Dados - As Origens da Reforma Sanitria e da Modernizao
Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
DadosPrint ISSN 0011-5258
Dados vol. 41 n. 3 Rio de Janeiro 1998
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As Origens da Reforma Sanitria e da Modernizao Conservadora na
Bahia
durante a Primeira Repblica*
Luiz A. de Castro Santos
Na virada do sculo XX, o movimento de sade pblica revelava um
mpeto considervel em certas regies do Estado de So Paulo e na
capital federal, mas pouco avanara alm do eixo Rio-So Paulo. Se
tomarmos como referncia o caso bem-sucedido de So Paulo, examinado
em ampla produo acadmica (Blount, 1971; Mehry, 1985; Ribeiro, 1993;
Castro Santos, 1993; Telarolli Junior, 1996)1, pe-se logo uma
questo comparativa: por que a maioria dos estados da Federao no
desenvolveu um vigoroso movimento de sade pblica durante a Primeira
Repblica? Mesmo aqueles que haviam desfrutado posio poltica de
destaque, como a Bahia que, ademais, se sobressaiu na prpria
histria da medicina , ficaram em ntida desvantagem em relao aos
progressos de So Paulo. Para simplificar, se me for permitido
apontar um "caso negativo" da reforma da sade pblica, o exemplo da
Bahia parece-me dos mais ricos para a anlise
histrico-sociolgica.
O fracasso da Bahia em partir rapidamente para a reforma coloca
um desafio para os estudiosos de sade pblica. Alm de sua tradio
centenria em educao mdica uma tradio que motivou incontveis estudos
de historiadores brasileiros de medicina , outros fatores pareciam
favorecer a reforma da sade. Sob o ngulo da economia, ao longo do
sculo XIX, a Bahia manteve uma produo diversificada de acar, cacau,
fumo e algodo. As atividades de minerao comearam desde 1840 na poro
centro-oeste do estado, e a criao de gado formou a base da economia
no serto, ao longo do vale do rio So Francisco (Pang, 1979:47-55).
Em segundo lugar, o estado foi o centro da administrao por mais de
dois sculos. (A cidade de Salvador foi a capital do Brasil de 1549
at 1763, quando o marqus de
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Pombal mudou a sede do governo para o Rio de Janeiro.) As elites
baianas ainda tiveram influncia sobre o curso dos eventos nacionais
ao longo do sculo XIX, aps a Independncia. A Bahia ocupava o
segundo lugar entre as provncias, em nmero de membros nomeados para
o Conselho de Estado da Monarquia2. Finalmente, a grande populao da
Bahia era instrumental no jogo poltico3. O tamanho da populao era
freqentemente usado pelos estados mais populosos para exigir um
nmero maior de cadeiras no Congresso Nacional (Love, 1980:138).
Entretanto, apesar da importncia poltica, econmica e cultural da
Bahia durante a Primeira Repblica, o estado no conseguiu realizar
uma reforma sanitria nos moldes da experincia bem-sucedida de So
Paulo. Longe disso. As taxas de mortalidade para a capital, bem
como levantamentos e relatrios mdicos sobre o interior, revelavam
as precrias condies da sade de todo o estado. Higienistas baianos
lutaram para disseminar a idia da reforma, mas encontraram uma
vigorosa resistncia da parte de um establishment mdico conservador
e de um ambiente poltico e intelectual hostil (ou indiferente) s
aes no campo da sade pblica. S na dcada de 20 houve progresso do
movimento reformista na Bahia, mas a, graas interveno do governo
federal e, em segundo plano, ao sanitria da Fundao Rockefeller.
Que condies impediram o governo estadual de promover a reforma
sanitria? Por que a administrao estadual foi incapaz de agir
decisivamente sem o concurso do governo federal?
Estas questes relacionadas com aquela mais ampla da
inexpressividade do movimento sanitarista na Bahia antes de 1920
sero enfrentadas nas duas sees seguintes. Dois pontos bsicos devem
ser antecipados nesse sentido: em primeiro lugar, o alcance
limitado das polticas do governo baiano, que raramente chegavam alm
da rea da capital e seus arredores; em segundo lugar, o papel
decisivo do governo federal na promoo da incipiente reforma
sanitria rural durante os anos 20.
O MOVIMENTO SANITARISTA ANTES DE 1920: UM FALSO COMEO
1. Uma Tradio Mdica Conservadora
Praticamente nenhum trabalho sobre a histria da medicina no
Brasil deixa de louvar a tradio de ensino mdico da Bahia, datando
do incio do perodo monarquista. So tambm freqentes as referncias
Escola Tropicalista da Bahia como embrio, no sculo XIX, da pesquisa
mdica no Brasil (Santos Filho, 1947:245-270, 364; Stepan,
1976:53-54, 112-115, 141-142; Schwartzman et alii, 1979:66-70,
333-446; Peard, 1996).
Que razes se encontram, ento, por trs do fracasso da Bahia em
cumprir sua "vocao" mdica ao longo do perodo republicano? parte os
obstculos polticos e econmicos (que sero examinados a seu tempo), o
conservadorismo de sua tradio mdica representou, como procurarei
explicitar, um grande empecilho ao progresso cientfico. A Escola
Tropicalista
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Baiana constituiu um embrio de pesquisa parasitria no Brasil,
mas este foco inovador se extinguiu gradualmente sob as presses de
uma categoria mdica predominantemente conservadora.
Em primeiro lugar, do ponto de vista da sociologia da cincia,
difcil classificar o movimento tropicalista como uma "escola". Se
este movimento chegou a ser assim considerado, foi devido ao carter
pioneiro de sua contribuio medicina brasileira. A "escola" foi o
primeiro grupo mdico formado no Brasil (por volta de 1850) para
estudar doenas tropicais. Os mdicos baianos alcanaram maior
reconhecimento por volta de 1866-1872, com a publicao peridica de a
Gazeta Mdica da Bahia. Os trs membros mais importantes do grupo
eram Otto Wucherer (1820-1873), John Patterson (1829-1882) e J. F.
da Silva Lima (1826-1910). Wucherer e Silva Lima nasceram em
Portugal, Patterson na Esccia. Silva Lima estudou o beribri, cuja
sintomatologia descreveu cuidadosa e precisamente (embora falhasse
na compreenso da causa da doena). Foi tambm um dos primeiros a
estudar o ainhum, uma infeco que afetava os dedos dos ps e tinha
uma alta incidncia nos escravos. Wucherer foi responsvel pela
identificao de um tipo de filariose que se tornou conhecida como
Filaria wuchereri, e por argumentar, contra a opinio consagrada de
professores das Escolas de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro,
que era um parasita chamado Ancystoloma duodenale o causador da
doena do amarelo. (A tradio mdica sustentava que a doena era uma
conseqncia do clima tropical.) Patterson diagnosticou o primeiro
ataque grave de febre amarela em Salvador, em 1849. Neste episdio,
os tropicalistas tiveram de lutar contra o ceticismo do corpo
docente da Faculdade de Medicina da Bahia, bem como dos funcionrios
da sade e dos lderes polticos, que insistiam que a doena invasora
era a malria, e no a febre amarela (Cooper, 1975:676)4. Algum tempo
depois Patterson diagnosticou corretamente uma epidemia de clera na
cidade.
O ceticismo do corpo docente da Faculdade de Medicina em relao
aos diagnsticos feitos pela Escola Tropicalista sugere o quanto as
vises do establishment mdico e da Escola eram divergentes. Nem
Silva Lima que se formara na Faculdade de Medicina da Bahia nem
Wucherer nem Patterson ocuparam cargo de docncia na Faculdade de
Medicina. Eram freqentemente criticados como sendo "estrangeiros
intrometidos" (idem:676). Alm disso, o pequeno grupo de
pesquisadores no dispunha de facilidades laboratoriais para a
pesquisa, condio necessria, como lembra Ben-David (1960), para a
produo de "carreiras regulares em cincia". verdade que trabalharam
no Hospital da Santa Casa de Misericrdia, em Salvador, mas isto no
foi suficiente para que atrassem um grande nmero de seguidores5.
Eles louvavam a medicina experimental em uma poca em que o ensino
da Bahia enfatizava a medicina clnica e o ensino retrico. Na dcada
de 1900 j estava claro que as vises tradicionais da Faculdade de
Medicina tinham prevalecido sobre a proposta Tropicalista (ver a
discusso da poltica cientfica adiante neste captulo). As novas
idias mdicas sobre bacteriologia e imunologia no encontraram na
Bahia diferentemente de So Paulo e Rio de Janeiro um clima
intelectual favorvel sua aceitao6. Salvador permaneceu, durante os
primeiros anos da Repblica, uma fortaleza do conservadorismo
mdico.
Os obstculos colocados pela profisso mdica consagrada da Bahia
tiveram um efeito perturbador sobre o progresso do sanitarismo e da
pesquisa em sade pblica. Dois exemplos
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podem ser antecipados a esse respeito: em primeiro lugar, a
recusa da Assemblia Legislativa a apontar um bacteriologista
estrangeiro para chefiar um centro de pesquisa mdica em Salvador,
baseada no argumento de que a Faculdade de Medicina seria
"desacreditada" pela iniciativa; em segundo lugar, a indicao de
diretores de sade pblica sem formao acadmica ou experincia
profissional na rea7.
2. Fragmentao Oligrquica
J assinalei que a Escola Tropicalista Baiana no deixou muitos
seguidores, mas alguns deles, como Antnio Pacfico Pereira
(1846-1922), fizeram parte de um pequeno grupo de mdicos baianos,
profissionais de sade pblica e polticos que lutavam por reformas.
Esses reformadores tinham de enfrentar um obstculo ainda mais
difcil do que as vises tradicionais dos mdicos de Salvador: a
fragmentao oligrquica da Bahia. As oligarquias baianas no tinham
coeso poltica e no conseguiram desenvolver uma slida organizao
partidria. Como resultado, os governos da Bahia, mesmo os que
propunham novas polticas de sade, no tiveram o apoio necessrio dos
legisladores para assegurar a aprovao de leis. Quando a Assemblia
Estadual aprovava um projeto de sade pblica, sempre ocorriam
problemas de execuo ou de consolidao dos programas e servios.
Para que se avaliem as dimenses bsicas da estrutura oligrquica e
algumas evidncias de suas implicaes para a reforma da sade na
Bahia, note-se, desde logo, que a economia regional era fortemente
fragmentada. Ao contrrio da agricultura paulista, centrada no caf,
a estrutura econmica baiana apoiava-se em vrios produtos de
exportao, como o caf, o tabaco, o cacau, o acar e o algodo, bem
como sobre atividades de minerao, igualmente segmentadas e
isoladas. No dizer de uma estudiosa dos primeiros tempos da
Repblica na Bahia, o cenrio produtivo era "diversificado, mas sem
dinamismo" (Sampaio, 1979:6-7). As colheitas de exportao e a
minerao no foram capazes de gerar um supervit considervel. A
despeito de perodos ocasionais de alta demanda por produtos
baianos, com efeitos positivos sobre a economia, essas conseqncias
no foram duradouras (Souza e Faria, 1980:32). A agroindstria do
fumo fornece um exemplo eloqente: qualquer que fosse o supervit
gerado pelo produto, era canalizado para mercados externos.
