UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO CURSO DE DIREITO GEAILSON SOARES PEREIRA DA METAFÍSICA À FILOSOFIA DA LINGUAGEM: A INSUFICIÊNCIA DA HERMENÊUTICA JURÍDICA CLÁSSICA NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Orientador: Dr. José Diniz de Moraes NATAL / RN 2014
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DA METAFÍSICA À FILOSOFIA DA LINGUAGEM: A INSUFICIÊNCIA DA … · Da metafísica à filosofia da linguagem: a insuficiência da hermenêutica jurídica clássica na construção
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
DEPARTAMENTO DE DIREITO CURSO DE DIREITO
GEAILSON SOARES PEREIRA
DA METAFÍSICA À FILOSOFIA DA LINGUAGEM: A INSUFICIÊNCIA
DA HERMENÊUTICA JURÍDICA CLÁSSICA NA CONSTRUÇÃO DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Orientador: Dr. José Diniz de Moraes
NATAL / RN
2014
GEAILSON SOARES PEREIRA
DA METAFÍSICA À FILOSOFIA DA LINGUAGEM: A INSUFICIÊNCIA
DA HERMENÊUTICA JURÍDICA CLÁSSICA NA CONSTRUÇÃO DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Monografia apresentada ao Curso de Direito
sob a orientação do Professor Dr. José Diniz de
Moraes como requisito parcial para obtenção
do título de bacharel em Direito, do Centro de
Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
NATAL / RN
2014
Catalogação da Publicação na Fonte.
UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Pereira, Geailson Soares.
Da metafísica à filosofia da linguagem: a insuficiência da hermenêutica
jurídica clássica na construção do estado democrático de direito/ Geailson
Soares Pereira. - Natal, RN, 2014.
80f.
Orientador: Profº. Dr. José Diniz de Moraes.
Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Departamento de
Direito.
1. Hermenêutica jurídica - Monografia. 2. Filosofia da linguagem -
Monografia. 3. Teoria do discurso - Monografia. 4. Giro linguístico –
Monografia. 5. Pragmática - Monografia. I. Moraes, José Diniz de. II.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BS/CCSA CDU 340
GEAILSON SOARES PEREIRA
DA METAFÍSICA À FILOSOFIA DA LINGUAGEM: A INSUFICIÊNCIA
DA HERMENÊUTICA JURÍDICA CLÁSSICA NA CONSTRUÇÃO DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Monografia apresentada ao Curso de Direito, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em
A Deus, por me iluminar nas escolhas e, em outras, decidir por mim.
Aos meus pais, Neném de Zé Benedito e Raimunda de Zé de Afonso ,
pelos incentivos e por serem provas vivas de que dignidade independe de diploma.
À minha esposa Irândia, pelo carinho, paciência e amor incondicionais.
Ao professor Doutor José Diniz de Moraes pela amizade, que vem sendo
construída desde 2010, pelas orientações e pelo apoio durante todo o curso de
Direito. Nesse ínterim, fez despertar neste discente o interesse pelo estudo da
Filosofia e da Filosofia da Linguagem, sem o qual esse trabalho não seria possível.
Aos professores de Hermenêutica Jurídica e Teoria da Argumentação, Mestre
Luciano Athayde Chaves e Mestra Mariana de Siqueira, responsáveis por
despertar neste discente a paixão pelo estudo da Hermenêutica Jurídica.
À professora Mestra Ilaydiany Cristina Oliveira da Silva, pelas orientações
referentes à Metodologia da Pesquisa.
Aos meus tios, em especial, Graça, Deusdeth e Daguia, pela motivação.
Agradecimentos ao meu amigo Juscelino (Juça) pelos incentivos e apoio em
momentos difíceis.
Agradeço aos responsáveis pelas políticas de inclusão da UFRN porque, sem
o Argumento de Inclusão, seria pouco provável este discente cursar Direito numa
Universidade Federal.
Aos amigos conquistados durante esse período: colegas de curso,
coordenação, administração e professores da graduação. Agradeço a todos, enfim,
que ajudaram de maneira ou de outra, à feitura deste trabalho.
“[...] o intérprete não possui a linguagem; é a linguagem que o possui, desde-
sempre; é, enfim, aquilo que nos carrega” (Lenio Streck)
RESUMO
Estuda a hermenêutica jurídica sob a perspectiva da metafísica clássica e da filosofia da linguagem. Ressalta a diferença entre texto jurídico e norma jurídica, assim como a relação entre Direito e Linguagem. Compreende a semântica clássica a partir da ontologia de Platão. Demonstra as características do primeiro giro linguístico, em especial a importância dada à semântica e à referência. Enfoca a superação do modelo subjetivista da relação sujeito-objeto adotada pela Filosofia da Consciência de Descartes e Kant. Ressalta as soluções para os problemas hermenêuticos com base no estudo da Filosofia da Linguagem a partir da reviravolta linguístico-pragmática proposta por Ludwig Joseph Johann Wittgenstein, cujo novo paradigma é o enfoque no viés pragmático e na relação intersubjetiva sujeito-sujeito. Descreve a metodologia clássica da hermenêutica jurídica proposta por Friedrich Carl von Savigny e o panorama histórico da Hermenêutica Jurídica no Brasil. Enfatiza a insuficiência dos cânones hermenêuticos para a interpretação do texto jurídico no contexto do Estado Democrático de Direito. Ressalta que a crise da hermenêutica jurídica decorre do apego ao modelo calcado na filosofia da consciência e de uma interpretação de viés patrimonialista, em contraposição ao que modelo existencial proposto pela Constituição de 1988. Defende a possibilidade de superação da crise com base na interpretação do Direito tendo como prisma teórico os aportes da filosofia da linguagem. Compreende como seria a interpretação do texto jurídico com base em cada um dos modelos, quais sejam, na semiótica jurídica, na hermenêutica filosófica de Gadamer, na pragmática transcendente de Karl-Otto Apel e na pragmática universal de Jürgen Habermas. Descreve os problemas de cada uma das propostas hermenêuticas. Conclui que a teoria do discurso, tal como proposta por Apel e Habermas, fornece condições para a superação da crise de dupla face do Direito e possibilidade de efetivação do Estado Democrático de Direito. Palavras-chave: Hermenêutica Jurídica. Filosofia da Linguagem. Teoria do discurso. Giro linguístico. Pragmática.
ABSTRACT
Studying the legal interpretation from the perspective of classical metaphysics and philosophy of language . Emphasizes the difference between legal text and legal norm , as is the relationship between law and language . Comprises the classical semantics from the ontology of Plato . Demonstrates the features of the first linguistic turn , in particular the importance given to semantics and reference. Focuses on overcoming the subjectivist model of the subject- object philosophy adopted by the philosophy of consciousness of Descartes and Kant . Underscores solutions to problems based on hermeneutical study of philosophy of language from the linguistic- pragmatic twist proposed by Johann Joseph Ludwig Wittgenstein , whose new paradigm is the focus on the pragmatic bias and intersubjective subject-subject relationship . Describes the classical methodology of legal interpretation proposed by Friedrich Carl von Savigny and the historical foreshortening of Legal Hermeneutics in Brazil . Emphasizes the lack of hermeneutical canons for the interpretation of legal text in the context of a democratic state . Emphasizes that the crisis of legal interpretation arises from attachment to model underpinned by the philosophy of consciousness and a patrimonial interpretation bias, in contrast to what existential model proposed by the 1988 Constitution . It should be possible to overcome the crisis based on the interpretation of law by the theoretical perspective of the contributions of philosophy of language . Understands how would the interpretation of the legal text based on each model , namely , the legal semiotics, the Gadamer’s philosophical hermeneutics, the Karl - Otto Apel’s transcendental pragmatics of and Jürgen Habermas's universal pragmatics . Describes the problems of each of the hermeneutic proposed . Concludes that the discourse theory , as proposed by Apel and Habermas, provides conditions for overcoming the dual face of law and possibility of realization of the democratic rule of law crisis. Keywords: Legal Hermeneutics. Philosophy of Language. Discourse theory.
O processo de interpretação das normas jurídicas apresenta atualmente velhos
problemas que dizem respeito não só a Hermenêutica Jurídica, mas, em especial, à Teoria
Geral do Direito e à Filosofia do Direito, comprometendo, por conseguinte, a própria
condição de Estado Democrático de Direito instaurada pela Constituição Federal de 1988.
A Constituição de 1988 trouxe, a reboque, a possibilidade de resgate das dívidas
sociais que assolam o país. Ocorre que nesse primeiro quarto de século da Constituição
Federal, o caráter patrimonialista do Direito tem se sobreposto, em regra, às questões
existenciais. De outro lado, a Hermenêutica Jurídica permanece presa aos cânones
hermenêuticos do século XIX, impedindo que os aportes da reviravolta linguístico-pragmática
cheguem ao mundo jurídico.
Partindo do pressuposto de que a compreensão do fenômeno hermenêutico somente é
possível na linguagem e que, justamente por ser o Direito uma linguagem ordinária ambígua e
vaga, não se deve confundir o texto jurídico com aquilo que resulta do trabalho do
hermeneuta, de modo que a superação do problema requer uma tomada de posição na e a
partir da linguagem.
Assim, como as questões atuais da hermenêutica jurídica envolvem questões
filosóficas que dizem respeito ao significado dos signos linguísticos e remontam à semântica
tradicional da metafísica ocidental, compreendê-las requer um breve panorama histórico da
ontologia a começar pela Grécia Antiga, em especial, pelo idealismo platônico, seguindo
caminho para a filosofia da consciência kantiana e desaguando no primeiro giro linguístico
para, em seguida, compreender o giro linguístico pragmático que revolucionou a filosofia em
meados do século XX.
Compreendido esse panorama histórico da filosofia, se faz necessário passar ao
estudo da Hermenêutica Jurídica desde as suas origens porque, enquanto fenômeno social
anterior à escrita, Direito e interpretação nascem nas sociedades arcaicas. Dada a importância
de Friedrich Carl von Savigny, esse estudo parte da interpretação do Direito tomando como
marco histórico Savigny para compreender os cânones clássicos gizados por ele há mais ou
menos duzentos anos e que continuam a influenciar as gerações de juristas que lhe sucederam.
Nesse ínterim, a instauração do Estado Democrático de Direito pela Constituição de
1988 e a ideia de força normativa das cartas constitucionais a partir dos pós-Guerras fez surgir
a necessidade de tratar as normas constitucionais e, em especial, as questões existenciais,
12
como normas de aplicação imediata. Desse choque surge a crise de dupla face do Direito
denunciada por Lenio Streck, de modo que sua superação requer um novo olhar sobre a
interpretação do Direito.
