CURRÍCULO, AVALIAÇÃO E FORMAÇÃO DOCENTE: DILEMAS E DESAFIOS SOBRE A ALFABETIZAÇÃO Os textos que compõem este painel procuram ampliar o debate entre currículo, avaliação e formação docente, levando em consideração que os três eixos são importantes para a efetivação das políticas públicas e para a consolidação de projetos educacionais. Os três trabalhos discutem a formação docente do∕a professor∕a alfabetizador/a em diferentes contextos. O primeiro, Formação inicial e continuada de professores alfabetizadores: entre dilemas e desafios, tem por objetivo analisar a formação inicial e continuada de professores alfabetizadores no Brasil durante a “Década das Nações Unidas para a Alfabetização”, uma vez que no período em questão surge a necessidade de promover ações para melhorar os índices de alfabetização dos países signatários da ONU. O segundo trabalho, Cadernos de Atividades no cotidiano da pré-escola, procura discutir a utilização que os∕as professores∕as de pré-escola da rede pública municipal do Rio de Janeiro fazem do material estruturado pela Secretaria Municipal de Educação para esta faixa etária em seu cotidiano e∕ou planejamento, a partir das perspectivas de currículo. Discute as perspectivas de alfabetização na educação infantil e o uso de materiais estruturados dentro do cenário das políticas públicas para a primeira infância, problematizando a necessidade (ou não) da adoção desses materiais para esta faixa etária. O último trabalho do painel, A educação infantil no contexto das avaliações externas e em larga escala, procura discutir a utilização dos cadernos pedagógicos produzidos pela SME∕RJ para a pré-escola, Almanaque de Férias e Cadernos de Atividades, a partir da perspectiva da avaliação. Argumenta que a preocupação pela antecipação da aquisição do código escrito para a pré- escola está ancorada na justificativa de que há melhora nos índices obtidos nos exames nacionais pelas crianças das classes populares (em sua maioria alunos∕as das redes públicas de ensino) quando estas frequentam a pré-escola. Neste contexto, a avaliação externa acaba por assumir a responsabilidade de efetivar a regulação do currículo e da formação docente. Palavras-chave: Políticas curriculares, avaliação e formação docente. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 6271 ISSN 2177-336X
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CURRÍCULO, AVALIAÇÃO E FORMAÇÃO DOCENTE ...O peso social que a temática alfabetização produz, haja vista os resultados de avaliação de larga escala, os acordos internacionais
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CURRÍCULO, AVALIAÇÃO E FORMAÇÃO DOCENTE: DILEMAS E DESAFIOS SOBRE
A ALFABETIZAÇÃO
Os textos que compõem este painel procuram ampliar o debate entre currículo, avaliação e
formação docente, levando em consideração que os três eixos são importantes para a efetivação das
políticas públicas e para a consolidação de projetos educacionais. Os três trabalhos discutem a
formação docente do∕a professor∕a alfabetizador/a em diferentes contextos. O primeiro, Formação
inicial e continuada de professores alfabetizadores: entre dilemas e desafios, tem por objetivo
analisar a formação inicial e continuada de professores alfabetizadores no Brasil durante a “Década
das Nações Unidas para a Alfabetização”, uma vez que no período em questão surge a necessidade
de promover ações para melhorar os índices de alfabetização dos países signatários da ONU. O
segundo trabalho, Cadernos de Atividades no cotidiano da pré-escola, procura discutir a utilização
que os∕as professores∕as de pré-escola da rede pública municipal do Rio de Janeiro fazem do
material estruturado pela Secretaria Municipal de Educação para esta faixa etária em seu cotidiano
e∕ou planejamento, a partir das perspectivas de currículo. Discute as perspectivas de alfabetização
na educação infantil e o uso de materiais estruturados dentro do cenário das políticas públicas para a
primeira infância, problematizando a necessidade (ou não) da adoção desses materiais para esta
faixa etária. O último trabalho do painel, A educação infantil no contexto das avaliações externas e
em larga escala, procura discutir a utilização dos cadernos pedagógicos produzidos pela SME∕RJ
para a pré-escola, Almanaque de Férias e Cadernos de Atividades, a partir da perspectiva da
avaliação. Argumenta que a preocupação pela antecipação da aquisição do código escrito para a pré-
escola está ancorada na justificativa de que há melhora nos índices obtidos nos exames nacionais
pelas crianças das classes populares (em sua maioria alunos∕as das redes públicas de ensino) quando
estas frequentam a pré-escola. Neste contexto, a avaliação externa acaba por assumir a
responsabilidade de efetivar a regulação do currículo e da formação docente.
