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DA TEORIA E DA PRÁTICA DE “O SABER LOCAL” DE
CLIFFORD GEERTZ À FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL
DO DIREITO
Eliana Franco Teixeira1
RESUMO
O artigo aborda os conhecimentos principais do ‘saber local’
de Clifford Geertz, as sentenças de 28/12/2007 e 12/08/2008,
dispositivos legais que se referem à educação, em nível constitucional
e infraconstitucional, principalmente no que diz respeito às Diretrizes
Curriculares Nacionais de 2004. O presente texto relaciona a teoria
e a prática, por meio dos principais verbetes de ‘O saber local’, com
a aplicação da teoria nas sentenças Saramaka que justifica e explica
a inclusão da disciplina Antropologia nos currículos dos cursos de
bacharelado em Direito no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Saber Local. Direito. Teoria e Prática. Ensino
Jurídico Contextualizado. Formação do Profissional do Direito.
ABSTRACT
The article covers the key knowledge of “local knowledge”
of Clifford Geertz, the judgments of 28/12/2007 and 12/08/2008,
the provisions relating to education and infra-constitutional level,
particularly with regarding the National Curriculum Guidelines of
2004. In this work relates to the theory and practice, through the
main entrances of “local knowledge” to the application of theory in
the judgment of Saramaka and explains and justifies the inclusion
1 Doutoranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
do Pará. Docente da Faculdade de Belém e integrante do Núcleo Docente Estruturante (NDE).
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of the course Anthropology in the curriculum Bachelor of Law in
Brazil.
KEYWORDS: Local knowledge; Local Law, Theory and Practice,
legal education in the context, the Vocational Training for Law.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo trata da diversidade das ‘sensibilidades
jurídicas’ e do conhecimento desse importante tema para a formação
dos profissionais de Direito, a fim de que atuem de forma eficaz e
razoável juridicamente, observando os efeitos para as sociedades
envolvidas.
A propósito do trabalho desenvolvido pelo profissional do
Direito, é preciso destacar que, de forma geral, cabe a ele interpretar
os fatos e as normas jurídicas para exercer sua função de forma
coerente. Nessa esteira de ideias, esse profissional irá se defrontar com
situações corriqueiras em uma ‘sensibilidade jurídica determinada.
Entretanto, com o aumento das trocas culturais, e com a voracidade
dos Estados em se manterem soberanos nas relações internas e
internacionais, é necessário preparar esse profissional de forma mais
abrangente. Para tanto, é relevante oferecer-lhe oportunidade de
dominar o conhecimento local e internacional, sempre com os olhos
voltados para o ‘saber local’ e para toda a relação que existe entre os
Estados e seus compromissos assumidos com povos diversos e com os
tratados por eles reconhecidos.
O primeiro item trata da obra “O saber local” e de seu autor
Clifford Geertz; o segundo, refere-se aos verbetes da referida obra;
o terceiro, aplica esses conhecimentos às sentenças Saramaka; o
quarto, trata da importância dos conhecimentos antropológicos para
a formação dos profissionais do Direito; e o quinto, observa as normas
que tratam da educação e do ensino jurídico no Brasil.
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2 DA OBRA E DO AUTOR
Clifford Geertz, filósofo e antropólogo americano, nasceu em
São Francisco, em 1926, e faleceu em 2006, na Filadélfia.
Geertz tem grande importância na Antropologia porque funda
a ‘Antropologia Interpretativa’, com o objetivo de compreender
os significados dos sistemas culturais e revelar as diversas
‘sensibilidades jurídicas’. Para ele, a Antropologia é a resposta ao
pensamento moderno, que é pluralista e menos provinciano, porque
é ‘contextualizada, antiformalista e relativista’. Apesar de ele dispor
da Antropologia como resposta ao pensamento moderno, é preciso
observar que as características por ele descritas se coadunam com
a pós-modernidade descrita pelo Prof. Dr. Jayme Benvenuto Lima
Júnior, em suas aulas no Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Pará, no período de 15 a 17 de dezembro
de 2010.