O modelo de interpretação da norma jurídica adotado no Brasil e que atravessa
gerações caracteriza-se por aquilo que Warat chamou na década de 1980 de senso comum
teórico dos juristas. Formado por um conjunto de crenças descontextualizadas, ele desemboca
na crise de dupla face, pois ignora os aportes da reviravolta linguístico-pragmática ocorrida no
pensamento moderno no segundo quarto do século passado a partir dos escritos de Ludwig
Wittgenstein. Além disso, a efetivação do modelo existencialista proposto pela Constituição
de 1988 é ofuscado pelo jaez patrimonialista do Código de Beviláqua, que se repristina a
cada interpretação descontextualizada do modelo de Estado Democrático, evanescendo a
efetiva instauração do paradigma proposto pela Lei Maior de 1988.
Como propostas para a superação dessa crise, a semiótica jurídica, a hermenêutica
filosófica, a pragmática transcendente e a pragmática universal situam-se dentro daquilo que
ficou conhecido como reviravolta linguístico-pragmática da filosofia contemporânea. Ao
contrário do modelo solipsista da filosofia da consciência, na perspectiva da reviravolta
citada, com os quatro modelos, propõe-se uma interpretação intersubjetiva do texto jurídico,
superando a ultrapassada relação sujeito-objeto e adotando, finalmente, a linguagem como
verdadeira condição para construção da norma jurídica sob o enfoque da relação sujeito-
sujeito.
Ocorre que um ou outro modelo, ao invés de soluções adequadas, pode(m) apresentar
velhos problemas. Nessa perspectiva, ousa-se questionar, inclusive, as propostas da
hermenêutica filosófica gadameriana, adotada no Brasil por Lenio Streck, e da semiótica
jurídica, defendida no Brasil pela Escola Paulista de Paulo de Barros Carvalho. Lança-se,
portanto, a proposta de uma hermenêutica discursiva com base nas propostas de Apel e
Habermas para a superação da crise de paradigmas e para a efetiva entrada do Brasil no
modelo de Estado Democrático de Direito.
Para cumprir a proposta desse trabalho, o primeiro capítulo tratará da íntima relação
entre hermenêutica jurídica e linguagem. O segundo capítulo mostrará um panorama histórico
que vai da metafísica clássica à filosofia da linguagem, fornecendo assim subsídios para a
compreensão da hermenêutica jurídica sob tais perspectivas. O terceiro capítulo se ocupará da
interpretação do texto jurídico no Ocidente antes e depois de Savigny para compreender a
hermenêutica praticada no Brasil e a crise na qual ela se encontra. O quinto capítulo oferecerá
13
um novo modelo hermenêutico, tendo como paradigma a filosofia da linguagem. Para tanto,
enfatiza quatro propostas para a superação da crise da hermenêutica jurídica.
O método usado será a pesquisa bibliográfica no âmbito da Hermenêutica Jurídica e
da Filosofia da Linguagem. Esporadicamente, citam-se algumas decisões judiciais com o
intuito de demonstrar a crise hermenêutica.
14
2 A RELAÇÃO ENTRE HERMENÊUTICA JURÍDICA E LINGUAGEM
A origem da Hermenêutica Jurídica remonta aos gregos e alexandrinos.
Enquanto signo linguístico ou algo que representa1 um objeto abstrato ou concreto, o termo
Hermenêutica deriva do grego hermeneia, cujo significado, no contexto deste trabalho, é
ciência da interpretação. A tradição mostra que há certa ligação com a mitologia grega,
porquanto ali Hermes era o mensageiro responsável por interpretar o dito pelos deuses
olímpicos e transmiti-lo aos humanos em linguagem articulada2, de modo que a mensagem
era sempre intermediada, porquanto os homens não tinham acesso ao significado dela, senão
através de deuses.
Inicialmente, a Hermenêutica surgiu para a interpretação dos textos religiosos,
estendendo-se posteriormente aos textos jurídicos em virtude das semelhanças que lhe são
inerentes3. A preocupação com o significado dos textos tem precedentes que vão da
Antiguidade grega, romana e judaica, passa pelos teólogos do cristianismo, adentra o
pensamento jurídico moderno e desemboca na pós-modernidade4.
Foi a partir da Idade Média, no século XI, que a teoria jurídica nasceu como
disciplina universitária em Bolonha, embora ainda conservasse o jaez prudencial dos
romanos. Os intérpretes dos textos jurídicos ficaram conhecidos como glosadores em virtude
das glosas marginais que escreviam nos textos jurídicos. Eles praticavam uma interpretação
gramatical e filológica usando técnicas que provinham do Trivium- Gramática, Retórica e
Dialética, daí o caráter eminentemente exegético da interpretação5.
Na França, a Revolução Francesa tratou de colocar freios na atividade
interpretativa dos juízes que deveriam ser apenas “a boca da lei”. O positivismo jurídico
1 Não que haja representação fora de um dado contexto. Na verdade, em geral um signo linguístico não denota
apenas “um único” objeto, pois o aspecto pragmático contribui para a construção do significado denotado por
aquele. Nesse sentido, Peirce (PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 4. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2010, p.
469-470) esclarece que a palavra Signo pode ser “[...] usada para denotar um objeto perceptível, ou apenas
imaginável, ou mesmo inimaginável num certo sentido – pois a palavra ‘estrela’, que é um Signo, não é
imaginável, dado que não é esta palavra em si mesma que pode ser transposta para o papel ou pronunciada,
mas apenas um de seus aspectos, e uma vez que é a mesma palavra quando escrita e quando pronunciada,
sendo, no entanto, uma palavra quando significa ‘astro com luz própria’ e outra totalmente distinta quando
significa ‘artista célebre’ e uma terceira quando se refere a ‘sorte’. Mas, para que algo possa ser um Signo,
esse algo deve ‘representar’, como costumamos dizer, alguma outra coisa, chamada seu Objeto [...]”. 2 NEVES, Maria Amélia Carreira das. Semiótica linguística e hermenêutica do texto jurídico. Lisboa: Instituto
Piaget, 2008. 3 SALDANHA, Nelson. Ordem e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 250.
4 VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 179. No
entanto, o autor discorda da ideia de uma filosofia moderna ou de um sistema jurídico moderno, dado a
quantidade de doutrinas opostas. Da mesma forma, sustenta a existência de várias “Idades Médias”. 5 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São
Paulo:Atlas, 2010, p. 38-39.
15
fundado por Hobbes funcionou como uma engenhosa máquina servil usada para garantir a
propriedade privada da elite burguesa. A lei deveria ser a vontade do Leviatã, não cabendo
aos juízes margens para interpretações6.
Nesse contexto do positivismo jurídico e do ocaso do Direito natural moderno,
Savigny foi responsável por criar uma metodologia que veio a influenciar de forma
significativa a literatura juscientífica do século XIX7, de modo que é possível falar numa
interpretação jurídica antes e depois do pai da escola histórica.
Savigny defende, em seus escritos de juventude, que o intérprete do direito
deveria se colocar na posição do legislador e, fazendo uso dos elementos lógico, gramatical e
histórico, atingiria o pensamento da lei. Para tanto, seria preciso conhecer a legislação como
um todo (elemento sistemático). A interpretação não poderia ser extensiva, nem restritiva ou
teleológica, embora admitisse a analogia, já que esta seria mera complementação da lei. Tais
proibições, é verdade, são deixadas de lado na maturidade quando o pai da escola histórica
passa a considerar o espírito do povo como verdadeira fonte do Direito, em detrimento da lei8.
Mesmo com a metodologia de Savigny, a concepção oitocentista de
desconfiança nos juízes e, consequentemente, de interpretação meramente gramatical sofrerá
significativo impacto nos escombros da II Guerra Mundial pelo advento do
Neoconstitucionalismo.
O Neoconstitucionalismo, termo usado para se referir ao novo modelo de
direito constitucional, denota um conjunto de transformações caracterizadas por a) a
consolidação do Estado Constitucional de Direito ao longo do século XX, sob a perspectiva
histórica; b) o pós-positivismo, colocando os direitos fundamentais no centro do ordenamento
e reaproximando o direito da ética; c) o conjunto de mudanças teóricas, dentre elas a
concepção de força normativa da constituição, a expansão da jurisdição constitucional
juntamente com a adoção de um novo modelo de interpretação fundado na Constituição9.
Embora a Hermenêutica enquanto disciplina propedêutica dos cursos jurídicos
tenha assumido posição relevante no atual contexto do Neoconstitucionalismo, sozinha não
oferece ferramentas suficientes para a interpretação do texto jurídico. Daí que sem o auxílio
de disciplinas como a Filosofia do Direito, a Sociologia do Direito, a Ciência Política, e de
6 VILLEY, Michel, VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 752. 7 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 5.
8 Ibid., p. 10-13.
9 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito
constitucional no Brasil. Themis: Revista da ESMEC, Fortaleza, v. 4 , n. 2, p. 29.
16
todas as disciplinas propedêuticas, o intérprete não consegue enxergar a intersubjetividade do
fenômeno jurídico em toda sua amplitude e, consequentemente, a interpretação do texto
jurídico quedará alijada.
Pode-se inclusive afirmar a insuficiência da interpretação do direito sem o
auxílio destas disciplinas, as quais não recebem a importância necessária pelos alunos no
início do curso, já que os discentes preferem ver Códigos como símbolos da justiça:
As disciplinas propedêuticas, essenciais para a aprendizagem das
ferramentas metodológicas voltadas ao estudo epistemológico do Direito,
são normalmente oferecidas pelas escolas jurídicas logo no início dos
programas, não atraindo, pela pedagogia tradicional, a atenção e o interesse
dos alunos, que aguardam, ansiosamente, o triunfal momento de ter acesso à
leitura dos Códigos, os quais, apesar do volume e do peso, são vistos amiúde
nas mãos dos estudantes, como se fossem símbolos inexoráveis do mundo da
justiça10
.
Não bastasse, outra dificuldade de interpretação do texto jurídico decorre do
fato de a Hermenêutica Jurídica partilhar da sorte da linguagem. Nesse sentido, Larenz ensina:
Que o significado preciso de um texto legislativo seja constantemente
problemático depende, em primeira linha, do facto de a linguagem corrente,
de que a lei se serve em grande medida, não utilizar, ao contrário de uma
lógica axiomatizada e da linguagem das ciências, conceitos cujo âmbito
esteja rigorosamente fixado, mas termos mais ou menos flexíveis, cujo
significado possível oscila dentro de uma larga faixa e que pode ser diferente
segundo as circunstâncias, a relação objectiva e o contexto do discurso, a
colocação da frase e a entoação de uma palavra11
.
