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Cultura Revista de História e Teoria das Ideias Vol. 24 | 2007 Cultura intelectual das elites coloniais Ângela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos (dir.) Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/cultura/93 DOI: 10.4000/cultura.93 ISSN: 2183-2021 Editora Centro de História da Cultura Edição impressa Data de publição: 1 junho 2007 ISSN: 0870-4546 Refêrencia eletrónica Ângela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos (dir.), Cultura, Vol. 24 | 2007, « Cultura intelectual das elites coloniais » [Online], posto online no dia 24 janeiro 2013, consultado a 22 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/cultura/93 ; DOI : https://doi.org/10.4000/cultura.93 Este documento foi criado de forma automática no dia 22 setembro 2020. © CHAM — Centro de Humanidades / Centre for the Humanities
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Cultura intelectual das elites coloniais - OpenEdition Journals

Mar 05, 2023

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CulturaRevista de História e Teoria das Ideias 

Vol. 24 | 2007Cultura intelectual das elites coloniaisÂngela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos (dir.)

Edição electrónicaURL: http://journals.openedition.org/cultura/93DOI: 10.4000/cultura.93ISSN: 2183-2021

EditoraCentro de História da Cultura

Edição impressaData de publição: 1 junho 2007ISSN: 0870-4546

Refêrencia eletrónica Ângela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos (dir.), Cultura, Vol. 24 | 2007, « Cultura intelectual daselites coloniais » [Online], posto online no dia 24 janeiro 2013, consultado a 22 setembro 2020. URL :http://journals.openedition.org/cultura/93 ; DOI : https://doi.org/10.4000/cultura.93

Este documento foi criado de forma automática no dia 22 setembro 2020.

© CHAM — Centro de Humanidades / Centre for the Humanities

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SUMÁRIO

Cultura intelectual das elites coloniaisÂngela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos

Artigos

Los señores del Nuevo MundoÉlites intelectuales entre el Pacífico y el Atlántico, siglos XVI-XVIIGabriela Vallejo

A circulação de obras antijudaicas e anti-semitas no Brasil colonialBruno Feitler

À margem da escritaFormas de comunicação entre mercadores indianos e autoridades portuguesas de África orientalLuís Frederico Antunes

“Nobres per geração”A consciência de si dos descendentes de portugueses na Goa seiscentistaÂngela Barreto Xavier

“A História do Futuro”Profecias jesuítas móveis de Nápoles para a Índia e para o Brasil (século XVII)Inês Zupanov

Conexões, cruzamentos, circulaçõesA passagem da cartografia britânica pela Índia, séculos XVII-XIXKapil Raj

Do dilúvio universal ao Pai ToméFundamentos teológico-políticos e mensuração do tempo na historiografia brasílica (1724-1759)Íris Kantor

De “antigos conquistadores” a “angolenses”A elite colonial de Luanda no contexto da cultura das Luzes, entre lugares da memória e conhecimento científicoCatarina Madeira Santos

Entrevistas

Entrevista a Elikia M’BokoloCatarina Madeira Santos e Ângela Barreto Xavier

Entrevista a Sanjay SubrahmanyamÂngela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos

Recensões críticas

WACHTEL, Nathan, A Fé da Lembrança. Labirintos MarranosHugo Guerreiro

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VERGÈS, Françoise, “Nègre je suis, nègre je resterai”. Entretiens avec FrançoiseVergèsCatarina Madeira Santos

ARAÚJO, Ana Cristina, A Cultura das Luzes em Portugal, Temas e ProblemasNuno Martins

HALLWARD, Peter, Absolutely Postcolonial: Writing between the Singular and theSpecificMarcos Cardão

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Cultura intelectual das elitescoloniaisÂngela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos

1 Discutir o peso que a cultura intelectual das elites coloniais teve nas experiências

imperiais da Europa Moderna é um dos primeiros objectivos do conjunto de ensaios queconstitui este número temático da revista Cultura – História e Teoria das Ideias. Temarelevante na historiografia internacional, onde são inúmeros os exemplos de reflexõesem torno dos instrumentos intelectuais de que as elites coloniais dispunham, bem comoa respeito dos objectos culturais por elas produzidos,1 ele tem sido menos estudado,porém, na literatura relativa ao império português,2 apesar de se contar, já, comvaliosas contribuições.3

2 Efectivamente, agora que se dispõe de uma importante historiografia sobre os perfis

institucionais, as biografias, as articulações familiares, as formas de recrutamento, amobilidade social, as carreiras das suas elites coloniais,4 importa relacionar os seuscomportamentos, a sua agency, com a sua formação intelectual, as culturas por elaspartilhadas (o percurso educativo, as suas leituras, as suas redes de correspondência, assuas práticas culturais), outras imaginações e outras expectativas, de modo acomplexificar, a densificar, os cenários nos quais se moveram e os sentidos queatribuíram (ou que na época foram atribuídos) à sua acção.

3 Não é plausível que estas culturas intelectuais (impregnadas em tramas culturais de

origens diversas) tenham tido um papel constitutivo – e não apenas legitimador – dassuas aspirações sociais, tornando-se, algumas vezes, em dispositivos ideológicos cujoalcance podia transcender o seu universo social?

4 Se entendermos estes dispositivos ideológicos como “regimes de verdade”5, como

visões sistemáticas sobre o modo como a sociedade funciona e deve funcionar,6 torna-separticularmente relevante saber até que ponto estas elites foram ou não capazes de osimpor ao resto da sociedade. Essa relevância é ainda maior no contexto colonial, ondeessas elites deviam veicular o ponto de vista metropolitano – agindo como correias detransmissão e de actualização in loco dessa perspectiva –, mas tantas vezes o nãofizeram, pois não se reviam plenamente nele.

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5 Ou seja, quando o ponto de vista metropolitano é veiculado, estamos perante o cenário

colonial clássico de domínio, se bem que para a época moderna ele tenha conotaçõesdistintas das formas do colonialismo contemporâneo; já quando acontece o contrário,a(s) elite(s) questiona(m) a metrópole, propondo sistemas alternativos.7 O que nãosignifica, necessariamente, que proponham uma ruptura. Há uma grande distânciaentre a contestação, o reposicionamento e a proclamação de qualquer tipo denacionalismo, ou a recusa radical do cenário colonial.

6 Importa dizer que tanto nesta introdução, como em alguns dos estudos que constituem

este volume, os conceitos de elite colonial e de cultura intelectual são constantementeatravessados pelas dimensões espacial e temporal em que ocorrem, e as páginas que seseguem procuram explicitar, ainda que de forma provisória, as refracções que essasdimensões produzem na pluralidade de configurações que estes termos podem assumir.

7 O enunciado colonial, por exemplo, é sujeito a múltiplos usos. Para além da dimensão

relacional que ele pode evocar (a articulação metrópole-colónia, colonizador-colonizado, aqui retomada tendo em conta os limites da própria metrópole, quer doponto de vista da sua cultura política, quer do aparelho administrativo de que podiadispor)8, verifica-se, ainda, uma territorialização e uma temporalização do conceito. Ouseja, nas elites coloniais aqui privilegiadas não se inscrevem tanto os grupos de oficiaisque faziam parte da “burocracia” colonial ou de outros mecanismos que serviam paraconstruir e impor o seu sistema político, económico, cultural, as elites imperiais strictu

senso, em circulação, em trânsito, mas com regresso anunciado à metrópole. No enfoqueaqui adoptado, as elites coloniais coincidem, em parte (sobretudo), com as elitesimperiais que optaram por se cruzar, estabelecer, permanecer e reproduzir nascolónias (os grupos que, vulgarmente designamos crioulos), e também incluem osgrupos de origem local, já instalados em territórios que vieram a tornar-se espaçoscoloniais e que optaram por neles permanecer, capitalizando a seu favor, com algumafrequência, a nova ordem política, entretecendo os seus destinos nos destinos daquela.Assim, o conceito de elites coloniais, tal como aqui é usado, remete sempre para umadimensão local (sendo que, aqui, o local se converte em centro a partir do qual as outrassociedades, noutras geografias, incluindo o mundo metropolitano, são olhados) e servepara identificar aqueles indivíduos que estão estabelecidos, por mais de uma geração,num determinado espaço colonial, colaboram na construção dessa sociedade eelaboram a partir daí um discurso particular. A condição de elite colonial é, ao mesmotempo, mais ampla, mais elástica e dinâmica do que a de elite imperial e de eliteindígena. Mais ampla porque se faz de homens com origens muito diferenciadas entresi, mais elástica e dinâmica, porque a qualquer momento, dependendo de conjunturasvárias (sobre as conjunturas vide infra), os actores imperiais e os actores indígenaspodem tornar-se elite colonial, aderindo e ao mesmo tempo participando dareelaboração da sua estrutura e do seu discurso.

8 Quer enquanto elites coloniais, quer enquanto elites imperiais ou elites indígenas, o que

aqui se propõe, então, é encarar as elites como sujeitos, e não apenas como mero objecto

da política colonial. Enquanto neste último caso, as elites coloniais são sobretudoinstrumentalizadas pela metrópole, no primeiro reconhecemos que há margem paraque estas criem o seu próprio discurso, mais ou menos permeável ao discurso que lhes éproposto a partir do exterior, que afirmem, em suma, uma certa plasticidade política.9

Permeabilidade cultural e plasticidade política são, assim, dois dos aspectos sobobservação no comportamento destas elites coloniais.

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9 Neste contexto, os percursos das elites coloniais de origem indígena (mas não serão

apenas elas as protagonistas deste volume10) são particularmente ilustrativos. A suacultura intelectual, sob muitos aspectos tomada de empréstimo às culturasmetropolitanas, sustentou a sua própria constituição e alimentou desde projectos deauto-determinação pacífica até revoluções mais ou menos violentas, mais ou menosconsequentes.11 Quando elas surgem como elites intelectuais, entre elas podemosencontrar desde “intelectuais orgânicos”, no sentido que Gramsci atribui à expressão –ou seja, intelectuais cujos percursos mobilizavam conscientemente a acção política,frequentemente recorrendo aos conhecimentos da metrópole, que combinavam com osconhecimentos produzidos por “intelectuais tradicionais” que não tinham essaconsciência, mas eram socialmente mais reconhecidos –, até “intelectuais tradicionais”,ou seja, sujeitos cujos saberes locais inspiravam e potenciavam a produção de discursos“mestiços”.12 Note-se, contudo, que nem todas as elites aqui consideradas eram elitesintelectuais, interessando-nos também (ou sobretudo) as declinações das culturas ditasintelectuais num conjunto vasto de actores, que as moldaram ou foram por elasmoldados. Ou seja, perceber como é que as elites manipularam os discursos“tradicionais” em articulação com os metropolitanos, de modo a que estes seadaptassem aos seus interesses concretos, pode ser uma via interessante paracompreender o papel que a cultura intelectual (que cultura intelectual?) teve na acçãodestes grupos/sujeitos.13

10 Em muitos casos, essas culturas intelectuais foram objecto de ritualizações, de

encenações que ajudaram a construir a própria realidade política, que acompanharamum conjunto inquestionável de condições materiais: distribuição de posições de poder,rotinas de trocas, etc. Mas, e como já se referiu, essa construção da realidade políticanem sempre significou a revolta violenta, mas implicou, quase sempre, a recriação, umcerto grau de inventividade, enfim, produtos novos, objectos inesperados.

11 Quanto à expressão elite, ou elites (o de cultura intelectual será discutido mais adiante),

ela é tão polissémica, que nos limitaremos a uma breve reflexão que torne visíveis asdimensões que ela cobre, até porque na época moderna o enunciado não era usado. NoVocabulário do oratoriano Rafael Bluteau, por exemplo, não encontramos o verbete quelhe corresponde, muito embora os sentidos que se lhe atribui actualmente venhamcontemplados através de outras designações (os eleitos, o escol, os melhores, aaristocracia...).

12 Estes significados são relativamente próximos daqueles que alguns cientistas sociais

atribuíram ao termo.

13 Para alguns autores, o conceito de elite é altamente restritivo, identificando uma

camada mínima da sociedade. Ou seja, uma elite é aquela minoria que, em virtude derazões de ordem variada (história, status social, posição económica, ocupação, redesfamiliares ou outras), detém de facto o poder; são aqueles sujeitos cujos interesses evalores normativos estabelecem uma agenda, definem a “ordem natural das coisas”,determinam a posição e o futuro dos outros.14

14 Uma outra leitura é a daqueles que consideram que numa determinada sociedade

podem coexistir várias elites. Um grupo social pode tornar-se elite quando detém poderocupacional (ocupação dos ofícios principais numa determinada comunidade), podereconómico, poder social (em parte resultante da inserção, quer em redes familiares,quer em redes de amizades, clientelares ou entre iguais) e/ou poder cultural e/ousimbólico (capacidade de influenciar os demais) associado a um tipo de conhecimento

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especializado ou sagrado.15 A combinação destes poderes pode diferenciar entre si essasvariadas elites, e, até, hierarquizá-las.

15 Reconhecer às elites a sua pluralidade, uma pluralidade que resulta, inclusivamente, da

diferente combinação dos critérios atrás enunciados, e do seu diferente valor no tempo eno espaço, parece ser uma opção mais adequada às realidades com que deparamos nosnossos terrenos, nos quais a multiplicidade de actores é um dado praticamenteincontornável: oficiais da administração central, grupos de religiosos (seculares eregulares), militares, oficiais municipais, negociantes, etc. Essas múltiplaspossibilidades são evidenciadas nos estudos que constam na colectânea de ensaiossignificativamente intitulada Optima pars. Elites ibero-americanas do Antigo Regime,16 mastambém nos volumes O Antigo Regime e os Trópicos e Modos de Governar. 17 Mas, nesteúltimo, não só essa multiplicidade é reconhecida, como ela é problematizada, invertida,ou até… multiplicada, pela evocação do efeito que resulta da aplicação de diferentesescalas aos recursos de poder que constituíam as elites e que estas podiam manipular.Segundo António Hespanha, por essa via não só se multiplicam os campos deemergência das elites e as possibilidades de expressão do seu poder social, como se éobrigado a rever alguns dos conceitos estruturantes dos processos de identificação eassociação de determinados sujeitos como fazendo parte de uma certa elite, as suasfronteiras grupais, as suas eventualmente múltiplas identidades.18

16 Enfim, o terreno de observação proposto por Hespanha amplifica e complexifica ainda

mais as possibilidades de identificação de elites que se foram enunciando, até porqueeste autor, ironizando a propósito das consequências da sua reflexão, termina o artigodizendo: “na verdade, em algum sentido, todos somos elite; porque todos temos algumgrupo que nos reconhece, para o bem e para o mal, como detentores de umalegitimidade para dirigir, em algum dos infindáveis planos da interacção social”19.

17 Se o reconhecimento social de um grupo enquanto elite é importante na sua

identificação enquanto tal, a autoconsciência dessa posição é mais um critério que podeser tido em conta quando se pensa o perfil de uma elite e o seu poder social. Numaperspectiva mais antropológica, ter consciência, um certo grau de coesão, e capacidadede mobilização para a acção são elementos centrais para definir um grupo enquantoelite.20 Em que medida é que as elites de que aqui tratamos revelam, também, essaautoconsciência? E quando é que ela emerge? De que forma?

18 Em suma, apesar de uma elite poder ser reconhecida em vários lugares, e a partir de

várias escalas (podendo um sujeito ser membro, por exemplo, de várias elites), ela serátanto mais poderosa quanto a multiplicação dos planos a partir dos quais o seu poder seconstitui, sobre os quais ele incide, e a partir dos quais ele é reconhecido, podendoverificar-se, num mesmo espaço social, e em função das suas escalas e dos campos deobservação, gradações, hierarquias e, evidentemente, consensos e disputas.

19 É tempo de regressar, agora, aos espaços coloniais. Como se disse atrás, nesses lugares

deparamos – potencialmente – com uma ainda maior pluralidade de elites: as elitesimperiais típicas, ou seja, aquelas que ocupam temporariamente ofícios em lugares doimpério, circulando pelas redes administrativas, mas que concebem esse percurso comoparte de um cursus honorum que tem a metrópole como lugar de retorno; as quepartiram e optaram por se estabelecer nas colónias, aí se reproduzindo, incorporandosegmentos das culturas locais; e as elites indígenas propriamente ditas, que interagemcom as restantes, procurando conservar (ou até aumentar) o seu poder tradicional.Acresce a isto o facto de nos espaços coloniais se verificarem condições singulares para

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a emergência de novas personagens (como os mestiços) que podem configurar novaselites, articular-se com as que já existiam, ou ainda serem chamados a participar naordem colonial. Essa singularidade manifesta-se quando, numa dada sociedade, emergea condição de “filhos da terra”, de cujo reconhecimento (e auto-reconhecimento)resultam novas articulações no interior da sociedade colonial, com ulterioresimplicações para a relação metrópole--colónia.

20 Não pode essa ordem colonial ser entendida, então, como um campo de possibilidades

para grupos com poder, mas ainda sem uma posição política e socialmente reconhecida,que, acoplando-se ao poder imperial, adquirem esse reconhecimento? De que maneiraesse poder imperial reinventa as elites ou produz novas elites de forma a cimentar o seudomínio sobre um território, nomeadamente através da promoção de novaspersonagens sociais, como são os mestiços? E poder-se-á falar dessas elites coloniais (aselites sedeadas nas colónias, os nascidos nesses lugares e em alguns casos, as elitesindígenas), em oposição às elites imperiais em trânsito (o famoso conflito crioulos-reinóis, por exemplo)?

21 Se essa dimensão relacional, ou seja, a maneira como as várias elites do império se

articulam, pode perturbar a maneira como tradicionalmente se tem assumido aconexão entre metrópole e colónia, entre colonizador e colonizado, que dizer daspossibilidades e limites encerrados nas arquitecturas políticas e institucionais, e noscampos de poder a elas associados? De que forma é que o regime polissinodal seprojecta na ordem imperial, com o reconhecimento de estatutos político-jurídicoslocais? E de que forma a cultura política que o enforma sobredetermina as leituras queas elites fazem da sua posição na ordem imperial?

22 Por exemplo, o paralelismo entre os privilégios atribuídos a espaços do reino e espaços

coloniais com estatutos jurídico-institucionais análogos (como algumas cidades) poderáter interferido nos recursos simbólicos (argumentos) convocados pelas elites coloniaisestabelecidas para desenhar a sua identidade. Se considerarmos os “vários locais” unsem relação aos outros, quer dizer, pensando o espaço político do império como umcontinuum de várias estruturas locais (tanto coloniais quanto metropolitanas, v. g.,municípios com estatutos equivalentes, casos de Lisboa e Goa, ou Baía, Luanda e Évora),as elites coloniais podem ser consideradas como próximas das elites locaismetropolitanas, e estas, inclusive, uma espécie de modelo matricial daquelas21. E assimsendo – e agora em contraponto –, é possível que a sua identidade também se defina emrelação ao centro, contribuindo, com esse mero gesto, para a conservação edurabilidade da própria ordem política.

23 Se assumirmos que as elites coloniais são diferentes das demais (diferentes na

semelhança e diferentes na diferença), impõe-se perguntar: de que forma é que elasformalizam essa diferença?

24 A historiografia tem procurado responder a algumas destas questões, e parte delas foi

inventariada no artigo de Fernanda Bicalho no referido livro Optima Pars. Nele semostra, contudo, que a matriz interpretativa da relação entre metrópole e colóniatipicamente marxista continua a dominar boa parte das leituras historiográficas.22

Nesta perspectiva, as diferenças constroem-se a partir de uma diferença essencial, ouseja, a oposição colonizador/colonizado. É a partir daí que a diferença se produz, e épara ela que convergem as experiências, e dela decorrem as explicações de performance

social.

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25 Alguns trabalhos mais recentes têm introduzido algumas nuances neste modelo

interpretativo, ao acentuarem a importância da situação (a fragilidade ou não do poderimperial, a preexistência, ou não, de redes de poder estruturadas, o uso da culturapolítica local, dos saberes sobre o território) na configuração dessa diferença, pondo emevidência a porosidade das fronteiras entre colonizador e colonizado (nuns lugaresmais do que noutros), a fluidez das pertenças, das identidades, e das diferenças entreestes grupos.

26 Um dos casos mais estudados refere-se à forte identificação das elites coloniais com a

metrópole. Por exemplo, no Brasil de finais do século XVII, já existia uma “aristocraciacolonial composta por colonos de quarta e quinta gerações, mas em pouco estes sedistinguiam dos filhos de imigrantes em termos de prestígio”.23 Na Goa deste período,as elites de origem indiana convertidas ao Cristianismo trasvestiam-se em“portuguesas” procurando persuadir os poderes metropolitanas de que eram elas (e jánão as elites crioulas) as mais bem posicionadas para exercer os ofícios de mediaçãoimperial, mimetizando, por sua vez, as atitudes das elites de origem portuguesa.24

27 Mas será que esta semelhança, esta identificação, não é ela mesma, e também, resultado

de mutações, uma forma de diferença (no sentido que Zuckerman lhe atribui, apropósito dos imigrantes ingleses nos territórios americanos e a sua textualização daidentidade?),25 uma vez que os próprios padrões metropolitanos se refazem em relaçãoa novas conjunturas e têm necessariamente a sua expressão nos espaços ultramarinos?

28 É de admitir que, nos contextos coloniais, se verifiquem sentimentos de pertença

conflituais de forma mais intensa. Muito embora sejam incontornáveis as situações daselites coloniais que se identificam plenamente com a metrópole (percebendo o impériocomo uma “comunidade imaginada”, num sentido próximo do que Benedict Andersondá ao termo26), reconfigurando quase totalmente a sua identidade, existem múltiplaszonas de fronteira (no sentido metafórico) onde o padrão metropolitano não écompletamente assumido (por razões étnicas, ou de mestiçagem física e cultural), ounem sequer é tido em conta (caso das elites indígenas, nominalmente integradas nosistema colonial, mas cujo quotidiano permaneceu vinculado às lógicas pré-coloniais).27

As identidades dos grupos aqui estudados são abertas, ou, no mínimo, porosas ou ainda,em certos casos, “inacabadas” para retomar uma expressão cunhada por Paul Gilroy, nasua origem aplicada à história do Atlântico negro, mas igualmente útil para abarcarfenómenos de instabilidade e mudança, no sentido de reelaboração de identidades,observáveis em espaços coloniais28. Existem, por fim, elites que, a partir de certa altura,se preservam para além do centro, como se o centro imperial tivesse um domínioapenas eminente, legitimador. O facto de muitas elites coloniais comunicarem entre si,independentemente da intervenção activa da metrópole, obriga a discutir, também,esta última hipótese. Os casos de Brasil e de Angola, cujas elites estabelecem redes derelações directas através do Atlântico, com a circulação de indivíduos, livros, sãorepresentativos.29 Recorde-se, a esse propósito, que a própria correspondência oficialentre Lisboa e Luanda passava obrigatoriamente pelo Brasil, o que leva a questionar asespecificidades da relação metrópole-colónia no Atlântico Sul.

29 Menos discutida, em boa parte pela ausência de fontes, está a consciência colonial dos

grupos que não têm acesso à cultura escrita e ao código cultural do colonizador,tornando--se esta, aparentemente, invisível. Contudo, mesmo nas áreas marginais ondeas populações e culturas indígenas se sobrepõem às europeias, nas periferias maisisoladas e mais pobres (do ponto de vista colonial), produziram-se manifestações de

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uma consciência colonial específica, as quais dificilmente temos um acesso directo umavez que não se expressam através do mundo letrado. É certo que o facto de as elitescoloniais se inscreverem num quadro mais geral, coabitando com outras elites (no casode África, a coabitação com as famílias “reais” tradicionais, mas também com osafricanos instruídos, que melhor assimilaram as técnicas e o modo de vida europeus; nocaso da Índia, com uma miríade de potentados políticos e suas lógicas de estruturaçãosocial e simbólica), permite um acesso indirecto a estas outras culturas. Ainda assim,esse nível de expressão não letrado terá que ficar, infelizmente, à margem destevolume, embora não deva ser esquecido.

30 Por tudo isto não é de todo evidente que as elites coloniais possam considerar-se apenas

uma declinação das elites imperiais, tendo a metrópole como referente único. É bemprovável, até, que a partir de certo momento – e os casos brasileiro e angolano dissoparecem dar conta – essas elites tenham passado a ter uma vida própria, quaseindependente da ordem imperial, em que esta se torna, essencialmente, num campo depossibilidades, onde as hierarquias preestabelecidas podem ser instrumentalizadas, ouaté relegadas para a sua dimensão simbólica.

31 Em suma, o que aqui se defende é que tanto importa determinar as condições externas/

materiais (aqui entendidas num sentido mais amplo do que aquele que lhe é atribuídopor uma historiografia de raiz mais clássica) que permitem que determinados grupos seconstituam como elite, como identificar aquilo que as unifica, isto é, reconhecer o queelas partilham, por exemplo, no plano das normas ou dos valores, considerando estescomo sendo igualmente constitutivos da sua etiologia.

32 Assim sendo, o que também se analisa são os discursos e as práticas através dos quais as

elites se auto-representam e as técnicas utilizadas na conservação do poder, seja pelaprojecção em textos que fabricam e sedimentam uma memória do grupo, seja atravésde monumentos, estátuas, consolidando processos de heroicização de personagens oude acontecimentos onde os membros da elite se reconhecem e onde os outros areconhecem; seja, ainda, pela formulação de propostas alternativas de poder, deprojectos de reconfiguração da própria ordem colonial.

33 É por tudo isto que se torna essencial desvendar a cultura intelectual destes grupos. A

cultura intelectual é aqui entendida no sentido de arquivo30 – na acepção foucaultianaque remete para a “existência acumulada dos discursos”, ou “os discursos sobre osdiscursos” –, de “enciclopédia”/biblioteca colonial (que se apresenta como capaz deconter todo o saber sobre o outro) para retomar a formulação de Valentim Mudimbe –31,mas também de ideologia; ou seja, quer de um conjunto de discursos articulados,seleccionados a partir de um terreno cultural hegemónico, de “visão do mundo” quepode ser partilhada ou contestada,32 quer enquanto modelo sistemático sobre o modocomo a sociedade funciona33. Note-se que da cultura intelectual participa a culturamaterial, na medida em que a primeira também se constitui e revela na materialidade ematerialização de padrões culturais. Nesse sentido, os processos materiais são parte dosprocessos de significação, e assim cultura material e cultural intelectual podem serlidas conjuntamente, ou a cultura intelectual pode também ser decifrada a partir dacultura material.

34 Tudo o que até aqui foi dito à volta da plasticidade dos conceitos de elite e cultura

intelectual, a partir da dimensão espacial, pode ainda ser complexificado quando seintroduz a dimensão temporal.

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35 Estes grupos e as suas culturas são sensíveis a eventos, e às ideias e contactos com

pessoas que estes possibilitam – podendo estes ter efeitos grandes na sua posição. Queristo dizer que a plasticidade destes grupos deve ainda ser entendida tendo em conta asvárias cronologias das situações. Ou seja, para além dos factores atrás enunciados, deentre os quais se destaca essa dialéctica entre distância (do centro) e proximidade (dacolónia), há factores cronológicos que perturbam ainda mais esta pluralidade,estimulando configurações e reconfigurações.

36 À laia de ilustração refiram-se dois momentos.

37 A guerra contra os holandeses, que resultou na reconstituição das bases territoriais do

império, reaviva, no Brasil e em Angola, o sentimento de orgulho nos feitos coloniais,favorecendo a perpetuação da invocação desse momento, nas reivindicações dasfamílias de Pernambuco e de Luanda. Até meados do século XVIII esse momentofunciona como elemento agregador e ao mesmo tempo como imagem de marca de umaelite, como elemento de coesão grupal, de diferenciação face a outros grupos (nãoparticipantes nesse evento fundador), mas também de posicionamento face ao centro,e, nesse sentido, legitimador de determinado pacto entre centro e periferia.34

38 De natureza distinta é a permeabilidade de muitos destes grupos às dinâmicas culturais

setecentistas. Caso emblemático é o modo como o sistema das academias e dosgabinetes (forma de organização do saber baseada em troca, difusão e procura deinformação) constituía as elites coloniais nele envolvidas, quer como receptoras dequadros mentais e informação, quer como informadores procurados pelos centroseuropeus.35 Essa participação em redes internacionais e, por essa via, o acesso adeterminadas informações, modelos políticos, sociais, e até antropológicos,disponibilizou recursos culturais que podiam servir – depois de interpretados,ajustados às demandas locais – os interesses das próprias elites, o modo como elas seauto-representavam ou, para utilizar a terminologia de Erving Goffman, a maneiracomo elas se apresentavam no quotidiano36. É também neste contexto que acorrespondência ganha um lugar central para a reconstituição das sociabilidadesintelectuais que podem articular os espaços coloniais com uma rede de centroseuropeus produtores de saber e também espaços coloniais entre si. O Atlântico Sulconfigura um desses espaços de trocas com uma autonomia considerável em relação àEuropa, como o demonstra Gilroy em The Black Atlantic37.

39 A identificação e a capacidade de gerir a diferença foi uma das principais

condicionantes para o exercício do poder imperial. E foi em relação a essa(s)diferença(s) e às maneiras como ela(s) foi(ram) lida(s), nos vários contextos imperiais,que se forjaram as identidades nos e dos espaços coloniais, quer através de um discurso(mais ou menos) erudito quer através da acção. Assim, no seguimento da definição dosconceitos e sua problematização a que se procedeu até aqui, importa sistematizar econcretizar as principais esferas de identificação destes grupos em contexto colonial,retomando algumas das questões atrás enunciadas.

40 A partir de que instâncias as elites coloniais se distinguem da restante população do

império? Quais são os critérios de distinção que elas utilizam para se identificarem a simesmas e aos outros? Quais as formas de manutenção da identidade grupal?

41 De entre uma multiplicidade de critérios de distinção que se poderiam elencar,

seleccionámos alguns critérios de natureza mais objectiva (tais como a pertençafamiliar e a ocupação de determinados ofícios públicos), outros que, tendo uma

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dimensão objectiva, admitem um maior espaço para o exercício da subjectividade e daintersubjectividade (casos da raça, da língua, da religião) e outros ainda que são denatureza claramente retórica e que funcionam como argumentos que podem fortaleceroutras distinções (a evocação de linhagens antigas, a remissão para a naturalidade)38.

42 A pertença familiar e a ocupação de determinados ofícios são as esferas que mais têm

sido trabalhadas – em articulação com o nível político-institucional.39 Todavia, estasesferas ganham em sentido, ao serem articuladas com o peso que os critérios de cor/raça, por exemplo, tiveram nas hierarquias e na definição de espaços de diferenciação aelas associados. Mais, importa questionar quando e como estes funcionam, e em quemedida se relacionam com aqueles. No mundo colonial, os posicionamentos racistas, nosentido de discriminatórios, relativamente ao africano negro estão por todo o lado.Para retomar uma obra já antiga mas clássica, de Charles Boxer, e que na altura em quefoi escrita suscitou celeuma entre os luso-tropicalistas e propaladores de uma versão docolonialismo “doce” português, “uma raça não pode escravizar outra sistematicamentesem adquirir um sentimento, consciente ou não, de superioridade racial”. No Brasil, aselites coloniais procuraram definir-se a si mesmas acentuando o traçado da linha quedistinguia brancos e mestiços de modo cada vez mais rigoroso. E o mesmo se passava naÍndia40.

43 Mas a esfera de identificação que a raça configura, através da codificação da biologia

em termos culturais, é por vezes atravessada por situações de incoerência. Quer dizer, adiferenciação (inclusão ou exclusão segundo o critério da cor) pode ser posta em causapor alguns indivíduos que, pela forma como se auto-representam, prosseguemobjectivos diversos. K. A. Appiah trata a questão das identidades sociais auto-minadas(self-undermining) a propósito da identidade racial americana, e essa noção pareceaplicar-se em algumas circunstâncias ocorridas em contextos coloniais41. Em certassociedades o mestiço não deixou de ser integrado na elite colonial, na exacta medidaem que a sociedade colonial só encontrava condições para sobreviver se recorresse aopotencial demográfico local e o integrasse. Noutros casos, a cor nem sempre funcionoucomo critério diferenciador definitivo, podendo ser elidida pelo critério do padrãocultural adoptado. Aqueles que se declaram “brancos” não são necessariamentebrancos (sob o ponto de vista do fenótipo), mas indivíduos que usam atributos dacultura material (por exemplo, sapatos e calças) ou da cultura intelectual (domínio daescrita e acesso à cultura escrita), normalmente associados ao homem branco. Afinal,como se estrutura a autopercepção e o que é que é percepcionado como raça? Avisibilidade do corpo e da cor? Ou a adopção de certos materiais culturais? E em quemedida a questão da raça se coloca para a época moderna, em comparação com o séculoXIX, quando se formulam as questões rácicas nos termos em que hoje as colocamos?Quais os discursos disponíveis, ou inventados, que permitiram lidar com as situaçõesatípicas? Por exemplo, em que medida é que a manipulação virtuosa da língua docolonizador se podia substituir – tendo o mesmo poder identificador – à cor branca?42

44 A língua costuma ser apontada como um dos elementos identitários mais decisivos,

desde logo por parte de quem vive e enuncia essas identidades. Desdobra-se pelo menosem dois planos de análise distintos, mas complementares. O primeiro privilegia aideologização da língua, quer dizer, a maneira como, numa dada circunstância, ogoverno colonial promove a imposição de uma língua comum, por exemplo oportuguês, procurando pôr fim ao uso das várias línguas locais, e o modo como, nessecontexto, as elites coloniais (mesmo quando não são de origem portuguesa) se

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apropriam dessa língua e a usam também como língua de comunicação entre si, e meiode autolegitimação e diferenciação, em relação aos de fora e aos de dentro(nomeadamente outros grupos locais que disputam as mesmas posições). O segundoimplica uma reflexão acerca da pragmática da língua, isto é, estuda a língua porreferência ao sujeito, às várias subjectividades, valorizando aí a influência do contexto,da história das sociedades. A articulação entre um e outro planos pode assentar naperversão, no sentido em que a língua da legitimação perante o poder metropolitanopode servir só para isso. E no quotidiano serem as outras línguas, normalmentereputadas “bárbaras”, que funcionam como meio de exercício e de acesso aos meios dopoder. Pode, também, acontecer o inverso: ou seja, as línguas locais serempragmaticamente subalternizadas e até esquecidas, de modo a que a adesão aosdiscursos do colonizador seja total43.

45 Podem identificar-se algumas destas situações entre os grupos convertidos ao

Cristianismo que viram na esfera religiosa e na esfera linguística dois lugaresprivilegiados para a sua afirmação no espaço político do império, admitindo, ao mesmotempo, uma coexistência no mundo privado com a sua alternativa local, quer no campoda língua, quer no campo da religião.

46 A questão religiosa tem sido, como se sabe, muito estudada pela historiografia,

descurando, no caso português, a sua imediata articulação com a vida política e,sobretudo, enquanto espaço de identificação política (para além de cultural) com ocolonizador. Efectivamente, a consciência, por parte de muitos convertidos, de aregeneratio (o baptismo) ser, do ponto de vista jurídico, equivalente à generatio (onascimento) legitimou muitas das suas aspirações sociais, estimulando, inclusive, aescrita de reflexões identitárias, nas quais a pureza e intensidade da fé cristã(resultante de uma educação rigorosa nos colégios cristãos, de um conhecimento dalíngua portuguesa e do latim e de sociabilidades unicamente cristãs) surgia comodispositivo de identificação, mas também de separação em relação a outros convertidosque, por variadas razões, não podiam participar das mesmas experiências.

47 Contudo, eram várias as populações que não tinham acesso nem a redes familiares, nem

a ofícios privilegiados, nem à instrução na língua e na religião, podendo ostentar, alémdo mais, traços fenotípicos que as diferenciavam pela negativa. Raramente se encontraentre estas últimas populações, grupos, sujeitos, o recurso a argumentos que revelavamum domínio amplo do “arquivo” metropolitano, tais como a evocação da antiguidadedas linhagens (veja-se o perfil das genealogias que remetem para um antigo ascendenteportuguês ou a referência à “antiguidade”, as mais antigas famílias, associada a umaorigem europeia, que remete para uma cultura linhagística; ou até mesmo para umagenealogia muito antiga, mas estritamente local)44 ou a referência positiva ànaturalidade. É nestes excluídos que se pode reencontrar, por fim, a figura docolonizado, aqui novamente sujeito a um processo de exclusão, já que, como é evidente,não pode ser protagonista de reflexões dedicadas às elites.

48 Esperamos, ainda assim, que este número convide a novas leituras sobre os processos

imperiais/coloniais e o papel que nele tiveram algumas das suas elites e permita tornarvisíveis os produtos resultantes das suas culturas intelectuais e práticas nessescontextos.

49 Este volume privilegia, assim, a história das elites coloniais na época moderna. O

período contemporâneo fica à margem dos nossos objectivos. Para ir mais longe, aenunciação da problemática que até aqui procurámos fazer exigiria outras

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considerações. A forma como se pensam as elites, e o seu desempenho intelectual noAntigo Regime, supõe questões diversas daquelas que se podem colocar para épocasmais contemporâneas, desde logo pelo papel que as elites crioulas, africanas e asiáticas,desempenharam na consolidação das independências dos respectivos países e pelaforma como se posicionam hoje nos países onde estão.

50 Ainda assim, do ponto de vista da renovação das problemáticas pós-coloniais e da forma

como elas desencadearam grandes inovações na maneira como os historiadores de hojepensam e fazem a história dos impérios e dos processos coloniais (não só na épocacontemporânea, mas também para outros períodos), pareceu-nos oportuno trazer atéao presente – e a partir dessa perspectiva – as reflexões atrás desenhadas, convocando otestemunho de dois intelectuais, que são historiadores, originários da África (RDC) e daÍndia. Elikia M’Bokolo e Sanjay Subrahamanyam aceitaram conversar connosco sobre oseu percurso de intelectuais que chegaram ao meio académico ocidental partindo deáreas subalternas, sobre a história que fazem, sobre a história que se escreve e se vive naÁfrica e na Ásia, sobre os contextos pós-coloniais, sobre as dinâmicas académicas.

51 Estamos convencidas de que estas entrevistas em muito enriquecem (enquadrando,

problematizando, podendo até suscitar a crítica) as leituras proporcionadas pelosartigos que constituem este volume, alguns deles tributários de perspectivas pós-coloniais sobre a história colonial, na medida em que a construção das identidadescoloniais, a sua porosidade e flexibilidade, a relativização da relação colonizador/colonizado, metrópole/colónia são aspectos que os estruturam.

52 Por seu turno, apesar de este volume privilegiar as experiências imperiais portuguesas,

ou ocorridas em territórios sob domínio imperial português, as suas coordenadorasquiseram incluir dois estudos relativos a experiências imperiais vizinhas. GabrielaVallejo proporciona-nos uma viagem até ao império espanhol, e às formas dereconstrução identitária das elites intelectuais da Nova Espanha, no contexto dasalterações que a própria Monarquia Hispânica estava a experimentar, na transição dosséculos XVI e XVII; por seu lado, Kapil Raj recupera o papel dos cartógrafos indianos naconstrução da ciência cartográfica britânica, e a maneira como o saber-fazer local(ainda que em contexto colonial) se projectou na metrópole. Não só estes estudosamplificam as problemáticas dos demais, como os situam num contexto internacional, oque permite, simultaneamente, alargar os seus contextos de interpretação – ao situar asexperiências portuguesas num campo mais vasto de experiências imperiais – e localizar

(no sentido geertziano da expressão) os significados que se possam atribuir aos casos esituações aqui identificados. Essa inserção da experiência portuguesa nas demaisexperiências imperiais, as transversalidades que aí se podem estabelecer, mas também,e eventualmente, a identificação de especificidades, são um itinerário de investigaçãoque, a nosso ver, só poderá enriquecer os nossos campos de análise.

53 Entre os vários artigos que o constituem, vislumbram-se alguns pólos de agregação e

articulação. Gostaríamos de os explorar, muito sucintamente, a partir de quatrovectores. Desde logo, a partir do binómio que constitui o título deste volume – culturaintelectual e elites coloniais. Que cultura intelectual é aquela que aqui se podeencontrar? Que elites coloniais são protagonistas das páginas que se seguem? E,cruzando-se com estas, gostaríamos de explorar alguns aspectos destes estudos queenriquecem os debates em torno das relações entre metrópole e colónia, e entrecolonizador e colonizado.

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54 Nos territórios contemplados pela cultura intelectual, aparecem, ainda que de forma

diferenciada, em quase todas as propostas, o tema da circulação de informação e o seupapel na constituição de um arquivo e de uma biblioteca disponíveis para seremactualizados e/ou reformulados em contexto colonial, configurando ou reconfigurandoargumentos identitários, concretizados através da produção de novos objectosculturais. Boa parte destes artigos mostram como a circulação de objectos (porexemplo, os livros ou a cartografia), a circulação e reinvenção de temas (como o DilúvioUniversal, as viagens do Apóstolo Tomé, a localização do Paraíso terrestre) ou demodelos culturais (caso da “tópica científica”) foram esgrimidos quer para reiterar,quer para subverter (ou até inverter) a relação metrópole-colónia, obrigando arepensar a relação colonizador-colonizado.

55 Por um lado, verifica-se que em quase todos os territórios aqui abordados (do Brasil e

ao México, passando por África, e viajando pela Índia), ainda que em cronologias nemsempre coincidentes (no México e em Goa antes de o mesmo acontecer no Brasil, emÁfrica e na Índia britânica), há um esforço de construção e afirmação de umacentralidade local, regional. Por vezes, isso constituiu uma recusa metafórica doestatuto de colónia, anunciando uma reestruturação da relação colonizador-colonizado,através do estabelecimento de alianças – com frequência nada mais do que pragmáticas,outras vezes estritamente argumentativas – entre as elites coloniais crioulas e as elitesde origem étnica local, contra o colonizador metropolitano. Temas como o DilúvioUniversal, a localização do Paraíso, as viagens do Apóstolo Tomé, contribuíram parajustificar essa centralidade da periferia e estimular sentimentos identitários, formas depertença aos territórios coloniais que, a médio prazo, podiam traduzir-se emdistanciamentos políticos mais ou menos graduais.

56 A esse respeito, o artigo de Íris Kantor é emblemático. Fixando-se no discurso

historiográfico produzido no Brasil colonial, explorando debates entre eruditos quecontribuíram para a fixação do cânone historiográfico brasílico setecentista, Kantormostra como é que topoi aparentemente arcaizantes foram reinventados, tornando-seem referenciais incontornáveis da memória histórica brasílica e em argumentos que secontrapuseram àqueles que visavam inferiorizar a América e aqueles que aí tinhamnascido. Essa identificação de discursos alternativos (defensivos, por vezes, como o deMiguel da Purificação, em Goa, estudado por Ângela Barreto Xavier, ou assertivos, comoo de muitos franciscanos mexicanos, presentes na análise de Gabriela Vallejo) quevisavam rebater a subalternização dos nascidos nas colónias e que emergiram, as maisdas vezes, em conjunturas políticas, imperiais ou coloniais específicas, conduz tambéma contribuição de Catarina Madeira Santos. Tendo como objecto a elite colonial deLuanda no contexto da cultura das Luzes e, mais especificamente, no contexto dapolítica pombalina, Santos mostra como a circulação de novos modelos culturais –muito em especial o conhecimento científico veiculado pela figura do engenheiromilitar e seus saberes – conduziu a uma reformulação dos argumentos identitáriosdessa elite e dos lugares de memória a eles associados. Ao argumento da (re)conquistade Luanda aos holandeses, situada num tempo ciclicamente rememorado – os antigos

conquistadores –, vem acrescentar-se o argumento da naturalidade – os angolenses. Essanova formulação, que decorre também de uma reelaboração do arquivo e/ou bibliotecacoloniais, seria daí por diante, ao longo do século XIX, retomada e associada ao tempoem que foi produzida (o tempo do governador D. Francisco Inocêncio de SousaCoutinho), e assim também associada a um (novo) lugar de memória.

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57 Os temas da antiguidade (ou seja, da presença mais antiga no território colonial) e da

naturalidade (do nascimento em tais territórios, e sua valorização) são, pois,recorrentes. A escrita de Miguel da Purificação, descendente de uma família de“casados” do Estado da Índia, que residiu em Goa, enquanto membro da ordemfranciscana, explora estes dois assuntos. Como mostra Ângela Barreto Xavier, paraexaltar a antiguidade e a naturalidade da população de quem descendia, Purificaçãomanipulou topoi por vezes contraditórios (mas todos eles retirados da enciclopédia desaberes ocidental). Essa convivência de tópicos de origem distinta, muitos dos quaiscom grande actualidade, no tratado escrito por este franciscano que nasceu e cresceuna Índia, indicia fluxos de informação intensos entre a metrópole e a colónia (ou entrecolónias, ou até mesmo no contexto da rede franciscana, já que argumentossemelhantes estavam a ser desenvolvidos pelos franciscanos do México e do Peru, namesma época), e o acesso, por parte das populações residentes na periferia, àsdinâmicas culturais e intelectuais do centro, das quais se apropriavam em função dosseus interesses pragmáticos.

58 Uma circulação de índole distinta é aquela que Bruno Feitler descreve. Feitler

interessa--se pela disseminação, no mundo colonial brasileiro, dos preconceitos que severificavam, na metrópole portuguesa, em relação aos cristãos-novos. O autor mostracomo essas classificações (cristãos-novos vs. velhos, etc.) e os sinais de distinção (purezade sangue-raça) se podiam apoiar e reiterar na tal enciclopédia disponível, que podiaser consumida e actualizada em situações concretas. Estuda o caso da conjuntura dapresença holandesa no Pernambuco e o que é que esta significou do ponto de vista daexaltação da identidade judaica, estimulando, por consequência, polémicas anti-judaicas. Tal como acontece no artigo de Catarina Madeira Santos, também neste casodeterminadas circunstâncias servem como esteio da produção discursiva e, com ela, daprodução, contestação ou sedimentação de entendimentos da ordem social e a posiçãoque nela ocupavam determinados grupos.

59 Podendo participar do universo crioulo (como acontecia com muitos “casados” de Goa,

por exemplo), a posição dos cristãos-novos raramente escapava, contudo, àliminaridade que os colocava – pelo menos em teoria – no patamar inferior do grupodos crioulos. Estes, quase sempre os descendentes das primeiras gerações decolonizadores (ou dos que se afirmavam como tal), são os grupos privilegiados por boaparte dos estudos, os quais não exploram apenas, a propósito dos comportamentos dosseus membros, as dinâmicas da relação entre a metrópole e a colónia, o conflito entrecrioulos e reinóis (ou gachupins) e as distinções que entre estes se estabeleciam, mastambém a sua inscrição na vida própria das colónias, nas suas lógicas locais, nas disputasde poder que aí se verificavam.

60 De facto, a relação entre metrópole e colónia não esgotava as preocupações das elites

coloniais, até porque o seu quotidiano se fazia na ordem local. Gabriela Vallejo, porexemplo, analisa as escolhas editoriais que se fizeram na Nova Espanha quinhentista eseiscentista, articulando-as quer com as transformações que se estavam a verificar nasopções políticas ao nível imperial (a posição que os vários territórios coloniaisocupavam na imaginação imperial e o modo como isto se expressava na escrita), quercom as lógicas de poder endógenas à sociedade colonial, às disputas por posiçõesprivilegiadas e ao papel que o poder discursivo, a construção de uma determinadamemória local (e as opções retóricas que esta podia implicar), tinha na economia dopoder local. E as iniciativas franciscanas, por exemplo – muitas delas procurando reagir

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àquilo que era percebido como um assalto das outras ordens religiosas à posição deprivilégio que os menores tinham nos territórios mexicanos –, têm paralelo, apesar dadiferente intensidade do fenómeno, com o que, na mesma altura, se passava no Estadoda Índia. Também aí, a escrita franciscana surge como um instrumento de acção,reflectindo, simultaneamente, a posição das elites coloniais de origem portuguesa, querna sua relação com a metrópole, quer na sua relação com as restantes elites quedisputavam as mesmas posições naquela ordem colonial.

61 Esta ideia de que os espaços coloniais são espaços activos, espaços que podem ser

estudados para além da metrópole, também se manifesta nos estudos que abordam aprodução intelectual oriunda destes espaços e a consideram, não só como recriaçõespassivas, ou seja, apenas mimetizando os saberes produzidos na metrópole, mastambém como agentes de saber. No artigo de Kapil Raj mostra-se como a ciênciacartográfica na Índia antecipou em larga medida as realizações então em curso na Grã-Bretanha. A noção passiva de difusão é substituída pelas noções mais activas derecepções, de representações e de apropriações historicamente situadas. Com esteestudo sobre cartografia o autor põe em evidência a cooperação entre elites indianas ebritânicas. O saber-fazer indiano – protagonizados pelo que chama de cartógrafos

subalternos – e em especial a técnica da agrimensura, foram plenamente reconhecidospelas instituições coloniais militares e fiscais, que se esforçaram para o desenvolver.Sem pôr em causa a relação entre saber e poder nos processos coloniais, Kapil Rajdefine zonas de negociação e mostra mesmo como os saberes produzidos por elites nãoocidentais se projectaram no Ocidente e o transformaram.

62 O problema da agency e das suas manifestações em contexto imperial e colonial, e dos

refluxos que as experiências coloniais tinham na metrópole, também é trabalhado,ainda que numa perspectiva bastante diferente, na contribuição de Inês Zupanov. Aí élevantada uma série de questões que, por um lado, recuperam o papel das pessoas, dossujeitos, dos “indivíduos”, e a sua margem de liberdade, de escolha, em contextosinstitucionais com fronteiras mais ou menos rígidas; e, por outro, sublinham o papelque modelos de acção construídos no contexto das experiências imperiais – como o deSão Francisco Xavier, por exemplo –, materializados na escrita e profusamentedisseminados nos espaços metropolitanos (não só em Portugal, mas por toda a Europacatólica), inspiraram na acção de futuros agentes imperiais (e os missionários podemser entendidos como tal), agentes esses que, tantas vezes, optavam por terminar as suasvidas nas colónias (mesmo quando elas o não eram, no sentido jurídico-político dotermo). Os missionários-mártires, por exemplo, constituíam percursos biográficos quenão se coadunam nem com a classificação de elites imperiais em trânsito, nem com a deelites coloniais que atrás referimos, participando, de certo modo, de ambos osuniversos. Por seu turno, o artigo de Zupanov alerta-nos para a importância daidentificação destes modelos exemplares para sondar os significados de algunspercursos imperiais e aprofundar as nossas interpretações (por vezes ligeiras) sobrealguns dos seus sentidos. Por exemplo, quantos não seriam os fidalgos que iam para aÍndia que queriam ser reconhecidos, pela sua acção in loco, como segundos Césares, ousegundos Gamas, ou segundos Albuquerques (para além das puras lógicas familiares queestruturavam estas imaginações)? Em que medida é que as suas bibliotecas físicas evirtuais, as suas leituras, a sua educação, não foram centrais na construção da suaidentidade, para além da cultura linhagística e suas componentes?

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63 Centrando-se nas vidas (reais e literárias) de um missionário de origem italiana, o texto

de Zupanov lembra-nos, também, que as elites que fizeram o império português nãoforam, muitas vezes, portuguesas. Este carácter cosmopolita dos agentes ao serviço, deuma ou de outra maneira, da coroa portuguesa, nem sempre tem sido sublinhado, mas averdade é que ele torna estas experiências em experiências que articulam não só oreino enquanto metrópole, mas outras metrópoles ocidentais (Roma enquanto sede dopapado, por exemplo), com essas colónias (desse modo, colónias de várias metrópoles).Muito embora, e em boa parte dos casos, esses outros agentes fossem de origemeuropeia, havia lugares e circunstâncias em que elites que não eram ocidentais e nemsequer faziam parte das elites colonizadas, se relacionavam com a ordem colonial,partilhando com ela várias situações, dela retirando benefícios, contribuindo, dessamaneira, para a sua durabilidade.