A equação ‘antropologia interpretativa-pensamento moderno’
permite a Geertz reunir num mesmo livro artigos sobre temas um
pouco diferentes no lapso temporal de 1974-1982. Nessa perspectiva,
são esses os temas de sua obra “O saber local”:
1. os rumos recentes da teoria social;
2. a relação entre antropologia e crítica literária;
3. as dificuldades práticas envolvidas no empreendimento
antropológico;
4. o senso comum;
5. a arte;
6. o poder político;
7. a vida intelectual moderna;
8. a relação entre fato e lei.
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É importante observar que o que une os capítulos
é o método hermenêutico que o autor utiliza para
interpretação. O foco deste artigo é o capítulo 8, ‘A
relação entre fato e lei’. Nesse capítulo, Geertz utiliza
“casos sociais” para, na prática comprovar suas ideias
e mostrar aos demais estudiosos que a diversidade não
é só ritual de linguagem, mas, principalmente, de
‘sensibilidade jurídica’, ou seja, de sistema jurídico
e de sentido de justiça. Em seus ‘casos sociais’, ele
descobre que, como a ciência, a religião, a arte e a
antropologia, o Direito também é um ‘conhecimento
local’, é uma ‘construção local’, a ser pensada por
profissionais de todas as áreas e, especialmente, pelos
profissionais do Direito que estarão, vez por outra,
diante de situações no âmbito administrativo ou
judicial e também diante de sensibilidades jurídicas
distintas e não poderão agir como meros positivistas
abstraídos de qualquer percepção da diversidade,
não só cultural, mas também jurídica existente no
caso em tela. Essa coexistência de ‘sensibilidades
jurídicas’ é denominada por Geertz (1998, p. 331)
“pluralismo jurídico”.
3 DA TEORIA DE “O SABER LOCAL”
Geertz escolhe locais e palavras e atribui significados aos
sistemas jurídicos, utilizando-se da ‘hermenêutica interpretativa’.
Ele tem o objetivo de ‘compreender as compreensões diversas da nossa
compreensão’. Nesse sentido, assim como a navegação, a jardinagem
e a poesia, o direito e a etnografia, também são artesanatos locais:
funcionam à luz do saber local.
Dentre as semelhanças entre o Direito e a Antropologia, pode-
se observar a linguagem erudita, uma aura de fantasia e o fato de
ambos realizarem a tarefa artesanal de descobrir princípios gerais
em fatos paroquianos. E, nesse sentido, ele escolheu os locais e as
palavras para ter um recorte das sensibilidades jurídicas dos contextos
escolhidos. Para o desenvolvimento adequado do profissional do
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Direito, é preciso considerar que essa diversidade de sensibilidades
deve provocar nesse profissional uma abertura de mente, no sentido
de percepção, respeito e olhar no lugar do outro, para solucionar
questões que envolvem ‘sensibilidades jurídicas’, como as descritas da
teoria de Geertz. Assim, Direito e Antropologia estão intimamente
relacionados e, em tempos pós-modernos e de grande pluralismo
social e jurídico, não há como apartar essas ciências, sob pena de as
relações sociais retrocederem ao separatismo e à discriminação.
Apesar de o Direito e os profissionais do Direito já terem avançado bastante no quesito ‘relacionamento com outras áreas do
saber’, a verdade é que existe ainda, uma obstrução na relação do
Direito com questões culturais. Para minimizar, ou mesmo resolver
esse impasse, Geertz propõe sua ‘hermenêutica interpretativa’,
olhando primeiro em uma direção, depois em outra, a fim de
formular questões morais, políticas, intelectuais e jurídicas que são
importantes, tanto para esse profissional como para o antropólogo.
O profissional do Direito (PD) depara-se com uma explosão de
fatos, tendo que utilizar a ‘hermenêutica jurídica’ para solucioná-la.