Enquanto linguagem ordinária ou natural especializada, o Direito é ambíguo e
vago. Em verdade, o problema da interpretação do texto jurídico decorre, em especial, do
caráter ambíguo e vago das palavras. Aurora Carvalho ensina que ambiguidade é
característica dos termos com mais de um significado, enquanto que vaguidade é entendida
como “falta de precisão” das palavras12
, de modo que todas as palavras possuem essas duas
características.
Eros Grau endossa esse posicionamento segundo o qual se interpreta o direito
por que a linguagem jurídica é ambígua e imprecisa; além disso, por meio da interpretação,
compreende-se fatos. A interpretação é, além de declaratória, constitutiva, isto é, ela não se
10
CHAVES, Luciano Athayde. Interpretação, aplicação e integração do direito processual do trabalho. In:
CHAVES, Luciano Athayde. Curso de processo do trabalho. São Paulo: LTR, 2009, p. 18. 11
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 439. 12
CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o construtivismo lógico-semântico. São
Paulo: Noeses, 2009, p. 61-62.
17
reduz à compreensão de textos e fatos, mas parte dela e desemboca na produção da norma
jurídica para determinada solução13
.
Quanto ao significado das palavras, fala-se em aspectos onomasiológico e o
semasiológico. Embora possam ser idênticos, o aspecto onomasiológico ou uso corrente da
palavra nem sempre se confunde com o aspecto semasiológico ou significação normativa
dela, daí a necessidade de se encontrar parâmetros para a interpretação do texto jurídico por
meio da dogmática hermenêutica com vistas à decidibilidade de conflitos14
.
Além disso, fora da linguagem, não há interpretação. Interpreta-se por que se
compreende15
, afinal, a compreensão é a própria condição de possibilidade para se interpretar
o texto jurídico. Sem linguagem, não há conhecimento. A interpretação do texto jurídico não
pode ser feita “fora” da linguagem. Essa questão diz respeito, em particular, à diferenciação
ontológica entre texto e norma.
2.1 A RELAÇÃO ENTRE TEXTO E NORMA
Na perspectiva adotada nesse trabalho, não há que confundir texto e norma.
Embora ambos carreguem a característica de linguagem, não se confundem, porquanto a
norma é produto do texto interpretado.
Nesse sentido, Robles ensina que direito é linguagem e se manifesta,
primeiramente, como um texto bruto composto de materiais diversos. Essa obra bruta se
transforma em sistema normativo através do trabalho dos hermeneutas. O sistema (ou
conjunto de normas jurídicas) está em constante interação com o texto bruto, de modo que um
alimenta o outro16
.
Na mesma direção é a tese defendida por Grau, segundo a qual não são as
normas que são interpretadas, mas o texto normativo. As normas são resultados da
interpretação do texto, por conseguinte, norma e texto não se confundem. Através da
interpretação, enunciados são transformados em normas. O ordenamento jurídico, sob o
13
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed.- São Paulo:
Malheiros Editores, 2006, p. 26 14
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São
Paulo: Atlas, 2010, p. 220-221. 15
STRECK, Lenio. Os métodos de interpretação, a metafísica e de como não há um grundmethode na
hermenêutica: o contributo à luz do ontological turn. In: MELLO, Cleyson M.; FRAGA, Thelma (Org.).
Novos direitos: os paradigmas da pós-modernidade. Niterói: Impetus, 2004, p. 38. 16
ROBLES, Gregório. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito. Trad. de
Roberto Barbosa Alves. São Paulo: Manole, 2005, p. 6-7.
18
prisma histórico-concreto, pode ser visto como conjunto de interpretações ou normas. Os
textos jurídicos – tais quais disposições, enunciados – são “normas potenciais”, pois é o
intérprete que produz o significado da norma17
. Essa característica faz com que os intérpretes
incorram em grandes equívocos ao interpretar o texto legal visando a construir a norma
jurídica.
O texto não se confunde com a norma, mas é preciso esclarecer que essa
dualidade não é metafísica. Streck, ao tratar dessa questão, ressalta: “[...] o texto não subsiste
como texto; não há texto isolado da norma! [...] Em síntese, texto e norma são coisas distintas,
mas não separadas, no sentido de que possam subsistir um sem o outro.”18
.
Portanto, é do trabalho desenvolvido com o texto que a norma surge como
produto. Sem interpretar, não há norma. Demonstrada a questão da diferença entre texto e
norma, assim como a da ambiguidade e vaguidade das palavras, resta induvidosa a
importância da interpretação do texto jurídico que, para além das grandes escolas jurídicas,
repousa na própria Filosofia.
17
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed.- São Paulo:
Malheiros Editores, 2006, p. 86-87. Embora o intérprete, por si só, não legitime esse significado. Este é, aliás,
o grande problema não superado pela maioria dos juristas atualmente. 18
STRECK, Lenio. Os métodos de interpretação, a metafísica e de como não há um grundmethode na
hermenêutica: o contributo à luz do ontological turn. In: MELLO, Cleyson M.; FRAGA, Thelma (Org.).
Novos direitos: os paradigmas da pós-modernidade. Niterói: Impetus, 2004, p. 62-63.
19
3 DA METAFÍSICA À FILOSOFIA DA LINGUAGEM: SEMÂNTICA
TRADICIONAL, VIRADA LINGUÍSTICA E REVIRAVOLTA LINGUÍSTICO
PRAGMÁTICA
3.1 A SEMÂNTICA CLÁSSICA DE PLATÃO A KANT
Crátilo, de Platão, pode ser considerada a primeira obra de “filosofia da
linguagem”19
. Essa obra é um tratado e discussão crítica sobre linguagem, na qual se discute
duas teses: o naturalismo, defendido por Crátilo, segundo o qual cada coisa tem um nome por
natureza e, defendido por Heráclito, o convencionalismo que prega a ligação do nome e a
coisa como algo arbitrário e convencional.
A idealidade da realidade das coisas, tese fundamental de Platão20
e trabalhada na
sua Teoria das Ideias, foi responsável por influenciar a filosofia ocidental como um todo. De
acordo com a teoria das essências, não seria possível para a linguagem atingir a realidade das
coisas (alétheia ton onton), pois o real somente poderia ser conhecido verdadeiramente em si
(aneu ton onomaton) sem sofrer intermediações linguísticas.
Dois axiomas relacionados à referência remontam à tradição, quais sejam, o da
existência, segundo o qual indica-se somente aquilo que existe; e o da identidade, segundo o
qual a extensão do predicado de um objeto se aplica a tudo que fosse idêntico ao objeto21
.
Tais axiomas colocam a linguagem como algo secundário.
A teoria platônica quanto às ideias não deixa de ser uma teoria semântica dos
significados das coisas, tendo como pressuposto a correspondência entre linguagem e ser. A
linguagem na percepção do filósofo grego seria apenas um instrumento participativo ou
designativo do real.
Ao tratar da virtude, Platão ressalta que para saber como a virtude vem aos homens,
necessitaria conhecer a “virtude em si e por si mesma”22
. A coisa seria designada pelo nome23
,
porquanto sempre nos referiríamos a algum ser, de modo que impossibilitaria pensar ou dizer
19
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 8 ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 117. 20
PLATÃO. Crátilo, 2013, p. 42: “Pero, ¿no te parece que cada objeto tiene su esencia, como tienen su color y
las demás cualidades de que hablábamos? Ydesde luego, el color mismo y la voz, ¿no tienen su esencia lo
mismo que todas las demás cosas que merecen ser llamadas con el nombre de seres?” 21
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 191. 22
PLATAO. Mênon. tradução de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Loyola, 2001, p. 111. 23
PLATAO. O sofista. UFB 1980, 2003, p. 4.
20
alguma coisa sobre o não-ser24
. Se todas as coisas possuem certa semelhança para as pessoas,
não haveria dúvidas de que elas deteriam uma essência fixa e estável25
. Tais afirmações,
colhidas de passagens de obras diversas de Platão ressaltam a linguagem, na concepção do
filósofo grego, como mero instrumento de acesso ao significado das coisas.
Como bem ressalta Streck26
, na teoria platônica, a palavra é a representação da coisa,
de modo que é possível conhecê-las sem o uso da linguagem, pois esta se mostraria como
simples instrumento com papel secundário. O real só seria conhecido em si, sem
intermediação linguística.
O homem acessaria a ordem universal através do mundo das ideias. Platão lançou as
bases de uma filosofia ontológica, afirmando que somente o “entendedor de essências”
saberia se o nome está justo e exato27
. Haveria semelhanças entre as ideias e as coisas e entre
as coisas e as palavras. A linguagem para o filósofo grego é mero instrumento, sendo possível
ocorrer o conhecimento do real independente dela. Platão mostra que a tese de Crátilo
(naturalista) e a tese de Hermógenes são insustentáveis.
Aristóteles fixa e aprofunda as concepções platônicas (designação das coisas) da
linguagem; de outro lado, antecipa ideias defendidas pela filosofia contemporânea segundo as
quais inexistiria reflexão que não seja mediada pela linguagem28
. Para o estagirita, a
linguagem é o símbolo do real e por não ser um elemento natural, ela é convencional29
. A
permanência da essência (ousia) ou aquilo que é (tó ti esti), para ele, seria o fundamento da
unidade de sentido (significação)30
. Mesmo não permanecendo no campo das ideias, em
Aristóteles a linguagem não possui autonomia em relação às coisas.
As concepções platônicas e aristotélicas influenciaram a metafísica ocidental
juntamente com pensamentos de Santo Agostinho, São Tomaz de Aquino, Descartes,
Spinoza, Leibniz, Kant, Fichte, Schelling e de Hegel31
. Resumidamente, a metafísica clássica
afirmava que o sentido estava nas coisas; estas tinham uma essência e só por isso tinham um
sentido. O sujeito era, portanto, “assujeitado”.
24
PLATAO. O sofista. UFB 1980, 2003, p. 30. 25
PLATÃO. Crátilo, 2013, p. 5. 26
STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito.
8 ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009., p. 120-121. 27
Ibid., p. 121. 28
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 27-28. 29
FISCHER, Steven Roger. Uma Breve História da Linguagem. Trad. Flávia Coimbra. – Osasco: Novo Século
Editora, 2009, p. 182. 30
OLIVEIRA, op. cit., p. 29-31. 31
STRECK, op. cit., p. 127.
21
Na Idade Média, realismo, conceptualismo e nominalismo sobressaem nos
quadrantes teóricos das questões ontológicas e epistemológicas através do logicismo,
intuicionismo e formalismo32. Os conceptualistas defendem que “os universais são abstrações
mentais, conceitos abstratos acerca das coisas individuais e concretas”. Os nominalistas, por
sua vez, negam a existência de universais. Quine, modernamente, foi um defensor do
nominalismo, ao defender que “os conceitos referem não pela relação com as coisas, mas
devido a certas relações que as classes estabelecem [...]”33
.
