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DECRETO-LEI Nº 869, de 12 DE SETEMBRO De 1969. Dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País, e dá outras providências. OS MINISTROS DA MARINHA DE GUERRA, DO EXÉRCITO E DA AERONÁUTICA MILITAR, usando das atribuições que lhes confere o artigo 1º do Ato Institucional nº 12, de 31 te agosto de 1969, combinado com o § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, decretam: Art. 1º É instituída, em caráter obrigatório, como disciplina e, também, como prática educativa, a Educação Moral e Cívica, nas estolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País. Art. 2º A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas tradições nacionais, tem como finalidade: a) a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade; c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento de solidariedade humana; d) a culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua historia;
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DECRETO-LEI Nº

Feb 27, 2023

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Page 1: DECRETO-LEI Nº

DECRETO-LEI Nº 869, de 12 DE SETEMBRO De 1969.Dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e

Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades, dos sistemas de ensino no País, e dá outras providências.

OS MINISTROS DA MARINHA DE GUERRA, DO EXÉRCITO E DA

AERONÁUTICA MILITAR, usando das atribuições que lhes

confere o artigo 1º do Ato Institucional nº 12, de 31 te

agosto de 1969, combinado com o § 1º do artigo 2º do Ato

Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, decretam:

Art. 1º É instituída, em caráter obrigatório, como

disciplina e, também, como prática educativa, a Educação

Moral e Cívica, nas estolas de todos os graus e

modalidades, dos sistemas de ensino no País.

Art. 2º A Educação Moral e Cívica, apoiando-se nas

tradições nacionais, tem como finalidade:

a) a defesa do princípio democrático, através da

preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa

humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a

inspiração de Deus;

b) a preservação, o fortalecimento e a projeção dos

valores espirituais e éticos da nacionalidade;

c) o fortalecimento da unidade nacional e do sentimento

de solidariedade humana;

d) a culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições,

instituições e aos grandes vultos de sua historia;

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e) o aprimoramento do caráter, com apoio na moral, na

dedicação à família e à comunidade;

f) a compreensão dos direitos e deveres dos brasileiros

e o conhecimento da organização sócio-político-ecônomica do

País;

g) o preparo do cidadão para o exercício das atividades

cívicas com fundamento na moral, no patriotismo e na ação

construtiva, visando ao bem comum;

h) o culto da obediência à Lei, da fidelidade ao

trabalho e da integração na comunidade.

Parágrafo único. As bases filosóficas de que trata este

artigo, deverão motivar:

a) a ação nas respectivas disciplinas, de todos os

titulares do magistério nacional, público ou privado, tendo

em vista a formação da consciência cívica do aluno;

b) a prática educativa da moral é do civismo nos

estabelecimentos de ensino, através de todas as atividades

escolares, inclusive quanto ao desenvolvimento de hábitos

democráticos, movimentos de juventude, estudos de problemas

brasileiros, atos cívicos, promoções extraclasse e

orientação dos pais.

Art. 3º A Educação Moral e Cívica, com disciplina e

prática, educativa, será ministrada com a apropriada

adequação, em todos os graus e ramos de escolarização.

§ 1º Nos estabelecimentos de grau médio, além da

Educação Moral e Cívica, deverá ser ministrado curso

curricular de “Organização Social e Política Brasileira.”

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§ 2º No sistema de ensino superior, inclusive pós-

graduado, a Educação Moral e Cívica será realizada, como

complemento, sob a forma de Estudos de Problemas

Brasileiros,” sem prejuízo de outras atividade culturais

visando ao mesmo objetivo.

Art. 4º Os currículos e programas básicos, para os

diferentes cursos e áreas de ensino, com as respectivas

metodologias, serão elaborados pelo Conselho Federal de

Educação, com a colaboração do órgão de que trata o artigo

5º, e aprovados pelos Ministros da Educação e Cultura.

Art. 5º É criada, no Ministério da Educação e Cultura,

diretamente subordinada ao Ministro de Estado, a Comissão

Nacional de Moral e Civismo (CNMC).

§ 1º A CNMC será integrada por nove membros, nomeados

pelo Presidente da República, por seis anos, dentre pessoas

delicadas à causa da Educação Moral e Cívica.

§ 2º ApIica-se aos integrantes da CNMC o disposto nos

§§ 2º, 3º, e 5º, do art. 8º da Lei nº 4.024, de 20 de

dezembro de 1961.

Art. 6º Caberá especialmente à CNMC:

a) articular-se com as autoridades civis e militares,

de todos os níveis de governo, para implantação e

manutenção da doutrina de Educação Moral e Cívica, de

acordo com os princípios estabelecidos no artigo 2º;

b) colaborar com o Conselho Federal de Educação, na

elaboração de currículos e programas de Educação Moral e

Cívica;

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c) colaborar com as organizações sindicais de todos os

graus, para o desenvolvimento e intensificação de suas

atividades relacionadas com a Educação Moral e Cívica;

d) influenciar e convocar a cooperação, para servir aos

objetivos da Educação Moral e Cívica, das Instituições e

dos órgãos formadores da opinião pública e de difusão

cultural, inclusive jornais, revistas editoras, teatros,

cinemas, estações de rádio e de televisão; das entidades

esportivas e de recreação, das entidades de casses e dos

órgãos profissionais; e das empresas gráficas e de

publicidade;

e) assessorar o Ministro de Estado na aprovação dos

livros didáticos, sob o ponto de vista de moral e civismo,

e colaborar com os demais órgãos do Ministério da Educação

e Cultura, na execução das providências e iniciativas que

se fizerem necessárias, dentro do espírito deste Decreto-

lei.

Parágrafo único. As demais atribuições da CNMC, bem

como os recursos e meios necessários, em pessoal e

material, serão objeto da regulamentação deste Decreto-lei.

Art. 7º A formação de professores e orientadores da

disciplina “Educação Moral e Cívica,” far-se-á em nível

universitário, e para o ensino primário, nos cursos

normais.

§ 1º Competirá ao Conselho Federal e aos Conselhos

Estaduais de Educação, adotar as medidas necessárias à

formação de que trata este artigo.

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§ 2º Aos Centros Regionais de Pós-Graduação incumbirá o

preparo de professores dessa área, em cursos de mestrado.

§ 3º Enquanto não houver, em número bastante,

professores e orientadores de Educação Moral e Cívica, a

habilitação de candidatos será feita por meio de exame de

suficiência, na forma da legislação em vigor.