Palavras-chave: Políticas curriculares, avaliação e formação docente.
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6271ISSN 2177-336X
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FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSORES
ALFABETIZADORES ENTRE DILEMAS E DESAFIOS
Edineia Silva
PPGE–UFRJ∕SEEDUC–RJ
A “Década das Nações Unidas para a Alfabetização” (ONU, 2001) foi um período instituído pela
Assembleia Geral da ONU para que os países signatários, entre eles o Brasil, promovessem ações
para a melhoria dos índices de alfabetização. Neste contexto, este estudo analisa a formação de
professores alfabetizadores no Brasil estabelecendo correlações entre a formação inicial e
continuada desenvolvidas no período em questão. Foram utilizados para análise os documentos da
Reorientação Curricular do Curso Normal – Livro IV elaborado pela Secretaria de Educação do
Estado do Rio de Janeiro – SEE/RJ (2006), destinada a formação inicial de professores em nível
médio, do Programa de Formação do Professor Alfabetizador - PROFA (BRASIL, 2001) e do
Programa Pró-Letramento – Mobilização pela Qualidade da Educação (BRASIL, 2005), ambos
desenvolvidos pelo governo federal para a formação continuada de alfabetizadores. O artigo situa a
formação inicial do professor, em especial a do alfabetizador, e destaca as contribuições e lacunas
dos programas de formação continuada, bem como as implicações do desenho desarticulado que
vem se desenvolvendo entre as duas formações. As análises são pautadas na abordagem teórico-
metodológica do ciclo contínuo de políticas desenvolvidas por Ball e Bowe (1998), em uma
perspectiva pós-estruturalista do campo do currículo. A conclusão da investigação aponta o
descompasso entre a formação inicial e a formação continuada como perpetuador do estigma da má
formação dos professores e a necessidade de um projeto de formação inicial e continuada pensado
de forma sistêmica e politicamente comprometida com a tarefa de formar professores
alfabetizadores para atuar na escola básica.
Palavras-chave: Políticas curriculares, década da Alfabetização, formação inicial e continuada.
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FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSORES
ALFABETIZADORES ENTRE DILEMAS E DESAFIOS
Edineia Silva
PPGE–UFRJ∕SEEDUC–RJ
Introdução
Na esteira das políticas educacionais desenvolvidas nas últimas décadas vem se destacando
uma lógica da garantia de direitos que tem perpassado o contexto nacional e internacional. A
Constituição Federal (1988) e a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, firmada entre
diversos países, em Jomtien, na Tailândia, em 1990, influenciaram largamente as discussões em
torno das políticas que se desenvolveram no país, sobretudo na elaboração da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – Lei 9394/96. Nessas discussões, estava presente o desafio pela
intenção de promover as mudanças necessárias à melhoria da qualidade da educação brasileira e
elencando entre seus itens mais importantes os tópicos referentes à formação inicial e continuada de
docentes para atuarem na Educação Básica.
Entendida como ação fundamental e estratégica para dar novos rumos à educação básica, a
formação de professores tornou-se uma peça-chave nas políticas educacionais. O Plano Nacional de
Educação - PNE (BRASIL, 2001) definiu que a valorização do magistério só poderia ser obtida por
meio de uma política global que envolvesse a formação inicial, condições de trabalho, salário e
carreira, e formação continuada. Para o PNE (2001)1, a formação inicial deveria superar a histórica
dicotomia teoria/prática e ficar a cargo das instituições de ensino superior, enquanto a formação
continuada, segundo o documento, assume particular importância em decorrência do avanço
científico e tecnológico e da exigência de um nível de conhecimentos sempre mais amplos e
profundos na sociedade moderna e deveria ficar a cargo das secretarias estaduais e municipais de
educação. Estas deveriam coordenar, financiar e fazer a manutenção do programa buscando parceria
com universidades e instituições de ensino superior. O texto sugere maior ênfase na formação
continuada, com estabelecimento de responsabilidades especificadas dos entes federados, ao passo
que delega a responsabilidade sobre a formação inicial às instituições de ensino superior, mesmo
contando ainda com um quantitativo significativo de professores sem este nível de formação
exigida pela legislação.