64 Os baneanes de Luís Frederico Antunes podem situar-se entre estas últimas. Este grupo

não só se constituiu como uma comunidade estabelecida naqueles lugares antes mesmode os portugueses aí chegarem, como – e esse é um outro aspecto que torna o artigo deAntunes particularmente relevante – se tratava não de uma elite política,administrativa, religiosa, mas sim de uma elite mercantil. Nunca é demais salientar omodo como estas elites de negociantes construíram o império, e se construíram com oimpério,45 mas o caso estudado por este autor alarga os nossos horizontes deinterpretação ao tornar evidente, à semelhança do que faz Zupanov, que o império nãosó se estabeleceu com as elites metropolitanas, crioulas e de origem local, mas tambémcom elites originárias de outros lugares que encontraram naquele quadro político umespaço de sobrevivência e até mesmo de crescimento. E ainda que os saberesmobilizados na construção desses variados poderes eram, com frequência, saberes àmargem: da escrita, da metrópole – o que não impedia, contudo, o reconhecimento dasua sofisticação. Através dos jesuítas, que se constituíram como intermediáriosprivilegiados entre este grupo e o poder imperial português, e com quem mantiveramrelações de grande cumplicidade, os baneanes conseguiram comunicar com o poderimperial e estabelecer, dessa forma, modalidades de cooperação implícita e explícita,que tornava vantajosa para ambos os pólos a sua permanência nos territórios sobdomínio da coroa portuguesa.

65 Em suma, multiplicidade de elites, com origens étnicas, geográficas e culturais

diversificadas; multiplicidade de enciclopédias e de saberes, que tanto podiam serconvocados em função da circunstância, como podiam ser recriados, ou até inventados,moldando as percepções e entendimentos dessas situações (sociais, políticas, outras),entretecendo, por essas vias, o próprio processo histórico – é de tudo isso que se fazemas próximas páginas, e é disso que elas procuram, de maneiras igualmente distintas, darconta.

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NOTAS

1. Veja-se, por exemplo, e para os casos inglês e espanhol, Wachtel, 1971; Elliott, 1974; Gruzinski,

1988; Pagden, 1982, 1988, 1993, 1994,1995; Metcalf, 1995; Cohn, 1996; Bayly, 1996; Bayly, 1999;

Armitage, 2000.

2. Para além dos estudos de José Sebastião da Silva Dias (1973), de Luís Filipe Thomaz (Thomaz,

1994), de Luís Filipe Barreto (1983), de alguns capítulos de Diogo Ramada Curto na História da

Expansão Portuguesa (Curto, 1998a e 1998b), entre alguns outros, e o volume temático da revista

Penélope intitulado O Imaginário do Império (n.º 15, 1995) não são muitas as análises neste âmbito.

Não se pode esquecer, é certo, a vasta literatura sobre as percepções e representações do outro,

mas esta, com alguma frequência, não é utilizada na problematização das práticas, ficando

relegada ao campo dos estudos culturais ou de história literária (Horta, 1990 e 2002). Quando este

volume foi organizado, ainda não tinham sido publicados dois livros da autoria de Diogo Ramada

Curto, Cultura Imperial e Projectos Coloniais (1415-c.1800) e Literatura e Império, os quais trarão,

certamente, contributos importantes a este nível.

3. A este respeito, os trabalhos de Mello, 1997; Algranti, 2004; Kantor, 2004; Villalta, 2005a e

2005b; Monteiro, 2002, são significativos.

4. Os estudos mais sistemáticos sobre estes temas têm sido desenvolvidos por Nuno Gonçalo

Monteiro e Mafalda Soares da Cunha (vide Cunha e Monteiro, 2002, 2005, Cunha, 2005, Monteiro,

2001, 2005), mas também pela equipa de João Paulo Oliveira e Costa (vide, por exemplo, João Paulo

de Oliveira e Costa e Vítor Luís Gaspar Rodrigues, 2004).

5. Foucault, 2004, pp. 37 e ss.

6. Armitage, 2000, p. 4.

7. Vide as inspiradoras reflexões de John Comaroff no artigo “Images of Empire, Contests of

Conscience. Models of Colonial Domination in South Africa” (Comaroff, 1997).

8. Os volumes O Antigo Regime e os Trópicos (2001) e Modos de Governar. Ideias e Práticas no Império

Português. Séculos XVI a XIX (2005) agregam muitos dos estudos recentes que se têm realizado

sobre estas articulações, ainda que assentes, boa parte deles, numa perspectiva revisionista em

relação aos modelos de análise mais clássicos (emblematizados, sobretudo, pelos trabalhos de

Caio Prado Júnior, Jobson Arruda, e Fernando Novais). Estes estudos vão ao encontro, ainda, do

que foi sublinhado por Jack Greene em Negotiated Authorities, a propósito das especificidades das

articulações imperiais (Greene, 1994).

9. Cf. Frederick Cooper e Ann Laura Stoler, “Between Metrópole and Colony. Rethinking a

Research Agenda”, 1997.

10. Vide, neste volume, o artigo de Luís Frederico Antunes onde se trata autonomamente uma

elite indígena, os baneanes de Moçambique, e se revelam as suas articulações com as lógicas

coloniais.

11. Rowlands, 2001.

12. Gramsci, 1971.

13. O caso da elite goesa é disso sintomático. Vide Xavier, 2007.

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14. Shore, 2001, p. 2.

15. Michael Mann, 1986 e 1993.

16. Vide Bicalho, 2005, passim.

17. Gouvêa; Fragoso; Bicalho, 2001; Bicalho e Ferlini, 2005.

18. Hespanha, 2005a, passim.

19. Hespanha, 2005a, p. 44.

20. Shore, 2001, p. 3.

21. Sobre as hierarquias entre os municípios dos espaços coloniais e sua relação com os forais vide

Hespanha, 2005b.

22. Laura de Mello e Souza (2006) reitera no seu mais recente livro este posicionamento.

23. Stuart Schwartz, 2003, p. 229; Mello, 1998, p. 13 e ss.

24. Kantor, 2004; Xavier, 2005; Santos, 2005. Aliás o carácter não estático dessas identidades e a

sua capacidade para se fazer e refazer têm sido profusamente discutidos (ver, por exemplo,

Amselle, 2005, ou Paul Gilroy, 2000, passim). Uma reflexão teórica sobre as implicações dos

mimetismos em contexto colonial encontra-se no artigo publicado por Homi Bhaba no conjunto

de ensaios editado por Frederick Cooper e Ann Laura Stoler (1997).

25. Zuckerman, 2001, passim.

26. Anderson, 1994.

27. Ver por exemplo o caso dos Ndembu, que, embora tenham apropriado as práticas da escrita e

integrado no seu aparelho político elementos inovadores, como o Arquivo de Estado, a secretaria

e a figura do secretário, nem por isso deixaram de ter o seu quotidiano vinculado ao ritmo e às

lógicas pré-coloniais. Cf. Santos e Tavares, 2002, passim.

28. Gilroy, 2000, p. 30.

29. Alencastro, 2002, passim.

30. Foucault, 2004, p. 166 e ss.

31. Mudimbe, 1998, p. 20 e ss.

32. Comaroff e Comaroff, 1986, p. 23; Armitage, 2000, p. 4.

33. Armitage, 2000, p. 4.

34. Evaldo, 1998, p. 13 e ss; Santos, 2005, cap. 12.2. Elites da continuidade e elites da ruptura.

35. Kantor, 2004 e Santos, 2005.

36. Goffman, 1959 e 1967.

37. Gilroy, 2000.

38. Em casos mais específicos – em lugares ainda mais micros da distinção –, a situação geográfica

ou o contexto territorial (povos do litoral versus povos do sertão) permitiam identificar os

espaços de civilização, de alteridade e de barbárie, potenciando o discurso identitário.

39. Ver nota 4.

40. Cf. Schwartz, ibidem, p. 237.

41. Appiah, 2005, pp. 185-186.

42. Veja-se para Angola, Dias, 2000; Santos, 2002; Santos, 2005; para Goa, Xavier, 2005; e para o

caso espanhol, Herzog, 2006.

43. Sobre as questões da língua ver por exemplo, Prefácio de Alfredo Margarido a Pinto, 2005, pp.

13-22; Duchet, 2005; para o Brasil, Mariani, 2004.

44. Para o caso espanhol, tem sido bastante estudado o recurso a este dispositivo por parte dos

crioulos, os quais se autoproclamavam descendentes dos primeiros conquistadores (o que

reiterava os seus direitos políticos) e que fizeram a defesa da sua “mestiçagem”, argumentando

terem-se casado com a nobreza local (Gruzinski e Pagden). Algo parecido encontra-se no caso

brasileiro, tal como o fez notar Stuart Schwartz, 2003, pp. 217-272; Villalta, 2005ª, pp. 331-386; e

Xavier, 2005.

45. V. entre outros, Florentino, 1997; Fragoso, 1998; Alencastro, 2000; e Costa, 2002.

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AUTORES

ÂNGELA BARRETO XAVIER

ICS – UL

CATARINA MADEIRA SANTOS

EHESS, Paris

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Artigos

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Los señores del Nuevo MundoÉlites intelectuales entre el Pacífico y el Atlántico, siglos XVI-XVII

The lords of the New World. Intellectual Elites between the Pacific and the

Atlantic, 16th-17th centuries

Gabriela Vallejo

Introducción: identidades en conflicto.

1 Desde la Conquista de Hernán Cortés y sus huestes, las élites intelectuales de la Nueva

España se definieron con respecto a un modelo de excepcionalidad que había nacido dela propia incorporación del territorio, en tanto que sumisión militar, como deconversión espiritual. A partir de la década de 1570 ya era evidente que se habíanproducido cambios decisivos en la formación de la identidad de esa misma elite. Éstosse inscribían en el proceso de transformación que estaba conllevando la crisis delantiguo modelo de colonización y de evangelización. La realización de otras conquistas,como las Filipinas, o la formación del virreinato del Perú restaban singularidad al hechonovohispano; mientras, la influencia creciente de un catolicismo contrarreformista setraducía en la homogeneización de los medios de definición de los roles y jerarquíassociointelectuales a lo largo de la Monarquía. No se trataba sólo de factores exógenos,ya que la propia sociedad novohispana estaba mutando con la llegada masiva deespañoles para los que el discurso de conquista no era operativo a la hora de definir supreeminencia social y castiza. Sería paradójicamente desde esta negación de lo singularcómo se reconstruiría en la mitad del siglo XVII una nueva excepcionalidadnovohispana, dentro de los cuadros globales de las élites de la Monarquía Hispánica.

2 Nuestro interés es verificar, a través de la óptica del cambio generacional, cómo

adaptaron su autodefinición las élites locales novohispanas frente a estos modelos másgenéricos, cómo se relacionaron con el pasado mesoamericano y cómo serepresentaban respecto a la población autóctona. Comprender esto permiteaproximarse a la flexibilidad de las identidades y de los artefactos culturales que seprodujeron. Entre la resistencia y el cambio, ¿cómo se percibieron las élites culturales así mismas? El final del siglo marcó una profunda crisis de valores que engendraba

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diferentes respuestas de las élites locales, deseosas de aprovechar la apertura de lasnuevas puertas del reino, aún con el peligro de que Nueva España perdiese suespecificidad y su exotismo. Los cambios identitarios que sufrieron las élites políticas yculturales de fines del siglo XVI no fueron simples, sino parte de un proceso conflictivoy complejo. El resultado sería una nueva hibridación donde las posiciones opuestas, enla resistencia y el cambio, crearían una complementariedad. Nosotros trataremos deatisbar este proceso a través de un análisis de la conformación de estas élites culturales,en sus relaciones ambiguas con la autoridad política y religiosa, y en su producción detextos literarios.

3 Esta historia de las élites culturales arranca en 1571 y se extiende hasta la primera

década del nuevo siglo, cuando el mundo ya ha cambiado, y había quedado muy atrás lapreeminencia del grupo de conquistadores. Dos hechos marcaron esa transformación:en 1571 el Santo Oficio de la Inquisición llegó a tierras novohispanas y, algunos mesesdespués, un primer contingente de jesuitas, con las banderas de los ideales tridentinos.Otros factores, como la apertura a Asia, aceleraron pronto estos cambios vía el galeónde Manila. Para la mayor parte de la población, las castas y clases más bajas, sinembargo, las transformaciones debieron presentarse de forma más paulatina y menosconcreta; no debió ser así, para las élites confrontadas a la acosante presencia delcreciente tráfico marítimo, y a la embestida comercial de productos que venían deChina y llegaban hasta los mercados interiores del reino. La integración de Filipinasestaba generando un cambio estructural: se había creado una colonia que dependíaeconómicamente de la Nueva España, y que ligaba muy estrechamente, a pesar de lasdisposiciones contrarias de la Corona, a este virreinato con el del Perú gracias al tráficode mercancías.

4 Las empresas de colonización hacia el norte no daban tantos dividendos como

problemas: la frontera chichimeca, los territorios de indios rebeldes, no fue realmentepacificada hasta finales de siglo; se había demostrado que la fuerza evangelizadora delos frailes era más efectiva que la política de guerra a “sangre y fuego” empleada en ladécada de 1580, desvirtuando el papel del conquistador militar en la lucha por losterritorios limítrofes. Sin embargo, las minas encontradas tan al norte como Parral, enel reino de Nueva Vizcaya, peligraban ante nuevos ataques de indios que produciríanmártires entre los jesuitas, quienes no cejaban en sus esfuerzos misioneros. Hasta ciertopunto, era mucho más fácil y rentable la empresa filipina, que no sólo parecía unapuerta hacia China y Japón, sino que muy rápidamente mostró sus frutos comerciales.En 1572, se presentaron en Manila los primeros barcos chinos con mercancías; en 1573,el galeón llevó a Acapulco 712 piezas de seda y 20 mil de porcelana china.1 El tráfico seconsolidaba gracias a la plata mexicana, mejor moneda de cambio en China quecualquier mercancía occidental. Aunque la nao era propiedad de la Corona española,fueron los mercaderes de Manila y México, junto con las órdenes religiosas, los que seenriquecieron con el comercio.

5 A principios del XVII, la ciudad de México, en pleno auge manierista,2 veía cambiar sus

fachadas para favorecer al cúmulo de productos que se concentraban en sus calles yplazas. Para 1604, las casas del marqués del Valle ya se estaban convirtiendo en tiendasy almacenes, como muchos de los bajos de las casas de los viejos conquistadores y devecinos adinerados.3 Siguiendo y siendo modelo de ciudad del Nuevo Mundo,4 y al igualque la construcción del Bairro Alto en Lisboa en el XVI, la ciudad de México del XVII setrazaba en damero, con calles amplias para carros y carrozas, que rivalizaban en las

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plazas con las tiendas de madera o cajones, alineados al portal de Mercaderes. Laanulación de los privilegios de las encomiendas de indios dadas a los conquistadores ysus descendientes hasta la tercera generación era la estocada más directa contra elproyecto de las élites locales fundadoras.5 Sin embargo, con la expansión de lasfronteras del reino estaba creciendo en el grupo dirigente un sentimiento de valoraciónlocal. Era en el entendimiento de la centralidad del reino dentro del panoramainternacional, en la expansión a Asia, que tenía sentido una distinta apreciación de lasraíces indígenas, sobre todo en el punto clave de la Conquista. El antes y el después deesa empresa bélica, en su ambigüedad y complementariedad, serían los puntos deanclaje tanto de las élites indígenas como de las élites criollas. Ambas se definirían eneste parteaguas. Muchos textos se construyeron entonces como una recapitulación delhecho fundacional, sólo que en este momento con el añadido de la apertura a Asia.Nueva España no se veía como un reino cerrado sino abierto, como una integración delas particularidades de todos sus grupos humanos y todos sus confines, quizá como unlegado inherente al heterogéneo imperio de Carlos V. El filón asiático daba la nuevadimensión de la particularidad novohispana.

Un centro de la Monarquía.

6 El reino ya no tenía que verse sólo como un confín de la Monarquía, sino que quería

pensarse, a medio camino de la hipérbole, como una nueva centralidad, equivalente acualquier otro ámbito de la misma. Era así como cifraba Bernardo de Balbuena, en 1604,su Grandeza mexicana, que pretendía describir esta “gran ciudad” del Nuevo Mundo,paso entre continentes.6

7 La realidad comercial se había impuesto sobre las fronteras. Como los portugueses, los

flamencos, alemanes, italianos y otras naciones influían en alguna medida en las élitesculturales en su labor como comerciantes, como impresores, pintores y artesanos. El findel siglo XVI y las primeras décadas del XVII se caracterizarían por la circulación deuna cierta población de extranjeros, que disminuirían, o se harían menos visibles, apartir de la segunda mitad del XVII. En este contexto de cambio, de inserción en unmundo globalizado las elites también debieron colocarse ante la necesidad de lacirculación de textos de y sobre América. Nueva España encabezó sin duda la aperturatriunfal del Nuevo Mundo. Las Cartas de relación de Cortés, que empezaron a editarse en1522 por Jacobo Cromberger en Sevilla, conocido editor de novelas de caballería,tuvieron una rápida acogida entre los sectores intelectuales del reinado de Carlos V.Pronto, gracias a los círculos de cronistas y embajadores, se dio un fenómeno deinformación e influencia en la cual este reino, y su capital México-Tenochtitlan, setransformaron en un símbolo del triunfo de la civilidad sobre la barbarie idolátrica.7 Enesa contraposición, se inauguró la “leyenda áurea” de las órdenes mendicantes, y sobretodo de la orden seráfica, en el apuntalamiento del proyecto cristianizador. Luego de laentrada militar, los religiosos eran los únicos capaces de entender y adoctrinar laspoblaciones indígenas en sus propias lenguas. En la necesidad de penetrar esassociedades y conocer sus ritos y costumbres ancestrales, los franciscanos fueron casiexclusivamente la única orden que realizó, a través de sus cronistas, investigacionesetnográficas de envergadura que les permitieran la comprensión necesaria paraalcanzar los ideales de su misión evangelizadora.8 A lo largo de las décadas, fueronllegando misiones apostólicas, desarrollándose una organización religiosa más

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compleja y entorpeciéndose la cohesión de los primeros religiosos con los obstáculosdel apostolado; frente a la uniformidad inicial, comenzaron los choques de opinión y lalucha por espacios de poder.9 Esta compleja red misionera montada a lo largo decincuenta años, estaba lejos de ser cerrada: había aún extensas zonas no regidas por losconventos y que requerían de otras fundaciones religiosas.

8 Y de eso supo aprovecharse la presencia jesuita, cuya labor evangélica ya tenía

importantes bastiones en el Imperio portugués y había logrado entrar en el reino deJapón. A pesar de que en la pacificación de las tierras chichimecas, el sistema demisiones inaugurado por los mendicantes había probado ser bastante efectivo. El virreyVelasco, tratando de extender el sistema misional, comenzó a favorecer a los jesuitassobre los franciscanos, a quienes consideraba menos aptos para aprender las lenguasindígenas, además de faltos de verdadero celo en la conversión.10 Juzgaban que supresencia sería vital para una verdadera evangelización tanto de los indígenas, como dela educación de sus élites criollas.11 Frente a esta agresión, los mendicantes se apoyaronen sus bases y en sus aliados para proteger sus intereses.12 Fuera de la ciudad de México,donde los franciscanos eran especialmente fuertes, fue en los confines de la guerrachichimeca donde los discípulos de Ignacio de Loyola extenderían sus misiones por esosterritorios convulsos.

9 En este momento, la migración de religiosos y funcionarios peninsulares para aplicar

las reformas de Felipe II también iba a violentar los equilibrios: se había consolidado uncontingente criollo significativo en las instituciones civiles y religiosas, dadas lasevidentes necesidades de crecimiento del reino.13 Entre las provincias religiosas,resaltaba la agustina por ser quizá la que contaba con mayor número de criollos entresus religiosos.14 La conciencia de pertenecer a esta tierra comenzó a ser uno de losrasgos identitarios más importantes en la conformación de grupos, incluyendo losgrupos de poder. Esto implicó transformaciones ideológicas, esencialmente deredefinición de figuras culturales como el indio y el criollo, cambios que se haríanplenamente visibles a lo largo del siglo XVII. Mientras en el XVI una de las mayoresinvenciones fue la del personaje del indígena, en el siglo XVII este papel recaería en elcriollo, y aún en la criollización de las élites indígenas. Ambos personajes, el indio comoobjeto y el criollo como sujeto, estarían presentes en las tensiones con las novedades ylos competidores que llegaban de Europa, desatadas por los movimientos opuestos deconservación de estructuras y de adaptación a un mundo en continua expansión.

Algunos elementos de cambio.

10 La mobilidad de las élites entre los continentes se emparentaba con la circulación de los

libros que viajaban con ellas. Los obras para colegios, para la Universidad y para laslecturas particulares, venían por encargo de los libreros locales, o directamente en losbaúles de viaje, pues la imprenta en la ciudad de México, fundada en 1539, alimentabade inicio casi exclusivamente las necesidades más apremiantes de la evangelización.

11 Los jesuitas aprovecharon la imprenta local para solicitar libros de texto para sus

primeros cursos. El mismo Vicente Lanuchi, llegado desde Évora, daría en Nueva Españaun curso de retórica, para lo cual solicitaba con frecuencia “los libros de humanidad”.15

Muy pronto, el De constructione octo partium orationis del portugués Manuel Álvarez sedestinaría a los cursos de gramática. La elección de Manuel Álvarez para los estudiantesnovohispanos era muy importante dentro de la enseñanza de la gramática, ya que era

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de uso común en las escuelas jesuíticas durante casi dos siglos y contaba con más de 400ediciones, incluyendo en japonés.16 Tradicionalmente éstas obras se recibían de Europapara las bibliotecas conventuales (como la bien surtida biblioteca del Colegio de SantaCruz de Tlatelolco), pero era la primera vez que los estudiantes tendrían acceso a lasobras en cantidad suficiente en México.

12 Un segundo elemento introducido por los jesuitas fue la “españolización” de la orden.

En la noche del 26 de septiembre de 1572, Pedro Sánchez llegaba a la ciudad de México ala cabeza de quince jesuitas españoles. Gracias a múltiples donaciones, los jesuitasrápidamente comenzaron a fundar sus colegios, acercándose en especial a los criollosnovohispanos. Luego de terminar sus estudios, estos hijos de los peninsulares tenían laposibilidad de entrar a la Compañía. Una manera de atraerlos a sus filas fue por mediode la pedagogía de la imagen. A través de estrategias de propaganda contrarreformistalograron acrecentar el sentimiento de integración a la monarquía hispánica, ylocalmente a la Nueva España. Tal fue el caso de uno de los festejos más importantes enese último cuarto del siglo XVI: las ceremonias y festejos por la colocación de lasreliquias enviadas por el Papa Gregorio XIII a la provincia jesuita de la Nueva España.17

13 Por otro lado, la aplicación de las políticas de rigor inquisitoriales significaron una

presión sobreañadida contra grupos sociales y personas sospechosas. Esto dejó espaciosprofesionales que fueron ocupados por los inmigrantes que desde la Península Ibérícaestaban llegando cada vez más a la Nueva España. El resultado fue una españolizaciónque cazaba bien con el ideal ibérico de “pueblo elegido”. Todos los extranjerosresultaban sospechosos, y algunos fueron encontrados como herejes flagrantes. Aunqueel hereje era en realidad escaso en Nueva España, algunos impresores fueronprocesados, y socios y competidores supieron capitalizar estas experiencias, a través desus vinculaciones con el Santo Oficio.18

14 A pesar de que las obras de evangelización seguían nutriendo las imprentas, las

temáticas estaban, sin embargo, cambiando, sujetas a factores tanto endógenos comoexógenos. A partir de la ampliación de fronteras en la segunda mitad del siglo XVI, lastemáticas de publicación se modificaron paulatinamente. Fuera de los tratados demedicina, que formaban parte de la investigación sobre la naturaleza americana y suspropiedades medicinales, las primeras obras publicadas en Nueva España de tema noreligioso a partir de 1571 fueron las de Diego García de Palacio: primeramente, Los

diálogos militares (1583), y una segunda obra, Instrucción náutica para el buen uso de las

naos, fue publicada en 1587.19

15 Las dos obras de García de Palacio nos dan una idea de los dos puntos focales sobre los

que trabajaba la administración novohispana. El final de la guerra chichimeca se habíaterminado con la colonización de la frontera por tlaxcaltecas y con un sistema demisiones hacia Nuevo México. Por otro lado, los puertos se veían cada vez mássolicitados con el comercio, especialmente en el camino a Asia. Este continenteaparecería en el panorama novohispano en la segunda mitad del XVI, gracias a lasórdenes mendicantes – en su mayor parte compuestas por españoles- que estabanimplantadas en Filipinas desde 1565. Ya para final del siglo, algunos de los frailes,siguiendo su experiencia evangélica novohispana, realizaron una primera producciónde catecismos, en una incipiente imprenta en Manila. Era la primera vez que la NuevaEspaña generaba la extrapolación de modelos de evangelización, aunque ciertamente,las condiciones tanto de Filipinas, como de China y Japón, serían enormementedistintas.20

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16 Los agustinos fueron de los primeros mendicantes que trataron de entrar en China.

Fray Martín de Rada, que con la delegación de López de Legazpi y Francisco deUrdaneta había emprendido la conquista de Filipinas, escribió la relación de su viaje enel año de 1575 que sería una referencia para posteriores publicaciones.21 Estemanuscrito inspiró, sobre otras fuentes, la obra del agustino Juan González de MendozaHistoria de las cosas más notables, ritos y costumbres del gran reyno de la China, un trabajo dereconstitución escrito y publicado en 1585 en Roma, y que lograría una gran influenciaen el siglo XVII por sus traducciones al italiano, francés, alemán, inglés, holandés ylatín.22 Los libros sobre Asia se sucederían en los años siguientes. La obra delfranciscano Marcelo de Ribadeneira, la Historia de las Islas del Archipiélago, y Reynos de la

Gran China, Japón, fue publicada en Barcelona en 1601 y dedicado al general de la Orden.Los jesuitas, por su lado, sacaron a la luz su crónica: la Relación de las Islas Filipinas, dePedro Chirino, publicada en Roma en 1604, dedicada a Claudio Aquaviva, general de laCompañía.23

17 La apertura editorial de Nueva España para esta temática no ocurrió sino hasta

principios del XVII, especialmente con los Sucesos de las Islas Filipinas de Antonio deMorga, y por otro, la Relación y noticias de el Reyno del Japón de Rodrigo de Vivero. 24 Loque interesa, tanto en el caso de Morga como en el de Rodrigo de Vivero fue lainauguración de un modelo de discurso en donde Asia y América eran complementariosen los esfuerzos de conquista y evangelización en el siglo XVII, a pesar de que laaplicación de la experiencia novohispana no fue totalmente efectiva para resolver losproblemas con los naturales de esos dos grandes imperios.

Elementos de permanencia.

18 Una fuerte iniciativa conservadora fue la respuesta de los franciscanos que pretendían

guardar sus privilegios y asegurar, a través de una estrategia múltiple, el territorioamenazado por la implantación de otras órdenes: buscaron acendrar la religiosidadlocal, por un lado, y por otro, lograr el apoyo de sus bases, de las élites indígenas y delas élites conquistadoras que habían sido sus aliadas. Las otras órdenes mendicantes nohabían disminuído sus publicaciones de catecismos, gramáticas y diccionariosbilingües. Fueron los franciscanos quienes mejor aprovecharon el gusto por losmártires y reliquias, luego del fuerte impulso dado por los jesuitas con el envío dereliquias desde Roma. Sin embargo, esta integración de figuras simbólicas no se haríasin contratiempos en un primer tiempo. Contemporáneamente al martirio de losfranciscanos en el Japón en 1597, murió en Nueva España su primer ermitaño, quehabía ganado fama de santidad al vivir retirado en Atemajac, Jalisco, entre los gruposchichimecas. Sospechoso de luteranismo por no tener imágenes ni ir a la misa, fuegracias a su biógrafo Francisco Losa que Gregorio López logró disipar las sospechas. Noasí doce de sus seguidores (incluído su biógrafo) que serían acusados por la Inquisiciónentre 1598 y 1603 por alumbrados.25 Quince años después, el proceso se cerró sinmayores consecuencias, pero los manuscritos del Comentario del apocalipsis de GregorioLópez habían circulado lo suficiente en Europa como para apuntalar su fama como elprimer gran venerable novohispano, con una buena cantidad de traducciones de labiografía de Francisco Losa (la Vida del venerable Gregorio López publicada en 1613), 26 yposteriormente una del mercedario Fernando de Córdoba y Bocanegra, éste último unmístico criollo descendiente de Francisco Vázquez de Coronado.27

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19 Los cronistas Gerónimo de Mendieta y Juan de Torquemada, abogando por la protección

de una sociedad utópica, recordaron el papel que habían tenido para la fundación deuna Iglesia casi apostólica algunos mártires locales. Mientras tanto, era más seguroapostar por figuras que venían del pasado, que reforzaban el papel de los misioneros ysu capacidad de sacrificio, que les confería una fuerte candidatura a la santidad. Uno delos ejemplos más notables que se explotaron en este periodo fue el de los niñosindígenas tlaxcaltecas, que luchando en los primeros años por la conversión de suspadres aún idólatras, fueron muertos por ellos para evitar renegar de sus creencias.Motolinía ya había incluído esta conocida historia en sus crónicas.28 En 1601, fray JuanBautista publicó su Historia de los tres niños indios, mártires de Tlaxcala, que murieron por la

confesión de la fe, traducida al megicano, de acuerdo con la crónica de Toribio deMotolinía.29 Esta obra ponía de relevancia el papel que había tenido Tlaxcala no sólo enla conquista sino en la evangelizacion. Un año después, en 1602, fray Juan deTorquemada sacó a luz otro proyecto, la Vida de Sebastián de Aparicio, lego franciscano yuno de los primeros beatos, quien había sido constructor de caminos de Veracruz aMéxico y luego de México a Zacatecas, en la zona minera. El proyecto editorial deTorquemada vendría acompañado de la mercadotecnia de las reliquias del beato, queno dejará indiferente al rey Felipe III, muy interesado por éste a través de la biografíahecha por Torquemada.30

20 Todavía lejanos de los esfuerzos por la beatificación de sus mártires, los franciscanos,

como las otras órdenes mendicantes, perseveraban en la escritura de crónicas de susórdenes que integraban la historia indígena antigua, como las dos partes en unacontinuidad histórica. Así escribía en ese momento fray Juan de Torquemada su notableMonarquía indiana, y gracias quizá al éxito de su biografia de Sebastián de Aparicio,conseguiría que se publicara su gran obra en Sevilla en 1615.31

21 También los cronistas indígenas, tan cercanos a la religiosidad franciscana, se debatían

entre la tradición y el cambio. Domingo Chimalpahin era uno de los descendientes de lanobleza de Chalco Amecameca que ya habían sido educados por los religiosos. En suscrónicas, como en su diario, el elemento que más resalta, y que está muy presentetambién en la crónica religiosa, es el recurso de la oralidad. En esta época todavía elpapel del intérprete y del informante seguían siendo parte de la escritura, tanto comola refundición en otras obras de las fuentes más cercanas al testimonio. FrayBernardino de Sahagún ya había probado que la metrópoli no estaba interesada enpatrocinar las investigaciones etnográficas, aunque tampoco podía impedir que seescribiesen estos recuentos de memoria. Coexistían, sin embargo, diferentes sistemas;aunque la historia comenzaba a deslindarse del mito, también dejaba de ser cíclica paravolverse progresiva. Ésta es una consecuencia también de la colaboración entre fuentesindígenas y las reelaboraciones religiosas.

22 Hay otro tipo de élites que también funcionaban con respecto a la conservación oral de

la memoria. Hacia el final del siglo, la Inquisición realizó de las persecuciones másviolentas contra las herejías, resultando en los autos de fe de 1596 y 1601, en el queademás de algunos corsarios ingleses, franceses y holandeses (y algún impresorprotestante), se condenaron un buen número de judaizantes.32 La identidad, por lomenos en los grupos de judaizantes, quedaba en la preservación de la palabra religiosaa través de la tradición oral.33 La oralidad continuó siendo el medio de transmisión, y deconversión para los allegados, a la fe de las minorías.

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23 Finalmente, el último grupo más interesado en la preservación de privilegios, y de una

memoria de un pasado fundacional fue el grupo de criollos descendientes de losconquistadores. Aún para el final del siglo seguía persistiendo el recuerdo del conflictogenerado por los adeptos de Martín Cortés, primogénito del Marqués del Valle, quepretendían alzarse contra el gobierno virreinal en 1566, reivindicando sus derechossobre la tierra.34 De manera paulatina, se había impuesto en la sociedad virreinal una“criollización” de sus raíces españolas, tanto para los nacidos en la Península o en losterritorios de la Monarquía, como para los nacidos en la tierra.35

24 El indígena y el criollo, como conceptos identitarios, se caracterizaban por su

maleabilidad. En el proceso de hibridización cultural, las élites indígenas se“criollizaron” y los criollos se “indigenizaron”, al comenzar ambos grupos a sentirseoriundos de la tierra, y a integrar tanto elementos de la cultura católica como indígenaen actos públicos y privados. Para los criollos, el usufructo del “exotismo” indígenahabía sido clave para lograr mantener su posición hegemónica sobre las encomiendas ypueblos de indios, como verdaderos “señores de la tierra”. A pesar de que la historianovohispana arrancaba en la Conquista, los textos muestran que era importante lapervivencia de los elementos del pasado prehispánico para crear una cultura mestiza.El lugar para lanzar sus alegatos para tratar de conservar sus encomiendas eralógicamente en España, y fue allí donde se realizaron las principales publicaciones dereivindicación. Además, el mercado en Nueva España resultaba todavía muy reducido.Algunos cronistas, como Juan Suárez de Peralta, familia de la primera esposa de HernánCortés, iría a la península con las esperanzas de publicar su obra.36 Un tema que todavíalograba cierto éxito para llegar a las imprentas en España era la saga cortesiana y laépica conquistadora. El poeta Gabriel Lobo Lasso de la Vega recibió las solicitudes delhijo y nieto de Cortés, Martín y Fernando respectivamente, para que escribiese laapología del gran conquistador. Su obra tuvo dos ediciones, en 1588 y en 1594, lasegunda con la aprobación de Alonso de Ercilla, uno de los cronistas más cercanos a laCorte para los temas americanos.37 En Madrid se concentraba un contingente de criollosy de nobles indígenas bilingües que probablemente pagaban las publicaciones,vendiendo las hazañas de la Conquista, cuando en realidad ya corría una imagendistinta de Cortés. Después de la batalla de Lepanto y de las guerras de Flandes, algunasfiguras militares aumentaron su capital simbólico. Como el gran duque de Alba, HernánCortés pertenecía ya más a la gloria militar de la Monarquía Hispánca en su conjunto,que a sus filiaciones con el reino en que desplegó sus hazañas. En su entusiasmopoético, y sobre todo, en el oficio de rentar la pluma a los temas populares de sumomento, Lasso de la Vega también escribiría una crónica de Flandes.38 Las grandesépicas de la monarquía crecerían hasta compararse con la grandeza romana. ParaFrancisco de Valdés, soldado en la guera de Flandes, en su Espejo y disciplina militar

Hernán Cortés es ya comparable tanto a Julio César como al duque de Alba.39

25 ¿Qué es lo que consiguen, entonces, estos criollos en su búsqueda de reivindicación en

España? La publicación de las glorias militares de sus ancestros, que trocaban ladimensión política por una dimensión literaria; es decir, la sustitución de una honraguerrera que les permitiese una mayor dignidad social, por una dignidad simbólica.

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Finales y nuevas rutas.

26 Mientras que Cortés se separaba en la Metrópoli del mito fundancional del reino de la

Nueva España, la ciudad de México buscaba ganar una situación estratégica como“centro” de otro nuevo mundo. El fortalecimiento de las rutas económicas, y la llegadade mercancías de dos continentes le daba una sensación a sus élites que se encontrabanen una “gran ciudad” con tradicion histórica y un cosmopolitismo que podía ligarla alas otras grandes ciudades de la monarquía. Es entonces sintomática la publicación en1604 de Bernardo de Balbuena, La grandeza mexicana, en la que el joven bachiller deValdepeñas, lleno de ambición, exaltaba ese nuevo orbe que ahora podía asociarse aAsia.40

27 También es entonces lógica la aparición de personajes como el impresor y cosmógrafo

alemán Enrico Martínez. Martínez comenzó sus impresiones en 1600, y en 1606 salió desu imprenta su Reportorio de los tiempos e historia natural de esta Nueva España. Comocosmógrafo de su Magestad, la propuesta de Enrico era básicamente comprender loscambios del mundo a través del conocimiento de la astronomía y de la astrología, y dela discusión de fuentes, dándole una justificación matemática al nuevo centrogeográfico, que era Nueva España.41 Su Reportorio, que contiene una historia del imperiomexica y su caída con la llegada de los españoles, pretende mostrar cómo el mundo ysus acontecimientos tienen una lógica y un orden matemático y divino, donde la esferade los astros se reflejaba en la esfera terrenal: Europa, Asia, África y América, en dondeEuropa era la más importante, y ahora América, el nuevo centro, el más rico. Una deestas riquezas era la de su historia, para lo cual Martínez muestra hasta qué punto siguesiendo actual el discurso tan elaborado en el XVI de descubrimiento y conquista para laaprehensión de la importancia novohispana, entre sus posibles lectores americanos yeuropeos, apreciando la grandeza de su historia pasada y presente.

28 Si suponemos que había una conciencia sobre la dimensión histórica de la Nueva

España, ésta también afectaría a las élites indígenas. En la ambigüedad de discursos,entre ser un reino más de la monarquía hispánica, y entre la exaltación de tratar derepresentarse como algo único, como un reino con una religiosidad elegida y un puentea Asia, el discurso de las élites indígenas se vería seriamente modificado. En 1600convivían todavía Fernando Alvarado Tezozómoc, sobrino-nieto del emperadorMoctezuma II, y nobles como Domingo Chimalpahin, ya educados por los religiosos.Tezozómoc formaba parte de un grupo en el que estaba también Juan Cano Moctezuma,nieto del emperador, descontentos ante el cambio jerárquico del macehual, del indio noprivilegiado, en la vida pública. El mismo Chimalpahin, del que hemos hablado, se habíaintegrado como lego a los franciscanos de Tlatelolco, y sólo expresaría su herencianoble al escribir sus crónicas sobre su región de origen. El cambio se manifestaba, sinembargo, en su diario escrito en náhuatl que registraban todos los acontecimientosmarcantes de su época, preservando una memoria del presente para un lector futuro.

29 La rigurosa y extensa mención de acontecimientos recientes internacionales y el hecho

de crear una continuidad histórica con acontecimientos locales , que no se había hechoantes, era una novedad en el discurso de las élites indígenas. Domingo Chimalpáhin fueuno de los lectores del Reportorio de Enrico Martínez, pues en la redacción de susrelaciones históricas que comenzó en 1606, incluyó pasajes de esta obra, traducidos alnáhuatl. En su Diario, inédito hasta fechas recientes,42 él también construyó unamemoria internacional que arranca con los azotes de las epidemias que mataron a

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tantos negros e indígenas en 1577, y con los franciscanos descalzos que llegaban entránsito con rumbo a China.

30 Ante esta visión, ¿cómo un indígena occidentalizado podía reivindicar el exotismo de su

tierra ante el asombro de otros nuevos mundos? Lo que Chimalpahin y Enrico Martínezmostraban no era el mero resultado de la traslación del proyecto de Trento, laInquisición y los jesuitas, sino, una vez más, una construcción híbrida resultado de unanegociación constante, contradictoria y fecunda que dotaba a las élites de unaidentidad compuesta, sólo en parte nueva y sólo en parte consciente.

Conclusiones.

31 Para las élites intelectuales, la apertura de la Nueva España era inminente. Sin

embargo, a pesar de lo extraordinario de los sucesos, no era fácil que obras quetuviesen un interés más internacional y menos local fueran publicadas. Hemos de creera Martínez que sacar libros en Nueva España era difícil por el costo y tal vez por la faltade compradores, por lo que muchas de ellas circulaban en manuscrito o en fragmentosinscritos en otras.43 Así se conocieron probablemente las relaciones de Rodrigo deVivero sobre la conquista de Nuevo México y sobre su visita al Japón.44 Aunque todavíaabocada a la publicación de obras religiosas, la imprenta novohispana produjo algunasobras “de autor”, que valoraban la complejidad geográfica y cosmográfica del reino. Laobra del impresor Enrico Martínez requería que sus textos tomaran la forma impresa.Era la manera para darle validez a la obra, apuntalándo la dignidad del autor, que podíaprosperar socialmente. Sin embargo, el manuscrito seguía siendo el medio privilegiadopara la circulación de la información, y para la creación de géneros híbridos, como porejemplo entre las formas de crónica indígena tradicional, y la crónica históricacontemporánea.

32 La Inquisición y su sistema de censura ideológica, aunada a la llegada de los jesuitas,

aceleraron los procesos identitarios. Tanto el criollo como el indígena se definieron conrespecto a la nueva “españolización”, y a la integración al tiempo de la Monarquíacatólica como una cultura que se pretendía global. El intercambio, que fue el elementoesencial de la integración en todas las jerarquías raciales a las estructuras políticas ysociales, logró también la generación de un nuevo concepto de lo local, donde no sólo seintregraba la historia prehispánica con el hecho de la Conquista, sino la influenciareciente de Asia sobre la vida novohispana.

33 El concepto de criollo que se desarrollará en el XVII se inventó a partir de la

maleabilidad del mundo indígena, y sobre todo de sus élites que lograrían la fusión dela conciencia histórica de su pasado con la cristiandad contrarreformista. Las puertasasiáticas serían la traslación de lo exótico relacionado con lo incomprensible, lomisterioso, con un pasado grandioso en continua proyección.

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NOTAS

1. Rafael Bernal, México en Filipinas. Estudio de una transculturación, México, Universidad Nacional

Autónoma de México, 1965, p. 77.

2. Francisco de la Maza, La ciudad de México en el siglo XVII, México, Fondo de Cultura Económica,

1995, 135 pp.

3. María del Carmen León Cázares, “A cielo abierto. La convivencia en plazas y calles”, en Historia

de la vida cotidiana en México. La ciudad barroca, coordinado por Antonio Rubial García, México,

Fondo de Cultura Ecónomica/El Colegio de México, 2005, pp. 19-43 (tomo II).

4. Richard L. Kagan, Imágenes urbanas del mundo hispánico 1493-1780, Madrid, Ediciones El Viso, 346

pp.

5. Silvio Zavala, El servicio personal de los indios en la Nueva España, México, El Colegio de México,

1979-1989; Silvio Zavala y Emilio Ravignani, Servidumbre natural y libertad cristiana según los

tratadistas españoles de los siglos XVI y XVII, Buenos Aires, Peuser, 1944, 119 pp.

6. Bernardo de Balbuena, La grandeza mexicana, México, impresor Melchor Ocharte, 1604; nueva

edición con estudio preliminar de Luis Adolfo Domínguez, México, Porrúa, 1997, 155 pp.

7. Para las contribuciones de Pedro Mártir de Anglería, Giovanni Ramusio y los embajadores en la

corte carolina en la elaboración de temprana imagen de México hasta su percepción en la Italia

del XVIII, véase la obra de María Matilde Benzoni, La cultura italiana e il Messico. Storia di

un’immagine da Temistitan all’Indipendenza (1519-1821), Milan, Edizioni Unicopli, 2004, 369 pp.

8. Imbuída de un fuerte sentido apocalíptico y mesiánico, esta orden, que llegó tan sólo dos años

después de la Conquista en 1523, había construído durante las décadas posteriores una de las

estructuras más complejas de educación religiosa, en colaboración con la nobleza indígena

superviviente. El Colegio de Santa Cruz de Tlatelolco, de inicio un proyecto abortado para la

creación de sacerdotes indígenas, fue un centro único en la colaboración para las investigaciones

etnográficas y en la escritura de gramáticas y sermonarios (por ejemplo del indio latinista

Hernando de Rivas, traductor al castellano y mexicano quien colaboró con fray Alonso de Molina

y fray Juan de Gaona), además de la traducción de grandes obras religiosas del latín al náhuatl,

como las de Tomás de Kempis. Véase Georges Baudot, Utopía e historia en México. Los primeros

cronistas de la civilización mexicana (1520-1569), Madrid, Espasa-Calpe, 1983; Robert Ricard, La

conquista espiritual de México, México, Fondo de Cultura Económica, 2002 (7ª. Reimpresión); Elisa

Vargas Lugo, Clautro franciscano de Tlatelolco, México, Secretaría de Relaciones Exteriores, 1994;

Miguel Mathes, Santa Cruz de Tlatelolco: la primera biblioteca académica de las Américas, México,

Secretaría de Relaciones Exteriores, 1982.

9. Las órdenes menores, que comenzaron con los asentamientos franciscanos en el centro del país

en la región de México y Puebla, paulatinamente se extendieron por todo el territorio hacia el

sur, hacia la Mixteca y la Zapoteca, Yucatán, Chiapas, Guatemala, Nicaragua y Honduras, y hacia

el norte, hacia Nueva Galicia y Nuevo México.

10. El virrey estaba muy influído por las opiniones del capitán Rodrigo del Río de Loza, encargado

de los emplazamientos militares y presidios para la protección de la ruta Zatecas-Sombrerete.

Este sistema de presidios no resultó eficiente ni en la protección de los caminos ni de la frontera.

Del Río, no muy favorecedor a los mendicantes, apoyó la entrada de los jesuitas en Querétaro y

las minas de San Luis Potosí. Véase sobre la guerra chihimeca y el proceso de paz la clásica obra

de Philip W. Powell, La guerra chichimeca, México, Fondo de Cultura Económica, 1977.

11. En unos pocos años, ya habían edificado en la capital de la Nueva España el colegio de San

Pedro y San Pablo, el de San Gregorio, San Bernardo y San Miguel. Para atraerse estudiantes, no

dudaron en aparecer predicando en las plazas de mercaderes y mercados, invitando desde indios

y esclavos al catecismo dominical, hasta a españoles y criollos a sus cursos de poética y retórica.

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12. En esa lucha entre órdenes, los franciscanos también ripostaron contra los jesuitas en su

labor de conversión, en los nuevos confines del reino. Implantados los seráficos en Filipinas desde

1565, criticaron el trabajo, por no decir el éxito, que la Compañía parecía tener en el Japón. En

1600, fray Gerónimo de Jesús puso una denuncia contra los padres de la Compañía en el Japón,

por predicar falsas doctrinas y solicitar a sus hijas espirituales. (Proceso en Inquisición, Archivo

General de la Nación, México, vol. 253, fol. 317r.) Él mismo sufriría, sin embargo, los recelos de

letrados de San Agustín y Santo Domingo en los púlpitos de Manila. (Proceso de fray Diego

Vermeo contra fray Gerónimo de Jesús por palabras inconsideradas. Manila, 1600. En Inquisición,

Archivo General de la Nación, México, vol. 253, expediente sin número, información en folio

318r).

13. Para la época de las visitas de fray Alonso Ponce, en 1584 y 1587, a la provincia mexicana del

Santo Evangelio, había cerca de cuatrocientos franciscanos que administraban ciento sesenta y

seis conventos-cabecera, con cerca de un millar de templos dentro de las cuatro provincias: la del

Santo Evangelio de México, la de San Pedroy San Pablo de Michoacán, la de San José de Yucatán y

la del Nombre de Jésus de Guatemala.

14. El año de 1572 marcó una nueva etapa: en el convento agustino de México profesaron trece

criollos junto con ocho religiosos españoles, es decir, la primera vez que los nacidos en Nueva

España superaban a los de la península. Para principios del XVII, los criollos ya tenían “el

gobierno, prioratos y letorías sin quedarles contradicción ni casi religiosos de España”. Carta del

conde de Monterrey al rey, México, 30 de abril de 1606, AGI, México 26, Ramo I, doc. 14. Cita e

información tomada de Antonio Rubial García, El convento agustino y la sociedad novohispana

(1533-1630), México, Universidad Nacional Autónoma de México, p. 25.

15. Carta de E. Mercuriano a V. Lanuchi, Roma, 7 de noviembre de 1577, en Monumenta mexicana,

tomo I, p. 243. Referencia en Ignacio Osorio Romero, op. cit, p. 28.

16. Sommervogel, Bibliothèque de la Compagnie de Jésus, Bruxelles, O. Schepens, Paris, A. Picard,

1890-1932, 11 vol.

17. Pedro de Morales, profesor de artes, teología y derecho canónico, escribió la relación

pormenorizada de las celebraciones, dedicada al padre Everardo Mercuriano. Las fiestas hacían

público y notorio el vínculo privilegiado que el papa Gregorio XIII tenía con la Compañía, y con la

Nueva España al hacerla merecedora de tales acontecimientos. La convocatoria a la fiesta estaba

hecha con tal lujo que así se aseguraban el interés de la participación de todos los estamentos

sociales. Su programa de evangelización estaba muy cerca de lo dispuesto por Jerónimo Nadal a

través de la pedagogía de la imagen, sin olvidar la integración de elementos locales, como lo

hacían las otras órdenes, que era la participación indígena en la elaboración de los arcos

triunfales y en la decoraciones con arte plumaria. Fue así como los jesuitas contribuyeron a

acrecentar el gusto por las reliquias y posteriormente por los mártires, que explotarían con éxito

las órdenes mendicantes.

18. Esta implicación con el Santo Oficio fue una de las características de los impresores de este

periodo. Pedro Balli, natural de Salamanca y con remotos orígenes franceses, tomó los trabajos

pendientes de Ocharte, y colaboró con el Santo Oficio como traductor para esta lengua. Enrico

Martínez, un impresor alemán, y un personaje singular del que luego hablaremos, aprovechó la

ausencia del flamenco Cornelio Adriano César para comprar su imprenta, mientras trabajaba con

el Santo Oficio como traductor al alemán y holandés en el proceso mismo del flamenco. En el

relevo de impresores hacia el nuevo siglo, perduraron los españoles y sus descendientes sobre las

otras “nacionalidades”. El hijo de Ocharte, Melchor, ya nacido en Nueva España, se fue a trabajar

al Colegio de Santa Cruz de Tlatelolco, en el que estaba preso Cornelio Adriano, aprovechando su

experiencia para sacar a la luz las obras franciscanas.

19. Diego García de Palacio, Dialogos militares, de la formacion, è informacion de Persona, Instrumentos,

y cosas nescessarias para el buen uso de la Guerra, México, Casa de Pedro Ocharte, 1583. Con una

edición reciente hecha en Madrid por el Ministerio de Defensa en 2003. La Instrucción nauthica,

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para el buen uso, y regimiento de las naos, su traça, y gouierno conforma á la altura de Mexico,

fue impresa también por Pedro Ocharte en México, 1587.

20. Sobre la situación de los mendicantes y la publicación de la primera doctrina en lengua tagala

en Filipinas en 1593, véase la edición preparada por Edwin Wolf II de la Doctrina christiana. The first

book printed in the Philippines, Manila, 1593., Filadelfia, Edward Stern & Company, 1947.

21. Martín de Rada, O.S.A, Relación verdadera de las cosas del reyno de Taibin, por otro nombre

China, y del viage que a el hizo el muy reverendo padre fray M.de Rada, provincial que fué del

orden de st. Augustin, que lo vio y anduvo en la provincia de Hocquien año de 1575 hecha por el

mismo. Manuscrito en la Biblioteca Nacional de París, Mss español no. 325.

22. Juan González de Mendoza, Historia de las cosas más notables, ritos y costumbres del gran reyno de

la China, Roma, B. Grassi, 1585. En edición moderna: Historia del gran reino de la China, Madrid,

Polifemo, 1990, 413 pp.

23. Pascale Girard, Les religieux occidentaux en Chine à l’époque moderne, Lisbonne-Paris, Centre

Culturel Calouste Gulbenkian/Commission Nationale pour les commémorations des découvertes

portugaises, 2000, pp. 75-77.

24. Tres obras sobre Asia se publicaron, sin embargo, en el primer cuarto del siglo XVII. De

Antonio de Morga, Los Sucesos de las Islas Fililpinas (1609), de Pedro Morejón, Breve relación de la

persecución que huvo estos años contra la Iglesia de Iapon (1616) y los ministros della. Dividida en dos

partes y de Guillermo de los Ríos, Triumphos, coronas, tropheos, de la perseguida Yglesia de Iapon

(1628).

25. Álvaro Huerga, “Los alumbrados de Hispanoamérica (1570-1605)”, en Historia de los alumbrados

(1570-1630), Madrid, Fundación Universitaria Española/Seminario Cisneros, 1986, vol. III, pp. 60 y

ss., citado por Antonio Rubial García, México, Fondo de Cultura Económica/Universidad Nacional

Autónoma de México, p. 106.

26. Hay noticia de varias reimpresiones: dos en Lisboa por Pedro Crasbeeck, en 1615 y 1625; en

Sevilla, 1618; dos en Madrid, en 1618 por la viuda de Alonso Martínez, y otra en 1624.

27. Fue uno de los discípulos del ermitaño Gregorio López, y con Francisco Losa, los biógrafos del

insigne ermitaño. Posteriormente, Fernando Díez de Montalvo publicó una biografía de Vázquez

de Coronado. Antonio Rubial García, La santidad controvertida, Fondo de Cultura Económica/

Universidad Nacional Autónoma de México, 1999, pp. 106-111.

