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A ficção desvenda a história: D. Miguel e os seus duplos ** Introdução Como noutros países do Sul da Europa a implantação do liberalismo em Portugal no século XIX foi um processo longo e conflituoso. Na verdade, embora a primeira revolução liberal portuguesa tenha ocorrido em 1820 inscrevendo-se assim na vaga revolucionária que, da Espanha ao Piemonte, sacudiu vários estados da Europa meridional, foi só em 1834 que os liberais conseguiram vencer a tenaz resistência dos partidários do absolutismo. Tal como os carlistas em Espanha os absolutistas portugueses tinham também como referência uma figura dinástica cujo direito ao trono evocavam: o infante D. Miguel, filho segundo de D. João VI e irmão de D. Pedro o 1
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D. Miguel e os seus duplos

Mar 27, 2023

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Page 1: D. Miguel e os seus duplos

A ficção desvenda a história: D. Miguel e os seus duplos **

Introdução

Como noutros países do Sul da Europa a implantação do

liberalismo em Portugal no século XIX foi um processo longo

e conflituoso.

Na verdade, embora a primeira revolução liberal

portuguesa tenha ocorrido em 1820 inscrevendo-se assim na

vaga revolucionária que, da Espanha ao Piemonte, sacudiu

vários estados da Europa meridional, foi só em 1834 que os

liberais conseguiram vencer a tenaz resistência dos

partidários do absolutismo.

Tal como os carlistas em Espanha os absolutistas

portugueses tinham também como referência uma figura

dinástica cujo direito ao trono evocavam: o infante D.

Miguel, filho segundo de D. João VI e irmão de D. Pedro o

1

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herdeiro do trono que viria a tornar-se no primeiro

imperador do Brasil.

Defendendo que D. Pedro, ao tornar-se soberano da antiga

colónia portuguesa sul-atlântica cuja independência ele

próprio tinha promovido, perdera os seus direitos ao trono

português, os partidários do absolutismo rejeitaram a Carta

Constitucional outorgada por este príncipe e recusaram a

solução dinástica por ele proposta que passava pelo

casamento da sua filha D. Maria da Glória, em quem abdicou

do trono português, com o seu irmão D. Miguel.

Quando em 1828 D. Miguel chegou a Portugal para,

supostamente, dar execução às disposições do seu irmão, foi

de facto aclamado rei e rei absoluto pelos seus apoiantes

sustentados por uma forte mobilização popular.

Assim, contrariamente ao que aconteceu com o

carlismo espanhol com o qual o miguelismo português manteve

sempre estreitas afinidades, a contra-revolução instalou-se

verdadeiramente no poder em Portugal durante o tempo que

durou o governo de D. Miguel, entre 1828 e 1834.

O miguelismo só viria de facto a ser vencido

pela força das armas, na guerra civil de 1832-34, onde D.

Miguel e os seus partidários enfrentaram D. Pedro e o

exército liberal formado durante a emigração política dos

partidários do constitucionalismo, tendo como base uma das

ilhas do arquipélago dos Açores, a ilha Terceira.

Derrotado D. Miguel na guerra civil, D. Maria

da Glória, a jovem filha de D. Pedro, subiu ao trono com o

nome de D. Maria II. D. Miguel, pelo seu lado, seria

2

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obrigado a exilar-se, tendo vivido primeiro em Roma,

durante 13 anos, sob protecção do papa Gregório XVI, e

depois em Londres de onde partiria, finalmente, para a

Alemanha, onde se casou e viveu até à morte ocorrida em

1866.

Durante o exílio, a possibilidade de que

recuperasse o trono foi constantemente acalentada em

Portugal, alimentando não só motins e guerrilhas mas também

uma expectativa quase messiânica entre os seus adeptos,

expressa em sucessivas vagas de rumores anunciando a

eminência do seu regresso.

As expectativas relativas ao regresso de D.

Miguel a Portugal transformaram-no, sem dúvida, numa

configuração tardia do “rei escondido” que alimentou a

mitologia política da Europa moderna1, tendo assumido

particular vigor em Portugal onde o desaparecimento em

Marrocos do rei D. Sebastião nos finais do século XVI

esteve na origem do “sebastianismo”.

Para sustentar o paralelismo não faltou mesmo o

aparecimento de personificações do príncipe ausente, sob a

forma de falsos D. Miguel, à imagem do que acontecera com

os falsos D. Sebastião.

Mais célebre que os seus duplos históricos viria

a ser contudo um duplo literário do rei exilado: o que foi

1** Uma versão simplificada deste artigo pode encontrar-se num capítulo daobra D. Miguel I , Círculo de leitores ( no prelo)? Ver sobre o tema : Yves- Marie Bercé, Le Roi Caché. Sauveurs et imposteurs. Mythes politiques populaires dans l’Europe Moderne, Paris, Fayard, 1990

3

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criado pelo grande ficcionista português de oitocentos

Camilo Castelo Branco no seu romance A Brasileira de Prazins2.

Nascido em Lisboa em 1825, Camilo Castelo Branco

passaria no entanto quase toda a sua vida no Norte de

Portugal onde faleceu em 1890. Esse Norte, que tem como

“capital” a cidade do Porto, constituirá o cenário mais

frequente dos seus numerosos romances onde os tópicos

literários do romantismo se cruzam com uma ironia corrosiva

e caustica a que nada, nem mesmo o próprio autor e os seus

artifícios literários são poupados.

Será nesse registo satírico que Camilo Castelo

Branco irá encenar a chegada a uma aldeia da província do

Minho em 1845 de um falso D. Miguel que, ingenuamente, o

padre da freguesia e muitos notáveis da região acolherão

como se do verdadeiro se tratasse.

Sátira dos círculos miguelistas do Norte do

país que o autor terá conhecido de perto, o falso D. Miguel

de Camilo tornar-se-á posteriormente numa figura de

referência do miguelismo, bem mais palpável e reconhecível,

aliás, que os seus congéneres históricos.

Ilustrando de forma particularmente

significativa as complexas relações entre literatura e

história, a personagem fictícia criada por Camilo

contribuiu assim, como neste artigo se procurará mostrar,

não só para desocultar os “falsos D. Miguel” históricos,

mas também para entender mais latamente o complexo fenómeno

2 Camilo Castelo Branco, A Brasileira de Prazins, Lello e Irmão Editores, Porto s/d (1ª Ed. 1882)

4

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político que foi o miguelismo no Portugal do século XIX

assim como a construção da sua mitologia.

1. Expectativas e rumores

Nos primeiros tempos do exílio de D. Miguel, depois da

sua derrota na guerra civil de 1832-34 contra os liberais,

à frente dos quais se encontrava o seu irmão D. Pedro, uma

das hipóteses de acção política contra o novo regime

instalado em Portugal desde 1834 mais debatida e temida era

a da organização de uma réplica da expedição que dos Açores

trouxera muitos desses mesmos liberais para o continente em

1832 para restaurar a dinastia e a Carta Constitucional.

Em Roma, onde D. Miguel se encontrava desde Setembro

de 1834, a hipótese foi considerada durante anos sucessivos

pelos dirigentes miguelistas e por vários partidários do

infante que continuavam a desembarcar em Itália com novos

planos de acção tendentes a fazer sair o príncipe daquilo

que alguns consideravam ser a sua “inacção”.

Em Novembro de 1834 já se dizia em Roma “que em toda

a Europa se está(va) fazendo uma colecta a favor do Sr. D.

Miguel para preparar uma expedição contra Portugal e que já

se (tinham) reunido dois milhões de francos”. O encarregado

de negócios do governo português considerou logo o assunto

5

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muito seriamente e consagrou muito do seu tempo a procurar

informar-se sobre os meios e os apoios que os miguelistas

podiam estar a mobilizar neste sentido em diversos estados

italianos inclusivamente na própria Santa Sé.

Nestes primeiros tempos, até o embaixador de França

terá abordado directamente o assunto com o Papa Gregório

XVI, um dos poucos soberanos que havia reconhecido o

governo miguelista e que recebera D. Miguel como rei quando

ele ali chegou depois da derrota. O embaixador ter-lhe-á

dito constar “que as potências do Norte haviam já

concorrido com a sua quota-parte” e que se tratava agora

“de fazer a derrama pelos príncipes de Itália”,

acrescentando que “sabia que as finanças de Sua Santidade

não lhe permitiam este sacrifício mas que no Estado

Pontifício não deixaria de haver muitos zelantes que

concorressem com o seu dinheiro para um tal fim”. O Papa

terá mostrado espanto com a notícia, que ouviu “como se

fosse pela primeira vez”, dizendo que lhe parecia

impossível que tal expedição se tentasse e que houvesse

quem para ela concorresse nas “circunstâncias do momento”3.

As “ circunstâncias do momento” remetiam

principalmente para o evoluir da cena política espanhola,

dado que a Espanha, onde se desenrolava a primeira guerra

Carlista, era, à época, o principal teatro onde se travava

o combate entre liberalismo e reacção, combate seguido com

a maior atenção e empenho pela Santa Sé.

3Arquivo Histórico – Diplomático, Legação de Portugal em Roma, Cxª 244 Oficionº 52 de 24 de Outubro de 1834

6

Page 7: D. Miguel e os seus duplos

O representante do governo português nos estados

pontifícios, Miguéis de Carvalho, preocupar-se-á em

esclarecer o eventual contributo de outros príncipes

italianos em particular do duque de Modena, bem conhecido

pelos seus sentimentos antiliberais e a cujos estados D.

Miguel acabava de se deslocar.

Depois da morte de D. Pedro, que ocorreu em Lisboa em

Setembro de 1834, considerava-se muito seriamente em

Portugal a hipótese do regresso de D. Miguel que se julgava

ter saído de Itália, aventando-se a possibilidade de ele

ter desembarcado em Espanha, na Catalunha4.

A partir deste momento numerosas serão as vezes em

que, tanto em Itália como em Portugal, se teme o regresso

do Infante quer à frente de uma expedição quer sem ela. Na

verdade, a hipótese de que D. Miguel regressasse, não à

testa de um exército mas apenas com um pequeno numero de

partidários com o intuito de reunir e mobilizar para a

revolta os seus adeptos, que se acreditava serem ainda

muito numerosos, também nunca foi descartada.