Os Referenciais para a Formação de Professores (BRASIL, 1999) surgiram como uma das
ações a serem implementadas com vistas a melhoria da qualidade da educação. Eles trazem
orientações para as instituições formadoras e Secretarias de Educação organizarem seus cursos.
Recomendam a criação de sistemas de formação que articulem a formação inicial e continuada. Os
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Referenciais apresentam como pressuposto, que a atividade desenvolvida pelo professor implica
autonomia e responsabilidade e que o desenvolvimento profissional permanente é um direito e uma
necessidade intrínseca de sua atuação e tem na docência a sua dimensão principal, embora não se
restrinja a ela. Também propugnam que a atuação docente não é meramente técnica, mas também
intelectual e política, devendo o professor comprometer-se com a aprendizagem de todos os alunos,
buscando a articulação entre teoria e prática.
Os referenciais atribuem discursivamente ao professor um papel de relevância ao pontuar
termos como “autonomia”, “responsabilidade”, “atuação intelectual e política”, mas ao mesmo
tempo, essas atribuições se chocam com alguns pressupostos contidos em políticas curriculares que
definem, a priori, as bases e os modelos teóricos metodológicos sobre os quais ele deve atuar,
ensejando o controle do currículo por meio dos mecanismos de avaliação em larga escala e da
responsabilização docente pelos resultados do seu trabalho. Desloca o foco de outros determinantes
sociais, políticos e econômicos que interferem nestes resultados, atribuindo a eles uma parcela de
responsabilidade, que vai além de suas possibilidades de intervenção no processo.
Uma visão abrangente da formação de professores, em especial dos professores
alfabetizadores, prescinde de uma análise sistêmica que leve em conta a formação inicial e a
formação continuada sob uma ótica que vai além das áreas de competências restritas de cada
instância responsável pelo seu desenvolvimento. Desta forma é possível questionar um sistema
federativo que atua em regime de colaboração, conforme o que preconiza hoje o parágrafo 1º, do
artigo 62 da LDB, com a seguinte afirmação: “A União, o Distrito Federal, os Estados e os
Municípios, em regime de colaboração, deverão promover a formação inicial, a continuada e a
capacitação dos profissionais de magistério”.
Levando em conta todas estas questões expostas até aqui, este trabalho analisa as políticas
curriculares de formação de professores alfabetizadores desenvolvidas durante a “Década da
Alfabetização” (ONU, 2001). Analisa o Programa de Formação do Professor Alfabetizador –
PROFA (BRASIL,2001) e o Pró-Letramento – Mobilização pela Qualidade da Educação
(BRASIL,2007), ambos do governo federal, destinados a formação continuada de professores
alfabetizadores, a partir dos discursos assumidos por cada um deles para justificar a formação
continuada e fazendo contrapontos com a formação inicial desenvolvida nos Curso Normal, em
nível médio, no âmbito da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEE/RJ); aponta o
descompasso nos investimentos dedicados a cada formação e conclui afirmando a importância do
tratamento sistêmico referente ao desenvolvimento da formação inicial e continuada de professores
alfabetizadores como forma de interromper o ciclo vicioso dos discursos que atrelam o fracasso
escolar à má formação de professores e de seus formadores. Estas análises são feitas a partir do
Ciclo de Políticas proposto por Ball e Bowe (1998), que entende a política não como prescrição e
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implementação, mas como ciclos contínuos que se desenvolvem em todos os contextos pelos quais
ela perpassa.