§ 4º No ensino primário, a disciplina “Educação Moral e

Cívica” será ministrada pelos professores, cumulativamente

com as funções próprias.

§ 5º O aproveitamento de professores e orientadores na

forma do § 3º, será feito sempre a título precário, devendo

a respectiva remuneração subordinar-se, nos

estabelecimentos oficiais de ensino, ao regime previsto no

artigo 111 do Decreto-lei nº ?00, de 25 de fevereiro de

1967.

§ 6º Até que o estabelecimento de ensino disponha de

professor ou orientador, regularmente formado ou habilitado

em exame de suficiência, o seu diretor avocará o ensino da

Educação Moral e Cívica, a qual, sob nenhum pretexto,

poderá deixar de ser ministrada na forma prevista.

Art. 8º É criada a Cruz do Mérito da Educação Moral e

Cívica a ser conferida pelo Ministro da Educação e Cultura,

mediante proposta da CNMC, a personalidades que se

salientarem, em esforços e em dedicação à causa da Educação

Moral e Cívica.

Page 6: DECRETO-LEI Nº

Parágrafo único. A CNMC proporá ao Ministro da Educação

e Cultura as instruções necessárias ao cumprimento do

disposto neste artigo.

Art. 9º A CNMC elaborará projeto de regulamentação do

presente Decreto-lei, a ser encaminhada ao Presidente da

República, por intermédio do Ministro da Educação e

Cultura, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, a contar da

data da publicação deste Decreto-lei.

Art. 10. Este Decreto-lei entrará em vigor na data de

sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Brasília, 12 de setembro de 1969; 148º da Independênciae 81º da República.

AUGUSTO HAMANN RADEMAKER GRÜNEWALD

Aurélio de Lyra Tavares

Márcio de Souza e MelloTarso Dutra

O ensino da Educação Moral e Cívica durante aditadura militar

Durante a ditadura militar no Brasil pretendia-se

formar indivíduos que se adequassem à nova ordem social. O

Estado mudou a sua forma de intervenção sobre todas as

instituições, inclusive na área educacional. Pretende-se,

neste trabalho, discutir uma destas mudanças: a

implementação e obrigatoriedade da Educação Moral e Cívica.

O objetivo era moldar o comportamento e convencer a

população acerca das benesses do regime militar. Tem se que

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os conteúdos transmitidos aos alunos pelos livros

didáticos, são utilizados de acordo com o contexto

político, econômico e social de uma determinada época,

exatamente como ocorre durante a ditadura militar.

A ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a

1984, foi um período marcado por momentos de extremo

autoritarismo, violência, repressão e por diversos outros

meios de manter o regime. Compreender o conjunto de

interesses e valores dos segmentos sociais que faziam parte

do poder, naquele momento, é fundamental para entender como

vários mecanismos autoritários, que buscavam o controle e o

consenso da população, tentavam atuar nas diversas esferas

da sociedade.

Diante disto cabe a pergunta: de que modo um regime

político autoritário e repressivo construiu formas de

perdurar por pouco mais de vinte anos? Esta questão revela

a necessidade de considerar e analisar a atuação do grupo

de poder (formado por militares e civis), na tentativa de

controlar todos os aspectos da vida social, político,

econômico, cultural e educacional. Tinha-se a intenção de

convencer os indivíduos de que as diversas ações colocadas

em prática, pelos dirigentes do regime, fossem beneficiar a

todos. O governo divulgava, nos diversos meios, inclusive

na área educacional, que havia um projeto de “integração

nacional” e de que o Brasil vivia, plenamente, os ideais

democráticos. Ao mesmo tempo em que a sociedade civil, nos

seus diversos aspectos, era reorganizada para atender os

interesses do regime militar; estratégias eram criadas para

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atuar até mesmo nos valores individuais. Buscava-se

interferir nas formas de pensar e de agir dos indivíduos,

de modo a garantir legitimidade da ditadura:

A afirmativa de que a ditadura tentava legitimar suas

ações e medidas através da construção de um suposto ideário

de democracia significa que se está empregando o sentido de

legitimidade como busca de reconhecimento, por parte da

maioria dos segmentos sociais, em torno dos valores

propalados como fundantes do regime militar, bem como a

procura de adesão ás suas pressuposições em torno da

convivência social

Tinha-se o objetivo de fazer valer os ideais da

chamada “revolução de 1964”, para tanto, os membros do

governo procuravam intervir em todos os recôndidos da vida

social. Diversas instituições, grupos e indivíduos eram, de

alguma forma, controlados, e até mesmo manipulados, por

estratégias arquitetadas pelo regime. A intenção, aqui, é

procurar demonstrar que estes atos, que visavam o controle,

o consenso e a legitimidade do regime militar, se

manifestavam também na área educacional, principalmente,

através da disciplina Educação Moral e Cívica.

A EMC atuava, inclusive, na mente das crianças,

inculcando valores tais como: obediência; passividade;

ordem; fé; “liberdade com responsabilidade” e patriotismo.

Estes valores faziam parte dos conteúdos presentes nos

livros didáticos de EMC, o que leva a considerar a

disciplina como parte da estratégia psicossocial elaborada

pelo governo militar, uma vez que atuava nas formas de

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pensamentos e nas subjetividades individuais com o objetivo

de interferir na dinâmica social. Desejava-se moldar

comportamentos e convencer os alunos acerca das benesses do

regime para que estes contribuíssem com a manutenção do

regime.

A obrigatoriedade e a implementação da Educação Moral

e Cívica faz parte do contexto pesquisado – a ditadura

militar. Para compreender seus desdobramentos, faz-se

necessário mencionar a reestruturação que houve no setor

educacional naquele momento. A educação passou a refletir

os aspectos antidemocráticos existentes no período, o

processo de tramitação das novas leis, 5540/68 que

estabeleceu a reforma universitária e da lei 5692/71,

responsável pela reforma do 1º e 2º graus, já refletia:

“Art. 1º - É revogado o Decreto-Lei nº 869, de 12 de

dezembro de 1969, que dispõe sobre a inclusão da Educação

Moral e Cívica como disciplina obrigatória [...]. Art. 2º -

A carga horária destinada às disciplinas de Educação Moral

e Cívica, de Organização Social e Política do Brasil e

Estudos dos Problemas Brasileiros, nos currículos do ensino

fundamental, médio e superior, bem como seu objetivo

formador de cidadania e de conhecimento da realidade

brasileira.” (BRASIL, 1969). Excesso de autoritarismo por

parte do executivo. Ficava evidente, também, a forte

influência dos Estados Unidos, uma vez que os acordos MEC-

USAID, seguindo o modelo norte-americano de educação,

deliberaram as reformas educacionais no período em questão.