28. En su crónica el capítulo se llama De la muerte de tres niños, que fueron muertos por los indios,

porque les predicaban y destruían sus ídolos, y de cómo los niños mataron a el que se decía ser dios del vino.

Vease de Fray Toribio de Benavente, Historia de los Indios de la Nueva España, Madrid, Dastin, 2001,

pp. 265-275.

29. Fray Juan Bautista, La vida y la muerte de tres niños de Tlaxcalla, que murieron por la confesión de la

Fe: según que la escribió en romance el P. Fr. Toribio Motolinía, uno de los doce religiosos primeros.

Traducida en lengua mexicana por Fray Juan Baptista, México, por Diego López Dáualos, 1601.

30. Fray Juan de Torquemada, Vida y milagros del Sancto Confessor de Christo, F. Sebastián de Aparicio

fray lego de la Orden del Seraphico P. S. Francisco de la Prouincia del sancto Euangelio, México, en el

Colegio Real de Sanctiago Tlatelolco, impresor Diego Lopez Dávalos, por C. Adriano César, 1602.

31. Torquemada era uno de los predicadores del Colegio de Santa Cruz de Tlatelolco, donde

seguía trabajando y escribiendo sus crónicas. Aunque estaba caduco el proyecto franciscano de

formar a los jóvenes de las grandes familias indígenas en el Colegio, la imprenta franciscana

seguía funcionando con fuerza. Los impresores más importantes de la época seguían involucrados

en sus proyectos de edición. Las obras de fray Juan Bautista y de fray Juan de Torquemada fueron

publicadas en la imprenta del Colegio, manejada por Diego López Dávalos, con la asistencia de

Cornelio Adriano César, quien se encontraba ahí cumpliendo sentencia.

32. Alfonso Toro, Los judíos en la Nueva España, México, Archivo General de la Nación/Fondo de

Cultura Economica, pp. 207-372.

33. Nathan Wachtel, La foi du souvenir. Labyrinthes marranes, Paris, Seuil, 2001, p. 85.

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34. Para la crónica de la conjura de Martín Cortés, véase a Juan Suárez de Peralta, Tratado del

descubrimiento de las Indias, México, Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1990.

35. Las frecuentes fiestas civiles y religiosas hacían especial alarde de lo especial y específico del

virreinato: en el túmulo que se erigió en 1559 por la muerte de Carlos V en el atrio del convento

San Francisco, una de las escenas representadas era la caída de México-Tenochtitlán ante la

fuerza del Águila imperial de los Austrias, entre las empresas que exaltaban a la ciudad de México

y su reciente Universidad. Abriendo la gran procesión, desfilaron los gobernadores indios de

México, Texcoco, Tacuba y Tlaxcala, con enormes capas negras, sosteniendo los estandartes que

mostraban sus armas y las del Emperador. Detrás de ellos venían los señores de los pueblos con

dos mil indios nobles y con cuatrocientos frailes y clérigos. También en las fiestas privadas, como

en la celebrada por Martín Cortés por el bautismo de sus mellizos, los festejos se iniciaron con

música y bailes indígenas, además de las típicas mascaradas y juegos de cañas. El elemento

indígena que no faltó en el espíritu de ostentación de la representación jerárquica, era un

distintivo que prevalecía en las manifestaciones culturales del reino. Fernando Benítez, La vida

criolla en el siglo XVI, México, El Colegio de México, 1953, pp. 51-53; Francisco Cervantes de Salazar,

México en 1554 y Túmulo Imperial, edición y prólogo de Edmundo O’Gorman, México, Porrúa, 2000.

36. Su Tratado del descubrimiento de Indias, era una recapitulación de los hechos de la Conquista

con una crónica de los funestos sucesos que sucedieron en torno a la conjura de Martín Cortés.

Probablemente en la búsqueda del reconocimiento de sus derechos en España, logró sin embargo

que se publicara más fácilmente su libro Tratado de la caballería de la jineta y de la brida,

impreso en Sevilla en 1580, en casa de Fernando Díaz.

37. Gabriel Lobo Lasso de la Vega, Primera parte de Cortés valeroso y Mexicana, Madrid, Pedro

Madrigal, 1588 y Luis Sánchez, 1594.

38. Gabriel Lasso de la Vega, El sitio i presa de Ostende, i plaças de Frisa, dirigido a don Felipe Espinola,

manuscrito con fecha de 1600, Biblioteca Nacional de Madrid, Mss 2346.

39. Francisco de Valdés dice lo siguiente: “Julio César, que siendo Procónsul, subjeto al Imperio

Romano la multitud y ferocidad de bárbaras naciones, que desde las riberas del Rin y mar Océano

hasta el Mediterráneo se encierran, ¿qué otra cosa que la buena disciplina y orden de guerra le

hizo victorioso? Y en nuestros días Hernán Cortés (digno por cierto capitán de ponerlo entre los

nueve de la fama con menos de mil infantes españoles y ochenta caballos prendió dentro de su

ciudad al gran Rey Montezuma, al fin con sólo la buena orden subjetó al Imperio mexicano; y

Hernán Álvarez de Toledo, Duque de Alba, con solos mil arcabuceros y quinientos mosqueteros y

la buena orden rompió y degolló en Frisa a la ribera del río Amasio, doce mil hombres, con que el

Conde Ludovico Nasao había entrado en aquella provincia.” Espejo de disciplina militar, Madrid,

Ediciones Atlas, 1944, p. 35.

40. México al mundo por igual divide,

Y como a un sol la tierra se le inclina

Y en toda ella parece que preside.

Con el Pirú, el Maluco y con la China,

El persa de nación, el scita, el moro,

Y otra si hay más remota o más vecina;

Con Francia, con Italia y su tesoro,

Con Egipto, el gran Cairo y la Suría

La Taprovana y Quersonero de oro,

Con España, Alemania, Berbería,

Asia, Etiopía, África, Guinea,

Bretaña, Grecia, Flandes y Turquía;

Con todos se contrata y se cartea;

Y a sus tiendas, bodegas y almacenes

Lo mejor destos mundos acarrea.

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41. Esta compleja obra de Martínez muestra la vastedad de las miras y de las fuentes que se

manejaban en los horizontes letrados. Toda una biblioteca de modernos y antiguos nutre sus

argumentos científicos e históricos: Mateo Alemán, Antonio de Herrera, Toribio de Motolinía en

manuscrito (para la astrología mexica), José de Acosta, Agustín Dávila Padilla, Alonso de Villegas,

Juan de Sacrobosco, Ortelio, Hipócrates, Aristóteles, Ovidio. Metafísica y ciencias naturales con

historia de América y descubrimientos geográficos eran el bagage mínimo propuesto para

emprender la construcción del Reportorio.

42. Domingo Chimalpahin, Diario, paleografía y traducción Rafael Tena, México, Conaculta, 2001,

440 pp.

43. Con respecto a su tratado de Fisionomía de rostros, dice Enrico Martínez en las últimas líneas

de su Reportorio: “No puse este referido tratado de fisionomía en este presente libro, porque

ocupa más lugar del que aquí se le pudiera dar, y ser grande el costo de la impresión en estas

partes y muy poca la salida que los libros tienen.” Reportorio de los tiempos e historia natural de

esta Nueva España, México, Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1991, p. 407.

44. Sobre Asia se escribieron las siguientes obras entre 1580 y 1630, que circularían de manera

restringida en manuscrito: de Luis Flores, Relación de los sucesos de la cristiandad en el Japón hasta 24

de mayo de 1622, de Luis Sotelo, un Catecismo para catequizar a los japoneses, de Juan de Ribera, Viaje

a la India, de Francisco Muñoz, Viaje del Arzobispo de Goa, D Fr Alejo de Meneses á las Sierras de

Malavar, traducido del portugués al castellano.

RESÚMENES

Este estudo pretende reflectir sobre o modelo de singularidade pelo qual se definiram as elites

intelectuais da Nova Espanha, graças às façanhas militares de Hernán Cortés, e o fim e

transformação desse modelo a partir da segunda metade do século XVI, devido à realização de

outras conquistas, tais como o Peru e as Filipinas, e à abertura para a Ásia. Dada a sua situação

estratégica como ponto de articulação entre continentes, a Nova Espanha reclamou uma nova

centralidade, fortalecendo-se pela extrapolação de modelos de evangelização para as missões

filipinas, com pretensões de chegar à China e ao Japão. Nesse momento, a migração de religiosos,

funcionários, comerciantes e letrados era tão importante quanto a circulação de livros e

manuscritos que viajavam com eles. A partir da ampliação das fronteiras na segunda metade do

século, as temáticas da publicação foram-se alterando. No início do século XVII, inaugurou-se um

discurso no qual a Ásia e a América surgem como complementares no esforço da evangelização e

conquista, de forma a que tanto obras publicadas pela imprensa mexicana como crónicas

manuscritas, algumas delas indígenas, pretendiam integrar e integrar-se de forma “distinta” na

história mundial.

This essay intends to discuss the way in which the intellectual elites of Nova España defined

themselves in relation to the military campaigns of Hernan Cortes, and how this model was

changed since the second half of the 16th century, after the conquests of Peru and Philippines,

and the rotation towards Asia. A place between the Atlantic and the Pacific, Nova España claimed

for a new centrality, exporting models of Christianisation in the direction of the Philippines and

with the intention of arriving to China and Japan. At that moment, the migration of religious

people, officers, merchants and “letrados” was as important as the circulation of the printed and

manuscript books that travelled with them. The themes of these books were also shaped by the

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opening of the political space. In the beginning of the 17th century, a new discourse on Asia and

America emerged, and here, these two places have a complementary role in the conquest and

Christianisation. Books published in Mexico and manuscripts, some of local origin, integrated in

different ways the history of the world, or integrated themselves in the world history.

ÍNDICE

Keywords: Spanish Monarchy, New World, México, Center, Frontiers, Creoules, missionary

networks, expansion in Asia, circulation of foreigners, commerce, intellectual elites, identity

models, memory, production and circulation of texts, press

Palavras-chave: monarquia hispânica, novo mundo, México, centros, fronteiras, crioulismo,

rede missionária, expansão na Ásia, circulação de estrangeiros, comércio, elites intelectuais,

modelos de identidade, elites indígenas e memória, produção e circulação de textos, imprensa

AUTOR

GABRIELA VALLEJO

École des Hautes Études en Sciences Sociales.

Gabriela Vallejo (México, 1964) tem-se dedicado, sobretudo, à investigação dos fundos da

Inquisição do México e foi nesse contexto que publicou o Catálogo de textos marginados novo-

hispanos. Realizou os estudos pós-graduados na École des Hautes Études en Sciences Sociales

(Paris), e faz parte do grupo de reflexão e investigação sobre os mundos americanos (CERMA).

Publicou artigos sobre a história do livro na Nova Espanha em revistas da especialidade.

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A circulação de obras antijudaicas eanti-semitas no Brasil colonialThe circulation of anti-Jewish and anti-semitic books in Colonial Brazil

Bruno Feitler

1 Em outubro de 1497, os judeus de Portugal foram convertidos à força ao cristianismo.

Este ato de violência, ditado por necessidades políticas e econômicas (as ambiçõesdinásticas do rei D. Manuel incitaram-no a expulsar os judeus, e a importância socio-econômica destes o levou a impedir seu êxodo antes da data fatídica), marcou o fim daexistência legal do judaísmo em Portugal e o começo da história conturbada dosdescendentes dos judeus lusitanos. A conversão forçada também repercutiu de formadurável sobre toda a sociedade portuguesa da época moderna, funcionando como umainterferência, um elemento a mais, na complexa rede de distinções sociais daorganização estamental da população de então. Este dado – junto com o própriocontexto social colonial, marcado pelo escravismo – também é válido para o ultramarportuguês, para onde se transferiram, mesmo se com ajustes, as formas de organizaçãosocial do Portugal metropolitano1.

2 Tendo como pano de fundo esta sociedade de Antigo Regime, a perpetuação social do

judeu através do preconceito racial – mesmo quando oficialmente, do ponto de vistareligioso, nada mais o distinguia do resto da população – deu-se pela conjunção devários fatores, sendo o mais óbvio a própria conversão forçada. Também podem sermencionados o malogrado processo de integração que habitualmente diz-se terocorrido entre 1497 e 1536 (quando é fundada a Inquisição) e a existência real de ummeio criptojudaico, resultante da política coercitiva mas também do apego que parte dapopulação recém-conversa sentia pelos costumes e pela religião que haviam seguido,fatores estes que só existiram em decorrência da própria conversão. Entretanto, oestabelecimento generalizado da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos emPortugal teve como principal base os estatutos de pureza de sangue, moldados noexemplo espanhol, e que transformaram pouco a pouco o tradicional discurso religiosoantijudaico em discurso racial anti-cristão-novo.

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3 Os estatutos de pureza de sangue foram paulatinamente difundidos no mundo

português tanto em sua legislação eclesiástica como civil, estando presentes naspróprias Ordenações régias, como nos regimentos de ordens religiosas, irmandadesleigas e ordens militares. Todo este corpus legislativo, e sobretudo os processos dehabilitação a cargos nestas instituições e a hábitos das ordens ou do Santo Ofício, queconcerniam uma parte mais ampla da população, mantiveram e difundiram durantetodo o antigo regime português o preconceito, não só contra os cristãos-novos, mastambém contra os descendentes de muçulmanos (os mouriscos), ciganos, negros eíndios2. Contudo, não era a legislação que transmitia especificamente as bases, odetalhe, do discurso racial. Esta legislação transmitia tão somente o própriopreconceito, fixo, sem explicações detalhadas sobre em quê ele se baseava,simplesmente especificando, no caso do anti-semitismo, que os “cristãos-novos” – ouque os de “raça infecta”, ou de “sangue impuro” – não poderiam ocupar tal posição ouentrar em tal ordem religiosa ou receber tal hábito, sem dizer as origens dessepreconceito, que se perpetuou de outro modo. Esta ‘racionalidade’ providencialista,bem típica do Antigo Regime, perseverou nas origens teológicas, históricas e sociais quejustificavam o preconceito, aparecendo em outros tipos de documentos, sobretudodocumentos literários ou propagandísticos, que serviram para veicular,propositalmente ou não, isto é, com o único intuito de segregar os descendentes dosjudeus, ou em anexo a outras mensagens político--religiosas, a imagem dos cristãos-novos que vigorou durante todo o período em questão.

4 Trataremos então aqui destas obras literárias, tentando ver mais especificamente como

elas fizeram com que estas idéias circulassem na América portuguesa, tendo-se emmente a inexistência de prelos no Brasil antes de 1808, o que provavelmente fez comque a produção desse tipo de publicação por luso-americanos fosse menor do que teriasido com uma produção impressa local; isto, é claro, para além de uma possívelprodução e circulação manuscritas. Também deve se ter como pressuposto que asligações existentes entre os membros da intelectualidade – a elite erudita luso-atlântica– fizeram com que as obras publicadas em Portugal circulassem na porção americanado seu império. Isto é, não se pode estudar a circulação de obras antijudaicas e anti-semitas no Brasil colônia sem ter em vista a produção européia, mesmo se as obrasamericanas também existiram, como veremos. Assim, mais do que estudar a circulaçãodessas obras, tentaremos ver como a mensagem que elas veiculavam se refletiu emtextos produzidos localmente3. Mas antes de passar ao estudo desse importanteconjunto de textos – produzidos entre a conversão forçada dos judeus e o fim dadistinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, decretada pelo Marquês de Pombal em1773 – devemos deixar claro qual era a situação dos judeus de Portugal até então e quaisforam os antecedentes diretos daquilo que chamaremos de modo um pouco inadequadode ‘movimento literário’, visto as grandes diferenças que se podem verificar nocontexto de redação, nas motivações dos diversos autores, e até no formato das obrasem questão4.

5 Apesar de terem-se verificado alguns incidentes durante o século XIV e a primeira

metade do século XV, a situação dos judeus portugueses chegava a ser invejável quandocomparada com a extrema insegurança que vigorou a partir de 1391 nos reinosvizinhos, onde ondas de conversões forçadas acompanhadas de massacres se repetiramaté a expulsão final de 1492. A conjuntura cada vez mais crítica dos reinos hispânicosacabou por desfazer, pouco a pouco, o equilíbrio existente em Portugal. A instauração

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da Inquisição castelhana em 1478 provocou a fuga de conversos que secretamenterespeitavam o judaísmo para Portugal e a expulsão quatorze anos mais tarde causou umverdadeiro êxodo de um total estimado em mais de 83 mil pessoas, sendo que só umaparte destas recebeu a autorização de permanecer no reino, contra o pagamento deuma grande soma de dinheiro. Mal recebidos pela população portuguesa, reduzidos emescravidão, maltratados por aqueles que deviam conduzi-los ao exílio final, tendo seusfilhos deportados para a ilha de São Tomé, os judeus espanhóis acabaram por seadicionar à comunidade judaica portuguesa, fazendo com que esta contasseaproximadamente por um décimo do total da população do país, fato único na históriados estados cristãos ocidentais.

6 No que toca as controvérsias religiosas e a literatura apologética, quando comparada

com o que acontecia no resto da Europa, se pode constatar mais uma vez a excepcionalsituação de calma que reinou em Portugal até o fim da idade média. Enquanto em Paris(1240), Barcelona (1263), Tortosa e S. Mateus (1413-1414) as controvérsias religiosasaumentavam a exaltação antijudaica, em Portugal o poder real parece ter proibidoessas disputas. Enquanto judeus convertidos ao catolicismo (como Pablo de Santa Mariae Jerônimo de Santa Fé) ou espanhóis sem origens judaicas (como Nicolau de Lira eAlonso de Spina) escreviam virulentos tratados contra os judeus, que acabaramservindo de base para a produção apologética dos séculos seguintes, em Portugal só sepodem contar quatro tratados, o que mais é, segundo I.-S. Révah, imbuídos de umespírito de tolerância e de uma moderação particularmente notáveis5.

7 A situação muda radicalmente com os acontecimentos da última década do século XV. A

partir de então, a barreira que separava os judeus dos cristãos já não existia mais e osrecém-convertidos puderam ocupar cargos civis, mas também religiosos a que antesnão tinham acesso. Esta nova concorrência, adicionada ao decreto real proibindoqualquer investigação sobre o comportamento religioso dos antigos judeus, só fezamalgamar e exacerbar o sentimento “cristão-velho” da população que, em abril de1506, em Lisboa, exaltadas pela predicação dos monges mendicantes, descarregou suainveja e suas frustrações no que foi o mais cruel dos massacres da história de Portugal.

8 É de se estranhar que o problema sócio-político que representava a assimilação da

população judaica em Portugal não tenha repercutido na literatura dos primeiros anosdo século XVI. Com efeito, eles continuaram a aparecer como objeto obrigatório desátira do mesmo modo que no período medieval. Autores como Gil Vicente fazemreferência à nova situação, zombando dos oficiais régios cristãos-novos e pondo emcausa o valor do seu cristianismo. Certas vozes chegaram a se elevar para criticar aviolência da conversão, mas nenhum texto apologético, dirigido aos conversos paraconvencê-los da verdade do religião cristã parece ter sido redigido.

9 Ainda segundo Révah, a reação dos letrados portugueses só começa a evoluir com o

início da luta diplomática sobre a questão da instauração da Inquisição e em seguidacom o começo de sua ação (1536). Estes acontecimentos despertaram o zelo religioso euma “crise de consciência em certos cristãos portugueses”, que começam então aproduzir obras de apologética antijudaica em português. Contudo, precedendo depouco a iniciativa de D. João III em criar um tribunal inquisitorial, o colóquio Ropica

Pnefma (1531) do cronista João de Barros pode ser considerado como a primeira obra ase debruçar sobre a questão do judaísmo, mesmo se este não era o seu propósitoprincipal, mas sim ser “uma apologética e uma sátira erasmiana dos diversos estados

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sociais, uma refutação das principais heresias religiosas e uma crítica dos vícios morais”6.

10 Os dois primeiros escritos a terem como tema principal a questão dos judeus são o

Espelho de cristãos-novos e convertidos (1541) do cisterciense Francisco Machado e oDiálogo evangélico sobre os artigos da fé contra o Talmud dos judeus (1542-1545) de João deBarros. Estes dois tratados não receberam autorização para serem impressos devido acensura inquisitorial, que via neles manuais que seriam antes utilizados pelos cristãos-novos como guias sobre a prática do judaísmo, do que como obras de conversão7.

11 Em 1565 vem à luz em Goa o primeiro tratado especificamente antijudaico em

português. Trata-se da tradução de duas obras latinas de Jerônimo de Santa Fé (Ad

convincendum perfidiam Judæorum e De Judaicis erroribus ex Talmud, isto é: Prova da perfídia

dos judeus e Erros dos judeus tirados do Talmud), feita por D. Gaspar de Leão, arcebispo deGoa e acompanhada de uma carta apostólica escrita pelo próprio.

12 Dois anos mais tarde o livro de Francisco Machado é publicado em Coimbra, só que em

latim e expurgado de qualquer crítica em relação à política real8. Estes dois tratadosinauguram a rica produção gráfica portuguesa de textos antijudaicos, mesmo se naverdade as obras de apologética só começam a sair em um ritmo mais constante após1612, quando foi impresso o primeiro sermão de auto-da-fé. O ritmo das publicações semantém quase ininterrupto (com a exceção do período das guerras de independência)até o fim do século XVII. A partir daí ele começa a perder de sua importância, paraparar quase completamente no princípio dos anos 1750. Pode-se estimar esta produçãoliterária em mais de uma quinzena de livros e panfletos (alguns títulos com váriasreedições) e um total de setenta sermões de autos-da-fé impressos, sem contar aprodução manuscrita.

13 Esta produção obteve muito sucesso durante toda a época estudada, sucesso confirmado

pelo número de edições de algumas delas e pelo financiamento de certas publicaçõespor livreiros. Assim, o Dialogo entre discipulo e mestre catechizante, de João Baptista d’Esteteve duas edições9, enquanto a Centinella contra judeos, do espanhol Torrejoncillo atingiutrês edições em português, sendo a primeira, de 1684 (Lisboa), custeada pelo mercadorde livros Manoel Lopes Ferreira10. As obras de Vicente da Costa Mattos, Breve discurso

contra a heretica perfidia do iudaismo11 (na sua segunda edição, 1623), que estudaremosmais detalhadamente adiante, e Honras christãs nas afrontas de Iesu Christo12, tambémforam impressas a mando de um livreiro de Lisboa, Amador Fernandes. O próprionúmero de sermões de autos-da-fé impressos (70, com reedições) mostra o sucesso degênero.

14 Estas obras circulavam bastante, tanto na Espanha vizinha (a primeira obra de Vicente

da Costa Mattos foi aí traduzida, merecendo duas edições)13, mas também na diásporajudaica portuguesa, provocando assim, em terreno mais propício, algo que seaproximaria de um verdadeiro debate. O sermão pronunciado no auto-da-fé de Lisboado dia 6 de setembro de 1705, pregado por Diogo da Anunciação Justiniano e publicadoem 1710, foi rebatido por um autor anônimo, que publicou em 1709, em Turim, umaapologia do judaísmo, o que aponta para uma circulação manuscrita do sermão14. ODialogo entre discípulo e mestre catechisante, de João Baptista d’Este, publicado em Lisboaem 1621 e em 1624, também encontrou resposta no século XVIII. Um manuscrito dacomunidade judaica de Amesterdão tem como título Resposta do Dr Sequeira Vezinho de

Londres, ao libro I[n]titulado Dialogo[s] Theologicos, que compos hum autor anonimo cristaõ

para reduzir aos Judeos, ao Cristianismo, descrito como “um livro em forma de dialogo

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entre Discípulo, e mestre catequizante”15. Segundo Kayserling, o autor seria um Yshacde Sequeira Samuda, que vivia em Londres nos começos do setecentos16. Estes dois casosbastante específicos são somente a ponta do iceberg. Várias obras – éditas oumanuscritas – produzidas em Holanda, Itália, Hamburgo, etc., foram produzidas porjudeus de origem ibérica como apologias ao judaísmo face às nações, mas também comoum contraponto da literatura de polêmica produzida na península, mesmo se nãotinham como objetivo rebater alguma obra em particular, como nos exemplos citadosacima. As obras mais conhecidas desse gênero são aquelas do doutor Isaac Cardoso, esuas Excelencias y calunias de los hebreos, e de Isaac Orobio de Castro, que muito escreveucom esse fito apologético17.

15 As obras de teor apologético judaico circularam com força no Brasil holandês por meio

da comunidade judaica que funcionou entre 1636 e 1654 em Recife, e que as utilizouenquanto literatura pedagógica para levar seus correligionários cristãos-novos que láviviam enquanto católicos de volta ao judaísmo18. Esta vertente, aliás, também teve seuexpoente local: Moisés Raphael de Aguilar, um dos rabinos da comunidade de Recifeescreveu no Brasil um tratado sobre o capítulo 53 de Isaías, passagem importantíssimana controvérsia religiosa judaico-cristã19. Desta vez foi a literatura de polêmica católico-portuguesa que pode ter sido utilizada, mesmo que discretamente, para fazer barreira aessa ‘missão interna’ judaica. Não temos nenhum exemplo concreto desse uso, massabemos que vários judeus, recentemente retornados ao judaísmo ou já nele nascidos,pediram instrução religiosa católica, convertendo-se (ou voltando) eventualmente emdefinitivo ao catolicismo romano.

16 Fr. Manoel Calado, autor de uma das mais ricas fontes sobre o período, e muitas vezes

protagonista de sua própria obra, é quem nos dá alguns detalhes, mostrando estar bemfamiliarizado com a literatura de polêmica. No capítulo sobre o começo da revolta dosluso-brasileiros contra os holandeses, que iniciou-se em 1645, Calado menciona “umjudeu de nação a quem ele andava catequizando com muito cuidado para o reduzir à leide Cristo nosso Senhor e batizá-lo, como já o tinha feito a outros sete da mesma naçãohebréia, dois dos quais havia mandado para Portugal ao inquisidor-mor por via daBahia e do governador Antonio Telles da Silva, por eles lhe pedirem que queriam ir aviver a Portugal, aonde se guardava a lei de Cristo inteiramente”20. Conhecemos osnomes de pelo menos dois desses judeus: Isaac de Castro, que uma vez preso pelaInquisição enfrentou os seus juízes até a morte na fogueira, e Miguel Francês, quevoltou definitivamente ao catolicismo21.

17 Em outro trecho Calado descreve o simulacro de controvérsia que travou com dois

judeus anônimos de origem conversa que iam ser enforcados pelas tropas portuguesas.Neste trecho do seu Valeroso Lucideno, ele diz ter debatido com os condenados de “todasas dúvidas que os Judeus põem contra os Cristãos, e todos os passos da sagradaEscritura que alegam para sustentar sua pertinácia”, como vários tratados de polêmicada mesma época, terminando seu trágico relato através da descrição de uma cerimôniabastante próxima da dos autos-da-fé inquisitoriais (como ele mesmo menciona), e queimplicavam, como no caso pernambucano, uma grande audiência que de lá sairiaedificada, mas também atemorizada.

18 Não existem informações suficientes para saber até que ponto Calado teve que

argumentar da verdade do catolicismo com aqueles oito catecúmenos quemencionamos anteriormente, ou seja, só podemos supor que ele tenha feito uso deobras de apologética anti-judaica com eles. Mas podemos afirmar que foi dessas obras,

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mais especificamente de sermões e das próprias cerimônias de autos-da-fé, que ele seinspirou para celebrar a ‘reconciliação’ ao modo inquisitorial que se seguiu à conversãodos dois pobres diabos em questão, em fins de agosto de 164522.

“[...] aos outros dois, condenou o Auditor General a morrerem enforcados, e porquehaviam de padecer, os mandaram meter dentro da igreja de S. João até a hora de osenforcarem, pondo-lhe guarda de soldados nas portas. Acudiu logo o p. fr. Manoeldo Salvador da ordem de S. Paulo23, e sentado entre ambos no degrau que sobe parao altar, diante dos padres da Companhia João de Mendonça e Francisco de Avelar, ediante do p. João Batista Lobo, natural de Lisboa, e outros sacerdotes e muito povoque concorreu a se achar presente neste ato, lhes falou desta maneira. Irmãos, vósestais condenados á morte por haverdes tomado armas contra os portugueses, sendoportugueses de nação, e por serdes traidores a Jesus Cristo, pois havendo nascido no grêmioda Santa Madre Igreja Romana, e tendo recebido a água do santo batismo, apostatastes da FéCatólica e vos passastes à lei de Moisés, circuncidando-vos e vivendo, como até agoravivestes, no judaísmo, e dizendo muitas blasfêmias contra Jesus Cristo nosso Salvador, comose vos tem provado, e outrossim, por serdes vós e os de vossa nação os que incitáveis aosholandeses a que usassem de tiranias e crueldades com os moradores desta terra e por outrasculpas que os ministros da justiça acharam bastantes e ainda eficazes para vos condenar àmorte. Já sabeis que se antes que morrais, quereis conhecer a cegueira em que andaismetidos e ficar inteirados em como Jesus Cristo nosso Redentor é o verdadeiro messiasprometido na lei e apregoado pelos profetas, e que os que se hão de salvar, há de ser crendoem sua Santa Fé Católica, e que sem ela não há remédio para entrar no Céu. Argumentaicomigo e proponde-me todas as dúvidas que os judeus põem contra os cristãos, e todos ospassos da sagrada Escritura que alegam, para sustentar sua pertinácia, que eu vos resolvereitodas vossas dúvidas brevemente, e vos declararei todos os passos da Escritura com tantaverdade e clareza, que fiqueis, por uma parte satisfeitos, e por outra confusos dos erros emque andais metidos.Responderam os dois judeus, que estavam contentes com o partido e começaram apropor todas as dúvidas, passos da Santa Escritura e fundamentos em que seestribavam para negar que Cristo era o verdadeiro messias e para esperar por outroque havia de vir a levá-los a todos para Jerusalém cheios de muitas prosperidades eriquezas. Ouviu o p. fr. Manoel todas as dúvidas e propostas, e logo com grandealegria dos cristãos que estavam presentes, começou desde o princípio do livro dosGênesis e resolveu em espaço pouco mais de uma hora e meia toda a sagradaEscritura do testamento velho, e aqui se resolvia uma dúvida e ali outra, e assim lheficou declarando todos os passos da Escritura que se lhe propuseram com tantaerudição e provando uns passos com outros, confirmações dos profetas, textos dooriginal hebreu e dos talmudes, assim caldeu como hierosolimitano, e livros queestes têm em muita veneração, a explicações dos seus mesmos rabinos; profeciasque deixara em seus testamentos os doze patriarcas filhos de Jacob da vinda doMessias (os quais testamentos se acharão no terceiro tomo da Biblioteca dos SantosPadres, traduzido do grego por Roberto, Bispo Linconense, no ano do Senhor de mile cento e quarenta), enfim tantas cousas disse o dito padre, e com tanto espírito ecom tanta verdade e facilidade declarou aos dois judeus todas as dúvidas que lhepropuseram, que os judeus ficaram confusos e corridos, vendo tanto ao claro acegueira e os enormes erros em que andavam sepultados. E os padres daCompanhia, com os demais sacerdotes e povo circunstante, ficaram admirados dodesenfado com que o dito padre confundiu aos judeus e a grande lição e verdadeiraexplicação da sagrada Escritura em que andava versado. Porém, isto não era muitopara admirar, porque como o dito padre andava de ordinário disputando com osjudeus do Arrecife, e tinha já trazido à Fé de Cristo a sete deles e os havia batizado, eandava catequizando a outros, sempre andava estudando para confundir seus erros.Tanto que os dois judeus se deram por convencidos, lhes disse o p. fr. Manoel quepois estavam propinquos [próximos?] à hora da morte, que não perdessem suasalmas, cuja redenção havia custado ao filho de Deus encarnado não menos que oderramar seu precioso sangue, e entre cruelíssimos tormentos, e dar sua vida

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liberalmente nos braços de uma cruz, e que se quis morrer com os braços abertos,foi para dar a entender que ainda que um homem houvesse sido o mais depravadopecador do mundo, todavia, se se arrependesse de seus pecados e se chegasse a ele,o receberia com abraços de piedoso pai, e com amor e misericórdia. Por tanto, quese se quisessem fazer cristãos e pedir perdão a Deus, estivessem certos que sehaviam de salvar e haviam de ser perdoados pelos merecimentos de Jesus CristoSalvador do mundo? Responderam os judeus que se queriam tornar à Fé Católica.Então o p. fr. Manoel do Salvador lhes declarou todos os mistérios da Santa FéCatólica com muito fervor, espírito e verdade, e no fim lhes tornou a perguntarsegunda vez se queriam tornar-se à Fé de Cristo de suas livres vontades, semconstrangimento. E respondendo ele que sim, o dito padre lhes fez abrenunciar todaa cegueira do judaísmo e todas as heresias em que andavam enlodados. E fizeramem suas mãos protestação da Fé sobre um missal, na forma que se costuma fazer nosautos-da-fé. E acabado isto, começaram ambos a chorar, e perguntando-lhe o ditopadre o porque choravam? E se estavam arrependidos de se haverem tornado aogrêmio de Cristo? Respondeu um deles: Padre, estas lágrimas que derramamos não são de arrependimento do que temosfeito, nem causadas do temor da morte, que tão merecida temos por nossospecados, mas são causadas da alegria e contentamento que nossas almas sentem,pois havendo até agora estado quase metidos no inferno, Jesus Cristo verdadeiromessias nos tirou dele por sua misericórdia, sem nós lho merecermos. Seja louvadopara todo sempre. Então se virou o p. fr. Manoel para os dois padres da Companhiae lhes disse: Reverendos padres, não quero eu só levar o prêmio desta obra, sejamvossas Reverências também participantes deste merecimento. Aqui lhes entregoestes dois cristãos para que os confessem e exortem e consolem, enquanto eu voutomar algum alívio, porquanto estou mui enfermo e fraco. Saiu-se o padre a tomarum caldo de farinha, as que no Brasil chamam mingau, e os padres da Companhiaficaram fazendo seu ofício até que se chegou a hora de padecerem os dois judeus[sic]. E todos os sacerdotes os acompanharam até que morreram.”24

19 Manoel Calado menciona aqui várias coisas que devem ser realçadas: antes de tudo a

controvérsia, ocorrida na igreja de São João do Arraial Novo de Bom Jesus, base dastropas restauradoras. Como vimos, este simulacro de controvérsia segue as vias comunsdos discursos do mesmo gênero produzidos no Portugal da época. É verdade que Caladonão cita nenhuma obra contemporânea, sermões ou tratados apologéticos, mas declara,por exemplo, como qualquer sermão de auto-da-fé, utilizar tão-somente citaçõesextraídas do Antigo Testamento, do Talmud e de “seus mesmos rabinos” paraconvencer os apóstatas de seus erros25. Os dois condenados não tinham outra opçãoalém de se deixar convencer, após terem aceito o ajuste proposto por Calado, mas queprovavelmente foi ordenado pelo mestre de campo João Fernandes Vieira26.

20 Como se vê, as marcas concretas da circulação desse tipo de obras no Brasil não são

fáceis de encontrar, mesmo se se pode comprovar a circulação das idéias que essasobras veiculavam, do mesmo modo que circulavam os letrados portugueses, civis oueclesiásticos, entre as duas margens do Atlântico. Vamos agora estudar maisespecificamente duas obras paradigmáticas das duas vertentes deste veio literárioantijudaico português e que, coincidentemente, são as únicas obras que sem sombra dedúvida circularam e que provavelmente foram lidas por lá. Trata-se da já mencionadaobra de Vicente da Costa Mattos, presente na biblioteca de um padre setecentista deSão João del-Rei27, e da tradução de uma obra do italiano Pinamonti, a Sinagoga

desenganada e que não só se encontra na biblioteca dos beneditinos de Salvador, comofoi naquela cidade traduzida no começo do século XVIII pelo padre João AntônioAndreoni (o Antonil, autor da capital Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas),sob o patrocínio do arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide.

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21 Vimos acima que em Portugal este ‘movimento literário’ iniciou-se no rastro da

polêmica sobre a instauração da Inquisição, como um modo encontrado pelos eruditospara tentar converter sinceramente os cristãos-novos que provocavam escândalo porainda praticar os ritos judaicos. Esta primeira produção, de cunho sobretudoapologético, vai esmorecer no decorrer do século XVI, deixando lugar a um outro veio,mais virulento, que ligará cada vez mais fortemente à origem judaica dos cristãos-novos a prática de certos ritos, um comportamento social e político específico ealgumas vezes até certas taras físicas e morais, sendo assim veiculador de um discursoclaramente anti-semita.

22 É bom lembrar que, apesar de não serem sempre obras de circunstância, estes textos

estão intimamente ligados ao contexto da época em que foram escritos, e os anos 1620 e1630 são muito importantes para a compreensão do fenômeno. Com a subida ao tronode Felipe IV (Felipe III de Portugal) e o ministério de Olivares, o problema dos cristãos-novos toma novas proporções pela importância que lhe é dada em todos os níveis davida pública ibérica: tanto do ponto de vista religioso, quanto social e econômico. Apolítica mais branda que a Coroa pensou instaurar (sem nunca ter cogitado a prática dojudaísmo na península e seus domínios) foi discutida em todos os níveis da sociedade efez com que os detratores do regime e dos cristãos-novos se movimentassem dediversas maneiras para derrubar Olivares. Foi neste contexto que surgiram algumas dasobras mais virulentas e anti-semitas em Portugal, em parte como modo de denegrirOlivares e sua política, pondo os cristãos-novos na clássica posição de bodes-expiatórios28. O caso de Antônio Homem (preso em 1619 e queimado após o auto-da-féde 1624) e sua confraria de judaizantes no próprio corpo docente da universidade deCoimbra, o sacrilégio ocorrido em 1630 na igreja lisboeta de Santa Engrácia e aexecução subseqüente de um cristão-novo, ou ainda o explosivo caso da ‘calle de lasInfantas’ acontecido em Madrid no mesmo ano, foram eventos muito comentados atodos os níveis, focando a atenção sobre os cristãos- -novos e atiçando os preconceitos eos ódios da população29.

23 Esta também é a época de um grande número de autos-da-fé, assim como da acirrada

controvérsia sobre a promulgação de um novo perdão geral em favor dos cristãos-novos. Esta controvérsia gerou uma enorme massa de documentação manuscrita sobreos inconvenientes do perdão, mas o tema foi ultrapassado com a introdução da idéia(impraticável) de que Portugal deveria se separar de sua população de origem judaica.Um autor já mencionado se consagrou particularmente a esta idéia: Vicente da CostaMattos, aparentemente um laico, que publicou em 1622 um Breve discurso contra a

heretica perfídia do ivdaismo, continuada nos presentes apostatas de nossa santa Fé, com o que

conuem a expulsaõ dos delinquentes nella dos Reynos de sua Magestade, cõ suas molheres &

filhos. Costa Mattos fez uma revisão do seu tratado, utilizando-se de novas fontes,revisão esta que foi publicada no ano seguinte. Pouco tempo depois, em 1625, elepublicou suas Honras Christãs nas afrontas de IESU Christo e segunda parte do primeiro

discurso contra a heretica perfidia do judaísmo continuada nos presentes apostatas de noβa S. fè

com a conveniencia da expulsaõ dos sobreditos hereges, em ordem ao serviço de Deos noβo

Senhor, & ao proveito deste Reyno.

24 O primeiro dos títulos de Costa Mattos, que se encontrava na biblioteca do padre José

Rodrigues da Cruz de São João del-Rei, se obteve sucesso, não foi por suas qualidadesliterárias ou pela lógica do seu discurso (a obra é muito mal redigida e organizada).Trata-se de um conjunto desordenado de fatos reais e de afirmações de princípio com

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pretensas bases históricas30, feitas a partir de um discurso religioso utilizado mais comopretexto do que como base teórica, e que descamba para as acusações mais infamescontra os cristãos-novos como um todo, e não só contra os judaizantes.

25 As punições recebidas pelos judeus pela morte de Jesus Cristo, não têm limites segundo

este autor. Sua implicação direta na morte do messias por eles negado foi castigada poruma cegueira espiritual que os impede desde então de compreender as causas de suasmisérias. Até aqui pode-se dizer que Costa Mattos só faz acompanhar as fontespatrísticas tradicionais, apenas potencializando a inexorabilidade desta cegueira. Maspara ele, os judeus (e seus descendentes), também foram punidos por taras físicas:“fluxo de sangue, purgação e mênstruo”, o phœtor iudaicus, o nariz avantajado, oresquício de um rabo no fim da coluna vertebral, ou ainda o fato de não serem capazesde cuspir… Num capítulo inteiro do seu Breve discurso, Costa Mattos mostra “como osjudeus são defeituosos e assinalados em muitas cosas, em castigo de sua perfídia”(capítulo 18). Boa parte destas lendas circulava já desde a antiguidade, mas a novidadeaqui é que, enquanto anteriormente o batismo limpava os judeus de todas essas taras,no mundo ibérico, elas se perpetuaram nos descendentes convertidos dos judeus,estando assim ligadas não à crença religiosa, mas à raça, isto é, ao sangue transmitidogeração após geração.

26 Toda esta decadência e perfídia se refletia finalmente no próprio comportamento dos

judeus e seus descendentes, e este é ponto pacífico em boa parte dos autores. O povojudeu, após a vinda do Cristo, como os índios do Brasil para o jesuíta Gândavo, era nãosó um povo sem Fé, nem Lei, nem Rei, mas ainda recusava aqueles que os cristãos lhesofereciam de modo tão drástico. Assim, eles eram naturalmente mentirosos, traidores,inimigos jurados dos cristãos, avarentos, cruéis, perjuros, orgulhosos e finalmente acausa de todos os males existentes no mundo; da prática do incesto à da sodomia, daredação do Alcorão à criação da heresia iconoclasta31.

27 Os polemistas são por princípio inclinados à exageração: é por argumentos fortes e

chocantes que sua mensagem tem mais chance de ser integrada pelo auditório. Istopode nos fazer crer que as elucubrações mencionadas acima não eram mais que figurasde estilo, um subterfúgio retórico, para chamar a atenção dos leitores. Contudo, mesmono que toca aos defeitos físicos, isto não se verifica. Em uma carta escrita por D. Juan deQuiñones, alcaide da Casa do rei a D. Fr. António de Sotomayor, confessor de Felipe IV eInquisidor-geral de Espanha, o autor transmite um rumor surgido em Madrid após oauto-da-fé de 4 de julho de 1632: “entre otros reos que salieron en el fue Francisco deAndrada de quien se dixo que padecia todos los mezes el fluxo de sangre que naturalezadio a las mugeres, que llaman menstruo”. Duvidando um pouco da coisa, D. Juan sai àbusca de informações sobre casos similares na literatura, esbarrando inevitavelmenteem Costa Mattos. O alto funcionário real teve então dúvidas, mas o conteúdo da suacarta mostra que após suas leituras, estas dúvidas se dissiparam. Mas mais importanteainda que sua opinião pessoal, é a repercussão que pode ter tido este rumor no seio dapopulação que normalmente assistia os popularíssimos autos-da-fé e podia, tãofacilmente quanto o letrado D. Juan de Quiñones, dar ouvidos a tais rumores32. Já aimagem de traidores surge com força nesse mesmo contexto, nas várias publicações etextos da época sobre a perda e a tomada da Bahia pela Companhia Holandesa dasÍndias Ocidentais e da pretensa traição dos cristãos-novos locais33. Imagem igualmentepresente, como bem vimos no discurso de Calado, no momento da ocupação do norte doEstado do Brasil pelos holandeses.

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28 Esses postulados racistas que afirmam a transmissão genealógica de taras físicas ou

morais também são encontrados em textos produzidos localmente. Um dos maiorespoetas do seiscentos luso-americano, Gregório de Matos, não deixa de fazer uso dealguns estereótipos para denegrir os cristãos-novos e certos personagens específicos:

“Quantos com capa cristãprofessam o judaísmo,mostrando hipocritamentedevoção a Lei de Cristo!Quantos com pele de ovelhasão lobos enfurecidos,ladrões, falsos, e aleivosos,embusteiros, e assassinos!”

29 A pouca credibilidade que tinham as ações pias dos cristãos-novos, também muito

presente na literatura polêmica, sobressai de outros versos:

“Deixe, Senhor Beato, a Beati-,Que se é via do Céu a via sa-Ninguém o quer já crer nesta cidá-Porque é você da casta Israeli-.”34

30 Esta mesma imagem do judeu como “falsos, e aleivosos, / embusteiros, e assassinos”,

persiste hoje em dia no Brasil na expressão popular ‘judiar’ como sinônimo demaltratar, zombar, isto é, fazer o mesmo que os judeus fizeram com Jesus, sem que sepossa, contudo, ligar diretamente a subsistência do termo – surgido neste sentido,segundo o dicionário Houaiss, em fins do século XVIII – a uma influência da literaturade que aqui tratamos. Mas existem outros exemplos. Invertendo o sentido da lenda,num registro burlesco e até positivo, o grande Ariano Suassuna menciona a subsistênciado mito do “cotoco” no seu Romance d’A Pedra do Reino: “é por isso, também, que ospernambucanos inventaram essa história. Segundo eles, todos os paraibanos têmsangue judaico e, conseqüentemente, parte com o Diabo, motivo pelo qual herdaramum pequeno pedaço de rabo, o cotoco, transmitido pelo sangue judaico ancestral. Isto[…] não deixa, também, de ser um elogio, porque, segundo eles, é o cotoco diabólico quenos torna irrequietos, ativos e astutos. É um elogio à incansável atividade paraibana!”35

31 Ainda em outro registro, mesmo que bastante indireto, pode-se mencionar o Compêndio

narrativo do peregrino da América do baiano de Cairú Nuno Marques Pereira36. Nesta obra,que trata dos vários “vícios” que assolavam a América portuguesa da primeira metadedo século XVIII, o autor não pôde deixar de mencionar os atos dos cristãos-novos,identificados diretamente aos seus antepassados judeus, pois Marques Pereira, comoera corrente, não fazia esta distinção histórico-etimológica. Segundo ele, os judeuseram sobretudo castigados por “murmuradores”, isto é, por falar mal “de Cristo Senhornosso e de seus santos e ministros”, sendo por isso perseguidos pela Inquisição,“aborrecidos e vituperados” por todos e em seguida castigados no inferno37. Não se vêaqui a virulência existente em um Costa Mattos ou na obra do ‘Boca do Inferno’. Apesardessa imagem negativa do cristão-novo que perpassa o Compêndio narrativo, e apesardesta obra não ser nem de longe um tratado antijudaico, seu autor poderia serenquadrado no âmbito de uma outra corrente dessa literatura de polêmica, menosligada ao problema político dos cristãos-novos e mais preocupada com a questãoreligiosa da conversão sincera dos judaizantes: Marques Pereira justifica suas palavras,que poderiam, segundo ele, erroneamente ser julgadas como igualmente maledicentes,como um modo de “adverti-los, e avisá-los, para ver se se pode curar esta terrível

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enfermidade; que não pode haver outra maior no mundo. Porque também os cirurgiõescortam e cauterizam, para livrar aos enfermos de muitos perigos, e enfermidades: esendo esta da alma, com maior razão se lhe deve acudir”38.

32 É assim que (na verdade desde a segunda metade do século XVII) começam a surgir em

Portugal algumas obras que seriam mais parecidas com aquelas da primeira metade doséculo XVI por seu caráter evangélico, mesmo se um certo ranço anti-semita não podeser de todo dissociado delas39. Não está muito clara a razão desse ressurgimento deobras que buscam de modo mais franco converter sinceramente os judaizantes aocatolicismo a que eram obrigados a respeitar. Podemos pensar, por exemplo, que estacorrente tenha sido um tipo de conseqüência daquela mais virulenta que exagerou demodo indizível o perigo político-religioso que a presença no mundo português doscristãos-novos, judaizantes ou não, representava.

33 É também neste contexto que se deve lembrar que, apesar da terrível imagem que se

tinha em geral dos judeus e dos cristãos-novos, nem todos em Portugal davam muitaimportância a estes rumores, o que tornaria difícil entender o número grande ecrescente de ‘casamentos mistos’ entres cristãos-novos e velhos. Tampouco secompreenderiam os escritos de alguns, como o padre Antônio Vieira, ou oestrangeirado paulista Matias Aires (1705-1763)40, onde abertamente se mostravamcontra a distinção racial existente entre cristãos-novos e cristãos-velhos, o que era omesmo que recusar a idéia de um criptojudaísmo generalizado ou de uma transmissãoracial dos vícios e taras acima descritos.

34 Em todo caso, esta corrente mais evangélica se ilustrou no Brasil com uma certa força

(mesmo que seja difícil adivinhar qual foi sua influência), através da publicação peloarcebispo da Bahia D. Sebastião Monteiro da Vide, em 1720, da Sinagoga desenganada41.Escrita por Giovanni Pietro Pinamonti e traduzida para o português por GiovanniAntonio Andreoni, ambos italianos e da Companhia de Jesus, a Sinagoga não faz oamálgama tão comum entre todos os judeus, tanto no passado quanto no tempo doautor. Ao referir-se às expulsões dos judeus da França e da Inglaterra ocorridas nosséculos XIII e XIV, por exemplo, Pinamonti diz:

“Nem quero com isto dizer que se haja de crer que em todos estes casos [ossacrilégios utilizados como desculpa de algumas expulsões] todos os Hebreusfossem igualmente culpados naquelas maldades pelas quais eram castigados,devendo-se, como agora, assim então, achar entre eles alguns ornados de váriasvirtudes morais, amantes do justo e afastados de semelhantes delitos. Com tudo,prudentemente julgavam os príncipes que a nação Judaica devia tirar-se do meiodos reinos, porque de tempo em tempo com tais excessos perturbava o bempúblico” 42.

35 Este trecho, assim como outros, mostram que a obra não se adaptava à realidade

ibérica. Ela havia sido escrita, na verdade, voltada para a catequese dos judeus na Itáliae sua tradução no mundo português parece indicar que os responsáveis por suapublicação não eram, até certo ponto, coniventes com a ideologia dominante racista. Naúnica menção ao contexto local, feita pelo tradutor na sua dedicatória aos inquisidores,surge também o preconceito racial ibérico, pois Andreoni liga o “sangue da naçãohebréia” à facilidade para cair na heresia, o que não deixa de ser uma pequenaconcessão aos hábitos locais, ou quem sabe um automatismo de um italiano que haviaassimilado com perfeição a fraseologia lusa.

36 Pode até parecer estranho que a Sinagoga tenha recebido as licenças para ser impressa,

e os dois anos que separam as licenças (maio, agosto e outubro de 1718) e sua

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publicação (1720) podem ser um indício de alguns problemas. Na licença do Paço43

surgem inclusive as diferentes visões que os letrados portugueses podiam ter doproblema cristão-novo. O oratoriano Pedro Álvares denuncia o “quase paradoxo”prometido pelo título da obra, tendo em vista “a larga experiência da inflexívelobstinação e afetada cegueira com que os Hebreus não somente forcejam por segurarnos olhos o véu com que resistem à luz da verdade, mas além disso buscam, seguem,abraçam e adoram as mal formadas quimeras de seus aéreos e fúteis enganos”. Eleacaba, entretanto por elogiar o trabalho, tanto do autor como do tradutor da obra,

“estes nossos apóstolos (como os primeiros a quem imitam) não são todos dasGentes, como Paulo, más também alguns são apóstolos dos circuncidados, comoPedro. Pois ao mesmo tempo que voluntariamente se desterram muitos por buscar ereduzir aos gentios, se ocupam outros em convencer e desenganar aos judeus. Seainda entre nós vivem alguns inclinados de coração aos seus erros, ou duvidosos danossa verdadeira Fé, neste livro (se os não desviar da sua lição o seu mesmo titulo)acharão doutrina que facilmente instrua e verdade que poderosamente osdesengane; e por este meio não terá V. Majestade vassalos que não sejam fieis”44.

37 Como explicar a escolha desta obra por religiosos habitantes da América portuguesa e a

necessidade que os levou a traduzir e publicar um tratado antijudaico? Na dedicatóriaaos “senhores inquisidores do reino e conquistas de Portugal”, Andreoni, o tradutoranônimo só faz, como já mencionado, uma pequena menção ao contexto local que olevou a traduzi-la, dizendo que com ela esperava

“alumiar por este meio, quanto for possível, aos cegos, e para confirmar aos que pormisericórdia de Deus vêem mas não dão graças a Deus pela luz que lhes temcomunicado no Santo Batismo, e muito mais para acudir aos que dão entrada àsdúvidas que lhes oferece o comum inimigo, ou que por terem nas veias algumsangue da nação Hebréia, são mais facilmente tentados e ainda miseravelmentevencidos, vacilando ou caindo como se vê freqüentemente nos atos da fé, e comotem mostrado a experiência nestes últimos anos, com maior ruína em algumaspartes do Brasil, aonde assisto”.

