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Das primeiras ferramentas ao Olduvaiense: “salto” tecnológico ou processo gradual?

Feb 01, 2023

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Raquel Vilaça
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Promontoria Monográfica 16

Actas das IV Jornadas de Jovens em Investigação Arqueológica - JIA 2011

Vol. II

(Faro, 11 a 14 de Maio de 2011)

Editores Científicos: João Cascalheira Célia Gonçalves

Núcleo de Arqueologia e Paleoecologia Departamento de Artes e Humanidades

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (Universidade do Algarve)

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Universidade do Algarve FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS Departamento de Artes e Humanidades Núcleo de Arqueologia e Paleoecologia

Promontoria Monográfica 16 Editor: Núcleo de Arqueologia e Paleoecologia e Departamento de Artes e Humanidades Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Universidade do Algarve Campus de Gambelas 8005-139 Faro [email protected] Coordenação Editorial: Nuno Ferreira Bicho António Faustino Carvalho IMPRESSÃO: Tipografia Tavirense, Lda. TIRAGEM: 280 exemplares ISBN: 978-989-97666-2-4 Depósito Legal: 342265/l2 APOIOS:

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Das primeiras ferramentas ao Olduvaiense: “salto” tecnológico ou processo gradual?

Bruno Miguel Silva Magalhães1 Ângela Cristina Teves Araújo

Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra; Rua Arco da Traição, 3001-401, Coimbra

[email protected]

RESUMO As evidências (ainda que indirectas) mais antigas para o uso de instrumentos líticos recuam actualmente a 3.39 milhões de anos (Ma) em Dikika (Etiópia), enquanto o seu fabrico retrocede a cerca de 2.6/2.5 Ma na região de Gona (Etiópia). Mas serão realmente estes os registos das primeiras utilizações efectivas de instrumentos? Terá a indústria Olduvaiense (que envolve processos cognitivos considerados complexos associados ao talhe de instrumentos) significado um “salto” tecnológico na Evolução Humana ou, por outro lado, terá sido consequência de um processo evolutivo gradual que foi acontecendo ao longo de vários milhões de anos? A Arqueologia de Primatas e o estudo de alguns dos actuais primatas não humanos, com especial incidência para o chimpanzé (Pan troglodytes), dá-nos a conhecer o uso e manufactura de um conjunto de ferramentas cada vez mais alargado. Os bonobos (Pan paniscus), por outro lado, são a única espécie que até hoje, em cativeiro, mostrou possuir as necessárias capacidades cognitivas para replicar o talhe de instrumentos simples. Futuros trabalhos arqueológicos com ferramentas não líticas utilizadas por primatas não humanos são também necessários como ferramentas cruciais para melhor contextualizar a evolução do uso e fabrico de instrumentos que raramente perduram no registo arqueológico com milhões de anos.

PALAVRAS-CHAVE Instrumentos; Primatas não humanos; Evolução humana; Olduvaiense

ABSTRACT

The oldest indirect evidence of the use of lithic tools goes back to 3.39 million years (Ma) in Dikika, while its manufacture currently dates approximately 2.6/2.5 Ma in the region of Gona (Ethiopia). But are these really the original records of the first instruments? Have the Oldowan industry (which involves complex cognitive processes associated with the manufacture of lithic tools) meant a technological leap in Human Evolution or, on the other hand, was the result of a gradual evolutionary process that took place along several million years? Primate Archaeology and the study of technological non-human primates, with special emphasis on chimpanzees (Pan troglodytes), allow us to understand the use of very broad toolkits, providing us with an evolutionary context for human technology. On the other hand, bonobos (Pan paniscus) are the only species so far being able to demonstrate having the necessary capacities to make lithic tools. Finally, broader archaeological studies comprising the non-lithic tools used by nonhuman primates are also urging, to provide a deeper evolutionary understanding of the use and manufacture of perishable/organic tools which seldom persist in the archaeological record with millions of years.

KEYWORDS Tool use; Nonhuman primates; Technological evolution; Oldowan

INTRODUÇÃO A indústria Olduvaiense (ou Modo 1) representa um

conjunto de bases e processos bastante complexos a nível cognitivo e tecnológico, mostrando, como sugerem vários investigadores (e.g. Braun et al. 2010), um aumento dramático da dependência dos hominíneos pela tecnologia lítica. São vários os estudos práticos e/ou teóricos realizados nas últimas décadas sobre as primeiras indústrias líticas conhecidas. Se numa primeira fase eram estudados como indicadores culturais e representativos de tecnologias de subsistência (Davidson e Nowell 2010), nos últimos anos têm sido abordados a

partir de novas perspectivas que, como veremos, nos podem fornecer outro tipo de informação acrescida.