Conseqentemente, tinha apenas um efeito reduzido sobre o progresso
do estado. Outro exemplo importante foi o do cacau, que em 1908 j
se tornara a mais importante fonte de receitas. Contudo, como no
caso do tabaco, as casas de importao e exportao estrangeiras se
apropriavam da parte do leo dos ganhos totais de exportao, de tal
modo que o cacau tambm no impunha um efeito dinmico economia
regional (Sampaio, 1979:7, 12, 26).
Uma palavra de explicao sobre a imigrao, cujo papel na promoo da
reforma sanitria em So Paulo foi indiscutvel. Hipoteticamente, o
progresso da agricultura do cacau poderia ter gerado uma grande
demanda pelo trabalho imigrante, de modo parecido com o que o caf
havia feito em So Paulo. Entretanto, na Bahia deu-se um resultado
diferente. Grandes levas de trabalhadores nordestinos afluram para
a regio do cacau entre 1890 e 1920, vindos de reas to diversas como
as lavouras de cana-de-acar no Recncavo, os distritos mineiros das
Lavras Diamantinas e os estados vizinhos (idem:25). A mo-de-obra
barata fornecida pelos nordestinos era suficiente para atender s
necessidades do cultivo do cacau e, nesse
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sentido, diferentemente do caso paulista, preveniu a formao da
"idia de imigrao" entre as elites baianas. O acar foi possivelmente
a nica outra demanda por trabalho importado. Entretanto, a adoo de
tecnologia poupadora de mo-de-obra pelos fazendeiros de acar chegou
mesmo a transferir trabalhadores rurais da rea densamente povoada
do Recncavo (Singer, 1968:309-319).
Cada uma das reas agrcolas e de minerao do estado desenvolveu
caractersticas semi-autrquicas. A falta de uma rede ferroviria
estadual reforou o isolamento econmico e espacial dos vrios centros
de produo. Essas zonas geoeconmicas eram, por sua vez, muito pouco
integradas capital. Por exemplo, at 1925 a regio das Lavras
Diamantinas ligava-se precariamente, por trilhas, ferrovia distante
cerca de 100 quilmetros8. O rio So Francisco era a mais importante
via de penetrao regional. Entretanto, o rio criou ligaes comerciais
entre o interior baiano e os estados limtrofes, aumentando
conseqentemente o isolamento do interior vis--vis as zonas
costeiras e Salvador.
As reas geoeconmicas eram dominadas por poderosas oligarquias,
que controlavam uma atividade econmica bsica (ou, em alguns casos,
uma combinao de duas). Cada centro econmico era um ncleo do poder
oligrquico. Historicamente, a primeira rea em importncia econmica
era o Recncavo, onde a cana-de-acar e o tabaco eram cultivados
(Lugar, 1977; Pang, 1979:47-55); o Recncavo era o locus da velha
"aristocracia do acar". Seus cls tradicionais forneceram a maior
parte dos polticos e governadores da Bahia durante a Primeira
Repblica9. O Vale do So Francisco era outra regio importante,
controlada por alguns dos mais poderosos coronis e oligarcas
baianos10. Uma terceira rea centrava-se nos municpios produtores de
cacau de Ilhus e Itabuna. Desde a dcada de 1900, essa rea constitua
a mais importante fonte de receitas estadual. Entretanto, a regio
cacaueira do sul nunca teve influncia destacada sobre a poltica
baiana (Sampaio, 1979:24-26)11. A quarta zona geopoltica mais
relevante era Lavras Diamantinas. Era uma destacada rea de minerao
desde meados do sculo XIX, mas, por causa do seu isolamento
geogrfico de Salvador, desenvolveu ligaes mais estreitas com os
estados vizinhos de Minas Gerais, Gois e Piau (idem:18). A Chapada
Diamantina era a fortaleza de poderosos proprietrios de terras e de
comerciantes, que organizavam seus prprios exrcitos privados e s
vezes guerreavam contra tropas estaduais12.
A excessiva regionalizao das elites agrrias criava dificuldades
para o efetivo controle poltico-partidrio. Muitos partidos polticos
foram fundados na Bahia durante a Primeira Repblica, mas a maioria
deles teve pouca durao em razo da falta de coeso poltica das
oligarquias. A inexistncia de tradio republicana no ocaso do Imprio
contribuiu tambm para a fragmentao poltica. Ao contrrio de So
Paulo, a Bahia nunca desenvolveu um movimento republicano
expressivo nem mesmo um Partido Republicano durante o ltimo quartel
do sculo XIX13. Em conseqncia desse tipo de vcuo poltico, o governo
federal indicou nada menos que sete governadores baianos entre 1889
e 1892, at que J. Rodrigues Lima, formado pela Faculdade de
Medicina da Bahia, foi eleito para o perodo 1892-1896. Entre 1889 e
1892, a Bahia teve nove partidos polticos e clubes republicanos,
todos de vida curta (Sampaio, 1979:51; Tavares, 1963:145-146; Pang,
1979:46).
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S em 1920 os baianos organizaram uma frente poltica com idias
reformistas. O Partido Republicano da Bahia PRB, fundado em 1901,
foi a primeira tentativa sria das elites de chegar a uma coeso
poltica. O partido esteve em atividade at 1911, mas, ao contrrio do
Partido Republicano de So Paulo, nunca se tornou uma organizao
poltica de atuao eficaz em todo o estado. O Partido Republicano
Democrata PRD, fundado em 1910, teve um papel de liderana na
poltica da Bahia de 1912 at 1924. Contudo, assim como o PRB,
fracassou em exercer uma autoridade poltica efetiva sobre os
coronis do interior. S depois do nascimento da Confederao
Republicana da Bahia CRB, uma "confederao" de faces polticas criada
em 1923, tornou-se possvel algum domnio partidrio em mbito estadual
(Sampaio, 1979:139-152).
Em suma, a poltica de faces bloqueou o caminho para a efetiva
consolidao de um "governo de partido nico" na Bahia e tornou
extremamente difcil a execuo de leis e polticas pblicas. Na ausncia
de um slido partido governista, o aparelho de Estado tinha pouco a
fazer para assegurar que as leis fossem observadas e postas em
prtica. A Assemblia Legislativa era sempre capaz de agir
independentemente das diretivas do Poder Executivo (como, por
exemplo, em relao s propostas contidas nas mensagens dos
governadores ao Congresso Estadual), mas freqentemente os
congressistas exerciam suas prerrogativas simplesmente bloqueando
os esforos do governo. Assim, o fracasso das elites baianas em
consolidar um governo de "partido nico" (pelo menos at o final dos
anos 20) e a funo legislativa eminentemente negativa desempenhada
pelas faces partidrias, criaram srios obstculos ao progresso do
estado.
Nesse perodo da histria republicana nacional, em que as polticas
de modernizao social e econmica eram tipicamente derivadas de
presses "pelo alto" (na falta de organizaes polticas de carter
popular), a incapacidade de coeso partidria das elites baianas
deixou marcas profundas na evoluo da sade pblica estadual14. Ainda
no incio do sculo, a fraca liderana exercida pelo PRB foi
responsvel, em grande medida, pelo fracasso da Diretoria de Sade
Pblica em manter as autoridades municipais de Salvador em sintonia
com as normas de sade ditadas pelo governo do estado. No restante
do territrio, a fragilidade da liderana partidria impediu as
autoridades estaduais de executarem campanhas sanitrias nos centros
urbanos do interior, mas o quadro era mais crtico nas reas rurais.
Nestas reas, a interveno das autoridades em territrio oligrquico
era impensvel at bem avanada a dcada de 20 e depois disso, s se
tornou possvel uma limitada interferncia federal.
Parecia que o frgil equilbrio de poder entre o interior e a
capital condizia com o descaso dos polticos de Salvador em relao s
condies de sade das populaes rurais. Por exemplo, o legislativo
baiano jamais criou um grupo de trabalho encarregado da preveno do
tracoma nas reas rurais, como o governo de So Paulo foi capaz de
criar em 1906. Alm do mais, as profundas clivagens no interior da
elite baiana tambm explicam o hiato de oito anos entre a aprovao do
cdigo sanitrio em So Paulo, em 1917, e a legislao similar na
Bahia15.
A despeito do crescimento das intervenes estadual e federal na
sade pblica durante os anos 20, a reforma sanitria na Bahia
permaneceu limitada diante da existncia do que Eul-Soo Pang (1979)
chamou, com propriedade, de "coronelismo no institucionalizado":
os
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potentados rurais comandavam territrios semi-autrquicos, e
permaneciam a salvo da cooptao pela autoridade pblica.
OS VENTOS DA MUDANA NA DCADA DE 20
1. Uma Ideologia de Construo Nacional
O final da dcada de 10 testemunhou novas tendncias nacionais que
afetaram a evoluo da sade pblica na Bahia. A idia da reforma
sanitria no interior brasileiro e o processo de construo nacional
tornaram-se estreitamente relacionados. Polticos do Congresso
Nacional e sanitaristas do sul do pas dedicaram especial ateno ao
Estado da Bahia. Por um lado, as condies de sade das populaes
rurais, particularmente nas reas do serto e do rio So Francisco,
eram crticas; por outro, o esforo de modernizao na Bahia
limitara-se s reas litorneas, ampliando conseqentemente o hiato
entre o interior e Salvador, que a tragdia de Canudos, ainda no
raiar da Repblica, apenas anunciara. A obra de Euclides da Cunha
dera o primeiro sinal. Em 1916, a publicao do Relatrio de Viagem
dos mdicos Arthur Neiva (este, baiano e pesquisador de Manguinhos)
e Belisrio Pena lanou novas denncias sobre as condies de isolamento
e pobreza das regies sertanejas da Bahia (Neiva e Pena, 1916).
Assim, as campanhas de sade pblica na Bahia inseriam-se em um
"projeto civilizatrio" mais amplo16. Durante toda a dcada de 20, o
movimento de sade pblica da Bahia associou-se fortemente s
ideologias de construo do Estado-nao brasileiro17. A incorporao dos
territrios e populaes do interior aos centros polticos do pas dava
o compasso para novas ideologias e prticas institucionais. As
campanhas sanitrias do governo federal na Bahia refletiam, dessa
forma, uma preocupao nacional com os viventes do serto e, de modo
geral, com toda a gente do interior. Contra a danao de suas vidas
secas, o governo da Repblica recomendava grandes campanhas de
erradicao de doenas, como se aos servios de sade coubesse uma
espcie de exorcismo em massa das populaes carentes.