Desta forma, foram desconsideradas as reivindicações do

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movimento estudantil (priorizou-se um modelo de educação

“vindo de fora”), fato que revelava a prioridade dada aos

interesses particulares. A EMC faz parte deste contexto: as

mudanças que ocorriam na área educacional eram determinadas

pelos objetivos do grupo que se encontrava no poder durante

a ditadura militar.

A construção do programa de Educação Moral e Cívica

consta de documentos oficiais, tais como o Decreto 869/69

que tornou a disciplina obrigatória e o documento A

amplitude e desenvolvimento dos programas de Educação Moral

e Cívica em todos os níveis de ensino, que tinha o objetivo

de definir os programas de EMC. Estes documentos revelam as

reais intenções da disciplina, entre elas: “aperfeiçoamento

do caráter do brasileiro e ao seu preparo para o perfeito

exercício da cidadania democrática” (BRASIL, 1970, p. 9).

Os documentos oficiais são instrumentos formulados sob

coordenação dos condutores do regime em vigor,

consequentemente, expressam os reais objetivos dos membros

do poder. Tais documentos revelam os propósitos que

dirigentes do governo tinham em relação à EMC, o que também

contribui na análise dos livros didáticos.

A pesquisa centra-se, principalmente, na análise dos

conteúdos dos livros didáticos de Educação Moral e Cívica.

Mas, como o próprio trabalho irá demonstrar, a construção

de uma disciplina está relacionada com as determinações

políticas e econômicas de uma determinada época. Portanto,

a análise dos conteúdos depende da contextualização de todo

o período. Junto às reformas educacionais e aos documentos

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oficiais, é preciso compreender os objetivos dos que se

encontram no poder. De um modo geral, estes objetivos

compreendem: a necessidade do progresso econômico

dependente do capital externo e a manutenção do regime

militar centrado em um suposto ideal democrático.

A intenção é demonstrar, através da análise de quatro

livros didáticos de EMC, que ninguém ficava de fora do

chamado “projeto de integração nacional”, nem mesmo as

crianças que eram bombardeadas com conteúdos sempre

favoráveis às intenções do governo militar. Os conteúdos

destes livros abarcam todos os aspectos possíveis da vida

social. Em todos os capítulos os livros procuravam

interferir tanto no que diz respeito aos valores,

proporcionando a formação de comportamentos, quanto nas

questões relacionadas à política e à economia. Tentava-se

formar idéias favoráveis ao processo político em curso.

Buscava-se convencer os estudantes de que os militares eram

os únicos capazes de consolidar uma suposta forma de

democracia, onde não havia espaço para contestação de

qualquer natureza. Os conteúdos relacionados com as

questões econômicas afirmavam que todos os brasileiros, das

diversas regiões do país, participavam da construção do

“Brasil grande potência” e também desfrutavam dos lucros do

desenvolvimento econômico.

Os conteúdos dos livros didáticos de Educação Moral e

Cívica, como também as demais reformas educacionais do

período militar, revelam que os aspectos sociais, políticos

e econômicos eram utilizados pelo grupo de poder na

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tentativa de homogeneizar valores e ações favoráveis ao

projeto empreendido pelos segmentos sociais que formavam o

grupo dos que governavam o país durante a ditadura militar.

É fundamental mencionar que não se pretende validar as

determinações realizadas pelo grupo dirigente.

Principalmente, no que diz respeito aos conteúdos

trabalhados pelos livros didáticos de Educação Moral e

Cívica. A intenção, antes de mais nada, é

revelar a disciplina como um mecanismo, dentro de um

conjunto de outros mecanismos, que visava o fortalecimento

de formas de agir e de pensar favoráveis aos objetivos

sociais, políticos e econômicos postos em andamento desde

março de 1964.

O grupo que conduziu a ditadura militar enfatizava que

a “revolução” seria a favor da democracia, que o golpe em

si já era democrático, ou seja, que respondia aos anseios

de toda a população. Todas as ações eram colocadas como

sendo a serviço do povo, tudo que o grupo dirigente

realizava no interior da política, era, segundo eles,

democrático, até mesmo o AI5 que representou o momento de

maior repressão e autoritarismo durante a ditadura militar.

O uso do termo democracia era utilizado para justificar as

medidas adotadas tanto na economia, na educação quanto na

política e estava diretamente ligado à necessidade de

legitimar o governo e suas ações. Com base nisto é que os

livros didáticos de Educação Moral e Cívica, também

tornavam comum o uso do termo democracia, porém, eram

transmitidos aos alunos conceitos que viessem a confirmar a

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idéia de democracia imposta pelos condutores do regime

militar. Isto porque nos livros de EMC do 1º grau, o

governo e o Estado brasileiro eram demonstrados como sendo

democráticos e como se todas as suas ações fossem

determinadas por tais princípios. Vinculava-se, assim, nos

livros didáticos de Educação Moral e Cívica, a ditadura

militar à forma mais legítima de democracia. No livro

didático Educação Moral e Cívica consta que: De cinco em

cinco anos, o povo brasileiro, por intermédio dos seus

representantes, escolhe (elege) o Presidente da República.

O povo também escolhe os Deputados Federais e os Senadores

[...] Cada presidente faz o que lhe cabe para que todos os

brasileiros sejam felizes e possam prosperar.

As duas principais leis referentes à educação durante

a ditadura foram aprovadas de acordo com os interesses do

Executivo; a oposição no Senado foi silenciada, sujeita à

cassação. Agora, como é possível conceber a ideia de que os

representantes do povo escolhiam o presidente da República?

Que o povo indiretamente escolhia os presidentes? Se nem as

leis passavam por processos de tramitação democráticos, se

os senadores, principalmente os da oposição, não tinham

liberdade de voto. E mais, o livro didático, destinado

neste caso para os alunos da 4ª série, além de sugerir a

existência da democracia nas eleições para presidente,

justifica as ações do mesmo a favor do povo, negando sempre

os interesses particulares de alguns setores da sociedade.

Em Educação Moral e Cívica na Escola de primeiro Grau,

a defesa de um suposto ideário de democracia também é

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evidente nos conteúdos: O fato das eleições serem diretas

ou indiretas, não é o que caracteriza uma democracia. Para

que um regime seja realmente democrático, é preciso que os

mandatos eletivos, isto é, o exercício dos cargos de

governo sejam por tempo determinado. Só nas ditaduras é que

os chefes se perpetuam nos cargos e nunca os cedem a outros

.