Num diálogo entre Dworkin e Geertz, é possível relacioná-los para
oferecer alternativas ao PD, mostrando que, em questões difíceis, o juiz deve decidir, buscando sua convicção baseado nos melhores
argumentos para a situação e para o contexto e filtrando suas melhores
ideias e convicções para dar resposta à sociedade, demonstrando que o
Direito é uma construção.
Geertz apresenta uma constatação: a simplificação dos fatos,
a redução às capacidades genéricas dos guardiões da lei, são por si
mesmas, um processo inevitável e necessário. A preocupação que se
apresenta entre advogados e acusados não é a verdade dos fatos, a
história real, é a verdade a partir da lente de quem os interpreta.
Dessa forma, o que ocorre é uma representação, porém o problema é
que não se sabe ainda como essa representação deve acontecer, para ser
considerada adequada. O que se observa é que a linguagem ocidental
do processo judicial é, na verdade, uma tradução da linguagem da
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imaginação do que aconteceu. Com essa mudança de linguagem
não se deve mais buscar juntar leis e fatos, mas deve-se saber como
diferenciá-los.
O primeiro caso analisado por Geertz, ocorrido na ilha de Bali,
será resumido a seguir. Um balinês chamado Regreg pede providên-
cias do Conselho de sua aldeia, para que encontrem sua mulher que
fugiu com outro homem de outra aldeia, ou foi seqüestrada por ele.
Os conselheiros da aldeia decidiram que nada poderiam fazer, porque
assuntos de casamento, adultério e divórcio não são problemas da
aldeia, visto que o problema estava fora da jurisdição do Conselho e
que Regreg já deveria saber disso. A solução do problema estava nas
mãos dos grupos de parentes, os quais, em Bali, normalmente são
ciosos de suas prerrogativas. A família de Regreg não tinha poder
e tinha baixo status, de forma que não pôde ajudá-lo, a não ser com
conselhos. Regreg não se conformou com a situação e, cerca de oito
meses depois, quando chegou sua vez, não quis assumir um lugar no
Conselho da aldeia.
Na aldeia de Bali existe um sistema rotativo de composição do
Conselho, que é automático, em que os conselheiros tinham o man-
dato de três anos. A recusa de Regreg lhe traria graves consequên-
cias, porque os conselheiros tinham que inscrever os acontecimentos
nas folhas de bananeiras e os efeitos para ele seriam equivalentes a
pedir demissão, não só da aldeia, mas da própria raça humana. Ele
perderia a casa, os direitos políticos, o direito de se locomover na
aldeia e de usar os serviços da aldeia, além do direito sucessório e do
direito de convivência social.
No caso de Regreg, a punição não foi de pronto aplicada, por-
que os conselheiros se reuniram várias vezes, no sentido de impedi-lo
de tomar aquela medida, mas não conseguiram. Ele foi expulso e
também foi banido pelos familiares para evitar que eles mesmos fos-
sem banidos. Ele foi tratado como os cachorros, recebendo algumas
migalhas de comida.
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É preciso destacar que ninguém procurou saber os motivos que
levaram Regreg a tomar tal decisão.
O rei de Bali decidiu intervir a favor de Regreg. O rei é, para
os balineses, um semideus, que tem o poder para o bem e para o mal.
O rei era chefe regional do novo governo republicano e, na reunião do
Conselho, disse aos conselheiros que eles todos estavam numa nova
era e que não cabia mais aquele tipo de punição aplicada a Regreg.
Apesar da interferência real, na resposta local os conselheiros lembra-
ram ao soberano que o caso era assunto da aldeia e não do rei ou do
governo. No fim, Regreg continuou segregado e ficou perambulando
pela cidade.
Destacando a mudança do problema da transformação da lin-
guagem do imaginário para a interpretação, o caso de Regreg não
foi realmente avaliado pelos fatos, pelos motivos que ele teve para
não aceitar o cargo de conselheiro da aldeia. Os conselheiros não
queriam saber dos fatos, apenas que ele não queria aceitar o cargo de
conselheiro.
