A ficção desvenda a história: D. Miguel e os seus duplos ** Introdução Como noutros países do Sul da Europa a implantação do liberalismo em Portugal no século XIX foi um processo longo e conflituoso. Na verdade, embora a primeira revolução liberal portuguesa tenha ocorrido em 1820 inscrevendo-se assim na vaga revolucionária que, da Espanha ao Piemonte, sacudiu vários estados da Europa meridional, foi só em 1834 que os liberais conseguiram vencer a tenaz resistência dos partidários do absolutismo. Tal como os carlistas em Espanha os absolutistas portugueses tinham também como referência uma figura dinástica cujo direito ao trono evocavam: o infante D. Miguel, filho segundo de D. João VI e irmão de D. Pedro o 1
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A ficção desvenda a história: D. Miguel e os seus duplos **
Introdução
Como noutros países do Sul da Europa a implantação do
liberalismo em Portugal no século XIX foi um processo longo
e conflituoso.
Na verdade, embora a primeira revolução liberal
portuguesa tenha ocorrido em 1820 inscrevendo-se assim na
vaga revolucionária que, da Espanha ao Piemonte, sacudiu
vários estados da Europa meridional, foi só em 1834 que os
liberais conseguiram vencer a tenaz resistência dos
partidários do absolutismo.
Tal como os carlistas em Espanha os absolutistas
portugueses tinham também como referência uma figura
dinástica cujo direito ao trono evocavam: o infante D.
Miguel, filho segundo de D. João VI e irmão de D. Pedro o
1
herdeiro do trono que viria a tornar-se no primeiro
imperador do Brasil.
Defendendo que D. Pedro, ao tornar-se soberano da antiga
colónia portuguesa sul-atlântica cuja independência ele
próprio tinha promovido, perdera os seus direitos ao trono
português, os partidários do absolutismo rejeitaram a Carta
Constitucional outorgada por este príncipe e recusaram a
solução dinástica por ele proposta que passava pelo
casamento da sua filha D. Maria da Glória, em quem abdicou
do trono português, com o seu irmão D. Miguel.
Quando em 1828 D. Miguel chegou a Portugal para,
supostamente, dar execução às disposições do seu irmão, foi
de facto aclamado rei e rei absoluto pelos seus apoiantes
sustentados por uma forte mobilização popular.
Assim, contrariamente ao que aconteceu com o
carlismo espanhol com o qual o miguelismo português manteve
sempre estreitas afinidades, a contra-revolução instalou-se
verdadeiramente no poder em Portugal durante o tempo que
durou o governo de D. Miguel, entre 1828 e 1834.
O miguelismo só viria de facto a ser vencido
pela força das armas, na guerra civil de 1832-34, onde D.
Miguel e os seus partidários enfrentaram D. Pedro e o
exército liberal formado durante a emigração política dos
partidários do constitucionalismo, tendo como base uma das
ilhas do arquipélago dos Açores, a ilha Terceira.
Derrotado D. Miguel na guerra civil, D. Maria
da Glória, a jovem filha de D. Pedro, subiu ao trono com o
nome de D. Maria II. D. Miguel, pelo seu lado, seria
2
obrigado a exilar-se, tendo vivido primeiro em Roma,
durante 13 anos, sob protecção do papa Gregório XVI, e
depois em Londres de onde partiria, finalmente, para a
Alemanha, onde se casou e viveu até à morte ocorrida em
1866.
Durante o exílio, a possibilidade de que
recuperasse o trono foi constantemente acalentada em
Portugal, alimentando não só motins e guerrilhas mas também
uma expectativa quase messiânica entre os seus adeptos,
expressa em sucessivas vagas de rumores anunciando a
eminência do seu regresso.
As expectativas relativas ao regresso de D.
Miguel a Portugal transformaram-no, sem dúvida, numa
configuração tardia do “rei escondido” que alimentou a
mitologia política da Europa moderna1, tendo assumido
particular vigor em Portugal onde o desaparecimento em
Marrocos do rei D. Sebastião nos finais do século XVI
esteve na origem do “sebastianismo”.
Para sustentar o paralelismo não faltou mesmo o
aparecimento de personificações do príncipe ausente, sob a
forma de falsos D. Miguel, à imagem do que acontecera com
os falsos D. Sebastião.
Mais célebre que os seus duplos históricos viria
a ser contudo um duplo literário do rei exilado: o que foi
1** Uma versão simplificada deste artigo pode encontrar-se num capítulo daobra D. Miguel I , Círculo de leitores ( no prelo)? Ver sobre o tema : Yves- Marie Bercé, Le Roi Caché. Sauveurs et imposteurs. Mythes politiques populaires dans l’Europe Moderne, Paris, Fayard, 1990
3
criado pelo grande ficcionista português de oitocentos
Camilo Castelo Branco no seu romance A Brasileira de Prazins2.
Nascido em Lisboa em 1825, Camilo Castelo Branco
passaria no entanto quase toda a sua vida no Norte de
Portugal onde faleceu em 1890. Esse Norte, que tem como
“capital” a cidade do Porto, constituirá o cenário mais
frequente dos seus numerosos romances onde os tópicos
literários do romantismo se cruzam com uma ironia corrosiva
e caustica a que nada, nem mesmo o próprio autor e os seus
artifícios literários são poupados.
Será nesse registo satírico que Camilo Castelo
Branco irá encenar a chegada a uma aldeia da província do
Minho em 1845 de um falso D. Miguel que, ingenuamente, o
padre da freguesia e muitos notáveis da região acolherão
como se do verdadeiro se tratasse.
Sátira dos círculos miguelistas do Norte do
país que o autor terá conhecido de perto, o falso D. Miguel
de Camilo tornar-se-á posteriormente numa figura de
referência do miguelismo, bem mais palpável e reconhecível,
aliás, que os seus congéneres históricos.
Ilustrando de forma particularmente
significativa as complexas relações entre literatura e
história, a personagem fictícia criada por Camilo
contribuiu assim, como neste artigo se procurará mostrar,
não só para desocultar os “falsos D. Miguel” históricos,
mas também para entender mais latamente o complexo fenómeno
2 Camilo Castelo Branco, A Brasileira de Prazins, Lello e Irmão Editores, Porto s/d (1ª Ed. 1882)
4
político que foi o miguelismo no Portugal do século XIX
assim como a construção da sua mitologia.
1. Expectativas e rumores
Nos primeiros tempos do exílio de D. Miguel, depois da
sua derrota na guerra civil de 1832-34 contra os liberais,
à frente dos quais se encontrava o seu irmão D. Pedro, uma
das hipóteses de acção política contra o novo regime
instalado em Portugal desde 1834 mais debatida e temida era
a da organização de uma réplica da expedição que dos Açores
trouxera muitos desses mesmos liberais para o continente em
1832 para restaurar a dinastia e a Carta Constitucional.
Em Roma, onde D. Miguel se encontrava desde Setembro
de 1834, a hipótese foi considerada durante anos sucessivos
pelos dirigentes miguelistas e por vários partidários do
infante que continuavam a desembarcar em Itália com novos
planos de acção tendentes a fazer sair o príncipe daquilo
que alguns consideravam ser a sua “inacção”.
Em Novembro de 1834 já se dizia em Roma “que em toda
a Europa se está(va) fazendo uma colecta a favor do Sr. D.
Miguel para preparar uma expedição contra Portugal e que já
se (tinham) reunido dois milhões de francos”. O encarregado
de negócios do governo português considerou logo o assunto
5
muito seriamente e consagrou muito do seu tempo a procurar
informar-se sobre os meios e os apoios que os miguelistas
podiam estar a mobilizar neste sentido em diversos estados
italianos inclusivamente na própria Santa Sé.
Nestes primeiros tempos, até o embaixador de França
terá abordado directamente o assunto com o Papa Gregório
XVI, um dos poucos soberanos que havia reconhecido o
governo miguelista e que recebera D. Miguel como rei quando
ele ali chegou depois da derrota. O embaixador ter-lhe-á
dito constar “que as potências do Norte haviam já
concorrido com a sua quota-parte” e que se tratava agora
“de fazer a derrama pelos príncipes de Itália”,
acrescentando que “sabia que as finanças de Sua Santidade
não lhe permitiam este sacrifício mas que no Estado
Pontifício não deixaria de haver muitos zelantes que
concorressem com o seu dinheiro para um tal fim”. O Papa
terá mostrado espanto com a notícia, que ouviu “como se
fosse pela primeira vez”, dizendo que lhe parecia
impossível que tal expedição se tentasse e que houvesse
quem para ela concorresse nas “circunstâncias do momento”3.
