênero seria pensar na proposta da
historiadora Joan Scott (1991) quando esta formula que as
relações de gênero são uma primeira forma de dar
significado às relações de poder. Ter a dimensão de que as
preocupações com as questões comportamentais e referentes à
sexualidade estão inseridas dentro de um projeto para o
país que procura articular aspectos da segurança nacional
caracteriza bem a proposta lançada pela historiadora;
demarca, inclusive, a linha de análise na qual esta
pesquisa se orienta. O forte viés de gênero encontrado no
manual de moral e civismo de Moacir Araújo Lopes pensará em
modelos masculinos e femininos ideais baseados em
princípios cristãos. Os desvios de comportamento e da moral
sexual deveriam ser corrigidos, pois só assim o país
estaria no caminho certo para o desenvolvimento, sobretudo,
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econômico. Identificamos esses aspectos no seguinte trecho
escrito pelo general.