2. A Ao do Governo Central
Se as propostas de construo da nacionalidade deixaram marcas
profundas do ponto de vista ideolgico e simblico, aqui nos
interessa o fato de que essas propostas contriburam para a formulao
concreta de programas e servios de sade. No plano das polticas
pblicas, o movimento sanitrio na Bahia reforou a mquina do governo
estadual; por outro lado, contribuiu para o crescimento dos
aparelhos administrativos em mbito nacional. desta ltima questo que
tratarei agora. (O impacto estadual dos programas sanitrios ser
discutido mais adiante.)
Os poderes bastante ampliados do Estado nacional durante a dcada
de 20 decorreram de foras histricas j bem conhecidas: em primeiro
lugar, a chamada "poltica dos governadores" permitiu que o governo
federal tirasse vantagem das disputas de poder entre as oligarquias
estaduais; em segundo, o Estado brasileiro consolidou "poderes
tutelares" sobre as
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polticas fiscais em todos os estados (Reis, 1979).
Em 1919, a morte do presidente eleito o paulista Rodrigues Alves
ajudou a mudar o rumo da poltica federal em relao ao Nordeste.
Epitcio Pessoa foi o primeiro e nico nordestino a ocupar a
Presidncia durante a Primeira Repblica. Sua primeira mensagem ao
Congresso apregoava uma completa reorganizao do setor de sade
pblica, e acentuava que ali estavam em jogo "interesses nacionais".
Em 1920, a legislao federal realizou as mudanas institucionais que
o presidente solicitara. Um novo cdigo sanitrio proposto pelo
cientista e diretor nacional de Sade Pblica Carlos Chagas permitia
que o poder central interviesse nos servios estaduais de sade
pblica. O Nordeste tornou-se o principal alvo da ao federal e a
Bahia, em particular, foi bastante afetada pelas polticas nacionais
de sade18.
O Departamento Nacional de Sade Pblica iniciou uma campanha
contra a malria e a febre amarela na Bahia. Contra a ancilostomase
dedicou-se a chamada Comisso Rockefeller no Brasil, que atuou at
1921 em convnio com o governo do estado. Em abril de 1921, o
governo federal substituiu o Estado da Bahia no acordo bilateral,
que teria prosseguimento durante toda a Primeira Repblica. Em 1924,
o funcionrio federal que dirigia a Profilaxia Rural na Bahia foi
tambm nomeado diretor estadual da Sade Pblica. As aes sanitrias em
todo o estado, incluindo os servios municipais, passaram esfera de
influncia da autoridade federal. (Ainda que campanhas como a da
febre amarela fossem delegadas misso Rockefeller.)19 Novas e
duradouras investidas do governo federal no setor de sade pblica da
Bahia ocorreram depois de 1924.
Os programas de saneamento de responsabilidade federal, por um
lado, e as campanhas contra a ancilostomase e a febre amarela
patrocinadas pela Fundao Rockefeller, por outro, representaram os
principais eventos na sade pblica baiana durante a dcada de 20.
Tanto a criao de servios de sade como as campanhas realizadas no
interior da Bahia contriburam para a expanso da mquina
administrativa e dos servios pblicos e, de modo mais lento, para a
penetrao da autoridade pblica em territrio coronelista. Sob a
superviso do Departamento Nacional de Sade Pblica, os projetos
levados a cabo pelas equipes de sade pblica da Fundao Rockefeller
tambm exerciam, indiretamente, um papel considervel na expanso dos
servios pblicos e da presena governamental no interior. Tal papel
tornou-se possvel pela maneira como o trabalho da Rockefeller
estava organizado: a) os postos sanitrios eram geralmente ocupados
por brasileiros; b) com muita freqncia, os postos eram transferidos
a autoridades federais da Profilaxia Rural. Em resumo, os novos
servios e instituies criados na Bahia alteraram o padro, anterior a
1920, de no-interveno no interior do Estado. Note-se que isto no
significou, de modo algum, que os servios deixassem de se
concentrar na capital e arredores.
3. A Influncia Crescente do Governo Estadual
A dcada de 20 particularmente sua segunda metade testemunhou uma
crescente participao do governo baiano no campo da sade. A despeito
do limitado alcance dos servios no interior, o governo estadual
adotou importantes medidas contra doenas
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endmicas e epidmicas na capital, organizou um bem integrado
Servio Sanitrio e decretou o primeiro Cdigo Sanitrio da Bahia.
Que condies tornaram possvel o papel mais ativo desempenhado
pelo governo estadual? As condies financeiras da Bahia no fornecem
uma resposta satisfatria. De fato, as finanas estaduais no passaram
por nenhuma melhora significativa em relao aos anos pr-1920
(Sampaio, 1979:126-128, 263). Se no a economia, a poltica do perodo
fornece uma resposta questo aludida acima. As elites baianas foram
capazes de conformar uma frente poltica que de algum modo
restringiu a atuao das faces. medida que as oligarquias estaduais
chegaram a um acordo sobre a utilizao dos escassos recursos
pblicos, as polticas de sade tornaram-se menos sujeitas s disputas
de faces no Congresso Estadual. Durante a segunda metade da dcada
de 20 algo semelhante a um sistema poltico de "partido nico"
tornou-se possvel na Bahia (Pang, 1979:163). O segundo PRB, fundado
pelo governador Gis Calmon, foi capaz de estender a autoridade
pblica at importantes reas do interior: "A autonomia dos chefes
locais havia sido limitada pela primeira vez [...] pela estreita
dependncia dos comits municipais em relao ao rgo central do partido
na capital" (Sampaio, 1979:162, traduo do autor). Durante o perodo
calmonista (1924-1930), os governadores tiveram seguidores fiis
entre a aristocracia "ilustrada" e europeizada do Recncavo. J os
Mangabeira que rivalizavam com os Calmon em poder poltico
destacaram-se na poltica baiana com o apoio da classe mdia de
Salvador e Ilhus, sendo esta ligada exportao de cacau (Pang,
1979:150-152).
A preeminncia dos Calmon e dos Mangabeira na poltica baiana
criou condies favorveis disseminao das idias reformistas. Sob o
controle desses cls, partidos como a Concentrao Republicana da
Bahia CRB, e mais tarde o PRB, executaram as polticas de modernizao
conservadora no estado. A onda reformista alcanou vrias reas, alm
da sade pblica e do saneamento. A reforma do sistema educacional, a
construo de estradas e o progresso agrcola foram outras prioridades
estabelecidas durante o final da dcada de 20 (Sampaio, 1979:163,
271).
Entretanto, mesmo o final da dcada no esteve inteiramente livre
da poltica de faces. Rivalidades entre os cls eram muito freqentes
na capital. No interior, em duas ocasies a autoridade pblica foi
seriamente desafiada pelos coronis. Em 1925, irrompeu nas reas de
minerao uma violenta batalha de trs meses, a chamada Batalha de
Lenis, entre o exrcito privado de um coronel e tropas estaduais, em
razo de uma disputa sobre a distribuio de empregos pblicos. Em
1928, uma disputa eleitoral na cidade de Carinhanha evoluiu para
uma guerra prolongada entre o governo e os potentados rurais do
mdio Vale do So Francisco (idem:144; Pang, 1979:157, 169-171). O
movimento de tropas e os choques armados a que se somaram os
embates da Coluna Prestes com os destacamentos governistas
impediram a operao dos servios e campanhas sanitrias ao longo do
territrio baiano, ao mesmo tempo que surtos epidmicos exigiam a
presena das autoridades de sade pblica nas reas afetadas.
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PROBLEMAS E CONQUISTAS DO MOVIMENTO SANITARISTA
1. A Modernizao Institucional
As questes de sade pblica faziam parte do debate poltico baiano
desde o incio do perodo republicano20, no obstante a ausncia de
progresso significativo das aes de governo propostas no interior
daquele debate. As questes relativas criao das instituies e servios
de sade pblica, interveno federal em assuntos estaduais,
centralizao ou descentralizao administrativa, todas intimamente
relacionadas, atraam o interesse das elites polticas. A profisso
mdica, internamente dividida, forneceu no s os maiores defensores
como tambm os mais fortes opositores da reforma da sade pblica da
Bahia. Os mdicos, deve-se sublinhar, ocupavam um alto status na
sociedade urbana da Bahia, e uma grande parte dos intelectuais e
polticos de projeo era formada na prestigiosa Faculdade de
Medicina.
Como professor de medicina legal na Faculdade de Medicina e
editor-chefe da Gazeta Mdica da Bahia entre 1890-1893, o maranhense
Nina Rodrigues, intelectual de expresso nacional, tornou-se um
importante porta-voz de crculos de sade pblica baianos, escrevendo
e debatendo exaustivamente sobre a necessidade de centralizao
administrativa nessa rea. Na verdade, Nina Rodrigues inicialmente
defendia uma "centralizao parcial", que preferia centralizao
"asfixiante" do governo federal. Mas se deu conta do duplo risco de
sua escolha comedida: em primeiro lugar, a autonomia concedida aos
estados mesmo em escala reduzida poderia resultar em um hiato mais
amplo entre estados ricos como So Paulo, com uma slida capacidade
fiscal derivada dos impostos de exportao, e unidades mais pobres
como a Bahia, com receitas estaduais reduzidas. Em segundo lugar, a
"municipalizao" dos servios poderia expor qualquer tentativa de
saneamento ao boicote das oligarquias locais, no momento em que se
sentissem invadidas ou ameaadas em seus domnios por idias
cientficas "exticas" (Gazeta Mdica da Bahia, fev. de 1890:341-342;
set. de 1891:97-108).
Por essas razes, Nina Rodrigues passou a denunciar a autonomia
municipal e a estadual. Afirmava que, com a autonomia municipal, o
poder dos coronis, assim como a falta de recursos financeiros e de
pessoal qualificado, impediriam a execuo de cdigos e posturas
sanitrios. Com relao aos servios estaduais, ponderava que se haviam
tornado uma mera fonte de apadrinhamento para os polticos baianos.
As agncias sanitrias eram apenas restos das organizaes ineficientes
criadas durante a Monarquia. Descrevia o sistema da sade pblica
existente como "catico": a Bahia tinha uma Inspetoria Federal
encarregada da inspeo porturia, duas agncias do governo estadual (a
Junta de Higiene e a Junta Vacnica) operando como corpos totalmente
independentes, e um sistema municipal de sade pblica na capital,
ainda em forma embrionria. Essas unidades administrativas estavam
em disputa permanente sobre princpios, prticas e jurisdio
territorial. Nina Rodrigues deplorava a "absurda" separao dos
servios sanitrios em Salvador entre um sistema "martimo" e um
"terrestre" (o primeiro, federal, e o segundo, estadual).
Responsabilizou o vacilante governador Leal Ferreira (1891-1892)
por sua impotncia em face dos problemas de sade pblica,
particularmente diante da ameaa de febre amarela em Salvador. A
reforma do
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sistema, argumentava Nina Rodrigues, deveria centrar-se em duas
questes bsicas: em primeiro lugar, o governador deveria criar um
Conselho de Higiene para assisti-lo na elaborao de polticas; em
segundo, o estado deveria indicar um diretor sanitrio para
coordenar, sob sua autoridade, todos os corpos e servios
administrativos (Gazeta Mdica da Bahia, jan. de 1892:289-295; fev.
de 1892:348, 354; mar. de 1892:423-425).