Em Maio de 1835 julgava-se particularmente verosímil a

partida de D. Miguel de Roma para Espanha para se juntar às

forças do seu tio D. Carlos5 cujas vitórias, muito

empoladas pelos exilados, eram consideradas um firme

prenúncio do triunfo da causa absolutista na Península4 Arquivo Histórico-Mililitar, 1ª Div., 22ª Sec. Cxª. 35, Mç 8, Vários ofíciosdo Ministério da Guerra.

5 D. Carlos Maria Isidro cuja reivindicação do trono espanhol deu origem à primeira guerra carlista era irmão de D. Carlota Joaquina quefoi rainha de Portugal pelo seu casamento com o futuro D. João VI , sendo, consequentemente, tio de D. Miguel.

7

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Ibérica. Em Maio de 1835 Miguéis de Carvalho escrevia para

Lisboa:

«Neste últimos dias se têm espalhado diversos boatos

relativamente à próxima partida de D. Miguel para Espanha,

e parece indubitável que é aconselhado para isso, porquanto

além de que os seus amigos de todos os países desejam que

ele faça esta tentativa e reputam ocasião favorável a

actual em que imaginam a causa de D. Carlos como

assegurada; acresce que se estimaria muito aqui a sua

partida, afim que cessasse o socorro pecuniário que

mensalmente se lhe está subministrando, o qual, posto não

seja de grande importância, como informei em um dos meus

precedentes ofícios, contudo é objecto de crítica nas

actuais circunstâncias em que as finanças Pontifícias se

acham em tão deplorável estado.»6

Neste contexto, a possibilidade de um embarque

clandestino de D. Miguel de Porto d’Anzio, um pequeno porto

do mar Tirreno onde passava largas temporadas, parecia uma

hipótese tão plausível que o representante de Portugal em

Roma não hesitou em pedir o auxílio do secretário da

embaixada francesa, Tallenay, para que este ali se

deslocasse e verificasse in loco as hipóteses que tinha o

príncipe exilado de embarcar dali nalgum pequeno bote que o

transportasse para uma embarcação maior que estivesse ao

largo. Não o querendo fazer ele próprio por considerar

difícil que, sendo aquela uma muito pequena povoação, a sua

presença não fosse assinalada, Miguéis de Carvalho

6 Arquivo HistóricoDiplomático, Legação de Portugal em Roma, oficio 22 de5 deJunho 1835

8

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convenceu Tallenay “da seriedade do caso” e este partiu

para Porto d’Anzio a 31 de Maio de onde regressou a 2 de

Junho. As informações que transmitiu eram optimistas na

medida em que, segundo comunicou, “depois de miúdos

exames”, não descobrira nenhum indício do temido embarque.

Não deixara no entanto de confirmar que tal embarque era

possível e que não seria fácil impedi-lo caso fosse

tentado7.

Apesar de relativamente tranquilizadoras estas

notícias não evitaram que continuassem os rumores sobre a

eventual fuga de D. Miguel de Itália, por mar ou por terra,

afirmando Miguéis de Carvalho que nunca se falara tanto

como naquela ocasião da partida de D. Miguel para Espanha.

Em Portugal, em Novembro de 1835, o Ministério da

Guerra oficiava aos governadores militares das províncias

para que estivessem de prevenção em relação a uma possível

entrada em Portugal das forças de D. Carlos através da

Galiza e alertando-os também para a eventualidade de D.

Miguel ter regressado à Península em companhia do infante

espanhol D. Sebastião8, seu sobrinho, com quem se julgava

poder ter entrado em Espanha.

Embora considerando haver razões que faziam acreditar

“ ser apócrifa a vinda do Usurpador à península”, o

Ministério da Guerra prevenia os governadores militares das7 Arquivo Histórico-Diplomático, , Legação de Portugal em Roma, Cxª 244,Oficio 22, de 5 de Junho 18358 D. Sebastião era sobrinho de D. Miguel por ser filho de uma sua irmã,a infanta D. Maria Teresa, princesa da Beira, que casara com opríncipe espanhol D. Pedro Carlos. O infante D. Sebastião apoiará a causa de D. Carlos em Espanha e serávisto por certos sectores contra-revolucionários portugueses como umaalternativa política e dinástica a D. Miguel.

9

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províncias contra qualquer tentativa de transtorno da ordem

e do sossego públicos e “contra qualquer delinquente que se

arroje à temeridade de pretender suscitar novamente a

guerra civil que tantas calamidades causou neste país”9.

Estes rumores decorriam do facto do Infante D.

Sebastião, filho da Infanta D. Maria Teresa, princesa da

Beira, e do príncipe espanhol D. Pedro Carlos ter chegado

recentemente a Espanha vindo de Roma, onde estivera desde

Junho, e onde várias vezes se encontrara com o tio D.

Miguel. As razões que presidiam às prevenções do governo

português contra a eventualidade de um regresso de D.

Miguel à Península tornam-se ainda mais claras se tivermos

em conta informações como a que Miguéis de Carvalho

enviava, à época, para Paris e para Lisboa:

“Pelo ofício que dirigi ao Ministro de Sua Majestade

em Paris na data de 14 do corrente, será V. Ex.ª informado

do grande entusiasmo que veio excitar entre os Miguelistas

a notícia da entrada do Infante D. Sebastião em Espanha, e

das diligências que se fizeram para induzir D. Miguel a

seguir o exemplo do sobrinho”10.

Embora as notícias que sucessivamente foram avançadas

ao longo dos anos que D. Miguel permaneceu em Roma de que

este abandonara a Itália e se dirigira para Espanha ou

Portugal se pautassem, ao nível oficial, pela prudência,

não deixaram nunca de lançar a inquietação no governo

português em particular enquanto a guerra entre os adeptos

9 AHM, 1ª Div, 21ª Sec.,Cxª 2, mç 410 Arquivo H-Diplomático, Cxª 244, Oficio 46 de 24 de Novembro de 1835

10

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de D. Carlos e o governo da rainha prosseguia em Espanha,

ou seja até 1839-40.

Se a hipótese de uma expedição contra Portugal se ía

tornando cada vez mais inverosímil à medida em que se

agravava o espectáculo de evidente penúria de que, desde

1835, começavam a dar sinais em Roma as hostes miguelistas,

a eventualidade do regresso clandestino de D. Miguel a

Portugal para se pôr à frente de uma revolta dos seus

partidários inspirava mais sérias inquietações.

A presença do príncipe proscrito continuava a ser

considerada altamente perigosa pelo seu potencial

mobilizador, e os rumores que anunciavam o seu regresso e

eram veiculados pelas mais diversas categorias de pessoas

nos primeiros anos do pós-guerra eram tidos por muito

perturbadores, em particular nas províncias do norte, que

se considerava regurgitarem de apoiantes seus.

Aí multiplicavam-se notícias e rumores relativos a

expedições e revoltas miguelistas assim como ao regresso de

D. Miguel a Portugal.

Na cidade de Braga, por exemplo, logo em Outubro de

1834, as autoridades comunicavam que se tinham espalhado a

“notícia aterradora” de estar “ o ex-infante D. Miguel em

Elvas onde tinha dado beija-mão havendo já ordem nessa

cidade para ser aclamado”11. Os divulgadores da notícia

eram barqueiros.

Na mesma ocasião circulava na vila dos Arcos, no Alto-

Minho, o rumor da volta de D. Miguel até ao fim do ano

acompanhado de um exército estrangeiro e da morte da11 AHM, 1ª Div, 22ª Sec,Cx.ª 29, mç. 3

11

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rainha. As autoridades faziam notar que o boato corria as

feiras para grande regozijo dos miguelistas e do clero12.

Na vila de Barcelos, não longe de Braga, igualmente

situada na populosa província do Minho, um ex-frade capucho

foi preso, em Novembro do mesmo ano, por anunciar a vinda

de D. Miguel e o breve regresso dos frades aos conventos13.

Pela mesma época as autoridades militares da província,

dando conta do prosseguimento deste género de rumores,

relacionavam-nos com a circulação insistente da notícia de

estar D. Miguel em Espanha14.

De Melgaço, na fronteira com a Galiza, o governador

militar pedia esclarecimentos a Lisboa e a Ourense sobre o

rumor segundo o qual D. Miguel tinha desembarcado na

Catalunha, manifestando receio de que houvesse partidários

seus que quisessem atravessar a fronteira e de que

partidários de D. Carlos viessem para Portugal15. Em finais

de Novembro de 1834 foi preso na vila da Póvoa do Varzim,

também no noroeste, um paisano e a sua filha por dizerem “

que a rainha já não estava em Lisboa e que D. Miguel vinha

aí”16.

Embora os boatos circulassem com mais intensidade

quando algum acontecimento ou rumor relativo a D. Miguel

chegava de Itália, como é possível constatar com a nova

vaga de notícias sobre o regresso do príncipe proscrito a

Portugal que se desencadeou cerca de um ano depois, em

12 AHM, 1ª Divisão, 22ª Secção, Cxª. Nº 32, mç. 2613 AHM, Idem.14 AHM, Idem.15 AHM, 1ª Div, 22ª Sec., Cx.ª nº 30, mç., 216 AHM, 1ª Div., 22ª Sec., Cx.ª nº 32, mç., 26

12

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Outubro e Novembro de 1835, outras circunstâncias são

detectáveis como pretexto para a circulação desta categoria

de notícias. Serve de exemplo o que o jornal Periódico dos

Pobres no Porto noticiou ter ocorrido em Braga nos finais de

Janeiro de 1835 quando, por ocasião da chegada a Portugal

do primeiro marido da Rainha, D. Augusto de Leuchtemberg,

as luminárias e foguetes que saudavam o evento foram

interpretados pelos miguelistas como celebrando a “chegada

do seu louco herói”, nas palavras do autor da notícia. O

“choque de prazer” que, segundo a mesma fonte, terão

recebido os partidários do infante foi no entanto de pouca

duração: uma banda de música seguida por muitos

constitucionais percorreu logo as ruas da cidade mostrando-

lhes que “o seu mal não (tinha) remédio”.