Os livros didáticos de EMC como parte da estratégia

psicossocial vigente durante a ditadura militar pretendiam,

de fato, fazer acreditar que, naquele momento, o Brasil

realmente era um país democrático. Os conteúdos dos livros

didáticos eram utilizados como um mecanismo para convencer

a população de que não se vivia em tempos de ditadura. Mas

a realidade política durante a ditadura militar é

reveladora de que o período era marcado por medidas

antidemocráticas, pois, mesmo que durante todo o período de

1964 a 1984, tenham se alternado no poder quatro

presidentes, o que mudava era apenas a pessoa, ou seja, a

figura do presidente. Uma vez que todos eram militares e do

mesmo partido político, os interesses, objetivos e valores

permaneciam os mesmos. É relevante considerar que se

alterava em alguns momentos a política adotada (há momentos

de intensa concentração de poder por parte do Executivo,

como também momentos de abertura política), mas tudo como

estratégia para manter os ideais e valores e para atingir

os objetivos da chamada “revolução de 64”

“(...) Uma fração dos setores empresariais (industriais

principalmente), passou (...) a exigir que se abrissem

Page 15: DECRETO-LEI Nº

alguns canais efetivos de participação; o que levou a

partir de 1974, as tentativas de realinhamento no interior

do poder (entre os setores empresariais) efetivando

veladamente demandas que se constituiriam numa necessária

redefinição do processo político que culminou na política

de distensão no governo Geisel”. Outros livros didáticos

de EMC também reforçam as duas idéias referidas acima (de

que o povo escolhia através do voto os presidentes e de que

estes se alternavam no poder, configurando, assim, a

democracia), com o objetivo de inculcar nas crianças que o

regime militar era, realmente, democrático, permitindo a

participação do povo e tendo as ações políticas voltadas

para ele e para toda a nação, ou seja, para o “bem comum”;

Você, eu, todos nós estamos subordinados às leis

brasileiras; as maiores autoridades do governo, também.

Para quê? [...] O Estado tem como fim a conquista, a

manutenção e o desenvolvimento do bem comum nacional, isto

é, de todos nós, que formamos a nação brasileira. [...] O

poder pertence ao povo. A isto se chama soberania popular.

Em outras palavras, a soberania do Brasil é o poder de seu

povo. Mas, como poderiam 104 milhões de brasileiros

decretam:

governar? Seria balbúrdia. Ninguém se entenderia. É por

isto que o povo concede sua soberania, isto é confia seu

poder a poucos brasileiros, os quais, na condição de

“representantes” (do povo), exercem o governo. [...] É

imoral para um representante trair o povo que nele confiou

e, em vez de trabalhar pelo bem público, aproveitar-se do

Page 16: DECRETO-LEI Nº

cargo para tirar vantagens pessoais ou defender indevidos

interesses de pequenos grupos em detrimento do bem comum

(No livro Estudo Dirigido de Educação Moral e Cívica, é

possível perceber um apelo ainda maior, que demonstra o

quanto os condutores do regime, que se expressavam também

pelos livros didáticos, eram dissimulados ao afirmarem que

o regime político existente no Brasil era a democracia e

que os governantes dirigiam suas ações em beneficio de

todos os brasileiros, sem distinção de grupo social. É

interessante destacar um exercício que consta no livro: O

Brasil é uma República de regime representativo. Num país

representativo:

a) ( X ) o Governo é exercido pelos representantes do povo.

b) ( ) o Governo é exercido pelos representantes dos

industriais, bancários e comerciários.

Na alternativa “b” constam exatamente os segmentos

sociais que faziam parte do chamado grupo de poder e que se

beneficiaram com a política adotada pelo regime militar,

principalmente com o milagre econômico. Porém, o livro

didático tentava convencer de que não existiam segmentos

sociais beneficiados pela política adotada.

Este convencimento se dava sem receios, pois o livro,

para demonstrar o contrário do que mencionava, utiliza

exatamente os segmentos sociais beneficiados pela política

econômica, contrapondo-os ao bem comum, para demonstrar que

não existiam setores favorecidos, que os interesses do povo

prevaleciam sobre qualquer interesse particular.

Page 17: DECRETO-LEI Nº

Note-se que a Educação Moral e Cívica foi uma

disciplina que visava ao convencimento de que a ditadura

militar tinha como fundamento o povo, que os governantes

respondiam aos interesses e aspirações de todos. Pretendia-

se formar, com isto, cidadãos favoráveis ao governo.

Buscava-se o consenso como forma de garantir a

legitimidade. Para tanto, era utilizado também o

patriotismo. Nesta linha, o livro Estudo Dirigido de

Educação Moral e Cívica segue: Quanto mais amamos a Pátria,

mais democratas somos. O voto, com que se elegem os

representantes do povo, pode ser um ato de amor à Pátria ou

um ato de egoísmo. Eleitores e políticos devem visar, em

primeiro lugar, aos interesses da Pátria. Quando a Pátria é

servida por todos, todos são beneficiados. O livro afirma

que o voto elege os representantes e que, não só os

eleitores, mas também os políticos devem visar os

interesses de todos como um gesto de amor à Pátria e, ainda

enfatiza que “a democracia representativa é o melhor regime

político que existe”. Com isto, é possível dizer que três

pontos se cruzam em torno da democracia anunciada nos

livros didáticos de Educação Moral e Cívica: 1º) é a melhor

forma de governo, 2º) é a forma de governo existente no

Brasil e, por fim, se pretende convencer, de que, se no

Brasil existe a democracia a melhor forma de governo, são

os militares que a realizam. Como visto, o regime militar

utilizava a educação, mais especificamente a disciplina

Educação Moral e Cívica para atingir seus objetivos e

interesses, instruindo crianças e jovens sobre uma ideia

Page 18: DECRETO-LEI Nº

deturpada de democracia. Isto era fato, se comparada a

teoria vista nos livros de Educação Moral e Cívica com a

realidade política presente no Brasil naquele momento. O

que a disciplina pretendia, e é possível constatar pela

análise dos livros didáticos, era fazer com que os alunos

acreditassem que o povo tinha a liberdade de escolher seus

representantes e de que seus direitos e interesses seriam

defendidos por eles, sempre com respeito a vontade da

maioria. Ou seja, de que a ditadura militar era um regime

político democrático e que mesmo suas atitudes autoritárias

eram a favor de todos os brasileiros.