A visão do antropólogo cultural se concentra no significado, ou
seja, como os balineses fazem aquilo que fazem – de forma prática,
moral, jurídica - colocando seus atos em estruturas mais amplas
em seu lugar, organizando suas ações em seus termos. Já na visão
do profissional do Direito, sem preparo para uma visão holística de
aceitação da diversidade jurídica, essa decisão local seria questionada
pela não observação dos motivos e dos fatos que levaram Regreg
da indignação ao banimento, o que demonstraria não só uma falta
de noção de mundo, mas um desrespeito para com a sensibilidade
jurídica local.
Para Geertz, a Antropologia hermenêutica é uma ciência à
procura do significado do emaranhado de teias em que o homem
está preso. Para ele, o Direito é uma forma de ver o mundo e
vem acompanhado de um conjunto de atitudes práticas sobre o
gerenciamento de disputas que essa própria forma de ver o mundo
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impõe aos que a ela se apegam. A partir da mudança de foco, na
perspectiva do Direito, o autor analisa a relação entre fato e
julgamento a partir da dialética entre a linguagem de coerência
coletiva e a conseqüência específica.
Local
Contexto
Palavra
Significado Sensibilidade Jurídica
Justiça baseada em Mundo Islâmico Marrocos Haqq Verdade Depoimentos Mundo Índico Bali Dharma Dever Veredictos do Rei
Mundo da Malásia Polinésia
Java
Adat Consenso
social
Consenso social
Nos ‘casos sociais’ escolhidos, Geertz observa as ‘sensibilidades
jurídicas’, ou seja, os ‘sentidos de justiça’, nos mundos islâmico,
índico e malaio.
Ao realizar essas análises, Geertz se preocupa em esclarecer que
toma por base palavras que escolherá e, pela sua observação local,
dará significado a elas. Assim, ele opta por três palavras: haqq - do
árabe, que significa verdade, realidade, validade; dharma - de origem
sânscrita, que significa dever, obrigação, mérito; adat - de origem
árabe, significa consenso social.
Essas expressões guardam relação com as noções de Direito e de
Lei. Outra preocupação dele está em atribuir significados múltiplos
às expressões selecionadas em situações diferentes. Ele se preocupa,
também, com as dimensões históricas e regionais e a simplificação
desses termos deve ser constante no tempo, no espaço e em
popularidade. Ele delimitou ainda mais os mundos pesquisados, em
contextos e em locais específicos, como na tabela acima mencionada,
ou seja: quando fala de ‘Islã’, está se referindo ao Marrocos; quando
fala do ‘Mundo Índico’, está falando de Bali; quando fala de ‘Malásia’
está falando de Java.
Dentre as palavras escolhidas, de acordo com o local, a palavra
Haqq, com o significado de realidade, que pode ser utilizada para
dizer ‘você tem razão’, ‘você tem direito a isso’. Para o mundo
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islâmico, os fatos e normas não são percebidos a partir da conexão
de uma situação empírica e um princípio jurídico – que, para os
profissionais ocidentais do Direito, significa conexão entre o autor e o
fator e a junção com a norma. Para Geertz, a principal característica
da ‘sensibilidade jurídica islâmica’ está no ‘testemunho normativo’,
ou seja, um testemunho que não é dos fatos, mas da conduta do
implicado. Esse testemunho é caracterizado por ser oral. Nesse
sentido, Lawrence Rosen apud Geertz (1998, p. 252), que afirma,
sobre as práticas contemporâneas no Marrocos, que: “Não é o
documento que torna o homem confiável e sim o homem que dá
autenticidade ao documento.”
No mundo islâmico, existem os especialistas que são ‘peritos’,
‘experts’ que prestam testemunho nos tribunais como autoridades em
determinado assunto. Eles têm também os repórteres investigativos,
que buscam a verdade real dos fatos.
Geertz opta pela palavra dharma, que, no mundo índico, signi-
fica em palavras compostas com ela, o código de justiça mais adequa-
do para cada classe social.