A notícia prossegue referindo que este “desengano”

não incluiu “ os rotos e miseráveis iludidos” porque esses

ainda tratavam “de ilusório o casamento e ninguém lhes

tira(va) da cabeça que D. Miguel esta(va) a chegar”17.

Embora estas notícias tenham sobretudo tido curso e

acolhimento no norte do país foram igualmente registadas

noutras regiões. O governador militar do Algarve, por

exemplo, comunicava ao ministro da guerra em Junho de 1835

que “ os mal intencionados miguelistas” daquela província

tinham dado provas de regozijo em algumas localidade “ não

só por aparecer há dias uma esquadra nestas praias que eles

supunham vir em seu auxílio, mas também pelas falsas

17 Periódico dos Pobres no Porto, nº 31 de 5 de Fevereiro de 1835 (notícias dointerior).

13

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notícias que lhes imbuem os seus correspondentes de

Lisboa”18.

Por vezes a convicção do regresso do ex-rei parecia

exprimir-se apenas como bravata e grito de revolta. É o que

pode deduzir-se da atitude provocatória de um soldado de

Infantaria 18, internado num hospital do Porto por sofrer

de “contusões por castigo”, que previa “a vinda do

Usurpador cantando cantigas” e a quem o director do

hospital ordenou que ficasse “preso com sentinela à

vista”19.

Vendedores ambulantes, barqueiros, soldados, ou seja

muitos daqueles que pela sua profissão se deslocavam com

frequência de uma terra para outra, parecem ter sido os

mais activos propagadores de notícias sobre o regresso de

D. Miguel.

Os mendigos, um outro tipo de itinerantes, também

terão tido um papel nestes circuitos a julgar pela

referência do jornal miguelista O Eco à prisão em

Salvaterra de um homem que “pedindo esmola pelas casas

espalhava notícias da próxima chegada de D. Miguel”. O Eco,

querendo fazer render politicamente a notícia, assinalava

que “nem os mendigo escapa(va)m às perseguições” de que os

miguelistas derrotados eram vítimas desde o fim da guerra .

Mas o mais interessante do episódio terá a ver com o facto

de ele não ter sido denunciado por ninguém da vila de

Salvaterra, das muitas “ casas em que contava o seu conto”,

e de ter sido um eclesiástico de outra vila próxima, o

18 AHM, 1ª Div., 22ª Sec., Cx.ª 919 AHM, 1ª Div., 22ª Sec., mç 22, doc. 669

14

Page 15: D. Miguel e os seus duplos

prior de Almeirim, a estar na origem da sua prisão20. É

também curioso que o referido mendigo contasse como “ seu

conto” a notícia do regresso do príncipe exilado, tema

tido, aparentemente, como próprio a excitar a generosidade

daqueles junto de quem mendigava.

Será no entanto a já referida notícia do regresso à

Península do infante D. Sebastião que servirá de pano de

fundo à circulação de mais boatos sobre o regresso de D.

Miguel no ano de 1835.

Em Amarante, concelho sempre referido no pós-guerra

por aquilo que as autoridades designavam por “mau

espírito”, ou seja pela sua desafecção ao regime liberal,

corria o boato entre os miguelistas, nos finais de

Novembro, de “que a sua lei não tardaria a vir” assim como

o Infante D. Sebastião21. Pouco tempo antes, em finais de

Outubro, difundira-se no couto do Vimieiro, concelho de

Vila Nova de Famalicão, uma proclamação “incendiária e

subversiva”, em que se dava conta das vitórias de D. Carlos

e se apelava aos soldados portugueses para que o

coadjuvassem em nome da “Santa Religião Católica, das leis

antigas e de El-rei D. Miguel I”22.

No início de Novembro, era do Alentejo, de Vila

Viçosa, que se anunciava ao governo que o espírito dos

habitantes do concelho continuava a ser “exaltado a favor

do Usurpador”, e que estes se valiam de todos os meios “

para propagar notícias sediciosas, afixando pasquins

20 O Eco, nº 61 de 29 de Fevereiro de 183621 AHM, 1ª Div., 22ª Sec., Cx.ª nº 26, mç. nº 2 22 AHM, 1ª Div., 22ª Sec., Cx.ª 8, mç. 6

15

Page 16: D. Miguel e os seus duplos

tendentes a firmar a esperança de que o mesmo Usurpador há-

de voltar a este reino”23.

Em Janeiro de 1836, nos finais do mês, o governador

civil de Viana foi levado a acreditar na notícia de ter D.

Miguel chegado ao país vizinho dados os rumores que

circulavam na cidade e a “agitação extraordinária” que nos

dias anteriores se verificara entre os seus partidários. O

governador das armas do Douro, a quem a notícia fora

participada, considerou-a destituída de fundamento, o que

não impediu o boato de continuar a circular nos dias

seguintes24.

Em Julho circulava oficialmente uma notícia semelhante

e o ministro dos Negócios Estrangeiros informava

detalhadamente o seu homólogo dos Negócios da Guerra sobre

um ofício que recebera do encarregado de negócios em Roma,

com data de 10 de Junho, em que se referiam “ notícias

vagas acerca do projecto de evasão de D. Miguel”

considerando, no entanto, que elas se tornavam dignas de

atenção “ pelo contínuo movimento” que se observava, “

tanto nele como nos seus sectários”, e pelo cuidado que o

príncipe mostrava “ em ocultar os seus passos”.

As informações de que o ministro dispunha faziam-no

temer “ um movimento de insurreição na Galiza” que serviria

de apoio a outro que se procuraria “ excitar nas províncias

do Norte de Portugal contra o seu legítimo governo”.

Os apoiantes de D. Miguel estariam a envidar todos os

esforços para que ele viesse pôr-se à frente do referido

23 AHM, 1ª Div., 25ª Sec., Cx.ª 52, mç. 224 AHM, 1ª Div., 22ª Sec., Cxª. nº 36, mç., 9

16

Page 17: D. Miguel e os seus duplos

movimento sendo nisto ajudados pelo governo pontifício que

se acharia “ muito incomodado com os sacrifícios

pecuniários prestados a D. Miguel e a seus sequazes”.

Haveria uma outra hipótese, considerada menos provável, de

que D. Miguel saísse de Roma em direcção à Holanda; certo

seria que em Itália e Portugal se buscavam “ todos os meios

de o resolver a sair da apatia em que até aqui se (tinha)

conservado em Porto d’Anzio”.

Porque a estas notícias se juntavam outras vindas de

Madrid, relativas a uma expedição composta por “portugueses

rebeldes e Carlistas com o destino de insurreccionar as

províncias do Norte” de Portugal, julgava-se aconselhável

tomar importantes medidas de precaução25.

Depois destas informações serem divulgadas, foi

enviada uma circular confidencial a todos os governadores

militares das províncias ordenando acrescida vigilância por

constar por “informações recentes” que D. Miguel e os “seus

sectários” contavam com uma insurreição na Galiza a favor

de D. Carlos que serviria de apoio a outra em Portugal,

considerando-se poder acontecer que “o Usurpador por suas

desesperadas circunstâncias” fosse “ instigado a sair dos

estados pontifícios” para “qualquer ponto de Portugal ou de

Espanha”26.

Embora a ameaça não se tivesse concretizado a

circulação de rumores relacionados com estas notícias não

tardou: de uma localidade do norte do país, Amarante,

diziam as autoridades andarem os miguelistas muito

25 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., Cxª. 53, mç. 226 AHM., Idem.

17

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contentes espalhando “ boatos aterradores” entre os povos

vizinhos segundo os quais, por exemplo, Valença estaria

cercada pelo lado da Galiza.

Julgava-se ser, um membro da nobreza adepto de D.

Miguel que passara a residir próximo da povoação, o

principal responsável pelos rumores. Estes eram

considerados particularmente perigosos por ser aquela vila

e os “povos” circunvizinhos “ uma Filadélfia” que reunia “

homens de várias partes” que não podiam residir em suas

terras pelos males que tinham feito durante o reinado de D.

Miguel27.

Pouco depois, em Valença, vila e praça militar na

fronteira coma Espanha, um pasquim, pregado numa porta,

“obra tosca” segundo as autoridades, ameaçava com a vinda

de D. Miguel28. O mesmo pasquim reapareceria em dias

sucessivos na mesma vila.

Já a sul do Douro, em Ovar, espalhara-se o boato de

que D. Miguel andava perto e de que o príncipe D. Fernando,

o marido da rainha, que voltara a casar no início do ano de

1836, não queria a Constituição. Ao mesmo tempo anunciavam-

se vitórias e vantagens diversas de D. Carlos em Espanha29.

No mês de Setembro de 1836, pouco tempo depois da

revolução que em Lisboa levara a esquerda do liberalismo ao

poder, circulavam, mais uma vez oficialmente, notícias

preocupantes relativas aos planos dos miguelistas exilados.

Nunca a hipótese de uma expedição destinada “ a promover os

27 AHM., 1ª Div., 22ª Sec., Cxª 16 , mç 228 AHM, 1ª Div., 22ª sec., cx.ª nº 36, mç. 929 AHM., 1ª Div., 22ª sec., cxª 22, mç. 78

18

Page 19: D. Miguel e os seus duplos

interesses de D. Miguel” parecera tão credível: tomava-se

como certo que em Itália, nos estados do Duque de Modena,

se preparava uma expedição com o objectivo de “invadir a

Galiza (…) penetrando na província de Trás-os-Montes, onde

se conta(va) com o apoio de agentes miguelistas , ou

surpreendendo a Ilha da Madeira”. O alarme era dado ao

ministro da Guerra e ao general português comandante do

exército auxiliar em Espanha para que tomassem todas as

requeridas precauções que a ameaça exigia30. A 20 de

Setembro o Ministro da Marinha e do Ultramar dava a

indicação das despesas previsíveis em que importariam as

ordens do governo se fossem expedidas duas embarcações de

guerra de Lisboa, uma para a ilha da Madeira e outra para o

porto mediterrânico de Massa nos estados de Modena.31

Desta vez, como das anteriores, nada se concretizou.

No entanto, em Outubro desse ano ainda circulavam boatos em

Amarante entre os miguelistas “ da chegado do seu rei” ao

Algarve32.