Um outro aspecto relevante presente nos livros

didáticos, como forma de supor a existência da democracia

durante o período do regime militar, diz respeito à atuação

de trabalho em conjunto do Legislativo com o Executivo, o

livro Educação Moral e Cívica, revela o seguinte: Juntos,

Câmara e Senado constituem o Congresso Nacional, que é o

poder Legislativo, assim chamado porque lhe cabe estudar as

leis propostas pelo Poder Executivo ou tomar a iniciativa

de elaborá-las. O Presidente da República e o Congresso

Nacional governam em harmonia. Essa convivência entre os

dois poderes (Executivo e Legislativo) chama-se paz

política.

A atuação livre de vereadores, deputados e senadores,

no momento de aprovação e/ou elaboração das leis, é um dos

elementos da política que caracteriza a democracia, uma vez

que são representantes da sociedade civil, estão no poder

para defender os interesses do povo que os elegeu.

Page 19: DECRETO-LEI Nº

Considerando esta importância em relação à liberdade dos

legisladores para a democracia, é que os livros didáticos

sugeriam a chamada paz política. Na realidade, não era isto

que se operava, naqueles tempos de autoritarismo em que

prevalecia o Executivo sobre o Legislativo e, quando o

Congresso não se encontrava fechado, deputados e senadores

trabalhavam sobre pressão. Se não agissem de acordo com os

interesses do Executivo eram ameaçados de cassação e de

perder os direitos políticos. Diante disto, os alunos além

de aprenderem noções contraditórias de democracia, também

recebiam informações falseadas da realidade.

Todas as novas leis e decretos que o regime militar

estabelecia tinham o objetivo de atender o conjunto de

interesses dos componentes civis e militares do grupo de

poder (industriais, banqueiros, estamento militar,

tecnoburocratas civis e até mesmo a classe média), o que

exercício número 8, do livro Estudo Dirigido de Educação

Moral e Cívica tentava falsear. Como o próprio exercício

procurava ensinar aos alunos, as novas leis eram

consideradas a favor de todas as classes sociais, de toda a

nação, mesmo que, na realidade, não fosse isto que se

observava. Esta artimanha era utilizada para conquistar o

consenso da população e, assim, legitimar o regime. É o que

se pode observar também em relação às leis e às autoridades

políticas, principalmente em relação ao Presidente da

República – todas as leis e ações do Presidente da

República visavam, segundo os conteúdos dos livros

didáticos, ao bem comum. Em Estudo Dirigido de Educação

Page 20: DECRETO-LEI Nº

Moral e Cívica, o capítulo intitulado Estado de bem comum,

inicia com uma ilustração de dois “homens da caverna”

brigando pela posse de uma onça morta, na seqüência aparece

um terceiro dizendo: “A onça pertence àquele que a matou”.

Neste momento a briga termina e o capítulo segue com a

seguinte conclusão: “Os primeiros grupos humanos sentiram a

necessidade de leis e autoridades para cuidar do bem comum

(...). Com o tempo, a humanidade cresceu e progrediu.

Surgiram as cidades. Aumentou então a necessidade de leis e

governantes que cuidassem do bem comum.

Pretendia-se passar para os alunos que as leis e as

autoridades eram naturalmente necessárias para a manutenção

da ordem e da convivência em sociedade.

Em relação a isto, é possível afirmar que os

condutores do regime militar pretendiam justificar o

excesso de autoridade por parte dos seus governantes, assim

como das promulgações de decretos-lei e dos Atos

Institucionais, como sendo fundamentais para a manutenção

da vida em sociedade, respeitando sempre os princípios

democráticos.

O livro Educação Moral e Cívica utiliza um outro viés

para justificar a necessidade de leis e autoridades. Neste

caso, parte-se da família: Em casa, os pais fazem as

principais determinações sobre a vida da família. E se

alguém fica doente, o médico prescreve remédios que tomamos

direitinho.

Tudo para o bem de todos. Quer dizer: em casa temos

determinações sobre o nosso comportamento. Na escola também

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existem determinações que constituem o regulamento Escolar.

[...] no Brasil, há igualmente determinações que se chamam

leis, a que todos os brasileiros obedecem, para o beneficio

de todos! [...] As leis são feitas pelos legisladores. São

legisladores: os Vereadores, Deputados, os Senadores e, em

casos especiais, o Presidente da República.

É comum o termo “para o bem de todos” e, neste caso, o

livro didático parte da naturalização das leis e das

arbitrariedades realizadas pelos que conduziam o governo, a

partir da família. Sugere que, assim como elas existem no

lar, existem também, como que espontaneamente no país. E é

também neste momento que o livro procura justificar os

chamados casos especiais, em que os próprios presidentes

sancionavam novas leis, pois, assim como em uma família os

pais determinam sobre o que é bom e ruim para os filhos, os

“representantes do povo” também podiam determinar as leis

que consideravam necessárias para o bem da nação.

A análise dos conteúdos dos livros didáticos de EMC

permite constatar que os alunos eram induzidos a pensar o

seguinte: “se na minha casa existe autoridade, também deve

existir no Brasil. Confiar nos meus pais é o mesmo que

confiar no Presidente da República, já que os dois querem o

bem de todos”. Assim, o apelo à família nos livros de

Educação Moral e Cívica torna-se comum, isto pode ser

considerado como uma estratégia, já que os laços de

confiança, principalmente das crianças, estão vinculados ao

ambiente familiar. Desta maneira, não deveria ser difícil

para os alunos acreditarem que realmente a política adotada

Page 22: DECRETO-LEI Nº

pelo regime militar estivesse a serviço de toda a nação e

que todos os brasileiros, independente de classe social,

eram representados pelo Presidente da República. Mais uma

vez, é possível considerar a veiculação e utilização dos

livros didáticos de Educação Moral e Cívica como parte da

estratégia psicossocial, pois é evidente que seus conteúdos

pretendiam trabalhar com os valores dos alunos e

transformá-los a favor da legitimidade do autoritarismo

vigente.

