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Revista Sociedade e Estado - Volume 30 Nmero 1 Janeiro/Abril
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Da obedincia ao consentimento: reflexes sobre o experimento de
Milgram luz das instituies modernas
Sandra Leal de Melo Dahia*
Resumo: O objetivo do presente ensaio fornecer uma leitura sobre
os resultados do clssico experimento de Stanley Milgram em torno da
obedincia autoridade a partir de algumas cate-gorias extradas dos
estudos tericos do socilogo Anthony Giddens e da filsofa Hannah
Arendt. O texto est estruturado em torno de dois aspectos centrais.
O primeiro afirma o contexto das tendncias culturais e as
caractersticas das instituies modernas como fatores decisivos para
a compreenso dos resultados experimentais. Enfatiza, para tanto, a
modalidade de confiana que os sistemas sociais, como os sistemas
peritos, instauram na vida hodierna, capaz de produzir uma peculiar
subordinao ao conhecimento cientfico e tcnico, concomitante a uma
plena de-sinformao sobre seus princpios de funcionamento. O segundo
aspecto do artigo visa realar a importncia da responsabilidade
moral dos sujeitos experimentais, propondo, com base nas refle-xes
de Hannah Arendt, o deslocamento do eixo central da anlise do
experimento da categoria obedincia para a categoria
consentimento.
Palavras-chave: sistemas peritos, confiana, obedincia,
responsabilidade moral, consentimento.
Introduo
Opresente ensaio traz tona mais uma leitura, entre tantas
outras, a respei-to dos resultados do clebre experimento de Stanley
Milgram (1963; 1974) sobre obedincia autoridade, realizado h mais
de 50 anos. Desta vez, utilizamos como suportes principais anlise
algumas categorias elaboradas pelo socilogo Anthony Giddens (1991)
para compreender a sociedade moderna com suas instituies sociais e
as reflexes da filsofa Hannah Arendt (2004) sobre res-ponsabilidade
moral.
De acordo com Giddens, os modos de vida engendrados pela
Modernidade seja pelo ritmo de mudanas empreendidas, seja pelo seu
alcance produziram uma descontinuidade em todos os tipos
tradicionais de ordem social. Tal fato se atribui, sobretudo, ao
deslocamento das relaes sociais de contextos locais de interao e
sua reorganizao em extenses indefinidas de tempo e de espao, o que
o autor denomina de desencaixe. Nessa nova configurao social,
Giddens enfatiza a importncia da confiana para o funcionamento das
relaes sociais, principal-mente, ante os mecanismos de desencaixe
que ele define como fichas simblicas e
* Doutora em sociologia pela Universidade Federal da Paraba,
professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal do Amazonas. .
Recebido: 05.06.13
Aprovado: 30.01.14
Gisele HigaTexto digitadoDOI:
10.1590/S0102-69922015000100013
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sistemas peritos. Estes assumem particular importncia para o
nosso estudo. So sistemas abstratos dirigidos por um saber tcnico e
profissional especializado, os quais regulam extensas reas da nossa
vida hodierna. A relao com seus usurios ou consumidores implica uma
modalidade de confiana que se caracteriza por um desconhecimento
total de seus processos de funcionamento.
Os sistemas sociais modernos adotam uma dinmica distinta de
outros perodos histricos, particularmente pelo nvel impessoal e
abstrato de seus sistemas sociais e pela natureza da confiana que
eles inspiram. Parte do pensamento de Giddens, portanto, servir
como referncia para realar a importncia de aspectos histricos e
culturais na interpretao dos resultados experimentais de Milgram,
em detri-mento de anlises de carter psicolgico que valorizem
inclinaes ou caractersti-cas pessoais dos sujeitos do experimento.
A partir de circunstncias experimentais especficas, sob a gide das
instituies modernas, sobretudo da cincia conside-rada instituio
basilar na organizao social da Modernidade, cidados comuns
(denominados de sujeitos experimentais), afeitos a valores
humanitrios, foram po-tencialmente uma vez que se tratava de mera
simulao capazes de provocar choques eltricos de fortssima
intensidade em supostos alunos. Estes resultados do experimento de
Milgram, que atestam, para ele prprio, forte submisso a uma
autoridade cientfica em prejuzo de pessoas inocentes, repetidamente
alcanado em diferentes pases, somente ratificam a tese da penetrao
das instituies em nosso estilo de vida, a reverncia cincia e ao
conhecimento tcnico considerados instituies centrais em nossa
sociedade e aos seus sistemas peritos e reguladores.
Guardadas as devidas diferenas, diramos, parafraseando o
socilogo Zygmunt Bauman, em seu discurso sobre o Holocausto, que os
achados do experimento de Milgram no deveriam ser compreendidos
fora do contexto das tendncias cultu-rais e das caractersticas das
instituies modernas. Trata-se de uma questo dessa sociedade e dessa
cultura (Bauman, 1998: 12). Com isso, no temos a inteno de oferecer
justificativas s aes dos sujeitos experimentais, tendo em vista que
re-cusamos qualquer concepo passiva de homem que implique a subtrao
de sua capacidade de submeter acontecimentos a juzo. por essa razo
que tentamos reabilitar, a partir de Hannah Arendt, a importncia da
responsabilidade moral de cada sujeito na deciso de aplicar os
choques, propondo, para isso, o consentimento como nova categoria
de anlise para compreenso do experimento. Na verdade, tal leitura
de Arendt, que compe a segunda parte do artigo, representa a nossa
contribuio particular para a presente discusso.