Precisamente no século XIV, a tradição grega da busca pela essência das coisas sofre
duras críticas do nominalismo de Guilherme de Ockham. Para este filósofo, as coisas que
recebem o mesmo termo como denominação não têm nada em comum, salvo a própria
nomeação, de modo que a única semelhança entre uma garrafa e outra garrafa é que ambas
são chamadas de garrafa. Nesse sentido, tudo seria individual e particularizado. O
nominalismo valoriza a linguagem assumindo, portanto, uma postura antimetafísica, diferente
da tradição grega na qual ela (linguagem) tinha importância secundária34
.
Ockham defende que só os indivíduos existiriam: livro, Pedro, pedra seriam reais,
portanto, somente eles constituiriam substâncias. Logo, não existe “filosofia moderna”, mas
tão somente os filósofos tomados individualmente: Locke, Espinoza e Hobbes. No real ou na
natureza real, nada existem além de indivíduos, de modo que inexistiriam universais, direito
natural ou estruturas35
. Segundo o nominalismo, uma proposição somente pode existir na
mente, na linguagem ou na escrita e, como as proposições não seriam compostas por
substâncias mas por universais, a estes não caberia o caráter de substância36
.
A crise do nominalismo é marca do pensamento contemporâneo e surgiu da dúvida
acerca do ser dos universais e da consequente negação da pretensão direta das sentenças
predicaticas. Ora, se os universais não possuem nenhum ser, não se pode afirmar que algo
esteja contido neles37
. Como não há identidade continuada de significação, não é possível se
chegar à univocidade dos juízos analíticos e, consequentemente, o nominalismo soçobra.
32
ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004, p. 21-22. 33
Ibid., p. 23. 34
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 8 ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 130-131. 35
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Texto estabelecido, revisto e apresentado
por Stéphane Rials; notas revistas por Eric Desmons; tradução Claudia Berliner; revisão técnica Gildo Sá
Leitão Rios.- São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 229-231. 36
REALE, Giovanni. História da filosofia: patrística e escolástica, v. 2. São Paulo: Paulus, 2003, p. 314. 37
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 252, nota de rodapé.
22
Na Idade Moderna, com Descartes, Espinosa e Leibniz, a filosofia retoma as
concepções aristotélicas e, mais tarde, com Kant, renascerá a concepção platônica com a
filosofia como auto reflexão.
A metafísica moderna tem início com René Descartes e sua pretensão de construir
uma filosofia que fizesse tábula rasa da filosofia antiga38
. Com ele, surge a distinção entre
sujeito e objeto (relação sujeito-objeto). O momento supremo da subjetividade e da
possibilidade de certeza reside no método39
. Para Descartes, haveria a possibilidade da
reflexão independente da linguagem, através da auto-intuição. O ponto de partida para o
conhecimento é subjetivista40
, porquanto sua ênfase era nos processos mentais e não na
linguagem. Nascia, assim, a filosofia da consciência, na qual “o ser sempre é em função do
sujeito”41
.
Para Descartes, a queda da velha metafísica e da velha ciência exigiriam a presença
de um novo método para o saber, no qual a ciência não seria separada da filosofia na busca de
um tipo de conhecimento novo que abarcasse a totalidade do real. As quatro regras básicas
expostas no Discurso do método seriam a evidência racional, a análise, a síntese e o controle
e, seguindo-se tais regras, seria impossível tomar o falso como verdadeiro42
. Para o pai do
racionalismo moderno, seria possível ao pensamento libertar-se da linguagem e da tradição.
Enquanto, na tradição, a ênfase era na própria coisa, com Descartes ela passa a ser no sujeito.
Descarte defende que o método permitiria aplicar a razão do sujeito em tudo e que,
ainda que não atingisse a perfeição, seria possível fazer o melhor ao alcance do sujeito, pois
ele permitiria ao sujeito conhecer o objeto com clareza e distinção43
. Portanto, ao enfatizar o
método, a ênfase de Descartes é na relação sujeito-objeto, na qual o sujeito determina o que
seria o objeto.
38
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Texto estabelecido, revisto e apresentado
por Stéphane Rials; notas revistas por Eric Desmons; tradução Claudia Berliner; revisão técnica Gildo Sá
Leitão Rios.- São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 600 39
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 8 ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 137. 40
VILLEY, op. cit., p. 602. 41
STRECK, op. cit., p. 58. 42
REALE, Giovanni. História da filosofia: Do humanismo a Descartes, v. 3. São Paulo: Paulus, 2004, p. 286-
293. 43
DESCARTES, René. Discurso del método, p. 20: “Pero lo que más contento me daba en este método era que,
con él, tenía la seguridad de emplear mi razón en todo, si no perfectamente, por lo menos lo mejor que fuera
en mi poder. Sin contar con que, aplicándolo, sentía que mi espíritu se iba acostumbrando poco a poco a
concebir los objetos con mayor claridad y distinción y que, no habiéndolo sujetado a ninguna materia
particular, prometíame aplicarlo con igual fruto a las dificultades de las otras ciencias, como lo había hecho a
las del álgebra.”
23
Aliás, o dualismo cartesiano influenciou sobremaneira as diversas dualidades do
pensamento ocidental, dentre elas, a separação radical entre homens e natureza, valor e fato,
dever-ser e ser, conhecimento moral e ciência objetiva etc. De toda sorte, sob a perspectiva
cartesiana, a matéria ou o objeto está no pensamento do sujeito pensante44
.
Posteriormente, Kant trouxe a ideia da coisa em si (ding an sich) ao defender a
possibilidade de se conhecer os fenômenos por meio da sensibilidade e do entendimento. Sua
ênfase nas formas relegou a linguagem ao segundo plano, porquanto sua preocupação não era,
em especial, com os aspectos linguísticos4546
, embora haja quem afirme que a fundamentação
da Crítica da Razão Pura na linguagem e no pensamento, com enfoque no aspecto
subjetivista (relação sujeito-objeto)47
.
Para Kant, o conceito a priori dos objetos residiria no sujeito capaz que, através da
intuição, promoveria a representação imediata. O próprio tempo seria uma condição subjetiva
da nossa intuição, de modo que considerado em si mesmo e fora do sujeito, o tempo não seria
nada: “Ele [tempo] não é mais do que a forma de nossa intuição interna. Se se tira desta
intuição a condição especial de nossa sensibilidade, desaparece igualmente o conceito de
tempo, porque esta forma não pertente aos objetos mesmos, mas ao sujeito que os percebe”48
.
Enquanto a concepção da tradição parte do pressuposto de que os objetos do
conhecimento estão prontos, determinados e passíveis de serem copiados pelo sujeito
cognoscente, a concepção kantiana defende a inexistência de objetos prontos, pois eles seriam
construídos pela nossa consciência. Enquanto naquela estamos diante do conhecimento
enquanto função receptiva e passiva, nesta estamos frente à função ativa e produtiva49
. Grosso
modo, essas duas concepções mostram de forma bastante reduzida o milenar modelo
metafísico que só veio a ser questionado por Martin Heidegger e Ludwig Wittgenstein.
Em suma, enquanto para a tradição os nomes eram meros rótulos das coisas, na
Filosofia da Consciência tem-se uma relação sujeito-objeto, na qual o sujeito detém na sua
44
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Texto estabelecido, revisto e apresentado
por Stéphane Rials; notas revistas por Eric Desmons; tradução Claudia Berliner; revisão técnica Gildo Sá
Leitão Rios.- São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 605 45
ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004, p. 37-38. 46
Nesse sentido, PALACIOS, G. A. Metafísica, ontologia e linguagem: discussão das propostas de Ernildo
Stein e Julio Cabrera. Filósofos. v. 3(1), p. 11-28, jan./jun. 1998, p. 23: “Por outro lado, há alguma indicação
na obra de Kant que mostre que ele teve qualquer preocupação linguística? Não vejo isso nos textos
kantianos e Cabrera não prova o contrário. O problema da linguagem, definitivamente, é um problema que
não está em Kant..”. 47
LOPARIC, Zeljho. A linguagem objetificante de Kant e a linguagem não-objetificante de Heidegger.
Natureza humana. v.6 n.1 São Paulo jun. 2004, p. 14. 48
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Livro digital, não paginado, 2014. 49
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 88-92.
24
consciência o sentido das coisas. Deve-se compreender que a coisa passa a ser fruto da
consciência de um sujeito cognoscente. O subjetivismo do sujeito observador determina “o
ser” ou “o que é” a coisa, sob a crença de que o sujeito poderia racionalmente determinar o
objeto, isto é, que os sentidos estariam na mente do sujeito e não nas coisas como queria a
metafísica clássica.
Esse pensamento metafísico influenciou tanto as ciências naturais quanto as ciências
sociais e somente foi questionado com o advento do giro linguístico (guinada linguística ou
reviravolta linguística) que ocorreu sob três frentes50
, como se verá adiante.
3.2 O PRIMEIRO GIRO LINGUÍSTICO
No início do século XX, especialmente entre 1910 e 1920, com o desabrochar
da autonomia das ciências sociais, começaram a surgir as neofilosofias (neokantismo,
neoaristotelismo, neomarxismo). O problema fundamental da filosofia era a questão da
justificação do conhecimento, com duas tendências principais se destacando nessa época: a
concepção direcionada à lógica e à linguagem com a Escola de Viena e as correntes que não
aceitavam explicações puramente logicistas, tendo como principal representante a
fenomenologia de Husserl51
.
Nessa época surge um corte epistemológico desvinculado das ideias do
racionalismo, do empirismo e das formas puras a priori kantianas, tendo a linguagem como
tema central. Esta deixa de ser considerada simples instrumento representativo das coisas e
passa a ser uma estrutura articulada, independente da vontade subjetiva e individual do
sujeito e não mais reduzida à função de nomear ou designar coisas.
A viragem da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem oferece a
possibilidade de superação do círculo aporético entre o metafísico e o antimetafísico (como
v.g. a contraposição entre idealismo e materialismo)52
.
No início do século passado, Hans Hahn, Phillipp Frank e Otto Neurath
costumavam se encontrar desde 1907 num café de Viena para trocar ideias sobre Filosofia da
Ciência. Desses encontros, nasceu o Círculo de Viena, cujo fator determinante foi a vinda de
50
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 8 ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 167. 51
STRECK, Lenio. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teoria discursivas: Da possibilidade à
necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 51. 52
STRECK, op. cit., p. 166.
25
Moritz Schlick que, transferindo-se de Kiel para a capital austríaca, passou a ocupar a cadeira
de Filosofia das Ciências Indutivas. A partir de 1922, Schlick passou a coordenar um
seminário no qual surgiu um grupo de debates integrado por filósofos e cientistas dos mais
diversos campos científicos com interesses por temas epistemológicos53
.