A questão das leis, liderança e autoridade

relacionadas à família estão presentes, de forma ainda mais

enfática e subjetiva, no livro Educação Moral e Cívica na

escola de primeiro grau: Vovô é uma verdadeira autoridade

aqui em casa. O que ele fala, esta falado, ninguém discute

porque tem sempre razão. Tem uma maneira de falar, até

papai cede! E, olhe que nosso pai é um líder. Muita coisa

do que vovô diz, vem do que a vovó pensa. Já notei isso:

uns pensam outros dizem: uns mandam outros obedecem. É como

um rodízio que a gente faz num jogo de bola: às vezes é um

grupo que manda e o outro recebe as ordens, outras vezes, é

a vez do outro grupo mandar. Penso que minha vez de mandar

vai ser quando eu for pai e chefe de alguma coisa. [...]

Na nossa casa há divisão de poderes – como diz meu pai –

“cada macaco no seu galho!” Não há brigas. Mamãe pede para

fazer o que é bom para nós e para o grupo [...]. No país,

diz tio Pedro, há várias autoridades com seus poderes.

[...] Marisa saiu-se com uma que é preciso anotar. Tio

Pedro explicava um montão de coisas que eu escrevi aí em

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cima quando ela disse: - E ninguém manda no Presidente da

República? [...] Pensei que tio Pedro fosse ficar

atrapalhado, mas ele riu e disse: - No Brasil, havendo

democracia, o presidente também obedece às leis e faz com

que elas sejam cumpridas [...] o presidente também pode

fazer leis, principalmente quando o Congresso está em

recesso – isto é, não funciona. O fragmento acima revela

bem o jogo de artifícios utilizado pelo grupo de poder, na

tentativa de convencer os alunos de que é necessária a

existência do autoritarismo, ou melhor, de que alguns

possuem a capacidade e as características necessárias para

mandar, enquanto que a outros cabe obedecer. Mas este

convencimento se opera com certa sutileza, ou seja, existe

a tentativa de disfarce, pois, ao mesmo tempo em que o

livro utiliza a linguagem de uma criança escrevendo em seu

diário, utilizando termos como, por exemplo, mamãe e vovô

utilizam também termos grosseiros como ninguém discute e um

manda outro obedece.

Após toda uma exposição de relações de poder e de

hierarquia dentro da família, o livro menciona o Presidente

da República e suas formas de ação, como uma maneira de

preparar o aluno para que agisse de acordo com o que

propunham os condutores do regime. As relações familiares

eram utilizadas para justificar o poder, a autoridade e,

até mesmo, a elaboração de leis pelo presidente da

república, pois o próprio livro sugere que ninguém deveria

discutir com uma verdadeira autoridade. Como já foi

observado, existe certa sutileza e a utilização de valores

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subjetivos para legitimar o excesso de autoritarismo, pois

o excerto acima revela metáforas como “vovô é uma

verdadeira autoridade” e “em casa há divisão de poderes”.

Assim, busca-se a justificar a organização política

durante a ditadura militar, pois as formas de mando

constatadas no período pelos dirigentes políticos são

transmitidas, aos alunos, como se fossem naturais e

necessárias para o bem de todos.

A Educação Moral e Cívica é expressão da “guerra

total” estabelecida pela Escola Superior de Guerra (ESG):

era uma batalha contra tudo o que poderia fragilizar o

regime (valores, idéias, manifestações e ações). Tem-se que

a imposição dos conteúdos de EMC, assim como as demais

reformas da educação, durante o período de 1964 a 1984,

esteve a serviço de um projeto de poder. Desconsiderou-se,

assim, o papel social que a educação deveria cumprir. Mesmo

sem quantificar as influências da disciplina na aquisição

de valores e comportamentos, tem-se que a EMC foi um

mecanismo muito bem articulado pelos dirigentes do governo

na busca da formação de uma mentalidade favorável aos

caminhos propostos pelos condutores do regime instaurado em

1964.

A análise elaborada por Moacir Araújo Lopes se pauta

bastante num olhar sobre os jovens e as mulheres, talvez

por serem considerados os elementos mais vulneráveis ao

desvio da moral. A partir da década de 1970 uma série de

obras será publicada no país, na tentativa de atender a

nova demanda dos currículos escolares, a disciplina de

Page 25: DECRETO-LEI Nº

Educação Moral e Cívica. Segundo afirma Filgueiras, a

disciplina tornou-se obrigatória em 1969, mas em 1970 “já

existiam dez livros no mercado. No ano de 1971 foram

publicados mais treze livros da disciplina. As editoras

didáticas atenderam rapidamente a demanda do marcado da

Educação Moral e Cívica.” Os elementos destacados por

Moacir Araujo Lopes acerca do desvio da moral serão

expressamente difundidos nos livros didáticos de EMC,

sobretudo aqueles que se detêm no tema “família”. O lugar

da família na sociedade, sua atuação na educação dos novos

cidadãos, o caráter cristão que a constituiu, além do

estabelecimento de papéis de mães e pais, mulheres e

homens, no convívio familiar vão marcar as principais

preocupações, envolvendo a família. Os discursos marcados

pelo gênero serão encontrados nos livros didáticos dos

diferentes níveis de ensino, ou seja, 1° e 2° graus. Um

exemplo disso está no seguinte trecho extraído do livro

“Curso de Educação Moral e Cívica” de Pinto Ferreira: Vê-se

assim a formulação de uma nova moral sexual, coadjuvada

pela onda de erotismo, pelos festivais de pornografia,

pelos hippies, pelos vestidos transparentes, pelas revistas

de nudismo, pelo cinema, pelo desnudamento progressivo da

mulher, pelo maiô topless, em ondas desagregadoras da

estabilidade da família e do casamento. [...] Essa nova

moral sexual, contudo deve ser combatida. É preciso

contestá-la e superá-la. [...] É preciso então conter esta

fúria agressiva e demolidora contra as instituições da

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família e do casamento, como medida indispensável de coesão

e estabilidade social.

O livro de Pinto Ferreira, voltado para o 2° grau (1°

e 2° ano colegial) traduz um pouco o clima vivenciado pelo

país na década de 1970, em que a difusão de novos modelos

de sexualidade e comportamento emergia no Brasil

contrapondo-se ao tipo ideal proposto para o próprio

desenvolvimento da nação. Dessa forma, a moral sexual

encontraria na moral cristã o seu lugar, pois somente a

instituição da família, devidamente constituída por

princípios cívicos, traria a almejada “estabilidade social”

ao país.