A categoria obedincia tem sido o vis interpretativo
historicamente dominante nas anlises do experimento o que, na nossa
compreenso, obscurece a respon-sabilidade moral dos sujeitos
experimentais. Com a proposio do consentimento
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como nova categoria de anlise, buscamos evidenciar a questo
moral implicada no contexto experimental, reafirmando, com Arendt
(2004), que no existe obedincia em questes morais, uma vez que
estas exigem deciso e escolha.
O percurso do artigo consistir, portanto, em buscar,
inicialmente, recursos no pen-samento de Giddens para compreender a
Modernidade e suas instituies, con-ferindo especial ateno ao tipo
de relao de confiana suscitada pelos sistemas peritos. Nesse
contexto, a teoria do psiclogo social Serge Moscovici servir para
reforar a concepo de que discursos cientficos so apropriados
extensamente pelo senso comum, assumindo um carter quase
prescritivo. Em seguida, com base na ideia de construo social e
histrica de emoes sociais, articularemos contri-buies tericas de
autores como Richard Sennett e Norbert Elias no sentido de
de-monstrar como o processo de refinamento dos sentimentos no
Ocidente elaborou a vergonha como mecanismo sutil de imposio de
autoridade, dispensando o hist-rico recurso violncia para o
estabelecimento da dominao. Particularmente para Sennett, o
sentimento de vergonha um meio frequente de imposio de autori-dade
exercida por especialistas ante os leigos na sociedade moderna.
Finalmente, iremos sugerir, com base no pensamento de Hannah
Arendt, uma reconsiderao na anlise do experimento a partir da
categoria consentimento em substituio a categoria obedincia.
Confiana moderna e subjugao aos sistemas peritos
O experimento de Stanley Milgram realizado originalmente em
1961, na Universi-dade de Yale, consistiu em levar sujeitos
experimentais a aplicar (falsos) choques eltricos gradativos at o
limite de 450 volts em supostos aprendizes inocentes, sob a falsa
alegao de se verificar o efeito da punio sobre a aprendizagem.
Cerca de vinte experimentos foram realizados envolvendo centenas de
indivduos, pessoas comuns, presumivelmente afeitas aos valores
ocidentais e sensveis causa cien-tfica. Tais indivduos, de forma
consistente, demonstraram um alto ndice de sub-misso autoridade do
pesquisador ao obedecerem ordem de provocar choques eltricos, com a
voltagem mxima, em indivduos inocentes. Sobretudo em razo de suas
consequncias, o experimento tornou-se um dos mais impactantes e
con-troversos das cincias humanas e sociais. Muitos artigos foram
escritos contendo anlises minuciosas de seus surpreendentes
resultados e suas implicaes ticas (Patten, 1977; Morelli, 1983;
Blass, 2000; entre outros).
No obstante, a grande indagao que permaneceu e ainda permanece
ecoando e revulsando nossas conscincias no caso de se considerar o
estudo experimen-talmente vlido esta: como seria possvel trair to
facilmente o senso moral, os
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caros valores humanitrios, em favor de uma submisso cega a uma
suposta auto-ridade cientfica? Em outros termos, por que seres
humanos sensveis e comuns tornaram-se agentes de dor e sofrimento
em pessoas inocentes? A mais importante e mais contundente lio da
pesquisa a suposio de que a produo da crueldade humana se relaciona
a determinados padres de interao social de maneira muito mais
significativa do que as caractersticas de personalidade dos
indivduos (Bau-man, 1998). O arranjo social, mais que o impulso
para agressividade, seria apontado como o grande responsvel por
seus resultados experimentais (Milgram, 1963). No apenas
reafirmando tal interpretao, mas tambm intencionando especific-la,
consideramos que o referido estudo abre espao para perspectivas que
podem re-lacionar, de forma mais estreita, as peculiaridades de
nossas instituies modernas com os resultados apresentados por
Milgram. Particularmente, destacamos as mo-dalidades de confiana
que, de acordo com Giddens, so engendradas pelo estilo de vida
moderno. Buscar na cultura, nas representaes sociais circulantes e
nas instituies modernas as razes para tal achado, em vez de
atribu-lo a uma suposta natureza humana, marca uma posio
distanciada de um enfoque eminentemente psicolgico na compreenso do
fenmeno, sem, contudo, convergir para uma viso fechada que elimine
em definitivo a atividade humana e sua capacidade de pensar e
julgar.
Para Giddens, sob determinados pontos de vista, as instituies
modernas so singu-lares, considerando-se que a Modernidade1 coloca
em curso um ritmo acelerado e extenso de profundas mudanas em sua
ordem social, impensvel em qualquer ou-tra ordem social
tradicional. A rapidez da mudana, facilmente identificada no mbi-to
da tecnologia, atua intensamente em outras esferas da realidade
social. Tambm o alcance das transformaes assume propores
inimaginveis, envolvendo toda a extenso do globo. Sempre de acordo
com Giddens, tal dinamismo da Modernida-de est diretamente
relacionado com alguns fatores fundamentais: a separao do tempo e
do espao, o desencaixe dos sistemas sociais e a ordenao e reordenao
reflexiva das relaes sociais luz dos novos conhecimentos (1991:
25).
Destacamos, para a presente discusso, a importncia do desencaixe
dos sistemas sociais, sobretudo dos sistemas peritos. Por
desencaixe, Giddens entende
[...] o deslocamento das relaes sociais de contextos locais de
in-terao e sua reestruturao atravs de extenses indefinidas de
tempo-espao (Giddens, 1991: 29).