As “ circunstâncias do momento” remetiam
principalmente para o evoluir da cena política espanhola,
dado que a Espanha, onde se desenrolava a primeira guerra
Carlista, era, à época, o principal teatro onde se travava
o combate entre liberalismo e reacção, combate seguido com
a maior atenção e empenho pela Santa Sé.
3Arquivo Histórico – Diplomático, Legação de Portugal em Roma, Cxª 244 Oficionº 52 de 24 de Outubro de 1834
6
O representante do governo português nos estados
pontifícios, Miguéis de Carvalho, preocupar-se-á em
esclarecer o eventual contributo de outros príncipes
italianos em particular do duque de Modena, bem conhecido
pelos seus sentimentos antiliberais e a cujos estados D.
Miguel acabava de se deslocar.
Depois da morte de D. Pedro, que ocorreu em Lisboa em
Setembro de 1834, considerava-se muito seriamente em
Portugal a hipótese do regresso de D. Miguel que se julgava
ter saído de Itália, aventando-se a possibilidade de ele
ter desembarcado em Espanha, na Catalunha4.
A partir deste momento numerosas serão as vezes em
que, tanto em Itália como em Portugal, se teme o regresso
do Infante quer à frente de uma expedição quer sem ela. Na
verdade, a hipótese de que D. Miguel regressasse, não à
testa de um exército mas apenas com um pequeno numero de
partidários com o intuito de reunir e mobilizar para a
revolta os seus adeptos, que se acreditava serem ainda
muito numerosos, também nunca foi descartada.
Em Maio de 1835 julgava-se particularmente verosímil a
partida de D. Miguel de Roma para Espanha para se juntar às
forças do seu tio D. Carlos5 cujas vitórias, muito
empoladas pelos exilados, eram consideradas um firme
prenúncio do triunfo da causa absolutista na Península4 Arquivo Histórico-Mililitar, 1ª Div., 22ª Sec. Cxª. 35, Mç 8, Vários ofíciosdo Ministério da Guerra.
5 D. Carlos Maria Isidro cuja reivindicação do trono espanhol deu origem à primeira guerra carlista era irmão de D. Carlota Joaquina quefoi rainha de Portugal pelo seu casamento com o futuro D. João VI , sendo, consequentemente, tio de D. Miguel.
7
Ibérica. Em Maio de 1835 Miguéis de Carvalho escrevia para
Lisboa:
«Neste últimos dias se têm espalhado diversos boatos
relativamente à próxima partida de D. Miguel para Espanha,
e parece indubitável que é aconselhado para isso, porquanto
além de que os seus amigos de todos os países desejam que
ele faça esta tentativa e reputam ocasião favorável a
actual em que imaginam a causa de D. Carlos como
assegurada; acresce que se estimaria muito aqui a sua
partida, afim que cessasse o socorro pecuniário que
mensalmente se lhe está subministrando, o qual, posto não
seja de grande importância, como informei em um dos meus
precedentes ofícios, contudo é objecto de crítica nas
actuais circunstâncias em que as finanças Pontifícias se
acham em tão deplorável estado.»6
Neste contexto, a possibilidade de um embarque
clandestino de D. Miguel de Porto d’Anzio, um pequeno porto
do mar Tirreno onde passava largas temporadas, parecia uma
hipótese tão plausível que o representante de Portugal em
Roma não hesitou em pedir o auxílio do secretário da
embaixada francesa, Tallenay, para que este ali se
deslocasse e verificasse in loco as hipóteses que tinha o
príncipe exilado de embarcar dali nalgum pequeno bote que o
transportasse para uma embarcação maior que estivesse ao
largo. Não o querendo fazer ele próprio por considerar
difícil que, sendo aquela uma muito pequena povoação, a sua
presença não fosse assinalada, Miguéis de Carvalho
6 Arquivo HistóricoDiplomático, Legação de Portugal em Roma, oficio 22 de5 deJunho 1835
8
convenceu Tallenay “da seriedade do caso” e este partiu
para Porto d’Anzio a 31 de Maio de onde regressou a 2 de
Junho. As informações que transmitiu eram optimistas na
medida em que, segundo comunicou, “depois de miúdos
exames”, não descobrira nenhum indício do temido embarque.
Não deixara no entanto de confirmar que tal embarque era
possível e que não seria fácil impedi-lo caso fosse
tentado7.
Apesar de relativamente tranquilizadoras estas
notícias não evitaram que continuassem os rumores sobre a
eventual fuga de D. Miguel de Itália, por mar ou por terra,
afirmando Miguéis de Carvalho que nunca se falara tanto
como naquela ocasião da partida de D. Miguel para Espanha.
Em Portugal, em Novembro de 1835, o Ministério da
Guerra oficiava aos governadores militares das províncias
para que estivessem de prevenção em relação a uma possível
entrada em Portugal das forças de D. Carlos através da
Galiza e alertando-os também para a eventualidade de D.
Miguel ter regressado à Península em companhia do infante
espanhol D. Sebastião8, seu sobrinho, com quem se julgava
poder ter entrado em Espanha.
Embora considerando haver razões que faziam acreditar
“ ser apócrifa a vinda do Usurpador à península”, o
Ministério da Guerra prevenia os governadores militares das7 Arquivo Histórico-Diplomático, , Legação de Portugal em Roma, Cxª 244,Oficio 22, de 5 de Junho 18358 D. Sebastião era sobrinho de D. Miguel por ser filho de uma sua irmã,a infanta D. Maria Teresa, princesa da Beira, que casara com opríncipe espanhol D. Pedro Carlos. O infante D. Sebastião apoiará a causa de D. Carlos em Espanha e serávisto por certos sectores contra-revolucionários portugueses como umaalternativa política e dinástica a D. Miguel.
9
províncias contra qualquer tentativa de transtorno da ordem
e do sossego públicos e “contra qualquer delinquente que se
arroje à temeridade de pretender suscitar novamente a
guerra civil que tantas calamidades causou neste país”9.
Estes rumores decorriam do facto do Infante D.
Sebastião, filho da Infanta D. Maria Teresa, princesa da
Beira, e do príncipe espanhol D. Pedro Carlos ter chegado
recentemente a Espanha vindo de Roma, onde estivera desde
Junho, e onde várias vezes se encontrara com o tio D.
Miguel. As razões que presidiam às prevenções do governo
português contra a eventualidade de um regresso de D.
Miguel à Península tornam-se ainda mais claras se tivermos
em conta informações como a que Miguéis de Carvalho
enviava, à época, para Paris e para Lisboa:
“Pelo ofício que dirigi ao Ministro de Sua Majestade
em Paris na data de 14 do corrente, será V. Ex.ª informado
do grande entusiasmo que veio excitar entre os Miguelistas
a notícia da entrada do Infante D. Sebastião em Espanha, e
das diligências que se fizeram para induzir D. Miguel a
seguir o exemplo do sobrinho”10.
Embora as notícias que sucessivamente foram avançadas
ao longo dos anos que D. Miguel permaneceu em Roma de que
este abandonara a Itália e se dirigira para Espanha ou
Portugal se pautassem, ao nível oficial, pela prudência,
não deixaram nunca de lançar a inquietação no governo
português em particular enquanto a guerra entre os adeptos
9 AHM, 1ª Div, 21ª Sec.,Cxª 2, mç 410 Arquivo H-Diplomático, Cxª 244, Oficio 46 de 24 de Novembro de 1835
10
de D. Carlos e o governo da rainha prosseguia em Espanha,
ou seja até 1839-40.
Se a hipótese de uma expedição contra Portugal se ía
tornando cada vez mais inverosímil à medida em que se
agravava o espectáculo de evidente penúria de que, desde
1835, começavam a dar sinais em Roma as hostes miguelistas,
a eventualidade do regresso clandestino de D. Miguel a
Portugal para se pôr à frente de uma revolta dos seus
partidários inspirava mais sérias inquietações.
A presença do príncipe proscrito continuava a ser
considerada altamente perigosa pelo seu potencial
mobilizador, e os rumores que anunciavam o seu regresso e
eram veiculados pelas mais diversas categorias de pessoas
nos primeiros anos do pós-guerra eram tidos por muito
perturbadores, em particular nas províncias do norte, que
se considerava regurgitarem de apoiantes seus.