A formação do professor alfabetizador na berlinda dos espaços formativos
Frequentemente, nos discursos das políticas de formação, a imagem do professor é associada
a ideias depreciativas que o desvalorizam criticando sua má formação e falta de competência para
dar conta dos desafios da profissão. Paradoxalmente, tal discurso vem entrecruzado com o discurso
da valorização docente. Esta tem sido a justificativa para que os mesmos sejam submetidos a
processos de formação continuada.
A análise articulada entre a formação inicial e continuada de professores alfabetizadores nos
oferece elementos para pensar em que bases vieram se assentando estas relações durante a “Década
para a Alfabetização das Nações Unidas” (2003/2012). Em um contexto incerto e, de muitas
ambiguidades, a formação inicial do professor alfabetizador, em nível médio, na modalidade
Normal veio se delineando. A Reorientação Curricular do Curso Normal (RCCN) - Livro IV
(2006)2 traz na sua apresentação o histórico de sua construção que, segundo o documento, foi
iniciado em 2004. A produção dessa proposta contou com a atuação de vários grupos de trabalhos
constituídos por consultores de instituições de ensino superior e professores de escolas da Rede
Estadual de Ensino, sob a coordenação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UFRJ).
Neste documento, a temática da alfabetização aparece como uma disciplina, denominada
Abordagens Psico Sociolinguísticas do Processo de Alfabetização. Ela faz parte da formação
complementar e compõe junto às demais disciplinas, a formação profissional no Curso. A carga
horária total da disciplina com 160h é distribuída em dois anos do curso. Ela vem inserida na matriz
curricular (BRASIL, 2001) ao lado de outras disciplinas, compartilhando um estatuto simétrico de
valor.
O peso social que a temática alfabetização produz, haja vista os resultados de avaliação de
larga escala, os acordos internacionais e os impactos do insucesso na alfabetização presentes na
sociedade, nos autorizam a pensar algumas questões sobre a posição que a disciplina ocupa, ou
pode ocupar, nas relações que se estabelecem entre os componentes curriculares e entre estes e suas
possíveis contribuições de ordem social e política.
O Programa de Desenvolvimento Profissional Continuado – Parâmetros em Ação,
desenvolvido de 1999 a 2002, tinha por objetivo transformar as práticas tradicionais de formação de
professores e afirmar a identidade profissional de formador de professores no sistema público de
ensino (MEC, 2002, p. 12). Tal programa tinha como meta aproximar os professores das discussões
sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais e dos Referenciais Curriculares Nacionais para a
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Educação Infantil. Em sua versão inicial, foram diagnosticadas várias necessidades em relação à
formação profissional, destacando-se aquelas referentes ao processo de alfabetização. Surge dessa
necessidade a criação do programa de formação do professor alfabetizador – PROFA (BRASIL,
2001).
Em seu documento de apresentação o programa foi justificado pela necessidade de oferecer
aos professores brasileiros o conhecimento didático de alfabetização que vinha sendo construído
nos últimos vinte anos. O material disponibilizado no PROFA era composto de material impresso
para os formadores, com um guia de orientações e um guia do formador. Para os professores
cursistas, uma coletânea de textos para aprofundamento teórico e catálogo de resenhas para
consultas, além de vídeos ilustrativos que foram gravados nas salas de aula de professores da rede
pública de São Paulo que de acordo com o documento, possuíam reconhecido mérito pelo trabalho
desenvolvido em alfabetização e que compunham um grupo de referência para este fim. O programa
deu especial atenção ao aspecto metodológico da formação, que contou com a experiência de
muitos profissionais que integraram a equipe de formadores do Programa, em parceria com as
Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e as Universidades.
Em 2005, o Pró-Letramento, com estrutura e objetivos semelhantes foi oferecido pelo MEC,
estabelecendo parceria com as Universidades da Rede Nacional de Formação Continuada34
e os
Sistemas de Ensino. Foi aberta a participação, por adesão, a todos os professores em exercício nos
anos iniciais do Ensino Fundamental, pertencentes às escolas públicas, focalizando as áreas de
Alfabetização/ Linguagem e Matemática. O programa teve um formato semipresencial, com
atividades presenciais e à distância, utilizando-se de textos, vídeos e atividades diversas.