É importante observar que a posição do Direito no Código de
Manu é uma posição do ‘direito natural’, ou seja, o direito não é
construído, ele simplesmente está na natureza e nós o encontramos.
No mundo índico, a falta de clareza e justiça nas decisões do
monarca possibilitou o surgimento dos Tribunais à moda do ocidente.
Geertz encontrou, em todas as culturas pesquisadas, o prin-
cípio da responsabilidade que deveria ser justificado pelos homens
cultos. As decisões eram tomadas da seguinte forma: ‘somos conde-
nados pelos juízes e punidos pelo rei, segundo o dharma’. A essência
da justiça era concretizada com decisões baseadas nos depoimentos.
Geertz conta ainda mais dois ‘casos sociais’. O primeiro, do
homem rico e polígamo (do mundo índico), que pode ser comparado
à história do rei Salomão, apresenta o julgamento de duas mulheres
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acerca do assassinato do filho de uma delas. A mais feia era a mãe
desprezada pelo marido. No final, a mãe foi condenada por ter
matado seu filho, porque o ‘juiz’ testou as duas acusadas, fazendo-as
andar pela sala, despidas. A mulher linda disse que preferia morrer a
abrir mão de seu dharma, enquanto a feia e invejosa andou despida,
levando o juiz à conclusão de que uma mulher que abria mão de seu
dharma seria capaz de matar uma criança. O segundo caso demonstra
ainda mais fortementemente a existência do dharma. É o caso de ‘Um
homem de força extraordinária’, que abandona a mulher e, quando
retorna, encontra um deus travestido de homem em seu lugar e
procura um juiz para decidir seu caso. O juiz, para saber quem era o
verdadeiro marido, indica que os dois deveriam carregar uma pedra.
O deus carregou a pedra com a maior facilidade e o homem, apesar de
forte, carregou a pedra com muita dificuldade, devido ao peso dela.
O juiz conclui que o verdadeiro marido era o que teve dificuldade
em carregar a pedra, visto que só um deus teria tanta facilidade em
carregar uma pedra tão pesada quanto aquela.
Com a vinda de indianos para estudar no ocidente, surge uma
fusão de procedimentos entre o ocidente e os hindus, aparecendo,
assim, o direito anglo-indiano. Ainda que experimentado com o
padrão da codificação ocidental, o Direito, para eles, não perdeu o
relacionamento com a vida local.
No direito malásio, a expressão escolhida é Adat, um sistema
de normas costumeiras, em que a justiça pressupõe uma harmonia
espiritual e o julgamento baseado no consenso, na unanimidade.
A tarefa do direito, nesse contexto, é buscar, ao mesmo tempo,
tranquilizar e persuadir. Nesse sentido, a busca da verdade para eles
(malaios), é uma tarefa retórica, uma aproximação dos pontos de vista
do uso persuasivo das palavras.
Geertz, para realizar a comparação entre as culturas, confronta
as estruturas de poder, destaca que a visão do direito não é autônoma
e que não serve apenas para o gerenciamento de conflitos de poder.
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4 DA PRÁTICA DE “O SABER LOCAL”
O caso do povo Saarmaka vs. Suriname trata da solicitação
da Associação de Autoridades Saramaka (AAS) e doze capitães
Saramaka demandando em nome próprio e em nome do povo, diante
da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com o objetivo de
pedir a delimitação de suas terras, em conformidade com o direito
consuetudinário, o reconhecimento jurídico de povo diante do Estado
do Suriname, para que, todas as vezes que fossem realizadas concessões
para exploração da terra, o povo Saramaka fosse consultado acerca das
concessões e que fosse beneficiado com as concessões de exploração.
Nas duas sentenças, o Estado utilizou algumas estratégias para
evitar sua exposição diante do Tribunal Internacional e, com isso,
dificultou o acesso daquele povo à justiça.
