Brincadeiras, lugares e modos de vida na memória de antigos moradores dos Distritos da Penha e do Cangaíba no Município de São Paulo DANIELA SIGNORINI MARCILIO 1 MADALENA PEDROSO AULICINO 2 Resumo A lembrança depende do grau de envolvimento que o indivíduo tem com a sociedade, sendo uma memória coletiva (HALBWACHS, 2006). Por isso, este trabalho procurou identificar como era a infância, brincadeiras e também modos de vida de crianças que viviam em duas regiões no Município de São Paulo, no período de 1940 e 1960. O objetivo principal foi reconstituir memórias da Cidade e de brincadeiras, com atenção aos lugares e modos de vida no passado, refletindo sobre essas experiências e construindo uma história a partir dos relatos. Ancorando-se na história oral, uma técnica de coleta de dados interdisciplinar e uma forma de produzir conhecimentos históricos (HAGUETTE, 2013; LOZANO, 2006), foram entrevistados 13 idosos que brincaram nesses lugares. Os depoimentos permitiram identificar uma memória coletiva dos entrevistados, relembrando sua história e trazendo evocações de seu cotidiano. Constatou-se também que as brincadeiras eram transmitidas pelos grupos de amigos da rua e tinham lugar nesse mesmo espaço público: a rua, esse imenso "quintal", espaço de convivência de crianças e de adultos, em que pessoas eram identificadas como “donos da rua”, e com as quais os carros não competiam. Palavras-chave: Brincar. Memória. Modos de vida. História oral. A pesquisa Este artigo desenvolveu-se a partir de uma pesquisa sobre brincadeiras infantis do passado e do presente nos Distritos da Penha e do Cangaíba, ambos localizados no Município de São Paulo. Reuniu-se informações sobre brincadeiras e locais em que elas ocorriam, focando nas paisagens e modos de vida das famílias da época. Dessa maneira foi possível compreender um pouco sobre a infância no contexto histórico desses dois bairros da Cidade de São Paulo de 1940 a 1960, mas refletir também como é esse brincar hoje. 1 Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), Mestra em Filosofia (área de concentração Estudos Culturais), apoio CAPES. 2 Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), Doutora em Ciências da Comunicação.
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Brincadeiras, lugares e modos de vida na memória de antigos moradores dos Distritos
da Penha e do Cangaíba no Município de São Paulo
DANIELA SIGNORINI MARCILIO1
MADALENA PEDROSO AULICINO2
Resumo
A lembrança depende do grau de envolvimento que o indivíduo tem com a sociedade, sendo
uma memória coletiva (HALBWACHS, 2006). Por isso, este trabalho procurou identificar
como era a infância, brincadeiras e também modos de vida de crianças que viviam em duas
regiões no Município de São Paulo, no período de 1940 e 1960. O objetivo principal foi
reconstituir memórias da Cidade e de brincadeiras, com atenção aos lugares e modos de vida
no passado, refletindo sobre essas experiências e construindo uma história a partir dos relatos.
Ancorando-se na história oral, uma técnica de coleta de dados interdisciplinar e uma forma de
produzir conhecimentos históricos (HAGUETTE, 2013; LOZANO, 2006), foram
entrevistados 13 idosos que brincaram nesses lugares. Os depoimentos permitiram identificar
uma memória coletiva dos entrevistados, relembrando sua história e trazendo evocações de
seu cotidiano. Constatou-se também que as brincadeiras eram transmitidas pelos grupos de
amigos da rua e tinham lugar nesse mesmo espaço público: a rua, esse imenso "quintal",
espaço de convivência de crianças e de adultos, em que pessoas eram identificadas como
“donos da rua”, e com as quais os carros não competiam.
Palavras-chave: Brincar. Memória. Modos de vida. História oral.
A pesquisa
Este artigo desenvolveu-se a partir de uma pesquisa sobre brincadeiras infantis do
passado e do presente nos Distritos da Penha e do Cangaíba, ambos localizados no Município
de São Paulo. Reuniu-se informações sobre brincadeiras e locais em que elas ocorriam,
focando nas paisagens e modos de vida das famílias da época. Dessa maneira foi possível
compreender um pouco sobre a infância no contexto histórico desses dois bairros da Cidade
de São Paulo de 1940 a 1960, mas refletir também como é esse brincar hoje.
1 Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), Mestra em Filosofia
(área de concentração Estudos Culturais), apoio CAPES. 2 Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), Doutora em Ciências
da Comunicação.
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Baseando-se na metodologia de história oral, 13 entrevistas temáticas individuais
foram realizadas com idosos (as) que viveram nas regiões da Penha e do Cangaíba entre os
anos de 1940 e 1960, e ter passado a infância nesses dois locais foi fundamental para se
realizar a pesquisa. Os sujeitos da pesquisa foram localizados em equipamentos públicos e
privados que oferecem atividades de lazer para a Terceira Idade. Os entrevistados e as
entrevistadas foram classificados (as) conforme o alfabeto em A, B, C, assim por diante,
tendo sua identidade preservada.
A elaboração de um roteiro de entrevista cooperou para manter o foco e organizar as
informações. Os temas do roteiro foram definidos para compreender costumes e festividades;
espaços de brincar; paisagens e possibilidades de brincadeiras criadas; brincadeiras mais
comuns (foco nas coletivas); aquisição de brincadeiras; configuração das famílias;
companheiros (as) de brincadeiras; relação entre a vizinhança; significado da rua; relações de
consumo; brinquedos; relação com aparelhos eletrônicos disponíveis (rádio, televisão);
rotinas. Por intermédio da entrevista temática foi possível identificar práticas de brincadeiras
mais comuns do passado entre os anos 1940, 1950 e 1960, com foco na vivência e experiência
do entrevistado (a).