Ambos os programas trazem como aporte teórico a epistemologia psicogenética, expressa
nos estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1984) e o conceito de letramento, entendido como
“estado ou condição de quem aprende a ler ou escrever” (SOARES, 2003 p. 17). Estes programas
trabalharam com ênfases diferenciadas: enquanto o PROFA acentuou mais a dimensão do
construtivismo na aquisição do Sistema de Escrita Alfabética e desdobrou seu foco entre a formação
do professor alfabetizador e a formação dos seus formadores, o Pró-Letramento ressaltou a
importância dos processos de alfabetização e letramento caminharem juntos. Sua proposta era a de
alfabetizar letrando. Manteve seu foco na formação do professor alfabetizador. Somado a isso, ele
também inseriu pressupostos da matriz teórica que embasa o método fônico que recomenda a
sistematização do processo de alfabetização e o trabalho com a consciência fonológica.
Podemos perceber outras diferenças importantes entre os dois programas, entre elas: os
sentidos atribuídos à formação continuada em cada um deles.
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A justificativa sobre a necessidade da formação continuada foi dada a partir dos seguintes
pressupostos expressos na apresentação do guia do formador do Programa de Formação do
Professor Alfabetizador:
A despeito de todos os esforços, medidas e mudanças propostos, fato é que
contamos ainda, no Brasil, com um elevado índice de fracasso escolar,
principalmente na aprendizagem da leitura e escrita. […] Entre as principais causas
disso, destacam-se duas: a formação inadequada dos professores e seus formadores
e a falta de referências de qualidade para o planejamento de propostas pedagógicas
que atendam às necessidades de aprendizagem dos alunos – situações didáticas e
materiais adequados (PROFA, 2001, p. 1).
Tal pressuposição, inserida no jogo da linguagem, faz ressoar de maneira reticente e
indefinida o duelo entre causas e causadores do fracasso anunciado. Por outro lado, na mesma
citação, as referências de qualidade para atender às necessidades de aprendizagem dos alunos, são
reduzidas a situações didáticas e materiais adequados. Esta formação é vista na proposta como uma
medida corretiva. A construção discursiva sugere que ações têm sido empreendidas sem resultados,
devido a uma “falta” que reside nos professores e seus formadores.
O Pró-letramento, em seu guia geral, define a razão da formação continuada da seguinte
forma: “A formação continuada é uma exigência da atividade profissional no mundo atual não
podendo ser reduzida a uma ação compensatória de fragilidades da formação inicial” (BRASIL,
2007, p.2). Evidencia-se nesta proposta, um olhar mais criterioso em relação a esta formação,
embora ainda permaneça latente a necessidade de medidas que interfiram, também, no âmbito da
formação inicial. Aqui, a formação continuada é vista como uma exigência profissional.
Ao analisar mais detidamente alguns sentidos produzidos nas políticas de formação
continuada para professores de alfabetização, é interessante perceber em que medida ela é mais
caracterizada pelo espaço-tempo no qual se desenvolve e menos caracterizada pela natureza dos
pressupostos sobre os quais se assenta.
A compreensão da formação continuada como exigência profissional é um fator que nos leva
a pensar: sobre quais parâmetros ou referenciais eu diferencio a adjetivação de uma formação,
caracterizando-a como inicial ou continuada? Estes espaços distintos de formação guardam
especificidades, tanto em relação a sua forma de abordagem, como em relação as suas
possibilidades concretas de elaborações teóricas e práticas.
A formação inicial e continuada do professor alfabetizador, pensada em sua práxis, como se
fosse um bloco único e sem diferenciação, impede a formulação de questões que possam favorecer
uma compreensão mais abrangente de aspectos que as envolvem.
Embora os dois programas de formação continuada para o professor alfabetizador,
desenvolvidos na última década, partam de pressupostos diferenciados em relação à concepção da
formação continuada, existe recorrência em seus conteúdos com algumas diferenciações referentes
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à formatação, à ênfase dada aos aspectos abordados e mesmo na introdução de outras matrizes
teóricas; porém, o pano de fundo permanece. Prioriza-se uma certa “didática da alfabetização”,
ancorada nas ideias que disputam a hegemonia desse embate, sem maior ênfase em outros aspectos
de ordem social, cultural, econômica e política que diferenciam salas de aulas, escolas, Secretarias
de Educação, com vistas ao desenvolvimento de processos que fortaleçam os coletivos
institucionais para o planejamento de intervenções em realidades situadas.