Aí multiplicavam-se notícias e rumores relativos a
expedições e revoltas miguelistas assim como ao regresso de
D. Miguel a Portugal.
Na cidade de Braga, por exemplo, logo em Outubro de
1834, as autoridades comunicavam que se tinham espalhado a
“notícia aterradora” de estar “ o ex-infante D. Miguel em
Elvas onde tinha dado beija-mão havendo já ordem nessa
cidade para ser aclamado”11. Os divulgadores da notícia
eram barqueiros.
Na mesma ocasião circulava na vila dos Arcos, no Alto-
Minho, o rumor da volta de D. Miguel até ao fim do ano
acompanhado de um exército estrangeiro e da morte da11 AHM, 1ª Div, 22ª Sec,Cx.ª 29, mç. 3
11
rainha. As autoridades faziam notar que o boato corria as
feiras para grande regozijo dos miguelistas e do clero12.
Na vila de Barcelos, não longe de Braga, igualmente
situada na populosa província do Minho, um ex-frade capucho
foi preso, em Novembro do mesmo ano, por anunciar a vinda
de D. Miguel e o breve regresso dos frades aos conventos13.
Pela mesma época as autoridades militares da província,
dando conta do prosseguimento deste género de rumores,
relacionavam-nos com a circulação insistente da notícia de
estar D. Miguel em Espanha14.
De Melgaço, na fronteira com a Galiza, o governador
militar pedia esclarecimentos a Lisboa e a Ourense sobre o
rumor segundo o qual D. Miguel tinha desembarcado na
Catalunha, manifestando receio de que houvesse partidários
seus que quisessem atravessar a fronteira e de que
partidários de D. Carlos viessem para Portugal15. Em finais
de Novembro de 1834 foi preso na vila da Póvoa do Varzim,
também no noroeste, um paisano e a sua filha por dizerem “
que a rainha já não estava em Lisboa e que D. Miguel vinha
aí”16.
Embora os boatos circulassem com mais intensidade
quando algum acontecimento ou rumor relativo a D. Miguel
chegava de Itália, como é possível constatar com a nova
vaga de notícias sobre o regresso do príncipe proscrito a
Portugal que se desencadeou cerca de um ano depois, em
designados os liberais da ala esquerda, precaviam-se assim
contra os seus vários adversários referindo pouco depois,
no Diário do Governo, que tanto D. Miguel em Roma como os seus
apoiantes não desistiam “ de se mostrarem cheios de
esperança” de voltarem a Portugal “fixando épocas, umas
depois das outras, na forma costumada”34.
Se o tom desta notícia sobre os manejos de D. Miguel e
dos seus partidários em Itália deixava trair o descrédito
que começava a atingir os projectos miguelistas, não há
dúvida que ela foi publicada num momento sensível dado que,
a 23 de Junho, o Ministro dos Negócios Estrangeiros
exprimira a sua inquietação junto do Ministro dos Negócios
da Guerra por estarem a partir de Itália para Gibraltar,
“com tensões de passarem depois para o Algarve, vários
indivíduos Miguelistas (…) trazendo passaportes com nomes
supostos”.
Pouco tempo depois, o Cônsul português em Génova
informava o governo não só de estarem os miguelistas “
exultantes com os triunfos de D. Carlos” mas também do
facto bem mais inquietante de lhes terem sido enviados de
Livorno e de vários pontos da Sardenha navios com munições
de guerra. Segundo o Cônsul, os Miguelistas continuavam a
reunir-se no convento dos Jesuítas onde não se ouviria “ se
não falar nas façanhas do Remexido”, ou seja, dos sucessos
do líder de uma guerrilha antiliberal que se formara
recentemente em Portugal na serra do Algarve. Recomendava-
se por isso a máxima vigilância das embarcações que do34 Diário do Governo, nº 156 de 5 de Julho de 1837
20
porto de Gibraltar seguissem para aquela província
meridional35.
Temia-se mais uma vez uma expedição contra Portugal
que se suspeitava agora pudesse desembarcar no Sul
aproveitando os movimentos favoráveis a D. Miguel que ali
se desenvolviam. Receava-se também, uma vez mais, o
regresso do próprio D. Miguel mesmo na ausência de
expedição. Esse receio era explicitamente expresso a 20 de
Julho numa circular confidencial proveniente do Ministério
da Guerra mandando que os governadores militares tomassem
providências por constar, através de ofícios do Cônsul
português em Tânger, que “ uma fragata napolitana tinha
chegado aquele porto dizendo-se “que a bordo desta ía um
individuo suspeito, cujos sinais físicos se assemelha(vam)
aos do ex-infante D. Miguel”36. (…).
Nenhum ano foi, porém, mais fértil em alarmes do que o
ano de 1838.
Para além das precauções mais ou menos permanentes
tomadas em relação a qualquer deslocação de D. Miguel ou
dos seus partidários em Itália, que redobrava caso houvesse
qualquer indício de saída daquela Península, o governo
começou a manifestar a sua preocupação, desde os primeiros
dias de Março, com as notícias recebidas do embaixador de
Espanha em Portugal relativas à saída do porto de Livorno
com destino a Gibraltar do bergantim “Eduardo”, com
bandeira Sarda, que conduzia a bordo 3500 espingardas que
se afirmava destinaram-se à Península ibérica, 2000 à serra
35 AHM., 1ª Div., 25ª sec., cxª 53, mç. 436 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 51, mç. 1
21
de Ronda em Espanha e 1500 ao Algarve. Foram de imediato
pedidas medidas urgentes ao Ministério da Guerra no sentido
de impedir o desembarque daquele armamento no reino37.
A intensa actividade das guerrilhas no Algarve, que
contavam com o apoio das populações rurais da serra,
justificava, naturalmente, que esta tivesse passado a ser a
província mais constantemente vigiada e onde parecia mais
provável registar-se qualquer tipo de intervenção externa
por parte dos miguelistas, quer se tratasse do desembarque
de armas ou dinheiro para apoiar os rebeldes, quer se
tratasse da temida expedição.
Esta última hipótese voltou a estar na ordem do dia a
partir do mês de Abril de 1838 com contornos bastante
alarmantes. Assim, do Ministério dos Negócios do Reino
comunicava-se ao Ministro da Guerra a notícia, divulgada
por autoridade galegas, de que “das portos do levante” se
dirigia a Gibraltar para seguir para o Algarve “ uma
expedição miguelista em que se trabalha(va) com muita
actividade”. No mesmo ofício referia-se de novo o possível
desembarque de armamento naquela região38.
Essa eventualidade tornou-se mais precisa nos dias
seguintes pois continuavam a chegar ao Ministério do Reino
“ repetidas notícias de que os sectários da Usurpação
intenta(vam) verificar um desembarque de armamento para a
serra do Algarve , ao Norte do Cabo de S. Vicente, ou nas
praias da Baleeira , Pessegueiro e outras, mais próximas
das matas do Campo de Ourique”, onde se “acoutava uma
37 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 53, mç. 338 AHM., 1ª Div., 25ª Sec.,, cxª 53, mç. 4
22
guerrilha de miguelistas”. Evocava-se a necessidade de
mandar postar forças militares em vários portos do litoral
sul e na praça de Sines, para obstar ao desembarque ou
apreender o armamento caso este se verificasse. Pedia-se
igualmente que o Ministério da Guerra desse rápidas ordens
neste sentido por se acreditar andar já cruzando os mares
fronteiros à costa Sul de Portugal um brigue que se
presumia ser aquele que trazia o referido armamento39.
Poucos dias depois voltava a falar-se oficialmente de
uma expedição miguelista “que se estaria activando” segundo
notícias transmitidas pelo Capitán General da Estremadura
espanhola. O local considerado mais provável para um
desembarque continuava a ser o Algarve, mas mencionava-se
agora também a hipótese de ele vir a ocorrer nas ilhas
adjacentes. Estas informações, enviadas aos Administradores
Gerais de todos os Distritos do reino, eram acompanhadas de
ordens para que se empregasse a maior vigilância sobre todo
o litoral, de Norte a Sul – do Minho ao Algarve. Mandava-se
ainda que fossem postas em alerta as guardas nacionais40.
Ainda que se esperasse um acontecimento eminente,
continuava a ser hipotética a forma que ele poderia
revestir. A incerteza quanto aos planos dos miguelistas em
Itália manifestava-se em ofício enviado no dia 1 de Maio
desse mesmo ano de 1838 ao Comandante da 4ª Divisão
Militar, a Divisão da província do Minho, no sentido de que
tomasse providências, em conjunto com as autoridades civis
do distrito e com os comandantes das divisões militares
39 AHM., Idem.40 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 52, mç. 2 e cxª 56, mç 5
23
mais próximas, para prevenir um possível “ projecto
atrevido para perturbar a ordem estabelecida”.