O entrosamento que existe entre os verbetes de Clifford
Geertz é evidente, uma vez que a Sentença, embora não se refira
expressamente à utilização de seus conhecimentos, refere-se ao ‘saber
local’, quando indica a participação dos Saramaka na avaliação do
que se refere à autorização de utilização das terras daquele povo. O
Estado, embora soberano sobre seu território, não pode determinar
uma intromissão nas terras daquele povo, que possui do poder de
autodeterminação. Existe aí um conflito que, na Teoria Realista das
Relações Internacionais com reflexos nacionais, se refere ao poder de
soberania e reconhecimento jurídico apenas do Estado, com exclusão
de representação daquele povo, conforme as aulas do Professor Jayme
Benvenuto Lima Júnior.
O ‘saber local’ imperou na decisão da Suprema Corte,
confirmando não só o conhecimento do autor Clifford Geertz,
mas os ensinamentos da professora Doutora Jane Felipe Beltrão,
principalmente no esclarecimento aos alunos do programa da
argumentação explicativa a perguntas que, com olhar ainda míope,
seria pouco provável responder de forma convincente: Como os
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Saramaka, nesse caso, ainda podem ser considerados um povo
com sensibilidades jurídicas diversas se já têm contato com os não
Saramaka? A resposta da professora é numa analogia com o contexto
da sala que se referia aos índios: O índio não deixa de ser índio se
ele dirige carro ou utilizada arma, assim como os japoneses e outros
povos também não deixam de corresponder às suas realidades sociais
porque utilizam de algum tipo de tecnologia que os norte-americanos
utilizam, por exemplo. É preciso esclarecer que essa resposta não é
ipsis litteris, a da Professora, por já se tratar da representação da autora
do presente artigo.
5 A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO DO ‘SABER LOCAL’ PARA A FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DO DIREITO
O profissional que teve a oportunidade de perceber um mundo
além da sua lente observou que culturas diferentes tratam de forma
diferente a solução de seus litígios e, essa análise se desenvolve
pela prática da interdisciplinaridade, ou seja, envolvendo-se
conhecimentos das sensibilidades jurídicas das sociedades em apreço
e a forma de se relacionar as diversas sociedades que convivem no
mesmo espaço territorial que se encontra sob a tutela do mesmo
Estado, como é o caso prático do ‘saber local’ do povo Saramaka, que
foi prejudicado, diante da legislação interna do Estado do Suriname,
pela estratégia utilizada por este e pela falta de formação profissional
com percepção da diversidade das sensibilidades jurídicas dos juízes
que atuaram internamente.
O objetivo da inclusão da antropologia e de seu conteúdo
é voltado para a proposta do ‘saber local’ não em si mesmo para
a formação dos profissionais do direito, mas para que estes atuem
adequadamente no capo administrativo e judicial, de forma a garantir
a realização de justiça não apenas com olhar em um sistema jurídico,
mas considerando os sistemas jurídicos imbricados na situação.
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Decisões como a de Regreg, do homem rico e polígamo,
do homem forte, são semelhantes a partir da hermenêutica
interpretativa de Geertz, à situação do povo Saramaka com situações
dos povos indígenas da Amazônia. Nessa região, não há como formar
positivistas, sob pena de realizarem verdadeiras atrocidades e serem
desrespeitosos com os povos indígenas.
O profissional do Direito pós-moderno deve estar preparado para
se permitir ver o mundo para além da lente do Direito, observando,
assim, os conteúdos dos tratados ratificados pelo Brasil que, embora
normas positivadas, se expressam em um conteúdo amplo e flexível
às realidades estatais participantes de um modo geral, porque, de
alguma forma observam os direitos humanos não na perspectiva do
pós-segunda guerra, como universalidade sem qualquer localidade,
mas compreendendo que existem compreensões diversas. Assim, o
olhar hermenêutico deve ser o proposto por Geertz, ou seja, para a
frente e para trás, para os lados, mudando sempre a direção, com a
utilização do relativismo, como um movimento de comparar nossa
visão de visão do mundo com outra visão, partindo da alteridade,
colocando-se no lugar do outro e vendo o mundo com seus olhos.