Nesse sentido, recentes abordagens interdisciplinares têm-se revelado úteis na compreensão da existência de um potencial “Pré-Olduvaiense” e no uso de instrumentos anterior a 2.6 Ma ou a 3.39 Ma (McPherron et al. 2010; Semaw 2000). Procura-se essencialmente a sua relação com a tecnologia presente noutros primatas não humanos que utilizam instrumentos. Nesse sentido, tentaremos perceber de que forma a evolução cognitiva e comportamental associada à tecnologia utilizada em primatas não humanos nos poderá ajudar a compreender e ultrapassar as limitações do estudo dessa mesma

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evolução em homínineos extintos e cujo registo arqueológico revela insuficiência de respostas.

AS PRIMEIRAS FERRAMENTAS CONHECIDAS: O OLDUVAIENSE E DIKIKA

O registo arqueológico mais antigo para o fabrico de

instrumentos pelos nossos antepassados é atribuído à região de Gona (Etiópia) em depósitos datados de 2.6 a 2.5 Ma (Semaw 2000). Embora não seja uma indústria exclusiva de África, é neste continente que estão estudados os seus registos mais antigos. Em 2010, os trabalhos realizados em Dikika (Etiópia) por McPherron et al., vieram trazer novos dados sobre o tema, ao recuar em cerca de 800 mil anos o uso de instrumentos líticos. Os dados de Dikika foram recolhidos de forma indirecta e, apesar de não comprovarem a manufactura de utensílios, parecem mostrar o uso de ferramentas para aceder a carcaças de animais (McPherron et al. 2010). No que diz respeito ao Olduvaiense, o talhe de lascas a partir de núcleos, técnica que mais frequentemente lhe é associada, mostra já um admirável desenvolvimento cognitivo na capacidade mental de antecipar a sequência de gestos necessários para um aproveitamento optimizado do bloco original. O aparecimento de sítios com indústria lítica associada ao Olduvaiense reflecte assim um importante passo adaptativo na evolução humana. Dando como exemplo o sítio de Lokalalei (Quénia), o talhe representa um sistema cujas remontagens permitiram perceber a remoção de uma média de 18 lascas de um único núcleo, mantendo ângulos bastante precisos durante toda a operação (Delagnes e Roche 2005).

No entanto, vários trabalhos realizados nos últimos anos mostram que esta indústria lítica aponta para uma maior diversidade em detrimento da unidade tecnológica que lhe vinha sendo apontada. Os trabalhos desenvolvidos por Mora e de la Torre (2005), por exemplo, que reanalisaram os materiais líticos dos trabalhos de referência de Mary Leakey dos anos 70, realçam a importância do uso de instrumentos de percussão para a produção de lascas a partir de um núcleo em Olduvai Gorge. No entanto, aqueles investigadores concluíram uma certa especialização ligada a processos de percussão simples e nem sempre associados ao talhe de núcleos. O volume de material em bruto ligado a tecnologias de percussão simples ultrapassa até, por vezes, o associado ao talhe de núcleos (Mora e de la Torre 2005). A importância das actividades e tecnologias de percussão durante o aparecimento das primeiras indústrias líticas é ainda parcamente conhecido, embora deva ter desempenhado uma função bem mais importante do que se pensava até agora.

Para além do uso dos primeiros instrumentos líticos, de que forma poderemos introduzir na problemática da emergência das primeiras tecnologias a questão dos instrumentos usados e/ou fabricados em materiais perecíveis ou orgânicos que (com raras excepções) não

deixam no registo arqueológico pistas directas relativas ao seu fabrico, utilização ou sequer existência?