As idias de Nina Rodrigues sobre sade pblica representavam os
esforos reformistas de um pequeno grupo de mdicos baianos. Cientes
da relevncia das questes institucionais e organizacionais para o
futuro da sade pblica na Bahia, julgavam que o estado deveria
primeiro iniciar a construo de seu prprio sistema de instituies e
servios, a fim de que campanhas de saneamento pudessem ser
realizadas com sucesso. Ao contrrio de So Paulo que nos ltimos anos
da Monarquia j havia avanado alguns passos em matria de saneamento
e higiene a Bahia tinha de comear do incio.
Um primeiro esforo legislativo aconteceu durante a administrao
do governador J. M. Rodrigues Lima, formado pela Faculdade de
Medicina da Bahia. Um projeto regulando o sistema de sade pblica na
Bahia foi submetido ao Legislativo, tornou-se lei e foi sancionado
pelo governador em 1892. Os defensores da sade elogiaram a criao de
um Conselho Superior de Higiene Pblica da Bahia pela nova legislao.
O Conselho inclua alguns dos melhores nomes do corpo mdico baiano:
J. F. da Silva Lima, o renomado precursor da medicina experimental
(Wucherer e Patterson, seus colegas pesquisadores, tinham morrido
em Salvador muitos anos antes), Antnio Pacfico Pereira e Nina
Rodrigues, entre outros. Pacfico Pereira, como Nina, era editor da
Gazeta Mdica e um prolfico escritor sobre sade pblica e saneamento.
Para diminuir o hiato ainda existente entre a administrao estadual
e os servios federais no porto de Salvador, o inspetor federal de
sade tornou-se um membro permanente do Conselho de Sade Pblica.
Os editoriais da Gazeta Mdica no pouparam crticas s novas
regulamentaes, particularmente por terem concedido excessiva
flexibilidade ao poder municipal (Gazeta Mdica da Bahia, out. de
1892:144-146). A legislao procurava revitalizar uma instituio
semi-adormecida o Instituto de Vacinao , conferindo a ela as vitais
funes de desenvolver estudos epidemiolgicos, preparar vacinas e ser
responsvel pela vacinao ou revacinao. Em um artigo na Gazeta, Nina
Rodrigues afirmava que era intil dar ao Instituto tarefas que este
no seria capaz de cumprir, porque era mal-equipado e tinha pessoal
insuficiente. Alm do mais, insistia que a Bahia no tinha um
bacteriologista competente e com boa formao para assumir a chefia
da instituio (Gazeta Mdica da Bahia, maio de 1892:499-503; jul. de
1892:1-3; ago. de 1892:49-55; set. de 1892:95-103).
Nina Rodrigues solicitou ao governador que indicasse um
profissional experiente para dirigir todo o sistema de higiene
preventiva. O sistema, sustentava ele, no deveria permanecer
descentralizado sob mltiplas autoridades, o que acabaria por
impedi-lo de enfrentar os surtos epidmicos (Gazeta Mdica da Bahia,
abr. de 1895:361-363). Nina sugeria um sistema semelhante ao
adotado em So Paulo: desde 1893 Adolfo Lutz havia sido o diretor do
Instituto Bacteriolgico de So Paulo, e em 1898 Emlio Ribas
tornou-se o chefe do sistema sanitrio. Um laboratrio bacteriolgico
na Bahia, ou um Instituto de Vacinao com funes
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de certa forma expandidas, seria capaz de repetir o papel
crucial desempenhado pela instituio de Lutz nas campanhas sanitrias
de So Paulo. Silva Lima, para citar apenas um, lutou para promover
a capacitao da Bahia em pesquisa bacteriolgica. Mas a oposio ao
pequeno grupo do decano Silva Lima era muito ampla. O exemplo dado
abaixo ilustra a reao do establishment mdico ao progresso da
poltica cientfica na Bahia.
Em 1894, Silva Lima, presidente do Conselho de Higiene Pblica,
manteve acalorado debate com membros do Comit de Sade do Congresso
Estadual. O Conselho havia sugerido ao governador que criasse um
instituto bacteriolgico em Salvador, mas o Comit rejeitou a
proposta, em uma sucesso de eventos que acabou por prejudicar o
sistema de higiene baiano por quase trs dcadas.
Vejamos os episdios com algum detalhe. O Conselho props a criao
de uma instituio de pesquisa bacteriolgica governamental. O Comit
da Cmara dos Deputados optou, em vez disso, por uma organizao mdica
privada. O Conselho sugeriu que os profissionais poderiam ser
trazidos do exterior para organizar um instituto bacteriolgico,
"como So Paulo havia feito". Na viso dos congressistas, liderados
pelos mdicos Rodrigo Brando e Ramiro Azevedo, a sugesto do Conselho
era um "desabono" Escola de Medicina da Bahia, em cujos cursos de
fisiologia, assinalavam, a bacteriologia havia sido ensinada desde
1892. Propunham que dois baianos um professor de fisiologia e outro
membro do corpo docente da Escola de Medicina (um poltico de
renome) deveriam dirigir o laboratrio bacteriolgico em Salvador21.
As credenciais do professor de fisiologia, de acordo com os
deputados, eram o trabalho cientfico publicado e recebido
favoravelmente na "Europa". No se apresentavam evidncias das
pesquisas conduzidas pelo professor, nem se citavam as fontes
europias de reconhecimento da obra do brasileiro. Os argumentos do
Comit eram frgeis. Um porta-voz do Conselho replicou que no haveria
nenhum descrdito para a Bahia de contratar um cientista de fora. Ao
contrrio, os baianos corriam o risco de cair em descrdito por se
atrasarem na adoo de inovaes cientficas "com a presuno de saber
aquilo que ainda ignoramos profundamente" (Gazeta Mdica da Bahia,
jun. de 1894:532-536).
As vises do Comit Legislativo eram compartilhadas pelo
governador Rodrigues Lima. A deciso do governador teve um impacto
negativo e duradouro sobre a organizao da cincia no estado. S na
dcada de 20, como se ver, a Bahia lanou as bases da pesquisa em
medicina experimental e sade pblica, mas j sob os auspcios do
governo federal. A discusso a seguir rev os acontecimentos
posteriores derrota da proposta do Conselho de Higiene Pblica.
Em dezembro de 1901 o governador Severino Vieira (1900-1904)
decretou os "passos preliminares" para organizar os servios de
pesquisa bacteriolgica em Salvador, que se referiam ao incio da
construo de um pequeno laboratrio, com recursos e pessoal
limitados22. As administraes seguintes no avanaram muito. O debate
sobre o laboratrio bacteriolgico transformou-se em uma arenga
interminvel. Cada novo perodo governamental comeava com declaraes
oficiais sobre a necessidade de recursos para a pesquisa
experimental na Bahia. Entretanto, esses recursos no foram
fornecidos at 1915,
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exceo feita ao pequeno e mal-equipado laboratrio da poca de
Severino Vieira.
Em 1915, o governador J.J. Seabra concluiu a construo do sempre
prometido e continuamente adiado Instituto Bacteriolgico (na
verdade, um composto com uma unidade bacteriolgica, uma vacinognica
e uma anti-rbica). A instituio estava no mnimo quinze anos atrasada
em relao ao Instituto Bacteriolgico de So Paulo (1892) e ao
Instituto Soroterpico Federal do Rio de Janeiro (1900). Era
supostamente bem equipada para a pesquisa bacteriolgica e a
preparao de vacinas e soros23, mas no parecia talhada para um papel
de liderana na reforma da sade pblica: nem Seabra nem seu sucessor
indicaram bacteriologistas de alto calibre para encabear o
Instituto, ou o municiaram com um grupo de pesquisadores formados
em medicina experimental. O soro antiofdico ainda era importado dos
laboratrios de So Paulo, em uma poca em que jornais relatavam casos
fatais de
vtimas de serpentes venenosas na periferia de Salvador (A Tarde,
Salvador, 22/1/1918). 24
O novo instituto bacteriolgico, vacinognico e anti-rbico comeou
a funcionar em abril de 1916. Em 1917 o governador Moniz de Arago
deu ao Instituto o nome de Oswaldo Cruz. O alcance do trabalho
cientfico feito no "Instituto Oswaldo Cruz da Bahia" afastou-se do
exemplo dado pelo Instituto Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro. A
instituio baiana no carecia apenas de suporte financeiro, mas,
acima de tudo, de uma administrao inovadora e voltada para a
pesquisa. Arthur Neiva, conhecedor das necessidades de pesquisa
cientfica em seu estado natal, irritou particularmente seus colegas
ao referir-se "retrica" e ao academicismo do corpo docente da
Faculdade de Medicina da Bahia (A Tarde, 10/4/1918).
Havia, como ao tempo de Silva Lima e, mais tarde, de Pacfico
Pereira, figuras que se colocavam frente de seu prprio ambiente
intelectual, como Piraj da Silva. Piraj da Silva (1873-1961), quase
trinta anos mais jovem que Pacfico Pereira, era docente da
Faculdade de Medicina da Bahia e, como mdico voltado para a
pesquisa, distanciava-se amplamente das vises conservadoras do
ensino mdico de Salvador. As descobertas de Piraj sobre o
Schistosoma mansoni eram produto de um pesquisador engenhoso, um
arteso, como apontou o historiador da medicina Lycurgo Santos
Filho25. Sem formar escola, Piraj lutou contra as condies
financeiras adversas e a falta de equipamentos de laboratrio
adequados na Faculdade de Medicina da Bahia26.
Entretanto, a ltima dcada da Primeira Repblica testemunhou uma
mudana na poltica cientfica do estado. O Instituto Oswaldo Cruz da
Bahia fortaleceu-se durante o perodo calmonista. Em grande medida,
os novos desenvolvimentos cientficos refletiram os ventos de mudana
a que me referi antes, isto , a promoo da cincia e do saneamento
pelo governo federal e pela Fundao Rockefeller.
Em outubro de 1925 o governador Calmon demitiu o diretor do
Instituto Bacteriolgico Baiano e convocou um membro do Instituto
Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro para dirigi-lo27. A renovao do
pessoal tcnico tornou-se um dos maiores compromissos da nova
administrao. Dois mdicos baianos foram enviados aos Estados Unidos
para estudar anatomia patolgica e preparao de soros e vacinas. Um
mdico do servio de proteo infncia foi enviado Europa para estudar
outros sistemas de puericultura. Oito mdicos do
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Servio Sanitrio foram ao sul do Brasil, alguns deles para se
familiarizarem com as instituies de sade pblica do Rio de Janeiro,
de So Paulo e de Belo Horizonte, um para participar de um curso
sobre microbiologia no Instituto Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro,
outro para participar de um curso sobre malria ministrado pela
Fundao Rockefeller no Rio, e outros ainda para entrar em contato
direto com os sistemas de higiene escolar do Rio e de So Paulo28.
medida que a Primeira Repblica ia chegando ao fim, a instituio
bacteriolgica do estado tornava-se gradualmente um instrumento
essencial do sistema de sade, particularmente no fornecimento de
soros e vacinas populao baiana.