No ano seguinte novos alertas foram dados contra os

presumíveis manejos dos apoiantes de D. Miguel. Numa

circular confidencial endereçada aos administradores-gerais

dos distritos do reino ordenava-se que fossem tomadas todas

as medidas “para prevenir os crimes de alguns maus

cidadãos” que persistiam “já no temerário arrojo de

restabelecerem o reinado do banido Usurpador já de

atentarem contra a gloriosa revolução de Setembro33”.

30 AHM., 1ª Div., 25ª sec., cxª 53, mç 4 31 AHM, Idem.32 AHM., 1ª Div., 22ª sec., cxª 4, mç. 133 AHM., 1ª Div., 25ª sec., cxª. 53, mç. 4

19

Page 20: D. Miguel e os seus duplos

Os “setembristas”, nome pelo qual passaram a ser

designados os liberais da ala esquerda, precaviam-se assim

contra os seus vários adversários referindo pouco depois,

no Diário do Governo, que tanto D. Miguel em Roma como os seus

apoiantes não desistiam “ de se mostrarem cheios de

esperança” de voltarem a Portugal “fixando épocas, umas

depois das outras, na forma costumada”34.

Se o tom desta notícia sobre os manejos de D. Miguel e

dos seus partidários em Itália deixava trair o descrédito

que começava a atingir os projectos miguelistas, não há

dúvida que ela foi publicada num momento sensível dado que,

a 23 de Junho, o Ministro dos Negócios Estrangeiros

exprimira a sua inquietação junto do Ministro dos Negócios

da Guerra por estarem a partir de Itália para Gibraltar,

“com tensões de passarem depois para o Algarve, vários

indivíduos Miguelistas (…) trazendo passaportes com nomes

supostos”.

Pouco tempo depois, o Cônsul português em Génova

informava o governo não só de estarem os miguelistas “

exultantes com os triunfos de D. Carlos” mas também do

facto bem mais inquietante de lhes terem sido enviados de

Livorno e de vários pontos da Sardenha navios com munições

de guerra. Segundo o Cônsul, os Miguelistas continuavam a

reunir-se no convento dos Jesuítas onde não se ouviria “ se

não falar nas façanhas do Remexido”, ou seja, dos sucessos

do líder de uma guerrilha antiliberal que se formara

recentemente em Portugal na serra do Algarve. Recomendava-

se por isso a máxima vigilância das embarcações que do34 Diário do Governo, nº 156 de 5 de Julho de 1837

20

Page 21: D. Miguel e os seus duplos

porto de Gibraltar seguissem para aquela província

meridional35.

Temia-se mais uma vez uma expedição contra Portugal

que se suspeitava agora pudesse desembarcar no Sul

aproveitando os movimentos favoráveis a D. Miguel que ali

se desenvolviam. Receava-se também, uma vez mais, o

regresso do próprio D. Miguel mesmo na ausência de

expedição. Esse receio era explicitamente expresso a 20 de

Julho numa circular confidencial proveniente do Ministério

da Guerra mandando que os governadores militares tomassem

providências por constar, através de ofícios do Cônsul

português em Tânger, que “ uma fragata napolitana tinha

chegado aquele porto dizendo-se “que a bordo desta ía um

individuo suspeito, cujos sinais físicos se assemelha(vam)

aos do ex-infante D. Miguel”36. (…).

Nenhum ano foi, porém, mais fértil em alarmes do que o

ano de 1838.

Para além das precauções mais ou menos permanentes

tomadas em relação a qualquer deslocação de D. Miguel ou

dos seus partidários em Itália, que redobrava caso houvesse

qualquer indício de saída daquela Península, o governo

começou a manifestar a sua preocupação, desde os primeiros

dias de Março, com as notícias recebidas do embaixador de

Espanha em Portugal relativas à saída do porto de Livorno

com destino a Gibraltar do bergantim “Eduardo”, com

bandeira Sarda, que conduzia a bordo 3500 espingardas que

se afirmava destinaram-se à Península ibérica, 2000 à serra

35 AHM., 1ª Div., 25ª sec., cxª 53, mç. 436 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 51, mç. 1

21

Page 22: D. Miguel e os seus duplos

de Ronda em Espanha e 1500 ao Algarve. Foram de imediato

pedidas medidas urgentes ao Ministério da Guerra no sentido

de impedir o desembarque daquele armamento no reino37.

A intensa actividade das guerrilhas no Algarve, que

contavam com o apoio das populações rurais da serra,

justificava, naturalmente, que esta tivesse passado a ser a

província mais constantemente vigiada e onde parecia mais

provável registar-se qualquer tipo de intervenção externa

por parte dos miguelistas, quer se tratasse do desembarque

de armas ou dinheiro para apoiar os rebeldes, quer se

tratasse da temida expedição.

Esta última hipótese voltou a estar na ordem do dia a

partir do mês de Abril de 1838 com contornos bastante

alarmantes. Assim, do Ministério dos Negócios do Reino

comunicava-se ao Ministro da Guerra a notícia, divulgada

por autoridade galegas, de que “das portos do levante” se

dirigia a Gibraltar para seguir para o Algarve “ uma

expedição miguelista em que se trabalha(va) com muita

actividade”. No mesmo ofício referia-se de novo o possível

desembarque de armamento naquela região38.

Essa eventualidade tornou-se mais precisa nos dias

seguintes pois continuavam a chegar ao Ministério do Reino

“ repetidas notícias de que os sectários da Usurpação

intenta(vam) verificar um desembarque de armamento para a

serra do Algarve , ao Norte do Cabo de S. Vicente, ou nas

praias da Baleeira , Pessegueiro e outras, mais próximas

das matas do Campo de Ourique”, onde se “acoutava uma

37 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 53, mç. 338 AHM., 1ª Div., 25ª Sec.,, cxª 53, mç. 4

22

Page 23: D. Miguel e os seus duplos

guerrilha de miguelistas”. Evocava-se a necessidade de

mandar postar forças militares em vários portos do litoral

sul e na praça de Sines, para obstar ao desembarque ou

apreender o armamento caso este se verificasse. Pedia-se

igualmente que o Ministério da Guerra desse rápidas ordens

neste sentido por se acreditar andar já cruzando os mares

fronteiros à costa Sul de Portugal um brigue que se

presumia ser aquele que trazia o referido armamento39.

Poucos dias depois voltava a falar-se oficialmente de

uma expedição miguelista “que se estaria activando” segundo

notícias transmitidas pelo Capitán General da Estremadura

espanhola. O local considerado mais provável para um

desembarque continuava a ser o Algarve, mas mencionava-se

agora também a hipótese de ele vir a ocorrer nas ilhas

adjacentes. Estas informações, enviadas aos Administradores

Gerais de todos os Distritos do reino, eram acompanhadas de

ordens para que se empregasse a maior vigilância sobre todo

o litoral, de Norte a Sul – do Minho ao Algarve. Mandava-se

ainda que fossem postas em alerta as guardas nacionais40.

Ainda que se esperasse um acontecimento eminente,

continuava a ser hipotética a forma que ele poderia

revestir. A incerteza quanto aos planos dos miguelistas em

Itália manifestava-se em ofício enviado no dia 1 de Maio

desse mesmo ano de 1838 ao Comandante da 4ª Divisão

Militar, a Divisão da província do Minho, no sentido de que

tomasse providências, em conjunto com as autoridades civis

do distrito e com os comandantes das divisões militares

39 AHM., Idem.40 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 52, mç. 2 e cxª 56, mç 5

23

Page 24: D. Miguel e os seus duplos

mais próximas, para prevenir um possível “ projecto

atrevido para perturbar a ordem estabelecida”.

O projecto, de acordo com novas informações havidas

dos cônsules espanhóis em Baiona e Marselha, tinha a ver

com a chegada a Livorno de uma corveta russa procedendo de

Atenas com dinheiro, 150 homens e 18 peças, que se julgava

destinada a proteger uma expedição que deveria sair de

Génova para reunir-se às forças do ex-infante D. Carlos em

Espanha. Acreditava-se também ter já saído dos portos do

Levante uma “facção miguelista” que tentaria eventualmente

desembarcar nas costas de Portugal, de preferência no

Algarve, mas que também se julgava possível ir reunir-se às

tropas Carlistas em Espanha “ com o fim de hostilizar o

país pelo lado da fronteira”41.

No mês de Julho o alerta prosseguia mas a incerteza

perdurava. O comandante da Divisão Auxiliar Portuguesa que

havia sido mobilizada para sustentar o combate dos liberais

em Espanha, oficiava ao governador da 4ª divisão militar

informando que acabava de receber notícias de D. Miguel

segundo as quais o infante “ havendo recebido algumas somas

e organizado os desgraçados que o seguiram se dispunha a

deixar a Itália”. Julgava que a sua tentativa o

encaminhasse para Portugal e alertava para o facto de ele

procurar desembarcar no Minho para dali passar a Trás-os-

Montes” dando as suas ordens para uma melhor defesa da

fronteira42.

41 AHM., 1ª Div., 22ª Sec., cxª 53, mç. 2442 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 57, mç.4

24

Page 25: D. Miguel e os seus duplos

Entre Outubro e Novembro, o governo divulgava

junto das autoridades locais mais notícias, extractadas de

ofícios do encarregado de negócios de Portugal em Roma, que

voltavam a abrir inquietantes perspectivas quanto a uma

possível invasão de Portugal. Desta vez os planos

atribuídos aos miguelistas eram no entanto bastante

diferentes. Dizia-se que seria o Infante D. Sebastião o

primeiro a franquear as fronteiras portuguesas, como lugar-

tenente de D. Miguel, à testa de uma divisão que se

estabeleceria num ponto indeterminado do país onde se

reuniriam os seus partidários. Em Roma julgava-se que esses

partidários se encontravam sobretudo nas províncias do

Minho e Trás-os-Montes e parte da Beira 43 .

No mês de Dezembro, a Secretaria de Estado dos

Negócios do Reino voltava a apelar aos administradores

gerais dos distritos para, em conjunto com as autoridade

militares, empregarem todas as medidas “de vigor e energia”

contra “os perturbadores do sossego público”, em

consequência das notícias que continuavam a chegar de

Itália. Essas notícias davam conta de que D. Miguel e os

seus não “cessavam de conspirar” e de procurar “ alienar o

espírito dos povos com doutrinas cismáticas, princípios

exagerados de democracia e discussões entre os

constitucionais”, prosseguindo também no intento de invadir

Portugal.