A história oral é uma das metodologias mais comuns para se trabalhar com
lembranças, uma vez que possibilita registros de um passado que não retornará mais. De
acordo com Haguette (2013), a história oral é uma técnica de coleta de dados baseada no
depoimento oral sendo uma metodologia interdisciplinar, isto é, utilizada por diversas áreas
de estudo. Ela tem mostrado um papel importante, pois além de ter influência interdisciplinar,
permite que a história seja relembrada por aqueles (as) que a vivenciaram, os atores sociais,
neste caso os sujeitos que brincaram na Penha e no Cangaíba.
Lozano (2006) apontou que a história oral não se reduz apenas a uma pesquisa que
reúne relatos de experiência dos “outros”, mas sim uma forma de produzir conhecimentos
históricos e científicos. A história oral reproduz a realidade de um indivíduo em determinado
contexto histórico social e que muitas vezes não foi considerado na história oficial. Segundo
Alberti (2004), essa metodologia seria uma forma de trazer à tona realidades de indivíduos
comuns, sendo uma espécie de “voz dos excluídos”, ou seja, de pessoas comuns da sociedade.
Segundo Bosi (1994), existe diferença entre a memória do adulto e a memória do
velho. O adulto está entretido nas tarefas do presente e não costuma se voltar para as
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memórias e quando o faz é num momento de relaxamento. Em contrapartida o idoso se
lembra do passado mesmo fora de seu período de descanso “ele está se ocupando consciente e
atentamente do próprio passado, da substância mesma de sua vida” (BOSI, 1994: 60), além
disso, ele seria “a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade” (BOSI, 1994:
63), porém nem sempre esta função recebe seu devido valor.
Onde estão as brincadeiras, os jogos, os cantos e danças de outrora? Nas
lembranças de velhos aparecem e nos surpreendem pela sua riqueza. O velho, de
um lado, busca a confirmação do que se passou com seus coetâneos, em
testemunhos escritos ou orais, investiga, pesquisa, confronta esse tesouro de que é
guardião. De outro lado, recupera o tempo que correu e aquelas coisas que, quando
as perdemos, nos fazem sentir diminuir e morrer (BOSI, 1994: 83).
Entende-se que idosos (as) seriam guardiões e guardiãs das lembranças de fatos que se
apresentam diferentes no presente, como por exemplo, brincadeiras e jogos. Para recordar
muitas vezes recorre a pessoas que compartilharam o mesmo período para investigar se o que
está lembrando de fato foi o que se passou.
Halbwachs (2006) sugeriu a relação entre memória e história pública estudando os
quadros sociais da memória percebendo que esta depende das instituições formadoras do
sujeito (família, escola, religião), tendo também expressiva ligação com o grupo. “Nossas
lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de
eventos em que somente nós estivéssemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto
acontece porque jamais estamos sós” (HALBWACHS, 2006: 30). Neste sentido a lembrança
dependeria do grau de envolvimento que o indivíduo tinha com a sociedade e que a lembrança
dependeria mais da memória coletiva do que da individual.
Nesse sentido, essa pesquisa trabalhou com memórias de um coletivo que vivia no
mesmo espaço, isto é, no mesmo bairro e que possuía um estilo de vida muito próximo,
apresentando constituições comuns de famílias, meio social e econômico, vivência escolar,
dificuldades e conflitos na vida cotidiana. A seguir então serão apresentados relatos de idosos
(as) sobre suas infâncias em dois bairros da Cidade de São Paulo, memórias que trazem um
registro coletivo dos costumes, das brincadeiras e dos grupos infantis da região.
Brincadeiras, lugares e modos de vida na infância
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Para iniciar a apresentação dos modos de vida dessas infâncias, o texto inclui perfil
dos entrevistados (as), brincadeiras, festividades, aspectos de gênero contidos nos espaços de
brincar, grupos infantis, influências dos meios de comunicação na atividade lúdica (cinema,
novelas de rádio), conflitos, e demais temas que emergiram a partir dos depoimentos sobre
relações sociais entre as crianças e com as famílias.
O critério de participação na pesquisa era ter vivido a infância na Penha ou no
Cangaíba. Na época em que eram crianças os entrevistados (as) apresentavam fatores comuns:
integravam grandes famílias; ficaram órfãos de pai ou mãe enquanto crianças; o pai
trabalhava fora e a mãe executava atividades no lar (costura, lavar roupa, cultivo de horta);
ajudavam com as atividades domésticas e muitas vezes trabalhavam (babá, vendas, auxiliar
geral); possuíam quintais, a rua e muitas vezes o bairro todo para brincar; não possuíam
televisão; não tinham acesso a brinquedos comerciais; frequentavam a escola; visitavam
cinemas; tinham relações próximas com seus vizinhos, inclusive promoviam festas em
conjunto nas ruas (Festas Juninas); eram destituídos (as) de veículo próprio (automóvel);
tinham contato com crianças da mesma camada social e também de diferentes culturas (filhos
de imigrantes portugueses, alemães e japoneses, entre outras).
Foram identificadas brincadeiras como pular corda, pipa, peteca, pega-pega,
pedrinhas, passa-anel, mana mula, lenço atrás, futebol, festa junina, esconde-esconde, cinema,
carrinho de rolimã, carnaval, bolinha de gude, bicicleta e amarelinha. Idosas citaram boneca,