Neopositivismo lógico, positivismo lógico, Filosofia Analítica, Empirismo
Contemporâneo ou Empirismo Lógico são alguns dos nomes que recebe uma corrente do
pensamento filosófico da primeira metade do século XX. Cientistas e filósofos se
encontravam em Viena com o intuito de discutir problemas relativos ao conhecimento
científico. Havia no grupo filósofos, matemáticos, psicólogos, lógicos, juristas, dentre
outros54
. Eles tinham como foco fundamental o conhecimento qualificado como científico e
não como simples conhecimento. Com a purificação da linguagem metafísica destituída de
sentido nasce a possibilidade de superação da dicotomia ciências da natureza e ciências
sociais55
.
Schlick esteve na Califórnia nos idos de 1929 como professor convidado pela
Universidade de Stanford. Seu retorno, em agosto daquele ano, fez com que Rudolf Carnap,
Hans Hahn e Otto Neurath redigissem um manifesto sob título de “O ponto de vista científico
do Círculo de Viena” em homenagem ao professor Schlick. A divulgação desse trabalho
juntamente com a realização do congresso internacional de Praga difundiram o movimento
que ficou conhecido como “Círculo de Viena”56
.
O manifesto demonstrava que a concepção de ciência dependia de medidas tais
como da colocação da linguagem do saber contemporâneo sob o rigor57
de bases
intersubjetivas, da assunção de uma orientação humanista dentro dos padrões sofistas segundo
o qual o homem deve ser a medida de todas as coisas e de que tanto a Teologia quanto a
Filosofia não apresentariam foros de validade cognoscitiva se continuassem apegadas a
pseudo problemas58
.
O sonho do positivismo lógico era formalizar a linguagem com o intuito de sanar as
ambiguidades, dando-lhe um valor de verdade e preparando-lhe como exigência para a
segurança da ciência. Destacando o aspecto lógico, Carnap percebeu que suas considerações
53
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 3. ed. – São Paulo: Noeses, 2009, p.
22. 54
Ibid., p. 20-21. 55
LOSANO, Mario G.. Sistema e estrutura no direito, v. 2: o século XX. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.
31. 56
CARVALHO, op. cit., p. 23. 57
LOSANO, op. cit., p. 30. 58
CARVALHO, op. cit., p. 23.
26
não eram puramente sintáticas e isso lhe fez conceber a linguagem em três dimensões:
sintaxe, semântica e pragmática. Esta última, segundo Carnap, trata das características dos
usos linguísticos e, enquanto empírica, fica fora da filosofia. Em virtude disso, concentra seus
os esforços no estudo da semântica e da sintaxe59
.
O significado dependeria da verificação da proposição. Nessa toada é a obra
do primeiro Wittgenstein, Davidson, Montague e Harman. As contribuições do primeiro
Wittgenestein dizem respeito à teoria da figuração (mundo e linguagem são paralelos); Sob a
perspectiva da linguagem, Frege trouxe a diferenciação ente nomear e significar; Russel criou
a teoria das descrições definidas e Kripke elaborou a teoria da rigidez referencial60
.
Nesse contexto, surgiu a primeira virada linguística, que já tinha sido
pressentida por Hegel. Em verdade, os precursores do positivismo lógico são muitos e, dentre
eles, pode-se citar David Hume, Gottlob Frege e Ernst Mach, cujas obras são fundamentais
para a gênese do Círculo de Viena. O primeiro deles é o inglês David Hume (1711/1776) que
ficou conhecido como o pai espiritual do Positivismo Lógico. Empirista, Hume afirmava que
somente existiria um fundamento sólido para a ciência e este residiria na experiência e na
observação. É dele a distinção entre impressões e ideias61
.
Gottlob Frege (1848/1925) foi responsável por definir o que é número na sua
obra As leis fundamentais da Aritmética de 1884. Demonstrou que a Aritmética seria
reduzível à Lógica, além de compor o primeiro sistema completo de Lógica Formal. Também
distinguiu, em primeira mão, sentido de referência e nos mostrou que a busca pela verdade
nos faz avançar do sentido à referencia. Ernst Mach era físico, cuja obra capital trata dos
princípios da mecânica. Ele criticou fortemente argumentos metafísicos, principalmente o
conceito de “coisa em si” como algo diverso da aparência. Como precursor da cátedra de
Schlick em Filosofia das Ciências Indutivas, enfatizou de forma não menos importante a
unidade da ciência62
.
Com a virada linguística (em inglês, linguistic turn), chamada também em
português de giro linguístico, desponta a lógica matemática por meio de Frege, Russel e do
primeiro Wittgenstein. O giro linguístico, como ficou conhecido essa nova forma de se fazer
filosofia, desenvolveu-se em três frentes.
59
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 82-84. 60
ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004, p. 60-62. 61
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 3. ed. – São Paulo: Noeses, 2009, p.
24. 62
Ibid., p. 24-25.
27
A primeira foi o neopositivismo lógico ou empirismo lógico, que almejava a
construção de linguagens ideais. Teve início com o Círculo de Viena, na década de 1920; dele
participaram nomes como Wittegenstein. O rigor discursivo passa a ser o padrão científico, de
modo que sem rigor linguístico não haveria ciência. O neopositivismo deveria ser objeto da
semiótica, na qual o signo (dentro das concepções saussurianas) deveria ser visto sob três
tipos de relação: semântica, sintática e pragmática. Sintática seria a relação que ocorre entre
os signos; semântica cuidaria da relação existente entre signo/objeto; pragmática seria a
relação do signo com o seu usuário63
.
De acordo com as concepções de Saussure, a linguística deveria se preocupar
com a langue e não com a parole. A referência, segundo o autor, repousa fora da linguagem,
porquanto esta se detém apenas nas relações intrassígnicas. Logo, para ele, a fala é a relação
entre signos e não entre signo e realidade, de modo que seria necessário abandonar a questão
da referência sob pena de soçobrar o próprio caráter científico da linguística. Língua, segundo
Saussure, não se confundiria com linguagem, da mesma forma que a linguística da fala não se
confundiria com a linguística da língua, já que aquela é subordinada a esta. A fala é anterior à
língua, historicamente64
.
As características principais desses autores são: Saussure (1857-1913) faz um
enfoque linguístico-estrutural; Peirce (1839-1914) faz o semiótico; Frege (1848-1925) é
responsável pelo viés representacionista; Russel (1872-1970) e Wittgenstein (1889-1951) são
responsáveis pela proposta empírico-logicista da linguagem65
.
A segunda frente a trabalhar o giro linguístico ocorreu no âmbito da segunda
fase da filosofia de Wittgenstein quando, na obra Investigações filosóficas, há a ruptura com o
modelo apresentado no Tractatus Logico-Philosophicus, daí por que comumente se fala em
“primeiro” e “segundo” Wittgenstein.
Cabe lembrar de que o primeiro Wittgenstein enfoca a linguagem dentre de
uma concepção instrumental, designativa e objetiva, com o intuito de alcançar uma linguagem
perfeita, porquanto ele desejava que a linguagem fosse uma imagem perfeita da coisa real. A
terceira frente do giro linguístico adentra uma nova perspectiva dentro do próprio linguistic
turn.
63
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 8 ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 167-168 64
ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004, p. 26-30. 65
Ibid., p. 11-13.
28
Na primeira fase do giro linguístico, a relação entre referência e significado
tinha importância fundamental. Por referência deve-se entender a expressão indicativa de
identificação ou distinção de algo que o faz único, diferente de outras coisas. Significado e
referência possuem ligação estreita. Portanto,
[...] trata-se de identificar as expressões indicativas – tu, César, a batalha de
Waterloo. O característico dessas expressões é que servem para distinguir
um objeto, uma identidade, um acontecimento etc. de outras realidades e
para identificá-los. [...] Além disso, devem-se ainda distinguir expressões
usadas para indicar indivíduos de expressões usadas para indicar o que os
filósofos chamam de ‘universais’. Por exemplo, distinguir entre Everest e
vermelho (cor). Expressões indicativas são as que se referem a indivíduos e
não a universais66
.
Na primeira fase do giro linguístico, as atenções voltavam-se para a questão da
referência, enquanto que, na segunda fase, como será demonstrado, a referência sofre
verdadeira reviravolta diante das novas concepções wittgensteinianas.
3.3 O SEGUNDO GIRO LINGUÍSTICO OU REVIRAVOLTA LINGUÍSTICO-
PRAGMÁTICA
Na segunda fase, com Investigações Filosóficas, Wittgenstein passa a criticar
profundamente a filosofia da subjetividade (ou da consciência), defendendo que não há um
mundo em si, mas somente na linguagem. Enquanto na primeira fase era mero instrumento de
conhecimento, no segundo guinada linguística, a linguagem passa a ser a condição para a
constituição do conhecimento. Dentro dessa nova concepção, não há essências, nem relação
entre os nomes e as coisas. Não há linguagem ideal porque a linguagem é indeterminada67
.
A terceira frente foi trabalhada no desenvolvimento da filosofia da linguagem
ordinária e, em contraposição ao neopositivismo no qual se enfoca o viés linguístico-
semântico, a linguagem passa a ser vista como instrumento de dominação e comunicação
social. Com o segundo Wittgenstein, Austin e Searle, a linguagem é ação de uma filosofia
pragmática da linguagem68
.
66
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 179. 67
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 8 ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 170-171. 68
Ibid., p. 173.
29
A primeira fase da reviravolta linguística, portanto, colocou a análise semântica
em primeiro plano; já na segunda fase, a análise pragmática coloca a conversação naquele
posto69
. Por isso pode-se afirmar que a mudança radical na reviravolta linguístico-pragmática
diz respeito à referência, visto que os linguistas semânticos a tinham como questão central70
.
Aqui, a pragmática fará da relação entre significar e referir um ato de fala como tantos outros,
de modo que, na reviravolta linguístico-pragmática, a referência deixa de ser o problema
central da filosofia da linguagem. Até o segundo Wittgenstein a filosofia da linguagem
fundava-se na proposição representacional do estado de coisa e tinha a referência com questão
central, proposta essa que sofre radical alteração quando, com a guinada linguística, a
referência, como ato de fala, passa a ser periférica71
.
Daí por que comumente se fala em “primeiro” e “segundo” Wittgenstein, sendo
o primeiro adepto da semântica e o segundo fundador da filosofia da linguagem pragmática72
.