PRIMATAS NÃO HUMANOS E O USO DE INSTRUMENTOS

Nos últimos anos têm surgido novas perspectivas que

levam a abordar outro tipo de questões de uma forma mais prática e, dentro deste quadro, a Evolução Humana desempenha um papel central. Os últimos dados genéticos mostram que o Homo sapiens partilha um antepassado comum com os chimpanzés e bonobos entre 7 e 4.2 Ma (Chen e Li 2001; Kumar et al. 2005). Com o gorila (Gorilla gorilla) essa divergência terá ocorrido à 7/11 Ma e com o orangotango (Pongo pygmaeus) à 12/15 Ma (Gagneux e Varki 2001; Panger et al. 2002). Mesmo o macaco capuchinho (Cebus spp.), cujo ancestral comum com o dos humanos modernos terá vivido há mais de 30/35 Ma (Panger et al. 2002), revela uma capacidade manipulativa bastante complexa. Desta forma, o estudo do uso de instrumentos em espécies evolutivamente mais próximas dos humanos modernos e com as quais partilhamos um ancestral comum (cujo resultado evolutivo ainda hoje habita o planeta), é essencial e urgente para tentarmos compreender as falhas existentes no estudo da evolução tecnológica dos primeiros hominíneos. Senão vejamos.

Os macacos capuchinhos selvagens têm-se revelado bastante manipulativos, apesar do uso de ferramentas ser conhecido em poucos grupos e, uma vez que divergiram da nossa linhagem há cerca de 35 Ma, o seu uso estar associado a convergência tecnológica. Mas vários trabalhos apresentados nos últimos anos revelam uma elevada capacidade manipulativa que era quase desconhecida até finais dos anos 90: utilizam martelos e bigornas para partirem nozes (e.g. Ottoni 2009), pedras para escavarem e acederem a raízes, tubérculos e insectos (Moura e Lee 2004) ou varetas de sondagem (Mannu e Ottoni 2009; Moura e Lee 2004). Modificam ainda determinados instrumentos, sequenciam e associam o uso de duas ferramentas distintas (Mannu e Ottoni 2009) e permitiram, pela primeira vez, a observação em primatas não humanos selvagens do uso de “ferramentas secundárias” (Mannu e Ottoni 2009).

No entanto, e apesar do uso de instrumentos em contexto selvagem extensivamente documentado em orangotangos (e.g. Krutzen et al. in press; van Schaik e Fox 1996; van Schaik et al. 2003) e de alguns casos anedóticos em gorilas (e.g. Wittiger e Sunderland-Groves 2007), os chimpanzés são os utilizadores mais sofisticados entre os primatas não humanos, sendo relativamente bem conhecida a manufactura e utilização de uma grande variedade de ferramentas. Para além disso, o aumento dos trabalhos de campo indica a existência de uma variação cultural significativa, uma vez que alguns padrões de uso de instrumentos são únicos em certas comunidades e outros são partilhados por duas ou mais, independentemente de variáveis genéticas ou ecológicas (e.g. Lycett et al. 2010; Whiten et al. 1999).

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Numa população de Goualougo, R.D. do Congo (Sanz e Morgan 2007), foram observados 22 variantes diferentes de uso de ferramentas, todas fabricadas em materiais perecíveis (folhas, cipós, galhos, varas e ramos), sendo que estes chimpanzés estão entre os utilizadores de uma maior diversidade, associação e transformação de ferramentas de entre as comunidades de chimpanzés estudadas. Para além da confirmação da existência de vários comportamentos universais entre comunidades de chimpanzés, foram confirmados outros, como o uso de utensílios para perfurar ninhos de térmitas, exploração de mel ou o uso de folhas para se protegerem da chuva (Sanz e Morgan 2007). Por outro lado, permitiram também documentar três tipos diferentes de uso sequencial de ferramentas, característica que diferencia os chimpanzés (e, como vimos atrás, também os macacos capuchinhos) em relação a outros primatas não humanos utilizadores de instrumentos e que é também observada na indústria lítica do Olduvaiense (Barham e Mitchell 2008). Boesch et al. (2009) observaram no Loango National Park (Gabão) o uso ainda mais complexo de instrumentos que em Goualougo, associado à utilização regular de três a cinco instrumentos sequenciais para extracção de mel, inclusivamente com o uso de ambas as extremidades de um mesmo utensílio para duas funções diferentes na arriscada tarefa de recolha de mel. O planeamento deste tipo de técnicas requer vários passos para a preparação das ferramentas e organizados na ordem correcta.