Enquanto, nas sociedades pr-modernas, as relaes sociais eram
estabelecidas sobre uma ideia fixa de tempo e espao determinados,
ou seja, eram relaes en-caixadas, nas sociedades modernas, as
relaes sociais so transformadas pelo dis-
1. Giddens (1991: 11) define Modernidade, grosso modo, como
[...] estilo, costume de vida ou organizao social que emergiram na
Europa a partir do sculo XVII e que, ulteriormente, se tornaram
mais ou menos mundiais em sua influncia.
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tanciamento cada vez maior do tempo e do espao. Isso traz
grandes implicaes e consequncias para os nossos modos de vida. H
uma padronizao na organiza-o social do tempo: ele se torna
artificial, vazio. O lugar se torna fantasmagri-co (Gid dens, 1991:
27) no sentido de o local ser penetrado por influncias sociais
distantes. Local e global passam a associar-se de modo estreito e
as relaes so-ciais reorganizam-se atravs de grandes extenses de
tempo e do espao. Giddens distingue dois tipos de mecanismo de
desencaixe: as fichas simblicas e os expert systems, traduzidos
como sistemas peritos ou sistemas especialistas. Estes ltimos, que
mobilizam nossa especial ateno, consistem em
[...] sistemas de excelncia tcnica ou competncia profissional
que organizam grandes reas dos ambientes material e social em que
vivemos hoje (Giddens, 1991: 35).
O nvel de influncia que o conhecimento perito integrado aos
sistemas exerce na vida cotidiana to profundo e contnuo, que ningum
pode escolher estar com-pletamente fora dele. Ele perpassa a maior
parte das atividades humanas, das mais prosaicas s mais complexas,
como, por exemplo, acender uma luz, abrir uma tor-neira, residir em
prdios, telefonar, subir escadas, voar de avio, mesmo sem o menor
domnio dos usurios sobre os conhecimentos tcnicos implicados nessas
atividades. Em consequncia, a condio de desencaixe requer tambm
modifica-es na percepo social sobre confiana e segurana. Na
verdade, so exigidas novas modalidades de confiana, sem precedentes
na histria, para se lidar com a nova realidade das instituies
modernas. A confiana um tipo de f que simboliza muito mais uma
expectativa em resultados provveis do que um entendimento ou domnio
cognitivo da situao. Ela se associa ausncia no tempo e espao, tendo
em vista que seria dispensvel no caso da transparncia das aes de
uma pessoa ou dos princpios de funcionamento de um sistema.
Antes da Modernidade, a confiana era creditada a indivduos, era
regulada por sua conduta, por sua presena. Tratava-se de um
compromisso com rosto para usar-mos a terminologia de Giddens
(1991: 91). Hoje, ela se converte em credulidade em um sistema
impessoal e abstrato. A expresso de f dessa modalidade de confiana
est portanto baseada na correo de princpios. Em outros termos: a
confiana depositada muito mais na legitimidade e na eficcia de um
saber e de uma tcnica que no se detm do que nos indivduos que os
operam, mesmo se algumas vezes esta credibilidade depositada em
figuras humanas concretas os representantes dos sistemas, situados
nos chamados pontos de acesso. Estes remetem a noo de reencaixe,
conceito complementar de desencaixe que, segundo Giddens, refere-se
tentativa de reapropriar as relaes sociais desencaixadas de forma a
submet-las a condies encaixadas, isto , a condies locais de tempo e
lugar. Desse modo as
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relaes sociais desencaixadas, sem rosto, interagem com condies
reencaixadas que solicitam a presena do rosto. Na verdade, para
Giddens, os pontos de acesso dos sistemas abstratos constituem as
zonas de interseco entre os compromissos com rosto e os compromisso
sem rosto. O fato de o processo vir acompanhado de elementos
simblicos, como a postura dos representantes dos sistemas a
serie-dade do cientista portador de uma linguagem eminentemente
tcnica, o ar solene do juiz, a tranquilidade estudada da tripulao
do avio, por exemplo , somente refora o quadro de confiana que
pessoas, mais do que sistemas, parecem inspirar. A presena de
representantes dos sistemas sociais suscita maior segurana e maior
gratificao psicolgica, mas pode revelar, tambm, a vulnerabilidade
dos sistemas, tendo em vista o reconhecimento da falibilidade
humana na aplicao do conhe-cimento. Em certa medida, os pontos de
acesso so os grandes responsveis pela fragilidade dos sistemas
peritos especficos, medida que so associados a expe-rincias
negativas com seus representantes. Outro aspecto ambivalente, que
tanto pode fragilizar a confiana nos sistemas peritos como
refor-la, so as atualizaes de conhecimentos amplamente divulgadas
tanto para leigos como para peritos.
H, na Modernidade, uma apropriao reflexiva permanente dos
conhecimentos produzidos. No obstante, o que especfico da
Modernidade que essa reflexivi-dade se desenvolve,
indiscriminadamente, em todos os aspectos da vida humana,
integrando, constitutivamente, as prticas sociais em que se d a
reflexo. Embo-ra as exigncias da razo paream fornecer uma sensao de
maior segurana na tradio, o conhecimento na Modernidade no assume o
sentido de solidez antigo baseado em certezas, pois nenhum
conhecimento, agora, est isento de reviso nem capaz de oferecer
maior controle sobre a vida social. Mesmo assim, o co-nhecimento
especializado socialmente percebido como a fonte mais confivel de
informaes sobre o mundo. Essa confiana , preferencialmente,
depositada na percia tcnica, em princpios abstratos e no em seres
humanos. Na perspectiva de Giddens, essa confiana caracteriza-se
como confiana cega (Giddens, 1991: 41) porque celebra uma troca, na
qual a f dada em substituio ao conhecimento dos princpios que regem
o funcionamento de tais sistemas. Ela traduz uma espcie de
capitulao dos leigos ante o conhecimento especializado, devido
impossibi-lidade de verificao necessria e constante dos seus
contedos e, ainda, devido falta de alternativas. Como assinala
Giddens (1991: 92), [...] s se exige confiana onde h ignorncia.