Se o painel que se procurou montar sobre o desenvolvimento das
instituies de pesquisa revelou srias deficincias ao longo da
Primeira Repblica, as instituies administrativas no tiveram melhor
sorte. Tema recorrente nos discursos dos governadores baianos, a
construo de uma base administrativa para os servios de sade pblica
pareceria, ao observador ligeiro, uma alta prioridade de governo.
Entretanto, houve pouco progresso antes da dcada de 20. Analisei
antes o primeiro esforo legislativo da Bahia republicana, isto , a
criao de um Conselho de Higiene Pblica em 1892. Os conselheiros
pouco fizeram, no entanto, diante do descaso do governo e do
Legislativo. Sobretudo, os servios de sade permaneceram
fragmentados e mal-organizados, a despeito das diretivas do
Conselho para a criao de um sistema unificado.
O Conselho de Higiene interrompeu suas atividades em 1897, e no
retomou seu trabalho at 1901, quando a legislao confirmou suas
funes consultivas. A lei de 1901 indicou um diretor para os servios
de sade do estado, e Pacfico Pereira tornou-se seu primeiro
diretor; Silva Lima recebeu a presidncia do Conselho Consultivo. A
indicao destes destacados mdicos e defensores da sade pblica
poderia ser interpretada, primeira vista, como um prenncio da
reforma sanitria. Contudo, o difcil manejo, por parte do governo,
da poltica no interior baiano limitou a influncia desses defensores
da sade pblica, quando muito, cidade de Salvador. Alm disso, a
falta de instituies de pesquisa slidas interrompeu o fornecimento
de "sangue novo" aos crculos de sade pblica. Em 1907 o pequeno
grupo reformista sofreu a perda do emrito Silva Lima, que renunciou
presidncia do Conselho de Higiene e se retirou da vida pblica. O
governador indicou Pacfico Pereira para substitu-lo na chefia do
Conselho29. Ldio de Mesquita, um bem-sucedido mdico de Salvador,
tornou-se o novo diretor sanitrio do estado, mas faltava-lhe
experincia em pesquisa mdica e em assuntos administrativos.
Por vezes, as autoridades governamentais tentaram, sem sucesso,
fazer chegar a influncia do servio sanitrio ao interior da Bahia.
Em tais ocasies, interpunha-se a questo da autonomia municipal; em
outras, surgiam interpretaes conflitantes sobre direitos e obrigaes
dos municpios. Por exemplo, em 1909 o governador Arajo Pinho
lembrou aos deputados baianos que, apesar de a disposio legal
conferir tarefas especficas s municipalidades tanto em termos de
higiene como de assistncia pblica, tais funes estavam sendo
cumpridas com recursos estaduais. (De fato, deveria ter observado o
governador, esses recursos raramente eram dirigidos para a efetiva
prestao de servios de sade.) De acordo com o governador, caberia ao
estado no o provimento de recursos, mas orientar e formar as
municipalidades para a realizao de uma reforma administrativa e
fiscal. Cautelosamente,
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Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
afirmou que deixaria ao julgamento do Legislativo onde o partido
do governo, o PRB, no tinha maioria a deciso final sobre a ao a ser
adotada30. Diante do dbil comando do PRB sobre a poltica estadual,
o governador baiano no obteve a aprovao do Legislativo para sua
proposta.
Uma nova coalizo poltica de antigos opositores do Partido
Republicano da Bahia levou o Partido Republicano Democrata PRD ao
poder em 1912. J.J. Seabra, governador recm-eleito e fundador do
partido, era um poltico influente entre as classes mdias de
Salvador. A mquina partidria estadual tirou vantagem de sua
crescente ascendncia poltica e fez alguns progressos na administrao
da sade pblica. Um projeto de reforma sanitria tornou-se lei em
novembro de 1912. A reforma refletia em grande parte a legislao
federal que autorizara o presidente Rodrigues Alves a modernizar a
capital da nao, discrio e toque de caixa. A reforma baiana invadiu
a jurisdio municipal na inspeo sanitria de edifcios pblicos e
privados e na vacinao. Esses servios, at ento uma tarefa municipal,
tornaram-se uma responsabilidade estadual31. De fato, a lei
aprovada objetivava a organizao dos servios de sade na capital,
apesar de o projeto referir-se aos "municpios" e no apenas a
Salvador. A reforma permitiu a abertura de um servio de verificao
de bitos para melhorar a qualidade dos dados sobre mortalidade, e a
dupla checagem dos atestados de bito teve incio em Salvador em
janeiro do ano seguinte.
Assim, o sistema de sade pblica permaneceu limitado,
basicamente, capital. A grande maioria dos municpios baianos no
dispunha de servios de higiene pblica e os poucos que os possuam,
contavam apenas com uma organizao rudimentar. Um projeto de lei que
reduzia o poder dos coronis do interior foi aprovado em 1915,
determinando que os prefeitos baianos (intendentes) deveriam ser
nomeados pelo governador. Estipulava-se ainda que relatrios anuais
das contas municipais tinham de ser submetidos ao Executivo
estadual, supostamente com o propsito de prevenir o mau uso de
recursos pelas elites locais. O resultado parte o propsito
declarado do artigo foi o aumento do poder do governo estadual no
interior baiano (Sampaio, 1979:95-97).
A coligao poltica que apoiou o PRD era a condio necessria para
que o governo baiano pudesse estender os servios pblicos para alm
da capital. Mas a coalizo governamental entrou em colapso antes que
fosse consolidada. O governador Seabra foi longe demais em sua
tentativa de interferir na poltica dos "sertes", e enfrentou a
oposio de vrias faces dentro de seu prprio partido (idem:98).
Antigos opositores do PRD comearam a reorganizar suas foras no
interior.
Aps 1916, o PRD perdeu gradualmente o controle da situao. O
sucessor de Seabra tambm atraiu o descontentamento dos coronis
baianos (idem:98, 107-108; Pang, 1979:104-105). Em 1918 houve
violentos choques armados no interior, entre cls locais pr e contra
a poltica intervencionista do PRD32. Em 1920 Seabra foi reeleito
governador, mas a base poltica do PRD no interior havia-se
despedaado e, com isso, fracassaram os esforos do governo do estado
para construir um sistema de sade pblica que penetrasse em
territrio coronelista.
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Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
Se os rumos da relao entre sade, poltica e sociedade na Bahia
sofreram uma inflexo a partir de 1920, isto decorreu de uma alterao
no relacionamento entre centro e periferia. Desde os primeiros anos
da Repblica havia escaramuas freqentes entre o governo federal e o
governo baiano. Deve-se lembrar que um inspetor federal de sade
controlava o porto de Salvador. A invaso da capital baiana pela
peste bubnica, em 1906-1907, foi creditada pelo governador Jos
Marcelino ao governo federal, com crticas ao prprio diretor geral
de sade pblica, Oswaldo Cruz33.
Na mesma linha de ataques, em 1913 as autoridades estaduais
culparam o governo federal pela contnua penetrao da febre amarela e
da peste no territrio baiano. O diretor do servio sanitrio, Pinto
de Carvalho34, pedia maiores poderes (e menos interferncia federal)
nas aes de saneamento e superviso do porto, ainda que solicitasse
ajuda financeira para a sade pblica. (Como se ver adiante, a Bahia
recebeu recursos da Unio durante a dcada de 20, mas o pacote
incluiu uma maior interveno federal nos servios estaduais.) Em 1913
nem o governo baiano nem a Diretoria Geral de Sade Pblica estavam
em condies de melhorar as condies de sade em Salvador. Por um lado,
a Bahia ainda no tinha meios administrativos e recursos cientficos
para atacar os problemas de sade; por outro, o governo federal no
se envolveria efetivamente na construo de uma poltica nacional de
sade at o final da dcada.
Este ponto fundamental. Depois dos passos incertos dos governos
baianos em direo reforma sanitria, a ao federal veio na onda de uma
tendncia geral de interveno federal na administrao pblica e na
legislao social (e sanitria) dos estados (Love, 1980:xiii-xx). O
Departamento Nacional de Sade Pblica iniciou uma nova fase
administrativa sob a liderana de Carlos Chagas35. A reforma
empreendida por Chagas em 1921, amparada em decreto presidencial de
Epitcio Pessoa, criou as condies institucionais bsicas para a
interveno federal em sade pblica (Luz, 1979:56). O governo federal
engajou-se no controle das epidemias na maior parte das capitais
brasileiras, incluindo Salvador; alm disso, a erradicao de endemias
rurais em todo o pas tornou-se a partir de ento um objetivo
federal, no plano ideolgico e das polticas pblicas (Castro Santos,
1985).
Na Bahia, como em outros estados do Nordeste e do Norte, os
servios de profilaxia da febre amarela passaram para a
responsabilidade financeira e administrativa do Departamento
Nacional de Sade Pblica. Gonalo Moniz, secretrio do Interior da
Bahia e ex-diretor sanitrio durante 1915-1916, criticou o governo
federal pelo que julgava ser uma interveno em assuntos internos da
Bahia36.
Em 1920, a Fundao Rockefeller desde 1916 atuando no Brasil no
combate ancilostomase , em convnio com o governo central e com os
estados, assinou um acordo com a Bahia para fornecer recursos e
pessoal mdico para o controle e tratamento da enfermidade37. Mas o
governo da Repblica logo ampliou seu papel na regio, ao substituir
a Bahia no convnio, em abril de 1921, e, em dezembro do mesmo ano,
ao nomear um mdico do DNSP para a direo dos servios da Comisso
Rockefeller na Bahia. Os trabalhos de sade pblica tornaram-se cada
vez mais centralizados sob a autoridade federal.
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Dados - As Origens da Reforma Sanitria e da Modernizao
Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
Na trilha aberta pelo governo federal, o Servio Sanitrio
estadual passou pelas mais importantes mudanas administrativas da
Primeira Repblica. Em 1924 o chefe de profilaxia rural um
funcionrio federal tornou-se o diretor geral da sade pblica da
Bahia. Em discurso legislatura em abril de 1925, o governador Gis
Calmon anunciou as modificaes que pretendia introduzir no setor. A
responsabilidade dos municpios pela construo e operao do sistema de
esgoto, pelo abastecimento de gua e pela remoo de lixo deveria ser
transferida ao Estado, pelo menos temporariamente. No interior,
para completar o trabalho dos postos de sade sob responsabilidade
federal, o governador recomendou a criao de centros de sade
localizados nas reas mais densamente povoadas. Alm disso, duas
novas divises sanitrias deveriam ser institudas, uma voltada para
os problemas de sade infantil e a outra para as questes de higiene
nas indstrias38.