Tratava-se ainda do projecto que se dizia vir a ser

comandado pelo infante D. Sebastião que se supunha

preparar-se para entrar no país por uma das províncias do43 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 53, mç.3

25

Page 26: D. Miguel e os seus duplos

Minho, Trás-os-Montes ou Beira, onde contava achar grande

apoio dos miguelistas. Acrescentava-se ainda que o governo

fora informado que da Holanda e da Inglaterra e de outros

portos estrangeiros tinham partido, com direcção a

Portugal, “vários emissários com o fim de promoverem a

sublevação e dar impulso aos seus planos sediciosos”. Para

este fim contavam com dinheiro que lhes deveria ser

remetido de Itália em moeda de ouro portuguesa e

espanhola44.

A invasão miguelista não se concretizou nem tendo à

testa o príncipe proscrito nem sem ele, embora as ameaças

de forças avançadas carlistas, em certos casos contando com

a participação de miguelistas, tenha sido particularmente

intensa neste ano45. Mas foi neste contexto de expectativas

e rumores que, em Maio de 1838, o príncipe proscrito voltou

ao seu reino na convicção de alguns dos seus mais humildes

súbditos. O regresso deu-se sob a forma do aparecimento de

um falso D. Miguel, um impostor, que pressagiava um outro

que a literatura iria tornar particularmente famoso: aquele

que Camilo Castelo-Branco transformaria num dos

protagonistas do seu famoso romance A Brasileira de Prazins.

44 AHM., 1ª Div., 25ª Sec. Cxª 53, mç. 4 45 Para as ameaças “carlo-miguelistas” na fronteira portuguesa ver a nossa tese de doutoramento publicada sob o título: Rebeldes e Insubmissos. Resistências populares ao liberalismo, 1834-1844, Porto, Afrontamento, 2002

26

Page 27: D. Miguel e os seus duplos

2. Os duplos de D. Miguel

O episódio ocorreu numa pequena localidade da Beira,

Jarmelo, próxima da fronteira, um pouco ao norte da Guarda.

Considerando os diversos planos existentes nas fileiras

miguelistas, dentro e fora do país, relativos a acções a

desenvolver na zona fronteiriça, em coordenação mais ou

menos directa com as forças Carlistas que actuavam do lado

espanhol, é bem possível que os acontecimentos de Jarmelo

formassem parte de um plano mais amplo cujos contornos por

hora nos escapam.

Esses acontecimentos, que já tivemos ocasião de expor

brevemente noutro lugar46, foram comunicados em primeira-

mão às autoridades por um regimento de Castelo Branco nos

finais de Abril de 1838. Nessa participação referia-se o

aparecimento, próximo da Guarda, de uma nova guerrilha,

mais numerosa do que as que nesse mesmo ano e em anos

anteriores tinham sido detectadas nas Beiras, e com

características bastante diferentes dos outros movimentos

que se tinham desencadeado naquela região.

A guerrilha era composta, segundo estas informações,

por cerca de 150 homens e a sua principal característica

era a de a maioria dos indivíduos que a compunham se46 Op. cit., pp. 228-234

27

Page 28: D. Miguel e os seus duplos

apresentarem desarmados. O grupo apareceu nas imediações da

cidade da Guarda e confrontou-se no dia 29 de Abril com um

pequeno contingente de soldados de linha e vários corpos da

Guarda Nacional. Para surpresa dos defensores da ordem os

guerrilheiros conseguiram dispersar estas forças e pô-las

em fuga, depois de terem ferido um dos comandantes do

destacamento e de terem aprisionado alguns membros das

Guardas Nacionais.

Poucos dias depois o ministro da Guerra recebia

notícias do quartel-general da cidade da Guarda anunciando

que a guerrilha miguelista fora “ posta em completa

dispersão” no dia 30. Informava-se ainda que os homens que

a integravam pertenciam maioritariamente a povoações do

concelho de Jarmelo e alguns aos de Belmonte. Mais

inesperada era a referência a terem aqueles homens sido

“seduzidos e engajados por um espanhol” que se julgava ser

um ex-frade e tinha “feito acreditar aos povos” que era o

ex-infante D. Miguel47.

No Diário do Governo de 12 de Maio divulgava-se a notícia

da formação e quase imediata dispersão da guerrilha

voltando a referir-se que tinha por comandante um ex-frade

espanhol e que os seus membros haviam sido seduzidos por

ele e “por outros indivíduos de nenhuma consideração que

procuravam fazer crer ser o dito ex-frade o Usurpador D.

Miguel”. Acrescentava-se ainda a possibilidade de estar

entre eles um antigo oficial do exército miguelista, o

brigadeiro Rebocho48. No fim do mês o Periódico dos Pobres no

47 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., Cxª 41, mç., 848 Diário do Governo nº 112 de 12 de Maio de 1838

28

Page 29: D. Miguel e os seus duplos

Porto, nas “notícias do interior” dava como certo que o ex-

frade espanhol que personificara o Infante era o célebre

Alvito Buela conhecido como grande panfletário miguelista.

Segundo a mesma fonte o falso D. Miguel já dera beija-mão e

fizera alguns despachos49

Apesar de se afirmar que os mentores do movimento eram

todos homens de “nenhuma consideração”, nas semanas

seguintes foi demitido o Administrador do Concelho de

Jarmelo e a sua Câmara Municipal dissolvida referindo-se

expressamente que a medida tinha resultava do facto de não

ter a Câmara impedido a reunião da guerrilha mas ainda de

alguma forma ter auxiliado a sua formação”50. Quanto ao

Administrador do Concelho, a sua demissão era justificada

explicitamente por ter estado implicado na formação do

movimento51.

As repetidas notícias relativas ao rápido

“aniquilamento da guerrilha” que circularam na imprensa a

partir dessa data não eram inteiramente confirmadas pelos

relatórios militares. Ainda no mês de Maio o governador da

praça de Almeida, informando o Conde de Bonfim das

operações levadas a cabo contra ela, referia que a força

armada, que tinha sido enviada para a combater, conseguira

matar alguns guerrilheiros “ prender outros e fazer

dispersar o resto em grupos pequenos”52. Nos meses

seguintes as autoridades viram-se de toda a evidência a

49 Periódico dos Pobres no Porto nº 125 de 29 de Maio de 183850 Idem, nº 114 de 15 de Maio de 183851 Idem.52 AHM., 1ª Div., 24ª Sec., Cxª. 3, mç. 11

29

Page 30: D. Miguel e os seus duplos

braços com esses “pequenos grupos” e a região só voltou a

ser dada como pacificada no início de Agosto53.

Anos mais tarde, em 1844, quando se preparava uma nova

e importante revolta miguelista, o episódio de Jarmelo foi

evocado como exemplo a não seguir por um dos organizadores

desse novo movimento, o Dr. Cândido de Figueiredo e Lima

antigo professor da Universidade de Coimbra e membro de um

dos últimos governos miguelistas. Em carta a António

Ribeiro Saraiva, activo agente de D. Miguel em Londres, o

Dr. Cândido, escrevia:

“É desnecessário lembrar a V. Ex.ª a importância do

nosso movimento que se deve preparar com toda a segurança

por não termos recurso algum dos que teve o Conde de

Amarante e Marquês de Chaves de poder entrar na Galiza, em

Espanha, em caso de algum mau sucesso, como aconteceu já em

1838 no concelho de Jarmelo onde, pela má direcção, tudo

foi sacrificado com grande destruição e sangue dos

inocentes povos”54.

O caso não era inédito. Depois do primeiro exílio de

D. Miguel em 1824, ocorrido na sequência da frustrada

revolta ultra-realista da Abrilada, uma vaga de rumores

relativos ao seu regresso tinha também servido de pano de

fundo ao aparecimento, em Junho de 1825, de um falso D.

Miguel, o primeiro de que há notícia, na Praça de Almeida,

próximo da fronteira espanhola 55.53 Diário do Governo nº 181 de 2 de Agosto de 183854 Carta de Cândido Figueiredo e Lima a António Ribeiro Saraiva de 28 de Setembro de 1844 in A revolta miguelista contra o Cabralismo, p. 64.55 Sobre este episódio ver: António Monteiro Cardoso, “ Notíciasaterradoras e pasquins incendiários. A circulação de rumores em Trás-os-Montes no tempo das lutas liberais”, Actas do Colóquio Contra-revolução,

30

Page 31: D. Miguel e os seus duplos

Mas será na época em que se preparou a última

tentativa de insurreição armada miguelista em Portugal, a

mesma insurreição que António Ribeiro Saraiva e o Dr.

Cândido projectavam em 1844 e viria a ter lugar no quadro

revolta popular da Maria da Fonte e da guerra da Patuleia

em 1846-4756, que irá aparecer o mais célebre “falso D.

Miguel” de que há conhecimento. No romance de Camilo

Castelo Branco este episódio tem lugar numa pequena

paróquia da província do Minho, S. Gens de Calvos, no

Carnaval de 1845.

O “falso D. Miguel ”, de Camilo, duplamente falso

porque nascido da ficção, virá no entanto a tornar-se bem

mais famoso do que qualquer um dos seus congéneres

históricos. Para além disso, a memória destes últimos teria

sido sem dúvida também, como já foi dito, muito mais

difícil de desocultar sem a sua existência. Clara

manifestação do axioma segundo o qual “o romance é a

imaginação da história”57.

Em todo o caso a história do falso D. Miguel da

paróquia de Calvos criada por Camilo é apresentada como uma

Espírito público e Opinião (secs. XVIII e XIX), CEHCP, Lisboa (no prelo)56 A Maria da Fonte foi um movimento de revolta rural que se iniciou na Primavera de 1846 no norte de Portugal contestando várias medidas recentemente tomadas pelo governo do ministro Costa Cabral. Rapidamente politizada essa revolta iria saldar-se por um confronto armado entre o governo e as oposições coligadas lideradas pelos setembristas, a ala esquerda do liberalismo. Muitos miguelistas integraram também a coligação e a guerra a que este confronto deu origem – A Patuleia – só acabou com a intervenção das potências da Quádrupla Aliança, nomeadamente da Espanha e da Inglaterra.57 A frase, com sabor a axioma, consta de uma entrevista dada ao jornal“Le Monde”de 12 de Maio de 2006 pela romancista francesa Anne-MarieGarat a propósito da publicação do seu último romance, Dans la main dudiable.