No se pode, contudo, simplificar excessivamente essa assero de
Giddens, con-siderando-se que esta f pressupe um elemento pragmtico
que se baseia na ex-perincia da correspondncia das expectativas dos
leigos sobre o funcionamento dos sistemas e sobre a eficincia de
suas agncias reguladoras. Na Modernidade, a confiana vincula-se noo
de contingncia que vista, primariamente, como con-
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sequncia da ao humana e no da interveno de entidades divinas.
Representa, por fim, uma aceitao implcita da situao na qual outras
possibilidades esto afastadas e no, propriamente, uma atitude de
compromisso consciente.
Na Era da Informao, a confiana em sistemas peritos perpassa as
atividades co-tidianas de modo permanente, quase prescritivo, sendo
reforada continuamente, de maneira, muitas vezes, imperceptvel,
pelas circunstncias presentes ao dia a dia. Hoje, em um pas
ocidental, o conhecimento especializado e tcnico permeia o discurso
e a prtica de qualquer um de seus habitantes. Desde o simples ato
de abrir uma geladeira at conduta adequada na educao dos filhos,
tudo parece sofrer a influncia dos saberes peritos que representam
um verdadeiro divisor de guas sobre o certo e o errado. a
competncia especializada que se torna agora a medida de todas as
coisas, numa clara ressignificao da viso do sofista Prot-goras de
Abdera.
Sugerimos, retomando os estudos de Milgram, que seus resultados
(um ndice de mais de 60% de submisso ordem de aplicar choques)
poderiam indicar a apro-priao de um novo modelo de relao de
confiana, o qual afirma, prioritariamen-te, o saber tcnico e
especializado como regulador da vida social, ante a impotncia e
subordinao do leigo, desautorizando qualquer postura de desafio e
ousadia. Conforme afirma Giddens,
[...] o que conta em qualquer situao em que o especialista e o
leigo se confrontam um desequilbrio nas habilidades ou na in-formao
que para um determinado campo de ao torna al-gum uma autoridade em
relao ao outro (Giddens, 2012: 131).
O respeito cincia estimulado pela educao desde muito cedo.
Giddens (1991) assinala que, no ensino formal, no apenas contedos
cientficos so transmitidos, mas, sobretudo, atitudes de deferncia
cincia propriamente dita. o chamado currculo oculto (Giddens, 1991:
92) que, segundo ele, exerce uma influncia de-cisiva nos sistemas
de educao moderna. Os ritos de iniciao cientfica so marca-dos por
posturas devocionistas ao conhecimento cientfico e tcnico que os
protege de qualquer vulnerabilidade. Somente com a familiaridade da
prtica cientfica, tal postura cede lugar a dvidas e questionamentos
sobre sua fragilidade, ainda que isso no ocorra de forma absoluta,
j que o conhecimento do leigo sobre a cincia sempre teve uma boa
dose de ambivalncia, como prprio de toda relao de confiana, que
atrela respeito, desconhecimento e submisso a certa dose de d-vida
e medo.
Giddens, entretanto considera que, em um mundo de alta
reflexividade, [...] a cincia perdeu boa parte da aura de
autoridade que um dia possuiu (Giddens,
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2012: 137). Em outras palavras: a exigncia de legitimidade
universal da cincia torna-se cada vez mais discutvel na sociedade
atual (Giddens, 2012: 275). Em substituio, o conhecimento
progressivamente especializado passa a ser um dos sustentculos
desse novo contexto, evidenciando um mundo de autoridades
ml-tiplas, no qual a figura do superespecialista ou do especialista
dos especialistas deixa de existir. No entanto, na realidade
concreta, combinaes do tradicional e do moderno coexistem e, muitas
vezes, relacionam-se a ponto de a cincia ser vis-ta ao mesmo tempo
como fonte de autoridade monoltica conforme a tradio e saber mais
descentralizado, atrelado a novas concepes que destacam suas
incertezas e fragilidades. Esses novos ares sobre o conhecimento
que sopram na Modernidade tambm no restringem a importncia de
centros de autoridades socialmente reconhecidos. Seja como for,
consideramos que, apesar da mudana de status, a cincia agora objeto
de questionamento permanente acerca de suas bases de conhecimento
continua sendo emblemtica da lgica que dirige a rela-o de confiana
nos sistemas abstratos. a representao idealizada do saber e da
percia e a compreenso disso se expande de maneira profunda e
extensa sobre as relaes cotidianas. Assim, sobre o lastro de saber
perito, ganham legitimidade e circulam diferenciados conhecimentos
especializados, que se espraiam por to-dos os recantos da vida
social. Alm disso, outras instituies como, por exemplo, a mdia,
atravs da legitimidade que confere ao saber especializado
(evidenciado cotidianamente em suas diversificadas fontes de
expresso), acaba por contribuir fortemente para essa aura de
confiana.