Pensar nesses conteúdos, que são desenvolvidos nos programas de formação continuada,
como uma necessidade de intervenção para resgatar uma formação inicial entendida como
deficiente (argumento do PROFA), nos remete à necessidade de repensar esta formação inicial.
Entendemos que algo que deveria ter sido construído anteriormente, na formação inicial não se
construiu e continuará sofrendo os mesmos prejuízos, se não houver ajustes que possam reorientá-
la; perpetuando o estigma da má formação dos professores e seus formadores. Por outro lado, se
pensamos os conteúdos da formação continuada como exigência profissional (argumento do Pró-
Letramento), o que de fato eu concordo, precisamos também definir sobre quais parâmetros esta
formação deverá ser construída, a fim de obter uma configuração condizente com os seus propósitos
e que aponte para avanços consistentes. A descaracterização dessas formações contribui para o
rebaixamento de suas potencialidades e a redução de suas abordagens aos aspectos didáticos
metodológicos não favorecem o desenvolvimento profissional e um fazer pedagógico que esteja em
consonância com as demandas de nossos tempos.
O conceito de letramento veio se inserindo nas discussões da educação a partir da década de
1990 e trazendo consigo novos contrapontos para a questão da alfabetização. Longe de ter
definições consensuais, o termo veio se desdobrando em perspectivas e dimensões. Segundo Soares
(1995), o termo letramento, ou alfabetismo, entendido como um estado ou uma condição, se refere
não a um único comportamento, mas a um conjunto de comportamentos que se caracterizam por sua
variedade e complexidade. Torna-se impossível formular um único conceito de alfabetismo (ou
letramento), adequado a qualquer pessoa, em qualquer lugar, em qualquer momento, em qualquer
contexto cultural ou político. Isto reforça a ideia de que a cada dia, a tarefa do professor
alfabetizador torna-se mais complexa e por isso sua formação deve ser permanentemente repensada
e problematizada a partir do lugar que ela tem ocupado no contexto das políticas educacionais que
foram construídas no cenário de globalização das últimas décadas.
A abordagem do ciclo de políticas (Ball e Bowe, 1998) foi entendida como apropriada para
analisar estas políticas curriculares. Em entrevista a Mainardes (2009), Ball define o ciclo de
políticas como um método para analisar as políticas e não uma descrição das mesmas; é uma forma
peculiar de olhar este objeto levando em conta sua natureza volátil, disforme, precária e
contingente.
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A abordagem de ciclo contínuo de políticas (Ball e Bowe, 1998) entende e analisa as
políticas como um ciclo contínuo constituído por três diferentes contextos que se apresentam como
espaços de negociação e de formação de políticas: o contexto de influência, representado por
organismos internacionais, agências multilaterais, empresariado, grupos representativos que
influenciam a política, universidades, pesquisadores e intelectuais; o contexto da produção, definido
como o espaço onde se produzem os textos de definição política; são “resultados de disputas e
acordos e competem entre si para controlar as representações da política.” (BOWE et al.,1992 apud
MAINARDES, 2006, p.52). O contexto da prática é o lugar onde se realiza a prática, ou seja, nas
escolas e nas salas de aula onde as definições curriculares são interpretadas e recontextualizadas e o
currículo é criado. Nesses contextos são estabelecidas intrincadas relações entre os textos da política
oficial e os discursos que se travam nos contextos políticos; são instâncias inter-relacionadas que se
influenciam mutuamente, abolindo a análise unilateral que veio caracterizando as pesquisas em
políticas curriculares no Brasil.