O projecto, de acordo com novas informações havidas
dos cônsules espanhóis em Baiona e Marselha, tinha a ver
com a chegada a Livorno de uma corveta russa procedendo de
Atenas com dinheiro, 150 homens e 18 peças, que se julgava
destinada a proteger uma expedição que deveria sair de
Génova para reunir-se às forças do ex-infante D. Carlos em
Espanha. Acreditava-se também ter já saído dos portos do
Levante uma “facção miguelista” que tentaria eventualmente
desembarcar nas costas de Portugal, de preferência no
Algarve, mas que também se julgava possível ir reunir-se às
tropas Carlistas em Espanha “ com o fim de hostilizar o
país pelo lado da fronteira”41.
No mês de Julho o alerta prosseguia mas a incerteza
perdurava. O comandante da Divisão Auxiliar Portuguesa que
havia sido mobilizada para sustentar o combate dos liberais
em Espanha, oficiava ao governador da 4ª divisão militar
informando que acabava de receber notícias de D. Miguel
segundo as quais o infante “ havendo recebido algumas somas
e organizado os desgraçados que o seguiram se dispunha a
deixar a Itália”. Julgava que a sua tentativa o
encaminhasse para Portugal e alertava para o facto de ele
procurar desembarcar no Minho para dali passar a Trás-os-
Montes” dando as suas ordens para uma melhor defesa da
fronteira42.
41 AHM., 1ª Div., 22ª Sec., cxª 53, mç. 2442 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 57, mç.4
24
Entre Outubro e Novembro, o governo divulgava
junto das autoridades locais mais notícias, extractadas de
ofícios do encarregado de negócios de Portugal em Roma, que
voltavam a abrir inquietantes perspectivas quanto a uma
possível invasão de Portugal. Desta vez os planos
atribuídos aos miguelistas eram no entanto bastante
diferentes. Dizia-se que seria o Infante D. Sebastião o
primeiro a franquear as fronteiras portuguesas, como lugar-
tenente de D. Miguel, à testa de uma divisão que se
estabeleceria num ponto indeterminado do país onde se
reuniriam os seus partidários. Em Roma julgava-se que esses
partidários se encontravam sobretudo nas províncias do
Minho e Trás-os-Montes e parte da Beira 43 .
No mês de Dezembro, a Secretaria de Estado dos
Negócios do Reino voltava a apelar aos administradores
gerais dos distritos para, em conjunto com as autoridade
militares, empregarem todas as medidas “de vigor e energia”
contra “os perturbadores do sossego público”, em
consequência das notícias que continuavam a chegar de
Itália. Essas notícias davam conta de que D. Miguel e os
seus não “cessavam de conspirar” e de procurar “ alienar o
espírito dos povos com doutrinas cismáticas, princípios
exagerados de democracia e discussões entre os
constitucionais”, prosseguindo também no intento de invadir
Portugal.
Tratava-se ainda do projecto que se dizia vir a ser
comandado pelo infante D. Sebastião que se supunha
preparar-se para entrar no país por uma das províncias do43 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., cxª 53, mç.3
25
Minho, Trás-os-Montes ou Beira, onde contava achar grande
apoio dos miguelistas. Acrescentava-se ainda que o governo
fora informado que da Holanda e da Inglaterra e de outros
portos estrangeiros tinham partido, com direcção a
Portugal, “vários emissários com o fim de promoverem a
sublevação e dar impulso aos seus planos sediciosos”. Para
este fim contavam com dinheiro que lhes deveria ser
remetido de Itália em moeda de ouro portuguesa e
espanhola44.
A invasão miguelista não se concretizou nem tendo à
testa o príncipe proscrito nem sem ele, embora as ameaças
de forças avançadas carlistas, em certos casos contando com
a participação de miguelistas, tenha sido particularmente
intensa neste ano45. Mas foi neste contexto de expectativas
e rumores que, em Maio de 1838, o príncipe proscrito voltou
ao seu reino na convicção de alguns dos seus mais humildes
súbditos. O regresso deu-se sob a forma do aparecimento de
um falso D. Miguel, um impostor, que pressagiava um outro
que a literatura iria tornar particularmente famoso: aquele
que Camilo Castelo-Branco transformaria num dos
protagonistas do seu famoso romance A Brasileira de Prazins.
44 AHM., 1ª Div., 25ª Sec. Cxª 53, mç. 4 45 Para as ameaças “carlo-miguelistas” na fronteira portuguesa ver a nossa tese de doutoramento publicada sob o título: Rebeldes e Insubmissos. Resistências populares ao liberalismo, 1834-1844, Porto, Afrontamento, 2002
26
2. Os duplos de D. Miguel
O episódio ocorreu numa pequena localidade da Beira,
Jarmelo, próxima da fronteira, um pouco ao norte da Guarda.
Considerando os diversos planos existentes nas fileiras
miguelistas, dentro e fora do país, relativos a acções a
desenvolver na zona fronteiriça, em coordenação mais ou
menos directa com as forças Carlistas que actuavam do lado
espanhol, é bem possível que os acontecimentos de Jarmelo
formassem parte de um plano mais amplo cujos contornos por
hora nos escapam.
Esses acontecimentos, que já tivemos ocasião de expor
brevemente noutro lugar46, foram comunicados em primeira-
mão às autoridades por um regimento de Castelo Branco nos
finais de Abril de 1838. Nessa participação referia-se o
aparecimento, próximo da Guarda, de uma nova guerrilha,
mais numerosa do que as que nesse mesmo ano e em anos
anteriores tinham sido detectadas nas Beiras, e com
características bastante diferentes dos outros movimentos
que se tinham desencadeado naquela região.
A guerrilha era composta, segundo estas informações,
por cerca de 150 homens e a sua principal característica
era a de a maioria dos indivíduos que a compunham se46 Op. cit., pp. 228-234
27
apresentarem desarmados. O grupo apareceu nas imediações da
cidade da Guarda e confrontou-se no dia 29 de Abril com um
pequeno contingente de soldados de linha e vários corpos da
Guarda Nacional. Para surpresa dos defensores da ordem os
guerrilheiros conseguiram dispersar estas forças e pô-las
em fuga, depois de terem ferido um dos comandantes do
destacamento e de terem aprisionado alguns membros das
Guardas Nacionais.
Poucos dias depois o ministro da Guerra recebia
notícias do quartel-general da cidade da Guarda anunciando
que a guerrilha miguelista fora “ posta em completa
dispersão” no dia 30. Informava-se ainda que os homens que
a integravam pertenciam maioritariamente a povoações do
concelho de Jarmelo e alguns aos de Belmonte. Mais
inesperada era a referência a terem aqueles homens sido
“seduzidos e engajados por um espanhol” que se julgava ser
um ex-frade e tinha “feito acreditar aos povos” que era o
ex-infante D. Miguel47.
No Diário do Governo de 12 de Maio divulgava-se a notícia
da formação e quase imediata dispersão da guerrilha
voltando a referir-se que tinha por comandante um ex-frade
espanhol e que os seus membros haviam sido seduzidos por
ele e “por outros indivíduos de nenhuma consideração que
procuravam fazer crer ser o dito ex-frade o Usurpador D.
Miguel”. Acrescentava-se ainda a possibilidade de estar
entre eles um antigo oficial do exército miguelista, o
brigadeiro Rebocho48. No fim do mês o Periódico dos Pobres no
47 AHM., 1ª Div., 25ª Sec., Cxª 41, mç., 848 Diário do Governo nº 112 de 12 de Maio de 1838
28
Porto, nas “notícias do interior” dava como certo que o ex-
frade espanhol que personificara o Infante era o célebre
Alvito Buela conhecido como grande panfletário miguelista.
Segundo a mesma fonte o falso D. Miguel já dera beija-mão e
fizera alguns despachos49
Apesar de se afirmar que os mentores do movimento eram
todos homens de “nenhuma consideração”, nas semanas
seguintes foi demitido o Administrador do Concelho de
Jarmelo e a sua Câmara Municipal dissolvida referindo-se
expressamente que a medida tinha resultava do facto de não
ter a Câmara impedido a reunião da guerrilha mas ainda de
alguma forma ter auxiliado a sua formação”50. Quanto ao
Administrador do Concelho, a sua demissão era justificada
explicitamente por ter estado implicado na formação do
movimento51.