A importncia da cincia esta considerada ainda como instituio
fundamental na organizao social reafirmada pelo psiclogo social
Serge Moscovici, que distingue duas classes de pensamento nas
sociedades atuais: os universos reifica-dos e os universos
consensuais (Moscovici, 2003). O autor desenvolve tais ideias no
contexto da elaborao de sua perspectiva psicossociolgica de uma
socieda-de pensante. Segundo ele, os universos consensuais e
reificados so categorias prprias de nossa cultura. Os universos
reificados so espaos onde se produziria um conhecimento formal,
tcnico e cientfico regido por critrios rigorosos e ob-jetivos de
verificao. Trata-se de um espao dotado de uma hierarquia de poder
baseado no saber em que se estabelece quem est autorizado a falar e
fazer. Como afirma Marilena Chau, em suas reflexes sobre o discurso
competente, [...] no qualquer um que pode dizer a qualquer outro
qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstncia (Chau,
2000: 7). Nos universos consensuais, por sua vez, circulariam os
saberes do senso comum ou representaes sociais (de acordo com a
concepo de Moscovici), pautados em critrios de verificao distintos,
baseados no julgamento do que plausvel e no daquilo que objetivo.
Consis-te em realidades de pensamento, ante as quais todos se
sentem vontade e, de fato, esto aptos a falar em condies de
igualdade. Para Moscovici, os universos
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reificados aumentam com o desenvolvimento e com a proliferao da
cincia, uma vez que esta a fonte, na sociedade atual, que fornece a
matria-prima em que o conhecimento comum se debrua.
A cincia era antes baseada no senso comum e fazia o senso co-mum
menos comum; mas agora senso comum a cincia tornada comum
(Moscovici, 2003: 60).
Esta concepo confere pertinncia suposio de que nas sociedades
modernas h uma forte subordinao dos universos consensuais aos
universos reificados, por-quanto estes ltimos produzem o
conhecimento que serve de referncia e orienta-o reflexo das pessoas
comuns. A confiana no saber cientfico e tcnico real-ada quase como
imperativo social e pode ser considerada uma forte representao
social no mundo atual. Para Moscovici, a representao social
evidencia uma reali-dade quase tangvel que acaba por regular muitos
dos discursos e comportamentos cotidianos. Tal como a representao
social da psicanlise nos induz a compreender lapsos lingusticos
como atos falhos ou a interpretar aes bem sucedidas ou fra-cassadas
como possveis resolues do complexo edpico infantil, a representao
social do saber penetra a realidade social de tal maneira que
poderamos, de forma especulativa, considerar como reverberao dessa
ideia, por exemplo, cenas pro-saicas do cotidiano brasileiro nas
quais escutamos nas falas dos informais guarda-dores de carros nas
ruas, uma mudana na forma de tratamento dirigida aos seus
proprietrios: doutor (ou doutora) em substituio ao tradicional e
familiar tio (tia). Pertinente seria uma pesquisa futura que
explorasse adequadamente essa questo. No entanto, o fato que, para
Moscovici, a ordem de conhecimento que construda no espao
consensual e que compe as teorias do senso comum ou, simplesmente,
representaes sociais, assume uma dimenso prescritiva para o
su-jeito, tornando-se nele uma fora to penetrante que muitas vezes
antecede o seu prprio pensamento. Neste caso, elas no so pensadas;
elas so repensadas e rea-presentadas (Moscovici, 2003: 36-37).
Mas a autoridade com que o saber se impe e se mantm sobre o
cidado comum revela vrios mecanismos sutis de submisso que apelam
para sentimentos de na-tureza complexa e obscura, como o caso da
vergonha. Em sua obra Autoridade, o socilogo Richard Sennett (2001)
busca entender como as pessoas estabelecem vn-culos afetivos na
sociedade moderna, quais so as formas sociais que esses
compro-missos adotam e quais so suas consequncias polticas. No
referido livro, o vnculo afetivo em relevo a autoridade,
compreendida por Sennett como vnculo entre desiguais a partir de
imagens de fora e fraqueza, embora assegure que esta fora possa
manifestar-se simbolicamente e no apenas em termos materiais.
Segundo ele, o padro de subjugao e dominao sofreu modificaes
significativas no de-
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curso da histria ocidental. Com o declnio da violncia,
considerada como forma rotineira de disciplinamento nas sociedades
ocidentais ao longo do sculo XIX, a vergonha passou gradativamente
a assumir seu lugar. Sennett destaca o socilo-go Norbert Elias como
o primeiro a assinalar a crescente importncia da vergonha na
sociedade moderna. Em seu magistral trabalho sobre o avano da
civilizao no mundo ocidental, compreendido do sculo XIII at os dias
atuais, Elias (1993) descreve uma histria dos costumes, a partir da
anlise do limiar da vergonha e da repugnncia. A partir das mudanas
no modo de se comportar mesa, percorrendo alteraes nos hbitos de
higiene, na sexualidade e na manifestao da agressivida-de, em tudo
Elias observa um progressivo refinamento na expresso das emoes como
resultado do que ele denomina de processo civilizador. Um de seus
objetivos era o de demonstrar que no possvel identificar um
comportamento natural no homem ou caracterizar um comportamento
tpico do homem ocidental. Ao contr-rio, o autor procura demonstrar
que o grau de civilizao das diferentes sociedades no o mesmo ao
longo da histria.
Numa perspectiva interdisciplinar e dinmica, Elias explica, de
forma articulada, como ocorrem mudanas na estrutura da sociedade e
mudanas na estrutura do comportamento e na constituio psquica. De
acordo com o autor, o avano da vergonha coincide com a diminuio do
medo fsico direto a outras pessoas e com o controle das pulses
sobre os comportamentos, apontando um processo de discipli-namento
social e autodisciplinamento individual. O sentimento de vergonha
uma espcie de degradao social, uma impotncia diante da reconhecida
superioridade dos outros. Para Sennett, embora se trate de um
controle que exercido implicita-mente e implique um nvel de punio
to restrito, em nenhuma medida a vergonha representa uma diminuio
da coero, mas, antes, um novo e igualmente eficaz modelo de
subjugao. A vergonha invocada como tipo de controle silencioso que
coteja implicitamente a percia do superior, realizada com
indiferena a uma tcita desvalorizao pessoal do subalterno. Em vez
de declarar explicitamente, por exem-plo, a condio de inferioridade
do empregado, a postura impessoal e confiante do empregador atua
como mecanismo de controle. Em muitas situaes, bastam o silncio, a
indiferena e a impessoalidade para se manter uma relao de
subjuga-o. Estas regras de conduta so semelhantes s que impelem, na
sociedade mo-derna, as pessoas leigas a considerarem superiores os
profissionais especializados e cientistas. Quanto mais indiferente,
impessoal e frio for o profissional e o cientista diante do seu
ofcio, tanto maior ser a confiana que inspirar.