As políticas vão se tecendo nas relações com a participação ampla e irrestrita de todos os
envolvidos no processo. Nesse quadro analítico, podemos entender que a produção do currículo e,
particularmente, o currículo da formação de professores alfabetizadores:
[…] não está circunscrita exclusivamente ao Estado, mas envolve todos os sujeitos
que produzem o discurso curricular nos vários contextos em que ele circula, seja na
escola ou para a escola, como resultado das lutas de vários sujeitos e grupos
sociais. O currículo não apenas é um produto da cultura, mas é um produtor de
cultura (DIAS, 2009, p.23).
Os discursos hegemônicos que vieram significando alfabetização e letramento ao longo da
década foram sofrendo mudanças e se articulando de variadas formas nos textos das políticas. Esta
articulação atribui a elas uma característica ambígua que em alguns momentos mescla interesses
divergentes. É o que podemos observar mais nitidamente no Pró-Letramento que articula diversas
matrizes teóricas sobre a alfabetização em uma mesma política.
Imprimem-se, no movimento descrito, as possibilidades de interação dos atores que agem e
reagem das mais variadas formas; seja confirmando, contestando, indagando, provocando,
burlando, resistindo ou se omitindo, entre outras. Uma definição política não encerra em si uma
ideia única e não tem o poder de determinar ou conformar o comportamento das pessoas. “Estes
textos formam parte de um ciclo político composto por âmbitos e lugares significativamente
diferentes, dentro dos quais se encontram em jogo uma variedade de interesses” (BALL e BOWE,
1998, p. 106 – Tradução própria). Ao pensar uma política de formação de professores
alfabetizadores há que se levar em conta essa peculiaridade que abre espaço para as respostas dos
destinatários concretos dessa política.
Ball (2009) nos propõe o posicionamento ontológico, que olha as políticas a partir de suas
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características complexas, instáveis, contraditórias, não lineares. Podemos inferir, então, que os
sentidos de alfabetização e/ou letramento que as políticas tentam fixar, produzidos em diferentes
contextos, vão sendo significados discursivamente.
Analisando os Relatórios de Gestão do Ministério da Educação e Cultura, no período de
2001 a 2012 com exceção dos anos 2002, 2007 e 2008, que não foi possível serem acessados, pude
constatar que ao longo deste período estes programas vieram se desenvolvendo caracterizados pela
descontinuidade, com intervalos anuais de implementação entre os programas, com abrangência
limitada de estados e municípios.
O PROFA foi mencionado no Relatório de Gestão (BRASIL, 2001), neste período ele
atendeu a 20 estados e 1.188 municípios em um universo de 27 unidades federativas e 5.561
municípios. No Pró-Letramento os estados foram sendo contemplados gradativamente a cada
semestre, sobretudo aqueles com baixos índices de desenvolvimento humano (IDH). O
desenvolvimento destes programas dependia da adesão dos estados e também dos professores.
Estes são alguns aspectos que fragilizaram os resultados da formação de professores
alfabetizadores e ao mesmo tempo trouxeram à tona algumas questões que merecem ser refletidas.
Sobre quais eixos as políticas curriculares de formação têm girado e quais tem sido as implicações
destas escolhas? Quais são as diferenças entre implementar uma política de programas curriculares
e implementar uma política de currículo engajada na formação de professores alfabetizadores?
A meu ver estas duas políticas de formação giraram prioritariamente em torno do eixo
didático-pedagógico, com vistas a elucidação, à priori, do “como fazer”. Embora os programas
preconizem uma abertura à participação dos professores e dos alunos nas escolhas metodológicas,
eles ainda se mantêm fechados com conteúdos, materiais, vivências, carga horária que devem ser
repassadas aos professores. Os eixos balizadores que orientaram estas políticas curriculares, ou seja,
a adoção de uma abordagem epistemológica do processo de alfabetização, como vimos no PROFA e
o estabelecimento de uma Matriz de Referência com competências e habilidades que os alunos
deveriam adquirir, como foi o caso do Pró-Letramento, serviram como dispositivos legais para
cercear a autonomia dos professores embora não o tenha feito de maneira total e irrestrita. As
determinações legais possuem como característica a ambiguidade de fechar determinados sentidos e
ao mesmo tempo deixá-los expostos a múltiplas recontextualizações.