O segundo Wittgenstein defende que não há um mundo em si, mas somente um mundo na
linguagem. A linguagem que na primeira fase era instrumento de conhecimento, passa a ser a
condição de possibilidade para a constituição do conhecimento. Dentro dessa concepção, não
há essências, nem relação entre os nomes e as coisas. Não há linguagem ideal porque a
linguagem é indeterminada, ambígua e, consequentemente, não há significação definitiva sob
pena de se mergulhar numa ilusão metafísica73
.
As formas de vida propostas por Wittgenstein podem ser lidas nos parágrafos
7, 19, 23, dentre outros. No parágrafo 7, ele nos fala da prática do uso da linguagem. No 2, ele
nos fala da parcialidade da linguagem e no 8 mostra que trabalhamos com diferentes tipos de
linguagem. Para o autor, há diversos tipos de linguagens que usamos de acordo com diversos
sistemas de regras; é justamente na não consideração desses sistemas que nascem os
problemas. Um dos erros da filosofia é isolar expressões do contexto. Aquele que faz tal
isolamento demonstra a não compreensão da dimensão da gramática da linguagem74
.
A teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein não é algo acabado, mas um
projeto iniciado, aberto, no qual o termo jogo de linguagem pode perfeitamente ser substituído
69
HABERMAS, Jürgen Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004, p. 65. 70
ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004, p. 89-92. 71
Ibid., p. 98-101. 72
Embora Paulo de Barros não concorde com essa afirmação, pois para ele, o segundo seria uma continuação
do primeiro Wittgenstein, conforme pode ser visto em CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário,
linguagem e método. 3. ed. São Paulo: Noeses, 2009, p. 25. 73
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 8 ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 170-171. 74
Ibid., p. 172.
30
por “uso da linguagem”. Não existe um significado último da palavra, pois o significar é
relacionar duas ou mais expressões linguísticas e saber como aplicá-las, de modo que o uso é
dependente de vários fatores, como necessidades, emoções e capacidades dos interlocutores75
.
O autor defende que há dois tipos de gramática, uma superficial e outra
profunda. No segundo Wittgenstein, em rejeição ao primeiro, embora haja quem defenda
mera “revisão de pensamento”76
, as expressões ou palavras têm sentido em decorrência dos
hábitos determinados de manejo que são empregados e validados intersubjetivamente77
.
A linguagem não se separa da práxis social, pois a capacidade de usar
linguagem é determinada pela possibilidade do indivíduo inserir-se no processo de interação
social e simbólico. No jogo de linguagem, o homem age não ao seu puro arbítrio, mas sim
com base em regras e normas estabelecidas por ele e pelos outros indivíduos no contexto
interacional. A linguagem não dada, mas construída, ensejando diversas forças que se impõe
como num jogo no qual só inicia quando os diversos atores assumem posições e papéis sem
os quais não haveria o jogo. É a superação da metafísica, do essencialismo e da teoria
tradicional da significação, implicando que problemas de semântica somente são passíveis de
boa resolução se imersos na dimensão pragmática da linguagem78
.
Quanto à referência, com a reviravolta pragmática percebeu-se que a análise
sintático-gramatical e lógico-gramatical não se mostra suficiente para dar conta do fenômeno
e, consequentemente, que cada um dos aspectos da linguagem pode ser visitado para se
esclarecer de qual ato se estar a falar. Isso não significa, porém, que a sintaxe, a lógica, a
semântica, ou a análise do discurso subsistem como disciplinas auto-suficientes79
.
Nessa nova perspectiva, o ato de referir-se às coisas vai depender de um
contexto. Seus efeitos são práticos e produzidos no discurso, de modo que não há mais que se
falar na linguagem como função referencial, retrato ou re-presentação da realidade. Enfatize-
se: a questão da referência é a mudança radical na linguagem na virada do século XIX,
porquanto os linguistas semânticos a tinham como questão central, de forma que, na
reviravolta, a pragmática faz da relação entre significar e referir um ato de fala como tantos
75
ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004, p. 106-113. 76
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 3. ed. – São Paulo: Noeses, 2009, p.
26. 77
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 117-118. 78
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 8 ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 172. 79
ARAÚJO, op. cit., p. 13-19.
31
outros. Portanto, a referência era o problema central da filosofia da linguagem somente até a
reviravolta linguístico-pragmática80
.
Dentro dessa nova concepção de linguagem– ou reviravolta linguístico-
pragmática – tem-se além da pragmática analítica de Wittgenstein, a primeira teoria dos atos
de fala de John Austin e a segunda teoria dos atos de fala de John Searle. Além delas, há ainda
a pragmática existencial de Martin Heidegger. Mais recentemente, surgiu aquilo que vem
sendo chamado de reviravolta hermenêutico-transcendental, com a hermenêutica filosófica de
Gadamer, a pragmática transcendental de Karl-Otto Apel e a pragmática universal de Jürgen
Habermas, além da própria crítica à pragmática transcendental feita por Vittorio Hösle com o
idealismo objetivo81
.
Embora o segundo Wittgenstein seja fundamental para a superação do realismo
linguístico (semântica realista), já que o critério para a significação das palavras passa a ser o
uso das palavras, ele trouxe a reboque o problema quanto ao fato de o “uso” ser uma questão
muito vaga. É nesse sentido que se afirma a teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein
como algo inacabado, um projeto iniciado, aberto82
. Embora Wittgenstein não defina jogo de
linguagem, justamente para não se contradizer, o termo pode perfeitamente ser substituído, no
contexto desse trabalho, por “uso da linguagem”. Não existe um significado último da
palavra, pois o significar é relacionar duas ou mais expressões linguísticas e saber como
aplicá-las e, portanto, o uso é dependente de vários fatores, como necessidades, emoções e
capacidades dos interlocutores.
Com o intuito de superar o “projeto iniciado”, a Escola de Oxford se
empenhou no estudo da linguagem, tendo como principal pesquisador John Austin83
, cuja tese
é semelhante a de Wittgenstein mas avança ao afirmar que a linguagem ordinária não é a
última palavra. A linguagem seria importante, pois, assim como a Hermenêutica, ela
explicaria o contexto intersubjetivo no qual o sentido seria criado. A Filosofia da Linguagem
Ordinária quebra o paradigma neopositivista – que privilegia a sintaxe e semântica-
justamente por enaltecer a pragmática84
.
80
ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004, p. 10-11. 81
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 5-8. 82
ARAÚJO, op. cit., p. 107-111. 83
OLIVEIRA, op. cit., p. 149-150. 84
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 8 ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 175.
32
De acordo com Austin, haveria um grupo de coisas que fazemos ao dizer algo.
Os atos dos discursos poderiam ser locucionários, ilocucionários e perlocucionários85
e
exprimiriam “as três dimensões do uso de expressões linguísticas.”86
. Austin está entre os
primeiros que criticaram o logicismo, sendo da sua época os primeiros passos da teoria do
discurso, diante da influência de sua obra na teoria da ação comunicativa de Jürgen
Habermas87
.
John Searle defende que a linguagem é um comportamento intencional regido
por regras e que falar uma língua é pronunciar atos de fala, como fazer perguntas, promessas,
afirmações, dar ordens etc88
. O objeto da filosofia da linguagem seria a relação entre as
palavras e o mundo89
. Para Searle, a referência seria um ato de fala, que como enunciado em
uma dada frase, seria função da significação dela (frase) de modo que, embora a univocidade
não seja absoluta, todo ato de fala poderia ser, em princípio, determinado de modo unívoco na
frase90
. A referência, portanto, pertenceria a um gama expressiva de atos como asserções,
perguntas, ordens, promessas etc91
.
A pragmática existencial de Martin Heidegger tem como fundamento a
vinculação do homem com o ser enquanto evento. A linguagem, portanto, seria a própria casa
do ser pela qual estaríamos envolvidos desde-sempre, daí não seria possível reduzi-la a
instrumento como fazia a metafísica clássica92
. Partindo da fenomenologia Husserliana, mas
acrescentando a Hermenêutica, Heidegger e, depois, Gadamer, procuram chegar ao filosófico
tendo por base o exame dos elementos antecipatórios dos enunciados93
. É com base na obra
dos dois autores que Lenio Streck fundamenta sua Nova Crítica do Direito na perspectiva da
Hermenêutica filosófica.
Nesse sentido, Streck ensina que o Dasein seria o ser humano e que, para
compreendê-lo, o mensageiro precisaria já vir com a mensagem. Para Heidegger, interpretar é
compreender. Gadamer fundamenta sua teoria principalmente no segundo Heidegger. Na
85
AUSTIN, John L.. How to do things with words. Oxford, 1962, p. 108 86
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 161. 87
ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004, p. 132. 88
SEARLE, John R.. Os actos de fala. Coimbra: Almedina, 1984, p. 26. 89
OLIVEIRA, op. cit., p. 170-173.. 90
SEARLE, op. cit., p. 28-29. 91
Ibid., p. 212. 92
OLIVEIRA, op. cit., p. 201-215. 93
STRECK, Lenio. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teoria discursivas: Da possibilidade à
necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, prefácio de Ernildo
Stein.
33
interpretação, o sentido se articularia e, na compreensão, ele se “preliminaria” como
possibilidade de articulação. Sentido seria tudo aquilo que pode se articular na abertura da
compreensão; seria aquilo que compõe o aparelhamento formal de algo que pertence ao
articulado pela interpretação, esta responsável pela compreensão94
.
Para Gadamer, a análise da temporalidade é fundamental para a compreensão,
pois o homem é um ser carregado pela história, daí o caráter de finitude, pois nossa
consciência seria determinada95
pela história (tradição). De toda sorte, restaria superada
qualquer forma de subjetividade.
O surgimento da pragmática transcendental fundamenta-se na “transformação
da filosofia transcendental reflexiva da intersubjetividade”96
. De acordo com Karl-Otto Apel,
o conhecimento não é resultado da consciência solitária do sujeito cognoscente da relação
sujeito-objeto, mas sim o produto de um processo interativo de entendimento, cuja principal
característica é a relação sujeito-sujeito. Se o paradigma da ontologia clássica era o ser, o da
filosofia transcendental era a subjetividade, agora, vislumbra-se a intersubjetividade
linguisticamente mediada97
.
Na perspectiva Apeliana supera-se o solipsismo metodológico responsável por
marcar a filosofia da consciência. É com a filosofia, segundo Apel, que vai ser possível
emergir a diferença transcendental entre jogos de linguagem e o jogo de linguagem da
filosofia98
.
A pragmática universal de Jürgen Habermas enfatiza a superação
representacionista da relação sujeito-objeto. De acordo com o autor, há dois tipos de ações: as
linguísticas e as não linguísticas. A linguagem criaria vínculo entre o estudo pragmático
formal da comunicação e uma teoria social da interação. A pragmática ganha, assim, uma
dimensão política e sociológica99
.