Esta uma imagem que se aproxima da situao experimental conduzida
por Mil-gram. Nesta, o experimentador reagia, de modo frio e
distante, aos apelos deses-perados do aluno para interromper o
experimento, devido suposta dor que os choques lhe causavam e
hesitao dos sujeitos experimentais em aplic-los. O
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experimentador declarava que, apesar de dolorosos, os choques no
lhe causariam leso permanente nos tecidos e que, portanto, era
preciso seguir com o experimen-to (Milgram, 1974). De acordo com o
autor, o contexto experimental estruturado de forma tal que, para
os sujeitos do experimento, desobedecer s ordens do ex-perimentador
implicaria macular sua imagem de competncia e adotar uma
cons-trangedora postura de arrogncia, inapropriada ao leigo. Numa
viso mais articula-da com o pensamento de Giddens, tal desobedincia
significaria, possivelmente, a ruptura com o tipo de confiana que
os sistemas sociais exigem na Modernidade e com a opo por todo um
estilo de vida fundado na escolha e reconhecimento do conhecimento
tcnico e especializado como regulador da vida social. Ainda que
objetos de sutis mecanismos de controle social como o sentimento de
vergonha, os sujeitos experimentais revelam mais do que simples
submisso autoridade. De um ponto de vista mais amplo, revelam o
compromisso com um modelo de vida social e, de uma perspectiva mais
especfica e imediata, referente ao contexto experimen-tal, revelam
uma deciso sobre a quem obedecer.
Obedincia, consentimento e responsabilidade pessoal
Hannah Arendt rene, em seus escritos finais sobre
responsabilidade e julgamento (Arendt, 2004), vrios textos em que
desenvolve reflexes que nos permitem iden-tificar e compreender,
com maior clareza, algumas questes morais implicadas no experimento
de Stanley Milgram. Particularmente em seu texto, Responsabilidade
pessoal sob a ditadura, escrito em 1964, Arendt tenta desfazer
algumas falcias que so produzidas, de forma intencional ou no, para
provocar graves confuses morais. A primeira delas nos serve ao
propsito de realar a responsabilidade pes-soal dos sujeitos
experimentais na aplicao dos choques e se refere elaborao do
conceito de culpa coletiva.
A emergncia de tal conceito d-se no contexto do final da Segunda
Guerra Mundial com a derrota da Alemanha nazista, quando o fenmeno
do holocausto passa ao conhecimento pblico e surge a necessidade de
realizao do julgamento de seus criminosos. O conceito passa a ser,
ento, aplicado ao povo alemo e ao seu passa-do coletivo. De acordo
com Arendt, h um indubitvel e consequente engano nessa posio, uma
vez que, quando todos so apontados como culpados, ningum de fato o
. Na verdade, a afirmao de que todos so culpados apenas serve para
isen-tar de culpa os reais culpados. Arendt (2004: 83 e 90) emprega
o termo caiao para descrever a manobra intelectual de ocultar, com
o conceito de culpa coletiva, a responsabilidade moral dos
verdadeiros criminosos. Segundo a autora, to ina-dequado sentir
culpa por algo que no se fez quanto o contrrio, ou seja, se eximir
de responsabilidade por algo que se fez. Aqui vlida a distino
estabelecida entre
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responsabilidade poltica e responsabilidade moral. De acordo com
Arendt, a culpa algo pessoal e se refere a um ato, no a intenes.
Desse modo, somente em sen-tido metafrico possvel sentir culpa
pelos erros dos outros. A responsabilidade poltica, por sua vez,
pode ser requerida por atos que no se cometeram, atribuin-do-se a
razo dessa responsabilidade ao fato de se pertencer a um grupo que
o ato voluntrio no capaz de abolir. Trata-se de uma
responsabilidade poltica a que s se pode furtar abandonando-se a
comunidade. Como a ningum possvel viver sem comunidade, isso
implicaria troc-la por outra, o que significaria, em ltima
instncia, a substituio de um tipo de responsabilidade por outro.
Obviamente, existem categorias de pessoas como os refugiados e sem
ptria que, de fato, no poderiam ser consideradas como politicamente
responsveis por alguma coisa, mas o preo que pagam por essa condio
seria visivelmente menor do que o custo de dividirem uma
responsabilidade coletiva.
A prtica de deslocar a atribuio de responsabilidade dos
indivduos humanos con-cretos para realidades intangveis e abstratas
como forma de isent-los de suas pr-prias escolhas morais tem sido
adotada de modo frequente em nossa histria. Nos primrdios, essa
responsabilidade era transferida a entidades divinas que afetavam
os humanos, conforme a oscilao de seus instveis humores. Com o
desenvolvi-mento da cincia e com sua penetrao social, outros
fatores de natureza abstrata passaram a ocupar o papel de
protagonistas dessa histria, dividindo a cena entre fatores de
recorte sociolgico como sistemas, cultura, tendncias histricas e
fatores de natureza biolgica ou psicolgica, como instintos, pulses
etc. A despei-to do peso das mltiplas e complexas foras atuantes
sobre os eventos humanos, no podemos simplesmente abstrair o homem
da capacidade de pensar e julgar seus prprios atos. Nesse sentido,
torna-se cabvel, no contexto experimental de Milgram, o
reconhecimento da importncia da responsabilidade moral implicada na
deciso de aplicar choques.