Em julho de 1925, nova legislao (n 1811) reorganizava o sistema
de sade pblica, de acordo com as propostas de Gis Calmon no
discurso de abril. Uma importante modificao foi a criao de uma
Subsecretaria de Sade e Assistncia Pblica subordinada diretamente
ao governador e independente da Secretaria do Interior. Em novembro
desse ano, o governador Calmon editou o decreto 4144, que fornecia
o primeiro cdigo sanitrio da histria do estado. Em junho de 1927,
uma lei estadual (n 1993) criou uma Secretaria de Sade e Assistncia
Pblica. Antnio Lus Barros Barreto, o chefe da profilaxia rural que
passara a ser subsecretrio estadual de Sade Pblica em 1925,
tornou-se o secretrio estadual em 1927 (O Imparcial, Salvador,
29/3/1928, Suplemento).
Esse conjunto de desenvolvimentos institucionais refletia uma
crescente concentrao do poder nas mos do governo estadual vis--vis
as municipalidades, assim como uma clara tendncia racionalizao e
modernizao das funes de governo. importante notar que tais
processos resultaram, em boa parte, de presses federais. No caso da
sade pblica, trs elementos justificam essa afirmao. Primeiro, a
indicao de Barros Barreto para encabear tanto o Servio de
Profilaxia Rural Federal quanto o Servio Sanitrio Estadual e, mais
tarde, a Secretaria de Sade, refletia diretamente as preferncias do
governo federal39. Segundo, uma funo meramente burocrtica era agora
conferida aos conselheiros da Higiene Pblica Estadual, um rgo com
autoridade em declnio mas ainda ativo durante os anos 10. O papel
reduzido do Conselho Sanitrio adequava-se muito bem ao novo cenrio
de tomada de decises: em lugar de corpos autnomos aconselhando o
governo do estado, o poderoso Departamento Nacional de Sade Pblica
assumia tais prerrogativas. Terceiro, o cdigo sanitrio da Bahia era
em grande medida baseado na legislao federal. Esta aproximao,
afirmava o governador baiano, permitia o fim de regulamentaes
municipais independentes, a maior parte delas "em completo
desacordo" com leis estaduais e federais40. Por fim, havia a
contrapartida da ajuda financeira do governo federal, que financiou
parcialmente com o apoio da Diviso Sanitria Internacional da Fundao
Rockefeller as campanhas sanitrias no interior e deu total
cobertura campanha contra a tuberculose e assistncia sade infantil
em Salvador41.
2. Campanhas Sanitrias
O pequeno alcance das campanhas sanitrias impressiona o
estudioso do movimento
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Dados - As Origens da Reforma Sanitria e da Modernizao
Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
sanitarista baiano. Os servios de sade no se estenderam alm do
municpio de Salvador at a dcada de 20 (exceto ocasionalmente, como
em 1913). Embora tenha havido algum progresso durante os anos 20 no
que diz respeito ao saneamento do interior, as atividades
continuaram a se concentrar fortemente na capital e em sua
periferia, ainda que Salvador reunisse menos de 10% da populao do
estado em 1920. Obedecendo a essa dicotomia, farei a discusso das
campanhas em dois tempos, analisando em primeiro lugar os servios
de sade pblica na capital e, em seguida, as tentativas de organizao
sanitria no interior da Bahia.
A capital. Salvador estava entre as cidades litorneas que
experimentaram surtos epidmicos desde o sculo XIX. A capital baiana
foi o primeiro porto brasileiro atingido pela febre amarela em
1849, que irrompeu de novo nos primeiros anos da Repblica (Gazeta
Mdica da Bahia, jan. de 1897, vol. 7:295-297, 303-304; fev. de
1897, vol. 8:370). A varola atingiu a populao de Salvador em 1892.
Em 1897 e 1898, apesar dos anncios oficiais de vacinao42, a doena
reapareceu em propores epidmicas. A malria e a tuberculose
permaneceram causas importantes de morte ao longo de toda a
Primeira Repblica.
A peste invadiu a cidade em 1904. As autoridades federais e
estaduais tentaram sem sucesso estabelecer um cordo sanitrio em
volta do porto. Pacfico Pereira, diretor de Sade Pblica, recomendou
a adoo de medidas defensivas na cidade, tais como o extermnio dos
ratos, a recuperao de velhos edifcios no centro de Salvador, o
fechamento de pores e stos e a completa remoo do lixo. De acordo
com a legislao existente, essas medidas tinham de ser realizadas
pela municipalidade, sobre a qual o governo estadual exercia pouco
controle. Isso constitua um obstculo adoo de medidas sanitrias,
pois as autoridades municipais sempre evitaram entrar em choque com
os interesses comerciais locais, ameaados pelos planos de renovao
urbana43. Depois de ter invadido o porto, a doena espalhou-se
livremente at os arredores de Salvador44. Em 1909, o governador
Arajo Pinho assinalou que s uma melhora geral nas condies sanitrias
de velhos cortios e edifcios pblicos, especialmente na parte da
cidade prxima do porto, poderia reduzir a infestao de ratos45.
A peste bubnica atacou repetidas vezes a cidade de Salvador at
1915, quando a Lei Municipal de 1915 autorizou o governo do estado
a adotar uma srie de medidas de saneamento na capital, em especial
na Cidade Baixa. Em 1928, outra vez a cidade esteve sob ameaa (O
Imparcial, 20/3/1928:3), mas o Cdigo Sanitrio de 1925 deu s
autoridades sanitrias as condies de debelar o surto epidmico, com o
estabelecimento de cordes sanitrios e o uso de vacinas e soros.
A varola retornou a Salvador em 1904, alcanou propores epidmicas
entre 1908 e 1910 e assolou a cidade outra vez em 1919 e 1920. S em
1909 os servios municipais de sade comearam uma campanha de
vacinao, financiada com recursos do estado46. Entretanto, as
campanhas eram apenas espordicas e grande parte da populao
permanecia sem vacinao. O ano de 1919 testemunhou uma devastadora
epidemia de varola a mais trgica da histria do estado47. O governo
federal interveio. Como a legislao federal de vacinao compulsria de
1904 no vigorava devido resistncia popular, as autoridades federais
anunciaram que s as pessoas portadoras de um certificado de vacinao
seriam autorizadas a
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Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
viajar entre os portos brasileiros. O primeiro posto federal de
vacinao na Bahia foi aberto em setembro de 191948. Os casos de
varola desapareceram gradativamente do estado durante a dcada de
20.
Depois dos primeiros surtos no incio da Repblica, a febre
amarela assolou repetidamente a capital entre 1909 e 1919. Desde a
dcada de 1900, as campanhas sanitrias no Estado de So Paulo e no
Distrito Federal estavam centradas na eliminao de mosquitos.
Entretanto, a poltica sanitria baiana ateve-se a medidas
tradicionais de desinfeco e isolamento total at a dcada de 10.
Quase duzentos casos foram reportados no ano de 1909 em Salvador,
cerca de metade deles fatais. O governo baiano criticou os meios de
comunicao por publicarem informaes sobre a epidemia, protestando
contra essa "atoarda desabonadora" que repercutia l fora em
descrdito da Bahia49. Como argumentavam Arthur Neiva e Belisrio
Pena, em seu Relatrio da misso cientfica de 1912, as estatsticas da
febre amarela, na verdade, subestimavam os reais nveis de morbidez
e mortalidade (Neiva e Pena, 1916:127). Pinto de Carvalho, diretor
de Sade Pblica da Bahia de 1912 a 1914, tentou controlar a epidemia
na cidade por meio de uma equipe mdica auxiliada por uma brigada
antimosquito50, mas a doena retornou em dois anos em conseqncia de
um relaxamento nas medidas sanitrias. O governador chegou a
dispensar trabalhadores do servio especial contra febre amarela,
com a justificativa de cortar despesas "desnecessrias". No entanto,
medida que os casos de febre cresciam vertiginosamente, o governo
foi forado a restabelecer os servios de combate doena51. Logo a ao
federal encampou os servios de sade estaduais, como parte de uma
estratgia geral montada pela Rockefeller para eliminar a febre
amarela do Nordeste. As campanhas sanitrias reduziram a prevalncia
da doena durante os anos seguintes, mas sua erradicao s ocorreu
depois da descoberta de uma vacina na dcada de 3052.
As condies gerais de sade em Salvador s comearam a melhorar
quando as primeiras medidas de preveno de doenas transmissveis
foram tomadas na dcada de 2053. Mas os sanitaristas no conseguiram
remover importantes obstculos melhora geral das condies de sade
locais. O Relatrio publicado em 1921 por Gonalo Moniz, no tempo em
que ocupava a chefia da Secretaria do Interior, relaciona alguns
obstculos: a infra-estrutura de esgoto e abastecimento de gua
continuava a ser totalmente insatisfatria; os brejos e pntanos
ainda constituam perfeitos terrenos de procriao para mosquitos e
parasitas; bairros muito antigos, muitos deles datando do perodo
colonial, estavam em flagrante violao dos modernos princpios de
higiene54.
Todos esses problemas permaneciam sem soluo ao findar a Primeira
Repblica.
O interior da Bahia. Se o balano das condies de sade na capital
mostra algum progresso, o interior da Bahia tanto as reas urbanas
quanto as rurais ficou claramente para trs. Por um lado, o interior
continuou a abrigar freqentes surtos epidmicos at o final da dcada
de 20. (A capital tambm, embora sujeita a epidemias menos
freqentes.) Ainda mais ameaadoras, por outro lado, eram as chamadas
"grandes endemias dos sertes", amplas, crnicas e virtualmente fora
de controle ao longo da dcada de 20, como ocorria desde os tempos
pr-republicanos. Na variada lista de endemias tinham destaque a
malria, a ancilostomase, o tracoma, a leishmaniose, a bouba, a
filariose e a doena de Chagas.
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Dados - As Origens da Reforma Sanitria e da Modernizao
Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
A situao deplorvel das populaes do interior foi retratada no
Relatrio de Viagem de Belisrio Pena e Arthur Neiva, aludido
anteriormente. Ambos no pouparam crticas aos poderes constitudos e
s oligarquias locais, sem fugir, em sua exposio, aos imperativos do
"rigor cientfico" da poca, marcado por indisfarvel darwinismo
social (Neiva e Pena, 1916)55. A equipe mdica, apesar de receber
apoio dos prefeitos e coronis aliados do governo estadual56,
lanava, de fato, as sementes da interveno federal na sade pblica da
Bahia. Alm disso, a misso era, ento, e foi por muitas dcadas
seguintes, a nica fonte de dados epidemiolgicos sobre o interior,
para uso das autoridades de sade pblica. Neiva e Pena apontaram as
srias deficincias de recursos mdicos nas localidades do interior
(como Juazeiro), alm da inexistncia de estatsticas vitais
confiveis, particularmente quanto s mortes, grande nmero das quais
permanecia sem registro. O relatrio era igualmente crtico da
qualidade das estatsticas da febre amarela. A ancilostomase foi
encontrada em Juazeiro e em inmeras outras localidades. A misso
diagnosticou srias infeces dos olhos na populao do interior, como o
tracoma. A malria era largamente disseminada. A mortalidade entre
as crianas alcanava nveis altssimos (idem:127, 130, 150-152).