Para Habermas, há o uso analítico da linguagem e o uso reflexivo; naquele se
emprega a comunicação apenas como meio na compreensão dos objetos; no reflexivo, por sua
vez, há a busca de um entendimento acerca do uso da sentença. A pragmática empírica
94
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 8 ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 200. 95
Ou, no mínimo, influenciada. 96
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 253. 97
Ibid., p. 254. 98
Ibid., p. 262-263 99
ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004, p. 245-261
34
cuidaria dos proferimentos empíricos, enquanto a pragmática universal cuidaria dos
proferimentos universais100
.
Habermas vai defender ainda que há elementos extralinguísticos no contexto
das situações de fala, como os elementos psíquicos do falante e que, deles, a pragmática
empírica deve cuidar. A situação de fala seria apresentada pelos universais pragmáticos. A
sentença performativa é, para Habermas, a parte principal do ato de fala. Haveria quatro
classes de atos de fala: os comunicativos, os constatativos, os representativos e os regulativos.
Seriam eles os meios suficientes para a construção de uma situação linguística ideal101
.
Habermas entende o a priori numa perspectiva falibilista e impossibilita uma
fundamentação última. De forma diversa, Apel entende o a priori na linha kantiana, em
contraposição a Habermas102
.
Tais paradigmas que fizeram a reviravolta linguístico-pragmática ocorreram
em todos os âmbitos das ciências e, como não poderia deixar de ser, trouxe a possibilidade de
verdadeira revolução na Hermenêutica Jurídica.
100
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 3. ed. São
Paulo: Loyola, 2006, p. 298-299. 101
Ibid., p. 301-302. 102
Ibid., p. 346.
35
4 A INTERPRETAÇÃO DO TEXTO JURÍDICO ANTES E DEPOIS DE SAVIGNY: A
INFLUÊNCIA DA METAFÍSICA E DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM NA
HERMENÊUTICA JURÍDICA BRASILEIRA
4.1 A HERMENEUTICA JURÍDICA DO OCIDENTE PRÉ-SAVIGNY
A origem das regras sociais perde-se num tempo anterior à escrita. Para se ter um
noção dessa distância, se comparado à pré-história das regras jurídicas, o Direito do Egito de
cinquenta séculos atrás pode ser considerado Direito recente e, em uma fase muito anterior ao
surgimento do Estado e da sociedade como a conhecemos, o misticismo caracterizava o
Direito arcaico dos pequenos grupos humanos103
.
Nas sociedades primitivas, o princípio do parentesco domina o poder enquanto
elemento organizacional e determina o Direito com base nos laços de consanguinidade104
e
confundia-se com o agir do povo (folkways). Com o desenvolvimento das sociedades e
consequente aumento das interações sociais, o princípio do parentesco vai aos poucos sendo
substituído por uma espécie de organização social.
Nesse período, o direito vai aos poucos se libertando do caráter maniqueísta de bem
em contraposição ao mal ou antijurídico, daí por que se afirma que o conhecimento do direito,
tomado como algo diferente dele, é uma conquista recente da cultura humana, marcada por
um desenvolvimento não linear, isto é, com progressos e recuos ao longo da história 105
.
Não obstante a perda progressiva da misticidade, o Direito da Antiguidade Clássica
conservou seu jaez sagrado sem dar grande atenção às questões técnicas. Mesmo com
organização administrativa e judiciária para cuidar dos litígios, o Direito egípcio dos séculos
IV e I a.C. era baseado quase que exclusivamente na prática de contratos, casamentos e outros
negócios jurídicos106
.
Na Antiguidade diferenciava polis de oikia; aquela era composta de vários
governantes, ao contrário desta, governo de apenas um. Por isso afirmava-se que todo cidadão
pertence a duas ordens, surgindo assim a diferenciação entre esferas pública e privada.
103
PEREIRA, Geailson Soares. O processo e suas teorias informativas clássicas: pressupostos de um novo
paradigma processual. Orbis. v. 2, n. 3, 2011, p. 178-179. 104
WOLKMER, Antonio Carlos. O direito nas sociedades primitivas. In: WOLKMER, Antonio Carlos (org.).
Fundamentos de história de direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 2. 105
FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São
Paulo: Atlas, 2010, p. 29-31. 106
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 55-
56.
36
Enquanto a esfera privada trataria das necessidades de sobrevivência do homem, como
alimentar-se e repousar, a esfera pública (polis ou civitas) seria onde o cidadão exerceria sua
atividade com liberdade junto com seus iguais. A primeira seria o labor; a segunda, a ação107
.
Somente homens livres agiam, daí a possibilidade de se afirmar que o Direito nascia da ação.
A influência da cultura greco-romana no Ocidente é lição comezinha. Na Grécia, o
Direito tinha um caráter mais técnico, se comparado à práxis jurídica romana, mesmo assim,
não se pode falar em Ciência do Direito na Grécia antiga, pois embora tenham se destacado
como filósofos e políticos, não tiveram preocupações em sistematizar os institutos
jurídicos108
. A técnica grega foi transmitida aos romanos e, juntamente com o Direito hebreu,
influenciou o Direito em Roma.
Portanto, o Direito romano teve evolução tardia se comparado ao Direito grego e
egípcio. Ainda assim, durante 22 séculos, do século VII a. C. ao século XV d. C. os romanos
desenvolveram um Direito que influenciou a cultura jurídica do Ocidente desde o século XII.
A jurisprudência romana foi aos poucos adquirindo caráter abstrato por influência das
técnicas do mundo grego109
, embora tenha permanecido alheio à disputa teoria e práxis.
O Direito dos hebreus também influenciou de forma significativa o Direito romano
através do Direito canônico110
. Como a ordem jurídica romana era voltada para a prática,
existia apenas de um quadro regulativo geral, no qual o desenvolvimento hermenêutico era a
própria prática jurídica ditada pelos pretores e jurisconsultos ao decidirem o caso em
concreto111
.
A intensificação das trocas comerciais no mediterrâneo provocaram mudanças no
continente europeu. O surgimento das cidades nas sociedades feudais foi decorrência das
necessidades das trocas econômicas que permitiram a instalação de comerciantes em pontos
estratégicos europeus entre os séculos XI e XII112
. As transformações ocorridas nos sistemas
jurídicos da Europa permitiram a racionalização do Direito que passou a ter características
liberais e individualistas.
107
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São
Paulo: Atlas, 2010, p. 2-3. 108
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 46-
47. 109
FERRAZ JR., op. cit., p. 36-37. 110
GILISSEN, op. cit., p. 19. 111
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do
direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 112
GILISSEN, op. cit., p. 46-47 e 205.
37
Enquanto até o século XII o costume era a principal fonte do Direito, o poder
legislativo como um dos poderes do rei ganhou destaque a partir do século XIII. Portanto, a
lei passou a ocupar paulatinamente o lugar dos costumes.
Ora, a norma jurídica costumeira não necessitava dos mesmos cuidados que a lei
enquanto texto jurídico escrito. Nesse quadrante, vislumbra-se que o tratamento à questão da
interpretação das leis como técnica propriamente dita parece surgir nesse momento da Idade
Média, pois a práxis desenvolvida pelos romanos não despertava a preocupação dos juristas
enquanto ciência ou método.
O Direito cristão da época tinha duas características prejudiciais ao seu próprio
desenvolvimento no contexto da época: além de vago era muito exigente e, por isso, se
mostrava insuficiente diante do surgimento das cidades e do comércio no norte da Itália113
.
Some-se a isso o desenvolvimento das cidades italianas como fundamental para o
surgimento de um ensino não teológico, mantido por leigos, cujo objetivo era formar
especialistas como advogados e síndicos, pois como o direito romano era difícil, havia a
necessidade de ele ser explicitado.
A Ciência do Direito (europeia) somente veio a nascer no século XI e XII com os
glosadores da Universidade de Bolonha114
que desenvolveram uma técnica de interpretação
jurídica voltada para o aspecto exegético ou filológico dos textos antigo. Esse movimento
desembocou na Revolução Escolástica, marca do desenvolvimento autônomo das ciências
profanas no Século XIII. Enquanto as antigas escolas eram submetidas ao controle dos bispos
e, portanto, ainda com amarras teológicas, a nova forma de saber dispunha de novos métodos,
dentre eles a glosa de textos e o confronto de textos de diversas autoridades, fazendo surgir as
famosas Sumas115
.
Ainda nesse período, assistiu-se à progressiva penetração do Direito Romano que,
entre os séculos XIII e XVIII, foi recepcionado pelo Direito ocidental. A dogmática jurídica,
portanto, é consequência do método de análise escolástico. O caráter sacro do Direito sofrerá
duro golpe com o advento do Renascimento, que trará como consequência a predominância
técnica em detrimento da ética do período do medievo e fará surgir o Direito Racional116
.
113
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Texto estabelecido, revisto e apresentado
por Stéphane Rials; notas revistas por Eric Desmons; tradução Claudia Berliner; revisão técnica Gildo Sá
Leitão Rios.- São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 120. 114
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do
direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 25-26. 115
VILLEY, op. cit., p. 125. 116
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São
Paulo: Atlas, 2010, p. 41
38
A partir do século XVI, a colonização de grandes territórios realizada por alguns
países europeus permitiu a difusão do Direito romano para o novo continente e,
posteriormente, com a conquista da independência pelas colônias, estas conservaram a
tradição jurídica das metrópoles117
. Na Inglaterra do século XVII e na França posterior à
Revolução de 1789, o poder de legislar sofreu reviravolta, passando do rei para o parlamento.
Com a codificação napoleônica, juristas franceses passaram a escrever livros de
doutrina pois não admitiam o princípio da exclusividade da lei e defendiam que a força da lei
reside no Direito e não exclusivamente nela. Nessa perspectiva, seria necessário fazer uma
interpretação da lei em função da força que a fez nascer, qual seja, o Direito romano e o
Direito costumeiro. O intérprete deveria procurar na história a explicação para os textos
jurídicos118
.
Nascia, assim, a partir do historicismo, a Escola Histórica para superar o aspecto
puramente exegético da hermenêutica jurídica, determinando a esta que leve em consideração
as circunstâncias históricas na determinação de sentido do texto.
Essa breve introdução à concepção de interpretação do Direito antes de Savigny
demonstra que, embora se possa falar em interpretação do Direito enquanto técnica
meramente gramatical desde os glosadores, uma metodologia da hermenêutica jurídica
somente veio a lume com o pai da Escola Histórica, como ficou conhecido Friedrich Carl von
Savigny e seus métodos de interpretação.