31

Page 32: D. Miguel e os seus duplos

ficção mas não uma ficção qualquer. Segundo o autor, ela

inspirar-se-ia num episódio real que lhe teria sido narrado

por um indivíduo das suas relações, “um ilustrado

cavalheiro da Póvoa do Lanhoso o Sr. Joaquim Ferreira de

Melo e Andrade da casa nobilíssima das Argas, falecido com

mais de oitenta anos de idade em 1881”.

Camilo faz ainda questão de esclarecer que, nos seus

traços básicos, a história lhe fora confirmada pelo famoso

Padre Casimiro José Vieira, um eclesiástico que muito se

distinguira na sua juventude pela sua participação na

revolta do Minho de 1846, a revolta da Maria da Fonte,

durante a qual tinha comandado uma parte das hostes

populares. Apesar de todos estes “certificados de

veracidade”, não deixa de acrescentar que a imprensa

contemporânea não tinha nunca, que ele soubesse, referido

este pseudo D. Miguel, rematando com uma profissão de fé

nas “revelações do ancião de Lanhoso”58.

O D. Miguel de Camilo assemelha-se muito ao de Jarmelo

na sua atitude e nos seus gestos sem que exista nenhuma

evidência de que o romancista tenha tido conhecimento do

que se passara naquele concelho da Beira em 1838.

Tal como o D. Miguel da Beira também o do Minho dá

beija-mão e assina despachos na residência paroquial de São

Gens de Calvos onde se instala depois de se ter feito

“reconhecer”pelo ingénuo abade da paróquia durante a

representação, pelo Entrudo, de um entremez numa eira.

Desta feita, porém, não se trata de uma parte de um plano

58 Camilo Castelo Branco, A Brasileira de Prazins, Lello e Irmão Editores,Porto s/d, p. 45 (1ª Ed. 1882)

32

Page 33: D. Miguel e os seus duplos

gizado por partidários do rei exilado que quisessem,

eventualmente, experimentar as potencialidades

mobilizadoras da figura real, mas sim da montagem de um

golpe que põe em cena interesses privados do seu principal

agente, um soldado desmobilizado do exército de D. Miguel,

sem modo de vida regular, que acompanhara depois, no

Algarve, a guerrilha do Remexido.

O impostor que se acolhe à freguesia de Calvos e

transforma em improvisada Corte a pobre residência do seu

pároco distribui as mais diversas mercês entre os seus

modestos cortesãos: faz Capelão-mor e Dom Prior de

Guimarães o seu hospedeiro, Visconde o seu cúmplice,

General e Conde o tenente-coronel Cerveira Lobo, morgado de

Quadros, e Sargento-mor um pedreiro, Zeferino das Lamelas,

filho de um antigo voluntário realista que ficara “tolhido

das pernas” ao lançar-se ao rio Tâmega no Inverno depois de

ter protagonizado, em 1838, um pequeno motim em favor de D.

Miguel. Em troca come os melhores petiscos que saem das

mãos da cozinheira do Abade, bebe os melhores e mais

antigos vinhos da sua garrafeira e prepara-se para fazer um

pé-de-meia com os generosos donativos dos realistas da

região desejosos de ver triunfar um movimento que voltasse

a pôr D. Miguel no trono.

Apesar dos detalhes que Camilo fornece na

Brasileira de Prazins a propósito do seu falso D. Miguel do

concelho da Póvoa do Lanhoso, os aspectos mais marcantes da

sua presença ali não divergem muito dos que são atribuídos

ao D. Miguel da Beira. Independentemente dos contextos, os

33

Page 34: D. Miguel e os seus duplos

dois fazem despachos e admitem ao beija-mão os que deles

mais se aproximam, ou seja, adoptam dois traços distintivos

da autoridade régia tal como ela podia ser concebida pelos

mais simples dos seus súbditos. No livro de Camilo, o

processo de identificação da condição régia do impostor é

exposto exactamente nesses termos por Cristóvão Bezerra, um

dos miguelistas que nele reconhecem o seu rei. Apenas o

facto de coxear, particularidade distintiva do príncipe

proscrito desde que tivera em Lisboa, em 1828, o célebre

acidente ocorrido quando conduzia um carro puxado a mulas,

se acrescenta àquelas características:

“ O primo Cristóvão redarguiu, magoado na sua

esperteza, que era tão certo estar el-rei em Calvos como

era certo ter-lhe beijado a régia mão em casa do abade na

noite sempre memorável de 16 de Abril de 1845. Que só o

tinha visto de relance em Braga em 32, mas que o conhecera

pelo retrato; que até manquejava um pouco, tal e qual como

se sabe, depois que Sua Majestade quebrou a perna em 28.

Que el-rei nomeara o abade de Calvos seu capelão-mor, que

dera a mitra de Coimbra ao abade de Priscos e fizera

chantre o Padre Manuel das Agras, e que a ele lhe fizera a

mercê de duas Comendas e o título de barão do Bouro, afora

graças a diversos clérigos e leigos”59

Em Roma, o encarregado de negócios de Portugal

verberava o príncipe proscrito por razões muito semelhantes

junto do Cardeal Secretário de Estado por este, logo em

1835, ter atribuído títulos e recompensas a alguns dos seus

59 Idem, p.47

34

Page 35: D. Miguel e os seus duplos

partidários. Em ofício de Maio de 1835 dizia Miguéis de

Carvalho para Lisboa:

“ Falei ao Cardeal no mau efeito que produziram em

Portugal os actos que D. Miguel estava praticando aqui,

como dar condecorações, postos a Militares (…) e pedi-lhe

que ponderasse a Sua Santidade que estas loucuras não

podiam ter outro resultado, que o de indispor o seu Governo

com o nosso, e prejudicar ao arranjo dos negócios. O

Cardeal disse-me que já havia falado ao Santo Padre nas

condecorações, porque lhe havia constado que D. Miguel

tinha conferido da Ordem de Cristo a um Pintor que está em

Casa da Princesa de Dinamarca e que por ordem de S.

Santidade tinha estranhado aos agentes de D. Miguel aquele

procedimento. Quanto aos outros actos de que o Cardeal se

riu, prometeu que também falaria ao Santo Padre”60.

Guedes Quinhones, o “miguelista renegado” cujas

Memórias foram publicadas por Maria Teresa Mónica, não deixa

de fustigar as prebendas com que o príncipe exilado

contemplava em Roma alguns dos seus partidários escrevendo,

em particular, contra as comendas com que agraciou os três

irmãos Mencacci, seus íntimos amigos e cujo pai, um romano

rico, lhe concedeu vários empréstimos pondo também à sua

disposição algumas das residências em que morou.

Referindo-se a essas e a outras benesses

distribuídas por portugueses residentes quer em Roma quer

em Portugal – do Marquês do Lavradio a quem fez Camarista e

deu a grã-cruz da Conceição ao Remexido a quem fez

60 Arquivo Histórico-Diplomático, Cxª 244, Oficio nº 17 de…de Maio de 1835

35

Page 36: D. Miguel e os seus duplos

brigadeiro – Quinhones comparou a condição de D. Miguel em

Roma à de Sancho Pança no seu reinado na ilha dos

lagartos61. Uma comparação literária que pretendia acentuar

o quanto o poder de D. Miguel, rei exilado, era um poder

fictício. Não era bem essa, porém, a posição do encarregado

de negócios português a quem o comportamento do príncipe a

este respeito continuava a inquietar.

Em Julho de 1836 Migueis de Carvalho voltava a

referir a atribuição de distinções várias a portugueses e

estrangeiros:

“D. Miguel deixou Porto D’Anzio, e dentro de poucos

dias irá ocupar o Palácio comprado ultimamente pelo seu

Camarista, e amigo Mencacci. Continua a distribuir

profusamente condecorações a nacionais e estrangeiros. Há

pouco nomeou Cavaleiro da Ordem da Conceição Gaetano

Muroni, vulgo Gaetanino, Borleiro do Papa e muito valido, o

qual por ordem de S. Santidade recusou a condecoração”62.

No ambiente do exílio as distinções de D. Miguel

podiam ter tanto de incómodas como de estratégicas em

particular quando visavam estrangeiros. Se as que foram

atribuídas aos Mencacci tinham uma retribuição material

mais ou menos imediata, dadas as dificuldades financeiras

com que D. Miguel e os exilados lutavam em Roma, outras,

como a que Gaetano Muroni terá recusado, teriam o interesse

político de, caso fossem aceites, implicarem também a

61 Memórias de um Miguelista Renegado – António Guedes de Quinhones, Prefácio, leitura e notas de Maria Teresa Mónica, Publicações Alfa, Lisboa, 1990, pp. 29-3262 Arquivo Histórico-Diplomático, Cxª 244, mç. Ofício nº … de 9 de Julho de 1836

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Page 37: D. Miguel e os seus duplos

aceitação do estatuto de quem as atribuía. No contexto do

acomodamento em curso desde 1835-1836 entre o governo

português e a Santa Sé, era importante para a causa

miguelista não apenas não perder posições já adquiridas

relativamente à condição real de D. Miguel mas marcar mais

algumas que impedissem futuros recuos.

As mercês de D. Miguel no exílio nada tinham de facto

de arbitrário, embora só pudessem ser concretizáveis num

futuro incerto, quando a sua causa triunfasse e ele

voltasse ao seu reino: a sua distribuição correspondia a

uma contínua reafirmação da sua condição real e interromper

o processo que significava a possibilidade de conceder

graças correspondia, de certo modo, a renunciar a essa

condição.

É possível pensar que os sucessivos e frustrados

planos dos miguelistas exilados de regresso a Portugal e de

restauração não decorressem apenas da má gestão dos poucos

meios de que dispunham, mas que correspondessem, também,

pelo menos nalguns casos, à necessidade de emitir sinais

que mantivessem viva a esperança entre os seus partidários

que permaneciam em Portugal numa efectiva restauração do

regime miguelista e num efectivo regresso de D. Miguel. Era

importante pelo menos difundir a mensagem de que os

exilados não tinham baixado os braços e continuavam a

trabalhar em favor da causa.