38 Para além destas vagas informações, podemos encontrar na documentação inquisitorial

alguns dados sobre a perseguição aos judaizantes no Brasil, e mais especificamente naBahia, nos anos que precederam imediatamente a tradução da obra e a morte deAndreoni, em março de 1716. A Bahia era o lugar de origem de 15 pessoas ‘saídas’ emautos-da-fé entre 1701 e 1716, o que pressupõe terem sido presas na Bahia em geralentre dois e quatro anos antes dessas datas45. Dentre as prisões efetuadas na Bahia, duasdevem ter chamado especialmente a atenção dos moradores da capital da colônia nocomeço do século XVIII: Rodrigo Álvares, boticário de 32 anos natural de Avis, preso naBahia em 1705, foi queimado em Lisboa após o auto-da-fé de 30 de junho de 1709, eDiogo Rodrigues, judeu francês não batizado, saiu no auto-da-fé de 9 de julho de 171346.Esses casos são verdadeiramente incomuns, devendo ter espantado a população local; osegundo por sua estranheza e o primeiro por sua raridade: não foram muitos osmoradores do Brasil ‘relaxados ao braço secular’. Vale lembrar que após a execução deum herético na fogueira, seu retrato era enviado à paróquia de residência e penduradona porta da matriz, imprimindo assim no espírito de seus ex-vizinhos o poder do longobraço inquisitorial e a gravidade do pecado cometido. Foram provavelmente estes fatosque motivaram Andreoni a tomar alguma providência. Também temos que levar emconta que no começo do século XVIII os oficiais da Inquisição na Bahia eram muitos:entre 1683 e 1704, 108 nomeações, sobretudo de familiares, foram emitidas em nome dehabitantes do arcebispado da Bahia47. Eram não só numerosos, mas tambémorganizados. Em 1697, no dia de São Pedro Mártir, padroeiro dos oficiais do Santo

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Ofício, organizam pela primeira vez festividades em sua honra, chegando mesmo apublicar o sermão que foi então pregado48.

39 Além dos casos baianos, o cargo de provincial jesuíta do tradutor deve ter feito com que

tivesse uma correspondência assídua com os membros da Companhia de Jesus do Rio deJaneiro e ter assim ecos dos numerosos casos que aí se deram. São estes dados que,adicionados à política mais geral dos jesuítas em relação aos judeus, sobretudo na Itália,terra de origem de Andreoni, fizeram com que ele decidisse, com o aval ou a pedido doarcebispo da Bahia, antigo aluno dos inacianos e bastante próximo de Andreoni,traduzir a obra de seu colega de ordem Pinamonti.

40 Vimos então que as justificativas teológicas, históricas e sociais que embasavam o

preconceito antijudaico no mundo português se perpetuaram e foram difundidas, paraalém da legislação segregacionista, através de documentos literários, que veicularam aimagem dos cristãos-novos em vigor durante todo o Antigo Regime português. Vimostambém que esta ‘corrente literária’ não foi completamente homogênea pelo que tocasuas motivações: após um conjunto inicial de obras que se preocupava com a conversãosincera dos judaizantes e uma integração dos cristãos-novos à população em geral,surgiram, dependendo do contexto político, todo um outro conjunto que, ao invés depregar a conversão dos ‘judeus’, difundia com afinco uma maior segregação e até aexpulsão do reino. Um terceiro movimento, baseado sobretudo na literatura do gêneroproduzida na Itália, convive temporalmente com o segundo, e não se vinculanecessariamente ao primeiro, mas retoma a idéia da possibilidade de uma conversãodos judaizantes.

41 Vimos, finalmente, que estas obras não só circularam no Brasil colônia, o que se

entende facilmente pela movimentação intensa de pessoas e de bens entre esta porçãodo mundo português e o seu centro, principal fornecedor de obras do gênero, mastambém, que pelo menos uma delas foi aqui produzida. Mais do que isso, a literatura depolêmica antijudaica e anti-semita parece ter influenciado de modo bastante duradouroa imagem consciente ou inconsciente do judeu deste lado do Atlântico na épocamoderna.

NOTAS

1. As ondas de choque da conversão se fazem sentir até hoje em dia, mesmo que de modo

incomparavelmente mais brando que durante a época moderna, como o prova a crescente

produção historiográfica em torno dos vários grupos de ‘marranos’ surgidos em Portugal, no

Brasil ou na América do Norte. É de Samuel Schwarz o primeiro estudo de peso sobre os cristãos-

novos fora do contexto inquisitorial: “Os cristãos-novos em Portugal no século XX”, Arqueologia e

História, vol. IV (1925), pp. 5-112. Nathan Wachtel encetou no seu último livro o estudo de um

grupo brasileiro de ‘marranos’: A Fé da Lembrança, Lisboa, Caminho, 2003 [2001]. David Gitlitz

estuda grupos do mesmo tipo, encarando-os de modo mais cético: “Nexos entre los cripto-judíos

coloniales y contemporáneos”, Revista de Humanidades, n.° 5 (outono 1998), pp. 187-207. Me

parece, contudo, que deveria se mudar o foco de análise destes grupos contemporâneos, deixar

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de procurar os resquícios (ou a falta de resquícios) judaicos nestas populações, mas perguntar-se,

de um ponto de vista mais especificamente antropológico, quais as razões que levam atualmente

estas pessoas a reivindicar essa herança judaica e o estatuto de sobreviventes.

2. Maria Luiza Tucci Carneiro, Preconceito racial em Portugal e Brasil colônia, São Paulo, Perspectiva,

2005 [1983] e Fernanda Olival, As ordens militares e o estado moderno: honra, mercê e venalidade em

Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar, 2001.

3. Para uma análise mais específica sobre as diferentes correntes dessa literatura e suas

motivações, ver Bruno Feitler, “O catolicismo como ideal: produção literária antijudaica no

mundo português da idade moderna”, Novos Estudos Cebrap, 72 (julho 2005), pp. 137-158. Versão

on-line: [http://www.cebrap.org.br/imagens/Arquivos/Feitler.pdf].

4. O que segue foi escrito baseado em dois textos de I.-S. Révah: “O Diálogo Evangélico sobre os

artigos da Fé contra o Talmud dos judeus de João de Barros”, Etudes Portugaises, C. Amiel (pub.),

Centre Calouste Gulbenkian, Paris, 1975, pp. 51-97 e “Les marranes portugais et l’Inquisition au

XVIe siècle”, id., pp. 185-228.

5. I.-S. Révah, “O Diálogo Evangélico sobre os artigos da Fé contra o Talmud dos judeus de João de

Barros”, op. cit., p. 54.

6. I.-S. Révah, “O Diálogo Evangélico”, op. cit., p. 62 sq.

7. Ronaldo Vainfas, “‘Deixai a lei de Moisés!’: notas sobre o Espelho de Cristãos-Novos (1541) de Frei

Francisco Machado”, in L. Gorenstein e M. L. Tucci Carneiro (org.), Ensaios sobre a intolerância.

Inquisição, marranismo e anti-semitismo (Homenagem a Anita Novinsky), São Paulo, Humanitas, 2002,

pp. 241-263.

8. Veritatis Repertorium, per fratem Frãciscû Securim Doctorê Parisiensem omnium minimum editu in

Hebræos, quos vulgus nouos vocitat Christianos. [...], Coimbra, João Barreto, 1517.

9. João Baptista d’Este, Dialogo entre discipulo e mestre catechizante, onde se resoluem todas as duuidas,

que os Iudeos obstinados costumão fazer contra a verdade da Fé Catholica: Com efficacissimas razoês, assi

dos Prophetas santos, como de seus mesmos Rabbinos, Lisboa, Geraldo da Vinha, 1621 e Lisboa, João da

Costa, 1676. Trata-se na verdade do plágio de uma obra do professor de hebraico da Casa dos

catecúmenos de Roma Fabiano Fioghi, que como d’Este, era um judeu convertido. O título original

da obra é Dialogo fra il cathecumeno et il padre cathechizante [...] Nelqual si risoluono molti dubij, liquali

fogliono far li Hebrei, contro la uerità della santa fede Christiana: con efficacissime ragioni: & per li santi

Profeti, & per li Rabini, publicada pela primeira vez em Roma em 1582. Devo esta informação a

Roberto Bachmann, amigo e grande bibliófilo.

10. Francisco de Torregonsilho [Torrejoncillo], Centinella contra judeos, Posta em a Torre da Igreja de

Deos, Lisboa, João Galrão, 1684; Coimbra, José Antunes da Silva, 1710 e Porto, Manoel Pedroso

Coimbra, 1745.

11. Vicente da Costa Mattos, Breve discurso contra a heretica perfídia do ivdaismo, continuada nos

presentes apostatas de nossa santa Fé, com o que conuem a expulsaõ dos delinquentes nella dos Reynos de

sua Magestade, cõ suas molheres & filhos: conforme a Escriptura sagrada, Santos Padres, Direito Ciuil, &

Canonico, & muitos dos politicos. Lisboa, Pedro Craesbeek, 1622 e 1623.

12. Vicente da Costa Mattos, Honras christãs nas afrontas de Iesv Christo, e segunda parte do primeiro

discurso contra a heretica / perfídia do judaismo. Continuada nos presentes apostatas de noβa S. fè, com a

conueniencia da expulsão dos sobreditos hereges, em ordem, ao seruiço de Deos noβo Senhor, & ao proueito

particular deste Reyno, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1625.

13. Salamanca, 1631 e Madrid, 1680. Sobre as edições espanholas de Costa Mattos, ver Josette

Riandière la Roche, “Du discours d’exclusion des juifs: antijudaïsme ou antisémitisme?”, Les

Problèmes de l’exclusion en Espagne (XVIe-XVIIe siècles), A. Redondo (ed.), Publications de la Sorbonne,

Paris, s. d., pp. 51-75. e Michèle Escamilla-Colin, “Recherches sur les traités judéophobes espagnols

des XVIe et XVIIe siècles”, in Les textes judéophobes et judéophiles dans l’Europe chrétienne à l’époque

moderne, D. Tollet, (org.), Paris, PUF, 2000.

Cultura, Vol. 24 | 2007

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Page 57: Cultura intelectual das elites coloniais - OpenEdition Journals

14. Ante exordio à Resposta do Sermam que o Arçobispo de Cranganor, Pregou no Auto da Fè Que se fes em

Lisboa, em 6. de Septembro, de 1705. Feyta por hum Anonimo Só por Gloria de Deos, a quem toda a dedica,

para que a ampare; Por Credito da Verdade em que toda a funda, para que claramente se veja; e por

desengano de Superstiçoens, a todos os Papistas para que se arrependam, e desenganem dos Erros, e

Enganos, com que este seo Pregador, e todos os mais lastimosamente os trazem engandos, Turim, Jorge de

Cervantes, 1709.

15. Ets Haim, 49 B 16, pp. 1-119.

16. Mayer Kayserling, Bibliotheca Española-Portugueza-Judaica, Strasbourg, C. J. Trubner, 1890, p.

100.

17. Sobre Cardoso: Yosef Haim Yerushalmi, De la cour d’Espagne au Ghetto Italien, Paris, Fayard,

1987. Sobre Orobio de Castro: Yosef Kaplan, Do cristianismo ao judaísmo, a história de Isaac Orobio de

Castro, Rio de Janeiro, Imago, 2000 [1989]. Ver ainda Harm den Boer, La literatura sefardi de

Amsterdam, Alcalá de Henares, Instituto Internacional de Estudios Sefardíes y Andalusíes/

Universidad de Alcalá, 1996.

18. Para este uso em Amesterdão: Harm den Boer, La literatura sefardi, op. cit.

19. Moisés Rafael de Aguilar, “Explicação do Cap. 53 de Isaías feita no Brasil”, Ets Haim, 48 A 1,

pp. 849-872. Este capítulo é central por descrever a simplicidade da pessoa do “servo do Senhor”

e as afrontas que a ele prometidas por expiação dos pecados dos homens.

20. Manoel Calado, O Valeroso Lucideno, e Triumpho da Liberdade, Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1648, p.

187.

21. Elias Lipiner, Izaque da Castro, o mancebo que veio preso do Brasil, Recife, Fundação Joaquim

Nabuco/ Massangana, 1992 e Bruno Feitler, Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens au Brésil. Le

Nordeste, XVIIe et XVIIIe siècles, Presses Universitaires de Louvain, 2003.

22. Nessa época mais de trinta sermões de autos-da-fé já haviam sido publicados em Portugal.

Ver Edward Glaser, “Portuguese Sermons at Autos-da-Fé: Introduction and Bibliography”. Studies

in Bibliography and Booklore, vol. II (dez. 1955), pp. 53-78 e 96. Um exemplo ‘brasileiro’ (e tardio) de

sermão de auto-da-fé: Miguel de Bulhões, Sermaõ do auto da fé celebrado na igreja de S. Domingos

desta Corte, Que recitou em 16 de Outubro de 1746. O Ex.mo E R.mo Senhor D. Fr. Miguel de Bulhoens, Bispo do

Pará [...], Lisboa, Pedro Ferreira, 1750.

23. Trata-se evidentemente do próprio autor, que redigiu sua obra na terceira pessoa e cujo nome

completo era Manuel Calado do Salvador.

24. Manoel Calado, O Valeroso Lucideno, op. cit., pp. 244-246.

25. Sobre este gênero literário: Edward Glaser, “Invitation to intolerance: a study of the

Portuguese sermons preached at auto-da-fé”, Hebrew Colege Annual, 27 (1956), pp. 327-385 e

Bruno Feitler, “O catolicismo como ideal: produção literária antijudaica no mundo português da

idade moderna”, Novos Estudos Cebrap, 72 (julho 2005), pp. 137-158.

26. Manoel Calado, O Valeroso Lucideno, op. cit., pp. 244-246. O episódio também é mencionado por

Fr. Rafael de Jesus, que diz por sua vez que a iniciativa da controvérsia e reconciliação veio do

“Governador da Liberdade” João Fernandes Vieira, que ordenou a Calado que “pregasse e os

reduzisse”. Rafael de Jesus, Castrioto Lvsitano Parte I. Entrepresa; e restavração de Pernambuco, & das

Capitanías Confinantes. […], Lisboa, Antonio Craesbeeck de Melo, 1679, pp. 386-387.

27. Museu Regional de São João Del-Rei, Inventários, caixa 073, fl. 151v. Testamento de José

Rodrigues da Cruz, inventário de 5 de abril de 1780. Agradeço a Eduardo França Paiva por esta

preciosa informação. O inventário não menciona qual das duas edições do Breve discurso se trata,

se a primeira, de 1622, ou a segunda feita no ano seguinte e que comporta acréscimos. Vicente da

Costa MATTOS Breve discurso, op. cit.

28. Ver Juan Ignacio Pulido Serrano, Injurias a Cristo: religión, política y antijudaísmo en el siglo XVII

(Análisis de las corrientes antijudías durante la Edad Moderna), Universidade de Alcalá, 2002 e

Nachman Falbel, “Um argumento polêmico em Vicente da Costa Matos”, in Em nome da Fé, Estudos

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in memoriam de Elias Lipiner, N. Falbel, A. Dines e A. Milgram (org.), São Paulo, Perspectiva, 1999,

pp. 91-113.

29. Ver Juan Ignacio Pulido Serrano, Injurias a Cristo, op. cit. e João Lúcio de Azevedo, História dos

Cristãos -Novos Portugueses, Lisboa: Liv. Clássica Ed., 1989.

30. Maria Idalina Resina Rodrigues, “Literatura e anti-semitismo, séculos XVI e XVII”, Brotéria,

vol. 109 (julho 1979), p. 49.

31. Além de Costa Mattos, ver por exemplo o libelo do secretário de Estado de D. Pedro II: Roque

Monteiro Paim, Perfidia Ivdaica, Christvs Vindex Mvnvs Principis; Ecclesia Lvsitania Ab Apostatis

Liberata. Discurso iuridico, E politico, Madrid, s.e., 1671.

32. Biblioteca Nacional de Lisboa, cód. 868, fl. 73-75. Para outro desenvolvimento e para mais

detalhes sobre o personagem de Quiñones, ver Yosef H. Yerushalmi, De la cour d’Espagne, op. cit.,

pp. 109-122.

33. Ver Eduardo d’Oliveira França, “Um problema: a traição dos cristãos-novos em 1624”, Revista

de História, n.° 41 (1970), pp. 21-71; Anita Novinsky, “A historical bias: the new Christian

collaboration with the Dutch invaders of Brazil (17th Century), in The Fifth World Congress of Jewish

Studies, Jerusalém, 1972, vol. II, pp. 141--154 e Stuart B. Schwartz, “When Brazil was Jewish: new

sources on the fall o Bahia, 1624, in the context of Portugal’s political and social conditions in the

Seventeenth century”, in François Crouzet et alii (dir.), Pour l’histoire du Brésil. Mélanges offerts à K.

de Queirós Mattoso, Paris, L’Harmattan, 2000, pp. 245-260.

34. Gregório de Matos, Obra Poética, Rio de Janeiro, J. Amado, 1990, vol I, pp. 40 e 555.

35. Ariano Suassuna, Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do Vai-e-Volta, José Olympio,

Rio de Janeiro, 1972 [1970], p. 275.

36. Nuno Marques Pereira, Compendio narrativo do peregrino da America. Em que se tratam varios

discursos Espirituaes, e moraes, com muitas advertencias, e documentos contra os abusos, que se achaõ

introduzidos pela malicia diabolica no Estado do Brasil, Lisboa, Manoel Fernandes da Costa, 1731

[1726].

37. Id., p. 282.

38. Id., p. 283.

39. Entre estas, podemos mencionar as traduções feitas para o português de alguns curtos textos

que mostram a possibilidade da conversão dos judeus: Carta, que hum rabbino chamado Samuel

escreueo a outro Rabbino chamado Isaac, consultandoo sobre o ter alcançado pelas prophecias do

testamento velho, que o Mexias tinha vindo, Lisboa, Manoel da Sylua, 1651 [2.ª ed. Lisboa, João da

Costa, 1673] e Triunfo da Religiam Christan, Alcançado contra a perfidia Judaica na Igreja Cathedral de S.

Cyrillo em Ancona em 26 do mez de Março de 1735, Lisboa, Antonio Correa de Lemos, 1736. Ver Bruno

Feitler, “o catolicismo como ideal”, op. cit.

40. Maria Luiza Tucci Carneiro, Preconceito racial, op. cit., pp. 140-149.

41. Para um estudo mais detalhado desta obra, ver Bruno Feitler, “A Sinagoga Desenganada: um

tratado antijudaico no Brasil do começo do século XVIII”, Revista de História, n.° 148 (1.° semestre

de 2003), pp. 103-124.

42. Giovanni Pietro Pinamonti, Synagoga dezenganada, obra do Padre Joaõ Pedro Pinamonti da

Companhia de JESU, Traduzida da Lingua Italiana em a Portugueza, por hum Religiozo da mesma

Companhia, offerecida aos Senhores Inquizidores do Reyno, e Conquistas de Portugal, E impressa por

mandado do Illustrissimo Senhor D. Sebastiaõ Monteyro da Vide, Arcebispo da Bahia, do Conselho de Sua

Magestade, &c. Lisboa, Officina da Musica, 1720, pp. 227-228.

43. Para serem publicados, os livros, necessitavam de uma tripla licença: uma do Santo Ofício,

outra do Ordinário, isto é, do bispo, e uma terceira, do Paço, isto é, da Coroa. No caso de um autor

pertencente a uma ordem regular, também podiam ser necessárias licenças dos seus superiores.

44. Giovanni Pietro Pinamonti, op. cit., licença de Pedro Álvares.

45. Ver Anita Novinsky, Inquisição, prisioneiros do Brasil, séculos XVI-XIX, Rio de Janeiro, Expressão e

Cultura, 2002.

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46. Diogo Rodrigues (aliás Dioguinho Hebreu), cujo verdadeiro nome era Abraão Rodrigues,

nasceu em Vidaxe (sul da França) em 1664 e foi preso de passagem pela Bahia em 1712. Ele era o

filho de Mateus Mendes de Leão e de Beatriz Rodrigues, naturais do Porto. Aos 20 anos ele parte

para a cidade natal de seus pais, mudando-se oito meses depois para o Rio de Janeiro onde vivia

como comerciante e onde se dizia batizado, o que lhe valeu penas de galés e açoites. Os

inquisidores previram a comutação das penas se Diogo se batizasse, visto ele ser “digno de algum

favor por ser homem vil, pobre, de pouca arte e indústria e nem se presumir dele esta fraude,

nem que se fingira cristão em desprezo da religião católica e dos sacramentos ou por ensinar aos

cristãos-novos a lei de Moisés, mas somente para poder sustentar a vida”. Arquivos Nacionais/

Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo 5336. Ele recebeu finalmente o batismo em 29 de

julho de 1713, vinte dias depois do auto-da-fé em que saiu, na Sé de Lisboa, com o nome de

Manoel Rodrigues Leão. Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, livro de batismos, Lisboa, Sé, caixa

3, n.° 8, fl. 90.

47. Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, livro 107.

48. Ruperto de Jesus, Sermam do glorioso S. Pedro Martyr, [...] mandado imprimir pelos Familiares do

Santo Officio da Cidade da Bahia. Na occasião em que celebràrão a sua primeyra Festa [...] na era de 1697,

Lisboa, Antonio Pedroso Galrão, 1700.

RESUMOS

A conversão forçada dos judeus de Portugal em 1497 repercutiu de forma durável sobre toda a

sociedade portuguesa da época moderna, funcionando como uma interferência, um elemento a

mais, na complexa rede de distinções sociais da organização estamental da população de então,

dado também válido para o ultramar português. Surge, neste contexto, uma vasta literatura de

polêmica antijudaica e anti-semita. Para além de estudar a circulação dessas obras, veremos aqui

como a mensagem que elas veiculavam se refletiu em textos lidos ou produzidos localmente no

Brasil colônia.

The forced conversion of the Portuguese Jews in 1497 had a long-term impact on the Portuguese

society of the early-modern period. This impact worked as an interference, a new element in the

complex network of social distinctions that operated in that period, and this effect can be

identified, as well, in the colonial world. In this context, a vast polemic literature against the Jews

and anti-semite emerged. In this essay I will analyse the circulation of this literature in colonial

Brazil, but also its reception in text read and written in the colony.

ÍNDICE

Keywords: polemic literature, anti-semitism, colonial Brazil

Palavras-chave: literatura de polêmica; anti-semitismo, Brasil colônia

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AUTOR

BRUNO FEITLER

Fapesp – Cátedra Jaime Cortesão/USP

Doutor em História pela EHESS, especialista das instituições e das práticas religiosas do mundo

luso-americano, co-organizou, com Ronaldo Vainfas e Lana Lage, o livro A Inquisição em xeque:

temas, debates, estudos de caso (2006) e lançou este ano o livro Nas malhas da consciência: Igreja e

Inquisição no Brasil. Actualmente, é pesquisador Fapesp junto à Cátedra Jaime Cortesão-USP.

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À margem da escritaFormas de comunicação entre mercadores indianos e autoridadesportuguesas de África oriental

On the edge of writing: communication between Indian Merchant and

Portuguese authorities in East Africa

Luís Frederico Antunes

1 Tem-se, em geral, a ideia de que no espaço ultramarino sob domínio português,

nomeadamente em África oriental, a comunicação escrita e falada apenas interessou efoi incentivada pelos portugueses. A realidade foi, no entanto, bem mais complexa.

2 Mesmo considerando que sobre esta matéria as informações que nos chegaram foram

através de fontes portuguesas, sabemos hoje que o português falado por baneanesindianos, cujas relações com reinóis e descendentes eram muito ténues, estava longe dalíngua falada pelos portugueses. Provavelmente pouco mais seria que uma gíria dealgumas centenas de vocábulos, quase sem sintaxe mas que, ainda assim, lhes serviapara se entenderem na rotina do dia-a-dia.

3 Esta rudimentaridade explica, por outro lado, que, quando os membros da elite

mercantil indiana estabelecida em Moçambique se dirigiam à administração portuguesapara tratarem de qualquer assunto realmente importante para o futuro da comunidade,o fizessem, em geral, através da pena dos jesuítas, e, após a sua expulsão, porintermédio dos canarins, oficiais da administração, ou pelo punho dos clérigos deoutras ordens.

4 Por outro lado, para além desta escrita que podemos designar como “oficial”, existia a

escrita dos “livros de razão”, uma escrita codificada, própria das suas transacçõescomerciais. Tanto quanto se sabe seria o marwari ou o guzerate, vulgarmente utilizadasem muitas cidades do Noroeste indiano pelos mercadores mais tradicionalistas eabastados.

5 O principal objectivo deste artigo é, assim, o de perceber por que razão a elite mercantil

indiana residente em Moçambique no século XVIII utilizou os jesuítas como língua, paracomunicar com a administração portuguesa. Será, por isso, necessário procurar buscaros sentidos do texto, isto é, procurar o significado do texto construído pelos jesuítas

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enquanto intérpretes, e os objectivos a alcançar pelo corpo mercantil enquantosignatário.

6 Finalmente, torna-se importante discutir, não só o papel do ensino das escritas marwari

e guzerate, da aritmética e do cálculo mental utilizados nos livros de contabilidade dosseus negócios mas, também, a aprendizagem no seio da família dos métodos básicosusados no comércio asiático.

7 Antes de mais vamos tentar definir, de forma muito sucinta, o objecto deste estudo, ou

seja, a elite baneane. O termo deriva do sânscrito vanij, que significa mercador. De igualmodo as palavras guzerate vania, marata vani e canaresa banjig, têm o mesmosignificado1.

8 Na documentação portuguesa, baneane era um termo funcional, operatório. Era um

vocábulo que se aplicava a membros de diversas castas de hindus e jainas, que faziamdo comércio, da banca e da usura as suas principais profissões, da mesma forma que otermo chatim se aplicava ao mercador da Índia meridional e do arquipélago malaio.

9 Por facilidade de entendimento decidi dividir este artigo em duas partes.

10 Na primeira parte debruçar-me-ei sobre a “margem da escrita”. Uma frase que retirei

do título e que, por ter suficiente plasticidade operativa, me possibilita a abordagem dediversos aspectos relacionados com a informação escrita acerca dos baneanes.

11 Antes de mais, permite-me tratar uma questão formal relacionada com os instrumentos

de análise, com a quantidade, a qualidade e o tipo de fontes disponíveis sobre osbaneanes. Depois, permite-me também tratar a questão do conteúdo das fontes, isto é, oproblema da construção da imagem dos baneanes, com especial atenção para osaspectos relacionados com a educação e com o domínio do saber e da experiênciamercantil desta casta hindu que se fixou nos domínios portugueses da costa orientalafricana, desde finais do século XVII.

12 Na segunda parte deste artigo tentarei analisar as formas como a elite mercantil

indiana em Moçambique se representou a si mesma e à comunidade, junto dasautoridades coloniais.

13 O primeiro aspecto a salientar é que, pelo menos para a segunda metade do século XVII

e todo o século XVIII, não descortinamos nos arquivos organizados por portugueses –quer em Moçambique, na Índia ou em Portugal – qualquer documento escrito pelopunho de baneanes. Nos documentos consultados, o mais que encontramos como sendoda sua lavra são assinaturas em escrita guzerate, a maior parte delas traduzida emportuguês.

14 Não se pense, no entanto, que é frequente não existirem fontes autóctones nos arquivos

organizados por portugueses. Panduronga Pissurlencar, por exemplo, transcreveu etraduziu, em meados do século passado, um importante núcleo documental em línguamarata do Historical Archives of Goa, acerca das relações que os governantes maratasmantiveram com o Estado da Índia, durante o século XVIII2. Mais recentemente,Catarina Madeira Santos e Ana Paula Tavares estudaram e revelaram um conjunto dedocumentos setecentistas, em língua portuguesa, produzidos por africanos de Angola3.

15 Na realidade, é tanto mais estranha a ausência de fontes escritas por baneanes, quanto

se sabe que essa comunidade dominou toda a actividade económica, tanto comercialquanto bancária e seguradora, e que os mais destacados elementos desse corpomercantil foram socialmente influentes em Moçambique setecentista.

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16 A resposta a esta complexa questão deve ser encontrada fazendo uso de múltiplos

argumentos.

17 Em primeiro lugar, é necessário enfatizar que o português falado por indianos estava

longe da língua falada pelos portugueses. Certamente pouco mais seria que umalinguagem própria de alguém que desempenhava a mesma profissão, uma gíria comalgumas centenas de vocábulos, utilizados de forma pouco harmoniosa, quase semsintaxe mas que, ainda assim, lhes valia para se entenderem na rotina quotidiana.Serviria, antes de tudo, para poderem negociar, para persuadirem os compradores, comargumentos bem fundados, das diferentes qualidades de tecidos e preços que possuíamem armazém, para acordarem com os oficiais da alfândega a melhor maneira de pagaras taxas, ou de fugir às mesmas. Serviria, também, por exemplo, para perceberem aleitura dos Bandos, os pregões públicos, pelos quais os governadores davam a conheceras suas ordens a uma população, na sua maioria analfabeta4.

18 Em segundo lugar, esta gíria era falada por um pequeno punhado de pessoas. Na

verdade, embora a dimensão da comunidade baneane reflectisse a enorme influênciaeconómica e social dos seus membros, ela nunca ultrapassou os 250 elementos, o que,quando comparada com a comunidade de origem portuguesa, a africana autóctone, anegra arábica ou a suaíli, era manifestamente minoritária.

19 Talvez a reduzida dimensão da comunidade mercantil baneane, bem como a sua

facilidade de relacionamento social e o domínio suficiente do português, para podernegociar e tratar das suas transacções comerciais e dos seus assuntos financeiros efiscais com a população e com as autoridades, possam explicar, pelo menos em parte, ofacto de a Coroa não ter sentido a necessidade de instituir o cargo de “língua do Estado”para se fazer entender com os baneanes.

20 Prosseguindo um raciocínio similar para o que ocorreu na Índia, verificamos que nas

praças de Diu e Damão, onde a língua guzerate era utilizada pela maioria dos falantes, aCoroa portuguesa incluiu os “línguas do Estado” que conheciam o árabe, o guzerate e oportuguês, nos quadros da administração colonial e nas folhas de pagamento dasrespectivas praças.

21 É evidente que muitos destes “línguas” eram guzerates que trabalhavam como

escrivães e intérpretes oficiais, tradutores dos pequenos anseios quotidianos emediadores de eventuais conflitos. A familiaridade com a língua portuguesa, falada eescrita, foi essencial para a redacção e explicação de documentos e contribuiu,inclusive, para esclarecer situações complicadas que envolviam conterrâneosestabelecidos na costa oriental africana5.

22 Como é óbvio, também, em Moçambique, existiram “línguas do Estado”. A eles cabia a

comunicação oficial com os diversos povos de origem bantu e com a comunidademuçulmana, cujas populações eram largamente maioritárias. Conhecemos alguns casosde intérpretes portugueses versados nas línguas africanas e na árabe, mas, na maiorparte das ocorrências, os agentes eram muçulmanos africanos que não só estavamempenhados na conversão e doutrinação de novos fiéis, através de escolas em queensinavam o Corão e a língua árabe6, como conheciam a língua portuguesa7.

23 Em terceiro lugar, para além da primazia da oralidade, outro aspecto importante que

pode ajudar a explicar a inexistência de documentação escrita pelo punho baneane temque ver com a educação, o sigilo e o segredo profissional.

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24 Numa sociedade fortemente hierarquizada, a educação foi desde sempre considerada

uma forma de afirmação do estatuto social e um meio para perpetuar a supremacia,sendo, por essa razão, muito valorizada e enaltecida pelas elites indianas, em especialpelos brâmanes, mas, também, por alguns outros segmentos da sociedade,nomeadamente, os mazanes, os principais mercadores e representantes de umdeterminado grupo de comerciantes baneanes, que geralmente pertencem à mesmacasta.

25 No que à educação dos mazanes e baneanes diz respeito, sabemos que investiram de

uma forma consistente na educação especializada dos seus filhos, bem como dos seussócios mais chegados, com o objectivo de alcançar qualquer tipo de benefícios quepudessem resultar no aumento rápido da sua fortuna pessoal.

26 Por razões da sua actividade comercial, os baneanes evitavam, sempre que podiam,

tomar a iniciativa de contactar por escrito com a administração pública portuguesaporque tinham receio que as autoridades lhes solicitassem esclarecimentos acerca dosseus negócios e do seu património, informações que não lhes convinha caírem nodomínio público.

27 Na realidade, a descrição em relação à sua vida particular e o segredo profissional

constituíram até aspectos muito importantes da sua formação comercial, e eramensinados desde a infância, em casa ou no bazar, juntamente com a instrução básica, aescrita, a aritmética e o cálculo mental.

28 Um dos principais aspectos que contribuiu para o sucesso económico dos baneanes

residiu no ensino rigoroso e sistemático que estes recebiam desde a infância emmatérias como a aritmética e o cálculo mental, de modo a prepará-los para lidarem comas diversas vertentes da contabilidade comercial. Eles aprendiam a estabelecer câmbiose equivalências entre diferentes pesos e medidas, a achar percentagens, a calcular taxasde juro ou avaliar rapidamente ganhos e perdas numa operação comercial.

29 A par do ensino da escrita e do cálculo, os baneanes aprendiam desde muito jovens os

métodos tradicionalmente utilizados no comércio asiático. A aprendizagem básica tinhalugar sobretudo no seio da família, sendo um corpo de conhecimentos e experiênciastransmitido de pais para filhos.

30 Este conjunto de competências tinha um carácter essencialmente prático, isto é, as

crianças aprendiam praticando lado a lado com os adultos, em muitos caso, repetindosituações que ocorriam na vida real. Parentes mais velhos e experimentados nosnegócios da família ensinavam em casa e nos bazares as melhores formas de conseguircrédito, as subtilezas para lidar com os produtores, procurando que estes aceitassemencomendas de fazendas sem ser necessário avançar à cabeça quantia alguma, asartimanhas para comprar a preços reduzidos e todas as técnicas e estratégias parasuperar e mesmo liquidar a concorrência8.

31 Infelizmente, são escassas as informações que se referem especificamente ao modo

como os baneanes eram instruídos nos meandros mais sigilosos do negócio, o que, emparte, se explica precisamente pelo facto de esse tipo de informações constituir umsegredo ciosamente guardado como qualquer outro bem pertencente ao patrimóniofamiliar. Sabemos, no entanto, que a educação comercial, tal como acontecia com aestratégia matrimonial que presidia à escolha da noiva, eram as principaispreocupações que os pais tinham com os filhos e as únicas situações em que nãoolhavam a despesas.

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32 Uma das primeiras informações nas fontes portuguesas sobre a aptidão e destreza dos

guzerates para o cálculo, a escrita comercial e a sua capacidade para a organizaçãomercantil em geral, surgiu, cerca de 1515, na Suma Oriental, obra em que o seu autor,Tomé Pires, os apresenta como modelo de qualidades que os funcionários da Coroaportuguesa na Índia deveriam copiar9.

33 Nesta obra, o boticário e negociante, “curioso de inquirir e saber as cousas, [com] um

espírito vivo para tudo”, como salientou João de Barros10, descreveu os baneanesguzerates como “homens diligentes e soltos em trato contam por algarismo como nóscom as nossas próprias letras”, razão pela qual em Cambaia “deviam de aprendernossas gentes que querem ser escrivães e feitores porque o ofício de fazenda ciência ésobre si que não impede todo o outro nobre exercício mas ajuda muito”11.

34 Mais tarde, no início do século XVII, o cartógrafo Manuel Godinho de Erédia, refere-se à

forma como os baneanes “mais nobres de menino aprendem a ler, escrever e contar nosbaçares e escholas, e juntamente aprendem a ordem da mercancia e o conhecimento evalor e fineza das cousas pera compra e venda em que pretendem sempre enganar atodos e sair milhor do partido”12.

35 Entre os noticiaristas europeus, destacamos Georges Roques, comissário da Companhia

das Índias Francesas durante a década de 1680, cujas memórias confirmam que osbaneanes só se tornavam comerciantes especializados “após serem instruídos nas suasescolas na leitura, na escrita, na contagem e no cálculo sobre tábuas varadas na areia,para poupar papel”13. Na mesma época, Jean Baptiste Tavernier, o célebre exploradorfrancês e mercador de pedras preciosas, considerava que o sucesso dos comerciantes seficava a dever, em grande medida, à instrução comercial que dotava os jovens baneanesde argúcia e rapidez no cálculo matemático:

“The members of this caste are so subtle and so skilfull in trade that (...) they couldgive lessons to the most cunning Jews. They accustom their children at an early ageto shun slothfulness, and instead of letting them go into the streets, teach themarithmetic which they learn perfectly, using for it neither pens nor counters, butthe memory alone, so that in a moment they will do a sum however difficult it maybe. They are always with their fathers, who instruct them in a trade, and do nothingwithout at the same time explaining it to them. These are the figures [omitted]which they used in their books, both in the Empire of the Great Mogul, as well asother parts in India, although the languages may vary”14.

36 Muitos outros viajantes europeus, nomeadamente Manucci, Linschoten e Ovington,

realçaram o papel do ensino da aritmética e do cálculo mental na preparaçãoprofissional do comerciante baneane, sem, no entanto, acrescentarem novasinformações às que já se conheciam15.

37 No caso de Moçambique, foram poucas as fontes portuguesas que chamaram a atenção

para o facto de o ensino e a transmissão da experiência comercial constituírem a chavepara que os “actoaes Baneanes [se tornassem] mais habilidozos que os antigos”16.

38 Todas as transacções comerciais foram anotadas nos seus livros de contas e todo o

património familiar, nomeadamente as jóias, os metais preciosos e outros bens, estavaregistado em livros escritos na língua e no alfabeto guzerate, ou, porventura, emmarwari (uma das quatro principais línguas do Rajasthan). Era, por isso, comum dizer-se que os baneanes usavam de uma escrita codificada nas suas transacções comerciais.

39 Ainda hoje os comerciantes guzerates acreditam que os seus livros de razão são únicos,

na medida em que na sua feitura é usado um código, um tipo de letra e, por vezes,

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mesmo uma linguagem exclusivos, que diferem de família para família. Geralmente, omodelo usado na elaboração da escrita do livro de contas dos baneanes –provavelmente muito semelhante ao que era usado por outras comunidades demercadores especializados, como os chatins do sul da Índia – estava organizadosegundo as primeiras letras de cada item. Assim, encontramos KAP por kapdam oukapad, que significa tecido; KHO, por khorak, comida, mantimento; SO, por soneri, ouro;GHA, por gharenam, jóia trabalhada; VEP, por vepar, que tanto quer dizer comércio ounegócio, como comerciante ou negociante; DHA, por dhamdho, comerciante; BHA, porbhat, arroz bate, etc.17.

40 A importância e a validade dos “livros de rezão” produzidos pelos comerciantes

baneanes parecem ter sido frequentemente invocadas como meio de prova tanto noreembolso dos seus créditos como nos processos de partilha dos bens das heranças.

41 As autoridades portuguesas acusaram muitas vezes os baneanes de se apoderarem do

património dos moradores falecidos, exigindo que os herdeiros pagassem as dívidas queaqueles tinham contraído, alegando que essas dívidas constavam dos seus livros decontas18. Eram também frequentemente acusados de facilmente os falsificarem, porquenão só não os numeravam como lhes faziam frequentes rasuras, registando dívidas quesó podiam ser confirmadas por outros indivíduos “da mesma casta” ou pela boca dospróprios devedores19.

42 Foi o que alegaram os moradores portugueses que viam os baneanes servirem-se dos

seus livros de contas para reclamarem o pagamento de dívidas e se apoderarem de bensmoventes e de raiz pertencentes a antigas casas coloniais portuguesas, provocando, emmuitos casos, a sua ruína:

“e dez do governo do Senhor Pedro de Saldanha, faleçendo alguns moradores dodito continente de Mussoril, e os reprezentantes [baneanes] como credores delles,amontuando as suas dividas com ganhos, e reganhos, que he todo o obzeito dosemprestimos, que fazem, recahirão nelles alguns palmares, e por haver nissodisfarçe forão pouco a pouco empossando tudo, de forma que já hoje não há prediono dito Mussuril que não seja dos reprezentantes, arrogados para si pellos meyosiniquos, e uzurarios, so a fim de senhoriarem de tudo, e terem por seus devedoresaos moradores, ficando a mayor parte delles, e suas familias, em deploravel estadode pobreza sem ter com que remedeem a sua diaria sustentação, e preciza mãtençae se não informe-se sobre o estabelecimento das cazas de hum Felis de Crasto, dehum Joaquim Ventura, de hum Joze Gomes Henriques, de hum Francisco Xavier deBragança, de hum Miguel de Machado, de hum Manoel Miguel de Bragança, de humfrancisco Dias, de hum António Correia Mattos, que ocupou honorificos cargosnesta capital, e outros muitos, que todos sendo faleçidos, já não há hoje fumo, nemcheiro dos seos teres, e haveres, e suas fazendas todas saquiadas pelosreprezentantes por meyos já ditos, firmando se na fé dos livros de sua rezão,quando estes não são de imprença, nem são numerados, nem rubricados, se nãofeitos por elles, cujas paginas podem destruhir todas as vezes, que quiser, e encaxaroutras, acrescendo de mais a mais requerem dividas já pagas alguns delles, como setem virificado, contra Ley, e Dereito”20.

43 Facilmente se compreende, por isso, que os baneanes tivessem mantido os seus livros e

notas escritas sigilosos e escondidos. Pela mesma razão as autoridades portuguesasprocuraram, em vão, que os livros e outros documentos lhes fossem entregues, de modoa conhecerem a extensão dos negócios e a impedirem que os baneanes fizessem acobrança das suas dívidas, tanto as que tinham o pagamento de juros garantido porcertos rendimentos fixos, como as que eram representadas por qualquer título ou letrade câmbio.

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44 Finalmente, para além dos aspectos relacionados com a oralidade e com o sigilo

profissional, a ausência de documentos escritos por baneanes também pode serexplicada pelo facto de estes negociantes serem especialistas em determinadasvertentes do trato que envolvia a sua casa comercial, mas não conhecerem a totalidadee a complexidade dos negócios que se efectuavam na Índia e na costa oriental africana.

45 Na realidade, a maioria dos baneanes de Moçambique não estava habilitada a divulgar

muitos dos pormenores da actividade da casa comercial em que trabalhava, por seremapenas meros agentes e comissários de outros comerciantes da mesma casta, mais ricose poderosos, que residiam em Diu, Damão e outras cidades do Guzerate. É óbvio queestes não lhes davam acesso, por exemplo, aos intermediários e produtores têxteisindianos, aos meandros dos contratos efectuados, aos empresários que vendiam tecidosmais baratos, faziam juros mais vantajosos e apresentavam formas e prazos depagamento mais convenientes, ou aos prestamistas e banqueiros que emprestavamdinheiro e eram avalistas e seguradores das viagens marítimas e dos negócios comÁfrica.

46 No espaço que me resta, irei falar sobre a forma como a elite baneane coexistiu e se

relacionou com a elite e o poder político colonial, em Moçambique setecentista.

47 Nesta matéria não me interessou tanto a relação individual, na qual alguns dos

membros mais destacados da comunidade mercantil indiana comunicaram com asautoridades de justiça e administração. Na maior parte dos casos, os baneanes fizeram-no através de “Requerimentos” e “Petições” escritos por um qualquer funcionárioadministrativo letrado, segundo os formulários em vigor e as normas legais.

48 Eram formas de comunicação em que o requerente se colocava na posição de pedir, de

rogar ao governo e aos poderes públicos algo que julgava poder ser concedido. PunjaVelgi, por exemplo, requereu que o governo o autorizasse a usar sombreiro e a andar depalanquim em Moçambique, benesse que era geralmente concedida aos reinóis de boacepa, mas que, na Índia, foi igualmente outorgada a brâmanes e a baneanes ricos.

49 Interessou-nos, antes, a forma como a elite mercantil baneane em Moçambique

coexistiu e se representou a si mesma e à comunidade, junto do poder políticomoçambicano.

50 Não foram muitas as vezes que a elite indiana se sentiu obrigada a tomar a iniciativa de

se fazer expressar criticamente e a reagir aos ataques desferidos tanto pelos moradoresmais ricos, como pela elite política de Moçambique. Em pouco mais de um século, talveztenham enviado cerca de quatro ou cinco “Representações” e “Atestações”,documentos colectivos, de maior fôlego, que não obedeciam a fórmulas administrativasrígidas e estavam organizados segundo uma estrutura que pressupunha um raciocínio eum propósito ideológico. Até cerca de 1760, esses documentos foram redigidos deacordo com uma lógica de matriz cultural e religiosa, na medida em que a elite baneanese serviu da pena dos jesuítas21.

51 Depois da expulsão dos jesuítas, as “Representações” foram elaboradas segundo uma

lógica essencialmente pragmática e utilitária, consoante o grau de sofisticação culturalde canarins oficiais da administração e de clérigos de outras ordens22, cujos serviços aelite baneane foi obrigada a deitar mão.

52 Para percebermos o papel dos jesuítas e o relacionamento com a elite baneane,

socorremo-nos de uma imagem que designamos de “síndrome de Abdullah”. É umaimagem retirada do livro de Italo Calvino Se numa noite de Inverno um viajante, na qual o

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autor conta que a escrita do Alcorão conheceu pelo menos duas mediações: Maoméouvia a palavra de Alá e ditava-a por sua vez aos escribas. Ora, uma vez aconteceu que,ao ditar uma frase ao escriba Abdullah, Maomé não a completou. O escriba Abdullah,diligentemente, sugeriu a conclusão e Maomé, distraído, aceitou como palavra divina oque Abdullah sugerira. Este facto escandalizou o escriba que abandonou o Profeta eperdeu a fé23.

53 Os baneanes, ao contrário, não se escandalizaram nem perderam a sua fé quando, na

elaboração da célebre “Representação dos Baneanes de 1758”, tiveram que recorrer aosserviços de “solicitação”, de perfeita mediação cultural, realizados pelos jesuítas queresidiam no Colégio de S. Paulo, em Moçambique, e que incluíam a interpretação, atradução e a redacção de documentos.

54 Qual seria o papel do intérprete que traduz a diferença de duas línguas?

55 A intermediação, ao longo dos tempos, dos línguas, intérpretes e tradutores ou mesmo

de uma comunidade bilingue que surgiu, como resultado da miscigenação, foifundamental para a sobrevivência e continuidade da administração portuguesa.

56 Porém, tal como hoje, temos que ter em atenção a participação dos tradutores e a dos

intérpretes na elaboração do texto traduzido. Aliás, como Ortega Y Gasset realçou atradução sem interpretação é uma fantasia naif24.

57 A maioria dos “línguas” era anónima. Ainda assim, não obstante essa dificuldade,

precisamos de pensar na sua personalidade, no domínio que teria da língua e na suapreparação cultural.

58 É óbvio que esse sujeito era único: tinha uma história pessoal, uma formação e um estilo

que se distinguiam dos demais.

59 No caso que comentamos da citada “Representação dos Baneanes de 1758”, o língua/

intérprete deixou de maneira indelével a sua impressão digital nas ideias e nos escritosem que foi chamado a intervir. Ele transformou-os num outro texto de sua autoria,cortando partes, recriando personagens e inscrevendo passagens que estavam longe decombinar com o nível de conhecimentos ou com a opinião pensada ou formulada dosbaneanes que encomendaram o trabalho. O autor só não deixou a sua assinaturafirmada e, por essa razão, a Representação permanece anónima.

60 Porém, pensando nos conhecimentos linguísticos e na sua preparação cultural,

identificamos o meio social a que pertence e conhecemos a sua filiação religiosa.Sabemos que era um jesuíta e que a sua tarefa se inscrevia nesse contexto colectivo.

61 Em ambas as situações, individual e colectiva, o sujeito teve uma intervenção que, de

certo modo, o transformou em co-autor do texto final e uma espécie de mediadorintercultural.

62 O intérprete jesuíta, apoiado numa sólida cultura geral à qual associava conhecimentos

específicos, elaborou o referido documento, procurando buscar o sentido original dodiscurso baneane, captando as suas intenções e ideias, ou, eventualmente, o sentido dealgumas notas por eles escritas.

63 Sem querer entrar em comparações especulativas, talvez se possa afirmar que os

baneanes hindus e jainas, cujas vidas eram em grande parte definidas por apertadospreceitos de casta religiosa, aceitaram que os jesuítas, por serem exímios na exegesebíblica, pudessem desvelar correctamente a essência dos seus pensamentos. É óbvioque, no caso da “Representação dos Baneanes de 1758”, em alguns momentos os

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jesuítas inscreveram no texto os objectivos do pensamento de quem tinhaencomendado o trabalho, e em outros afastaram-se para tentar impor e reforçar a suaprópria presença política, muito abalada com todo o processo que levou à sua expulsãode Moçambique.

64 Este aspecto particular da demonstração da erudição europeia, revelada pelas inúmeras

referências “aos Evangelhos, à saga de Moisés e ao exemplo de David; a recuperação departe da vida de César, do sentido de justiça de Herodes ou de Marco Catão, ou daeloquência erudita do Padre António Vieira e, ainda, o aproveitamento da eficácia dasprofecias de Isaías”25 – todas elas figuras extraídas do classicismo cristão recuperadopelo Renascimento – em nada incomodou a elite baneane. Pelo contrário, todas estasreferências legitimavam e davam corpo aos seus anseios. A erudição europeia tornava otexto persuasivo e conferia autoridade e seriedade aos seus promotores.

65 A elite baneane coexistiu quase sempre de forma pacífica com os jesuítas e, em algumas

situações, chegou mesmo a beneficiar da sua cumplicidade activa. Foi, por exemplo, ocaso ocorrido em 1723, quando um baneane se refugiou no Colégio de S. Paulo, fugidodas autoridades que o pretendiam prender e arrestar os livros de anotações e de contasda sua casa comercial.

66 A intimidade e a cumplicidade entre baneanes e jesuítas tinham fortes raízes

económicas, na medida em que estes eram credores de avultadas somas em dinheiropertencente aos indianos. Essa coexistência também tinha raízes de carácter religioso,na medida em que a religião hindu e jaina, ao contrário, por exemplo, da muçulmana,não concorria com a católica. Isto é, estas religiões não ofereciam perigo porque nãoeram prosélitas, não procuravam alargar o seu espaço de influência pela conversão erecrutamento de fiéis. Ninguém se converte ao hinduísmo ou ao jainismo, nasce-sehindu ou jaina. Nesta matéria, talvez a crítica mais contundente dirigida aos baneanesrelacionava-se precisamente com o facto de os filhos que estes faziam em negrasafricanas – ou seja, mulheres fora da casta – serem entregues às suas mães para seremeducados no Islão.

67 De igual forma, exceptuando em alguns períodos mais exacerbados, o relacionamento

entre baneanes, autoridades políticas e moradores mais ricos pode ser consideradopacífico. É verdade que as fontes administrativas apresentavam a comunidade comouma “corge de peralvilhos”, “vadios e ociozos” porque percorriam todos os locais,“viciozos ladroens” porque tudo levavam de Moçambique e “judeos”, devido à avareza,prática da usura e monopólio de comércio de todos os seus membros26.

68 Porém, a dura retórica oficial acabou sempre por transigir, não só perante o suborno, a

dádiva de prendas, o empréstimo de dinheiro a título pessoal, mas, também, perante amanifesta imprescindibilidade da presença indiana para a continuidade da actividadeeconómica. Ou seja, para o desenvolvimento alfandegário, e, consequentemente, para oaumento das receitas aduaneiras, com as quais se pagavam os salários de grande parteda administração colonial.

69 À elite mercantil indiana não lhe interessava tomar as rédeas do poder político, em

Moçambique. Bastava-lhes respeitar, colaborar ou entrar em conluio com o poder, naesperança de obter ganhos pessoais. Por isso, nesta matéria, nunca causaramverdadeiros problemas às autoridades portuguesas, ao contrário do que sucedeu com osnativos africanos e com os muçulmanos.