Por outro lado, apesar de em Goualougo estar ausente o uso de martelos e bigornas para quebra de nozes, esta é uma actividade relativamente bem documentada noutras comunidades de chimpanzés, nomeadamente na floresta de Taï (Costa do Marfim) ou em Bossou e Diecké (Guiné Conacri), embora outras comunidades nas mesmas regiões não a tenham desenvolvido (Barham e Mitchell 2008; Carvalho et al. 2008). Este tema torna-se essencial quando associado aos resultados da escavação arqueológica Acheulense de Gesher Benot Ya’aqov (Israel), onde Goren-Inbar et al. (2002) registaram a relação até agora única no registo arqueológico humano entre várias espécies de nozes a martelos e bigornas usados para a sua quebra (figura 5). Se por um lado a escavação israelita nos confirma o uso recuado de martelos e bigornas, por outro, permite sugerir a sua utilização em tempos ainda mais recuados.

Quanto aos bonobos, também bastante próximos dos humanos modernos na árvore evolutiva, mostram em cativeiro um comportamento tecnológico complexo. Os trabalhos desenvolvidos no sentido de ensinar um bonobo a produzir lascas a partir da percussão de núcleos (Schik et al. 1999) mostraram que, embora a sua produção seja em vários aspectos contrastante com os primeiros utensílios líticos conhecidos para hominíneos, existe uma complexidade cognitiva bastante elaborada.

A ARQUEOLOGIA DE PRIMATAS O estudo dos instrumentos utilizados por primatas não

humanos tem fomentado, nos últimos anos, um

importantíssimo ponto de encontro entre disciplinas como a Primatologia e a Arqueologia, uma vez que, muito para além da primeira indústria lítica Olduvaiense, os cerca de 2 a 4 Ma que estão entre o ancestral comum entre humanos modernos, chimpanzés e bonobos e o Modo 1 são um grande fosso tecnológico obscuro e desconhecido. Carvalho et al. (2009) sublinham que a evolução tecnológica dos primeiros homínineos aconteceu provavelmente através de pequenos passos comportamentais e o uso de martelos e bigornas terá sido crucial no aparecimento e desenvolvimento das primeiras indústrias líticas. No entanto, para além do útil mas pouco conclusivo exemplo de Dikika, não há ainda vestígios arqueológicos de instrumentos anteriores a 2.6 Ma. Apesar disso, as capacidades de combinar elementos que exigem uma complexidade cognitiva complexa, de antecipar tarefas ou de reconhecer a ferramenta certa para a função certa, são elementos chave na investigação das capacidades cognitivas e tecnológicas dos primeiros hominíneos (Carvalho et al. 2009) e que não parecem ter surgido do nada com o Modo 1. A melhor forma de ultrapassar estas limitações será a de desenvolver um estudo comparativo do desenvolvimento tecnológico com as formas de uso e fabrico de instrumentos em primatas não humanos vivos, os nossos parentes filogeneticamente mais próximos (Haslam et al. 2009). E os resultados estão à vista.

Apesar de desconhecida a produção de lascas em primatas não humanos em habitat natural, a utilização de martelos e bigornas em certos grupos de chimpanzés provoca, por vezes, a quebra não intencional das suas margens (Carvalho et al. in press; Carvalho et al. 2009; Davidson e McGrew 2005). Em Bossou (Guiné Conacri), através da aplicação do método arqueológico ao estudo de um grupo de chimpanzés, foi mesmo identificado um episódio em que existiu uma efectiva tentativa de reutilização do produto de uma destas quebras não intencionais (Carvalho et al. 2009). Este é um exemplo de como o estudo da lógica do uso de utensílios em primatas poderá ajudar-nos a perceber a evolução tecnológica dos primeiros hominíneos e as origens do Modo 1 (Carvalho et al. in press; Carvalho et al. 2009).

Também a pioneira escavação arqueológica de três sítios de chimpanzés no Taï National Park (Costa do Marfim) com 4300 anos (Mercader et al. 2002, 2007) mostra a necessidade da continuação do estudo associado entre Primatologia e Arqueologia. Foram identificados materiais líticos que os investigadores pensam estar associados quer à produção de lascas por humanos, quer a material de percussão associado à quebra de nozes por parte de chimpanzés (Mercader et al. 2007). Todos estes resultados baseados na multidisciplinaridade e no uso de novas abordagens a questões bastante difíceis de responder são bastante prometedores.