No livro “Construindo o Brasil” de Maria T. Pimentel

(1977, p. 101), voltado para o 1° e 2° graus, as

formulações acerca do lugar dos pais na sociedade se tornam

mais clara, a partir do seguinte trecho. O esposo:

apresenta características físicas e psicológicas diferentes

da mulher. Tem maior força física e uma musculatura

apropriada para trabalhos mais pesados. É mais racional,

lógico e organizador que a mulher, faz planos a longo

prazo. Tem o dom da organização, lançando-se por causa

disso, a empresas difíceis e corajosas. A esposa: tem o

corpo apto para a maternidade. É dotada de grande

capacidade de sentimento e amor, delicada, com inteligência

e perspicácia, especialmente encaminhadas à missão de ser

mãe. É mais intuitiva e mais sagaz que o homem, tem maior

resistência à dor e capacidade de praticar o “altruísmo”,

que quer dizer abertura para o outro, possui as qualidades

Page 27: DECRETO-LEI Nº

essenciais de que a criança vai precisar nos primeiros anos

de vida.

A clara definição dos papéis exercidos por homens e

mulheres no âmbito da família, constituindo aí identidades

de gênero a estes sujeitos, demarca a linha em que se

orienta esta pesquisa. As mobilizações em torno do gênero,

atribuições de 7características específicas a homens e

mulheres, a naturalização de determinados tipos de

comportamentos, vão configurar uma espécie de modelo ideal

de cidadão, considerado absolutamente necessário naquela

conjuntura sociopolítica. Diante de tal contexto, podemos

perceber, inclusive, um duplo movimento ao pensar as

relações entre público e privado. O primeiro, encontrado

nos livros didáticos, está no próprio estabelecimento de

modelos, para homens e mulheres na sociedade, o âmbito

público constituído pelo elemento masculino e o privado

pelo feminino. O segundo movimento compreende o fato da

preocupação em encerrar o feminino no privado estar

diretamente ligada ao próprio projeto elaborado para o

país. Dessa forma, o privado se inscreve no campo político.

As problemáticas formuladas, na tentativa de entender as

formas pelas quais se sustentam os perfis de gênero

elaborados pelos manuais e livros didáticos de moral e

civismo, nos levam a questionamentos ainda mais

desafiadores, como: havia divergências, entre as diferentes

frentes que atuavam na Comissão de Moral e Civismo, na

Escola Superior de Guerra e no próprio governo na

fomentação de modelos identitários de gênero considerados

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adequados? É na análise destes discursos que notaremos como

isso se deu no âmbito das relações de poder que, no sentido

dado por Michel Foucault , atravessam, caracterizam e

constituem o corpo social e que estas relações de poder não

podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma

produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento

do discurso.

Tal prerrogativa se insere naquilo que Michel Foucault

vai chamar de caráter descontínuo dos discursos, na medida

em que não se deve pensar em discursos reinantes

ilimitados, mas no intercruzamento entre eles,

contabilizando aí a instituição das práticas. A profusão de

discursos estabelecendo modelos de gênero ganhará espaço no

âmbito da educação, pois este exerce influência sobre os

campos da cultura, do comportamento e até mesmo da censura,

estando os três imbricados no campo do discurso e das

práticas. Analisar a construção destes discursos, seus

deslocamentos e articulações no campo político se

apresentam como um desafio para esta pesquisa, na medida em

que estas questões norteiam os objetivos a que pretendemos

alcançar. Nesse sentido, as contribuições teóricas de

Foucault e Scott, referências nos estudos de gênero, bem

como o diálogo constante com dissertações de mestrado,

livros, artigos e demais obras sobre o período, inseridas

dentro do recorte aqui esboçado, são altamente relevantes

para esta pesquisa.

A ditadura militar brasileira (1964 – 1985) se

estabeleceu como uma alternativa para grupos sociais que

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acreditavam em uma evidente deflagração de uma revolução

comunista no país. Um governo identificado como comunista

alteraria não só as relações com as noções de propriedade,

economia, desenvolvimento e consumo, como também traria em

seu bojo um arsenal de comportamentos, condutas e

percepções no que tange ao lugar do masculino e do feminino

no corpo social. Estas possíveis transformações surgiram,

no início dos anos de 1960, como preocupações primordiais

em torno de uma “onda comunista” que estaria pronta para

tomar o poder no Brasil.

Nesse sentido, o regime militar pós 1964 se alicerçava sob

a hipótese de uma ameaça comunista, considerando que

somente um governo forte, dirigido por militares, seria

capaz de combater esse “mal” insurgente.

A pesquisa aqui empreendida analisa, dentro do recorte

temático-temporal da ditadura civil-militar brasileira

(1964-1985), de que forma as estratégias psicossociais

formuladas pelo Estado, baseado na Doutrina de Segurança

Nacional, em combate ao comunismo, mobilizaram identidades

de gênero na construção de um ideário patriótico.

Nesse sentido, busca-se entender as articulações da

Doutrina em torno do “inimigo interno”, personificado por

setores da sociedade que promoviam ações comunistas. A

estratégia de caráter psicossocial centralizava-se nas

questões morais de comportamento e identidade, pois,

segundo a Doutrina, a degradação da moral era um mecanismo

utilizado pelos comunistas na tentativa de ganhar terreno

para a divulgação e implementação de seus ideais (MOTTA,

Page 30: DECRETO-LEI Nº

2002). Diante desse quadro, foi criada, em âmbito nacional,

a disciplina de Educação Moral e Cívica com a finalidade de

promover um perfil ideal de cidadão comprometido com os

valores e fundamentos que constituem

os pilares da nação e com o fortalecimento de um povo unido

em torno de um “bem comum”. Este artigo irá se deter em um

recorte, dentro da pesquisa maior, analisando

especificamente as mobilizações de gênero em torno da

disciplina Educação Moral e Cívica (EMC), a partir da forma

como as identidades masculinas e femininas foram pensadas

tanto no âmbito da família quanto em âmbito nacional. Para

isso, alguns livros-fonte serão fundamentais nesta

pesquisa, tais como livros didáticos de EMC,“Moral e

Civismo” de Moacir Araújo Lopes e o Manual Básico da Escola

Superior de Guerra.

As mobilizações de gênero a partir da disciplina de

Educação Moral e Cívica.A implementação da Ditadura Civil

Militar no Brasil respondeu a expectativa de setores

militares e civis temerosos a uma maior difusão de ideias

comunistas no país, o que poderia levar a ações mais

enérgicas de grupos sociais vinculados a este ideário.