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70 Aos baneanes o poder político só lhes interessa na medida em que ele possa atrapalhar

os seus negócios. Tinham uma grande capacidade de persuasão e eram extremamentesensíveis aos jogos do poder e, por essa razão, era importante que os seus interessesjunto das autoridades coloniais fossem convenientemente mediados pelos jesuítas, semgrandes conflitos institucionais. Isto é, em 1758, a elite não queria ser reduzida a meiadúzia de elementos, nem ficar confinada aos limites da Ilha de Moçambique, porquesabia que os seus negócios não se podiam desenvolver se não pudessem contar comumas centenas de caixeiros e mercadores volantes que fossem comerciar por todo ocontinente africano.

71 Nesta medida, as “Representações” do corpo mercantil baneane exprimiram,

simultaneamente, os grandes interesses da elite residente na ilha e na Índia e os anseiosde toda a comunidade mercantil guzerate que vivia de pequenos expedientes.Exprimiram, também, aquilo a que António Hespanha tão bem definiu na conferência27

de abertura do Congresso sobre o “Espaço Atlântico do Antigo Regime: poderes esociedades”: mais de que um império de “sistema colonial”, este era um império depactos. Neste caso de pequenos pactos.

72 Portugueses e indianos acomodaram-se à inevitabilidade de coexistirem o melhor

possível. Aqueles precisavam do dinheiro indiano para alimentarem a sua máquinapolítica, militar e administrativa. Os baneanes precisavam de uma administração quefosse o mais maleável possível para expandir os seus negócios na costa orientalafricana.

NOTAS

1. Sebastião Rodolfo Dalgado, Glossário Luso-Asiático, vol. I, Coimbra, Imprensa da Universidade de

Coimbra, 1919, pp. 93-95; Henry Yule e A. C. Burnell, Hobson-Jobson, The Anglo-Indian Dictionary,

Hertfordshire, Wordsworth Editions, 1996, p. 63.

2. Panduronga S. S. Pissurlencar, “Portugueses e Maratas, I‑Shivaji; II‑Shambaji; III‑Rajaram;

IV‑Como se perdeu Baçaim; V‑A Restauração de Bardês e Salcete”, in Boletim do Instituto Vasco da

Gama, Goa, 1926 a 1933; “O enigma da morte do Vice-Rei Conde de Alva esclarecido à luz de

documentos maratas”, in separata Memórias Academia das Ciências, 6, Lisboa, 1957.

3. Ana Paula Tavares e Catarina Madeira Santos, Africae Monumenta, A Apropriação da Escrita pelos

Africanos, vol. I, Arquivo Caculo Cacahenda, Lisboa, Centro de Estudos de Cartografia Antiga,

Instituto de Investigação Científica Tropical, 2002.

4. Daqui terá tido a sua origem no português vernacular a palavra contrabando, por assimilação do

acto de não respeitar a lei vigente decretada com o termo original. Depreende-se ainda pela

conotação dada a contrabando como próxima da ilegalidade económica, que os Bandos seriam

antes do mais decretos reguladores da vida económica.

5. AHU, Moç., “Procuração de Bovany Tricamo, ferreiro, morador em Diu, passada pelo tabelião da

referida fortaleza, com o auxílio do língua Crisnam Sinay, a favor de Argy Narbada e Hira Sattá,

ambos ferreiros e moradores em Moçambique”, 15.11.1760, cx. 18, doc. 89.

6. AHU, Moç., “Representação dos irmãos da Santa Casa da Misericórdia de Moçambique, para o

Rei, sobre os hindus e muçulmanos que chegam à praça de Moçambique”, 2.1.175, cx. 16, doc. 4.

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7. AHU, Moç., “Rol das pessoas que contribuíram com o Donativo, ou contribuição para as

despesas da guerra nas terras firmes da Macuana”, 30.1.1799, cx. 82, doc. 9; AHU, Moç., “Carta de

João da Costa Xavier, capitão-mor de Inhambane, para Baltazar Pereira do Lago, governador de

Moçambique, sobre negociações com o régulo Massia intermediadas pelo língua do Estado”, 17.4.

1769, cx. 29, doc. 10; AHU, Moç., “Carta do comandante das Ilhas de Cabo Delgado, António José

Teixeira Tigre para o Governador de Moçambique a informar sobre requerimento de um mouro,

língua do Estado naquelas Ilhas, a pedir mercê da terra Muyaca”, 5.5.1790, cx. 60, doc. 1790.

8. Geralmente os mercadores obtinham conhecimentos comerciais através da experiência

recolhida entre amigos e familiares. Em alguns casos, porém, foram designados professores para

ensinar e treinar os mais novos nos diferentes “tipos de arte e ciência” relacionados com as

actividades comerciais. Segundo V. K. Jain, “alguns mercadores mais ricos assalariaram os

serviços de indivíduos educados para os assistir nas suas actividades comerciais. Estes devem tê-

los ajudado na escrita de documentos legais relativos a vendas, compras, hipotecas, letras de

crédito, etc., os quais (…) são próprios do comércio posterior ao século X” (cf. Trade and traders in

Western India (AD 1000-1300), Munshiram Manoharlal Publishers, Nova Deli, 1990, p. 223). Os

imponentes edifícios construídos para albergar as bibliotecas de Patna, Cambaia, Baroche, tal

como a constituição de bibliotecas em Jaisalmer, revelam a importância que os ricos mercadores

guzerates, especialmente os jainas, atribuíam ao fomento da educação por eles patrocinada. A

maior dessas bibliotecas, fundada pelo monge Jinabhadra, em 1551, na cripta do templo de

Sambhava em Jaisalmer, acolheu muitos dos manuscritos das bibliotecas de Patna e Cambaia,

colocando-os a salvo da depredação muçulmana (cf. Paul Dundas, The Jains, ob. cit., p. 72).

9. Tomé Pires, A Suma Oriental de Tomé Pires e o Livro de Francisco Rodrigues, leitura e notas de

Armando Cortesão, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1978.

10. João de Barros, Ásia, Década III, Livro II, Capítulo VIII, Livraria Sam Carlos, Lisboa, 1974-1975

(reimpressão da edição de 1788), p. 217.

11. Tomé Pires, ob. cit., p. 198 (actualizámos a ortografia).

12. “Discurso sobre a Provincia do Indostan chamada Mogul e coruptamente Mogôr com

declaração do Reino Guzarate e mais reinos de seu destricto: ordenado por Manuel Godinho de

Eredia cosmographo mor do Estado de Indias Orientais”, 1611, in Documentação Ultramarina

Portuguesa, vol. III, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1963, p. 137.

13. Georges Roques, La Manière de négocier aux Indes (1676-1691), La Compagnie des Indes et l’art du

commerce, texte inédit présenté et annoté par Valérie Bérinstain, École Française d’Extrême

Orient, Maisonneuve & Larose, Paris, 1996, p. 28. Este autor, que foi funcionário da Companhia

Francesa das Índias Orientais, chegou à Índia em 1676. A sua obra, que se inscreve na tradição dos

relatos dos grandes viajantes europeus do século XVIII, dá-nos a conhecer uma sociedade de

mercadores em plena expansão, graças às relações privilegiadas que mantêm com as companhias

mercantis europeias. Descreve e comenta minuciosamente os modos de vida e as formas de

negociar dos baneanes guzerates, fornecendo preciosos detalhes com o intuito de precaver o

leitor contra os logros em que esses comerciantes indianos habitualmente faziam cair as suas

vítimas.

14. Jean-Baptiste Tavernier, Travels in India, tradução, biografia, notas e apêndices de Vincent

Ball, Ed. de W. Crooke, vol. 2, Londres, 1925, pp. 143-144, apud Irfan Habib, “Merchant

communities”, art. cit., p. 384. Irfan Habib modificou ligeiramente a tradução inglesa desta

passagem para facilitar a sua leitura.

15. Niccolao Manucci realça que “if the talk is of business, they [Banyas] give a ready answer and

are such strong arithmeticians that in the shortest time they can make any sort of calculation,

never making a mistake of a single figure” (cf. Niccolao Manucci, Mogul India 1653-1708 or Storia do

Mogor, tradução de William Irvine, vol. I, Londres, 1908, p. 156). Também Jan Huygen Van

Linschoten afirma que os baneanes “são extremamente subtis e astutos em todas as contas e

escritas, não só ultrapassando nisso todos os outros indianos e nações circundantes, mas também

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os portugueses, pelo que lhes têm grande vantagem. Entendem-se à maravilha com todas as

mercadorias e são muito manhosos em burlar as pessoas” (cf. Itinerário, Viagem ou Navegação, ob.

cit., p. 174). Finalmente, cf. John Ovington, A Voyage to Surat in the Year 1689, Edição de H. G.

Rawlinson, Oxford University Press, Londres, 1929, p. 124.

16. O governador Saldanha de Albuquerque, por exemplo, refere que “he indubitavel, que tendo

se estas familias [de Baneanes] empregado no Commercio há tantos centos de annos, e tendo

como tem a prevenção de ensinarem seus filhos, e dedicarem seus Protocollos, aonde ficão

declaradas todas as habilidades, ou ladroeiras, que fizerão nas suas negociaçoens, serão

certamente os actoaes Baneanes mais habilidozos, que os antigos, e por consequencia mais

ladroens, e prejudiciaes” (cf. AHU, Moç., “Cópia da carta do governador de Moçambique, Pedro de

Saldanha de Albuquerque, para o Secretário de Estado, sobre o estado do comércio da colónia”,

12.8.1783, cx.46, doc.31).

17. Estas informações sobre o código utilizado nos livros de contas dos baneanes de Diu, bem

como sobre outros aspectos particulares da sua actividade mercantil em Moçambique, foram

recolhidas numa entrevista que Narendra Sheth – na época a residir naquela antiga cidade

portuguesa do Noroeste da Índia – amavelmente nos concedeu, e ainda nalguns livros guardados

na sua biblioteca que pudemos igualmente consultar. Ao folhear o livro de contas, apercebemo-

nos de que nele estavam lançados separadamente os débitos e os créditos de cada cliente, que

assim era objecto de uma contabilidade individualizada. Cada pessoa envolvida nas transacções

comerciais era, aliás, igualmente designada por siglas, que provavelmente correspondiam às

iniciais dos seus nomes. Actualmente, o hindu Narandra Sheth é um grande comerciante em

Bombaim. Aí possui duas firmas dedicadas à importação e exportação de têxteis e outras

mercadorias, a Overseas Textiles Corporation e a Bhagwati Export Corporation.

18. AHU, Moç., “Cópia do bando do governador de Moçambique, Pedro de Saldanha de

Albuquerque, determinando a proibição da entrada de baneanes no continente sem passaportes e

definindo os castigos aplicáveis aos transgressores”, 16.10.1782, cx.40, doc.10.

19. Em Janeiro de 1776, num ataque macua à povoação do Mussoril alguns portugueses perdem a

vida e todos os seus haveres, nomeadamente os registos da sua vida comercial. Então, os

baneanes, “ajuizando as obrigaçoens dos falecidos em ser, com falhas das contas extrahidas dos

ditos chamados Livros de sua rezão, sem rebate dos pagamentos feitos pelos ditos falecidos,

produzindo testemunhos da sua igoalha, que sempre são occulares, e de hovir dizer aos próprios

devedores, como a longa expriência tem mostrado, e alianando sentenças com infinitos e

sençiveis clamores das ditas famílias por meyos tão sinistros, venderão tudo em hasta publica

comprando para si as suas fazendas por interpostas pessoas, ficando pellas portas as referidas

famílias” (cf. AHU, Moç., “Resposta do Senado da Câmara de Moçambique à Representação que os

baneanes estabelecidos na Ilha de Moçambique fizeram sobre o Bando do governador Vicente da

Maia Vasconcelos, no qual é vedado o comércio destes mercadores no continente”, Julho de 1781,

cx. 36, doc. 35).

20. Idem, ibidem.

21. De entre as diversas petições redigidas pelos jesuítas, salientamos a “Representação dos

baneanes”, de 19.7.1758, (AHU, Moç., cx. 14, doc. 26).

22. No Atestado que os baneanes da Ilha de Moçambique apresentaram, em Maio de 1787, sobre a

proibição decretada pelo Ouvidor e Governador provisório, Maia e Vasconcelos, de comerciarem

marfim, os negociantes baneanes tiveram de recorrer aos préstimos do alferes José Joaquim

Varela para a redacção do referido Atestado, uma vez que “não sabiam escrever português” (cf.

AHU, Moç., “Atestação dos Baneanes desta Praça de Moçambique sobre a proibição que lhes deu o

governador provisório, Vicente Caetano da Maia e Vasconcelos, de comerciarem marfim com os

Mujaos”, 3.5.1787, cx. 54, doc. 16.)

23. Italo Calvino, Se numa noite de Inverno um viajante, Lisboa, Público, Colecção Mil Folhas, 2002, p.

155.

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24. Ortega Y Gasset, “Miséria y esplendor de la traducción”, in Obras Completas, vol. 5, Madrid,

Editora Revista de Occidente, 1970, p. 444.

25. Almiro Lobo, “Baneanes de Diu em Moçambique: fragmentos de um auto-retrato”, in Ana

Paula Laborinho, Maria Alzira Seixo e Maria José Meira (org.), A Vertigem do Oriente, Modalidades

Discursivas no Encontro de Culturas, Lisboa, Edições Cosmos e Instituto Português do Oriente, 1999,

pp. 192-193.

26. Jerónimo José Nogueira de Andrade, “Descripção do estado em que ficavão os negócios da

capitania de Moçambique nos fins de Novembro de 1789 com algumas observações, e reflecçõens,

sobre a causa da decadência do commercio dos estabelecimentos Portugueses na costa oriental de

África”, in Arquivo das Colónias, Lisboa, vol. 1 (1917), pp. 75-96, 115-134, 166-184, 212-235, 274-288;

vol. 2 (1918), pp. 32-49, passim.

27. António Manuel Hespanha, “Porque nos interessa hoje o Atlântico de ontem?”, in Congresso

Internacional O Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedade, organizado pelo Centro de

História de Além-Mar/FCSH/UNL e pelo Departamento de Ciências Humanas/IICT, Lisboa, 2 a 5

de Novembro de 2005.

RESUMOS

É difícil afirmar que o império português na Índia tenha sido, antes de mais, um “império da

informação”, tal como Christopher Bayly se esforçou por comprovar, no caso do congénere

inglês. Nesta matéria, como em muitas outras, faltam-nos ainda mais estudos. No entanto, parece

óbvio que nos domínios portugueses na Índia – relativamente diminutos e muito descontínuos –,

o conhecimento e a informação tiveram um papel muito importante no processo de assegurar o

poder político, social e militar. O recurso às informações das redes de espiões, “línguas”,

funcionários da administração, comerciantes e diplomatas foi fundamental para o recíproco

conhecimento das sociedades e para desenvolvimento da presença portuguesa no Índico. Foi o

que sucedeu com as informações veiculadas pelos comerciantes indianos residentes na África

oriental setecentista. O principal objectivo deste artigo é perceber por que razão a elite indiana

utilizou os jesuítas como intérpretes da sua língua, o marwari e o guzerate, para comunicar com a

administração portuguesa.

In the Portuguese dominions in India – small and discontinuous – knowledge and information

had a key role in the conservation of political, social and military power. It is not yet an “empire

of information”, as the one described by Christopher Bayly in his book about the British Empire.

However, there were networks of spies, networks of interpreters, and archives of information

held by administration officers, merchants and diplomats, which were essential to the

recognition of local societies and the implantation of the Portuguese presence in the Indian

Ocean. Among these people, the Indian merchants in the Eastern coast of Africa acted, as well, as

informants. Surprisingly, they used the Jesuits ad mediators and interpreters of their languages,

the marwari and gujarati, in order to communicate with the Portuguese administration.

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ÍNDICE

Palavras-chave: baneane, jesuítas, língua do estado, intérprete, ensino, mediação cultural

Keywords: baniane, jesuits, interpreters, teaching, cultural mediatiors

AUTOR

LUÍS FREDERICO ANTUNES

Departamento de Ciências Humanas – Instituto de Investigação Científica Tropical.

Investigador Auxiliar no Instituto de Investigação Científica Tropical. Pesquisador do Projecto

Memórias Africanas da Escravatura: Inquéritos etnográficos nas ‘Áfricas Lusófonas’ (FCT 2007) e

colaborador no projecto de pesquisa Companhia das Índias da Universidade Federal Fluminense.

Últimas publicações: “Província do Norte”, in Maria de Jesus Mártires Lopes (coord.), O Império

Oriental (1660-1820), vol. V, Tomo 2, Nova História da Expansão Portuguesa, dir. por Joel Serrão e A. H.

de Oliveira Marques, Lisboa, Editorial Estampa, 2006; “A influência africana e indiana no Brasil na

virada do século XVIII: escravos e têxteis”, in João Fragoso et al. Nas rotas do Império (eixos

mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português), Vitória, Lisboa, Brasília, Edufes, Instituto de

Investigação Científica Tropical, 2006; “Inácio Sarmento de Carvalho Revisited: Victories and

Defeats of a Military Officer from the Portuguese Empire (1616-1676)”, in Winds of Spices – Essays

on Portuguese Establishments in Medieval India with Special Reference to Cannanore, Tellicherry,

Institute for Research in Social Sciences and Humanities (IRISH), 2006.

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“Nobres per geração”A consciência de si dos descendentes de portugueses na Goa seiscentista

“Nobres per geração”. Consciousness and Identity of Portuguese elites in 17th

century Goa

Ângela Barreto Xavier

NOTA DO AUTOR

A ideia que subjaz a este estudo resultou da leitura de um artigo de Fernando Bouzasobre a nobreza portuguesa estabelecida em Madrid durante o período filipino e noperíodo pós-restauracionista (in Portugal no Tempo dos Filipes, Lisboa, 2000). Nesse artigo,o autor desenvolvia a tese de que a distância do reino permitia, a esta nobreza, pensá-loem perspectiva e conceptualizá-lo de uma outra maneira. Uma versão anterior, e maisreduzida, deste estudo foi publicada em italiano, em 2006 (Xavier, 2006ª), e a história deFrei Miguel da Purificação, o protagonista deste ensaio, também aparece no artigo“Itinerários franciscanos na Goa seiscentista”, Lusitania Sacra, vol. XVIII, 2006.

1. Introdução

1 A questão da consciência de si, da reflexividade sobre a acção, do modo como esta

dimensão se inscreve no corpo das emoções, se sente e se experiencia – a questão daidentidade naquilo que ela tem de mais íntimo – tem sido objecto de múltiplasreflexões. Mais do que as expressões espontâneas, como a oralidade, os gestos,determinadas reacções invisíveis do próprio corpo, praticamente impossíveis derecuperar (por vezes surgindo em registos que as isolam e as transcrevem e, aofazerem-no, mutilam parte dos seus significados), são as materializações discursivas (acorrespondência privada, as autobiografias – e as Confissões, de Santo Agostinho,adquirem aqui um carácter paradigmático –, os diários, mas também outros produtosescritos) as fontes mais privilegiadas pela literatura, por nelas se encontrar uma chavede acesso aos sentimentos de si de gentes pretéritas.1 A hipótese de haver uma maior

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reflexividade nessas materializações escritas (de que o domínio da escrita permite, defacto, uma melhor tematização de si-mesmo) e de a escrita estar associada, de facto, adiferentes graus de sofisticação individual e social,2 aparece ainda mais legitimadaquando se têm em conta as conclusões desenvolvidas por investigações recentes sobreos efeitos da alfabetização na fisiologia cerebral e, por exemplo, sobre o desempenho deiletrados e letrados em testes que envolvem a linguagem e questões de nomeação.3

2 A escrita pública com contornos identitários pode ser entendida, neste contexto, como

um lugar privilegiado de expressão da consciência de um determinado sujeito, mastambém da articulação entre o seu interior, o seu mais íntimo, e o seu exterior, o grupo,a ordem social. Não necessariamente enquanto jogo de espelhos, no qual o textoreflecte a sociedade, e a sociedade explica o texto, mas, e sobretudo, enquanto jogo deimbricadas interdependências, no qual textos, sociedade e sujeitos se constituem unsaos outros, se inventam e se reinventam. Em que as práticas sociais e os entendimentosculturais das mesmas são inseparáveis, constituindo-se e moldando-se mutuamente.

3 O objecto deste estudo – um tratado argumentativo escrito na quarta década do século

XVII, em Goa, aqui assumido como uma manifestação escrita de sentimentos de si emdiálogo explícito com as dinâmicas sociais coetâneas4 – vincula-se a esta problemática.

4 Considera-se aqui que esta escala micro torna possível, por um lado, aceder aos

modelos de diferenciação social que operaram naqueles territórios, e, por outro, aomodo como eles foram percebidos, sentidos e consciencializados por um actor, ou umgrupo de actores. Os significados privados que estes modelos tiveram, o modo comoeles foram apropriados e sentidos por aqueles que neles se reviam, que os viviam, ouque os contestavam, são dimensões a que outras formas de análise dificilmente têmacesso, mas que constituem um território importante para complexificar os nossosentendimentos sobre os comportamentos sociais na época moderna, os lugares(geográficos, políticos, sociais) nos quais eles emergiram, os discursos que osconstituíram, ou que eles estimularam, as suas tramas, as suas possibilidades e os seuslimites.

5 Num plano muito geral, a ordem social na qual este texto emergiu assentava, como é

sabido, sobre relações do tipo imperial (metrópole-colónia e colonizador-colonizado),as quais se estruturavam com e sobre o tecido social preexistente à presença imperialportuguesa, mas também em função do processo de conversão sistemática daspopulações locais à religião cristã.

6 Como é que, nessa ordem imperial que assentava sobre a aliança entre política e

religião, e sobre a possibilidade de as populações colonizadas adquirirem o estatuto decidadãos, de súbditos de pleno direito, desde que convertidas à religião cristã, segeriram as alterações sociais e políticas (para além de culturais), a transformação deestatutos identitários, que esses processos de conversão religiosa necessariamentecomportaram? Como é que os grupos e sujeitos que já eram cristãos por várias geraçõesperceberam e aceitaram aqueles cuja conversão era muito recente? Em que medida éque estes processos não só alteraram a ordem social e imperial, como estimularamreflexões sobre a mesma, sobre as posições que nela ocupavam os vários sujeitos egrupos, estimulando reconfigurações (ou reiterações) identitárias, não apenas entre osconvertidos, mas também entre os colonizadores?5

7 Estas questões subjazem à análise que aqui se faz da maneira como foram

consciencializados e reformulados (do ponto de vista discursivo) os estatutos dos

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portugueses e dos descendentes de portugueses estabelecidos naqueles lugares. Aocontrário das elites de origem indiana, como os brâmanes e os charados (os quais foramobjecto de um estudo anterior),6 que assumiram a sua origem local ao mesmo tempoque aspiravam exercer ofícios da governança imperial, os “casados” foram aqueles que,durante o primeiro século de presença portuguesa em Goa, ocuparam a maior parte dosofícios da administração imperial local.

8 A partir de finais do século XVI, contudo, este grupo viu-se gradualmente ameaçado

pelas elites de origem indiana convertidas ao Cristianismo, mas também pelos oficiaisportugueses vindos do reino, a quem o rei acabaria por atribuir as posições superioresdo oficialato imperial: os reinóis. Se a distância que os separava dos brâmanes echarados parecia diminuir cada vez mais, aumentava, em contrapartida, o intervalo queos apartava dos reinóis. É a consciencialização em relação ao possível assalto à suaposição, a reacção perante ela e a formulação identitária que isso implicou, aquilo quese manifesta – para além da sua dimensão pragmática mais imediata, a defesa dosfranciscanos da província de S. Tomé – no tratado escrito por frei Miguel daPurificação. Purificação pertencia, por um lado, ao grupo de descendentes dosprimeiros colonizadores, nascidos na Índia, representando, por isso mesmo, o ponto devista dos “casados”. A sua Relação Defensiva visava, como o nome indica, defender,preservar e, se possível, potenciar a posição que estas elites coloniais tinham adquiridona primeira metade do século XVI, no seio da administração imperial e na economia dopoder local, posição que, a partir da segunda metade do século, começava a serdiscutível e discutida. Acresce a isto o facto de Purificação ser um frade franciscano. Talcomo os “casados” se viam como os primeiros conquistadores, os franciscanos da Índiaconsideravam-se aqueles que tinham iniciado a “conquista espiritual”, experimentandonão apenas processos análogos de subalternização por parte dos franciscanos dametrópole, mas também uma grande pressão quer por parte das outras ordensreligiosas estabelecidas localmente – com primazia para os inacianos –, quer por partedos cristãos locais, muitos dos quais aspiravam a carreiras eclesiásticas. O caso deMateus de Castro, um brâmane goês que estudou nos colégios franciscanos, mas queseguiu para Roma para aí ser nomeado bispo de anel, regressando a Goa com esseestatuto, é disso emblemático.

9 Desvendar o labirinto institucional e social que constituiu a sociedade imperial para aí

reconhecer a posição dos “casados” e determinar o lugar a partir do qual se exerce afala de Miguel da Purificação é, por conseguinte, uma etapa incontornável. Da mesmamaneira que é imprescindível reflectir sobre os usos e significados da expressão“casados”. São estes dois aspectos que se discutirão a seguir. Só depois de estabelecidosestes contextos é que a Relacion defensiva de Miguel da Purificação, os seus temas e osseus universos referenciais, as suas enciclopédias e bibliotecas (desde a meritocracia àlinhagem e pureza de sangue, às teorias astrológicas, climáticas e dos humores) serãoabordados.

2. Os descendentes de portugueses: “casados”,mestiços, castiços

10 Não merecedor de uma entrada no Glossário Luso-Asiático de Sebastião Dalgado, talvez

por este autor a identificar, em demasia, com o vocabulário do reino, a expressão“casados” está igualmente ausente, com sentidos para além dos matrimoniais, do

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Vocabulario Portuguez e Latino do padre Rafael Bluteau, de inícios do século XVIII. Noprimeiro caso, não é surpreendente a ausência, já que na Goa contemporânea doorientalista Dalgado, em vez de “casados”, a população que tinha origens portuguesas(ou europeias) era já identificada como “descendentes”. E sob esta voz, isso sim,encontra-se uma significativa descrição: “É o nome que actualmente se dá na Índia,como mais eufónico, ao castiço e mestiço”.7

11 Se equivalentes a “descendentes”, os “casados” eram necessariamente mestiços ou

castiços. Ora, quando se procura os significados de castiço e de mestiço em Dalgado,encontram-se excertos variados nos quais estas expressões surgem, não havendoconsonância, porém, entre os seus significados. O castiço tanto podia ser o “puro desangue, sem mistura heterogénea” quanto o que “tem avo da India, e outro da Europa”,ou seja, aquele que possuía ¼ de sangue de etnia local. No século XIX, havia quem osassemelhasse, inclusive, aos “creoulos na America meridional”.8 Já o mestiço tinha “porprogenitores, próximos ou remotos, um europeu e uma índia ou vice-versa”, sendoequivalente, na perspectiva do goês de finais do século XIX, a “descendente”. Ou, naperspectiva dos descendentes de portugueses que reclamavam não ter sangue local, aosdescendentes dos locais convertidos ao Cristianismo (também designados por“topazes”). Ou seja, ao contrário de castiço, mestiço era um termo que era sempreutilizado com intenções derrogatórias, e que mais do que outras expressõesidentificava, desde o século XVI, os filhos de uniões mistas, um híbrido, como diriaBluteau.9 Castiço, em contrapartida, era um termo mais ambíguo no século XIX do queno século XVIII. No Vocabulário, explica-se que ao castiço “chamão na India ao filho depay, e mãy, Portuguezes”.10

12 São os sentidos referidos neste último enunciado os mais próximos dos que se

identificam no século XVII. Nos finais da centúria de Quinhentos, também Valignanoconsiderava mestiços os filhos de pai português e mãe asiática, e castiços os filhos depai português e de mãe eurasiana, concedendo-lhes um lugar acima dos primeiros nahierarquia social.11

13 A historiografia que recorreu a fontes documentais coetâneas permitiu ampliar as

incidências sociais destes sentidos. Foi identificada a existência, por exemplo, de“casados brancos” e de “casados negros”, duas categorias profusamente utilizadas porAntónio Bocarro, e exploradas por Sanjay Subrahmanyam. Este autor alertou, ainda,para as diferenças entre os casados nascidos em Goa e em tecido urbano e aqueles quetinham origem nas franjas do Estado da Índia.12

14 Ainda assim, na maior parte dos estudos, o vocábulo é utilizado de forma

indiferenciada, designando o português estabelecido no Estado da Índia, que aí tinhafamília e casa, “equivalente ao burguês, um homem de mentalidade mercantil eurbana”.13

15 Mas de onde vem a expressão “casado”? Como é que ela se articula com a política de

casamentos mistos ensaiada durante um curto espaço de tempo pela coroa portuguesa,tendo em vista o enraizamento de portugueses?

16 Recorde-se que, por insistência de Afonso de Albuquerque, D. Manuel I atribuiu vastos

privilégios aos colonos portugueses solteiros no Estado da Índia, desde que estes aícasassem com mulheres locais, devendo “assemtar vivemda” e “fazer casa de novo”.14

Uma lista de 1514, com a cristandade da cidade de Cochim, a qual incorpora um “Titulodas molheres da terra casadas com purtugueses”, já conta cinquenta e oito nomes de

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mulheres desposadas com militares de pouca importância, oficiais de segunda linha, oumecânicos. Os quarenta e oito filhos e filhas destes casais – vários Afonsos, Jacomes,Inês, Joanas, Brísidas, Franciscos, Pêros, Anas, entre outros nomes bem familiares –constituíram, sem qualquer dúvida, as primeiras gerações de “casados”, mas é provávelque o mesmo tenha acontecido com os filhos de mulheres solteiras locais e portugueses,que, em Dezembro de 1514, na cidade de Cochim, perfaziam o número de quarenta ecinco. Ou seja, cerca de cem descendentes de portugueses residiam em Cochim, nodealbar de 1515, e estes e os seus pais compunham um grupo nada insignificante de“casados”, ou seja, de portugueses ou seus filhos que tinha assentado vivenda e criadoraízes locais. Neste mesmo documento surge, ainda, e julgo que pela primeira vez, aexpressão “casados da terra”, muito embora apenas três casais tivessem esseprivilégio15. Do mês anterior, de Novembro de 1514, é uma carta do vigário de Cananorpara o mesmo monarca, e nela também se dá conta da cristandade daquela cidade,informando que aí havia treze filhos de portugueses casados com mulheres locais.16

Uma lista semelhante existiu para a cidade de Goa, e na carta que a acompanhava, opadre Domingos de Sousa estabeleceu a distinção entre “casados brancos”, “baços” e“pretos”, referindo a existência de crianças nascidas dos casamentos de portuguesescom “molheres da terra”, com “molheres solteiras” e com “escravas”. Mais adiante namesma carta, Sousa explicaria ao rei que a esmola que este mandara oferecer aosmeninos que nascessem naquela cidade, a ofereceria apenas aos “meninos filhos dePurtugueses”, o que contribuía para evitar os muitos abortos que as solteiras, até lá,tinham feito.17

17 É possível deduzir que os filhos de portugueses nascidos fora do casamento acabavam

por ser filhados, tornando-se, também eles, membros do grupo dos “casados”. Empoucas palavras, nas primeiras décadas do século XVI, o fruto destas uniões erasignificativo, e uma sondagem mais sistemática, nomeadamente na colecção do CorpoCronológico, estante na Torre do Tombo, permite-nos identificar um número aindamaior, muito embora para o ponto que aqui interessa explorar, estas ilustrações sejamsuficientes.

18 Da existência destes casais mistos não resultaram, num primeiro momento, questões

jurídicas de maior alcance, talvez por nestes casamentos se verificar a prevalência dodireito pátrio, do elemento masculino (do pater familias) em relação ao elementofeminino do casal, garantindo a sua inserção no ordenamento jurídico da populaçãoportuguesa. O mesmo sucedendo, e com maioria de razão, com os filhos dessas uniões18.Também as teorias da geração de raiz aristotélica (aquelas que marcaram, até tarde, aantropologia cristã), no contexto das quais se considerava o elemento masculino comoo mais decisivo (porque activo) na criação de uma nova vida, e a sua ampla circulaçãono século XVI contribuíam para que essas uniões não fossem, à partida, demasiadoproblemáticas.19

19 Mas não foram de menor importância para os destinos destes “casados” (e para além

das vicissitudes do Estado da Índia que afectaram todos os que aí residiam) um eventodiscursivo e duas circunstâncias sociais.

20 A escrita e publicação das Décadas de João de Barros (cujos livros constituíram a mais

ambiciosa sistematização da memória dos feitos dos portugueses na Índia, tornando-se,por isso mesmo, a sua enciclopédia referencial) foi, a esse respeito, muito relevante. Éque as referências que Barros contém sobre os “casados” do Estado da Índia não só setornaram objectos de discurso, mas também actores da história subsequente e da

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historiografia posterior. Nas Décadas são entretecidas várias considerações sobre estegrupo. Por um lado, Barros não hesita em qualificar os casados como os primeirospovoadores da cidade de Goa, sublinhando o papel que Afonso de Albuquerque tivera naconstituição desta comunidade.20 Albuquerque intuíra que a cidade de Goa podiatornar-se na “metrópoli das mais que ao diante conquistássemos”, “se fosse povoada”, oque não podia acontecer “sem consórcio de mulheres”. Fora nesse contexto queAlbuquerque pusera

“em ordem de casar algua gente português com estas mulheres da terra, fazendocristãs as que eram livres; e outras cativas, que os homens tomaram naquelaentrada e tinham pera seu serviço, se algum homem se contentava dela pera casar,comprava-a a seu senhor, e per casamento a entregava a este como a seu marido”.

21 Segundo Barros, esse processo fora facilitado pelo facto de as “mulheres canaris da

terra aceitavam a nossa gente de boa vontade”, ao contrário das naires do Malabar “queé a mais nobre entre aquele gentio, as quais não podem casar senão com os naturaisbrâmanes”. Em Goa, e ao invés, verificar-se-ia o alvoroço “da gente baixa” em casar-se.Acrescentaria Barros que “a gente baixa [de origem portuguesa] não fazia muitosescrúpulos no modo do casar”, recebendo por mulheres jovens que tanto tinham sidoescravas “de algum fidalgo, de que ele tevera já uso”, como as que eram tiradas “damanada do gentio”, desde que com o dote equivalente. Entre os portugueses que setinham casado, “os de melhor calidade e mais aptos” podiam ocupar os ofícios dogoverno da cidade, assim como os de vereadores, almotacés, juízes, alcaides.

22 Já nas primeiras décadas do século XVI, havia muitos fidalgos a notar, porém, que de

um acordo “mistiço” e “de gente tam vil como era aquela, que aceitava casar per aquelemodo, não se podia esperar fructo que tivesse honra”. As próprias Décadas

testemunhariam que durante o governo de Nuno da Cunha já os “casados”“contrariavam esta guerra, porque não tinham vida sem as terras firmes, e a eles eraesta guerra muito danosa”, e porque, no final de contas, não queriam “peleijar”.21

Anteriormente, D. Henrique de Meneses, capitão de Goa, escrevera a D. João III dizendoque o rei não podia confiar, para defesa daquela cidade, nos portugueses que aíresidiam, pois “nem lhes vejo persumçam domra amtes sam todos hou a mor partecasados com negras que levam ha igreja”.22 O laxismo dos “casados”, mais interessadosna defesa dos seus interesses do que na sua honra e na da coroa de Portugal, tornou-seum tópico com ampla circulação, e com efeitos importantes na percepção que a coroafoi construindo em relação àqueles grupos, afectando, por essa via, a relação entre ametrópole e aquela “colónia” e o tipo de decisões que foram tomadas.23

23 Mesmo assim, Barros continuou a defender o plano de Albuquerque, explicando que

“contra as quais razões destes homens de pouca consideração, a regra do Mundo estavaem contrairo”. Argumentava com o exemplo de Roma, lembrando que as sabinas nãoeram “de mais nobre sangue, que as canaris”, insinuando, ainda, que o povoamento dosAçores, de Cabo Verde, de S. Tomé e da Madeira obedecera a critérios semelhantes, eque aí se esqueceram as origens dos povoadores, o que se fizera “por honra de seusnetos, que hoje vivem e podem já per nobreza contender com um gentil-homemromano”.24

24 Apesar do pragmatismo político de Barros (e de Albuquerque), a verdade é que nem os

portugueses retomaram o ciclo doirado dos romanos, nem as origens dos “casados” deGoa foram esquecidas, e é bem possível que as descrições pormenorizadas sobre asmodalidades de constituição dos “casados” que se encontram nas Décadas, um

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verdadeiro lugar da memória imperial, o qual se revisitava constantemente, possam tertido algum papel na degradação do estatuto deste grupo.

25 Os casamentos de soldados ou de filhos de “casados” com as órfãs vindas do reino,25 a

partir de meados do século XVI, alteraram o padrão inicial dos casados (aos mecânicos,militares de pouca importância, e oficiais de segunda linha, podiam juntar-se, agora,sujeitos de extracção social ou ocupação mais elevada) e o seu grau de proximidade àetnia dos colonizadores metropolitanos. Uma segunda geração de “casados” erapotencialmente mais “branca” e “portuguesa” do que os “casados” da primeiraextracção, introduzindo, no seio da própria ordem local, uma diferença original queteria efeitos futuros. De facto, essa diversidade de origens (a existência, ou não, de umpecado original) começou a ter uma importância cada vez maior entre os sinais dedistinção, a par do papel cada vez mais relevante que a pureza de sangue (e a maneiracomo ela era entendida) adquiriu. De facto, boa parte dos portugueses seiscentistasestabelecidos no Estado da Índia passou a ter um acesso condicionado a ofícios e mercêsque anteriormente não teria dificuldades em alcançar, apenas por descender daquelesgrupos que, nas primeiras duas décadas do século XVI, tinham casado com mulheresindianas de condição baixa.26 Quando identificados como mestiços chegavam a serassimilados, inclusive, à “gente de nação”.

“Sou informado que às órfãs que vão deste reino por meu mandado a essas partes sedilata o dar-se-lhe estado de vida, e quando se lhe dá he com pessoas de poucacalidade, e da nação e mestiços, o que não he por meu serviço.”

26 dizia uma carta régia de 1608, na qual se aconselhava o vice-rei a casar essas órfãs com

pessoas com qualidades “em que caibam as mercês que lhe fizerdes”27. Essaproximidade textual traduzia uma proximidade de facto, pois parte destes sujeitostinha, para além de sangue indiano, sangue cristão-novo.28 Não surpreende, pois, quenesse momento a distinção entre os que eram mais e menos portugueses em função dosangue que possuíam se tenha acentuado, e que a tentativa de forjar um passado

“puramente português” fosse frequente.

27 Os “Interrogatorios das partes, e catidades, que hãode ter as pessoas, a que o VisoRey

Aires de Saldanha hade lançar os habitos de nosso Senhor Jesu Christo, Santiago, e SãoBento de Aviz nas partes da India, as quaes são conformes aos estatutos das ditasordens, e bullas de Sua Santidade”, de 1602, eram bem claros, aliás, em relação aosimpedimentos daqueles que na geração tinham sido “mouros, judeus ou gentios” ou“tinham fama disso”, o que excluía boa parte dos “casados” de ter acesso, pelo menosem teoria, a esse outro sinal de distinção.29 De igual valor à linhagem, e ao parentesco, alinhagem espiritual emergia mais e mais como lugar de diferenciação, mas de mododistinto daquele em que, antes da conversão ao Cristianismo, se verificava a separaçãoentre grupos religiosos.

28 A ordem do rei para que um tal Gonçalo Velozo, vigário-geral de Goa, natural daquela

cidade, não fosse provido no cargo de deão da Sé por fama de ter “raça de Xnº”,contrariando, inclusive, uma indicação favorável da Mesa da Consciência – a instituiçãoque, como o fez notar Fernanda Olival, foi aquela que, mais do que nenhuma outra,testemunhou essas “lutas pela afirmação da pureza” –, é sintomática da situação difícildestes descendentes de portugueses.30 Foram muitas as denúncias, aliás, contra clérigose religiosos nascidos na Índia, com fama de cristãos-novos ou de geração gentílica, eincontáveis os testemunhos que apontam nesse mesmo sentido31.

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29 Mesmo quando ainda não havia normas explícitas que obrigavam a semelhantes

restrições em relação à proximidade da conversão,32 desde os finais do século XVI, asordens religiosas recebiam cada vez menos mestiços e pessoas das etnias locaisconvertidos ao Cristianismo, e raras foram as vezes que estes últimos alcançaramposições prestigiantes no seio dessas ordens. Na década de vinte, os estatutos de purezade sangue foram estatuídos para a maior parte dos benefícios eclesiásticos,33 e éprovável que o mesmo tenha acontecido, por essa altura, com outras instituiçõesapetecidas (caso das misericórdias e outras confrarias).34

30 Ou seja, é possível conjecturar que o que estava a suceder nas Ordens Militares desde

1570 (a institucionalização de requisitos de limpeza de sangue e de ofício para teracesso às habilitações), contaminando no século seguinte um cada vez maior número deinstituições, e recorro novamente aos trabalhos de Fernanda Olival,35 tenha alastradocom grande rapidez aos espaços mais importantes do império, nos quais, porvicissitudes da própria colonização, a limpeza de sangue e a antiguidade da fé cristãeram bens raros e, por conseguinte, muito valiosos.

31 Os poucos exemplos que, à laia de ilustração, foram atrás referidos sugerem que muitos

dos descendentes daqueles que se apresentavam como a primeira geração decolonizadores do império asiático estavam longe da definição régia de “ter calidade”,ocupando lugares próximos, ao invés daqueles que eram ocupados pela gente de“nação” e pelos “mistiços”, e com uma ameaçadora proximidade (dadas as suas origenssociais) daqueles que eram mecânicos, embora, como sublinhou a autora que se temvindo a seguir, “o rigor posto na apreciação deste obstáculo nem sempre foi o mesmo”36.

32 Se a memória dos casamentos mistos (sem dúvida, um lugar de memória “negativo”,

um lugar cuja memória se desejava branquear) e uma nova política matrimonialtiveram influência na posição dos “casados” e dos seus descendentes, a conversãosistemática das populações locais teve implicações ainda maiores.37 Desde logo porque apartir de 1542, o número de “casados da terra”, que em 1514 era pouco significativo,alargou-se substancialmente. Assim se pode interpretar o decreto de D. João III queestendia os privilégios que antes eram exclusivos aos “casados” portugueses a “toda apesoa asy portuguez, como de qualquer outra nação, geração, e calidade que seja que nadita cidade casar, que fizer casa de novo, sendo christão”.38 Parece claro que a ideia dorei português era estimular a fixação da população local, ainda que isso pudessesignificar uma maior proximidade entre esta (os colonizados) e os colonos portugueses(os colonizadores). Sendo que, nesse mesmo ano, os cidadãos de Goa tinham sidoequiparados aos de Lisboa, através deste decreto, os “casados da terra” viam-seinseridos num quadro político e institucional muito interessante.39 Doravante, áreas tãoimportantes quanto a concessão de terras, a isenção de tributos, a isenção de prestaçãode ajuda na guerra, o acesso a alguns cargos públicos contavam-se entre os benefíciosque as populações convertidas podiam gozar por inerência do seu novo estatuto, e nãotardaria até que elas disputassem as mesmas mercês que os demais “casados”.40

33 A partir desse momento, as elites de origem local aspiraram não só a manter a sua

posição na ordem local, como a tornar-se o principal interlocutor da coroa portuguesa,disputando com os colonos portugueses essa posição. Simultaneamente, entre osoficiais que eram da “nação portuguesa” litigava-se pelo lugar de principal mediador daordem imperial. É que, como se disse, a atribuição de boa parte dos principais ofícios aoficiais vindos do reino que os desempenhavam transitoriamente, à maneira de

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comissários, constituiu um modo de contrariar o crescente processo de autonomizaçãodos descendentes dos “casados”, e a estabilização das suas redes de favores e deinteresses, em boa parte autónomos em relação à ordem imperial.

34 Não surpreende, pois, que os portugueses nascidos na Índia, cada vez mais

expropriados dos seus benefícios (e até aspirações) anteriores, se tenham vistoobrigados a explicitar a sua identidade. Foi nesse contexto que atribuíram novosconteúdos ao entendimento dominante de “nação”,41 tornando-o em algo de maissofisticado e complexo42. Ao mesmo tempo que salientavam a diferença étnica e as suaslinhagens portuguesas, obsessão que perdurou até à actualidade, como o denota a tábuagenealógica intitulada Esplendor do Oriente, Genealogia das famílias mais ilustres da India,

atribuída ao conde da Ericeira,43 do século XIX, ou o recente volume editado por JorgeForjaz, Os luso-descendentes de Goa, os descendentes de portugueses que se auto-representavam como brancos exaltaram as suas qualidades adquiridas (o seu mérito), esimultaneamente, a sua qualidade cristã-velha, combinando a “nobreza civil”(adquirida por via da linhagem) e a “nobreza cristã”, e relembro, propositadamente, ovocabulário utilizado pelo bispo de Silves, Jerónimo Osório. Para Osório, a nobreza civilcifrava-se, sobretudo, na natureza e constituía uma “preminência de raça”, a qualresultava de ter “berço e criação em pátria ilustre” e/ou “proceder de geração nobre”.44

A esse propósito, o bispo de Silves acrescentara a relevância da antiguidade “porque aela se deve a selecção daquelas coisas humanas que, pela sua extraordinária grandeza,merecem ser preservadas pela memória”, muito embora não desdenhasse a nobrezarecentemente adquirida, desde que esta procedesse da “fonte da virtude”.45 Ora, a fonteda virtude era Deus, pelo que o “esplendor da verdadeira e suma nobreza” luzia naqueleque aspirava a esse sumo bem. Essa “nobreza cristã” manifestava-se, em primeiro lugar,entre os que tinham nascido de “geração divina”, ou seja, entre os cristãos. Tal comoacontecia com a nobreza civil, também nestes a antiguidade da pertença era um critériorelevante: “Haverá algo de mais vetusto, ou que possamos conjecturar de maiorantiguidade, que o esplendor da linhagem cristã?”, interrogava-se a certo passo do seutratado Osório.46 E muito embora o prelado não quisesse com esta reflexão retirarnobreza aos recém-convertidos que aspiravam a Cristo e atendiam ao “verdadeiro fim”,as intertextualidades dominantes na época, os entendimentos que o termo “linhagem”adquiria, permitiam facilmente concluir que para o bispo de Silves os mais nobres eramaqueles que combinavam a nobreza civil antiga (nascimento em boa pátria e dumafamília nobre) com a antiguidade da sua pertença à comunidade cristã.

35 Ora, essa interpretação colocava os novamente convertidos numa interminável

liminaridade, acusados de terem um conhecimento imperfeito da lei divina e da próprialei natural, o que os impedia de aspirar ao verdadeiro fim e, por isso mesmo, de seremplenamente virtuosos.47 Essa virtude incompleta explicava que não fossem equiparados– para o exercício de ofícios da respublica, por exemplo – aos que eram capazes deapreender, em contrapartida, esses preceitos48.

36 Contudo, a teorização de Osório também era incómoda para aqueles que tinham

nascido em pátria considerada menos ilustre, cuja “raça” era “mistiça” e cuja fé cristãparecia em perigo: os “casados” e os seus descendentes.

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3. A questão das “origens” na nobreza da “naçãoportuguesa”: da meritocracia e do sangue

37 Meio século depois de frei Gaspar de Lisboa ter defendido o direito dos descendentes

dos “casados” acederem a “qualquer honra ou dignidade humana”,49 o igualmentefranciscano frei Miguel da Purificação teceu considerações, a propósito de um conflitoque opôs os franciscanos da Índia aos franciscanos do reino,50 que sintetizam de formamagnífica a situação social goesa e as ameaças que pairavam, no que dizia respeito ahonras e a dignidades, sobre estes grupos.

38 Frei Miguel da Purificação (1589- ?), cujo caso foi já por mim discutido noutros lugares,51 foi um franciscano nascido na Índia, que escreveu um livrinho intitulado Relacion

defensiva dos filhos da Índia Oriental e da província do apóstolo S. Thome dos frades menores da

regular observância da mesma Índia.52 Nesse tratado, que visava proteger os interesses daprovíncia franciscana de S. Tomé da Índia e os franciscanos “portugueses” nascidosnaquelas partes, e que foi concebido como instrumento de argumentação que devia sermanipulado na corte de Madrid e em Roma, em defesa destes frades menores,Purificação reiteraria, mais do que uma vez, que os franciscanos

“fueron los primeros, que tomaron possession de la India Oriental, convertieron, yconvierten innumerables almas; podemos dezir, que a ellos solos propriamente, yno a otro alguno, pertenece el nombre, y titulo de Apostolos del Oriente. y de lacompanhia, y discipulos de Christo”53.

39 Mais explícita referência ao conflito real e simbólico (um conflito de nomes, sobre

quem era, sobre quem estava, efectivamente, na companhia de Cristo) deve ser difícilde encontrar. O que estava em causa, mais uma vez, era o problema das origens e daantiguidade.

40 Como se disse anteriormente, à semelhança dos descendentes da primeira geração de

“casados”, os franciscanos apresentavam-se como a primeira geração deconquistadores espirituais. Como aqueles viam nos jesuítas e outros religiosos, e nosfranciscanos do reino (e até nos franciscanos reformados), newcomers ou outsiders. 54 Sedo seu ponto de vista era inaceitável que estes reivindicassem posições de poderequivalentes às suas, pode-se imaginar o que significava vê-los a ocupar posições cadavez mais elevadas...

41 Ao apresentar-se como Relacion Defensiva, o título do tratado de Purificação já indicia

que nele se procurava suster um ataque vindo do exterior, remetendo-o para o universoda literatura polémica, até panfletária. Para além de se situar no cenário dos conflitosinstitucionais que se verificavam entre franciscanos da Índia e do reino, no livro dePurificação são discutidos os dispositivos de distinção que circulavam na época e queeram partilhados pelos descendentes dos portugueses face às crescentes ameaças queestavam a enfrentar.55 A propósito da questão do governo da colónia, e a quem elecabia, argumentava Purificação que

“os filhos do Oriente desse lugar tão inferior, são mui capazes de governo, e porserem nascidos nesse Oriente não hão de ser excluidos das honrras, e dignidades,antes por essa mesma razão, os que forem adornados de partes, letras,merecimentos, e virtudes, hão de ser muy estimados, e admitidos a todas ashonrras, e dignidades de tal sorte, que hão de ser igoalados com a Eva formado em oparaizo, isto he, com todos os mais que forem nasçidos em lugares superiores,sublimes, e honrrosos”56.

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42 Note-se o recurso retórico: a qualificação do Oriente como lugar inferior serve para

sublinhar o argumento de que os que aí tinham nascido eram capazes de governo esuficientes para alcançarem as honras e as dignidades da ordem imperial, devendo “serigoalados com a Eva formado em o paraizo”. Essa sua capacidade decorria das suaspartes, letras, merecimentos, virtudes (em poucas palavras, da educação), e prova dissoeram os exemplos de “hijos de la Índia” convocados pelo franciscano.57

43 Para Purificação, estes eram mais adornados destas características do que a maioria dos

homens comuns, e nesse contexto, nem a sua linhagem, nem a sua origem (territorial egrupal) eram mais relevantes do que o percurso individual, do que a capacidade de seconstruírem a si mesmos.

44 Esta visão meritocrática e construtivista avant garde foi abandonada noutra parte do

texto, no qual se explicava que as pessoas nascidas em “lugares superiores” eramnaturalmente superiores. Aí, a única vantagem de nascer na Índia era o “mas amor a supatria” (pátria enquanto terra na qual os pais tinham nascido), e esse amor particulartornava tais sujeitos mais capazes de exercerem os ofícios de governo daqueleslugares58.

45 Ou seja, as formulações de Purificação sublinham a tensão que existia entre duas

configurações antropológicas distintas: numa primeira, a personalidade/perfil dosujeito dependia da sua origem/nascimento; numa outra, esses traços tendiam aindividualizar-se em função de outras experiências, e aí, o corpo do sujeito não era,necessariamente, o lugar de perpetuação da sua origem.59

46 Contudo, os problemas que a segunda configuração antropológica colocava à

manutenção da ordem colonial eram relevantes. Por exemplo, como é que se podiadefender os “nascidos na Índia” e a superioridade das suas “partes” face aosportugueses vindos do reino com base em argumentos meritocráticos, sem correr orisco de negar a ordem de relações políticas estabelecidas no próprio império (na qualos portugueses continuavam a ser os colonizadores, independentemente do seu mérito,e os locais, os colonizados)? Como desqualificar os méritos adquiridos pelos indianosque se tinham convertido à religião cristã, muitos dos quais se tinham submetido àeducação cristã desde os primeiros anos, o que potenciava a formação de uma segunda

natureza, virtualmente equivalente à dos nascidos nos lugares “superiores, sublimes ehonrrosos”? Como consegui-lo, quando a própria ordem jurídica tendia, pelo menos doponto de vista formal, a ser inclusiva?