As notícias que eram divulgadas em Portugal sobre a

organização de expedições em Roma e o regresso de D. Miguel

à Península, quer a Espanha para combater ao lado de D.

37

Page 38: D. Miguel e os seus duplos

Carlos quer a Portugal para se colocar à testa dos seus

adeptos, difundidas oficialmente a partir da legação de

Portugal em Roma ou tomando a forma de rumores, podem ser

eventualmente melhor entendidas nesta perspectiva.

Mesmo o circunspecto encarregado de negócios de

Portugal em Roma, que seguia com o maior cuidado todos os

sinais que pudessem significar projectos miguelistas que

pusessem em causa a estabilidade do governo em Portugal,

percebeu desde cedo que os emigrados usavam muitas vezes o

rumor como arma política. A propósito das notícias que

circulavam na cidade sobre projectos miguelistas escrevia

em Maio de 1835:

“Quanto a alistamentos, não existem por agora neste

Estado e, pelo contrário, alguns dos Portugueses aqui

refugiados têm entrado no Serviço do Papa alistando-se nos

Regimentos Suíços que se acham em Bolonha e suas

imediações. É verdade que os sequazes de D. Miguel têm

falado a algumas pessoas para os acompanharem para

Portugal; mas isto por mera impostura, para se darem alguma

importância, sendo certo que actualmente todas as

esperanças desta gente estão nas vitórias de D. Carlos, e

nos esforços que farão em favor deste os Absolutistas da

Europa”63.

Em Julho desse mesmo ano o encarregado de negócios em

Roma atribuía ao próprio D. Miguel a origem dos boatos

postos a circular sobre o futuro da causa de D. Carlos

depois da morte do general carlista Zumalacarregui que

63 Arquivo Histórico-Diplmático, Cxª. 244, ofício nº 18 de 20 de Maio de 1835

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Page 39: D. Miguel e os seus duplos

tinha lançado a consternação entre os seus partidários nos

Estados Pontifícios:

(…) “tais esperanças (…) de voltar a Portugal, acham-

se hoje em grande decadência pela morte (…) de

Zumalacarregui, e pelas notícias do calor com que a

Inglaterra e a França se aplicam a socorrer a Rainha de

Espanha. Sei com toda a certeza que, para dar alento ao

descorçoado Mencacci e outros que tais, que estavam

aflitíssimos com a suposição de que a Causa dos

Pretendentes morria com Zumalacarregui, (D. Miguel)

encarregou uma pessoa do seu séquito de espalhar que o

General Valdez havia desertado para D. Carlos com uma

grande parte do exército da Rainha”64.

3. A “roda-viva”

É possível que a enorme mobilidade que caracterizou a

estadia de D. Miguel nos estados pontifícios possa

entender-se melhor dentro destas coordenadas.

Na verdade, para além das viagens a Génova e a Pádua

que realizou inesperadamente nos seus primeiros tempos em

Roma, o príncipe proscrito pautou a sua actividade ao longo

do período em que ali residiu por um evoluir constante e64 Idem, ofício nº 31 de 7 de Julho de 1835

39

Page 40: D. Miguel e os seus duplos

quase febril entre as suas três casas: o palácio que

habitava na própria cidade, a residência de Albano e a

residência de Porto d’Anzio, a 28 milhas da cidade, para

onde se retirava frequentemente e onde passava largas

temporadas.

A “inacção” que, segundo Miguéis de Carvalho, os

partidários de D. Miguel lhe atribuíam em consequência,

provavelmente, da hesitação que demonstrava face aos vários

e desencontrados planos que os seus partidários lhe

apresentavam, não era incompatível com esta outra faceta

que os poucos autores que se debruçaram sobre a estadia

romana do Infante qualificaram de “irrequieta”65.

D. Miguel parecia tomado de uma necessidade quase

constante de movimento, aparecia onde menos se esperava e

era também frequente não aparecer quando e onde era

esperado, como ocorreu aquando do encontro que fora

combinado com António José Guião e o Marquês do Lavradio,

respectivamente seus antigos ministro e embaixador, às

portas de Roma.

Essas frequentes deslocações representavam um

verdadeiro quebra-cabeças para o encarregado de negócios

Miguéis de Carvalho que pretendia descortinar nelas uma

lógica política que nem sempre teriam. É o que parece ter

ocorrido no início de Agosto quando D. Miguel veio

inesperadamente a Roma, onde apenas se terá demorado quatro

horas, para se avistar com o seu “estado-maior” a quem

tinha marcado um encontro no caminho:

65 Padre José de Castro, Portugal em Roma, União Gráfica SARL, Lisboa, 1939, 2º vol., p. 241-288

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Page 41: D. Miguel e os seus duplos

“ Na segunda página do meu precedente ofício

informei a V. Ex.ª da volta de D. Miguel a Roma ontem pelas

7 horas da manhã. Ele demorou-se aqui apenas 4 horas para

conferenciar com Lavradio, Guião, e Frei Fortunato, e

tornou a voltar para Tivoli. Parece que D. Miguel havia

determinado aos dois primeiros indivíduos que viessem ao

seu encontro na estrada de Tivoli, e que não se achando

eles no lugar indicado e à hora prescrita D. Miguel

enfastiado de esperá-los ali, veio a Roma. O objecto da

vinda ainda não pude penetrar” 66.

Não ser encontrado onde se esperava e proceder a

múltiplas deslocações sem objectivo aparente tinha, como

contrapartida, o chegar sem se fazer anunciar e, por vezes,

sem ser conhecido e sem se dar a conhecer.

Uma das mais completas ilustrações desta forma de agir

acha-se logo no início da sua estadia em Roma no modo como

se apresentou no Convento romano dos Capuchinhos onde

estavam alguns frades chegados de Portugal:

“No dia 1º de Outubro saiu Sua Alteza a visitar

diversas igrejas das mais notáveis e foi também a S. Paolo.

Junto das Ave-Marias foi ao Convento dos Capuchinhos e

procurando o Guardião lhe disse que desejava falar aos

Religiosos ultimamente chegados de Lisboa. Não se dando

porém o Sr. D. Miguel a conhecer não compareceram aqueles

Religiosos por se acharem no refeitório. Saindo do convento

66 Arquivo Histórico-Diplomático, Cxª. 244, oficio nº 34 de 12 de Agosto de 1835

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Page 42: D. Miguel e os seus duplos

Sua Alteza disse ao porteiro que dissesse aos sobreditos

Religiosos que D. Miguel os tinha vindo visitar”67.

Uns dias depois os religiosos a quem era destinada a

inesperada visita dirigiram-se-lhe quando ele saía da

igreja dos jesuítas onde tinha assistido à consagração do

novo bispo de Riete, e procuraram esclarecer o mistério da

sua ida ao convento perguntando ao príncipe se este os

conhecia. Este retorquiu-lhes que sim e, continuando a

andar, pediu-lhe que “ rogassem a Deus que fizesse alguma

coisa”68.

A surpresa dos religiosos capuchinhos pode pôr-se em

paralelo com a do avô miguelista de Jacinto do romance A

Cidade e as Serras de Eça de Queirós quando, também, ele se

deparou inesperadamente com o infante em Lisboa e foi por

ele conhecido:

“ O meu amigo Jacinto nasceu num palácio com cento e

nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de

cortiça e de olival. (…) Seu avô, aquele gordíssimo Jacinto

a quem chamavam em Lisboa “o D. Galeão” descendo uma tarde

pela travessa da Trabuqueta, rente ao muro de um quintal

que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja

e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse

momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de

baetão verde e botas de picador, que galhofando e com uma

força fácil, levantou o enorme Jacinto – até lhe apanhou

bengala de castão de ouro que rolava pelo lixo. Depois,

demorando nele os olhos pestanudos e pretos:

67 Idem, ofício nº 45 de 10 de Outubro de 183468 Idem.

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Page 43: D. Miguel e os seus duplos

- Oh Jacinto “ Galeão”, que andas tu aqui, a estas

horas a rebolar pelas pedras?

E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o senhor

infante D. Miguel!”69

Embora desde o início da sua estadia em Roma D. Miguel

circulasse frequentemente entre as várias residências que

mantinha, estas características parecem ter-se acentuado em

meados do ano de 1836 período em que a actividade política

dos miguelistas em Roma se terá acentuado também assim como

os seus planos de restauração.

Nessa época, em que o encarregado de negócios Miguéis

de Carvalho acreditava existirem efectivos sinais de uma

retirada de D. Miguel de Roma, a sua mobilidade foi

sublinhada nos seguintes termos:

“Passando ao que nos pode interessar por estas partes,

começarei por informar a V. Ex.ª que se observa que D.

Miguel, o qual antecedentemente vinha de Porto D’Anzio a

Roma, e voltava para ali com tal ou qual regularidade,

depois de algum tempo não faz outra vida, que andar de um

lugar para o outro, ocultando sempre os seus movimentos.»

A seguir Miguéis de Carvalho encarava várias hipóteses

que pudessem servir de explicação àquilo que designava por

“moto contínuo de D. Miguel” atribuindo-o mesmo à

necessidade de evitar tanto os credores como os portugueses

que lhe pediam dinheiro. Uma outra hipótese que sugere como

possível explicação “ da roda-viva” em que, segundo as suas

palavras, D. Miguel andava tinha a ver com os preparativos

69 Eça de Queirós, A Cidade e as Serras, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, Fixação do texto e notas de Helena Cidade Moura. (1ª Ed. …)

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Page 44: D. Miguel e os seus duplos

ocultos de uma fuga para a Galiza a que os seus amigos o

instigavam70.

Apesar de, nesse ano de 1836, os planos miguelistas se

sucederem, o infante continuou sempre em Roma mesmo se

muitas notícias davam como segura a sua intenção de partir

para a Península Ibérica; a “roda-viva”, porém, continuava.

No fim do ano, Migueis de Carvalho descrevia assim o modo

como circulava entre as suas três residências de Roma,

Albano e Porto d’Anzio:

“ (…) ele (D. Miguel) anda quase sempre girando de um

para outro sítio e quando falta neste é suposto achar-se

naquele. Esta táctica é bem provável que seja pensada e

dirigida para ocultar a sua futura evasão principalmente em

Roma, onde mais lhe interessa que ela se ignore, ao menos

por algum tempo”71.