As repetidas notícias relativas ao rápido
“aniquilamento da guerrilha” que circularam na imprensa a
partir dessa data não eram inteiramente confirmadas pelos
relatórios militares. Ainda no mês de Maio o governador da
praça de Almeida, informando o Conde de Bonfim das
operações levadas a cabo contra ela, referia que a força
armada, que tinha sido enviada para a combater, conseguira
matar alguns guerrilheiros “ prender outros e fazer
dispersar o resto em grupos pequenos”52. Nos meses
seguintes as autoridades viram-se de toda a evidência a
49 Periódico dos Pobres no Porto nº 125 de 29 de Maio de 183850 Idem, nº 114 de 15 de Maio de 183851 Idem.52 AHM., 1ª Div., 24ª Sec., Cxª. 3, mç. 11
29
braços com esses “pequenos grupos” e a região só voltou a
ser dada como pacificada no início de Agosto53.
Anos mais tarde, em 1844, quando se preparava uma nova
e importante revolta miguelista, o episódio de Jarmelo foi
evocado como exemplo a não seguir por um dos organizadores
desse novo movimento, o Dr. Cândido de Figueiredo e Lima
antigo professor da Universidade de Coimbra e membro de um
dos últimos governos miguelistas. Em carta a António
Ribeiro Saraiva, activo agente de D. Miguel em Londres, o
Dr. Cândido, escrevia:
“É desnecessário lembrar a V. Ex.ª a importância do
nosso movimento que se deve preparar com toda a segurança
por não termos recurso algum dos que teve o Conde de
Amarante e Marquês de Chaves de poder entrar na Galiza, em
Espanha, em caso de algum mau sucesso, como aconteceu já em
1838 no concelho de Jarmelo onde, pela má direcção, tudo
foi sacrificado com grande destruição e sangue dos
inocentes povos”54.
O caso não era inédito. Depois do primeiro exílio de
D. Miguel em 1824, ocorrido na sequência da frustrada
revolta ultra-realista da Abrilada, uma vaga de rumores
relativos ao seu regresso tinha também servido de pano de
fundo ao aparecimento, em Junho de 1825, de um falso D.
Miguel, o primeiro de que há notícia, na Praça de Almeida,
próximo da fronteira espanhola 55.53 Diário do Governo nº 181 de 2 de Agosto de 183854 Carta de Cândido Figueiredo e Lima a António Ribeiro Saraiva de 28 de Setembro de 1844 in A revolta miguelista contra o Cabralismo, p. 64.55 Sobre este episódio ver: António Monteiro Cardoso, “ Notíciasaterradoras e pasquins incendiários. A circulação de rumores em Trás-os-Montes no tempo das lutas liberais”, Actas do Colóquio Contra-revolução,
30
Mas será na época em que se preparou a última
tentativa de insurreição armada miguelista em Portugal, a
mesma insurreição que António Ribeiro Saraiva e o Dr.
Cândido projectavam em 1844 e viria a ter lugar no quadro
revolta popular da Maria da Fonte e da guerra da Patuleia
em 1846-4756, que irá aparecer o mais célebre “falso D.
Miguel” de que há conhecimento. No romance de Camilo
Castelo Branco este episódio tem lugar numa pequena
paróquia da província do Minho, S. Gens de Calvos, no
Carnaval de 1845.
O “falso D. Miguel ”, de Camilo, duplamente falso
porque nascido da ficção, virá no entanto a tornar-se bem
mais famoso do que qualquer um dos seus congéneres
históricos. Para além disso, a memória destes últimos teria
sido sem dúvida também, como já foi dito, muito mais
difícil de desocultar sem a sua existência. Clara
manifestação do axioma segundo o qual “o romance é a
imaginação da história”57.
Em todo o caso a história do falso D. Miguel da
paróquia de Calvos criada por Camilo é apresentada como uma
Espírito público e Opinião (secs. XVIII e XIX), CEHCP, Lisboa (no prelo)56 A Maria da Fonte foi um movimento de revolta rural que se iniciou na Primavera de 1846 no norte de Portugal contestando várias medidas recentemente tomadas pelo governo do ministro Costa Cabral. Rapidamente politizada essa revolta iria saldar-se por um confronto armado entre o governo e as oposições coligadas lideradas pelos setembristas, a ala esquerda do liberalismo. Muitos miguelistas integraram também a coligação e a guerra a que este confronto deu origem – A Patuleia – só acabou com a intervenção das potências da Quádrupla Aliança, nomeadamente da Espanha e da Inglaterra.57 A frase, com sabor a axioma, consta de uma entrevista dada ao jornal“Le Monde”de 12 de Maio de 2006 pela romancista francesa Anne-MarieGarat a propósito da publicação do seu último romance, Dans la main dudiable.
31
ficção mas não uma ficção qualquer. Segundo o autor, ela
inspirar-se-ia num episódio real que lhe teria sido narrado
por um indivíduo das suas relações, “um ilustrado
cavalheiro da Póvoa do Lanhoso o Sr. Joaquim Ferreira de
Melo e Andrade da casa nobilíssima das Argas, falecido com
mais de oitenta anos de idade em 1881”.
Camilo faz ainda questão de esclarecer que, nos seus
traços básicos, a história lhe fora confirmada pelo famoso
Padre Casimiro José Vieira, um eclesiástico que muito se
distinguira na sua juventude pela sua participação na
revolta do Minho de 1846, a revolta da Maria da Fonte,
durante a qual tinha comandado uma parte das hostes
populares. Apesar de todos estes “certificados de
veracidade”, não deixa de acrescentar que a imprensa
contemporânea não tinha nunca, que ele soubesse, referido
este pseudo D. Miguel, rematando com uma profissão de fé
nas “revelações do ancião de Lanhoso”58.
O D. Miguel de Camilo assemelha-se muito ao de Jarmelo
na sua atitude e nos seus gestos sem que exista nenhuma
evidência de que o romancista tenha tido conhecimento do
que se passara naquele concelho da Beira em 1838.
Tal como o D. Miguel da Beira também o do Minho dá
beija-mão e assina despachos na residência paroquial de São
Gens de Calvos onde se instala depois de se ter feito
“reconhecer”pelo ingénuo abade da paróquia durante a
representação, pelo Entrudo, de um entremez numa eira.
Desta feita, porém, não se trata de uma parte de um plano
58 Camilo Castelo Branco, A Brasileira de Prazins, Lello e Irmão Editores,Porto s/d, p. 45 (1ª Ed. 1882)
32
gizado por partidários do rei exilado que quisessem,
eventualmente, experimentar as potencialidades
mobilizadoras da figura real, mas sim da montagem de um
golpe que põe em cena interesses privados do seu principal
agente, um soldado desmobilizado do exército de D. Miguel,
sem modo de vida regular, que acompanhara depois, no
Algarve, a guerrilha do Remexido.
O impostor que se acolhe à freguesia de Calvos e
transforma em improvisada Corte a pobre residência do seu
pároco distribui as mais diversas mercês entre os seus
modestos cortesãos: faz Capelão-mor e Dom Prior de
Guimarães o seu hospedeiro, Visconde o seu cúmplice,
General e Conde o tenente-coronel Cerveira Lobo, morgado de
Quadros, e Sargento-mor um pedreiro, Zeferino das Lamelas,
filho de um antigo voluntário realista que ficara “tolhido
das pernas” ao lançar-se ao rio Tâmega no Inverno depois de
ter protagonizado, em 1838, um pequeno motim em favor de D.
Miguel. Em troca come os melhores petiscos que saem das
mãos da cozinheira do Abade, bebe os melhores e mais
antigos vinhos da sua garrafeira e prepara-se para fazer um
pé-de-meia com os generosos donativos dos realistas da
região desejosos de ver triunfar um movimento que voltasse
a pôr D. Miguel no trono.
Apesar dos detalhes que Camilo fornece na
Brasileira de Prazins a propósito do seu falso D. Miguel do
concelho da Póvoa do Lanhoso, os aspectos mais marcantes da
sua presença ali não divergem muito dos que são atribuídos
ao D. Miguel da Beira. Independentemente dos contextos, os
33
dois fazem despachos e admitem ao beija-mão os que deles
mais se aproximam, ou seja, adoptam dois traços distintivos
da autoridade régia tal como ela podia ser concebida pelos
mais simples dos seus súbditos. No livro de Camilo, o
processo de identificação da condição régia do impostor é
exposto exactamente nesses termos por Cristóvão Bezerra, um
dos miguelistas que nele reconhecem o seu rei. Apenas o
facto de coxear, particularidade distintiva do príncipe
proscrito desde que tivera em Lisboa, em 1828, o célebre
acidente ocorrido quando conduzia um carro puxado a mulas,
se acrescenta àquelas características:
“ O primo Cristóvão redarguiu, magoado na sua
esperteza, que era tão certo estar el-rei em Calvos como
era certo ter-lhe beijado a régia mão em casa do abade na
noite sempre memorável de 16 de Abril de 1845. Que só o
tinha visto de relance em Braga em 32, mas que o conhecera
pelo retrato; que até manquejava um pouco, tal e qual como
se sabe, depois que Sua Majestade quebrou a perna em 28.