Milgram parece minimizar a responsabilidade moral de seus
sujeitos experimentais ao sugerir que, no experimento, a
responsabilidade moral muda de foco. A percep-o de responsabilidade
volta-se para a execuo adequada e eficiente das aes ordenadas pelo
experimentador e no para o contedo de sua ordem. Assim, de acordo
com ele, muitos dos sujeitos experimentais no percebem sua ao como
resultado de sua prpria motivao pessoal, mas apenas como elo
intermedirio numa sucesso de aes. Eles passam a considerar-se
pequenos dentes na engre-nagem, a quem no caberia a
responsabilidade da deciso. Mesmo considerando a pertinncia do
argumento para mitigar a culpa dos sujeitos, este argumento
insuficiente para ser dado como justificao moral, considerando-se
que a deciso de integrar ou permanecer na engrenagem produto, em
ltima instncia, de uma escolha, tendo em vista que h um claro
reconhecimento dos sujeitos em relao
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impropriedade de suas aes. Como enfatiza Arendt, ser tentado no
, em nenhu-ma medida, a mesma coisa que ser forado.
A teoria do dente da engrenagem foi amplamente utilizada nos
julgamentos que se seguiram ao Holocausto, certamente porque a
ideia de fragmentao da ao humana total serve ao propsito de
mascarar a distino entre comportamento res-ponsvel e irresponsvel.
indiscutvel a existncia de diferenas entre a situao artificial do
experimento produzido por Milgram e a terrvel realidade da
ocorrncia de fenmenos, como Holocausto e outros similares,
ocorridos em situaes extre-mas. Uma delas se refere, por exemplo,
ao nvel de poder envolvido. Assim, em relao ao poder presente a
situaes reais de comando, o poder do experimenta-dor parecia
bastante reduzido em virtude de sua limitada expresso de retaliao e
punio. Milgram identifica a autoridade como a causa do
comportamento dos sujeitos experimentais. Nesse sentido, talvez no
nos convena de como to frgil autoridade do experimentador tenha
conseguido, em suas prprias palavras, obter um desalentador grau de
obedincia (1963).
Mesmo que se considere, na Modernidade, a eficcia de sutis
mecanismos de con-trole como a vergonha para a manuteno da
autoridade estabelecida pelo sa-ber cientfico, a ao de aplicar
choques parece no se enquadrar integralmente na definio de submisso
autoridade, mas expressar uma confiana e uma adeso a um estilo de
vida que seleciona o conhecimento perito e especializado como
indis-cutvel diretriz de conduta social, ainda que no se tenha
qualquer domnio sobre seus mecanismos de funcionamento. Essas
formulaes remetem-nos necessida-de de reinscrever os resultados
experimentais sob uma nova categoria de anlise. nesse sentido que
propomos o consentimento como a categoria-chave para a com-preenso
do fenmeno em vez da ideia de mera obedincia autoridade.
Este ponto de vista se apoia na discusso de Arendt sobre outra
relevante falcia destacada em seu texto, que diz respeito
exatamente confuso entre os conceitos de obedincia e consentimento.
Para Arendt, no existe obedincia em questes morais. Ela s se torna
possvel em uma relao assimtrica como, por exemplo, a estabelecida
entre adultos e crianas, ou outras similares, que tenha por base a
ideia de submisso total. O consentimento, diferentemente,
implicaria apoio, ade-so a uma ideia o que exige deciso. O simples
ato de aceitar participar do expe-rimento e nele permanecer, a
despeito do que poderiam causar, requer um consen-timento tcito em
um modelo de vida que elege e celebra a confiana nos sistemas
peritos como um eixo estruturante da vida moderna.
A nosso ver, a reside uma clara escolha moral que traduz no ato
humano a culpa ou inocncia de um indivduo. No direito penal que
obviamente no se aplica
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ao caso , o homicdio doloso descrito como ato em que se assume o
risco de matar. Os sujeitos experimentais, embora estivessem
avisados e esclarecidos dos riscos implicados no experimento,
parecem no estar suficientemente sensibili-zados para reconhecer
sua responsabilidade pessoal especfica no processo. Para eles,
apenas aos peritos caberia a deciso final e o julgamento sobre os
mtodos para atingirem seus fins, por isso o questionamento da
percia tcnica na execuo do experimento se afigurava como algo
inadequado que, definitivamente, no lhes dizia mais respeito, uma
vez que, antecipadamente, j haviam selado seu compro-misso pessoal
com todo o processo cientfico. A prpria conscincia, adquirida no
curso do experimento, de que o sofrimento produzido seria um mal
necessrio para o desenvolvimento do conhecimento, numa avaliao
inadequada da relao custo-benefcio da pesquisa, parece ter-se
constitudo mais um elemento intrnse-co experincia que acabou por
toldar a prpria noo de moralidade dos sujeitos experimentais.