Considerado o “inimigo interno”, o comunismo será foco

de violentas investidas por parte do Estado, que tomará

como base a Doutrina de Segurança Nacional e

Desenvolvimento para justificar seus atos. À frente das

medidas acerca da segurança nacional estava a Escola

Superior de Guerra (ESG), órgão que exercia funções de

direção e planejamento da segurança nacional, o qual

Page 31: DECRETO-LEI Nº

estabelecia as diretrizes que configuraram as estratégias

de defesa do país. Segundo a cientista política Maria

Helena Moreira Alves (1984, p. 26), a Doutrina de Segurança

Nacional e Desenvolvimento Efetivamente prevê que o Estado

conquistará certo grau de legitimidade graças a um

constante desenvolvimento capitalista e a seu desempenho

como defensor da nação contra a ameaça dos „inimigos

internos‟ e da „guerra psicológica‟. A legitimidade é

vinculada aos conceitos de desenvolvimento econômico e

segurança interna.

Tal acepção nos faz indagar acerca de que ações foram

mobilizadas para que os objetivos estatais fossem

alcançados, bem como sua inserção na sociedade. Para ajudar

a pensar essas questões nos são muito caras as

contribuições do General Golbery de Couto e Silva, um dos

maiores teóricos da Escola Superior de Guerra (ESG) sobre a

segurança nacional, em seu livro “Conjuntura Política

Nacional – O Poder Executivo e Geopolítica do Brasil”, obra

sobre os aspectos da Segurança Nacional no período do

Regime Militar.

Golbery nos apresenta as configurações da Segurança

Nacional a partir de um quadro em que a política de

segurança fomentava o conceito estratégico no qual estavam

inseridas diretrizes governamentais que direcionavam

estratégias para quatro âmbitos: o Político, o Econômico, o

Psicossocial e o Militar. O recorte utilizado por esta

pesquisa centralizar-se-á na Estratégia Psicossocial, na

medida em que esta atuará no campo da moral tendo em vista

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setores específicos da sociedade civil, tais como a

família, as escolas e as universidades. O Manual Básico da

Escola Superior de Guerra (1977), obra organizada e

frequentemente atualizada pela ESG, que concentra grande

parte das estratégias elaboradas no âmbito da Segurança

Interna e Externa, expressa que a Estratégia Psicossocial

visa à motivação de pessoas e da sociedade, com a

finalidade de criar condições psicológicas favoráveis ao

apoio das atividades de mobilização.

[...] O impacto dessa influência se faz de maneira

muito intensa na Expressão Psicossocial, alterando hábitos,

costumes, padrões de comportamento, contribuindo para o

surgimento de novas formas de pensar, sentir e agir, com

efeitos profundos sobre o tecido social.

O Estado de Segurança Nacional, tendo como base a

Estratégia Psicossocial, preocupou-se de forma particular

com a questão da degradação da moral, desestruturação

familiar e com o desvio sexual. Como afirma Rodrigo Patto

de Sá Motta (2002, p. 64) “o comunismo significaria um

desafio à sobrevivência da própria sociedade civilizada,

ameaçada em seus fundamentos por estes bárbaros do mundo

contemporâneo”. Na perspectiva da Doutrina, uma sociedade

marcada pela mudança de comportamento no sentido da

desarticulação dos princípios morais cristãos se tornaria

campo fértil para a difusão do ideário comunista no país.

Dessa forma, estratégias serão pensadas na tentativa de

instituir valores cristãos no âmbito social em detrimento

da ameaça comunista que, supostamente, se instalava no

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país. Um dos mecanismos utilizados pelo Estado com o

intuito de fortalecer os valores morais, foi a criação da

disciplina de Educação Moral e Cívica, segundo o Decreto-

Lei 869/69. Tal iniciativa tornou obrigatório o ensino da

disciplina em todas as escolas brasileiras, de todos os

níveis de ensino, tendo em vista a formação de um

brasileiro consciente de suas obrigações com a nação. Uma

das fontes utilizadas para o desenvolvimento deste trabalho

de pesquisa será o livro “Moral e Civismo” de Moacir Araujo

Lopes, principal idealizador da disciplina de Educação

Moral e Cívica e primeiro presidente da Comissão de Moral e

Civismo. Esta obra é composta por uma série de palestras,

realizadas em diferentes oportunidades entre os anos de

1966 e 1970, pelo general. Segundo Araújo Lopes (1971, p.

121), a constituição do “caráter com base na moral,

originária da ética, tendo como fonte Deus” bem como o

“amor a pátria e às suas tradições, com capacidade de

renúncia” levaria a “ação intensa e permanente, em

benefício do Brasil”. Estes elementos constituíam o

conceito de civismo que funcionava como chave para a defesa

do princípio democrático, a preservação dos valores

espirituais e o aprimoramento do caráter, com apoio na

moral, na dedicação à família e à comunidade.

Nesse sentido, a elaboração de um princípio cívico

será bastante justificada a partir dos problemas os quais o

país vinha enfrentando, apontados como “grave fase atual da

nação”. Segundo afirma Juliana Miranda Filgueiras (2006) a

Comissão de Moral e Civismo é vinculada diretamente à

Page 34: DECRETO-LEI Nº

Doutrina de Segurança Nacional e à Escola Superior de

Guerra e seus membros eram preferencialmente diplomados

pelas ESG.

As mobilizações em torno do exercício da cidadania

contribuiriam para o estabelecimento de uma nação forte

construída pelos jovens do país, pois estes deveriam se

preparar para exercer uma função na sociedade, por isso, a

disciplina de Educação Moral e Cívica traria em seu

currículo a apreensão de direitos e deveres, do amor à

pátria e, ainda dentro dessa perspectiva, o estabelecimento

de identidades para homens e mulheres na construção desta

nação. Refletir sobre as iniciativas estatais em torno da

educação e seu viés de gênero seria pensar na proposta da

historiadora Joan Scott (1991) quando esta formula que as

relações de gênero são uma primeira forma de dar

significado às relações de poder. Ter a dimensão de que as

preocupações com as questões comportamentais e referentes à

sexualidade estão inseridas dentro de um projeto para o

país que procura articular aspectos da segurança nacional

caracteriza bem a proposta lançada pela historiadora;

demarca, inclusive, a linha de análise na qual esta

pesquisa se orienta. O forte viés de gênero encontrado no

manual de moral e civismo de Moacir Araújo Lopes pensará em

modelos masculinos e femininos ideais baseados em

princípios cristãos. Os desvios de comportamento e da moral

sexual deveriam ser corrigidos, pois só assim o país

estaria no caminho certo para o desenvolvimento, sobretudo,

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econômico. Identificamos esses aspectos no seguinte trecho

escrito pelo general.