Que el-rei nomeara o abade de Calvos seu capelão-mor, que
dera a mitra de Coimbra ao abade de Priscos e fizera
chantre o Padre Manuel das Agras, e que a ele lhe fizera a
mercê de duas Comendas e o título de barão do Bouro, afora
graças a diversos clérigos e leigos”59
Em Roma, o encarregado de negócios de Portugal
verberava o príncipe proscrito por razões muito semelhantes
junto do Cardeal Secretário de Estado por este, logo em
1835, ter atribuído títulos e recompensas a alguns dos seus
59 Idem, p.47
34
partidários. Em ofício de Maio de 1835 dizia Miguéis de
Carvalho para Lisboa:
“ Falei ao Cardeal no mau efeito que produziram em
Portugal os actos que D. Miguel estava praticando aqui,
como dar condecorações, postos a Militares (…) e pedi-lhe
que ponderasse a Sua Santidade que estas loucuras não
podiam ter outro resultado, que o de indispor o seu Governo
com o nosso, e prejudicar ao arranjo dos negócios. O
Cardeal disse-me que já havia falado ao Santo Padre nas
condecorações, porque lhe havia constado que D. Miguel
tinha conferido da Ordem de Cristo a um Pintor que está em
Casa da Princesa de Dinamarca e que por ordem de S.
Santidade tinha estranhado aos agentes de D. Miguel aquele
procedimento. Quanto aos outros actos de que o Cardeal se
riu, prometeu que também falaria ao Santo Padre”60.
Guedes Quinhones, o “miguelista renegado” cujas
Memórias foram publicadas por Maria Teresa Mónica, não deixa
de fustigar as prebendas com que o príncipe exilado
contemplava em Roma alguns dos seus partidários escrevendo,
em particular, contra as comendas com que agraciou os três
irmãos Mencacci, seus íntimos amigos e cujo pai, um romano
rico, lhe concedeu vários empréstimos pondo também à sua
disposição algumas das residências em que morou.
Referindo-se a essas e a outras benesses
distribuídas por portugueses residentes quer em Roma quer
em Portugal – do Marquês do Lavradio a quem fez Camarista e
deu a grã-cruz da Conceição ao Remexido a quem fez
60 Arquivo Histórico-Diplomático, Cxª 244, Oficio nº 17 de…de Maio de 1835
35
brigadeiro – Quinhones comparou a condição de D. Miguel em
Roma à de Sancho Pança no seu reinado na ilha dos
lagartos61. Uma comparação literária que pretendia acentuar
o quanto o poder de D. Miguel, rei exilado, era um poder
fictício. Não era bem essa, porém, a posição do encarregado
de negócios português a quem o comportamento do príncipe a
este respeito continuava a inquietar.
Em Julho de 1836 Migueis de Carvalho voltava a
referir a atribuição de distinções várias a portugueses e
estrangeiros:
“D. Miguel deixou Porto D’Anzio, e dentro de poucos
dias irá ocupar o Palácio comprado ultimamente pelo seu
Camarista, e amigo Mencacci. Continua a distribuir
profusamente condecorações a nacionais e estrangeiros. Há
pouco nomeou Cavaleiro da Ordem da Conceição Gaetano
Muroni, vulgo Gaetanino, Borleiro do Papa e muito valido, o
qual por ordem de S. Santidade recusou a condecoração”62.
No ambiente do exílio as distinções de D. Miguel
podiam ter tanto de incómodas como de estratégicas em
particular quando visavam estrangeiros. Se as que foram
atribuídas aos Mencacci tinham uma retribuição material
mais ou menos imediata, dadas as dificuldades financeiras
com que D. Miguel e os exilados lutavam em Roma, outras,
como a que Gaetano Muroni terá recusado, teriam o interesse
político de, caso fossem aceites, implicarem também a
61 Memórias de um Miguelista Renegado – António Guedes de Quinhones, Prefácio, leitura e notas de Maria Teresa Mónica, Publicações Alfa, Lisboa, 1990, pp. 29-3262 Arquivo Histórico-Diplomático, Cxª 244, mç. Ofício nº … de 9 de Julho de 1836
36
aceitação do estatuto de quem as atribuía. No contexto do
acomodamento em curso desde 1835-1836 entre o governo
português e a Santa Sé, era importante para a causa
miguelista não apenas não perder posições já adquiridas
relativamente à condição real de D. Miguel mas marcar mais
algumas que impedissem futuros recuos.
As mercês de D. Miguel no exílio nada tinham de facto
de arbitrário, embora só pudessem ser concretizáveis num
futuro incerto, quando a sua causa triunfasse e ele
voltasse ao seu reino: a sua distribuição correspondia a
uma contínua reafirmação da sua condição real e interromper
o processo que significava a possibilidade de conceder
graças correspondia, de certo modo, a renunciar a essa
condição.
É possível pensar que os sucessivos e frustrados
planos dos miguelistas exilados de regresso a Portugal e de
restauração não decorressem apenas da má gestão dos poucos
meios de que dispunham, mas que correspondessem, também,
pelo menos nalguns casos, à necessidade de emitir sinais
que mantivessem viva a esperança entre os seus partidários
que permaneciam em Portugal numa efectiva restauração do
regime miguelista e num efectivo regresso de D. Miguel. Era
importante pelo menos difundir a mensagem de que os
exilados não tinham baixado os braços e continuavam a
trabalhar em favor da causa.
As notícias que eram divulgadas em Portugal sobre a
organização de expedições em Roma e o regresso de D. Miguel
à Península, quer a Espanha para combater ao lado de D.
37
Carlos quer a Portugal para se colocar à testa dos seus
adeptos, difundidas oficialmente a partir da legação de
Portugal em Roma ou tomando a forma de rumores, podem ser
eventualmente melhor entendidas nesta perspectiva.
Mesmo o circunspecto encarregado de negócios de
Portugal em Roma, que seguia com o maior cuidado todos os
sinais que pudessem significar projectos miguelistas que
pusessem em causa a estabilidade do governo em Portugal,
percebeu desde cedo que os emigrados usavam muitas vezes o
rumor como arma política. A propósito das notícias que
circulavam na cidade sobre projectos miguelistas escrevia
em Maio de 1835:
“Quanto a alistamentos, não existem por agora neste
Estado e, pelo contrário, alguns dos Portugueses aqui
refugiados têm entrado no Serviço do Papa alistando-se nos
Regimentos Suíços que se acham em Bolonha e suas
imediações. É verdade que os sequazes de D. Miguel têm
falado a algumas pessoas para os acompanharem para
Portugal; mas isto por mera impostura, para se darem alguma
importância, sendo certo que actualmente todas as
esperanças desta gente estão nas vitórias de D. Carlos, e
nos esforços que farão em favor deste os Absolutistas da
Europa”63.
Em Julho desse mesmo ano o encarregado de negócios em
Roma atribuía ao próprio D. Miguel a origem dos boatos
postos a circular sobre o futuro da causa de D. Carlos
depois da morte do general carlista Zumalacarregui que
63 Arquivo Histórico-Diplmático, Cxª. 244, ofício nº 18 de 20 de Maio de 1835
38
tinha lançado a consternação entre os seus partidários nos
Estados Pontifícios:
(…) “tais esperanças (…) de voltar a Portugal, acham-
se hoje em grande decadência pela morte (…) de
Zumalacarregui, e pelas notícias do calor com que a
Inglaterra e a França se aplicam a socorrer a Rainha de
Espanha. Sei com toda a certeza que, para dar alento ao
descorçoado Mencacci e outros que tais, que estavam
aflitíssimos com a suposição de que a Causa dos
Pretendentes morria com Zumalacarregui, (D. Miguel)
encarregou uma pessoa do seu séquito de espalhar que o
General Valdez havia desertado para D. Carlos com uma
grande parte do exército da Rainha”64.
3. A “roda-viva”
É possível que a enorme mobilidade que caracterizou a
estadia de D. Miguel nos estados pontifícios possa
entender-se melhor dentro destas coordenadas.