47 Por outras palavras: como garantir a primazia dos “casados” face aos “reinóis” (na luta

pelo poder no interior dos grupos de colonizadores), sem enfraquecer a sua posiçãoface aos “brâmanes” e “charados” que reivindicavam coisas semelhantes usando omesmo tipo de argumentação (no palco que opunha colonizadores e colonizados)?

48 De modo a contornar esta tensão, Purificação foi obrigado a esquecer o argumento

meritocrático e a regressar a territórios bem mais familiares: os do sangue, da cor, daetnia. A propósito dos seus conterrâneos portugueses insistiria que não eram

“negros, como diz a parte contraria; nem ainda mistiços, senão bem nacidos, demadres, e padres Portuguezes, e nobres per geração”60.

49 Em quem e em que é que se baseava a “parte contraria” para dizer que os descendentes

dos portugueses eram negros ou mestiços (“casados negros”, “casados baços”)? Nassupracitadas descrições de Barros? Nas mais recentes de Linschoten, que no seuitinerário não hesitara em escrever que “os descendentes de homens e mulheres

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portugueses parecem ser indianos naturais de cor e feição”?61 Talvez porque, convictode que tais opiniões se ancoravam num senso comum mal informado, Purificação sentiua necessidade de explicar que

“O ser negro, ou mistiço, não rezulta da terra, ou lugar donde se nasçe, senão damistura da geração: e tendo elles esta mistura de negros, bem se segue que se podedizer semenhantes, que são negros, ou mistiços.”

50 Mas, ciente de que as palavras valiam menos do que os actos, ou de que os actos

reiteravam as palavras, de modo a tornar inquestionável a separação intransponível entrecorpos de sangue distinto, mas nascidos num mesmo lugar, ou seja, de modo a marcar adiferença, Purificação (cuja retrato gravado na Relacion defensiva é, também ele,bastante ilustrativo da sua origem mestiça) far-se-ia acompanhar, na sua viagem aRoma e a Madrid, com o tratado por debaixo do braço, por um “Negro Indiano”convertido à religião cristã. Dessa forma – é quase certo que o frade disso estavaconvencido –, todos podiam decifrar e experimentar aquilo que as palavras já tinhamconseguido comprovar. Imagem (Purificação e um indiano, ao vivo) e legenda (otratado) completavam o conceito.

51 A hierarquia social que devia operar nas partes asiáticas do império devia contar, pois,

com esta inquestionável diferença. A invulgar combinação, nos filhos do Oriente, nosnascidos na Índia, de merecimentos, virtudes, amor à pátria, religião antiga e sanguelimpo, colocava-os no vértice superior da hierarquia social. No plano inferior,evidentemente, situar-se-iam os indianos de sangue e de geração, e a meio, os mestiços.

52 Resolvido o possível conflito de interesses entre filhos da Índia mas plenamente

portugueses e indianos convertidos (e, por isso mesmo, semelhantes a portugueses),restava explicitar, de forma mais conclusiva, a vantagem em relação aos portuguesesnascidos no reino.

53 Ora, para Purificação, os filhos da Índia não só tinham mais mérito e virtudes do que

aqueles, para além de terem o mesmo sangue, como tinham nascido em “berço ilustre”,“porque nascem em o Oriente, onde o Sol nasce, e participam mais da virtude”. Maisuma vez em contradição consigo mesmo, Purificação optava por convocar, agora, umtopos que circulava na tratadística cristã desde o século III e que tinha raízes na poéticagrega, o qual remetia para uma hierarquia espacial e antropológica do globo terrestreque valorizava simbolicamente, e em contrapartida, os territórios asiáticos.

54 Em suma, a Relacion defensiva prolongava no tempo e no espaço (pois a escrita, e a

escrita impressa, tinham essa importante função de fixação da memória) a indignaçãosentida por estes sujeitos que se viam cada vez mais discriminados em virtude do lugaronde tinham nascido, e que, procurando contrariar as razões dessa discriminação,acabaram por reflectir sobre a sua própria identidade, procurando argumentar queeram cumulados das qualidades identitárias mais apreciadas na época: a nobreza dageração (linhagem e pátria), as virtudes adquiridas, a nobreza cristã. Nãosurpreendentemente, o livro de Purificação foi publicado em Barcelona, na metrópole,e não em Goa, onde havia prelos. O auditório a quem se dirigia era, em primeiro lugar, ometropolitano, aquele que, pensava o frade menor, tinha o poder de alterar a ordemcolonial em Goa. Tudo com a protecção benfazeja dos astros, evidentemente!

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4. Astros, terras, climas e outros universos dediferenciação

55 O recurso à, ou a recusa de uma tópica astrológica, climática e médica, como forma de

legitimação e/ou contestação argumentativa convida a reflectir, ainda que de umaforma sucinta e assumidamente impressionista, sobre os seus efeitos políticos. O queme interessa perceber, aqui, é a maneira como esta tópica participou na dinâmica dasrelações sociopolíticas na ordem colonial indiana, e reflectir sobre o que a sua presençaem textos escritos por sujeitos nascidos na colónia e aí educados indiciava acerca daconstituição cultural daqueles territórios, e da enciclopédia de saberes, da biblioteca, aque as suas populações podiam recorrer.

56 Quem discriminava os descendentes dos portugueses, acusando-os de se terem

indianizado (étnica e culturalmente), convocava tópicos retirados da tradiçãoptolomaica, de acordo com os quais as constelações celestes tinham influência na Terra,sendo que os astros que regiam os trópicos (e a Índia era tomada como uma regiãosubtropical) tinham efeitos negativos sobre o carácter das pessoas. 62 Acreditava-se, aomesmo tempo, que o clima destes lugares afectava a sua constituição física e moral,pela interdependência que existia entre as potências dos astros, as terras e os humoresdos homens. A essa concepção cósmica do corpo humano (“um ser no meio de outrosseres que influencia e dos quais recebe influências”),63 acoplava-se a ideia de que cadacorpo combinava forma (a alma infundada por Deus) e matéria. Essa relação dependiado equilíbrio entre humores (frio, quente, seco e húmido) – o modo como o corpointervinha na mente – e os espíritos (vitais, naturais e animais) – através dos quais amente intervinha no corpo. Dessas múltiplas combinações possíveis derivavamnaturezas (físicas e morais) distintas, cujo condicionamento natural podia seridentificado, muito embora deixando sempre margem para o livre-arbítrio (pelo menosem teoria).64

57 Em suma, todos os corpos participavam, de uma ou de outra forma, da harmonia

cósmica, e o cosmos influía e condicionava o modo de ser de todos os corpos. No tratadoThe Anatomy of Melancholy, da segunda década de Seiscentos, o inglês Richard Burtonescreveria, a esse propósito, e reproduzindo a tese de Caetano, que “the heaven is God’sinstrument, by mediation of which He governs and disposeth these elementary bodies”.65 No item que dedica à influência das estrelas sobre o corpo humano, Burton elenca umnúmero considerável de autores que durante o século XVI a tinham defendido. Osmesmos princípios aparecem no bem menos ambicioso Lunario e Prognóstico Perpétuo deJerónimo Cortés, de inícios do século XVII, no qual a articulação entre cosmos, terras esujeitos chega ao detalhe de abordar as posições (e possibilidades) de várias cidades detodo o mundo, para além de, claro está, identificar os sujeitos em função do seuhoróscopo.66

58 Como foi magnificamente demonstrado por Luís Miguel Carolino, muitos destes topoi

faziam parte, ainda que de forma nem sempre consensual, da enciclopédia de saberesdos portugueses da época moderna, emergindo em textos directamente relacionadoscom este universo conceptual,67 mas também reaparecendo, quase espontaneamente,na mais variada literatura, nos lugares mais inesperados.

59 Por exemplo, no terceiro capítulo do Roteiro de Goa a Diu, redigido pelo humanista,

governador e vice-rei do Estado da Índia, D. João de Castro, as qualidades e virtudes dos

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céus e dos seus astros, e o modo como estes influenciavam a vida dos entes terrenos,eram dados como adquiridos:

“e o que brevemente se pode dizer delles he que os ceos e as estrellas dão quasi todaa virtude a região elemental, pera se gerarem e criarem todas as cousas do mar, daterra e de todo este mundo inferior (...)E quanto aos outros planetas, cada hum temsuas particulares influencias”.68

60 O mesmo João de Castro que, noutros momentos, argumentaria contra as teorias

ptolomaicas, ao sustentar que os portugueses tinham provado que a zona tórrida erahabitável (nela se encontrando, inclusive, sociedades auto-organizadas), não hesitavaem afirmar que entre o Trópico de Câncer e o Círculo Árctico (mas já não entre oTrópico de Capricórnio e o Círculo Antárctico) se situavam as melhores terras domundo (o que abrangia, na totalidade, os territórios europeus),69 reproduzindo, por essavia, o discurso clássico sobre estas matérias.

61 Note-se que esta fundamentação discursiva encaixava perfeitamente na teoria

estatutária, segundo a qual, a cada comunidade cultural capaz de se auto-organizarcomo sociedade política correspondia um direito próprio, mas que este variavaconsoante o “estado cultural” dessa comunidade (e dos seus homens).70 Era de esperar,pois, que esse estado cultural fosse menor nas comunidades que se situavam entre oTrópico de Capricórnio e o Círculo Antárctico, ou nas suas proximidades, ou seja, entreo Trópico de Capricórnio e o Trópico de Câncer. E aí se encontravam praticamente todoo continente africano, o Brasil e a Índia, os territórios onde os portugueses tinham amaior parte das suas colónias.

62 É certo que existia um discurso, com raízes na tradição poética grega, retomada na

patrística cristã, que aí procurava identificar a localização do jardim do Éden. No séculoIII, Santo Hipólito afirmara que o Paraíso “é um lugar do Oriente e uma regiãoescolhida”,71 enquanto outros declarariam que “esta parte da terra entre todasvenerável é aquela que o Sol ao erguer-se ilumina primeiro”.72

63 O facto de o próprio Santo Agostinho ter adoptado, no De Genesi ad Litteram , esta

interpretação consagrou este topos como elemento incontornável das paisagens daimaginação cristã ocidental. Registado na cartografia medieval, transposto para asterras asiáticas, sobretudo através das origens e viagens intermináveis (nestorianas/asiáticas e etíopes/africanas) do Preste João73, a ideia de um paraíso asiático difundiu-se, também, através dos textos de Marco Polo e de Jean de Mandeville, onde o êxtasepelas maravilhas da Ásia, e mais concretamente, da Índia, era inquestionável. Nãosurpreende reencontrar nos discursos dos viajantes quinhentistas portugueses, bemcomo da generalidade dos actores imperiais, emanações destes outros tópicos. A Índiatambém podia ser descrita como possuindo

“os mais puros, excelentes ares do Mundo, fructas, águas de fontes e rios, asmelhores e mais salutíferas de toda a terra, pão, cevada, todos os legumes, todas ashortaliças, gado grosso e miúdo, que pode sustentar o mundo, tudo o maismaravilhoso”74.

64 E o Concão, a região da Índia onde se encontrava Goa, podia ser caracterizada

“mais que outra alguma da India grossa e abundosa de mantimentos e outrosmuitos e diversos frutos; produze pimenta e gemgivre que abasta a terra. Assi perela como alem do Gate sam os campos cubertos de canafistola. Nam se lembram oshomemis [sic] aver aqui fome estrelidade”.

65 Já a costa do Decão – continuava D. João de Castro – era “a mais formosa e nobre de

todo o universo”.75

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66 Imagens análogas povoavam a literatura estrangeira, e não surpreende encontrar no

Theatrum Mundi, de Abraham Ortelius, essa imagem de que a Índia era lugar fértil,abundante, rico, com pedras preciosas e especiarias, com gente com grandelongevidade, com um número infinito de cidades, portos, reinos, comércio, “cheveramente si può chiamare un terrestre Paradiso”.76

67 É certo que o facto de esse local idílico, cheio de riquezas e graças divinas, ser habitado

por gente perversa77 legitimava a presença imperial cristã, os seus justos títulos, e issomesmo seria lembrado por frei Paulo da Trindade, na sua Conquista Espiritual do Oriente:

“Quem considerar as muitas riquezas e cousas preciosas que o autor da natureza,Deus nosso Senhor com tão liberal mão repartiu com todas estas terras do Oriente,não poderá deixar de se maravilhar de ver quão mal os naturais dele pagam a seuCriador esses bens que dele têm recebido, pois vemos que, em lugar de terem deleconhecimento e receberem a sua Fé e guardarem a sua lei, tão longe vivem de tudoisso, que nem ainda parecem ter o lume da razão(...)”78.

68 Compreende-se, assim, de que modo é que o discurso que valorizava positivamente a

natureza indiana e desqualificava as suas populações convivia harmoniosamente comaquele outro que sublinhava os efeitos negativos que tais céus, tais terras e tais climastinham sobre a natureza dos seus habitantes, quaisquer que estes fossem. De onde querque estes fossem originalmente oriundos. A acumulação de argumentos, ainda quecontraditórios entre si, reforçava a opinião.

69 Desde Garcia de Orta, o mais importante naturalista português do século XVI, residente

em Goa entre 1543 e 1563, que se considerava que o clima da Índia era propício àdegenerescência dos corpos e à produção de determinados fluidos e odores. Estesinclinavam os indianos para Vénus, ou seja, para o planeta feminino por excelência,regente da sensualidade, o que, por si só, constituía um princípio de inferioridadeantropológica. Recorde-se que, já nos finais do reinado de D. Manuel, o bispo de Dume,o dominicano D. Duarte Nunes, tinha advertido o rei de que “todos Portuguezes mudãonessa terra a calidade, e Nação, e se fazem conformes á terra no modo de viver, que nãoquerem senão seguir a sensualidade”79. O mesmo discurso subsistia nos finais do século(e é inevitável recordar a Ilha dos Amores camoniana e a imagem que esta replicou para aposteridade, e respectivas associações mentais, a delimitação de um campo semântico)e no século seguinte, e era invocado no momento de justificar algumas situaçõesconcretas.

“Con los continuos calores y mucha libertad, es muy contraria al spiritu, y tiene loscuerpos y espiritus muy debilitados y flacos de tal manera que con pequeño trabajose ahoga el espiritu”,

70 e isso obrigava a que, de acordo com a avaliação aqui feita pelo padre Alessandro

Valignano, nas últimas décadas do século XVI, os missionários ocidentais fossem muitodisciplinados e virtuosos e “bien mortificados en sus passiones”, de modo a suportaremos desafios que o clima (e as gentes) lhes colocavam80. Valignano (mas poderia ter sidoum outro missionário, ou oficial imperial ou colonial a fazê-lo) convocava a teoriahipocrático-galénica dos humores e das compleições, segundo a qual os temperamentosnegativos do corpo podiam ser estimulados por determinadas condições climatéricas.Efectivamente, pela mesma altura, uma convicção semelhante era expressa por Diogodo Couto, no Soldado Prático. Também aí Couto, o mesmo Couto que elogiara a floraindiana, diria agora que a Índia tinha uma má natureza e os seus homens umainclinação infernal, chegando mesmo a desabafar: “não sei que tem a Índia, e debaixode que planeta está, que assi muda os pensamentos e desejos bons, que é pasmar”81.

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Orta referia Vénus como o astro responsável pelas inconstâncias indianas, e Coutoatribuía a um planeta inominado o princípio causal das metamorfoses que os homensali experimentavam.

71 Em todos estes enunciados entrevê-se a mesma ideia. Climas e humores (e

personalidades) entrecruzavam-se com as configurações celestes, pré-determinandohierarquias de civilidade. Nesta, a húmida e exuberante Índia, e os pouco intelectuais esensuais indianos, podiam ser justamente inferiorizados. Talvez não por meracoincidência, mas sim enquanto sintoma de convicções mais alargadas, para as quaisem muito contribuiria, Jean Bodin, primeiro nos Les Six Livres de la République, e depoisno Théâtre de la Nature Universelle, sintetizou as teorias que defendiam o determinismodos climas, localizando a Europa na zona mais beneficiada por estes, a zona maispropícia à ordem e à harmonia. A mesma ideia ressurgiu, décadas depois, no tratado deLa Sagesse, de Pierre Charron, no qual se sublinhava, precisamente, a desigualdade entreos homens que resultava da distribuição climática82. Não muito diferentemente do queJoão de Castro já expusera, Bodin explicou que os homens se encontravam divididos emtrês áreas geográfico-climáticas: a primeira, mais temperada, incluía a Europa, o Norteda Ásia e o Norte da América; a segunda, fria, incluía a zona árctica e ántárctica, e aterceira, a dos trópicos, ou seja, a África e a Etiópia, a maior parte da Índia, as Molucas,Java e a Taprobana. A este princípio de divisão correspondiam diferentes histórias,diferentes leis, diferentes sociedades, as quais podiam ser alinhadas e hierarquizadas deacordo com o seu grau de maior ou menor civilidade – e esta era determinada, também,pela geografia dos lugares, montanhosos ou planos, temperados ou tropicais83. Sempre,porém, a Europa, excedia “todas em nobreza, virtude, gravidade, magnificência equantidade de gente política”, e recorro agora às palavras do dominicano Frei João dosSantos, missionário na Índia, nos inícios do século XVII, e autor da Etiópia Oriental, de1609, tratado que também se inicia com a descrição das diferentes partes do mundo.84

72 Clarificava-se, dessa forma, esse princípio de divisão que atribuía à Europa qualidades

masculinas, e às colónias por ela dominadas (neste caso a Índia), atributos femininos. Àsemelhança do que acontecia nos princípios de geração, nos quais era o homem oprincípio activo, também nas relações políticas se esperava que a acção, a capacidade decomando, se encontrasse entre os europeus nascidos na Europa.

73 Tudo isto (que se declinava, em última instância, das configurações celestes) justificava

a subalternização antropológica e jurídica das populações indianas, o domínio políticocristão e a manutenção da relação colonizador-colonizado. Mas o recurso a essaexplicação como argumento retórico acabava por afectar a percepção e a posição daspopulações nascidas nos territórios do império, necessariamente afectadas pelasposições dos astros e pelos climas daquelas terras. Tal como os colonizados strictu senso,também às elites coloniais descendentes de populações metropolitanas se atribuíamqualidades similares.85 Essas intertextualidades degradavam, para quem nelasacreditava, a qualidade originária desses sujeitos, situando-os numa rota descendentena hierarquia social imperial.

74 Muito embora circulasse o discurso que reiterava que “assy tão portugues he o q/ nasce

e vive em Goa ou no Brazil, ou em Angola, como o que vive e nasce em Lisboa”, nascerna Índia passara a ter, como se viu, consequências cruciais para o destino destes grupos,manifestadas na consolidação do termo “reinol” em oposição ao enunciado “nascido naIndia”86.

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75 Algumas famílias com fama de fidalgas tinham caído em pobreza, inclusive, devido ao

seu estabelecimento na Índia. Pelo menos essa é a impressão que se retira da leitura deuma carta régia de 25 de Março de 1688, na qual se sondava sobre o regime e a naturezados aforamentos na Índia. Nessa missiva refere-se que durante o governo do conde deAlvor, os foreiros tinham sido obrigados a nomear a segunda vida nas suas filhas“tendo-as que cazarão com Portugueses benemeritos nascidos no Reino”. Essa decisãoprovocara uma forte reacção por parte dos nascidos na Índia, os quais não hesitaramem lembrar a coroa de

“que tão bem erão portugueses, e muitos deles Fidalgos, e posto que houvessemnascido na Índia procedião de Paes e Avos que vierão do Reino, e que por este modoficarão pobres, e impossibilitados, e não acharião mulheres com [quem] cazar, o queera prejuízo da propagação, e padecerião fomes, e necessidades”87.

76 Nesse “tão bem erão portugueses” entrevê-se o estigma a que estavam a ser sujeitos os

“casados”, e um trecho do Giro al Mondo, de Giovanni Careri, reforça esta ideia. Oviajante italiano observou que as mulheres brâmanes cristãs preferiam casar-se com osportugueses vindos do reino, desdenhando os que tinham nascido localmente, dando aentender que tal acontecia por estes últimos terem sangue misturado com gente demenor valia88. Os brâmanes – ou aqueles grupos que se apresentavam como tal, e eramsocialmente reconhecidos como o sendo – tinham alcançado um inegável prestígio aosolhos da coroa portuguesa e reconheciam nos fidalgos reinóis uma nobreza semelhanteà sua (com fortes características endogâmicas, onde a pureza de sangue era umelemento central), o que permitia este tipo de uniões matrimoniais89.

77 Enfim, o princípio da homogenia social desenhara no império regras inesperadas,

distanciando aqueles que, à partida, se diziam e se sentiam próximos: os portuguesesnascidos no reino e nascidos nas colónias. Ao evocarem o sangue que corria nas veias ea memória de uma endogamia geográfica, este tratado franciscano é um fragmento quedenuncia a perturbação do sentimento de si que os portugueses nascidos na Índiaestavam, por isso mesmo, a experimentar – obrigando-os a reflectir sobre, a pensar asua alteridade, a sua identidade, a delimitá-la, a alterá-la, a produzi-la.

78 A similitude entre este tipo de situações e aquelas que foram identificadas por Jorge

Cañizares Esguerra no estudo “New world, new stars”90 (ou, de algum modo, porGabriela Vallejo, neste mesmo volume) é notável, até pela cronologia, convidando aleituras que atravessam os impérios ibéricos, e estabelecem articulações entre estespara períodos anteriores aos da união ibérica. O caso de Esguerra, porém – tal como ode frei Miguel da Purificação –, ocorre no arco cronológico dessa união política, o quepode, por sua vez, indiciar outras situações (por exemplo, a possibilidade de uma redede circulação de informação entre os franciscanos estabelecidos nos territórios deambos os impérios). Aí se refere que a par de vários crioulos letrados de Lima, umfranciscano, Buenaventura de Salinas y Córdova, escreveu um tratado com umaargumentação muito próxima daquela desenvolvida por Miguel da Purificação, destavez em defesa dos interesses dos franciscanos espanhóis nascidos no Peru, tendotambém ele partido para Roma para a defender, no ano de 1640. Mais do que umacuriosidade, do que uma coincidência, imagino que outras conexões emergiriam, casoencontrá-las fosse o desiderato deste ensaio. De momento importa realçar, apenas, arecorrência de um mesmo tipo de raciocínio entre grupos sociais que estavam a viverexperiências similares em geografias imperiais distintas, mas ainda sob a tutela políticada Monarquia Hispânica.

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79 Mas, como sugeri, também é possível que essa semelhança intelectual e social esteja

relacionada com o timing das experiências imperiais ibéricas, sobretudo nos territóriosconsiderados pelas metrópoles como mais centrais (casos do México e do Peru, de Goa edepois do Brasil), e, em particular, com as cronologias da conversão ao Cristianismo eevangelização das populações locais, das suas elites. Aliás, no período pós-restauracionista é o espaço brasileiro que irá albergar tematizações deste tipo, aí sedestacando as Notícias do Brasil, de Simão de Vasconcelos, e a Nova Lusitânia, deFrancisco Brito Freire. No caso goês, a potencial equalização política que a conversãodas populações de origem local encerrou – resultante da assimilação entre generatio

(nascimento) e regeneratio (baptismo) como via de naturalização política – despertouentre os descendentes dos colonos portugueses dispositivos de distinção queprocuraram contornar os vínculos especiais que constituíam a nova comunidade, paraassentarem sobre dispositivos de natureza biológica (a etnia, a própria nação) asmatrizes da diferenciação. Ou seja, o poder invasivo da religião suscitou, entre oscristãos-velhos, tematizações da identidade que procuravam conter as aspirações dosgrupos locais. Nesse contexto, a linhagem passava a ser equivalente à nação. Para alémdo sangue de família, o sangue “português” surgia como dispositivo de distinção.

80 Por seu turno, a necessidade de reagir contra os argumentos retirados das teorias

climáticas e astrológicas dominantes, utilizados para desvirtuar todos aqueles quetinham nascido em lugares próximos dos trópicos91, potenciou uma outra tematização.A par de uma impressionista “astrologia patriótica”, este porta-voz dos nascidos naÍndia oscilava entre a recusa do determinismo climático e a exaltação climática,geográfica, da patria em que tinham nascido. Sublinhando, ao mesmo tempo, ainvariabilidade do sangue e a sua invulnerabilidade a condicionantes externas, taiscomo a latitude ou os céus sob os quais se vivia.

81 Aos poucos, o sentimento de si/a consciência de si destes sujeitos foi-se alterando. No

palco de Goa, viriam a reivindicar-se, mais tarde, como os melhores goeses (porquedescendentes dos portugueses), subalternizando as elites de origem local que, com baseem pressupostos e argumentos distintos, mas igualmente retirados da mesma bibliotecametropolitana, afirmavam exactamente a mesma coisa.

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NOTAS

1. 1 Veja-se, por exemplo, o excelente livro de Jean-Claude Schmitt, 2003, sobre a autobiografia de

um judeu medieval convertido ao cristianismo; mas também, e numa perspectiva pós-colonial, Of

Revelation and Revolution de Jean e John Comaroff, 1991 e 1997.

2. E refiro aqui, apenas, pelo seu carácter emblemático, os livros de Jack Goody, 1986, e de

Elizabeth Eisenstein, 1993.

3. Castro-Caldas, A., Petersson, K.M., Reis, A., Stone-Elander, S. & Ingvar, M., 1998; Castro-Caldas,

A., Cavaleiro Miranda, P., Carmo, I., Reis, A., Leote, F., Ribeiro, C. & Ducla-Soares, E., 1999; Castro

Caldas, A., Reis, A, 2000.

4. Damásio, 1999, cap. 3.

5. A reflexão que aqui se propõe inspira-se nas discussões em torno da articulação entre religião e

política e o seu papel na constituição da nação, tal como elas foram desenvolvidas por Benedict

Anderson (1994), e como têm vindo a ser discutidas por Peter van der Veer (1996), Gauri

Viswanathan (1995 e 1996), mas também, e sobretudo, por Jean e John Comaroff (1991, 1996).

6. Xavier, 2005.

7. Dalgado, 1919-1921, vol. 1, p. 355.

8. Dalgado, Sebastião, 1919-1921, vol. 1, p. 355, vol. 2, p. 480.

9. Dalgado, Sebastião, 1919-1921, vol. 1, p. 225; vol 2, pp. 51-52, 381. Bluteau, Rafael, 1716, vol. 5.

10. Bluteau, Rafael, 1712, vol. 2, pp. 187-188.

11. Cit. por Boxer, 1988, pp. 64-65.

12. Subrahmanyam, 1995.

13. Para além dos estudos de Sanjay Subrahmanyam, sobre os “casados” vejam-se também

Charles Boxer, 1985, pp. 119-135; Luís Filipe Thomaz, 1994; Maria de Jesus Mártires Lopes, 1997;

M. N. Pearson, 1991.

14. APO, F 2, pp. 120 e ss.; F 5, I, pp. 12-16.

15. ANTT, CC, P. 2, Mç. 3, n.º 154.

16. ANTT, CC. P. 1, Mç. 17, n.º 27.

17. ANTT, CC, P. 1, Mç. 17, n.º 30.

18. Hespanha, 1993, p. 273 e ss.

19. Aristóteles parte da teoria hipocrática, segundo a qual o feto era o produto de elementos

masculinos e femininos, mas retira a estes últimos a essência da vida (Darmon, 1977, cap. 3). Era o

homem o princípio activo da geração, pelo que este elemento era o elemento essencial para a

definição do próprio sujeito enquanto sujeito social.

20. Barros, João de, 2.ª Década, livro 5, cap. 2, p. 198.

21. Barros, João de, 4.ª Década, l. 7, cap XI, pp. 470-473; l. 8, cap. XV, p. 550.

22. Cit. em Subrahmanyam, 1998, p. 369.

23. Mais uma vez, os trabalhos de Subrahmanyam são centrais para estudar estes aspectos, para

além de Bryan de Souza e Anthony Disney.

24. Barros, João de, 2.ª Década, L. 5, cap 11, pp. 242-246.

25. Coates, 1998; Subrahmanyam, 1994, pp. 16-17.

26. Olival, 2002, maxime.

27. DRI, I, pp. 191-203 (é meu o sublinhado), e também DRI, I, pp. 126-128. Recorde-se, a esse

propósito, o comentário de Diogo do Couto, no Soldado Prático, a propósito dos casamentos entre

os soldados e as mulheres cor de linhaça, já referido no capítulo 4.

28. Veja-se, neste mesmo volume, o artigo de Bruno Feitler.

29. APO, F 6, p. 739.

30. Aranha, 1731, III, fl. 53v; Olival, 2001, p. 284. Seria interessante comparar estas com as

experiências que, pela mesma altura, estavam a ocorrer na Nova Espanha, onde a primeira

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geração de colonizadores se via crescentemente despojada da posição privilegiada que,

anteriormente, ocupara (Bernand & Gruzinski, 1992, II, pp. 140 e ss.).

31. O Livro de Visita da Inquisição de Goa, de 1632, é muito rico em informação sobre situações deste

tipo.

32. Entre os franciscanos, por exemplo, é no pontificado de Gregório XIV que se confirma que

descendentes de judeus, hereges e mouros até quarta geração não deviam ser admitidos nas

fileiras da ordem, e com Sisto V a proibição estende-se aos “gentios” (Deos, 1689, pp. 176-178).

Mas já antes disso a prática se impusera entre os Menores.

33. Um decreto da Mesa da Consciência e Ordens refere, precisamente, o cuidado que se tinha de

ter em relação a esses aspectos (Aranha, 1731, III, fl. 16).

34. No seu estudo sobre o convento de Santa Mónica, em Goa, Francisco Bethencourt refere, a

certa altura, a separação, pelo vestuário, das professas de origem portuguesa “pura” e aquelas

que tinham “sangue infecto” (Bethencourt, 1994). Separações semelhantes verificavam-se,

crescentemente, nas fileiras dos soldados “brancos” e “pretos”. E muitos seriam os testemunhos

que se poderiam destrinçar a este nível.

35. Olival, 2001, pp. 286-289.

36. Olival, 2001, pp. 359 e ss.

37. Xavier, Ângela, 2005, passim.

38. APO, F 2, pp. 115-116.

39. APO, F 2, pp. 115-116; F 5, I, pp. 390-392; APO, F 2, pp. 48-69, pp. 120-122; F 5, I, pp. 386-387; F

5, III, pp. 979, 983-984, 987, 1157-1158.). Francisco Suarez sintetizaria, décadas depois, o

pensamento dominante na época, e este era o de que a lei devia estar conforme à religião, e

mudando-se o rito (a fé) deve mudar a lei; as leis civis não podem estar em contradição com a

religião.

40. Seminal, a esse propósito, foi o artigo de Hespanha, “Os Áustrias e a modernização da

constituição política portuguesa” (Hespanha, 1989).

41. Tal reacção terá estado associada à verificação prática, por parte dos portugueses, de que a

sua identidade radicava, afinal, noutro lugar que não apenas a religião – em relação a estes, a

religião deixava de ser o garante da diferença. Nesse sentido e entre os portugueses, o ímpeto à

diferenciação com base em critérios culturais e geográficos – e de um determinado entendimento

da própria religião – terá encontrado um catalisador nesse momento de abertura religiosa

formal, nesse momento assimilador. Não surpreende, por isso mesmo, que se tenha tornado tão

difícil de efectivar uma teórica identidade entre comunidade cristã e comunidade política que as

normas jurídicas propiciavam. Sobre estas questões, na monarquia hispânica, veja-se o livro de

Tamar Herzog (2006).

42. Joerg Fisch salienta, precisamente, os perigos sociais inerentes à equalização jurídica

supostamente contida na conversão (Fisch, 1992, p. 30).

43. ANTT, ML 1952.

44. Osório, 1992, pp. 92-93.

45. Idem, pp. 105, 129.

46. Idem, 1992, p. 190.

47. Cf. Xavier, 2006b.

48. No De Legibus, Francisco Suarez não hesitaria em colocar a questão do seguinte modo: “a lei

natural é única na sua essência para todos os homens, mas nem todos têm um conhecimento

digamos, completo dela” (Suarez, De Leg. II, 8, & 5), e isto depois de ter assinalado que mesmo os

não-cristãos tinham inculcada no seu coração essa lei natural.

49. In Studia, vol. IX, p. 83.

50. Veja-se, a esse propósito, Xavier, 2006c.

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51. Idem, e Xavier, 2006a. Neste estudo (2006c), a convocação do caso de Miguel da Purificação

cumpre objectivos bem diferentes daqueles que aqui se desenvolvem. Já o estudo em italiano

(2006ª) constitui uma versão anterior deste trabalho.

52. Cf. Devi e Seabra, 1971, pp. 117-118.

53. Vida Evangelica..., p. 190.

54. Elias, Norbert, 1992, “Introduction”.

55. Para além dos casos já elencados, um outro é igualmente significativo. Refiro-me à tentativa

desenvolvida pelos “Frades Dominicos mestiços”, os quais procuraram constituir uma província

dominicana separada da província de Portugal, o que “se mandou impedir à Roma” (Aranha,

1731, III, fl. 69).

56. Purificação, 1640, fls. 57v, 31 v.

57. Purificação, 1640, fl. 13.

58. Bouza Alvarez, 2001; Schaub, 2002.

59. Gélis, 1999, pp. 307-309.

60. Purificação, 1640, fl. 22v. Sobre a relação semântica entre pureza de sangue e nobreza, e as

suas consequências na conformação das experiências coloniais veja-se Zuñiga, 1999, passim.

61. Linschoten, 1997, p. 147.

62. O melhor estudo sobre estas questões é o excelente livro de Luís Miguel Carolino (Carolino,

2003).

63. Jacob, 1970, p. 30; Joaquim, 1983, p.34; Gossiaux, 1993, p. 109.

64. Darmon, 1977, pp. 137 e ss.; Gossiaux, 1993, pp. 130 e ss. Eram tão dominantes estas

convicções que se defendia, inclusive, que o momento do dia em que a cópula generativa tivera

lugar – e as conjunções astrais verificadas nessa altura – tinha influência sobre as características

morais do futuro sujeito.

65. Burton, The Anatomy of Melancholy, I, p. 206.

66. Cortés, Jerónimo, 1980.

67. Carolino, 2003, partes I e II.

68. Castro, vol. 2, p. 26.

69. Castro, vol. 2, p. 81. Note-se que estes saberes circulavam, com intensidade, na corte

portuguesa, e nos discursos mais diversos – veja-se, à laia de ilustração, os capítulos “Da

liberdade e dos louvores do Direito Civil e da Matemática” e “Da filosofia activa e contemplativa,

e qual delas convém mais ao perfeito príncipe”, na Imagem da Vida Cristã , de Fr. Heitor Pinto

(1563).

70. Para Suarez, a ignorância pode ser uma razão explicativa da introdução de leis contrárias à lei

natural por parte de alguns povos, e, dessa forma, da inferioridade do seu direito (De Leg.II, 8, &

6).

71. Delumeau, 1994, p. 25.

72. Delumeau, 1994, pp. 19-20.

73. Não surpreendentemente, os cronistas da Etiópia, embora não a afirmem como locus do

Paraíso, referem constantemente a tradição que o localizava no curso do rio Nilo (v. Teles, 1989,

p. 24).

74. Couto, 1980, p. 215. A propósito deste imaginário, veja-se, naturalmente, o livro de Jean

Delumeau, 1994.

75. Castro, 1843, pp. 6-7.

76. Ortelius, 1683, p. 218.

77. Delumeau, 1994, p. 107. São inúmeras as fontes e vasta a bibliografia sobre o enriquecimento

de conhecimentos da história natural da Ásia, África e América no contexto da expansão

portuguesa e da sua produção escrita e cartográfica, e o modo como estas se relacionaram com as

tradições do Almagesto, da Geografia de Ptolomeu e de outros textos antigos. Para abordagens

gerais, veja-se, Albuquerque, I, 1986; Dias, 1988.

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78. Trindade, 1962, I, cap. 9.

79. A sincronia destas reflexões e propostas com aquelas que, na mesma época, estavam a ser

formuladas no México não pode ser ocultada (Bernand & Gruzinski, 1991, I, p. 398).

80. DHMPPO, XII, pp. 575-576. Era comum pensar que à humidade e ao calor correspondiam

temperamentos determinados pelo coração (ou seja, pelos sentidos), e a estes determinados

perfis psicológicos. V. Gossiaux, 1993, p. 131.

81. Couto, 1980, p. 37, p. 104.

82. Gossiaux, 1993, pp. 136-142; Hogden, 1971, pp. 279 e ss.; Dupront, 2001, pp. 67-68.

83. Gossiaux, 1993, pp. 140-142, 159.

84. Santos, 1989, I, p. 10.

85. A referência a Foucault e à teoria das quatro similitudes continua a ser, a esse propósito,

incontornável (Foucault, 1991, pp. 73-81).

86. BA, 51-VI-54, fl. 73.

87. Lobato, 1985, p. 465.

88. Guglieminetti, 1976, p. 700.

89. A esse nível, o tratado de António Frias é, sem qualquer dúvida, emblemático das estratégias

de construção/cristalização identitária desenvolvidas por estes grupos (Frias, 1701). V. Xavier,

2005.

90. Cañizares Esguerra, 1999, passim. Também, e mais uma vez, Gruzinski, 1988; Bernand &

Gruzinski, 1992, II, cap. 6.

91. Cañizares Esguerra, 1999.

RESUMOS

A partir de uma leitura contextualista de um tratado argumentativo redigido pelo frade

franciscano frei Miguel da Purificação, na quarta década do século XVII, e vinculando-me a

alguma historiografia que, nas últimas décadas, repensou as articulações entre religião e

imaginação política em contexto imperial, procuro discutir, neste artigo, alguns dos efeitos que o

processo de conversão ao Cristianismo das populações de Goa teve sobre as identidades dos

portugueses aí estabelecidos. Não são apenas as posições que os diferentes grupos ocupavam na

ordem colonial, mas também a maneira como essas posições foram percebidas e

consciencializadas por determinados actores que, ou as reiteraram, ou as procuraram alterar

(nomeadamente através da produção de discursos de teor identitário que intervinham

directamente na acção política), aquilo que se procura sondar, com o objectivo de resgatar o

papel que os textos (os seus argumentos, as suas enciclopédias e bibliotecas) desempenharam,

não só enquanto expressão de um arranjo social, mas também enquanto actores dos processos

históricos.

This essay seeks to understand the impact of Christianisation of people living under Portuguese

imperium on the identities of the Portuguese colonial elites established in these places. Inspired

by some recent literature that discusses the connections between religion, political culture and

imperial imagination, I read against the grain a treaty written by frei Miguel da Purificação, in

the first half of the 17th century. This treaty, which intended to interfere in the political scene,

allows me to identify the positions held by different groups and actors in a particular imperial

context – the Goan case –, the representations of these positions, but also the interplay that the

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perception and the consciousness of social change produced in the minds and in the agency of

colonial elites.

ÍNDICE

Keywords: empire, nation, naturality, Creoules, consciousness, identity, Portugal, Goa

Palavras-chave: nação, pureza de sangue, naturalidade, consciência, identidade, escrita,

império, crioulos, Portugal, Goa, estado da Índia

AUTOR

ÂNGELA BARRETO XAVIER

Instituto de Ciências Sociais.

Doutorada em História e Civilização, pelo Instituto Universitário Europeu, em Florença, é

Investigadora Auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Leccionou na

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no ISCTE e foi Maître

de Conférences Invitée da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Publicou livros e artigos

na área de história cultural e política de Portugal e do seu império na Época Moderna e tem

actualmente no prelo o livro A Invenção de Goa. Poder Imperial e Conversões Culturais nos Séculos XVI e

XVII (Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais).

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“A História do Futuro”Profecias jesuítas móveis de Nápoles para a Índia e para o Brasil (séculoXVII)

“The History of the Future”: Jesuit Mobile Prophecies from Naples to India to

Brazil (17th century)

Inês Zupanov

Tradução : Ângela Barreto Xavier

NOTA DO EDITOR

Tradução de Ângela Barreto Xavier.

1 Pouco depois de chegar a Goa, nos últimos dias de 1635, Marcello Francesco Mastrilli,

um jesuíta de Nápoles, contou pela sua própria voz a história da sua visão milagrosa deSão Francisco Xavier e a história do seu próprio futuro na Ásia. Um mês depois, essahistória já tinha sido impressa com o título Relaçam de hum prodigioso milagre, desta vezcontada por um jesuíta português, Manuel de Lima. A fama de Mastrilli precedeu a suachegada à famosa capital do império português oriental, o centro da empresamissionária jesuíta na Ásia. De acordo com os seus hagiógrafos seiscentistas, desde queFrancisco Xavier lhe aparecera em Nápoles, em 1633, salvando-o depois de um golpe nacabeça que o podia ter levado à morte, Mastrili tinha ganho a reputação de futurosanto.1 Quando ficou semi-inconsciente depois de um martelo lhe ter caído sobre acabeça, a 8 de Dezembro de 1633, Mastrilli estava longe de uma vida missionária do tipoheróico. Contudo, o corte físico constituiu, também, um choque místico, permitindonovas possibilidades discursivas, itinerários psicológicos e movimentos geográficos.Equipado com um capital de santidade abundante, Mastrili mostrou-se capaz demobilizar pessoas e recursos materiais para o seu projecto pessoal: viajar até à Índia emorrer mártir ad majorem Dei gloria. Ao colar a sua história à Vida ou, melhor dizendo, àvida depois da morte, do santo jesuíta recentemente canonizado, Francisco Xavier,Mastrilli reinventou a sua própria vida como uma série de eventos proféticos, todos eles

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conduzindo aos dois anos dramáticos de apostolado na Ásia, coroados, por fim, com omartírio.

2 É este triunfalismo e sensibilidade profética na narrativa da sua vida que é interessante,

pois introduz uma espécie de jogo do tempo, para parafrasear livremente Paul Ricoeur,para quem o tempo configura a narrativa, e a narrativa refigura o tempo.2 O enunciadoprofético é simultaneamente uma resistência sancionada (ou não) à autoridade dopresente, uma recriação nostálgica do passado, e uma encenação política do futuro. Asprofecias definem as possibilidades e impõem limites à acção social. Neste estudo,procurarei mostrar como é que o cronotopo profético – uma construção espácio-temporal, segundo Mikhail Bakhtin – pode ser usado livremente, e livrementeapropriado de forma a servir os interesses mais variados e os projectos maisantagónicos.3

3 Pela análise da biografia de Marcello Mastrilli, tal como ela foi apresentada na

literatura hagiográfica jesuíta, argumentarei que as visões proféticas e as narrativasforam loci importantes de comunicação e instrumentos políticos cultivados pelosjesuítas como parte integrante da sua tradição e herança espiritual. O impulso proféticoe o reposicionamento estão, então, entre as muitas linguagens dessa singular tecnologia

do eu, para utilizar a expressão de Foucault, através da qual um sujeito fabrica a suaprópria identidade dentro, mas também contra as possibilidades e os limites conferidospela autoridade externa, e pelas instituições. Marcello Mastrilli construiu a sua própriasubjectividade a partir de uma visão profética de São Francisco Xavier. E a partir domomento em que a sua experiência pessoal foi impressa, atingindo uma audiência maisvasta, estimulou outros actores a imitar, citar ou utilizar aquilo que lhes convinha. Porexemplo, uma leitura atenta da Relaçam mostrará que em Goa, os jesuítas portuguesestinham um interesse particular em promover a visão de Mastrilli, pois ela permitia-lhesreiterar a incapacidade da administração colonial portuguesa em sustentar a empresamissionária na Índia. Alguns anos mais tarde, ao publicar uma biografia apologética, umoutro jesuíta italiano autopropagandear--se-ia, reclamando a sua devoção e ligaçãoespecial a Mastrilli. Por fim, as visões proféticas de Mastrilli – como se fossemautónomas, objectos móveis – foram transportadas para o Brasil, por pregadores ehistoriadores jesuítas portugueses, vindo a ser integradas nessa empresa maior que foia Restauração de Portugal de 1640.

4 O que era facilmente transportável de um continente para outro não eram,

evidentemente, as visões pessoais de Mastrilli, mas a sua materialização numa série detextos e de imagens materiais. Alguns dias depois do evento, Mastrilli escreveu sob aordem de um seu superior um relato detalhado da visão. O texto em latim seriapublicado em Nápoles alguns meses depois, em 1634. Outras publicações se seguiram:Bolonha (1634), Madrid (em castelhano, 1634) e Viena (1635).4 A par disso, Mastrilliviajou pela Itália e pela Espanha, antes de partir para Goa, tendo contado a históriaperante audiências diferentes, incluindo o rei de Espanha (Filipe IV) e a sua corte.Também distribuiu retratos de Xavier vestido de peregrino, uma representaçãopictórica que era pouco conhecida – segundo Mastrilli –, até o santo lhe ter aparecidovestido daquela maneira. Sendo que a vida de Mastrilli terminou rapidamente (em 1637seria martirizado no Japão, o que confirmava a autenticidade da sua visão), a máquinahagiográfica jesuíta incorporou quase imediatamente a sua história no quadro damemória colectiva da Companhia de Jesus.5

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O martelo e o voto

5 Na tecnologia do eu de Mastrilli, o martelo foi, no sentido literal, o instrumento mais

importante. Foi em Nápoles, nos últimos dias da festa da Imaculada Conceição, em 1633,que recebeu o fatal, e no final das contas, providencial, golpe na cabeça. Por essaocasião, tinha 30 anos e era desde a juventude membro da Companhia de Jesus,primeiro como noviço, e depois como padre professo. Por nascimento, Mastrilli era umaristocrata de Nola, e o seu pai, Geronimo Mastrilli, marquês de San Marzano; a mãe, D.Beatrice Caracciola, da “prima Nobiltà di quel Regno”, opôs-se à sua decisão de se juntarao noviciado jesuíta. Como escreveu o seu biógrafo Cinami, Mastrilli foi, desde o início,um “filho de Xavier”, já que “o que é a nobreza e a pureza de sangue (la chiarezza del

sangue) em comparação com as benesses que Deus deu àquela alma abençoada?”6 Comoa maioria dos jesuítas nobres, Mastrilli teve de encenar a sua fuga da família, a trocados laços de sangue pelos laços espirituais. Apesar da insistência jesuíta na completarenúncia às conexões familiares, era muito difícil convencer as famílias aristocráticas aabandonar toda a autoridade que tinham sobre os seus filhos jesuítas. Era frequente umjovem noviço da Companhia de Jesus, de origem nobre, ser retirado à força donoviciado. Segundo Cinami, Marcello Mastrilli fora chamado à “religião” pelos anjos, epelos seus tios, Carlo e Gregorio Mastrilli, já professos nos Jesuítas.7 Acrescente-se quedesde cedo Mastrilli mostrara as suas habilidades proféticas e a sua clarividência, tendoescapado a uns cães de caça graças à intercessão da Virgem Maria.8

6 Mastrilli não era o filho mais velho do marquês de San Marzano e a sua escolha pela via

religiosa terá sido, é bem provável, encorajada. Ainda assim, as forças gravitacionaisfamiliares e sociais deviam ser bastante fortes para um nobre que tinha de seconformar com expectativas contraditórias sobre a sua pessoa. Quando as notíciaschegaram de que o seu irmão mais velho tinha falecido na Sicília – o que se verificounão ser verdade –, enquanto o seu outro irmão não tinha filhos, Mastrilli foi chamadode volta ao seio familiar. O mesmo aconteceu uns anos mais tarde, quando foi chamadopara tomar conta dos seus sobrinhos depois da morte de um irmão mais velho.9

7 Um dos objectivos principais do Concílio de Trento, e da Contra-Reforma em geral, era,

segundo historiadores como John Bossy, Delumeau e outros, provocar a ruptura dassolidariedades comunitárias e familiares, de forma a produzir indivíduos que fossemdirectamente responsáveis perante a igreja e, subsequentemente, perante o Estado. ACompanhia de Jesus foi uma instituição-chave na orquestração deste processo dedisciplinamento, tendo desenvolvido um esforço especial para providenciar exemplosno interior da instituição.10 A desobediência ao pai terrestre, ao pai de sangue, eraencenada e contrastada com a obediência ao pai celeste e à igreja que o representava naTerra.

8 Tal como Mastrilli, quase todos os noviços jesuítas de famílias aristocráticas

participaram, de modo a dissociarem-se efectivamente da densa rede de relaçõesfamiliares, de uma peça com três actos.11 Num primeiro acto dramático, fugiram da casapaternal de modo a iniciar o seu treino no noviciado. Um segundo acto constituía-senum conjunto de experiências espirituais, o “fruto” das quais conduziria o noviço afazer os votos da sua adesão à Companhia de Jesus.12 Durante o retiro de quatrosemanas em exercícios espirituais, os noviços não só aumentavam (ou desistiam de) o seudesejo de se tornarem jesuítas, como eram encorajados a imaginar e a projectar notempo os seus objectivos na carreira jesuíta. Nessas cartas de intenções, escritas como

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resultado da maturação do desejo e da vontade, os jovens jesuítas disponibilizavam osseus corpos e as suas almas para as experiências missionárias da igreja e da Companhiade Jesus. Este era o terceiro e último acto, em ruptura deliberada com os opressivoslaços parentais, mas também, ainda que de forma sub-reptícia, uma forma de rupturacom um conjunto de laços ainda mais vastos, incluindo aqueles que se tinhamestabelecido mais na Companhia de Jesus, i. e., com outros membros, do que com aCompanhia de Jesus. A anatomia do entusiasmo do jesuíta para viajar através dos marese morrer pelo sangue de Cristo, como é esquemática e repetidamente expresso nascartas preservadas na colecção manuscrita Indipetae do Archivum Historicum SocietatisIesu, em Roma, revela-se através de palavras-chave, tais como “vocação”, “desejo”,“vontade”, “ordem”, “ardor”, “sonho”, “visão”, e pela descrição de sinais e eventosprovidenciais.13 Efectivamente, a decisão de entrar na Companhia de Jesus ia muitasvezes a par com o desejo ardente de ser enviado como missionário para as Índiasocidentais ou orientais, ou para os heréticos da Alemanha, Inglaterra e outras Índias“internas”. As Indipetae descrevem os extraordinários teatros das aspirações jesuítas, osseus constrangimentos, as suas esperanças, os seus medos. Um jesuíta tinha decontinuadamente cultivar, como um dos actores expressou laconicamente a propósitodo seu caso, o desejo do desejo (desiderio del desiderio).14 Em 1609, por exemplo, GiacomoRegano de Parma escreveu a Claudio Aquaviva, o Geral da ordem, e o último receptordestas cartas, como é que ele sentiu a sua “vocação” a despertar depois de ter feito osexercícios espirituais.15 Simone Garibaldi de Genova experimentou no seu coração umamplo desejo pelas Índias Orientais como resultado da intervenção directa de Deus e doconvite feito por dois santos jesuítas, Loyola e Xavier. Num exagero sobre o seu caso,acrescentaria que a sua nobre vocação vinha também da Beatissima Vergine.16

9 Do mesmo modo, durante a sua infância, de acordo com a “evidência” hagiográfica,

Mastrilli tinha premonições sobre o seu futuro martírio e das etapas que o conduziriama ele. Uma vez, era ele ainda um noviço, uma cruz de prata cairia sobre a sua cabeça,deixando-o alegre e feliz, defende Cinami, porque era “um anagrama, o que no seu casoanunciava as novas da sua feliz viagem às Índias”.17 Pela mesma altura, quandopasseava por Nápoles, tendo visto um ferreiro a forjar uma espada, este imediatamentepredisse que o mesmo fogo criaria uma espada que iria cortar a sua garganta.18 Àmedida que o seu desejo aumentou, a sua impaciência com o futuro levou-o a escrever,durante o noviciado no Colégio de Nápoles, milhares de cartas de intenção ao Geral eaos seus superiores.19

10 A sua impaciência tinha algo a ver com os laços familiares, já que mesmo como jesuíta

tivera que se regular pelas regras impostas pelos seus tios paternos, também elesinacianos. Mostrou-se disponível, ainda, para providenciar serviços “seculares” aoutras importantes figuras eclesiásticas que também eram da sua família. Parece quetinha um talento especial para construir e decorar aparatos de festa, muito utilizadosno século XVII pela igreja e pelos jesuítas. Estruturas efémeras sumptuosas eramregularmente construídas nas igrejas e nos palácios para celebrar festas religiosas comoas Quarantore, canonizações, as “possesso” que se seguiam à eleição de um novo papa, eas pompas funerárias.20 Evidentemente, cerimónias profanas como entradas reais,aniversários, nascimentos, casamentos, embaixadas, e outras ocasiões, eramigualmente celebradas com a arte efémera, desde bodos, até danças e fogos-de-artifício.Especialmente, após a cerimónia de canonização de Inácio de Loyola e de FranciscoXavier, os jesuítas tinham tornado mais sofisticada a apresentação teatral dos seus

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santos, mártires e benfeitores. Os historiadores da arte referem-se, inclusive, a umcódigo inaciano, o qual enfatizava a spettacolosità.21

11 Um martelo caiu sobre Mastrilli precisamente quando este estava a trabalhar nos

bastidores de uma estrutura espectacular que tinha sido erguida no palácio do vice-reide Nápoles. Fora ele o responsável pela construção de um dos quatro altares para acelebração da Nossa Senhora da Imaculada Conceição e da visita do rei da Polónia, e doseu irmão, ao reino de Nápoles. Foi o seu parente o cardeal Carlo Brancaccio quemordenou a Mastrilli que aplicasse os seus talentos nessas importantes manifestações dopoder e da piedade católicas.