6 DA INCLUSÃO NA LEGISLAÇÃO DE DISCIPLINAS PROPEDÊUTICAS PARA FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DO DIREITO
Diante de tantas constatações, da posição de estudiosos entre a
modernidade e a pós-modernidade e da necessidade de se estabelecer o
diálogo entre sensibilidades jurídicas distintas, a legislação brasileira
inclui capítulo próprio na Constituição de 1988 para a Educação e
destaca em seu artigo 205 que a Educação deve ser realizada para
promover a formação profissional, para qualificação para o trabalho.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, regula a educação no Brasil, no formato infraconstitucional,
cumprindo de forma pormenorizada as premissas constitucionais.
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Em 29 de setembro de 2004, o Conselho Nacional de Educação
cria a Resolução nº 9, que expressa a necessidade de se organizar
o Curso de Bacharelado em Direito em três eixos: fundamental,
profissional e prático. No Eixo Fundamental, constam conteúdos
que estabelecem relação com outras áreas do saber, abrangendo
Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História,
Psicologia e Sociologia. Nesse sentido estão conhecimentos da
Antropologia, como os propostos por Geertz, de que o ‘o direito é
um saber construído localmente’. Sem os conteúdos estabelecidos no
Eixo Fundamental haveria um retrocesso na formação do profissional
do Direito, tendo em vista que um advogado, juiz, promotor,
defensor, entre outras atividades que esse profissional possa exercer,
ele deverá estar preparado para agir com uma visão pós–moderna,
aceitando as realidades tal qual elas se apresentam e percebendo que
não se pode impor a legislação de uma sociedade a outra. Ainda de
acordo com a Resolução, em seu artigo 2º, § 1º, incisos IV e V, a
interdisciplinaridade e a integração entre a teoria e a prática também
se apresentam com a inserção de conhecimentos da Antropologia, em
especial com os conhecimentos da obra apreciada neste artigo.
Todas essas indicações de legislações inclusivas de disciplinas
propedêuticas, como a Antropologia, no rol de conhecimento dos
profissionais do Direito, só demonstram que é possível construir
uma realidade jurídica melhor e compreender que não existe uma
uniformização, mas um reconhecimento de que existem contextos
culturais diferentes que devem se relacionar de forma respeitosa.
Mais uma vez o direito positivo, perde para a transformação
social pela condição de ser produto da sociedade e das construções
sociais. Nesse sentido, as Diretrizes Curriculares vêm em socorro
dessa atual percepção de mundo abrindo as mentes dos futuros
bacharéis em Direito.
A necessidade do saber local para a formação do profissional do
Direito está em ‘aprender a aprender’, para que como empreendedor
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social, possa bem atuar e ajudar na construção de um Direito melhor,
mais respeitador das diferenças. Com olhos voltados aos cursos de
bacharelado em Direito no Brasil, ressalte-se, no que diz respeito à
justiça, o sentido atribuído pelo então Presidente da Ordem dos Ad-
vogados do Brasil, em 2006, Busato (2006, p. 7): “Justiça no sentido
mais amplo do termo, que indica inclusão social de amplas camadas
da população; e justiça no sentido estrito, institucional, que diz res-
peito à qualidade da prestação jurisdicional em nosso país”.
O significado da inclusão da disciplina Antropologia visa não
rotular experiências para separá-las em caixas, mas indentificá-las e
compreender seus significados. Na relação com o Direito, esse pro-
cesso inter e transdisciplinar se constrói na perspectiva de formar o
profissional em todas as suas dimensões, superando o individualismo,
a desesperança, os desajustamentos, enfim, problemas existenciais,
oriundos de uma formação fragmentadora, proporcionado uma inte-
gração política, jurídica e social desse profissional em seu meio e com
olhar aberto para outras sensibilidades jurídicas.
7 CONCLUSÃO
A importância da inclusão da Antropologia está clara, porque
mostrará o mundo sob ópticas diferentes, evitando decisões injustas
e abordagens inadequadas dos profissionais do Direito.