Essa dinmica indica a apropriao de valores no processo
reflexivo, porquanto, de acordo com Giddens (1991: 50), [...] as
mudanas na perspectiva derivadas de inputs de conhecimento tm uma
relao mvel com as mudanas nas orientaes de valores. Em um contexto
complexo, em que muitos outros fatores influenciam, a reflexividade
sobre a prtica cientfica com suas implicaes ticas altera a pr-pria
prtica cientfica e sua percepo social, uma vez que a compreenso do
obje-to sobre o qual a reflexo se volta reestruturada. Isso
significa que tal reflexivida-de acaba por afetar noes sobre o
certo e o errado nesse mbito, considerando que o conhecimento
tcnico passa a ser percebido como autojustificado, o que leva a
minimizao da importncia tica de determinados procedimentos
prelimi-nares para a construo do conhecimento. Uma nova relao entre
tica e cincia autorizada a partir do prprio exerccio cientfico,
cristalizando uma orientao axiolgica sobre a prtica cientfica como
a nica capaz de efetuar uma dissociao entre meios e fins na conduta
humana e reduzindo todo o processo a uma dimen-so apenas cognitiva.
Nesse sentido, a reflexo sobre a tica do exerccio cientfico altera
a compreenso sobre os valores que orientam esta prpria prtica para
o cientista e para o leigo.
Sob o ponto de vista de um padro de estilo de vida coletivo, a
reao da maioria dos sujeitos experimentais que foram a termo no
experimento pode ser enquadra-da entre as possveis respostas
previstas por Giddens (1991: 136-137) como rea-es adaptativas, para
enfrentar os riscos da Modernidade. Trata-se do otimismo
sustentado, uma posio comprometida com a defesa do projeto
iluminista, o qual confere razo a possibilidade de resposta futura
para todos os males. Neste tipo de postura, o sujeito no s
individualmente separado do controle do complexo universo do
conhecimento especializado, mas tambm liberado do compromisso
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com suas imprevisveis e perturbadoras consequncias. A confiana ,
assim, ofe-recida como moeda de troca para a responsabilidade
pessoal. Mas, consentir no o mesmo que obedecer. Mesmo que se tente
deslocar mais uma vez a moralidade para razes abstratas ou dilu-la
numa ordem coletiva, a ideia de passividade que uma posio fechada
dessas perspectivas poderia pressupor no pode ser susten-tada. Isso
implicaria a supresso da capacidade de reflexo e julgamento humano,
a qual, em outros termos, Arendt assinala como a capacidade de
[...] estar envolvida naquele dilogo silencioso entre mim e mim
mesma que, desde Scrates e Plato, chamamos de pensar (Arendt: 2004:
107).
O critrio diferenciador entre os que pensam e os que no pensam
no prerroga-tiva de nenhum grupo social, cultural ou educacional
particular, ou ainda, de uma inteligncia especialmente
desenvolvida, mas a certeza de se estar condenado a viver consigo
mesmo, independentemente do que ocorra (Arendt, 2004: 108). No h,
enfim, um padro ou uma regra geral que direcione os nossos
julgamentos de modo infalvel. Esta parece ser a grande concluso da
autora em torno da problem-tica do pensamento com a ao, pois a
histria tem mostrado que aqueles que, em certos momentos, se
recusaram a assumir e avaliar criticamente suas aes foram incapazes
de compreender as possibilidades nefastas de suas consequncias.
Concluso
O nosso percurso consistiu em assumir as peculiaridades da
sociedade moderna e suas instituies como elementos imprescindveis
para analisarmos, mais minucio-samente, os controversos e
surpreendentes achados experimentais de Milgram. De fato, a
modalidade de confiana em sistemas peritos que a Modernidade
inaugura revela uma clara subjugao do homem comum e leigo, ante o
saber progressiva-mente especializado em todas as reas de sua vida
cotidiana. Esta posio requer, no entanto, consentimento, pois
integra uma escolha de um estilo de vida a priori talvez resultante
de falta de alternativas mais atraentes , que coloca em evidn-cia o
saber perito como a nica possibilidade legtima de lidar com as
inseguranas da existncia. A nova ordem instaura tambm um tipo de
racionalidade que no mais se funda em certezas, mas na
autoconfrontao constante do conhecimento. Mesmo assim, no h
garantias em fornecer ao mundo o controle racional de suas prprias
questes porque essa via acaba por gerar, ela mesma, novas
incertezas e inseguranas. Apesar disso, ainda aquela selecionada
como capaz de oferecer as informaes mais confiveis sobre o
mundo.
Trata-se de um paradoxo produzido pela Modernidade: um alto grau
de confiana no conhecimento aliado a uma conscincia extrema sobre
seus riscos e suas in-
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certezas. Assumir essa posio pode significar um alto custo para
a humanidade. As consequncias valorativas disso ainda no podem ser
avaliadas. No sabemos aonde isso vai nos levar, no entanto, certo
que vai nos levar a algum lugar. O expe-rimento de Milgram, na sua
limitada expresso, pode, infelizmente, ter vaticinado um deles.
Abstract: The aim of this essay is to provide a reading on the
results of the classic experiment of Stanley Milgrams obedience to
authority starting from categories extracted from theoretical
stud-ies of sociologist Anthony Giddens and philosopher Hannah
Arendt. The text is structured around two central aspects. The
first aspect focuses on reaffirming the context of cultural trends
and char-acteristics of modern institutions as deciding factors for
the understanding of experimental results. Therefore, it emphasizes
the trust model that social systems, such as the expert system,
establish in life today, which are capable of producing a peculiar
subordination to scientific and technical knowledge, while
simultaneously providing no information about their operating
principles. The second aspect of the article aims to highlight the
importance of the moral responsibility of the experimental
subjects, proposing, on the basis of Hanna Arendts reflections, a
shift of the central axis of the experimental analysis from the
obedience category to the consent category.
Keywords: expert system, trust, obedience, moral responsibility,
consent.
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