Na verdade, para além das viagens a Génova e a Pádua
que realizou inesperadamente nos seus primeiros tempos em
Roma, o príncipe proscrito pautou a sua actividade ao longo
do período em que ali residiu por um evoluir constante e64 Idem, ofício nº 31 de 7 de Julho de 1835
39
quase febril entre as suas três casas: o palácio que
habitava na própria cidade, a residência de Albano e a
residência de Porto d’Anzio, a 28 milhas da cidade, para
onde se retirava frequentemente e onde passava largas
temporadas.
A “inacção” que, segundo Miguéis de Carvalho, os
partidários de D. Miguel lhe atribuíam em consequência,
provavelmente, da hesitação que demonstrava face aos vários
e desencontrados planos que os seus partidários lhe
apresentavam, não era incompatível com esta outra faceta
que os poucos autores que se debruçaram sobre a estadia
romana do Infante qualificaram de “irrequieta”65.
D. Miguel parecia tomado de uma necessidade quase
constante de movimento, aparecia onde menos se esperava e
era também frequente não aparecer quando e onde era
esperado, como ocorreu aquando do encontro que fora
combinado com António José Guião e o Marquês do Lavradio,
respectivamente seus antigos ministro e embaixador, às
portas de Roma.
Essas frequentes deslocações representavam um
verdadeiro quebra-cabeças para o encarregado de negócios
Miguéis de Carvalho que pretendia descortinar nelas uma
lógica política que nem sempre teriam. É o que parece ter
ocorrido no início de Agosto quando D. Miguel veio
inesperadamente a Roma, onde apenas se terá demorado quatro
horas, para se avistar com o seu “estado-maior” a quem
tinha marcado um encontro no caminho:
65 Padre José de Castro, Portugal em Roma, União Gráfica SARL, Lisboa, 1939, 2º vol., p. 241-288
40
“ Na segunda página do meu precedente ofício
informei a V. Ex.ª da volta de D. Miguel a Roma ontem pelas
7 horas da manhã. Ele demorou-se aqui apenas 4 horas para
conferenciar com Lavradio, Guião, e Frei Fortunato, e
tornou a voltar para Tivoli. Parece que D. Miguel havia
determinado aos dois primeiros indivíduos que viessem ao
seu encontro na estrada de Tivoli, e que não se achando
eles no lugar indicado e à hora prescrita D. Miguel
enfastiado de esperá-los ali, veio a Roma. O objecto da
vinda ainda não pude penetrar” 66.
Não ser encontrado onde se esperava e proceder a
múltiplas deslocações sem objectivo aparente tinha, como
contrapartida, o chegar sem se fazer anunciar e, por vezes,
sem ser conhecido e sem se dar a conhecer.
Uma das mais completas ilustrações desta forma de agir
acha-se logo no início da sua estadia em Roma no modo como
se apresentou no Convento romano dos Capuchinhos onde
estavam alguns frades chegados de Portugal:
“No dia 1º de Outubro saiu Sua Alteza a visitar
diversas igrejas das mais notáveis e foi também a S. Paolo.
Junto das Ave-Marias foi ao Convento dos Capuchinhos e
procurando o Guardião lhe disse que desejava falar aos
Religiosos ultimamente chegados de Lisboa. Não se dando
porém o Sr. D. Miguel a conhecer não compareceram aqueles
Religiosos por se acharem no refeitório. Saindo do convento
66 Arquivo Histórico-Diplomático, Cxª. 244, oficio nº 34 de 12 de Agosto de 1835
41
Sua Alteza disse ao porteiro que dissesse aos sobreditos
Religiosos que D. Miguel os tinha vindo visitar”67.
Uns dias depois os religiosos a quem era destinada a
inesperada visita dirigiram-se-lhe quando ele saía da
igreja dos jesuítas onde tinha assistido à consagração do
novo bispo de Riete, e procuraram esclarecer o mistério da
sua ida ao convento perguntando ao príncipe se este os
conhecia. Este retorquiu-lhes que sim e, continuando a
andar, pediu-lhe que “ rogassem a Deus que fizesse alguma
coisa”68.
A surpresa dos religiosos capuchinhos pode pôr-se em
paralelo com a do avô miguelista de Jacinto do romance A
Cidade e as Serras de Eça de Queirós quando, também, ele se
deparou inesperadamente com o infante em Lisboa e foi por
ele conhecido:
“ O meu amigo Jacinto nasceu num palácio com cento e
nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de
cortiça e de olival. (…) Seu avô, aquele gordíssimo Jacinto
a quem chamavam em Lisboa “o D. Galeão” descendo uma tarde
pela travessa da Trabuqueta, rente ao muro de um quintal
que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja
e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse
momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de
baetão verde e botas de picador, que galhofando e com uma
força fácil, levantou o enorme Jacinto – até lhe apanhou
bengala de castão de ouro que rolava pelo lixo. Depois,
demorando nele os olhos pestanudos e pretos:
67 Idem, ofício nº 45 de 10 de Outubro de 183468 Idem.
42
- Oh Jacinto “ Galeão”, que andas tu aqui, a estas
horas a rebolar pelas pedras?
E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o senhor
infante D. Miguel!”69
Embora desde o início da sua estadia em Roma D. Miguel
circulasse frequentemente entre as várias residências que
mantinha, estas características parecem ter-se acentuado em
meados do ano de 1836 período em que a actividade política
dos miguelistas em Roma se terá acentuado também assim como
os seus planos de restauração.
Nessa época, em que o encarregado de negócios Miguéis
de Carvalho acreditava existirem efectivos sinais de uma
retirada de D. Miguel de Roma, a sua mobilidade foi
sublinhada nos seguintes termos:
“Passando ao que nos pode interessar por estas partes,
começarei por informar a V. Ex.ª que se observa que D.
Miguel, o qual antecedentemente vinha de Porto D’Anzio a
Roma, e voltava para ali com tal ou qual regularidade,
depois de algum tempo não faz outra vida, que andar de um
lugar para o outro, ocultando sempre os seus movimentos.»
A seguir Miguéis de Carvalho encarava várias hipóteses
que pudessem servir de explicação àquilo que designava por
“moto contínuo de D. Miguel” atribuindo-o mesmo à
necessidade de evitar tanto os credores como os portugueses
que lhe pediam dinheiro. Uma outra hipótese que sugere como
possível explicação “ da roda-viva” em que, segundo as suas
palavras, D. Miguel andava tinha a ver com os preparativos
69 Eça de Queirós, A Cidade e as Serras, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, Fixação do texto e notas de Helena Cidade Moura. (1ª Ed. …)
43
ocultos de uma fuga para a Galiza a que os seus amigos o
instigavam70.
Apesar de, nesse ano de 1836, os planos miguelistas se
sucederem, o infante continuou sempre em Roma mesmo se
muitas notícias davam como segura a sua intenção de partir
para a Península Ibérica; a “roda-viva”, porém, continuava.
No fim do ano, Migueis de Carvalho descrevia assim o modo
como circulava entre as suas três residências de Roma,
Albano e Porto d’Anzio:
“ (…) ele (D. Miguel) anda quase sempre girando de um
para outro sítio e quando falta neste é suposto achar-se
naquele. Esta táctica é bem provável que seja pensada e
dirigida para ocultar a sua futura evasão principalmente em
Roma, onde mais lhe interessa que ela se ignore, ao menos
por algum tempo”71.
Mas não foi apenas nesta conjuntura que as múltiplas
idas e vindas de D. Miguel mereceram um particular
interesse a Miguéis de Carvalho.
As frequentes deslocações do infante entre as suas
várias residências nos Estados Pontifícios mereciam-lhe no
início de 1839 as seguintes reflexões:
“ D. Miguel há tempo a esta parte vive numa
inquietação extraordinária. Não se fixa por mais de um até
dois dias nos sítios que hoje frequenta que são Roma,
Albano e Porto d’Anzio. Esta inquietação data do momento em
que lhe foi conhecido o discurso do Trono que produziu
70 Idem, ofício nº 16 de 10 de Junho de 183671 Arquivo Histórico-Diplomático, Cx.ª244, ofício nº 34 de 6 de Dezembro de 1836
44
aqui, tanto entre os miguelistas portugueses como entre os
seus partidistas, efeitos de que já informei V.E.ª nos meus
precedentes ofícios”72.
De facto, as negociações com a Santa Sé já tinham
progredido o suficiente em 1838 para permitir à rainha D.