Outro estudo que recentemente também aplicou o método arqueológico à Primatologia em Bossou e Diecké (Guiné Conacri), debruçou-se sobre a existência de uma cadeia operatória e de estratégias de exploração de recursos na quebra de nozes em chimpanzés (Carvalho et al. 2008). Alguns dos resultados apontam para a

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selecção da matéria-prima como uma das características para a escolha dos utensílios, assim como as dimensões dos martelos e bigornas escolhidos para a quebra de nozes mostram uma selecção morfológica para uma função específica. Os resultados revelaram ainda uma sequência operacional baseada não só na escolha da matéria-prima, mas também no transporte e respectiva utilização dos instrumentos (Carvalho et al. 2008). Embora a cadeia operatória identificada em chimpanzés seja diferente da reconhecida no Modo 1 (Carvalho et al. in press), a investigação levará necessariamente a potenciais respostas relacionadas com a sua evolução e que até agora eram difíceis (senão mesmo impossíveis) de responder. O USO DE INSTRUMENTOS E OS NOVOS RUMOS DE

INVESTIGAÇÃO

A acumulação de instrumentos em locais específicos, as actividades alimentares e de cooperação com outros indivíduos, o aprovisionamento e transporte de matérias-primas e utensílios, o uso de certos instrumentos perecíveis ou sua transmissão cultural (Toth e Schick 2009) são exemplos de como áreas como a Arqueologia de Primatas são cada vez mais importantes pelas novas perspectivas que colocam. A confirmação da existência de toda uma cadeia operatória no fabrico de instrumentos em chimpanzés, assim como o uso e/ou transformação de instrumentos orgânicos ou líticos, vieram mostrar-nos que também a Arqueologia terá que ir muito para lá da visão antropocêntrica que lhe está tão entranhada.

O fabrico de lascas e o seu uso como instrumentos é apontado como a maior diferença entre os fabricantes dos primeiros instrumentos e os seus ancestrais (Davidson e Nowell 2010). O que muitas vezes os investigadores parecem esquecer é que, talvez tão importante quanto isso, é o facto de os primatas não humanos actuais simplesmente não precisarem de fabricar esse tipo de instrumentos no seu quotidiano, mostrando que a necessidade como base para o salto evolutivo no fabrico de instrumentos poderá ter desempenhado um papel central, uma vez que, tal como fazem notar Haslam et al. (2009), a dentição dos primatas é suficiente para boa parte das tarefas do seu dia-a-dia.

Se por um lado existem estudos que comprovam que os bonobos, quando ensinados, conseguem fabricar lascas, por outro, a organização cognitiva das técnicas associadas ao uso sequencial de instrumentos em chimpanzés no seu habitat natural levam-nos a questionar se a sua complexidade não se encontrará já bastante mais desenvolvida do que aquilo que se pensa. O uso de cinco instrumentos sequenciais para extracção de mel no Loango National Park, com incidência quer no número de instrumentos, quer nos seus diferentes tipos e usos, é um excelente exemplo de toda uma sequência organizacional a nível cognitivo bastante complexa. A confirmação da existência de uma cadeia operatória em chimpanzés (Carvalho et al. 2008), embora seja uma investigação com várias questões ainda em aberto (Carvalho et al. in press), vem dar mais força a esta linha de pensamento.

O estudo dos macacos capuchinhos é talvez aquele que mais urge alargar. Os vários comportamentos instrumentais que lhe foram observados nos últimos anos permitem-nos, de certa forma, comparar a sua importância à dos chimpanzés. As primeiras observações do uso de “ferramentas secundárias” em primatas não humanos mostram-nos também o quanto ainda é mal conhecido o comportamento tecnológico e cognitivo destes macacos do Novo Mundo. A aplicação do método arqueológico aos macacos capuchinhos será bastante importante, até porque a relação entre o tamanho e peso do seu cérebro e corpo, o grande desenvolvimento neocortical e a sua grande mobilidade e robustez ultrapassam em alguns aspectos os chimpanzés (Cleveland et al. 2004) e assemelham-se ao Australopithecus afarensis (Westergaard e Kuhn 2001).

Os últimos anos têm sido pródigos em novas descobertas, pequenos avanços e novas perspectivas que nos levam a uma constante adaptação a novas problemáticas, a novas interrogações, mas também a novas soluções. Estes novos conhecimentos levam-nos a pensar o quanto ainda estamos no início e o pouco que ainda conhecemos sobre a utilização das primeiras ferramentas e os comportamentos associados ao seu uso.

AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de agradecer a Susana Carvalho a

oportunidade que nos deu para apresentarmos este trabalho.

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