12 Estar por detrás da decoração de uma fachada barroca não era algo que um jovem

aristocrata piedoso e combativo podia desejar como “vocação”. Neste sentido, Mastrilliera um dos muitos jesuítas descontentes que sonhavam com tarefas maiores, quer comomissionários, quer como procuradores espirituais.22 Mas o talento ou a excelência numdomínio particular, tal como a decoração ou a habilidade médica, eram muitas vezesusados como pretexto para não deixar partir para missões sem regresso estes jovensjesuítas.

13 Pela terceira vez, Mastrilli arranjou um modo de escapar. Capitalizou a ferida que tinha

recebido nos bastidores de um altar efémero e sumptuoso para criar o seu próprioespectáculo de desejo, milagre e profecia. De acordo com a Relaçam escrita por Manuelde Lima, depois de Mastrilli lhe ter contado a sua famosa história em Goa, o momentomais decisivo teve lugar na cama na casa professa dos jesuítas em Nápoles. Enquantojazia moribundo por “lesão do cérebro, e neruos interiores”, com uma febre alta, doresde cabeça muito fortes, e o seu olho direito inchado, e assim “se fechou a lus natura”,

alcançou do seu superior, Carlo di Sangro, a permissão para, caso sobrevivesse, ir paraas Índias. Com essa autorização e uma relíquia de Xavier trazida até ao quarto, omilagre aconteceu.23 Através da imagem de Xavier vestido de peregrino, e com umbordão na sua mão direita, que usava para passear pela enfermaria sem ninguém seaperceber, a aparição miraculosa aconteceu. O Santo, cuja relíquia do corpo continuavaem Goa, com excepção de uma peça do seu braço direito, preservada no altar lateral daigreja do Gesù em Roma, saiu no seu corpo celestial directamente da pintura para oleito do jacente Marcello Mastrilli, vinculando-o a uma conversão sagrada.

14 Na Relacam, a cena é descrita como um teatro dentro de um teatro, com a excepção de

um dos actores, Xavier, ser apenas visível e audível para Mastrilli. Os espectadores, istoé, os jesuítas que o rodeavam naquilo que era considerado o seu leito de morte, apenasouviram a resposta de Mastrilli. Mais tarde, porém, alguns deles testemunharam que,enquanto se moviam no espaço, sentiam a presença doce de uma força externa. Aconversa foi simultaneamente simples e formal. “E bem, que se fas”, perguntou o santo,“quereis morrer, ou ir para a Índia?”24 Mastrilli respondeu que não tinha nenhum outrodesejo do que aquele que a divina Majestade considerasse adequado para ele. Com estaforma particular de obediência, o resto da conversão não era nada mais do que Mastrillia repetir as palavras de Xavier – de forma que a audiência terrestre também as pudesseescutar. O que ele repetiu foi o voto público pelo qual um noviço jesuíta pedia paraentrar na Companhia de Jesus. Este voto, em concreto, era uma invenção jesuíta e nãose aplicava a nenhuma outra ordem religiosa. A sua singularidade era a de que, quandoum noviço pedia para se tornar jesuíta, a Companhia de Jesus declinava qualquerobrigação em realmente o aceitar. Este voto era definido como um “contrato” entre ocandidato e Deus, e não entre um noviço e o seu superior.

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15 Na Relacam publicada em Goa, o voto de Mastrilli é recordado em latim e traduzido em

português. O que se torna claro no texto impresso é que, em vez de ser dado a Deus, ovoto tinha sido declarado a São Francisco Xavier, em primeiro lugar. Para enfatizar adiferença entre este voto particular e a fórmula habitual, Manuel de Lima usou letrasmaiúsculas para todas as passagens que se referiam a Xavier e a Mastrilli. Esta opçãonão é acidental. Ela inscreve-se em duas intenções paralelas que estão por detrás dotexto. Uma era o esforço concertado por parte dos jesuítas em promoverem o status e aimportância do seu santo. Mais especificamente, os jesuítas na Índia sentiam umaurgência particular em desenhar o perfil da santidade de Xavier de acordo com as suaspróprias necessidades. Outra intenção por detrás do uso de letras maiúsculas erasublinhar a ortodoxia de Mastrilli e a predestinação santa da sua ida para a Índia, e dasua morte como mártir.

16 A conversação sagrada e o encontro entre Xavier e Mastrilli não acabou com a

pronunciação do voto religioso que ligava inextricavelmente vivos, mortos e o divino. Aconstrução do cenário requeria um acto final com uma cura milagrosa. Este é omomento em que a dissociação final dos elos de parentesco e de amizade tem lugar.Repetindo, novamente, Xavier, Mastrilli renunciaria em latim:

“Renuncio, e dou repudeo a meus pais, parentes, meus amigos, e minha propriacasa, a Itália e todas as cousas que me podião impedir a missão da Índia, e me dedicotodo ao bem das almas entre os Indios, em prezença do S. P. Francisco Xauier”.25

17 Parece que a única pessoa que ainda o queria de volta era a sua mãe, que morreu pouco

depois, e até “E Deus pareçe lha levou logo para lhe tirar aquelle impedimento deexecutar sem detença o que lhe ordenou”. 26 É provavelmente mais do que umacoincidência o facto de, por altura do incidente com o martelo, a maior parte dosmembros mais velhos da sua família (o pai, os tios jesuítas e o irmão mais velho) ter jámorrido. As fronteiras da sua liberdade pessoal, escolha e desejo eram mais vastas,apenas limitadas, agora, pela pertença jesuíta. A aparição de Xavier e a sua curamilagrosa delimitaram esse problema concreto. Mastrilli foi ainda mais longe na suaauto-asserção e na sua promoção à santidade. Na sua oração à Santa Cruz, Xavier fezMastrilli repetir o seguinte:

“E te peço humilmente, que a graça de derremar por ti o sangue, que o Apóstolo dasÍndias Françisco Xavier no cabo de tantos trabalhos não mereçeo alcãçar, maconcedas a mim, ainda que de todo indigno.”27

18 A mise-en-abîme das vozes da conversa sagrada entre Mastrilli e Xavier na Relaçam

assinala uma estratégia psicológica jesuíta de contenção. Era falando pela voz depessoas santas já mortas, especialmente jesuítas mortos, que se podia enriquecer com oespaço hagiográfico colectivo. O apagamento e dissolução do eu na vida de santo nãoimplicava a ausência de subjectividade. Pelo contrário, permitia a Mastrilli assumir umaatitude forte e manifestar qualidades de heroísmo e de entrega normalmenteassociadas ao nascimento aristocrático. Depois da cura milagrosa, Mastrilli nãoprecisava mais da autorização do Geral dos jesuítas para ir para a Índia. SegundoCinami, o Geral respondeu-lhe dizendo que “não devia esperá-la [a autorização] poistinha-a obtido de São Francisco”.28

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Feridas proféticas e curas divinas

19 A profecia através das visões, sonhos e aparições contribuía para desagregar estruturas

de autoridade e de poder. Por esta razão, as instituições políticas e religiosas da épocamoderna multiplicavam estratégias para as aniquilar ou enquadrar em contextossantificados sancionados. O uso livre que Mastrilli fez de São Francisco foi um acto derebelião contra a sua família e a Companhia de Jesus. A sua ferida, descrita com umdetalhe excessivo na Relaçam, era o começo lógico do seu coup de force encenado. Acultura da violência, especialmente presente entre os membros aristocratas daCompanhia de Jesus, manifestava-se, em primeiro lugar, na maneira como tratavam osseus corpos. Apesar da legislação precoce promovida por Inácio de Loyola contra amortificação excessiva da carne – na realidade, nem mesmo o martírio era encorajado–, os jesuítas continuavam a praticar, no mínimo, formas mais suaves de autodisciplina.Os historiadores e hagiógrafos jesuítas, por seu turno, exaltavam essas práticas deforma desproporcionada. Histórias violentas eram parte integral das vidas dos santos, ea história turbulenta e as guerras na Europa dos séculos XVI e XVII equipavam osleitores contemporâneos com um certo grau de expectativas agonísticas.29

20 Mesmo as profecias estavam associadas a violência. No caso de Mastrilli, como ele

contou a Lima na Relaçam, Xavier levou-o pela mão até ao lugar verdadeiramentedoente da sua cabeça.

“Tomou o P. o Reliquario, e o applicou a ferida, mas o S. lhe deu sinal com a cabeça,que não era ali seu mayor mal, e mudado o bordão, que trazia na mão dereita, paraa esquerda, com a dereita tocou em sua propria cabeça, não na parte que respõdia aferida do P. mas na que respondia ao lado esquerdo sobre o ouvido, lugar de que naverdade esteve sempre apoderado o mal, e corrupção que matava o enfermo.”30

21 O que ficou por dizer nesta passagem é que o golpe do martelo não era realmente

mortal, mas sim uma ferida profética, uma sinédoque para os eventos futuros queconduziriam ao martírio.31 Feridas proféticas eram parte integrante das hagiografiasjesuítas, desde o seu início. Inácio de Loyola foi ferido “entre as pernas”, tendo entãorenunciado à carreira de soldado-cortesão; Francisco Xavier sangrou do nariz depois deser atacado pelos demónios enquanto dormia. Todos os mártires da Companhia de Jesusensaiavam as suas torturas e mortes futuras em cada incidente quotidiano ou doençaperigosa.

22 Os médicos que tentaram curar Mastrilli prefiguraram torturas no porvir. A Relacam foi

escrita antes da morte agónica de Mastrilli, no Japão, cujos detalhes são ainda incertos,e o paralelismo morfológico entre o tratamento médico em Nápoles e a torturajaponesa pode ter sido completamente aleatório. Mas também é possível que oshagiógrafos posteriores, como Cinami, Neubergo, Bartoli e Pagès, ao escreverem sobreo martírio de Mastrilli, tenham sublinhado subtilmente aqueles elementos que seajustavam às primeiras narrativas das terapias médicas. Os esforços de cura e detortura estavam focalizados na boca. Em Nápoles, o cirurgião “abriu um canal” paraadministrar o remédio, com um ferro “e grandes dores a boca do enfermo corre tresvezes com uma vella de çera a garganta ate ao estamago, para ver se o impedimentoprocedia de a perto originado de abundacia do humor”.32 A obsessão com o examecorporal era um procedimento comum em todos os casos de incidentes milagrosos. Noséculo XVII, tal como hoje nos processos de canonização, o exame médico era

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indispensável de modo a corroborar formalmente a ideia de que nenhuma força naturalestava presente. O fracasso da medicação era, dessa forma, o prelúdio do milagroso.

23 Cinco anos mais tarde, no Japão, Mastrilli foi submetido à tortura anatsurushi, cuja

principal característica era suspender a vítima de cabeça para baixo num tanque cheiode água, de excrementos, ou de fumos sulfúricos. O objectivo era a apostasia, e não aexecução dos missionários e dos cristãos japoneses. Os arquitectos desta estratégiaparticular de expulsar a cristandade do Japão, ao mostrarem a fraqueza dos cristãos eda sua fé, em vez de organizarem um espectáculo de martírio durante as primeirasperseguições, eram cristãos apóstatas. Inoue Chikugo no Kami Masashige, o grandeinquisidor, conseguiu destruir algumas carreiras promissoras de jesuítas no Japão.33 Amais importante e famosa é a de Cristóvão Ferreira, cuja vida finalmente se cruzaracom a vida de Marcello Mastrilli.34 Os hagiógrafos iriam reclamar posteriormente queMastrilli tinha sido miraculosamente ferido e salvo, ao mesmo tempo (1633) queFerreira suportara uma tortura de cinco dias no tanque. Nesse momento, a históriacontinua, Mastrilli seria enviado do céu para reconverter Ferreira alias Sawano ChYan.De facto, duas expedições jesuítas tentaram isso, em 1642.35 O resultado final foi quealguns acabaram mártires e outros apóstatas, com eles terminando a missão jesuíta noJapão.

24 Os hagiógrafos pintaram a tortura e subsequente decapitação de Mastrilli em 17 de

Outubro de 1637, dois meses depois da sua chegada ao Japão, como plena de milagresmaravilhosos. O jesuíta parecia imune à dor, sem verter sangue, com anjos limpando-lhe os olhos e confortando-o no tanque.36

25 “Estava absorvido num êxtase maravilhoso, em paz e tranquilidade, durante os

tormentos mais cruéis, como se estivesse deitado num leito [cheio] de rosas”.37 Sendoque cada vez que abria a boca, dizia qualquer coisa como “deixai-me sozinho, pois estouno paraíso” (mi lasciate, perché sto nel’ mio Paradiso) e outras palavras piedosas;calaram-no com uma peça de ferro com dentes pontiagudos que introduziam na suaboca.38 Finalmente, foi decapitado, mas não antes da terceira tentativa do carrasco,depois de o próprio Mastrilli o ter encorajado a prosseguir o seu dever. O momento dasua morte foi celebrado com um terramoto e o escurecer do sol.39

26 Contudo, quando um grupo de dez jesuítas e dos seus catecúmenos (dojuku) chineses e

japoneses, revigorado pela narrativa da morte heróica de Mastrilli, chegou ao Japão, em1643, para reconverter Ferreira, os seus captores contaram-lhes uma história diferentesobre os últimos momentos do jesuíta italiano: “morreu em agonia, gritando egesticulando no tanque”.40 Depois da tortura física e psicológica, todos os dezapostasiaram, apesar de um padre jesuíta se ter retratado, vindo a ser,consequentemente, executado. 41

27 As feridas proféticas jesuítas não eram apenas um passo que fazia parte de um rito de

passagem, ou seja, da dissociação das densas relações sociais, e da preparação para umamissão. Elas também faziam parte de uma política identitária autoconsciente. O própriocorpo era o lugar de todas as intervenções divinas e humanas, pelo que eraconstantemente observado e examinado. O futuro estava frequentemente escrito nele,como no caso de Mastrilli. Como numa regra, sobrevivia-se a feridas ou a doenças queeram sinais proféticos de um sofrimento ainda maior pela fé. A dialéctica entre doençae cura era uma parte importante, em particular, da vida do missionário,desenvolvendo-se como um topos epistolar. A maior parte dos jesuítas que iam para aÍndia, por exemplo, começava as suas cartas para casa contando os seus sofrimentos e

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doenças a bordo dos barcos ou devido ao clima tropical. A recuperação da saúde, apósisso, era tomada como um signo da predisposição divina para uma missão particular.Henrique Henriques continuou a escrever, ano após ano, sobre a sua má saúde, masviveu até aos oitenta anos, altura em que morreu, em 1600, no sul da Índia.42

28 No que diz respeito a Mastrilli, Xavier curou instantaneamente a sua ferida profética,

de tal forma que nenhum traço dela permaneceu para impedir o seu projecto. Depois domilagre era mais são do que nunca. Quando tirou as ligaduras da sua cabeça, não havia“sinal algum, nem pontos, nem cicatriz do venturoso golpo; o cabelo, que para a curaavia poucos dias se lhe cortara, todo crecido et proporçionado; e finalmente tudo emseu antigo estado, como se tal ferida não ouvera reçebido.”43 Importa sublinhar aquique a Companhia de Jesus nunca mandou em missão jesuítas doentes ou deformados.Havia excepções, mas elas eram raras, e nem sempre produziam resultados felizes paraa ordem jesuíta.44

29 Os corpos daqueles que eram tocados pela cura milagrosa adquiriam poderes

taumatúrgicos por direito próprio. Tal como os objectos que pertenciam a Xavier setornavam relíquias, acreditava-se que aqueles que eram tocados por Mastrilli tinhampropriedades curativas.45 Assim sendo, a sua cama era usada para curar os doentes, e oquarto no qual tinha visto a aparição de Xavier tornou-se numa capela “toda elaembelezada por ornamentos dourados e pinturas excelentes representando o que tinhaacontecido ali e tudo o que tinha acontecido depois da profecia do Santo”.46 O leitocurou um jovem estudante que tinha caído de cabeça enquanto actuava como umsoldado que defendia a sua fortaleza, numa tragédia encenada no colégio jesuíta deNápoles.47 Se depois recusou ser um mero actor num teatro barroco, tendo descoberto asua própria vocação como missionário no teatro da vida, não se sabe.

30 Efectivamente, Mastrilli amplificou o tom da piedade barroca napolitana e incrementou

o prestígio da Companhia de Jesus e dos seus santos. Do papel de decoradores de altaresefémeros e de estruturas teatrais, o próprio Mastrilli tornou-se no primeiroprotagonista da peça. Pouco depois de ter recuperado, o colégio de Nápoles organizou,em resposta aos pedidos da população local, uma “gloriosissima Festa” em honra de SãoFrancisco Xavier. Os corredores e as arcadas do claustro foram embelezados compinturas, versos, e elogios. O vento que subitamente apareceu quase os destruiu, maseles permaneceram milagrosamente intactos. O momento mais alto da festa foi quandoa pintura de São Francisco Xavier como peregrino, a mesma que servira deintermediária entre o santo e o moribundo Mastrilli, foi trazida à igreja e colocada nacapela dedicada ao santo. Como se relatou várias vezes, a imagem curou uma pessoa econtinuou a curar desde então.

31 A visão, a cura milagrosa e, em particular, a profecia da sua vida e morte futura eram

parte do processo de auto-orientação de Mastrilli.48 Através da profecia, ele fora capazde impor os seus desejos e aspirações pessoais, e de impor o seu projecto noutros que oseguiram e imitaram. O seu acto não foi arbitrário nem de rebelião, como pode parecerà primeira vista. A sua performance profética estava já inscrita nas Vidas escritas dosseus predecessores e santos. Por conseguinte, ao mesmo tempo que a subjectividade e aacção de Mastrilli explodem através da intimidade com a presença divina, osenunciados proféticos que então surgiram foram sentenças-fórmula jesuítas de votossimples de religião e um diálogo estereotipado entre o superior e o noviço. Atravésdesta permanência na cadeia de motivações jesuíta, Mastrilli capitalizava a ortodoxiada sua conversação profética, convidando toda a comunidade jesuíta a participar no

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ritual invisível. Os fins desta performance cultural eram maiores do que um corte com afamília e a autoridade comunal. O problema é que os jesuítas portugueses se ressentiamdos missionários italianos enviados para a Assistência da Ásia da Companhia de Jesus.Mesmo durante o período filipino em Portugal (1580-1640), o “conflito nacional” entremissionários continuou.49 Ou seja, quando Mastrilli “recebeu” a ordem santa de ir paraa Índia, estava a desafiar ordens reais espanholas que tentavam diminuir o número deitalianos missionários na Ásia e a resistência jesuíta portuguesa em aceitá-los no seuseio. Como Thomas J. Csordas o colocou de forma correcta, “o controlo social daprofecia caminhava a par da profecia como controlo social”.50

Decadência colonial: corpos e imagens

32 A história de vida de Mastrilli, depois de ter deixado Nápoles em 1635, desenvolve-se

numa escada em espiral de santidade e caminho milagroso para o martírio. Objectossagrados, que já existiam, ou que foram constituídos enquanto tal depois de Mastrilli oster tocado ou implicado na sua empresa, pontuam as etapas do curso da sua vida.Deixou Nápoles com um novo nome, Francesco, ou seja, nominalmente identificadocom o seu santo predecessor. À medida que viajou da Itália para Lisboa, o porto deembarque para Goa, Mastrilli visitou várias cidades italianas, parando em cada lugarpara contar a sua história à audiência absorta e multiplicar os signos especiais daprovidência divina. Estando na Casa Santa do Loreto, viu em sonho tanto o passadoquanto o futuro. Primeiro, contemplou dois grupos de mártires jesuítas prostrados emfrente da beatíssima Virgem. Inácio de Azevedo era a cabeça de um deles, com os seus39 missionários mortos pelos heréticos franceses no golfo da Biscaia. Estavamdestinados à missão brasileira. Os outros eram um grupo de cinco jesuítas levados àmorte na aldeia de Cuncolim, no sul de Goa. Por fim, os mártires do passado fizeram-nover o seu próprio futuro, e foi subitamente transportado “para o meio de um grandeteatro, rodeado por bárbaros, sofrendo e morrendo valorosamente pela fé”.51 A Vida deMastrilli está preenchida pelo passado e pelo futuro, pelo desdobrar de mapas damemória e de profecias do princípio ao fim. Nos interstícios destes leves e exuberantesaparatos da imaginação, também podem ser identificados interesses políticos epragmáticos. O número de mártires que viu na sua visão reapareceu em Roma, inscritoem pedra. Leu, de acordo com Cinami, quando visitou as catacumbas da Roma antiga,uma inscrição que dizia: “Marcello e 40 companheiros, mártires de Cristo”.52 Quarenta éexactamente o número de jesuítas que incluiu na sua missão para a Oriente. Foi um dosmaiores contingentes de missionários enviados à Ásia durante muitos anos, e contravários obstáculos. Tanto o Geral da ordem, quanto o Papa ou o Rei de Espanha estavamrelutantes em enviar mais missionários para a empresa oriental. Os portuguesesestavam a perder territórios para os neerlandeses, e incapazes e sem vontade deprovidenciar apoio financeiro para o trabalho missionário, considerado, em todo o caso,como podendo ser politicamente subversivo.53 Para que Mastrilli conseguisse embarcar,por fim, trinta e dois companheiros, para além dele próprio, nos dois barcos quepartiram para Goa, em 1535, foi necessário muito lobbying em Lisboa, apesar da sançãoreal.54

33 Bem sucedido como era no convocar moradores celestiais que lhe mostravam o futuro,

Mastrilli também era virtuoso a arranjar financiamento. Ambos eram cruciais pararealizar a sua missão. De facto, profecia e missão alimentavam-se uma à outra. Ao

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passar por Roma, Mastrilli não só venerou um pedaço da mão direita de Xavier, quetinha sido enviada de Goa por insistência do geral Cláudio Acquaviva, em 1615, comoconseguiu obter esmolas para os custos da Bula da Canonização, a qual não tinha aindasido enviada para Goa devido à morte do papa Gregório XV.55 Mais ainda do que a Bulada Canonização, um documento formal pelo qual o papa ordenava a veneração públicaao santo, a visão de Mastrilli tornou-se num instrumento poderoso de promoção dadevoção popular a São Francisco Xavier. De acordo com o controlo rigoroso que aContra-Reforma tentou impor na pintura visionária, “apenas era permitido representarpictoricamente visões cuja autenticidade foi verificada e cuja interpretação tinha sidoaceite”.56 Esta última garantia de autenticidade não era um dado adquirido.

34 Contudo, a visão de Mastrilli tinha sido induzida por uma verdadeira pintura, a qual se

tornou numa “janela” através da qual o sobrenatural pudera encontrar o mundonatural. As imagens milagreiras e o seu efeito na devoção popular não eram totalmentedo agrado das autoridades eclesiásticas, devido à permanente suspeita de heterodoxia.A maior parte dos teóricos da arte católica pós-tridentina, como Gabrielle Paleotti,definia as imagens sagradas em termos dos seus efeitos sobre os que as possuíam. Elasdeviam orientá-los no sentido de um comportamento ético e virtuoso. Em todo o caso,algumas imagens sagradas podiam ser “atrevidas, escandalosas, suspeitas, heréticas,supersticiosas ou apócrifas”.57 A escolha da imagem de Mastrilli foi feliz em muitosaspectos. Era uma obra de arte anónima, modesta, quase “invisível”. Mesmo o aspectoiconológico da obra era dúbio, sendo que, Cinami confessou, “olhei milhares de vezesquando passava e nunca vi o santo ali, e nunca pensei que fosse a imagem de SãoFrancisco Xavier”.58 A forma como o colégio jesuíta napolitano adquiriu a pinturatambém é misteriosa, já que parece que ela foi oferecida por um preço muito baixo aum estudante jesuíta que ia para Nápoles. Este tipo de pintura anónima e sem grandeinteresse era um candidato típico à recepção de poderes milagrosos. Estas imagenstambém provavam serem difíceis de destruir em naufrágios, incêndios e outros testesdivinos e naturais semelhantes. Era como se a sua qualidade medíocre deixasse espaçosuficiente para a configuração da energia sagrada. Mesmo a audiência não esperava veruma mera representação do santo, mas a sua versão “cinescópica“, uma imagem móvele falante. A oração tornava-se um diálogo. Isto, é claro, nada tem de novo, sabendo-seque a devoção popular sempre dependeu da resposta divina. O que é inesperado é osjesuítas parecerem adivinhar quais os tipos adequados de imagens sagradas capazes deproduzir infinitos pequenos milagres quotidianos de piedade nas almas dos seuspossuidores.

35 Uma pintura milagrosa não podia ser reproduzida na sua substancialidade material e

celestial. A única da qual São Francisco Xavier tinha saído da moldura para sararMastrilli continuava em cima do altar da capela de Nápoles, continuando a sua vocaçãomilagreira. Em 1653, uma lavradora viu a face do santo ficar pálida, e depois a brilhar,aparecendo gotas de suor na sua sobrancelha.59 Sendo que a pintura milagreira eraconsiderada uma janela para o sobrenatural, ver o objecto material era um primeiropasso na via da experiência mística. E o primeiro passo era importante. Daí que areprodução “mecânica” do original no maior número de exemplos possível se tenhatornado desejável e imperativa. Pode bem falar-se de culto da imagem. O mundo inteiroestá cheio de cópias desta imagem particular, escreveu Cinami.60 Para além das“imagens impressas” da pintura que saíram das prensas de Nápoles, Roma, Alemanha,Flandres e Espanha, vários pintores reproduziram centenas de exemplares. Cinamirefere um pintor de Nápoles, que fez trezentas delas. Quando tentou pintar outros

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temas, sentiu-se subitamente doente, acabando por morrer, porque, Cinamiconjecturou, “São Francisco não queria que a mão que se lhe tinha consagrado seesforçasse noutro [tema]; ou porque o chamou ao Céu para lhe pagar o trabalho e adiligência com que o pintou”.61

36 De acordo com o historiador e hagiógrafo posterior da Companhia de Jesus, Daniello

Bartoli, as pinturas produzidas depois do milagre representavam várias etapas dosmovimentos do santo durante a visão de Mastrilli. Ou seja, por vezes ele erarepresentado com o bordão na sua mão direita, e a esquerda sob o seu peito, ou com obordão na mão esquerda, apontando a direita para o sítio da cabeça onde a relíquiadevia ser aplicada.62 Com Mastrilli – que as ofereceu como presente em cada uma dassuas paragens no caminho para a Índia –, estas imagens viajaram depressa, quer comogravuras em livros, quer como pinturas a óleo. A narrativa do milagre, mais do que arepresentação original de Xavier, o peregrino, tornou-se central para a construção daimagem. Sendo que Mastrilli não tinha meios para transportar centenas de pinturaspara oferecer aos seus hospedeiros, empregou vários pintores, os quais, literalmente,corporizaram a sua narrativa. A cumplicidade íntima entre uma imaginação rica e asartes pictóricas é central para a sensibilidade visual jesuíta. Depois de décadas a ensinare praticar exercícios espirituais sob o mote de Inácio e de Nadal – “composição, ver olugar” –, os jesuítas tinham educado gerações de crentes a lidarem com imagenssagradas como narrativas sensoriais. Isto é, a instabilidade da imaginação requeria queas cenas sagradas fossem fixadas num espaço concreto, mas ao mesmo tempo aspinturas eram compostas por um ciclo narrativo fechado. O olho do possuidor eraconvidado a mudar de um lugar da pintura para outro, como numa oração do rosário. Aintrodução de pequenos números e legendas por debaixo dos textos era outrodispositivo mnemónico e de concentração amplamente usados nas gravuras jesuítas.63

Entre a imagem e a anotação, a dialéctica do olhar conduzia à ratoeira visual doobservador.

37 Uma imagem milagreira era, simultaneamente, uma armadilha para os seus

possuidores e, de certa forma, para os seus pintores. Como uma ruptura visual súbita, aimagem milagreira precedia a sua execução material. Ou seja, ela escolhia os pintores econduzia o pincel até ser terminada. No dia anterior à sua partida de Lisboa, e aoembarque para a viagem por mar até Goa, Mastrilli encontrou-se sem uma só pintura deXavier, tendo um noviço oferecido os seus serviços. Tal como fizera um esforço “com osmestres importantes de Nápoles, Roma, Génova e Madrid, para formar imagens que seassemelhassem à verdadeira”, Mastrilli sentou-se com o noviço e descreveu Xavier e acena toda com algum detalhe, até à hora de dormir.64 O dia seguinte, pela manhã,quando o noviço lhe mostrou a pintura já terminada para inspecção, Mastrilli “disse,em menos de uma noite terminaste aquilo que em Madrid o pintor do rei não foi capazde fazer senão em três meses. Sendo que estava à frente da imagem sagrada (sacra

imagine), a sua expressão alterou-se subitamente devido aos vários efeitos demaravilhamento, alegria e devoção que o invadiram… Este não é o teu trabalho, mas ode Xavier, o meu pai santo que se auto-representou pela tua mão”.65

38 Quem era este noviço, é difícil de dizer. Domingos da Cunha (1598-1644), também

conhecido como o Cabrinha, um pintor jesuíta famoso em Lisboa, deu uma pintura deSão Francisco Xavier a Mastrilli, que a levou para a Índia e para o Japão.66 Há uma outrapintura anónima, hoje na Basílica do Bom Jesus, em Goa, a qual representa Xavier comoum peregrino acompanhado por um grupo.67 O único detalhe que distingue esta da

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descrição de Mastrilli é o facto de, na pintura de Goa, Xavier empunhar um pequenocoração a arder na sua mão esquerda. A devoção do Sagrado Coração era um outrolugar devocional que se tornava cada vez mais preeminente entre jesuítas e outrasordens católicas, na França em particular, mais ou menos por esta altura. Era poisnatural que as duas práticas devocionais se encontrassem num determinado momentoe que isso ficasse inscrito na pintura.

39 Foi finalmente na Índia que a imagem encontrou o modelo original. A viagem de

Mastrilli à Índia era um regresso à fonte da energia santa e milagrosa, a relíquia docorpo conservado na basílica do Bom Jesus no centro da cidade de Goa. Esta estruturaimponente construída em basalto tinha sido construída, precisamente para acomodar ocorpo sagrado. Levou quase meio século a ser construído, mas estava quase terminadoquando da celebração da canonização de Xavier em 1624.68

40 É precisamente na Índia que o espaço profético projectado na visão de Mastrilli

encontrou o espaço político. Estes dois espaços cruzam-se, literalmente, namaterialidade e na produção da própria Relaçam. O livrinho foi publicado em Goa, noColégio de Santo Inácio de Loyola de Rachol, em 1636. Mais ainda, o próprio Mastrillicontou a sua história “vocalmente” em Goa na presença do vice-rei Pedro da Silva em28 de Dezembro de 1635. A Índia era, por conseguinte, o lugar onde Mastrilli falava àsua audiência e aos seus leitores através desta edição indiana concreta.69 É evidente quea sua visão tinha já viajado e chegado ao seu destino em Goa, aos pés de São FranciscoXavier, o Apóstolo das Índias. A sua reactivação, re-transcrição e tradução emportuguês está inscrita nas dificuldades políticas, religiosas e sociais que os jesuítas eoficiais portugueses sentiam na Ásia em meados do século XVII. Os portuguesesestavam a perder, de forma fatal, o controlo das rotas marítimas e redes mercantis daÁsia para os neerlandeses, ao mesmo tempo que um problema político maior agitavaPortugal, em resultado do qual se quebraram os laços com a coroa espanhola, e ocorreua entronização (1640) da quarta e última dinastia portuguesa.

41 Sob a ameaça permanente de inimigos vindos do hinterland, os neerlandeses do mar e as

epidemias dentro do território de Goa, os milagres reapareceram ritmicamente emvárias igrejas e contextos eclesiásticos. Em 8 de Fevereiro de 1636, de acordo comManuel de Faria e Sousa, uma estátua de Cristo crucificado, na igreja do conventofeminino de Santa Mónica, em Goa, abriu os seus olhos, deixando as extáticas freiras emterror sagrado e altos gritos. Estas “visões” eram observadas com cepticismo pelocauteloso confessor agostinho que tinha sido adscrito ao convento. Em cerca de doisdias, a escultura também abriu a sua boca como se fosse falar e sangrou dos seusestigmas, parecendo mover-se como se estivesse viva. Estes eventos encheram a igrejacom pessoas e forçaram o bispo D. frei Miguel Rangel a investigar o milagre juntamentecom os inquisidores e o governador Pedro da Silva.70 O milagre era um sinal divino claropara os vários inimigos da instituição, o primeiro convento feminino da Ásia.71 Outrosinal, ou simples negligência, foi o incêndio que destruiu o velho convento na noite deNatal no ano de 24 de Dezembro de 1636. O incêndio começara no presépio iluminadopor velas. Ora, o edifício reconstituído é uma das estruturas mais impressionantes daGoa contemporânea.

42 Todas estas visões e aparições têm em comum o movimento. Os objectos sagrados são

representados como fazendo esforços especiais, movendo-se e falando aos seuspossuidores. Há uma urgência e uma ânsia pelo milagroso, como se o tempo tivesseacabado (e tinha) para este tipo de apresentação divina. De facto, em meados do século

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XVII, o espectacular estava a substituir o milagroso. Mas durante os quatro meses quepermaneceu em Goa, Mastrilli conseguiu juntar o milagroso e o espectacular. À suaexperiência como decorador em Nápoles, e como colector de financiamentos durante asua viagem pelo Sul da Europa, foi dado bom uso em Goa. Entre 8 de Dezembro de 1635,quando chegou, e Abril de 1636, quando partiu para Malaca e depois para Macau,Manila e Japão, conseguiu inflamar os cristãos com uma devoção extraordinária.Enquanto orava na igreja de Bom Jesus, em Goa, as pessoas cortavam furtivamentepartes das suas roupas, para as levarem como relíquias. Mesmo as suas velhas roupaseuropeias, que tinha trocado pelas vestes típicas da Índia (abito all’use dell’India), foramdivididas em pequenas partes e distribuídas entre os goeses.72

43 O que fica explícito na descrição hagiográfica detalhada de Cinami e Bartoli é a obsessão

de Mastrilli com a relíquia de Xavier. A gestão do corpo do Santo tem, ela própria, umahistória rica.73 Os jesuítas de Goa batalharam muito para impedir a dispersão dasrelíquias. Desde o momento da sua morte, o corpo de Xavier foi roubado, mutilado,partes dele mordidas, e quer Lisboa, quer Roma, não cessaram de pedir a repatriação detoda a relíquia. Mais ainda, os oficiais portugueses e provinciais jesuítas continuavam aabrir o caixão e a examinar o corpo, apesar da proibição estrita do Geral da ordem. Arazão para esse interesse interminável era o facto de a sua “incorruptabilidade” estarinvestida de um sentido político último. Na zona tórrida onde, de acordo com aexperiência portuguesa, tudo apodrecia, incluindo os corpos e as almas dosportugueses, o corpo fresco do seu santo protector constituía um milagre político ereligioso constante. No corpo do santo, a sociedade colonial indo-portuguesaobservava-se a si mesma, a sua glória e a sua corrupção, as suas esperanças e o declínioanunciado. Depois da canonização, o acesso ao corpo foi restringido, especialmentedepois de se verificar que relatar os sinais de degenerescência era politicamenteimpopular.

44 Mastrilli, que se ajoelhava noite após noite no nicho da capela, aos pés do Santo, em

oração profunda e meditação, vislumbrou uma estratégia para levar as autoridadesjesuítas a deixarem-no “tocar e beijar” o Santo com quem reclamava estar empermanente comunhão mística. Em primeiro lugar, tinha um pretexto altamentepersuasivo para abrir o caixão. A rainha de Espanha tinha mandado por Mastrilli umacasula sofisticada que devia substituir a anterior, “pobre” (povero) e velha, na qualestava, mais do que vestido, envolvido.74 O maior privilégio de despir e vestir a relíquiasanta e de o abraçar e retirar algumas relíquias foi dado a Mastrilli um mês antes da suapartida para Malaca. Então foi-lhe entregue uma toalha (tovagliuola) impregnada com osangue de Xavier, que usava à volta do pescoço e uma pequena caixa (forzieriono) compartes dos seus intestinos.75 Durante a última etapa da jornada terrestre pelo SudesteAsiático, os intestinos pulverizados e prensados de Xavier foram noticiados como tendoproduzido milagres. Antes da sua execução no Japão, Mastrilli ofereceu-os comoremédio para uma doença do Xogum. Mas o seu toque milagroso estava a perderenergia.

45 A redecoração da relíquia de Xavier secundou os três meses de esforço persistente, por

parte de Mastrilli, no sentido de arranjar dinheiro para pagar um caixão sumptuoso deprata, o qual ainda está exposto em Goa A maioria dos fidalgos goeses e de mercadoresricos contribuiu para a caixa de prata duas vezes maior do que a anterior, embelezada àvolta dos quatro lados com 32 baixos-relevos em prata com cenas da vida de Xavier. É aobra-prima de ourivesaria indo-portuguesa. Mastrilli conseguiu reunir doze mil

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escudos e o seu amigo, o capitão António Teles de Silva, contribuiu com pelo menos doismil escudos.76 Foram necessários vinte meses para que os ourives locais terminassem aestrutura complexa de baixos-relevos, colunas, folhagens enroladas e arabescos, pedraspreciosas encastradas e figuras de anjos. No topo da estrutura, no centro, estavainserida uma cruz com o emblema da Companhia de Jesus. A parte inferior do sarcófagoconsistia em dois níveis de gravados em prata representando o ciclo de vida de Xavier,desde a visão/profecia da sua irmã Madalena, (que viu que o seu próprio irmão seriauma das colunas da igreja), passando pela vida do Santo na Europa, Índia, Japão, e a suamorte na ilha de Sancian e os milagres depois de morto.

46 Gravada em prata estava, pois, a narrativa dos episódios mais importantes da vida de

Xavier, e o responsável por estes quadros foi o próprio Marcello Francesco Mastrilli. Ascenas seleccionadas eram topoi standard da literatura hagiográfica impressa sobreXavier, para quem o cânone iconográfico tinha em parte sido estabelecido durante acanonização de 1622.77 Segundo Schurhammer, muitos dos gravados em prata eraminspirados por uma colecção de gravuras de Regnartius Valerianus. Contudo, face umaobservação mais atenta, a interpretação que o ourives faz da narrativa de Lucena,parece ser bastante livre quer no tratamento das figures humanas quer dos episódiosnaturais e sobrenaturais. Há, pelo menos, dois episódios que foram uma evidenteinvenção iconográfica de Mastrilli. Significativamente, eram a primeira e a última dasrepresentações da vida do santo no caixão de prata. A primeira representa Madalena deIassu, a irmã de Xavier, a abadessa do mosteiro de Clarissas de Gandia, prostrada no seuleito, com as mãos juntas sob uma pintura de um santo. O santo transporta na sua mãodireita um bordão e está vestido como um peregrino cingido. Com a sua mão esquerdaaponta na direcção de Madalena como se estivesse a dar-lhe um conselho ou umaordem. O que é interessante é que esta cena não se encontra nem na Vida de Lucena,nem em qualquer outra hagiografia escrita antes de 1636. De acordo com a narrativa“oficial”, a irmã de Xavier recebera proféticas “ilustrações e revelações vindas do Céu”sobre o seu irmão, sem mais detalhes específicos.78 Não se refere qualquer imagemmilagreira que a ajudara a ver os eventos futuros.

47 Por que é que Mastrilli incluiu, então, esta pintura de um santo anónimo na parede? A

resposta encontra-se, julgo, na última ilustração do caixão, a qual retrata uma cena quenão tinha ainda sido representada como parte da vida e dos milagres depois da mortede Xavier. Era o episódio da visão profética de Mastrilli e da sua cura. O momentoescolhido do milagre é aquele em que Xavier saiu da moldura da pintura milagreira. Oque vemos, de facto, é a moldura vazia. Xavier está de pé atrás da cama, a qual está nocentro da imagem, com Mastrilli moribundo. O santo tem o seu bordão na mãoesquerda, tocando, ou quase tocando, a garganta de Mastrilli com a mão direita. A cenaé maravilhosamente dramática, com outros jesuítas ajoelhados, ou olhandopiedosamente para o ar, ou para Mastrilli, já que não podiam ver nada. O próprioMastrilli estava deitado, com os olhos fechados, à espera da morte, com uma cruz namão direita e um pequeno relicário na outra. Um esqueleto com uma seta partida estápor detrás dele, e na parte superior da pintura três anjos olham para baixo a partir denuvens prateadas e fofas. O que as cenas iniciais e de fecho têm em comum é arepresentação do santo vestido como peregrino, com o bordão na mão. Foi Mastrilliquem acrescentou a figura do santo peregrino à visão de Madalena. A ambiguidade darepresentação – já que a figura com o bordão e túnica cingida tanto podia ser São Tomé,o primeiro apóstolo da Índia, como São Francisco Xavier – dialoga bem com o últimogravado no qual Mastrilli se auto-representa recebendo o chamamento profético de

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Xavier para o Oriente. Foi relatado, aliás, que a cruz miraculosa de Meliapor, o alegadolugar onde o martírio de São Tomé tivera lugar, começara a suar novamente quandoMastrilli chegou a Goa.79

48 É o ciclo de profetismo que estimula todas as Vitae verdadeiramente santas, já que o

cenário foi escrito para todos. Mastrilli, que provavelmente fez os desenhos, nunca viuo produto acabado. Um gravado semelhante, com a cura de Mastrilli, foi incluído numdos lados do relicário que continha a casula de Xavier, talvez a mesma que Mastrillitirou, com as suas próprias mãos, do corpo do santo.80

49 O problema do peregrino mantém-se e pode não ser facilmente respondido. Mastrillil

nem sequer esperou para ver o seu grande projecto terminado, acabando por partir. Deacordo com os hagiógrafos, as notícias sobre a apostasia e o martírio dos missionáriosjesuítas no Japão estimularam Mastrilli para a última parte da sua jornada. Por outrolado, a Índia, e Goa em particular, eram vistas como uma “perda de tempo”, comoXavier costumava dizer, para um jesuíta ambicioso. A administração colonialportuguesa e a máquina eclesiástica bloqueavam, com alguma frequência, as práticasdos missionários mais inovadores e refreavam a maior parte dos movimentos políticosdos jesuítas. A estada de Mastrilli em Goa foi suficientemente longa para estimular oculto a Xavier, que os jesuítas promoveram de forma especial depois da canonização. Ofacto de a visão e o milagre aparecerem em Nápoles, e não em Portugal, devia-se àcircunstância de, segundo Manuel de Lima, “[o santo] o qual pareçe, que descontente jada piedade portugueza, que em tempos antigos deu mate as mais naçoens, achandosseagora peregrino, e desconheçido na India se foi em semelhante trajo a Napoles, para dela traser quam ca nos viesse afervorar, & lembrar a os povos do Oriente, que recuperemcom nova veneraçam, e concurso os quilates do fervor, que pello discurso do tempo,com a comunicação de infieis, e liga do interesse, foi tanto descaindo e definhandoneste Estado”.81 Nesta última frase da Relacam, a sensação de declínio e de perda donervo spiritual é pedagogicamente exagerada, já que o culto a Xavier estava a aumentardesde que o Estado da Índia experimentava uma catástrofe militar após outra ao longodo século XVII.

50 Se o corpo entombado de Xavier continuava a providenciar legitimação para os jesuítas

na Ásia, também se tornou um baluarte do orgulho nacional português e dopensamento imperial positivo. De forma crescente após o fim do “cativeiro espanhol”,em 1640, o papel militante e militar do Santo como patrono de Goa foi enfatizado. Elenão continuou, apenas, a curar os doentes, mas também foi visto em aparições com umglobo branco, rezando por D. João IV, etc., etc.82 A veneração a Xavier adquiriu novoscontornos, e, mais do que tirar peças de relíquias da sua tumba, objectos eramcolocados na sua vizinhança e sobre o seu corpo. O próprio Mastrilli insistira emcolocar na sua mão esquerda uma nota escrita com o seu próprio sangue, na qual diziaquerer seguir todos os seus passos até ao Japão.83 Durante a segunda parte do séculoXVII cada governador ou vice-rei juntou uma ou outra coisa. O bordão feito em ouro edecorado com diamantes e esmeraldas parecia ser um presente óbvio do poder maiselevado do Estado da Índia, especialmente durante o tempo de perigo no qual o próprioXavier era investido no comando da cidade.84

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Encruzilhadas perigosas

51 Em Abril de 1636, Mastrilli atravessou os mares de Malaca, onde permaneceu durante

pouco tempo antes de continuar para Macau e para o Japão. Entre os barcos hostisneerlandeses e as tempestades típicas, Mastrilli e os seus quatro companheirosarribaram em Cavite (a 30 de Julho de 1636) na baía de Manila. Aqui, uma outra visãoprofética de Mastrilli tornou-se realidade. Encontrou Don Sebastián Hurtado deCorcuera, o cavaleiro da Ordem de Alcântara que lhe tinha aparecido durante umadoença em Nápoles. “Um cavaleiro [apareceu-lhe] no hábito dos de [a ordem de]Alcântara com uma cruz verde ao pescoço, sobre quem não sabia mais nada do que seriaum bom amigo seu e para quem ele teria boa utilidade.”85 Para Corcuera, antigogovernador do Panamá e governador das Filipinas desde 1645, e que estava, aliás, emconflito com o arcebispo de Manila, Frei Hernando Guerrero, a aliança com os jesuítaslocais era uma escolha estratégica. Precisava de apoio “religioso” para as suasexpedições militares na região, e os jesuítas estavam prontos para o apoiar. ParaMastrilli, por seu turno, tornou-se cada vez mais difícil persuadir as autoridadesseculares a permitir-lhe prosseguir para o seu destino predestinado, o Japão. Ao prestarserviços a Corcuera, pretendia, claramente, ser recompensado com a permissão e aajuda logística para a sua viagem ao Japão. Nas duas narrativas hagiográficas, o gentilperegrino tornava-se, naquele momento, num combativo soldado de Cristo. O seusangue aristocrático e a sua educação tinham-no preparado bem para esta tarefa.Contudo, ele não lutou com as armas dos soldados, mas, e mais uma vez, com as suasintuições proféticas e com a gestão virtuosa das imagens. Tanto Cinami quanto Bartoliconstruíram a narrativa da liderança de Mastrilli como um palimpsesto do interessesanto de Xavier. Especialmente para Cinami, toda a região entre as ilhas das especiarias(Molucas) e as Filipinas era o espaço das acções sobrenaturais e heróicas de Xavier.

“O santo, era o primeiro a ter levado a fé para a ilha de Mindanao, observando doCéu, com ternura, aqueles lugares. Nestas ilhas, além do mais, deixara exemplos doseu fervor, e pode ser lido nas nossas cartas ânuas que durante a Quaresma fizeratanta penitência para converter alguns pecadores obstinados que arruinara a suasaúde ficando às portas da morte.”86

52 A morte próxima de Xavier e os milagres que então o tinham salvo, bem como os signos

da protecção divina, eram projectados para o exército comandado por Corcuera. Toda aempresa foi colocada sob a liderança do santo cujo projecto seria realizado pelopequeno mas corajoso exército de soldados piedosos.

53 De facto, o exército não era tão pequeno assim, mas estava disperso pelos presídios ao

longo da costa e era incapaz de suster os ataques anuais e os raides de um talentosopríncipe muçulmano do Grande Rio Kudarat (Sultão Muhammad Dipatuan) e do seucomandante Tagal. O primeiro objectivo do ataque espanhol ao Mindanao era a defesados estabelecimentos nas ilhas Visayan, como Zamboanga, com uma pequenaresidência jesuíta, de modo a evitar que os muçulmanos cooperassem com osneerlandeses que ameaçavam a orla marítima. Mastrilli, que fora escolhido para aexpedição que deixou Manila a 2 de Fevereiro de 1637, parou em Iloiolo paraabastecimentos e colocou uma armadilha para a armada de Tagal no lugar designadoPunta Flechas (localmente conhecido como Panaon). Para os Maguindanaos e outraspopulações locais, este lugar era um oráculo possuído pela divindade. Era um hábitolançar setas no precipício antes do início de uma viagem. Se as setas aí ficassemcravadas, era sinal de boa sorte. No caminho para uma jornada de sucesso, iriam

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desembarcar para agradecer e dar oferendas para um fim favorável. Corcuera colocou oseu exército próximo de Punta Flechas, certo de que a frota de Tagal iria cair naarmadilha.

54 Este arranjo militar ofensivo é transformado na literatura hagiográfica sobre Mastrilli

num milagre permanente.“Logo que foram armadas e começaram a batalha marítima e na terra contra obárbaro Corralat [Kudarat] , aquele que ler esta história verá o milagre contínuo deSão Francisco Xavier, como foi o caso de toda a vida do padre Marcello, pois não erauma regra, mas um triunfo contínuo.”87

55 Em particular, o maior desafio de Mastrilli era destruir “o grande Demónio de

Mindanao” que continuava a gritar-lhe “porque vieste? Do que estás à procura e quemte trouxe aqui? Que sejas danado, não tarda nada e ter-te-ei tirado a vida, e istoacabará”.88 Este tipo de questões eram já um topos na literatura da “descoberta”, paracomeçar com a mais famosa delas, colocada por João Nunes, um degredado mandadopor Vasco da Gama, a uma praia perto da cidade de Calecute, em 21 de Maio de 1498.Um comerciante muçulmano que falava castelhano e genovês disse-lhe: “O demónio televe! O que te traz aqui?”.89 Demónios ou muçulmanos eram os guardiães dos limites domundo conhecido, causando sempre respostas militares por parte dos portugueses naÁsia. De facto, a sua presença era uma prova da missão divinamente ordenada, querpara os destruir, quer para os converter.

56 A frota de Corcuera, quando estava pronta para deixar Manila, assemelhava-se mais a

uma cruzada do que a um affair local de pequena escala, como de facto era. Para alémdo mais, Mastrilli pediu que duas imagens sagradas fossem içadas no mastro comobandeiras. Uma foi a “imagem milagreira” (imagine miracolosa) de São Francisco Xavier,presumivelmente uma das muitas cópias feitas a partir do original de Nápoles. Asegunda imagem era uma peça de pintura retalhada que representava Jesus na cruz, aqual se encontrara na batalha mais recente no corpo de um muçulmano morto. Imagenssagradas mutiladas e danificadas tinham um valor particular para a história cristã.Eram mártires de seu próprio direito, eram pretexto para respostas violentas. Tal comoas imagens milagreiras, não tinham, de preferência, um autor identificável, exceptoaquele que a tinha injuriado. A pintura encontrada no muçulmano morto tinha a mãodireita e as duas pernas amputadas, e tinha sido furada no meio de forma a poder serusada como uma capa (capoto).90 Para Daniello Bartoli, aqueles que faziam estes ultrajesnão eram melhores do que “cães”.91

57 Sob estas duas bandeiras poderosas, o exército de Corcuera assemelhava-se menos “a

uma companhia de soldados do que a uma procissão religiosa sob um capitão tão bom”.92 Enquanto as imagens santas protegiam a frota, as decisões estratégicas cruciais eramfeitas, de acordo com Cinami, através do método popular de adivinhação. Mesmo antes,ainda no mar a caminho de Goa, Mastrilli era conhecido por consultar cartas deFrancisco Xavier, de modo a decidir qual era o curso de acção certo e divinamenteinspirado. Abrindo arbitrariamente qualquer uma das páginas, e lendo a primeira fraseque lhe vinha à vista, Mastrilli era capaz de conduzir com segurança barcos ao seudestino.93 Como é frequente, a escrita hagiográfica é um tecido que combina de formasofisticada significados proféticos, literais e até irónicos. Como jesuíta, esperava-se queMastrilli, de acordo com a fórmula inaciana clássica, inflamasse as almas com o desejode conversão. Em Mindanao, contudo, ele iria mais longe. Com a sua própria mão “tirou

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uma tocha e pôs fogo àquela infinita multidão de frechas”.94 Depois de todos eles teremsido queimados, o lugar foi rebaptizado Cabo de San Sebastian.