Maria II, no Discurso do Trono de 1839, anunciar como
próximo o restabelecimento das relações diplomáticas entre
os dois estados, notícia que terá espalhado a inquietação
entre os partidários de D. Miguel em Roma a começar,
segundo Miguéis de Carvalho, pelo próprio infante. É
duvidoso, no entanto, que as explicações políticas que o
encarregado de negócios encontrava sucessivamente para
justificar a “inquietação” do príncipe tivessem fundamento;
se tivermos em conta as descrições constantes da
correspondência de Miguéis de Carvalho no seu conjunto, há
que admitir que a referida “inquietação” se parece muito
mais com um traço distintivo de uma forma mais ou menos
permanente de estar e de agir de que encontramos também
traços noutros tempos e lugares da sua vida.
As surpresas e situações inesperadas que resultavam
desse modo de estar e viver em “roda-viva” tornavam
porventura mais verosímeis, para muitos dos partidários da
causa miguelista no interior do reino, as notícias de um
imprevisto e inesperado regresso de D. Miguel a Portugal.
72 Arquivo Histórico-Diplomático, Cx.ª 244, ofício nº 4 de 29 de Janeiro de 1839
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Conclusão
As características acima enunciadas remetem-nos mais
uma vez para a ficção. A observação feita pelo
contemporâneo Guedes de Quinhones sobre as semelhanças
entre D. Miguel em Roma e Sancho Pança na sua ilha, sugere,
a partir da obra recente de Juan José Saer, Lignes du
Quichotte, uma outra comparação. Depois de defender a tese
de que a intensa mobilidade de D. Quixote esconde a sua
impossibilidade de empreender qualquer verdadeiro
movimento, Saer afirma a radical negação da epopeia que o
romance de Cervantes constitui e sublinha, deste modo, a
forma como a ilusão do movimento em D. Quixote oculta uma
completa imobilidade:
“ L’illusion du déplacement occulte le fait essentiel
de l’histoire, à savoir que sur le plan de son évolution
intellectuelle et morale, et au regard de sa capacité de
modifier la réalité – c’est ce qui l’a poussé à se mettre
en route – Don Quichotte en est toujours au même point »73.
A aproximação a esta visão de D. Quixote é sem dúvida
tentadora, tendo em conta a constante mobilidade física de
D. Miguel e a mobilidade política dos seus partidários em
Itália na sucessiva preparação de intervenções em Portugal,
visando a restauração, nunca concretizadas ou votadas a um73 Juan José Saer , Lignes du Quichotte, , Paris , Ed. Verdier, 2003
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permanente fracasso que lhes confere um indiscutível pendor
anti-épico.
A incapacidade de modificar a realidade tem sido
precisamente considerada uma das características da cultura
política portuguesa que se relacionaria com a recorrência,
desde os séculos XVI e XVII, do mito sebástico, a crença no
regresso de D. Sebastião, o rei desaparecido no norte de
África na sequência da batalha de Ksar-el-Kébir (Alcácer-
Quibir), e de que houve também várias personificações
históricas.
O sebastianismo seria um traço identitário dos
portugueses que se traduziria, em momentos de crise, na
expectativa de um Salvador secular. A figura de D. Miguel
não escapou a essa assimilação.
Veiga Torres, um autor que se interessou pela
permanência na sociedade portuguesa do mito do regresso de
D. Sebastião, considerou, por exemplo, que o sebastianismo
tinha inspirado “ os bandos tradicionalistas do velho
Portugal” e que, ainda em 1846, na revolta camponesa da
Maria da Fonte dele se “ encontra(vam) ecos nas guerrilhas
do Alto-Minho comandadas pelo Padre Casimiro”74.
No entanto, embora o paralelismo entre o mito de D.
Miguel e o D. Sebastião tenha sido já várias vezes evocado,
não parece que esta comparação possa ser transposta para o
horizonte de experiência dos partidários do infante que
protagonizaram os episódios relativos aos falsos D. Miguel
74 José Veiga Torres, “ Um exemplo de resistência popular – o sebastianismo”, Revista Critica de Ciências Sociais, nº 2, Set-Dez. de 1978, p. 31
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ou que viveram sucessivamente a expectativa do seu
regresso, mesmo quando em textos provenientes de letrados
encontramos o epíteto de “Desejado”, termo que designava
habitualmente D. Sebastião, aplicado a D. Miguel.
Na verdade, como já tivemos ocasião de escrever75,
embora o miguelismo tenha acolhido muitos traços proféticos
e integrado uma espécie de “messianismo difuso”, para citar
a feliz expressão utilizada por Armando Malheiro da Silva
na sua obra, Miguelismo. Ideologia e Mito76, isso não significa que
represente uma actualização do sebastianismo, mesmo se
traços morfológicos como a crença no regresso do rei e os
falsos D. Miguel parecem forçar a analogia.
Tanto quanto hoje se sabe, nos anos 20 e 30 do século
XIX, o sebastianismo, enquanto referência a que se
encontrava ligada uma literatura profética precisa, parecia
estar em vias de desaparecimento. É certo que a
revivescência da crença sebástica durante as invasões
napoleónicas é um facto atestado, embora haja um importante
trabalho crítico a empreender sobre as suas manifestações.
Mas quando procuramos orientar-nos no universo das
produções literárias associadas ao mito sebástico, em
particular as chamadas trovas de Bandarra, um corpus
literário nascido no século XVI e sucessivamente reeditado
nos séculos seguintes, embora com muitas variações, não
encontramos verdadeiras bases para sustentar a comparação.
75 Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira, Rebeldes e Insubmissos. Resistências Populares ao Liberalismo (1834-1844), Porto, Afrontamento, 200276 Armando Malheiro da Silva, Miguelismo. Ideologia e Mito, Livraria Minerva, Coimbra, 1993
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José van den Basselaar, em estudo recente, não
conseguiu de facto identificar nesse período mais de três
edições das trovas contendo reactualizações das velhas
profecias. Na primeira, publicada em 1822, identificava-se
o Imperador, cujo regresso era anunciado, com D. Pedro e a
ilha escondida, de onde regressaria, com o Brasil; na
segunda, publicada no ano seguinte, o rei “Desejado” era D.
João VI cujo regresso do Brasil fora de facto longamente
esperado no reino entre 1807 e 1821 e, na última, publicada
em 1833, em plena guerra civil entre liberais e
absolutistas, os poemas de Bandarra eram interpretados como
prenúncio de vitória liberal e, mais uma vez, era D. Pedro
que era identificado como o “Desejado”77.
No entanto, mesmo que não seja particularmente útil
insistir na analogia entre as expectativas criadas em torno
de um possível regresso de D. Miguel ao reino e o
sebastianismo, essas expectativas, tais como as que se
produziram em relação a D. Sebastião, participam de um
fundo cultural comum presente em vários contextos
históricos e geográficos da Europa moderna, adentrando-se
pelo século XIX, como fica suficientemente ilustrado na
obra já citada de Yves-Marie Bercé sobre o mito do rei
“escondido”. A ligação do tema do rei escondido com várias
configurações míticas da monarquia no período moderno, em
particular as que se prendem com o imaginário do rei como
dispensador último de justiça, deve ser particularmente
realçada.
77 José van den Basselaar, O Sebastianismo – História sumária, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987
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O paralelo ganha assim um novo sentido e as
expectativas sobre o regresso de D. Miguel têm certamente
vantagem em ser aproximadas de outras manifestações de
esperança colectiva no regresso de reis ausentes ou
desaparecidos, nomeadamente as que ocorreram em períodos
cronologicamente mais próximos. É o caso das que levaram ao
reconhecimento de Fernando IV das Duas Sicílias num jovem
Corso que, com outros companheiros, ia juntar-se ao
exército de Condé para combater a república napolitana e as
tropas francesas, ou das esperanças dos realistas franceses
em relação a Luís XVII assim como algumas das
personificações que as acompanharam78.
Em Portugal foi sem dúvida o promissor destino
literário que o romancista Camilo Castelo Branco assegurou
à figura do “falso D. Miguel” que se constituiu como o
melhor veículo para deslocar para o terreno da história
esta faceta do miguelismo.
Não espanta, nessa medida, que D. Miguel e os seus
duplos, históricos e literários, apareçam como um campo de
prospecção bastante prometedor para a exploração dessa
grande jazida que representam as relações entre literatura
e história.
Constituem, sem dúvida, também um muito conveniente
ponto de observação sobre a constituição do miguelismo como
mito político e sobre a construção histórica da personagem