Os trechos mais importantes da obra ‘O saber local’ destacam:
a importância da Antropologia como disciplina que colabora com
o Direito, no que se refere às diversidades culturais e realidades
jurídicas distintas; o método hermenêutico, como ir e vir, propondo
uma visão sob diversos ângulos do Direito; os casos mencionados
como demonstração de que os procedimentos comprobatórios são
diferenciados de uma sociedade para outra; e a influência ocidental
em alguns tribunais orientais (Marrocos, Bali e Java) atualmente.
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As expressões escolhidas por Geertz, o haqq, o dharma e o adat
podem ser chamadas de ‘Direito’? Caso o profissional do Direito não
tivesse à sua disposição uma formação como a descrita nas diretrizes
curriculares nº 09, provavelmente ele seria um técnico, um positivis-
ta, com visão apequenada de que não se trata de direito, porque não
se expressam o positivismo, mas com essa nova estrutura curricular,
os profissionais que se formaram e se formarão têm a oportunidade
de tirar a viseira positivista e perceber que o Direito não é só o que o
ocidente estabelece, mas é produto do saber da cada local.
Geertz menciona dois casos sociais e, tanto no primeiro caso
(do homem rico polígamo), como no segundo (do homem forte), é
preciso observar que, para o profissional do Direito no Brasil, essas
deduções, a partir de tarefas aplicadas pelo juiz, dificilmente aconte-
ceriam das formas mencionadas. Portanto, cabe aos profissionais do
Direito em questões de sensibilidades jurídicas, não dos casos apre-
sentados por Geertz, mas de nossa realidade local, como de situações
ocorridas com indígenas e com não indígenas, analisar o caso nos
moldes da interpretação desse autor.
Assim como o método utilizado por Geertz é a hermenêutica,
para Dworkin não é diferente, também será a hermenêutica o método
de interpretação do juiz. Há, portanto, relação direta entre autores de
áreas diversas que devem ser observadas pelos operadores a fim de se
entregarem devidamente à sua tarefa principal, que é a decolaborar
para a realização da justiça e para a harmonização das relações sociais.
O caso do povo Saramaka é outra prova concreta de que existem
realidades diferentes, sensibilidades jurídicas diferentes e que devem
ser observadas pelas sociedades, pelo Estado e pelo Direito. Não
pode o Direito se curvar à vontade do Estado, numa relação de
superioridade em relação àquele povo. Ainda há muita dificuldade
e falta de interesse político que circundam situações como essa, mas
é possível perceber o início de uma construção de melhores relações
entre os povos e os Estados e entre as diversas sensibilidades jurídicas.
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A necessidade de ampliar a visão de mundo dos profissionais do
Direito, além de incontestável, está prevista nas legislações brasileiras
implícita e explicitamente, em especial nas Diretrizes Curriculares nº
09/ 2004.
Espera-se que, como processo de construção, a Antropologia
e o Direito possam conviver com a proposta de satisfazer um dos
princípios básicos do Direito: a Justiça.
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REFERÊNCIAS
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de
outubro de 1988.
. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 996. Rio de Janeiro:
Edições Consultor, 1996.
. Ministério da Educação. Resolução CNE nº 09, de 29 de
setembro de 2004. Brasília: Diário Oficial, 01/10/2004, nº 190, seção 1.
BUSATO, R. A.. OAB Ensino Jurídico – O futuro da universidade e os
cursos de direito: novos caminhos para formação profissional. Brasília,
DF: OAB, Conselho Federal, 2006, p. 7.
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS.
Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam. Sentencia del 28 de noviembro de
2007 (Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas): p. 1-67
(Manuscrito e em meio digital)
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS.
Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam. Sentencia del 12 de agosto de
2008 (Interpretación de La sentencia de excepciones preliminares, fondo,
reparaciones y costas): p. 1-18 (Manuscrito e em meio digital)
DWORKIN, R.. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
GEERTZ, C.. O saber local. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
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