A reao do governo baiano ao Relatrio Neiva-Pena foi a abertura
de postos de sade em um punhado de municpios. Contudo, as medidas
foram tpicas e insuficientes57. Os postos forneciam vacinao
antivarilica, mas no estavam equipados para o controle de outras
doenas infecciosas. Durante o restante da dcada apenas em duas
ocasies, 1916 e 1919, o estado enviou equipes mdicas para alguns
ncleos urbanos do interior, mas nenhuma ao foi realizada nas reas
rurais.
Em 1919, a varola e a peste bubnica espalharam-se por todo o
estado. O Servio de Sade estabeleceu comisses temporrias nas
localidades afetadas pelas epidemias. Muitas dessas comisses
sanitrias haviam supostamente cumprido suas tarefas e no existiam
mais quando o governo estadual mudou de mos em maro de 192058.
Os "anos hericos": esperana e frustrao. Em abril de 1921, em
parte como reao s "impressionantes narrativas" de Neiva e Pena
(1916) sobre as condies de vida do serto baiano (Pena, 1918), o
governo federal assumiu a responsabilidade do Estado da Bahia no
acordo firmado com a misso mdico-sanitria da Rockefeller59. Essa
ampliao da presena federal na sade pblica da Bahia refletia os
novos rumos de interveno nos estados. Nesse ano, o presidente
Epitcio Pessoa assinou, com a Comisso Sanitria Internacional da
Fundao Rockefeller, acordo de cooperao para o combate ancilostomase
em todo o pas. Para que as campanhas sanitrias fossem iniciadas,
cada estado deveria homologar o acordo, assumindo uma parte das
despesas. Em 1923, a febre amarela tornou-se o alvo mais importante
dos trabalhos da Profilaxia Rural (um brao do governo federal) e da
Comisso Rockefeller, ficando a Unio responsvel por metade das
despesas do Servio da Febre Amarela nos estados do Norte e
Nordeste. A princpio, os trabalhos abrangeram somente os Estados da
Bahia e do Cear.
Mas as perspectivas para a dcada de 20 eram sombrias. Dcadas de
negligncia haviam deixado um pesado encargo para as autoridades da
Sade. As endemias, em todo o estado,
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Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
continuaram a cobrar um alto custo em vidas humanas. Em 1921 e
1922 surtos de peste bubnica assolaram o interior. Equipes mdicas
federais e estaduais foram enviadas aos municpios de Serrinha
(ligado capital por ferrovia), Feira de Santana (importante centro
comercial), Camiso e Castro Alves, a oeste da capital. Campo
Formoso, a noroeste, sofreu uma segunda epidemia de peste. A febre
amarela irrompeu em vrios municpios que tinham at ento sido
poupados pela doena60.
Na capital da nao, o clima poltico tornava-se cada vez mais
favorvel ao movimento de sade pblica no interior do Brasil, e a
Bahia, por sua posio de destaque, ganhava tratamento especial.
medida que o saneamento dos sertes se transformava em idia-fora de
salvao nacional61, no s as campanhas sanitrias na Bahia se tornaram
mais intensas entre 1923 e 1925, mas aumentaram os recursos para a
sade pblica durante o mesmo perodo. Como salientei anteriormente, o
chefe da Profilaxia Rural de Sade, subordinado ao DNSP, foi nomeado
diretor de Sade Pblica da Bahia em 1924, fato que expressava a
influncia do governo federal no movimento de reforma sanitria da
Bahia. Por outro lado, o Servio de Febre Amarela ampliou
sobremaneira o papel da Rockefeller em toda a regio.
Desde outubro de 1924 havia oito postos de profilaxia rural em
operao. No incio de 1926 j eram dezesseis62, que se incumbiam de
atividades tais como a ampla distribuio de medicamentos contra a
ancilostomase e a malria, exames de fezes, vacinao contra a varola
e educao sanitria. A campanha contra a febre amarela era organizada
e parcialmente financiada pela Comisso Rockefeller, embora muito
fosse feito, nesse sentido, pelos novos servios estaduais e
federais, agora unificados na Profilaxia Rural63.
Entre fevereiro e agosto de 1926 a Coluna Prestes cruzou o
interior da Bahia com vrios destacamentos, perseguida por tropas
federais e baianas. Os Servios de Sade Pblica foram seriamente
prejudicados pelos deslocamentos, em territrio baiano, das foras
rebeldes e leais ao governo (Macaulay, 1974:184-185)64. O Servio
Sanitrio foi pressionado a ajudar as foras governistas com remdios,
vacinas e soros, o que significou para a populao uma escassez de
remdios como o quinino. A populao tambm sofreu com a falta de
atendimento mdico. Em Juazeiro, o Exrcito requisitou o posto de
profilaxia e transformou-o em uma clnica de emergncia para as foras
governistas. Em Alagoinhas e Bonfim, o movimento de tropas afetou
seriamente as atividades dos postos e paralisou completamente o
posto de Barra do Rio Grande65.
Os Servios Sanitrios recuperaram-se quando os revolucionrios da
Coluna e seus perseguidores deixaram o interior. Quarenta e quatro
equipes mdicas foram enviadas aos sertes antes do trmino do ano de
1926. Vrias se deslocaram para as localidades ao longo do rio So
Francisco, afligidas pela malria. Quatro equipes dirigiram-se para
a regio de Lavras Diamantinas para combater novos surtos de peste.
Quatro outras delegaes mdicas alcanaram o longnquo municpio de
Barreiras e as reas de criao de gado do oeste da Bahia.
Embora srios esforos fossem feitos durante a dcada de 20 para o
saneamento do interior baiano, a regio permaneceu exposta a
freqentes surtos de varola e "febres" geralmente
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Dados - As Origens da Reforma Sanitria e da Modernizao
Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
associadas malria. Pesquisa conduzida no serto pela Liga das
Naes, nessa poca, revelou um "cenrio horroroso" de mortalidade
infantil, em grande parte causada por infeces intestinais66. Por
ltimo, mas igualmente importante, as "endemias dos sertes"
particularmente a ancilostomase e a doena de Chagas, alm da malria
permaneceram como uma ferida aberta, at os dias de hoje.
O SURGIMENTO TARDIO DA MODERNIZAO CONSERVADORA
Se procurasse remeter o leitor aos pontos principais da discusso
precedente e s razes histricas de uma reforma sanitria
relativamente tardia, teria de enfatizar as seguintes dimenses
econmicas, sociopolticas e culturais que conformaram a estrutura
social e a sade pblica da Bahia durante a Primeira Repblica. A
saber: a) uma economia regionalmente fragmentada; b) no plano
social, a existncia de mltiplos grupos oligrquicos; c) no plano
poltico, marcada tendncia ao surgimento de faces; e d) um ambiente
cultural desfavorvel, em particular, uma tradio mdica
conservadora.
Quando aponto o surgimento tardio da poltica de modernizao da
sade na Bahia, fao-o em referncia reforma sanitria que se
desenvolvia em So Paulo muito cedo (e em ritmo mais rpido), desde
os primeiros anos da Repblica. Mas h trs outros paralelos
importantes com o caso paulista. Em primeiro lugar, a reforma
sanitria na Bahia limitou-se s reas urbanizadas do litoral
particularmente capital e a um punhado de localidades do interior.
Ao contrrio das polticas e programas de So Paulo, a Bahia avanou
pouco nas reas sob controle dos coronis do serto. J um outro
paralelo refere-se ao recorte centro-periferia. No caso da Bahia, o
movimento de sade pblica resultou em grande parte das presses e da
atuao direta do governo federal, particularmente durante a dcada de
20 os "anos hericos" da reforma sanitria. Em contraste, foi a
partir do governo e da poltica estaduais que tomou impulso o
movimento reformista no Estado de So Paulo. H, por fim, um
contraste com respeito ao significado do movimento nos dois
estados. O movimento sanitrio paulista teve um impacto considervel
sobre a reduo das doenas endmicas, e avanou significativamente na
institucionalizao da pesquisa biomdica e na formao de
pesquisadores, em laboratrios pblicos e privados. O significado do
movimento de sade pblica na Bahia foi, por assim dizer, muito mais
ideolgico e institucional do que epidemiolgico67. Com isso quero
sugerir que, se no lograram alcanar resultados significativos do
ponto de vista dos nveis de sade da populao, as campanhas contra as
epidemias e endemias fizeram surgir e conformaram uma organizao
pblica de servios e de profissionais da administrao pblica em sade,
bem como novas instituies de pesquisa, que influenciaram, por sua
vez, o aparelhamento de setores burocrticos. Alm disso, as
campanhas contriburam para a cristalizao das idias de reforma
sanitria, que sacudiam o sul do pas, particularmente o Distrito
Federal, desde a dcada de 10, mas ainda no haviam logrado
expandir-se para a Bahia.
A questo do ritmo da mudana outro ponto fundamental. Se a Bahia
"chega tarde", por assim dizer, isto no significa que o compasso
das mudanas fosse necessariamente lento. De
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Dados - As Origens da Reforma Sanitria e da Modernizao
Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
fato, o incio foi lento e incerto, mas o impulso dos
acontecimentos da dcada de 20 foi de tal modo decisivo, que os trs
ou quatro ltimos anos da dcada revelaram um ritmo particularmente
impressionante de inovaes e agitao reformista no campo da sade.
Na dcada de 20, como procurei indicar, o movimento de sade
pblica baiano deu claros sinais de progresso no terreno da legislao
de sade, no aparelhamento institucional e administrativo e na
poltica sanitria. Os primeiros passos foram dados com a criao de
condies favorveis pesquisa. Essas conquistas em sade pblica estavam
estreitamente relacionadas com o padro de reestruturao da poltica
republicana na Bahia e com o prprio crescimento dos aparelhos de
Estado, resultantes de processos polticos mais gerais da Repblica
brasileira no perodo ps-1920. Alm disso, os sinais de mudana
refletiram a prioridade conferida sade pelo governo federal, com o
surgimento do Departamento Nacional de Sade Pblica e dos programas
de combate s endemias particularmente os servios de profilaxia
rural , tudo sob o mpeto modernizador de Carlos Chagas e Clementino
Fraga frente do DNSP.