4.2 A HERMENÊUTICA METODOLÓGICA DE SAVIGNY E SUA INTRODUÇÃO NO
BRASIL: DA METÓDICA ESTAGNADA À CRISE DE DUPLA FACE
4.2.1 A hermenêutica metodológica herdada de Savigny
Conforme demonstrado, os glosadores da Idade Média “desenterravam” o sentido
dos textos jurídicos através de artifícios lógicos e operações de síntese para mostrar a
compatibilidade de textos aparentemente contraditórios119
. Portanto, era comum a ideia de
necessidade de interpretação dos textos jurídicos antes mesmo de Savigny.
117
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p.
206-207. 118
Ibid., p. 514-515. 119
WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2004, p. 53.
39
No entanto, Savigny é responsável por desenvolver a primeira metodologia após a
derrocada do Direito Natural moderno. Seu método influenciou de forma duradoura a
literatura jurídica do século XIX, ainda que tenha sofrido refutações desde o início120
.
Savigny defendeu, em seus escritos de juventude, que o intérprete do direito deveria
se colocar na posição do legislador e, fazendo uso dos elementos lógico, gramatical e
histórico, atingir o pensamento da lei. Para tanto, seria preciso conhecer a legislação como um
todo (elemento sistemático). A interpretação não poderia ser extensiva nem restritiva ou
teleológica, embora admitisse a analogia, já que esta seria mera complementação da lei. Tais
proibições, é verdade, são deixadas de lado na maturidade quando o pai da escola histórica
passa a considerar o espírito do povo como verdadeira fonte do Direito e a defender uma
aplicação teleológica da lei em detrimento da aplicação literal dos escritos de mocidade121
.
Portanto, o jurista deveria valer-se dos métodos122
(ou técnicas123
) para atingir o
verdadeiro pensamento da lei. A hermenêutica clássica com seus métodos gramatical,
sistemático, histórico e teleológico, exceto quanto a este, tinha uma interpretação de
característica filológico-hermenêutica.
Os métodos, como os próprios nomes sugerem, são autoexplicativos. De acordo com
o método gramatical, conhecido como literal, semântico ou filológico, o intérprete deve
buscar o sentido literal do texto normativo. A técnica sistemática enaltece a necessidade de
considerar a norma jurídica dentro de um sistema normativo que contenha normas que tratem
do mesmo objeto. A técnica histórica, por sua vez, tem como parâmetro interpretativo os
antecedentes da norma, como os motivos que levaram o legislador a tomar determinada
posição. O método teleológico procura adequar a norma às realidades sociais sem esquecer-se
da ratio ou finalidade normativa124
.
4.2.2 A chegada da hermenêutica metodológica ao Brasil
Sob influência de Portugal, os primeiros passos da ciência jurídica no Brasil a partir
do século XVIII basearam-se no formalismo e no argumento de autoridade. Junto às
120
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 6. 121
Ibid., p. 10-19. 122
NEVES, A. Castanheira. O actual problema metodológico da interpretação jurídica – I. Coimbra: Coimbra,
2003, p. 339. 123
DINIZ, Maria Helena. Compendio de introdução à ciência do direito. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. 124
Ibid., p. 432-437.
40
Ordenações, a imposição da norma jurídica era marcada por conotação religiosa, assim como
pelo uso de brocardos jurídicos e de trechos de Andréas Alciatus ((1492-1550).
Ao longo do século XIX surgiram poucos livros de ‘práxis forense’ referentes a
direito processual. Em 1850, o compêndio de Francisco Paula Batista trouxe uma exploração
mais sistemática de questões de ordem jurídica, dentre elas, as conceituais . Durante mais de
meio século, não se viu surgir, em português, obra digna de prestígio tanto quanto a de Paula
Batista sobre Hermenêutica Jurídica, embora o autor tenha resistido à metodologia
savignyana, cujo destaque já na época era inegável125
.
Nomes como Tobias Barreto, Martins Junior, Rui Barbosa, Clóvis Beviláqua, João
Mendes, Pedro Lessa e Eduardo Espínola reelaboraram questões de hermenêutica no cenário
brasileiro, mas o grande nome foi Carlos Maximiliano, grande comentador da Constituição de
1891 e que, em 1924, lançou Hermenêutica e Aplicação do Direito, livro que tem inspirado
gerações de juristas e que, talvez, lhe falte uma visão um pouco mais crítica dos seus
ensinamentos126
.
No início do século XX, os equívocos na interpretação constitucional estimularam os
dissídios entre os poderes públicos, comprometendo o prestígio das instituições e perturbando
a vida no país. Some-se a isso o Código Civil de 1916, com a jurisprudência incipiente em
relação a sua interpretação e a baixa quantidade de obras comentando o referido diploma
normativo. Essas questões exigiam um novo estudo sobre Hermenêutica Jurídica porque a
obra de Paula Batista de 1850 estava desatualizada e, nesse contexto, em 1924 foi lançada a
obra Hermenêutica e aplicação do direito, de Carlos Maximiliano.
Posteriormente, nomes como Carvalho de Mendonça, Pontes de Miranda, Alípio
Silveira, Carlos Campos, Limongi França, Fernando Coelho e o provocante capítulo
“Dogmática Hermenêutica” do livro de Tércio Sampaio Ferraz Jr. lançado em 1988.
Posteriormente, Hermenêutica Jurídica e(m) crise, de Lenio Streck e Ensaio e discurso sobre
a interpretação/aplicação do direito, de Eros Grau, despontam no cenário brasileiro como
obras substanciosas da virada do último século.
Assim, a interpretação jurídica nos duzentos anos que sucederam Savigny, vista sob
uma perspectiva semiótica, deu ênfase a diferentes modelos de interpretação em épocas
diversas, quais sejam: sintático-semântico, semântico-sintático e semântico-pragmático127
. No
125
SALDANHA, Nelson. Ordem e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 292. 126
Ibid., p. 294. 127
NEVES, M. Entre têmis e leviatã: uma relação difícil: o estado democrático de direito a partir e além de
Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 197.
41
século XIX, com a Escola de Exegese e a Jurisprudência dos Conceitos, construiu-se um
modelo de interpretação do Direito de jaez “sintático-semântico” com o objetivo de enfatizar
as conexões sintáticas dos textos jurídicos com pretensão de univocidade de sentido
(semântica). Nesse modelo encaixa-se, por exemplo, a doutrina hermenêutica de Paula
Batista.
A Hermenêutica da primeira metade do século XX teve como característica
predominante a relação “sintático-semântico” de interpretação do direito, ao qual se filia o
purismo de Hans Kelsen. Ao contrário da pretensão de univocidade de sentido dos textos
pretendida pelo modelo sintático-semântico, o modelo semântico-sintático já admite a
ambiguidade e vagueza dos textos jurídicos, de modo que cabe ao intérprete determinar o
sentido da lei128
. Por ambiguidade entenda-se a capacidade dos termos comportarem mais de
um significado ou sentido; vagueza refere-se à impossibilidade de determinar-se com precisão
a relação objeto-conceito129
.
A partir de meados do século XX, a hermenêutica jurídica assistiu à reviravolta na
filosofia do Ocidente a partir dos estudos, primeiramente, de Wittgenstein e Heidegger. Ao
poucos, passou-se a enfatizar a perspectiva semântico-pragmática130
, no qual o contexto passa
a ser fator preponderante na construção do sentido do texto jurídico.
Dentro desse panorama, é preciso considerar que o advento do
Neoconstitucionalismo foi fundamental para uma nova hermenêutica jurídica. Esse
movimento tem como principais características a) a formação do Estado Constitucional de
Direito, sob a perspectiva histórica; b) a reaproximação entre Direito e Ética, sob o prisma
filosófico e; c) convencimento de que a Constituição tem força normativa que traz a reboque
a expansão da jurisdição constitucional juntamente com o desenvolvimento de um nova
interpretação constitucional131
, ainda que dentro do modelo da filosofia da consciência.
Assim o faz importante doutrinador, ao escrever que:
Graças a essa espécie de redução eidética, que intenta colocar entre
parênteses o objeto conhecimento para poder captar-lhe a essência no modo
como ela se manifesta na experiência cognitiva, graças a isso é possível
afirmar que aquilo a que chamamos conhecimento apresenta-se como um
fenômeno de natureza relacional, mais precisamente como uma relação
128
NEVES, M. Entre têmis e leviatã: uma relação difícil: o estado democrático de direito a partir e além de
Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 198. 129
CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o construtivismo lógico-semântico. São
Paulo: Noeses, 2009, p. 59-63. 130
NEVES, op. cit., p. 199. 131
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil. Themis: Revista da ESMEC, Fortaleza, v. 4 , n. 2, p. 13-100, jul./dez. 2006,
p. 29.
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dupla ou uma correlação ontognosiológica, na qual se encontram, frente a
frente, o sujeito e o objeto do conhecimento. No âmbito dessa relação,
embora complementarmente imbricados, tanto o sujeito quanto o objeto
possuem funções distintas e inconfundíveis, pois se ao sujeito pensante ou
sujeito cognoscente compete apreender o objeto— o que ele faz saindo de
sua esfera e ingressando na esfera própria do objeto—, a este corresponde a
função de se dar a conhecer ou se deixar apreender pelo sujeito, ao qual
transfere as suas propriedades132
.
O Estado constitucional de direito oriundo dos escombros da Segunda Guerra
Mundial assumiu posição de destaque a partir dos anos de 1970. Esse modelo tem como
característica fundamental uma Constituição rígida a qual se submete a legalidade do Direito.
Assim, uma norma não vale mais somente por ser posta, mas por está de acordo com as
normas constitucionais. Nesse novo modelo, a Ciência do Direito assume papel crítico e
indutivo no tocante à atuação dos Poderes Públicos enquanto a jurisprudência passa a
desempenhar um papel criativo do Direito ao analisar e invalidar atos normativos que estejam
em desacordo com a Constituição133
.
Na perspectiva neoconstitucional, a Constituição, diferentemente do que afirmou
Lassale, é mais do que um pedaço de papel134
. Como diploma com força normativa, ela é uma
construção inacabada que se concretiza paulatinamente no contexto das condições do
presente135
.
Mesmo com esses novos estudos, a Hermenêutica Jurídica praticada pelos tribunais
brasileiros e ensinada pela doutrina nas faculdades de Direito ainda permanece refém do giro
linguístico e presa às concepções do início do século passado, contribuindo para a supremacia
do aspecto formal do Estado Democrático de Direito em detrimento do aspecto material. É
justamente nesse contexto que a crise desponta. Os insuficientes cânones hermenêuticos são
tratados como se fossem verdadeiros oráculos reveladores do significado dos textos jurídicos.
Se, por um lado, há quem defenda o intérprete solipsista (sujeito) diante do texto
jurídico (objeto), que descobre o significado “oculto” no texto normativo, demonstrando
adesão à filosofia da consciência, de outro, o viés patrimonialista dado às normas