Considerações Finais
Concluo que o modelo de formação desenvolvido durante a Década da Alfabetização
(2003/2012) tem elegido de forma privilegiada o lócus da formação continuada como forma de
resgatar a “formação inicial deficiente do professor” e tem se sustentado pelo repasse de
conhecimentos teóricos e práticos acumulados sobre alfabetização, com ênfase naqueles que são
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considerados mais eficazes. Considero que a formação inicial do professor alfabetizador segue à
margem do foco de investimentos, dentro de um processo de pulverização de responsabilidades e
sem clareza nos seus referenciais. Ao ser colocada nesta posição podemos constatar uma
discrepância entre a importância atribuída nos discursos oficiais e não oficiais à alfabetização e ao
letramento da população e os mínimos esforços que têm sido empreendidos para este nível de
formação. Por outro lado, a formação continuada que se manteve em uma posição relativamente
mais elevada em relação a inicial sofreu os danos da descontinuidade e fragmentação do processo.
Esse processo desarticulado entre formação inicial e formação continuada corrobora com o
discurso da desqualificação profissional dos professores e de seus formadores, favorecendo um
ciclo vicioso que justifica os “resultados insatisfatórios” apesar dos “investimentos na formação”. O
rompimento desse ciclo depende de uma atuação sistêmica que leve em conta a formação inicial e
continuada simultaneamente com olhar criterioso sobre suas especificidades.
Destaco a seguir dois dos muitos desafios que temos que enfrentar na construção de novos
referenciais para a formação de professores alfabetizadores. O primeiro desafio é desenvolver
políticas curriculares de formação de professores alfabetizadores que explorem o potencial que o
espaço da formação inicial pode favorecer permitindo a continuidade e a abrangência dos processos
na medida em que atuam no interior de uma organização legalmente constituída. Este lócus de
formação oferece a oportunidade de otimizar os investimentos em recursos humanos/materiais e na
logística de atendimento com custos reduzidos.
O segundo desafio é ressignificar o papel da formação continuada. Ainda que esta seja
necessária na atual conjuntura em que nos encontramos é preciso aprofundar paulatinamente seus
pressupostos com vistas ao amadurecimento profissional e a ampliação do eixo didático-pedagógico
para questões que envolvam os processos desenvolvidos nos coletivos institucionais, como espaços
de reconhecimento do grupo escola e dos subgrupos turmas, de criação e recriação da prática
pedagógica, de autoria legitimada.
Acredito que a potencialização da formação inicial do professor alfabetizador deva ser um
compromisso político de formação de uma categoria profissional para atuar na escola básica, em um
segmento vulnerável e de grande impacto social. Considero ser essa, uma condição sine qua non
para se pensar um projeto politicamente comprometido com a alfabetização e o letramento da
população no país.
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1 Este PNE teve vigência de 2001 a 2011 e atualmente estamos na vigência de novo PNE que teve início em 2014 e vai
vigorar até 2024. 2 O documento foi elaborado na gestão da, então, Governadora Rosinha Garotinho e do Secretário de Educação Cláudio
Mendonça; tendo como autoras Marta Feijó Barroso e Mônica Mandarino. 3Esta Rede foi criada em 2004 com o objetivo de contribuir para a melhoria da formação de professores e alunos. É
composta pelas Instituições de Ensino Superior Públicas que elaboram materiais orientadores para cursos à distância e
semipresenciais. A coordenação e o suporte técnico e financeiro são da responsabilidade do Ministério da Educação. 4 Cadernos Pedagógicos da Alfabetização – destinados aos alunos do 1º, 2º e 3º ano do Ensino Fundamental; Cadernos
Pedagógicos de Língua Portuguesa e Matemática – destinados aos alunos do 4º ao 9º ano do Ensino Fundamental.
Cadernos pedagógicos de História, Ciências e Geografia – destinados aos alunos do 6º ao 9º ano do Ensino
Fundamental. Disponível em: rio. rj.gov.br/web/sme/exibeconteudo. Acesso em 03/03/2016. 5 Utilizo a palavra no singular por acreditar no caráter universalista de tais documentos.
6 A alteração foi feita na LDBEN através da Lei 12. 796, de 4 de abril de 2013, publicada no Diário Oficial da União em