No h como subestimar, nesse contexto, o papel da Diviso Sanitria
da Rockefeller. Neste ponto, constata-se claramente um "efeito no
antecipado" das campanhas da febre amarela, coordenadas pelos
norte-americanos com menor grau de autonomia no sul do pas e maior
no Nordeste. Essas campanhas, longe de criar um poder paralelo da
Rockefeller, ou grupos profissionais brasileiros subalternos,
terminaram por reforar a tendncia geral de consolidao dos aparelhos
institucionais e das idias de reforma sanitria, tendncia que j se
esboava antes da vinda da Rockefeller ao Brasil, em 1916. Assim, a
prpria existncia de correntes nacionalistas (que forjaram o ideal
de reforma) e a marca de nossas tradies de pesquisa, operaram como
uma espcie de anteparo s aspiraes de dominao profissional, ou de
qualquer outra ordem, por parte dos "Rockefeller medicine men" no
Brasil. No caso particular da Bahia, a dupla delegao de funes e
poderes dos governos estadual e federal misso norte-americana
produziu efeitos "no antecipados" ainda mais evidentes, j que, na
falta de organizao institucional na rea de sade ou de tradio
consolidada de pesquisa experimental (em contraste com So Paulo ou
com o Distrito Federal), a Rockefeller e o DNSP viram-se obrigados
a um esforo redobrado de formao de profissionais, criao de
laboratrios e de rgos de saneamento. Note-se, ademais, que o
Departamento Nacional de Sade Pblica operava, nesse contexto, como
um escudo poltico-institucional de defesa da "independncia" da
Bahia, no plano das polticas pblicas, caso a misso exorbitasse de
suas funes. (Havia aqui um papel de agente duplo, pois tambm
sucedia, no raro, que o DNSP fizesse chegar a viso da International
Health Division a autoridades governamentais, polticos e lideranas
profissionais do estado.) Assim que os aparelhos administrativos da
sade passaram por ntido processo de modernizao, culminando com a
prpria criao pioneira no Brasil de uma Secretaria Estadual da Sade,
em 1927, como se o DNSP submetesse a teste, na Bahia, um arranjo
institucional para difuso posterior em outros estados.
Ao findar a Primeira Repblica, foras de mudana levaram a Bahia a
avanar no terreno institucional da sade. primeira vista, poderia
dizer-se que tudo estava pronto para uma profunda reforma sanitria,
mas dificilmente um governo de base oligrquica, regional ou
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Dados - As Origens da Reforma Sanitria e da Modernizao
Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
nacional, teria condies de realizar um projeto modernizador
ousado. No cabe aqui traar, no contexto das polticas de sade
ps-1930, a histria das esperanas frustradas de aprofundamento das
reformas na Bahia, sob o horizonte poltico centralizador do
getulismo. Nesse perodo, novas prioridades estratgicas e um modelo
econmico de feitio urbano-industrial fizeram do ideal de reforma
sanitria nas capitais e da bandeira do "saneamento dos sertes" um
plano de governo, de cunho mais tcnico do que poltico-ideolgico, na
Bahia como em todo o pas.
(Recebido para publicao em maro de 1998)
NOTAS:
* Este ensaio uma verso, substancialmente revista, de um captulo
de minha tese de doutorado defendida junto Universidade de Harvard.
Alunos e colegas sugeriram que este captulo merecia uma circulao
mais ampla em portugus. Agradeo a todos pelo estmulo, em especial
amiga Guaraci Adeodato de Souza, professora da Universidade Federal
da Bahia e baiana da melhor cepa.
1. Para uma anlise do avano do papel do Estado na sade e do
"efeito bumerangue" entre sade e state-building na Primeira
Repblica, e do modo pelo qual esse processo foi afetado pelo
progresso paulista no campo sanitrio, ver Castro Santos (1987,
caps. 2 e 3) e Hochman (1998).
2. A Bahia era superada apenas pela provncia do Rio de Janeiro
em nmero de conselheiros indicados pelo monarca entre 1842 e 1889.
Ver Russell-Wood (1968:78-79); Sampaio (1979:xxiii); Burns
(1970:153).
3. Em 1823, a Bahia liderava todas as provncias em tamanho de
populao, sendo ultrapassada apenas por Minas Gerais em 1872-1890,
colocando-se em terceiro lugar, atrs de Minas Gerais e So Paulo, em
1900-1920. (Os dados so de levantamentos de populao e de censos,
reproduzidos em Lopes e Patarra, 1975, Tabela 1.)
4. Um ministro do Imprio, o Visconde de Monte Alegre, insistia
que o diagnstico de Patterson estava incorreto.
5. Muito embora Antonio Pacfico Pereira (1846-1922), que muitos
consideram um expoente da segunda gerao de "tropicalistas", tenha
sido professor da Faculdade de Medicina e tenha lutado pela reforma
sanitria na Bahia, tudo indica que sua militncia teve impacto
nacional, mas no em seu prprio estado. Paradoxalmente, exerceu,
ali, pouca influncia na formao de um ambiente de pesquisa e de
reforma da sade pblica. As indicaes de Peard (1996:51) so
esclarecedoras neste ponto, ao lembrar que o grupo no logrou
institucionalizar "por completo" seu projeto de trabalho cientfico.
Em resenha crtica recente, defendo a realizao de mais pesquisas que
esclaream o modo pelo qual o grupo tropicalista interagia com a
comunidade acadmica, cultural e poltica local (ver Castro Santos,
1997).
6. A vida intelectual de So Paulo beneficiou-se de atividade de
positivistas reformistas. O ambiente
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Dados - As Origens da Reforma Sanitria e da Modernizao
Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
receptivo do Rio de Janeiro, por sua vez, resultou da luta de
intelectuais e administradores para modernizar a capital da
nao.
7. Foi esse o caso de Lidio de Mesquita, um renomado cirurgio de
Salvador, que chefiou o Servio Sanitrio de 1906 at 1912, apesar de
no ser um sanitarista. Ver discusso adiante neste captulo.
8. Ver o mapa da Fundao Rockefeller, "Yellow Fever: Situation
West of Bahia" (1925), in Rockefeller Archive Center, Comisso
Internacional de Sade, Srie 305, Caixa 24, Pasta 144.
9. Os cls tradicionais da Bahia, tais como os Arajo Pinho, os
Calmon, os Mangabeira e os Moniz, vieram do Recncavo (Pang,
1979:49).
10. Por exemplo, Franklin Lins, da cidade de Pilo Arcado, e
Ablio Wolney, da regio do extremo oeste do Vale.
11. Antnio Pessoa foi um dos mais poderosos potentados rurais da
zona cacaueira. Eul-Soo Pang (1979:39-40, 53) afirma que o fracasso
dos fazendeiros de cacau em obter ascendncia sobre a poltica
estadual deve ser atribudo a fatores geogrficos e demogrficos.
Fundamentalmente, porque havia grande mobilidade e diversificao
entre as populaes dos principais municpios, o que pulverizava a
influncia poltica entre diversos coronis-fazendeiros, comerciantes,
advogados e mdicos da regio.
12. Por exemplo, o chefe regional Horcio de Matos e seus aliados
sublevaram-se em armas para combater as autoridades de Salvador em
duas ocasies importantes. Em uma delas, a revolta s terminou aps
interveno federal, em 1920. Horcio de Matos pertencia a um cl de
proprietrios de terra e comerciantes estabelecido na cidade de
Chapada Velha desde 1840 (Pang, 1979:54-55, 110, 122; Sampaio,
1979:18-20; Macaulay, 1974:215).
13. Mesmo um Jos Joaquim Seabra (mais tarde, ministro de
Rodrigues Alves), de tendncias antimonarquistas, permaneceu filiado
ao velho Partido Conservador, em vez de se juntar s fileiras
republicanas (Pang, 1979:42, 91).
14. Sobre a modernizao "pelo alto" no caso paulista, durante a
Primeira Repblica, ver Castro Santos (1993).
15. O Cdigo Sanitrio Baiano foi aprovado durante a administrao
Gis Calmon (decreto 4144, novembro de 1925).
16. Em outra ocasio discuti a fora das idias de saneamento como
ideologia de nation-building (Castro Santos, 1985). Para uma anlise
recente das misses civilizatrias inclusive a Misso Rondon e seu
impacto nas ideologias da nao brasileira, ver Lima (1998).
17. O clima poltico favorvel a ideologias de salvao para o
interior brasileiro foi ainda alimentado pelos revolucionrios da
Coluna Prestes, movidos por idias de maior fora do que as
propugnadas pelas ligas e campanhas de saneamento rural. Voltarei a
este ponto mais adiante.
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Conservadora na Bahia durante a Primeira Repblica
18. Alm dos programas de sade pblica, o governo federal levou a
cabo a construo de estradas, ferrovias e audes para irrigao.
Entretanto, a maioria dos projetos iniciados na gesto de Epitcio
Pessoa ( exceo dos servios sanitrios) foi interrompida em 1925,
supostamente por causa das dificuldades financeiras do pas
(Hirschman, 1973:32-34).
19. Consulte-se a Mensagem apresentada Assemblia Legislativa
pelo governador Jos Joaquim Seabra (Bahia, Imprensa Oficial do
Estado, 1921:452-458; 1922:39-48, passim); e a Mensagem apresentada
Assemblia Legislativa pelo governador Francisco M. de Gis Calmon
(Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1926:180).
20. Decretos federais estabeleceram, entre 1891 e 1893, a
descentralizao do sistema de sade. (Em todo caso, as tentativas de
montagem de um sistema centralizado, por meio de uma Inspetoria
Geral de Higiene criada por Dom Pedro em 1886, nunca haviam se
concretizado. A prpria Inspetoria jamais exerceu qualquer papel
significativo, salvo no Distrito Federal e em So Paulo.) A legislao
federal republicana concedeu aos estados o controle dos servios,
exceto os porturios (Barbosa e Barbosa de Resende,
1909:97-108).
21. O professor da Faculdade de Medicina que ensinava
bacteriologia era Augusto Csar Viana; o poltico e membro do corpo
docente era Aurlio Rodrigues Viana (Moniz de Arago, 1923:465).
22. Governador Severino Vieira, Mensagens ao Legislativo de
1902, 1903 e 1904.
23. Cf. discurso do governador J.J. Seabra legislatura em 1915,
pp. 62-70.
24. Como os meios de comunicao com o sul do pas eram precrios, a
necessidade de contar com as importaes de soro de So Paulo (ou do
Rio de Janeiro) constitua um grave problema.
25. Comunicao pessoal ao autor, por escrito, em 17/9/1982.
26. Para um exemplo da aguda percepo de Piraj da Silva dos
problemas sanitrios no interior e nas reas de ocorrncia da malria
no litoral da Bahia, ver sua entrevista a A Tarde, 8/5/1918.
27. Carlos Burle de Figueiredo assumiu a direo do Instituto
Oswaldo Cruz da Bahia, sendo substitudo por Eduardo de Arajo. Arajo
estudou anatomia patolgica nos Estados Unidos a convite da Fundao
Rockefeller.
28. Ver as Mensagens apresentadas Assemblia Legislativa pelo
governador Francisco M. de Gis Calmon (Bahia, Imprensa Oficial do
Estado, 1926:68; 1927:100).
29. Governador Jos Marcelino, Mensagem Assemblia Legislativa do
Estado da Bahia. Oficinas da Imprensa "A Bahia", 1908:29-30.
30. Ver a Mensagem ao Congresso Estadual pelo governador Arajo
Pinho, 1909:20-25.
31. Mensagem apresentada Assemblia Geral Legislativa do Estado
da Bahia pelo governador Jos
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