Mas não foi apenas nesta conjuntura que as múltiplas

idas e vindas de D. Miguel mereceram um particular

interesse a Miguéis de Carvalho.

As frequentes deslocações do infante entre as suas

várias residências nos Estados Pontifícios mereciam-lhe no

início de 1839 as seguintes reflexões:

“ D. Miguel há tempo a esta parte vive numa

inquietação extraordinária. Não se fixa por mais de um até

dois dias nos sítios que hoje frequenta que são Roma,

Albano e Porto d’Anzio. Esta inquietação data do momento em

que lhe foi conhecido o discurso do Trono que produziu

70 Idem, ofício nº 16 de 10 de Junho de 183671 Arquivo Histórico-Diplomático, Cx.ª244, ofício nº 34 de 6 de Dezembro de 1836

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Page 45: D. Miguel e os seus duplos

aqui, tanto entre os miguelistas portugueses como entre os

seus partidistas, efeitos de que já informei V.E.ª nos meus

precedentes ofícios”72.

De facto, as negociações com a Santa Sé já tinham

progredido o suficiente em 1838 para permitir à rainha D.

Maria II, no Discurso do Trono de 1839, anunciar como

próximo o restabelecimento das relações diplomáticas entre

os dois estados, notícia que terá espalhado a inquietação

entre os partidários de D. Miguel em Roma a começar,

segundo Miguéis de Carvalho, pelo próprio infante. É

duvidoso, no entanto, que as explicações políticas que o

encarregado de negócios encontrava sucessivamente para

justificar a “inquietação” do príncipe tivessem fundamento;

se tivermos em conta as descrições constantes da

correspondência de Miguéis de Carvalho no seu conjunto, há

que admitir que a referida “inquietação” se parece muito

mais com um traço distintivo de uma forma mais ou menos

permanente de estar e de agir de que encontramos também

traços noutros tempos e lugares da sua vida.

As surpresas e situações inesperadas que resultavam

desse modo de estar e viver em “roda-viva” tornavam

porventura mais verosímeis, para muitos dos partidários da

causa miguelista no interior do reino, as notícias de um

imprevisto e inesperado regresso de D. Miguel a Portugal.

72 Arquivo Histórico-Diplomático, Cx.ª 244, ofício nº 4 de 29 de Janeiro de 1839

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Page 46: D. Miguel e os seus duplos

Conclusão

As características acima enunciadas remetem-nos mais

uma vez para a ficção. A observação feita pelo

contemporâneo Guedes de Quinhones sobre as semelhanças

entre D. Miguel em Roma e Sancho Pança na sua ilha, sugere,

a partir da obra recente de Juan José Saer, Lignes du

Quichotte, uma outra comparação. Depois de defender a tese

de que a intensa mobilidade de D. Quixote esconde a sua

impossibilidade de empreender qualquer verdadeiro

movimento, Saer afirma a radical negação da epopeia que o

romance de Cervantes constitui e sublinha, deste modo, a

forma como a ilusão do movimento em D. Quixote oculta uma

completa imobilidade:

“ L’illusion du déplacement occulte le fait essentiel

de l’histoire, à savoir que sur le plan de son évolution

intellectuelle et morale, et au regard de sa capacité de

modifier la réalité – c’est ce qui l’a poussé à se mettre

en route – Don Quichotte en est toujours au même point »73.

A aproximação a esta visão de D. Quixote é sem dúvida

tentadora, tendo em conta a constante mobilidade física de

D. Miguel e a mobilidade política dos seus partidários em

Itália na sucessiva preparação de intervenções em Portugal,

visando a restauração, nunca concretizadas ou votadas a um73 Juan José Saer , Lignes du Quichotte, , Paris , Ed. Verdier, 2003

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Page 47: D. Miguel e os seus duplos

permanente fracasso que lhes confere um indiscutível pendor

anti-épico.

A incapacidade de modificar a realidade tem sido

precisamente considerada uma das características da cultura

política portuguesa que se relacionaria com a recorrência,

desde os séculos XVI e XVII, do mito sebástico, a crença no

regresso de D. Sebastião, o rei desaparecido no norte de

África na sequência da batalha de Ksar-el-Kébir (Alcácer-

Quibir), e de que houve também várias personificações

históricas.

O sebastianismo seria um traço identitário dos

portugueses que se traduziria, em momentos de crise, na

expectativa de um Salvador secular. A figura de D. Miguel

não escapou a essa assimilação.

Veiga Torres, um autor que se interessou pela

permanência na sociedade portuguesa do mito do regresso de

D. Sebastião, considerou, por exemplo, que o sebastianismo

tinha inspirado “ os bandos tradicionalistas do velho

Portugal” e que, ainda em 1846, na revolta camponesa da

Maria da Fonte dele se “ encontra(vam) ecos nas guerrilhas

do Alto-Minho comandadas pelo Padre Casimiro”74.

No entanto, embora o paralelismo entre o mito de D.

Miguel e o D. Sebastião tenha sido já várias vezes evocado,

não parece que esta comparação possa ser transposta para o

horizonte de experiência dos partidários do infante que

protagonizaram os episódios relativos aos falsos D. Miguel

74 José Veiga Torres, “ Um exemplo de resistência popular – o sebastianismo”, Revista Critica de Ciências Sociais, nº 2, Set-Dez. de 1978, p. 31

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Page 48: D. Miguel e os seus duplos

ou que viveram sucessivamente a expectativa do seu

regresso, mesmo quando em textos provenientes de letrados

encontramos o epíteto de “Desejado”, termo que designava

habitualmente D. Sebastião, aplicado a D. Miguel.

Na verdade, como já tivemos ocasião de escrever75,

embora o miguelismo tenha acolhido muitos traços proféticos

e integrado uma espécie de “messianismo difuso”, para citar

a feliz expressão utilizada por Armando Malheiro da Silva

na sua obra, Miguelismo. Ideologia e Mito76, isso não significa que

represente uma actualização do sebastianismo, mesmo se

traços morfológicos como a crença no regresso do rei e os

falsos D. Miguel parecem forçar a analogia.

Tanto quanto hoje se sabe, nos anos 20 e 30 do século

XIX, o sebastianismo, enquanto referência a que se

encontrava ligada uma literatura profética precisa, parecia

estar em vias de desaparecimento. É certo que a

revivescência da crença sebástica durante as invasões

napoleónicas é um facto atestado, embora haja um importante

trabalho crítico a empreender sobre as suas manifestações.

Mas quando procuramos orientar-nos no universo das

produções literárias associadas ao mito sebástico, em

particular as chamadas trovas de Bandarra, um corpus

literário nascido no século XVI e sucessivamente reeditado

nos séculos seguintes, embora com muitas variações, não

encontramos verdadeiras bases para sustentar a comparação.

75 Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira, Rebeldes e Insubmissos. Resistências Populares ao Liberalismo (1834-1844), Porto, Afrontamento, 200276 Armando Malheiro da Silva, Miguelismo. Ideologia e Mito, Livraria Minerva, Coimbra, 1993

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Page 49: D. Miguel e os seus duplos

José van den Basselaar, em estudo recente, não

conseguiu de facto identificar nesse período mais de três

edições das trovas contendo reactualizações das velhas

profecias. Na primeira, publicada em 1822, identificava-se

o Imperador, cujo regresso era anunciado, com D. Pedro e a

ilha escondida, de onde regressaria, com o Brasil; na

segunda, publicada no ano seguinte, o rei “Desejado” era D.

João VI cujo regresso do Brasil fora de facto longamente

esperado no reino entre 1807 e 1821 e, na última, publicada

em 1833, em plena guerra civil entre liberais e

absolutistas, os poemas de Bandarra eram interpretados como

prenúncio de vitória liberal e, mais uma vez, era D. Pedro

que era identificado como o “Desejado”77.

No entanto, mesmo que não seja particularmente útil

insistir na analogia entre as expectativas criadas em torno

de um possível regresso de D. Miguel ao reino e o

sebastianismo, essas expectativas, tais como as que se

produziram em relação a D. Sebastião, participam de um

fundo cultural comum presente em vários contextos

históricos e geográficos da Europa moderna, adentrando-se

pelo século XIX, como fica suficientemente ilustrado na

obra já citada de Yves-Marie Bercé sobre o mito do rei

“escondido”. A ligação do tema do rei escondido com várias

configurações míticas da monarquia no período moderno, em

particular as que se prendem com o imaginário do rei como

dispensador último de justiça, deve ser particularmente

realçada.

77 José van den Basselaar, O Sebastianismo – História sumária, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987

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Page 50: D. Miguel e os seus duplos

O paralelo ganha assim um novo sentido e as

expectativas sobre o regresso de D. Miguel têm certamente

vantagem em ser aproximadas de outras manifestações de

esperança colectiva no regresso de reis ausentes ou

desaparecidos, nomeadamente as que ocorreram em períodos

cronologicamente mais próximos. É o caso das que levaram ao

reconhecimento de Fernando IV das Duas Sicílias num jovem

Corso que, com outros companheiros, ia juntar-se ao

exército de Condé para combater a república napolitana e as

tropas francesas, ou das esperanças dos realistas franceses

em relação a Luís XVII assim como algumas das

personificações que as acompanharam78.

Em Portugal foi sem dúvida o promissor destino

literário que o romancista Camilo Castelo Branco assegurou

à figura do “falso D. Miguel” que se constituiu como o

melhor veículo para deslocar para o terreno da história

esta faceta do miguelismo.

Não espanta, nessa medida, que D. Miguel e os seus

duplos, históricos e literários, apareçam como um campo de

prospecção bastante prometedor para a exploração dessa

grande jazida que representam as relações entre literatura

e história.

Constituem, sem dúvida, também um muito conveniente

ponto de observação sobre a constituição do miguelismo como

mito político e sobre a construção histórica da personagem

de D. Miguel.

78 Yves-Marie Bercé, op.cit. pp 312-345

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Page 51: D. Miguel e os seus duplos

Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira

CEHCP-ISCTE

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