58 Depois de terem arribado e tomada a cidade fortificada de Lamintan, capturando no

caminho dois barcos mercantes de Java, cheios de bens e de escravos, Corcueraperseguiu Kudarat até à sua fortaleza na montanha de Maguindanao. O relato queCinami faz da operação é uma colagem das orações, exortações, celebração da missacheias de lágrimas e acções militares extremamente sangrentas de Mastrilli. Quase todaa gente e todas as coisas foram destruídas durante os assaltos. Muitos espanhóis forammortos ou feridos pelos canhões inimigos. Mesmo Mastrilli recebeu uma bala de lado.Enquanto atravessou o seu hábito, por um “grande milagre” (miracolo grandissimo), nãolhe causou nenhum outro mal e “caiu aos seus pés como se pedisse desculpa”.95 O hábitofurado de Mastrilli terminou como uma relíquia em Nápoles, de acordo com DanielloBartoli.96 Chegou depois da partida de Cinami para a Índia em 1644, já que ele não omenciona no seu texto impresso em de 1645.

59 A imagem de São Francisco Xavier acabara numa bandeira militar, a qual continuou a

ser levada no chão, sendo também atingida, mas sem quaisquer sinais de dano.97 Paramais, Mastrilli profetizou um dia de grandes perdas para os espanhóis, mas, depois deuma outra visão de Xavier, predisse a vitória final. Com a fuga de Kudarat e o ataquefinal à fortaleza, o resto da armada espanhola partiu para Manila. No caminho deregresso, com muitos soldados feridos fora, o papel de Mastrilli como soldado religiosofoi substituído pelo de jesuíta enfermeiro e curandeiro. Não só profetizou que nem umsó doente morreria, mas também administrou a sua famosa mistela feita a partir do póde relíquias do Santo Xavier. 98

60 O fim desta conquista militar na qual Mastrilli foi aclamado como um soldado corajoso

concluiu-se com a entrada triunfal em Manila.“Em todas as ruas foram erguidos arcos triunfais e todas as paredes estavamornadas com tapeçarias preciosas, e ao longo da cidade ouviam-se os sinos e outrasdemonstrações de alegria”.99

61 Mastrilli estava longe do seu trabalho de decorador, mas não longe do seu acto final, o

martírio no Japão.

62 Partir para o Japão era definitivamente visto como uma santa loucura. No regresso da

expedição de Mindanao a Manilla, a única viagem autorizada foi a Macau. O Japão eraconsiderado um lugar pouco seguro e praticamente fechado aos europeus,especialmente católicos. Os dois maiores de entre os primeiros hagiógrafos de Mastrillidivergem consideravelmente na sua interpretação dos eventos que conduziram àpartida de Mastrilli para o Japão. Para Cinami, os sinais de predilecção e oencorajamento santo de Xavier continuavam a revelar-se em pequenos e grandesmilagres. Apesar da sua oposição aberta a esta viagem, tinha o apoio secreto dogovernador espanhol e de outros oficiais superiores. Oficialmente, ia para Macau, masgradualmente tudo foi preparado para a viagem ao Japão, incluindo a construção de umpequeno barco japonês, funea, que seria montado no mar para essa etapa final dajornada. Durante a sua estada de seis meses em Manila, Mastrilli trabalhou muito parase parecer com, se comportar como e falar japonês. Deixou crescer o cabelo e vestiu-secom roupas japonesas, e, segundo Cinami “nos gestos, nas palavras, na aparência e novestir, mudara tanto que parecia ter-se transformado noutra pessoa”.100 É evidente queMastrilli se estava a preparar para um missão “acomodacionista”. Sobretudo os jesuítasitalianos experimentaram na Índia, na China e no Japão esta missão experimental e

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perigosa, considerada suspeita pelas autoridades portuguesas e espanholas, e atémesmo pelos jesuítas portugueses. Estas missões também eram consideradas muitocaras, pelo que Mastrilli mobilizou espanhóis piedosos de Manila para contribuir para oorçamento da sua missão. Segundo Cinami, ele foi inundado em dinheiro, já que aspessoas “entregavam-lhe os botões de ouro das suas roupas, os colares que tinham aopescoço, as mulheres tiravam os brincos e as pérolas” de forma a obter dinheiro para asua missão.101

63 O facto de Mastrilli ter feito preparações, tais como a aprendizagem da língua e dos

hábitos do Japão era, segundo Daniello Bartoli, a prova de que ele não tencionava sermartirizado de imediato. No élan hagiográfico de Cinami, de Mastrilli “os votos e todosos seus desejos anunciavam a morte”.102 Bartoli não concorda com isto. Comohistoriador oficial da Companhia de Jesus na Ásia, não só tinha um melhor acesso aosdocumentos, testemunhos e cartas dos actores históricos, como o seu dever e vocaçãoera apresentar a pintura “objectiva”, pela aplicação de normas e moldurasinstitucionais. O argumento jesuíta para o martírio era mais o de o evitar do que o de oprocurar a qualquer preço, precisamente porque os custos eram elevados para aCompanhia de Jesus, constantemente com problemas de dinheiro, especialmente nasmissões ultramarinas. Muito embora o desejo pelo martírio fosse consideradoexcelente, a renúncia ao martírio por esforços ainda maiores de aprendizagem dalíngua e do trabalho pastoral e missionário ainda era vista como ainda melhor.

64 A parte da biografia de Mastrilli que teve lugar entre Manila e o Japão é o único

momento em que Bartoli não segue a narrativa de Cinami. Para Cinami, era o negóciodo costume, com curas milagrosas, imagens que lançavam raios de luz e todo o tipo deanúncios proféticos. Para apoiar a sua interpretação, Cinami cita ou parafraseia váriascartas de Mastrilli aos seus contemporâneos. Assim, ficamos a saber que Mastrillimudara o seu nome (mais uma vez) para Francesco della Croce, e que o Governador dasFilipinas lhe tinha oferecido seis mil escudos pelo seu corpo depois de martirizado.103

65 Com base nas cartas de Mastrilli e seus superiores deste período, Bartoli reconstrói uma

história diferente. Contra os exageros hagiográficos, cita uma carta na qual Mastrillidesvenda os seus motivos, como a reconversão de Cristóvão Ferreira, de forma que,depois, ambos pudessem morrer mártires. A segunda intenção era obter a“transformação material e temporal do imperador do Japão”.104 De forma a alcançar osdois objectivos, Mastrilli precisava de pelo menos um ano, defendeu Bartoli.

“Percebe-se claramente que aquele que escreveu que o padre Marcello tinha ditoque seria apanhado e martirizado mal chegasse ao Japão foi demasiado longe”.105

66 Evidentemente, era o fracasso da hagiografia, não da profecia. Contudo, uma crítica

indirecta do comportamento de Mastrilli entrevê-se nas cartas que os superiores lheenviam, as cartas que nunca chegou a recebe, nas quais era fortemente proibido deprosseguir viagem até ao Japão. De forma análoga, Francisco Xavier nunca recebeu umacarta de Inácio de Loyola ordenando-lhe o regresso imediato à Europa. Evitar cartascom ordens, bem como evitar as ordens, era uma estratégia incontornável nas missõesultramarinas, onde os superiores estavam a milhas de distância e eram com frequênciaincapazes de entender os finos detalhes da situação local. Dado que a resposta a umacarta, no pior dos casos, demorava anos a chegar, numa altura em que a configuraçãodas relações de poder se tinha já alterado, tornando inútil a opinião do superior, asdecisões tinham de ser tomadas ad hoc, à revelia de excessos de consulta. Os jesuítas de

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famílias aristocráticas eram provavelmente os mais bem equipados para lidar comsituações de incerteza, sem regras escritas.

67 Ao argumento de Mastrilli de que as suas decisões resultavam da comunicação

milagrosa com o “mais glorioso Apóstolo da Índia”, Bartoli justapunha a carta dosuperior Manuel Dias lembrando-lhe que os servos de Deus deviam compreender arevelação divina como não sendo mais do que “inspiração e bons pensamentos”, nãonegligenciando a “prudência humana”.106 “A experiência”, Bartoli citava Dias,“mostrou-nos neste Oriente, que o fracasso da empresa divina se deveu à ausência doconselho humano”.107 O seu conselho e ordem para regressar a Macau chegoudemasiado tarde para Mastrilli. Este tinha atravessado o mar e encontrava-se já nacosta do Japão.108

68 Mesmo Cinami teve de aceitar que alguma coisa estava errada no raciocínio humano de

Mastrilli. O missionário napolitano estava demasiado seguro do seu papel na conversãodo Japão e de todo o mundo.

“Pensou que Deus lhe tinha dado aquelas vestes e prendas com o objectivo de otornar num outro São Francisco Xavier que converteria milhões de almas”.109

69 Não era ele o único a ter este tipo de expectativas, Cinami afastou toda a suspeita de

qualquer falta de ortodoxia da parte do missionário, já que “toda a Europa e toda aÍndia esperavam que o padre Marcello converteria o mundo inteiro com a sua voz”.110

Fora a voz a falhar-lhe. Já que fora divinamente ordenado “a não pregar com a voz, mascom as suas feridas”.111 Na narrativa hagiográfica de Cinami, os motivos e osargumentos andam aos círculos sem fim. Cada novo movimento legitima o anterior eprefigura o que se lhe segue. Assim sendo, a ferida recebida em Nápoles reaparece comouma profecia das feridas mortais de Mastrilli no Japão. O “tratamento” médico quetraumatizara a sua boca prefigurava as torturas no Japão nas quais uma peça de metalornada com pregos escovou a sua boca com o objectivo de o impedir de pregar.Profecias recicladas eram reutilizadas de forma a resolver todos os nós do inexplicáveldestino e a transformar em “triunfo” a inquestionável futilidade do seu sacrifício.

70 Desde o momento em que Mastrilli aportou em HyYga, em Setembro de 1637, até à sua

decapitação a 14 de Outubro, nem sequer passara um mês inteiro, diz a sua biografianum martirológio ordinário. O espaço japonês é reduzido a uma cena vazia na qual ostorturadores de Mastrilli, admirados mas espectadores mudos, e os anjos entram esaem num ritmo e numa cadência de uma lenta tragédia agónica. Para que todos osleitores se apercebam, de forma intuitiva, do argumento, o autor pode permitir-se adescrever, num modo quase voyeurístico, os instrumentos de tortura e os seus efeitos.Contudo, à medida que o corpo de Mastrilli enfraquece sob as variadas e dolorosastorturas – pendurado de cabeça para baixo num tanque cheio de água e de vaporesintoxicantes; tendo as suas partes privadas feridas com um ferro em brasa –, é a suaalma que adquire uma força sobrenatural. É então que é visto a levitar do chão, àsemelhança do que Xavier fizera. Um raio de luz magnificente foi visto a descer do céuna direcção da prisão na qual estava preso. Os anjos vieram fazer-lhe companhia. Emvez de dor, as torturas provocavam-lhe o êxtase. Em vez de estar pendurado no tanque,sentia-se como estando “deitado numa cama de rosas”, pedindo para ficar sozinho poisestava no Paraíso.112 O efeito desta série de inversões era potenciar a estética da dor. Onaturalismo cru da descrição das partes do corpo afectadas está exagerado e oesplendor sobrenatural dos seres terrestres, pairando e gozando os raios de sol. Talcomo nas igrejas barrocas, onde os seres celestiais estavam no tecto, lançando olhares

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sedutores para os que viviam em baixo, a cena do martírio de Mastrilli é construída decima para baixo. O que se move de cima para baixo é a Providência. A profecia é omomento particular em que o raio da providência encontra o olhar do possuidorterrestre.

71 Na literatura jesuíta, o acto de profecia é uma situação inerentemente didáctica, levada

a moldar os arquivos da memória colectiva e institucional. Cinami é a testemunha dopoder da palavra escrita para o “sucesso” de um evento profético, ou uma vida coroadapela santificação social. Os escritores jesuítas levavam as palavras muito a sério porqueeram uma espécie de antenas divinas, e os livros impressos os seus altifalantes. Mastrillipodia ter ganho a liberdade de deixar Nápoles e viajar pelo mundo, mas estava aindaimpedido de a cumprir. A sua viagem suicida para o Japão, que até um hagiógrafodevoto como Cinami teve dificuldades em justificar, era uma escolha óbvia, pois o seuhabitus aristocrático tornava impossível abandonar o projecto e perder a sua santahonra. Numa perfeita imitação da vida de Xavier, Mastrilli bateu as asas da intuiçãoprofética da construção de si próprio, com as quais e a cada novo passo, o seu espaço demanobra se tornava cada vez mais reduzido. Sendo que Xavier tinha ido para o Japão,Mastrilli não tinha outra opção senão seguir o seu predecessor. Ou seja, ele seguia o seudestino como se estivesse a ler o livro do seu próprio futuro. Por vezes, e de acordo comCinami, Mastrilli mostrou, de facto, não apenas os seus talentos proféticos às pessoasque o rodeavam, mas também os livros que demonstravam que o seu futuro já tinhasido escrito. Enquanto partilhava a turbulência do oceano na travessia de Manila para oJapão, Mastrilli “mostrou-lhes [aos marinheiros] um pequeno livro intitulado A Viagem

da Conversão das Índias [Il viaggio della Conversione dell’India] no qual estavam escritos,passo a passo, todas as tormentas e perigos que eles iriam atravessar durante essaviagem, provocando maravilhamento naqueles que o liam”.113 Quando argumentavacom os seus inquisidores em Nagasáqui, Mastrilli não só lhes contou sobre a sua visãomilagrosa de Xavier em Nápoles, como também lhes mostrou “um relato dela impresso,e a imagem milagreira do Santo”.114

O “Segundo Xavier”

72 A incerteza sobre o seu destino, se é que a tinha, terminou com o terceiro golpe de uma

espada no seu pescoço. A não ser, claro, que decidamos confiar nas fontes hostisescritas pelos japoneses, que argumentam que Mastrilli morrera aos gritos no tanque.Com o seu curriculum vitae concluído, o passo lógico seguinte era a canonização.Contudo, esta parte escapava-lhe, estando nas mãos dos seus amigos e clientes. Duranteos três anos de longas viagens, Mastrilli conseguira estabelecer uma sólida rede deadmiradores, os quais mostraram as suas boas intenções logo depois de terem recebidoas notícias da sua morte. Em Lisboa, Nápoles, Manila e outros lugares, a notícia do seumartírio foi celebrada com procissões e decorações espectaculares nas ruas e nasigrejas, assim como “música soberba e fogo-de-artifício”.115

73 Não muito depois, sete biografias de Mastrilli (Vite) e vários outros relatos com milagres

particulares foram publicados e traduzidos “em todas as línguas” (in tutte le lingue).116 Asua fama era tão grande, insistiu Cinami, que era reverenciado por todas as nações, nãoapenas na Europa e na Ásia, mas também em lugares aos quais nunca tinha idopessoalmente. “Algumas cartas chegavam da América até Nápoles, onde, percebi, ochamavam o Segundo Xavier”.117 Cinami não é mais preciso quanto à origem destas

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cartas. É possível traçar, contudo, uma conexão americana de Mastrilli. A América emquestão era a Baía-de-Todos-os-Santos, no Brasil, e o admirador de Mastrilli, AntónioTeles da Silva. Mastrilli tinha-o encontrado pela primeira vez enquanto capitão-mor dafrota que o levara de Lisboa até Goa. Antes de deixar Goa, Mastrilli escrevera-lhe umacarta, na qual aludia ao seu martírio e revelava mais algumas visões de São FranciscoXavier. “Deus deseja que o mesmo Santo [Xavier] vos visite num hábito branco e comuma cruz ao pescoço, uma candeia e um bordão”.118 Tal como Mastrilli, também AntónioTeles da Silva estava muito ocupado no Oceano Índico entre 1635 e 1640. Chegoumesmo a ser nomeado Governador de Goa, depois da morte do vice-rei Pedro da Silva,em 1639. A maior parte do seu tempo na Ásia, antes do seu regresso a Portugal, em1640, foi passado a atacar navios neerlandeses, com o intuito de defender osestabelecimentos portugueses na Índia e no Sudeste Asiático.119 Foi ele quem ordenouuma cavalgada sumptuosa, em Lisboa, para celebrar a morte heróica de Mastrilli.120

74 Em 1642, António Teles da Silva, um amigo da Companhia de Jesus, financiou a

celebração da festa de São Roque na casa professa dos jesuítas de Lisboa. Quem fez osermão não foi senão o jesuíta português mais conhecido, o padre António Vieira.121

Vieira tinha chegado do Brasil um ano antes, com o intuito de protestar a lealdade dossúbditos brasileiros ao novo rei de Portugal, D. João IV.122 A separação de Portugal daEspanha e a restauração da dinastia real portuguesa tornaram-se um dos tópicosobsessivos de Vieira. Era um escritor prolífico, e é considerado um dos pais da prosaportuguesa. Quando pronunciou o seu sermão em 1642, no qual retratou São Roquecomo um padre “professo da Companhia em espírito”, e o “filho de Santo Inácio deLoyola em profecia”, a sua carreira em Portugal estava a começar.123

75 É muito provável que António Teles da Silva tenha referido a sua relação próxima com

Marcello Mastrilli. Pode até ter mostrado a Vieira as relíquias que tinha de Mastrilli, talcomo o chicote com o qual o jesuíta napolitano costumava disciplinar-se.124 Vieira podeter encontrado, também, Leonardo Cinami, antes de ele ter partido para a Índia.Contudo, o seu projecto era muito maior do que celebrar um jesuíta italiano na Ásia.Especialmente depois de ter passado oito meses em Amesterdão, onde encontrara o rabide origem portuguesa, Menasseh ben Israel, Vieira desenvolveu um milenarismolusocêntrico.125 A veia profética, já expressa em poucas palavras em 1642, co-envolvendo a coroa de Portugal na história mundial da cristandade e o papel daCompanhia de Jesus na conversão do mundo, tornou-se um tema central em toda a suaobra literária. Vieira vinculava-se à tradição profética dos jesuítas, especialmente àshagiografias dos pais fundadores Loyola e Xavier, através das quais a Companhia deJesus entreteceu a sua história institucional na história portuguesa.

76 Especialmente durante a última fase da sua vida nas duas séries de sermões “Xavier

dormindo” e “Xavier acordado”, escritos para a rainha Maria Sofia Isabel de Neuburgo,a segunda mulher de Pedro II, Vieira transforma Xavier num profeta da realezaportuguesa. Ainda antes, no Sermam de acçam de graças pregado na catedral da Baía emDezembro de 1688, Vieira estabeleceu uma associação directa entre a Incarnação eXavier:

“De sorte, que das três pessoas, ou dos três garfos da Santíssima Trindade separouDeus o segundo, que é o Verbo, e o enxertou no homem, para que desta maneiraunidas em um suposto duas naturezas, uma do Céu e divina, outra da Terra ehumana, pudesse o mesmo Verbo pregar, padecer, morrer e salvar o mundo. Aomesmo modo Xavier. Sendo Xavier Navarro, enxertou-o Deus em português, unindono mesmo sujeito duas naturezas, uma com que era natural de Navarra, e outra com

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que ficasse natural de Portugal; para que desta sorte pudesse pregar, trabalhar emorrer na conversão do novo mundo, e salvar aquelas almas, para cuja salvaçãotinha Deus escolhido particularmente aos Portugueses.”126

77 O facto de Xavier ser, inicialmente, um estrangeiro era claramente irrelevante.

Também a rainha o era, e ainda assim fora chamada a conceber o futuro rei. A acrescera isto, era através da sua devoção a Xavier que a governante era capaz de conceberfilhos. Quando o primeiro João morreu três meses depois do seu nascimento, em 1689,Vieira interpretou esta tragédia dinástica a partir de uma série de novas profecias.Sendo que o príncipe fora concebido pela veneração da rainha por uma imagem deFrancisco Xavier e uma relíquia de Goa, o segundo filho também estaria relacionadocom o Oriente.

“Porque se dado a primeira vez, veio de Goa na relíquia e barrete de S. FranciscoXavier, como já referimos; também dado a segunda vez virá da mesma parteoriental por intercessão do mesmo Santo, de cujo poder e favor tão experimentadoo esperam as orações e novenas de Sua Majestade. Nos dias em que tiveramprincípio os nove meses do primeiro parto, foi levada de S. Roque ao Paço a imagemde S. Francisco Xavier, com a qual falando a rainha nossa senhora, lhe disse compalavras muito portuguesas: ‘Meu Santo, dai-me um filho se Deus quiser’. Quis Deus,e não só quis Deus que fosse dádiva sua, senão do mesmo Santo.”127

78 O entusiasmo de Vieira pela linhagem da família real resulta do facto de ele considerar

o império português como o quarto império antes do quinto império de Cristo. A naçãoportuguesa e a Companhia de Jesus faziam parte deste plano divino, pensava Vieira,tentando prová-lo em todos os seus textos e na sua inacabada História do Futuro.Desenvolveu os pontos mais belos deste tema através da sua escrita profética.

79 A história de Marcello Mastrilli encaixava bem no projecto de Vieira. No nono sermão

do ciclo “Xavier acordado”, intitulado Braço

, Mastrilli tem um papel lateral na santidade post mortem de Xavier. Para Vieira, o Santotinha salvo Mastrilli das “gargantas da morte” em Nápoles, de modo a enviá-lo para omartírio no Japão “como eu [Xavier] sempre o desejei, e nunca pude conseguir”.128

Xavier, então, usara Mastrilli para realizar através dele alguns velhos e terrestressonhos. Na História do Futuro, o sonho profético de Mastrilli reaparece na máinterpretação deliberada que Vieira faz de alguns detalhes. De acordo com Cinami,Mastrilli tivera duas visões proféticas. Sobre uma delas escreveu ao seu amigo AntónioTeles da Silva dizendo que tinha visto um santo num hábito branco, com uma cruz aopescoço, e com uma candeia e um bordão nas suas mãos. Em relação à visão de umcavaleiro da Ordem de Alcântara, com uma cruz verde ao pescoço, Mastrilli identificá-la-ia, mais tarde, com D. Sebastiano Hurtado di Corcuera, o governador das Filipinas.129

Não há qualquer menção a uma terceira visão de um cavaleiro da Ordem de Cristo,directamente associada com a dinastia real portuguesa.130 Num horizonte muito maislato, Mastrilli era pouco mais do que um pequeno frade para o pregador e missionáriobrasileiro. Não havia espaço para um “segundo Xavier” italiano. Para Vieira, o destinoda Cristandade e do mundo, nos finais do século XVII, estava nas mãos dos portuguesese no sangue português.

80 No sermão que escreveu por ocasião do nascimento do quarto filho da rainha Dona

Maria Sofia Isabel, Dom António, em 1695, Vieira ofereceu uma profecia ambígua efloreada sobre o seu futuro. Dado que a concepção do príncipe fora atribuída, mais umavez, à intercessão de Xavier, Vieira viu-o como predestinado a estar vestido “do mesmo

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hábito do mesmo apóstolo, para que com ele recebesse o mesmo espírito, e seja umXavier segundo”.131

NOTAS

1. Bartoli, Daniello, Compendio della vita, e morte del P. Marcello Mastrilli della Compagnia di Giesu,

vcciso da idolatri nel Giappone, cauato dalla seconda parte dell’istoria dell’Asia, scritta dal P. Daniello

Bartoli della medesima Compagnia. In Napoli: Per Luc’Antonio di Fusco, 1671. [18], 176, [1] pp.: ill.; 21

cm. (4to). “Dedicata all’illustriss. & eccellentiss. signore don Federico de Toledo Ossorio [...] dal P.

Fra’ Gio: Battista Mastrilli da Napoli prouiciale de Cappuccini.”

2. Ricoeur, Paul, Time and Narrative, Chicago: University of Chicago Press, 1985, vol .2, p. 100.

3. Bakhtin, M. M., The Dialogic Imagination, Austin and London: University of Texas Press, 1981, pp.

425-426 “a unit of analysis for studying texts according to the ratio and nature of temporal and

spatial categories... An optic for reading texts as x-rays of the forces at work in the culture

system from which they spring”.

4. Carayon, August, ed., Bibliographie historique de la Compagnie de Jesus ou catalogue des ouvrages

relatifs à l’histoire des jésuites depuis leur origine jusqu’à nos jours, Genève: Slatkine Reprints (Paris,

1864), pp. 308-310.

5. Discutirei, aqui, dois livros. Um é a Relacam de hum prodigioso milagre que o Glorioso S. Francisco

Xauier Apostolo do Oriente obrou na Cidade de Napoles no anno de 1634, I H S, Ecce ego admirationem

faciam populo huic miraculo grandi, & stupendo Isaiae 29. Na India oriental. No Collegio de

Rachol, anno 1636. Com licença da Sancta Inquisicão, Ordinario, facsimile edition, Lisboa:

Biblioteca Nacional, 1989 (42 pp). A outra é a Vita, e Morte del Padre Marcello Francesco Mastrilli della

Compagnia Di Giesù. Composta dal Padre Leonardo Cinami della Medesima Compagnia, IN VETERBO Per il

Diotalleui. M.DC.XXXXV, Con licenza de Superiori. Staatsbiblithek, Ci 9580, Berlim.

6. Cinami, Vita, p. 5.

7. Cinami, Vita, p. 5. Também foi baptizado na Casa Professa dos jesuítas, em Nápoles, pelo padre

Stefano Maio, na presença do seu tio Gregorio Mastrilli. Foi dedicado à Companhia.

8. Cinami, Vita, pp. 7-8.

9. Cinami, Vita, pp. 32-64. O seu irmão marquês morreria, deixando dois filhos ainda crianças (o

rapaz com 3 anos e a menina com 4). A família da mãe, que tinha 25 anos, obrigá-la-ia a casar-se

de novo, o que não queria fazer a não ser que Marcello abandonasse a Religião para tomar conta

da família.

10. Sobre o disciplinamento, veja-se Adriano Prosperi, Tribunali della coscienza: inquisitori,

confessori, missionari, Torino, Einaudi, 1996.

11. Para os recrutados que pertenciam a famílias mais desfavorecidas, as resistências paternais e

familiares eram bem menores, já que juntar-se à Companhia de Jesus podia significar uma

melhoria do status social.

12. Fabre, Pierre-Antoine, “Prononcer ses voeux; Propositions pour une étude des rituels

d’énonciation orale du voeu dans la tradition des Ordres religieux ”, L’Inactuel, n.º 4, 1993.

13. Indipetae foram cartas escritas de 1570 a 1773. Continham os pedidos dirigidos ao Geral da

Companhia de Jesus pelos jesuítas que queriam partir como missionários.

14. Roscioni, Gian Carlo, Il desiderio delle Indie. Storie, sogni e fughe di giovani gesuiti italiani, Torino,

Einaudi 2001, p. 198.

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15. Archivum Romanum Societatis Iesu, Fondo Gesuitico [doravante ARSI, FG] 734, f 327r.

16. ARSI, FG734, ff. 330r-v.

17. Cinami, Vita, p. 17.

18. Cinami, Vita, p. 17.

19. Daniello Bartoli, Dell’Istoria della compagnia di Gesù; Il Giappone, seconda parte, Dell’Asia, libro

quinto, Firenze: Presso Leonardo Ciardetti, 1852, p. 105; Cinami, Vita, pp. 16, 20, 21. Fora chamado

três vezes para ir em missão. Uma vez para ajudar os heréticos na Inglaterra, e duas para

converter os gentios da Índia, mas em todas elas vários impedimentos interpuseram-se à ida. Da

última vez, o Geral tornou-o companheiro do padre Sebastiano Viera, que regressara da Índia e

estava a recrutar para o Japão; “em suma, quis Deus que ficasse para que a sua partida

acontecesse num outro tempo, mais célere e gloriosa”.

20. Em espectáculos papais, tais como os quarantore e os possesso. Vide Laurie Nussdorfer, “Print

and Pageantry in Baroque Rome“, Sixteenth Century Journal, Vol. 29, No. 2 (Summer, 1998), pp.

439-464.

21. Bjurström, Per, “Baroque Theater and the Jesuits“, in Wittkower, R. and Jaffe, Irma B., Baroque

Art: The Jesuit Contribution, New York: Fordham University Press, 1972, p. 101.

22. Michel de Certeau, Fable Mystique, XVIe-XVIIe siècle, Paris : Gallimard, 1982. Veja-se, também,

Michel de Certeau, “La réforme de l’interieur au temps d’Aquaviva, 1581-1615“, in Les Jésuites:

Spiritualité et activite, jalons d’une histoire, Paris e Rome, 1974.

23. Relacam, pp. 8-9.

24. Relacam, p. 18.

25. Relacam, p. 27.

26. Relacam, p. 35.

27. Relacam, p. 26.

28. Cinami, Vita, p. 61.

29. Verstegan, Richard, Théâtre des cruautés des héretiques de notre temps, texte établi, présenté et

annoté par Frank Lestringant, Paris, Editions Chandeigne, 1995.

30. Relacam, p. 25. Na continuação do texto, Xavier aconselha Mastrilli a levar a relíquia com ele,

onde quer que fosse. Ele fê-lo, usando-a às vezes para ajudar amigos que necessitavam de

protecção ou de uma cura milagrosa. A última vez que a utilizou foi durante o seu cativeiro, no

Japão. Propôs aos seus torturadores curar o xogum por infusão das relíquias em pó de Xavier.

31. Os hagiógrafos jesuítas não foram os primeiros a utilizar golpes proféticos com o objectivo de

explicar os eventos futuros. O significado profético das feridas eram um topos standard na

literatura cristã.

32. Relacam, p. 10.

33. George Elison, Deus Destroyed: The Image of Christianity in Early Modern Japan, Cambridge, Mass.:

Harvard University Press, 1973, p .187.

34. Para uma excelente reconstrução literária japonesa da apostasia de Ferreira, veja-se a novela

de, Shusaku Endo, Silence (1966). Ferreira, que era, nessa altura, o vice-provincial dos jesuítas no

Japão, escreveu maravilhosos e poéticos relatos hagiográficos dos martírios de outros jesuítas da

sua missão. Tornou-se um assistente do Inquisidor-mor, quando o ofício foi criado, em 1640. Ross,

Andrew, A Vision Betrayed; The Jesuits in Japan and China, 1542-1742, Maryknoll, NY, Orbis Books,

1994.

35. Ross, A Vision Betrayed, p. 108.

36. Elison, George, Deus Destroyed, pp. 198 e 447.

37. Cinami, Vita, p. 156.

38. Cinami, Vita, p. 156.

39. Cinami, Vita, p. 159.

40. Elison, George, Deus Destroyed, p. 199.

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41. Pages, Léon, Histoire de la Religion Chrétienne au Japon depuis 1598 jusqu’à 1651, première partie,

Paris : Charles Douniol, Libraire-éditeur, rue de Tournon, 29, 1869, pp. 867-884. Para a versão

holandesa deste episódio, veja-se Hesselink, Renier H., Prisoners from Nambu: Reality and Make-

Believe in Seventeenth-Century Japanese Diplomacy, Honolulu, University of Hawai’i Press, 2002.

42. Wicki, Joseph, S.J. “Ein vorbildlicher Missionar Indiens, P. Henriques (1520-1600)“, Studia

Missionalia, Roma, 1963, pp. 113-168.

43. Relaçam, p. 30.

44. O doutor surdo, Giovanni Battista de Loffreda, tornou-se uma fonte de embaraço na

Companhia. Veja-se o meu capítulo seis em Missionary Tropics; The Catholic Frontier in India

(16th-17th Centuries), Ann Arbor, University of Michigan Press, 2005.

45. Cinami, Vita, p. 60: “tutte le sue cose devantavano subito reliquie”.

46. Bartolli, Daniello, Dell’Istoria della compagnia di Gesù: Il Giappone, seconda parte, Dell’Asia, Libro

quinto, Firenze, Presso Leonardo Ciardetti, 1832, p. 115.

47. Cinami, Vita, p. 53.

48. Csordas, Thomas J., Language, Charisma and Creativity, Ritual Life in the Catholic Charismatic

Renewal, New York, Palgrave, 2001, p. 205.

49. Alden, Dauril, The making of an Enterprise; The Society of Jesus in Portugal, Its Empire, and Beyond,

1540-1750, Stanford, California, Stanford University Press, 1996, pp. 267-272.

50. Csordas, Thomas J., Language, 2001, p. 205.

51. Cinami, Vita, p. 67.i

52. Cinami, Vita, p. 122.

53. Missionários do lado dos “cristãos locais”.

54. Cinami, Vita, p. 123.

55. Veja-se o meu artigo “The Prophetic and the Miraculous in Portuguese Asia: A Hagiographic

View of Colonial Culture“, in Subrahmanyam, S., ed., Sinners and Saints: The Successors of Vasco da

Gama. Nova Deli, Oxford University Press, 1998, pp. 135-161. A história da Companhia, de

Sebastião Gonçalves, e a relíquia da mão foram enviadas juntamente.

56. Stoichita, Victor, Visionary Experience in the Golden Age of Spanish Art, Londres, Reaktion Books,

1995, p. 25.

57. Jones, Pamela M., “Art Theory as Ideology: Gabriele Paleotti’s Hierarchical Notion of

Painting’s Universality and Reception”, in Claire Farago (ed.), Reframing Renaissance, Visual Culture

in Europe and Latin America 1450-1650, New Haven e Londres, Yale University Press, 1995, p. 132.

58. Cinami, Vita, p. 43.

59. Stoichita, Visionary Experience, p. 26 ; De Maio, Romeo, Pittura e controriforma a Napoli, Editori

Laterza, 1983, pp. 253-256.

60. Cinami, Vita, p. 43.

61. Cinami, Vita, p. 52.

62. Bartolli, Dell’Istoria, p. 115.

63. Smith, Jeffery Chipps, Sensuous Worship; Jesuits and the Art of the Early Catholic Reformation in

Germany, Princeton e Oxford:,Princeton University Press, 2002, p. 43.

64. Bartoli, Dell’Istoria, p. 125.

65. Bartoli, Dell’Istoria , p. 125.

66. Serrão Vítor, A Pintura Proto-Barroca em Portugal, 1612-1657, Coimbra, 1992, vol. II, p. 124.

Caetano, Joaquim de Oliveira, “Uma brevíssima nota acerca das Fontes da vida de Santo Inácio de

Loyola na igreja de S. Roque de Lisboa”, (Catálogo da Exposição) O Púlpito e a Imagem. Os Jesuítas e a

Arte, Lisboa, 1996, pp. 43-55.

67. Relacam, p. 39: “um dos quaes, o mais semelhante no gestos e alegria ao S. quando apareçeo,

esta ja nesta cidade de Goa, na Caza professa... pintalo em Lisboa hu irmão da Companhia em

huma noite.” Pedro Dias identificou-o como barroco italiano, Dias, Pedro, História da Arte

Portuguesa no Mundo (1415-1822), Lisboa, Círculo de Leitores, 1998 p. 210.

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68. Dias, História, p. 87.

69. Não pude consultar outras edições. Algumas delas são elencadas em Sommervogel, Carlos, S.

J., Bibliothèque de la Compagnie de Jésus, Nouvelle Edition, Bruxelles e Paris, 1944, vol. V, pp.715-717.

70. Fonseca, José Nicolau da, An Historical and Archaeological Sketch of the City of Goa, New Delhi:

Asian Educational Service (1st ed. Bombay, 1878), 1994, pp. 310-311.

71. Manuel de Faria e Sousa, A Asia Portuguesa, vol. 6, p. 450. Fundado por Dom frey Aleixo de

Meneses, em 1599.

72. Bartoli, Dell’Istoria, p. 138.

73. O primeiro capítulo do meu livro Missionary Tropics.

74. Bartoli, Dell’Istoria, p. 141.

75. Bartoli, Dell’Istoria, p. 145.

76. A narrativa milagrosa sobre como uma doença lhe foi trazida por mão divina. Enquanto

estava doente, a pensar que iria morrer, Mastrilli convenceu-o a dar dois mil escudos no seu

testamento para o novo sarcófago de Xavier. Logo que António Teles de Silva lhe deu o dinheiro,

recuperou da doença. Bartoli, Dell’Istoria, p. 142. Georg Schurhammer diz que lhe deu três mil

escudos. Schurhammer, Georg, S. J., “Der Silberschrein des Hl. Franz Xaver in Goa. Ein

Meisterwerk Christilich-Indischer Kunst“, in Varia, I, Anhänge, Roma e Lisboa, 1965, pp. 561-567.

77. Lucena, João de, S. J, História de vida do padre Francisco de Xavier, [Lisboa, 1600], facsimile

edition, 2 vols, Lisbon, 1952 e Tursellinus, Horatius, S. J., De Vita Francisci Xaverii, Rome, 1594 (2nd

ed. 1596).

78. Lucena, História, pp. 2-3.

79. Cinami, Vita, p. 90.

80. A datação deste relicário em prata é difícil. Nuno Vassalo e Silva pensa que é um trabalho

anterior à canonização. Mas Xavier tem uma aura à volta da cabeça, o que não seria permitido

antes da canonização. “A arte da prata nas casas jesuítas de Goa”, in A Companhia de Jesus e a

missionação no Oriente, Lisboa: Fundação Oriente, 2000, p. 372. Schurhammer pensa que foi em

1678 que foi realizado, citando Francisco de Sousa, que refere duas caixas-relicário. Uma, mais

pequena e mais antiga, e outra mais recente. Qual delas foi preservada com a cena de Mastrilli

não é claro. Schurhammer, “Der Silberschrein, pp. 566-567. Sousa, Francisco de, Oriente

Conquistado a Jesus Christo pelos padres da Companhia de Jesus da Província de Goa, Porto: Lello &

Irmão, 1978, p. 583.

81. Relaçam, p. 42.

82. Sousa, Oriente Conquistado, p. 58.

83. Bartoli, Dell’Istoria, pp. 145-146.

84. Havia também a questão de saber de quem era o bordão, e quão próximo era de Xavier.

Alguns bordões, por exemplo, eram levados. O sarcófago era geralmente aberto uma vez por ano,

por ocasião do aniversário da morte.

85. Cinami, Vita, p. 41.

86. Cinami, Vita, p. 111.

87. Cinami, Vita, p. 111.

88. Cinami, Vita, p. 112.

89. Subrahmanyam, Sanjay, The Career and Legend of Vasco da Gama, Cambridge: Cambridge

University Press, 1997, p. 129.

90. Cinami, Vita, p. 113.

91. Bartoli, Dell’Istoria, p. 155.

92. Cinami, Vita, p. 114.

93. Cinamy, Vita, pp. 114-115.

94. Cinami, Vita, p. 115.

95. Cinami, Vita, p. 121.

96. Bartolli, Dell’Istoria, p. 158.

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97. Cinami, Vita, pp. 120-123.

98. Cinami, Vita, p. 129.

99. Cinami, Vita, p. 130.

100. Cinami, Vita, p. 136.

101. Cinami, Vita, p. 136.

102. Cinami, Vita, p. 137.

103. Cinami, Vita, pp. 137-138. A ideia do Governador era Mastrilli encontrar um cristão, para

roubar o seu corpo e o levar até Manila (Cinami, Vita, p. 138).

104. Bartoli, Dell’Istoria, pp. 168-169.

105. Bartoli, Dell’Istoria, p. 169.

106. Veja-se a carta de Manuel Dias, o Visitador em Macau, a Mastrilli (ARSI, Jap/Sin, 29, ff.

155-156v.).

107. Bartoli, Dell’Istoria, pp. 172-3.

108. Atracou exactamente no mesmo lugar que Xavier. Cinami, Vita, p. 143.

109. Cinami, Vita, p. 144.

110. Cinami, Vita, p. 144.

111. Cinam, Vita, p. 144.

112. Cinami, Vita, pp. 155-156.

113. Cinami, Vita, p. 141.

114. Cinami, Vita, p. 147.

115. Ciami, Vita, p. 173.

116. Cinami, Vita, p. 173.

117. Cinami, Vita, p. 173.

118. Pagès, Histoire, 401-402. Cinami, Vita, p. 41.

119. Sousa, Manuel de Faria, Ásia Portuguesa, Porto, Livraria Civilização – Editora, 1947, vol. 6, pp.

455-457.

120. Cinami, Vita, p. 173.

121. SERMAM QVE PREGOV O P. ANTONIO VIEIRA DA COMPANHIA de IESVS na caza professa da mesma

Companhia em 16. de Agosto de 1642. NA FESTA QVE FEZ A S. R O QVE ANTONIO Tellez da Silva do Concelho

de guerra de Sua Magestade Governador, Capitam Geral do Estado do Brasil c. Com todas as licenças

necessaries, Domingos Lopes Rosa, Lisboa, 1642. Cf., ainda, Vieira, António, Obras Completas,

Sermões, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1993, vol. 3, pp. 479-532.

122. Cohen, Thomas M., The Fire of Tongues; António Vieira and the Missionary Church in Brazil and

Portugal, Stanford, Stanford University Press, 1998, p. 4.

123. Vieira, Obras, Porto, Lello, 1959 ,tomo VIII,p. 35.

124. Cinami, Vita, p. 168.

125. Besselaar, José van den, “Erudição, espírito crítico e acribia na História do futuro de António

Vieira“. Revista da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, 1976, pp. 45-79. Ver também

Cohen, The Fire of Tongues, p. 5.

126. Cohen, The Fire of Tongues, p. 223. Vieira, António, Sermões, Porto, Lello, tomo XV, 1959, p.

198.

127. Cohen, The Fire of Tongues, p. 233. Vieira, Sermões, Porto, 1959, tomo XV, p. 93.

128. Vieira, Sermões, tomo XIII, p. 376.

129. Cinami, Vita, p. 41.

130. Vieira, António, História do Futuro, p. 230. Ver também Lima, Luís Filipe Silvério, Padre Vieira:

Sonhos proféticos, profecias oníricas. O tempo do Quinto Império nos sermões de Xavier Dormindo, tese de

Mestrado, São Paulo, pp. 48-54.

131. “Sermão gratulatório a S. Francisco Xavier”, in Sermões, Porto, 1959, tomo XV, p. 150.

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RESUMOS

Através de uma leitura densa das fontes hagiográficas jesuítas que celebraram a vida de um

jesuíta napolitano, Marcelo Mastrilli (1603-1637), procuro mostrar que as visões e narrativas

proféticas foram importantes lugares de comunicação social, memória colectiva e mobilização

política. O reposicionamento profético foi uma linguagem específica da tecnologia do eu, a partir

da qual o sujeito fabricava a sua própria identidade, dentro e contra os limites externos da

autoridade e das instituições. Marcelo Mastrilli – que viajou pela Itália, Espanha, Portugal, Goa,

Malaca, Filipinas e Japão – construiu a sua própria subjectividade e acção através de uma visão

profética de São Francisco Xavier. Logo que a sua experiência pessoal foi impressa, atingindo um

público mais vasto, mobilizou outros actores a imitá-lo, citá-lo, ou a fazer uso dele nos seus

percursos individuais e sociais. O que se podia transportar de um continente para outro não

eram, claro, visões pessoais mas a sua corporização numa série de textos e imagens materiais. E a

verdade é que mesmo depois da sua morte, em 1637, as suas visões foram retomadas pelo padre

António Vieira e integradas no seu discurso legitimador da dinastia de Bragança e do papel que

os jesuítas aí desempenhavam.

By reading closely Jesuit hagiographical texts that celebrate the life of a Neapolitan Jesuit,

Marcelo Mastrilli (1603-1637), I will show that the prophetic visions and narratives were

important loci of social communication, collective memory and political mobilization. Prophetic

repositioning was one of the many languages belonging to that particular technology of the self

by which a subject fabricates his own identity within and against the constraints of the external

authority and institutions.

Marcelo Mastrilli – who travelled for four years from Naples through Italy, Spain, Portugal, Goa,

Melaka, and the Philippines until his final prophesized martyrdom in Japan - crafted his own

subjectivity and agency by way of a particular prophetic vision of St. Francis Xavier. As soon as

his personal experience appeared in print and reached wider audience, it mobilized other actors

to imitate, cite or make use of it for their own individual and social tasks. What was easily

transportable from one continent to another are not, of course, personal visions but their

embodiment in a series of texts and material images. Even after his death in 1637, his visions

were taken up by Portuguese Jesuit preachers and missionaries such as António Vieira and built

into the larger task of legitimating Portuguese Royal Restoration (1640) and demonstrating

Portuguese and Jesuit providential roles in the “last stage” of the post-primitive church before

the end of human history

ÍNDICE

Palavras-chave: jesuítas, São Francisco Xavier, igreja, profetismo, missionários, santos,

martírio, Marcello Mastrilli, António Vieira, visão, pintura, Índia, Ásia portuguesa, Nápoles, Goa,

Japão

Keywords: jesuits, prophetism, missionary, saint, India, portuguese Asia, Naples, St. Francis

Xavier, Goa, António Vieira, martyrodom, Japan, church, Marcelo Mastrilli, vision, painting

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AUTORES

INÊS ZUPANOV

CNRS – EHESS, Paris.

É investigadora do CNRS, Centre National de la Recherche Scientifique em Paris. Ensinou História

Moderna na Universidade da Califórnia, Berkeley, na Jawaharlal Nehru University, em Nova Deli,

e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. É autora dos livros Disputed Mission,

Jesuit Experiments and Brahmanical Knowledge in Seventeenth-century India (1999) e Missionary Tropics

(2004). Os seus artigos em inglês, francês, português, italiano e croata foram publicados em livros

colectivos e revistas científicas (Annales, Representations, Etnosistemi, Studies in History, Indian

Economic and Social History Journal, Archives de sciences sociales des religions, etc.).

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Conexões, cruzamentos, circulaçõesA passagem da cartografia britânica pela Índia, séculos XVII-XIX

Circulation and the Emergence of Modern Mapping (1764-1820)

Kapil Raj

Tradução : Catarina Madeira Santos

NOTA DO EDITOR

Tradução do francês de Catarina Madeira Santos.

1 Nas últimas décadas deram-se profundas modificações na concepção da história das

ciências. De uma visão até então dominante, segundo a qual a ciência teria uma lógicaprópria de desenvolvimento – construindo-se segundo procedimentos explícitos eimutáveis, empiricamente testados em condições bem circunscritas e controladas e,portanto, sem decorrer, de maneira alguma, de um qualquer tratamento histórico esocial –, o olhar dos historiadores das ciências voltou-se para as práticas, sejam aspráticas materiais e sociais, sejam as práticas cognitivas, o saber-fazer assim como ossaberes, cujo conjunto constitui a ciência que se está a fazer.

2 A mobilização de disciplinas tão variadas como a história, a sociologia, a economia, a

filosofia e a antropologia, contribuiu para dar a conhecer a natureza negociada,contingente e local dos enunciados e dos objectos que constituem a ciência moderna. Osestudos recentes revelam assim que estes enunciados, objectos e práticas só sedeslocam do seu lugar de invenção, e portanto só se universalizam, à custa deacomodações que consistem em reconfigurar os novos objectos ou procedimentoscientíficos e o corpo social em que se inserem. Exportar os produtos da ciência parafora do seu lugar de concepção ou de fabricação exige a réplica dos instrumentos, saber

fazer, gestos, protocolos, civilidades da prova, regras e convenções sociais e morais…, oua recomposição do equilíbrio entre todos estes elementos; tais são as condições quepermitem dar ao mesmo tempo um sentido e uma utilidade aos produtos da ciência quesão transferidos. À noção passiva de difusão, assim como acontece para outras

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actividades culturais e materiais humanas, sucederam as noções mais activas, derecepções, de representações e de apropriações historicamente situadas.1

3 Contudo, o novo olhar dos historiadores das ciências limitou-se, até hoje, ao horizonte

ocidental; o resto do mundo teria assistido à imposição da nova vulgata científica pelaforça do conquistador. A ciência moderna é em larga medida olhada como o paradigmade um discurso hegemónico do poder ocidental, uma formação discursiva através daqual o resto do mundo está ao mesmo tempo subjugado e relegado ao controlo do Outrobinariamente oposto. Deste ponto de vista, a difusão da ciência ocidental seriaconseguida graças à imposição, muitas vezes violenta, de práticas “racionais” a outrasculturas “a-científicas”2. Por exemplo numa obra recente que estuda a exploraçãobritânica do Sul da Ásia nos séculos XVII e XIX, Mathew Edney afirma que a “culturacartográfica” resulta de uma transplantação da Europa para a Índia pelas elitesbritânicas daquilo a que ele chama uma “arquitectura espacial que tem as suas raízesnas matemáticas e estruturas não indianas”. “Para os britânicos na Índia – continua omesmo autor – a medida e a observação próprias a cada acto de agrimensurarepresentavam a ciência. Medindo a terra, impondo a ciência e a racionalidadeeuropeias ao espaço indiano, os Britânicos distinguiam-se dos Indianos: eles faziamciência, os Indianos não, ou pelo menos de maneira limitada e nesse caso, apenas apedido expresso do funcionário britânico […], a prática cartográfica – os trabalhos delevantamento e a compilação dos mapas – eram na sua essência uma actividade aomesmo tempo científica e britânica.” O levantamento cartográfico afirmava assim odomínio britânico sobre o espaço indiano, reduzindo o espaço hindu, místico e religiosoda Índia a uma estrutura imperial do espaço racional e científico”. Estesrecenseamentos constituiriam um “panóptico” científico proporcionando aocolonizador uma rede global de vigilância e de controlo sobre o campo e as populaçõesindianas. Quanto aos autóctones eles seriam, quer autómatos subalternos ao serviço dosBritânicos, quer camponeses insubordinados que se opunham à ordem imperialperturbando as actividades de agrimensura3.

4 Ao assinalar a relação íntima entre ciência e poder, estes estudos constituem-se como

um antídoto para a ideia amplamente suportada de que a difusão da ciência modernadecorre essencialmente das racionalidades das suas proposições; todavia, elessustentam os seus argumentos na sugestão, na suposição, na asserção e, por vezes,fazem mais apelo a um pensamento politicamente correcto do que à demonstração dasua visão da história. Ao lançar este novo olhar sobre a história das ciências para lá dohorizonte ocidental, podemos surpreender uma realidade mais complexa e mais subtil.Ao explorar o mesmo tema abordado por Matthew Edney, vamos, ao contrário dele,mostrar que a história do desenvolvimento das ciências consideradas pela geografianão é apenas o resultado de trocas e acomodações intra-europeias mas, mais do queisso, de trocas activas, se bem que inscritas em relações de poder assimétricas, com asculturas científicas e técnicas de outros continentes. Como afirma Frederick Cooper,hoje o desafio para o historiador consiste em “não pensar o poder que está por detrásda expansão europeia como um poder absoluto, mas em estudar a confrontação dediferentes formas de organização social sem as tratar como autárquicas e autónomas”4.

5 Assim, este estudo insere-se plenamente na família das modalidades historiográficas

recentes, tais como a história conectada, misturada e cruzada5. Como não encontraruma comunidade de interesse com aqueles que interrogam os laços, materializados naesfera social ou simplesmente projectados, entre diferentes formações historicamente

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constituídas, ou com aqueles que apelam ao historiador para que ele “restabeleça asconexões continentais e intercontinentais que as historiografias nacionais se aplicaram,durante muito tempo, a desligar ou a escamotear impermeabilizando as suasfronteiras”6? Todavia cada uma destas abordagens tem a sua especificidade, e cada umaprocura distinguir-se das outras; aqui, um dos nossos objectivos consistirá em situar anossa própria abordagem em relação a estas outras correntes racionais e vizinhas.

6 Comecemos então por esboçar o estado das práticas geográficas no Sul da Ásia e na Grã-

Bretanha em meados do século XVII, no início da colonização. Depois, seguiremos acirculação do uso destas práticas no decurso da emergência concomitante do impériobritânico da Índia e da própria Grã-Bretanha enquanto nação que integrava a Escócia eo País de Gales7.Por fim, examinaremos os esforços da East India Company paracontrolar a circulação dos mapas e para os tornar instrumentos indispensáveis àadministração e à mobilidade modernas.

Práticas geográficas nos séculos XVII e XVIII

7 O contacto directo entre a Índia e a Inglaterra data do estabelecimentos da East India

Company (a partir de agora EIC) em 1600. Tendo ido participar do comércio lucrativodas especiarias e outros produtos de luxo, inicialmente os Ingleses não eram mais doque algumas centenas de civis e dois ou três mil soldados. Mesmo no apogeu doImpério, no século XIX, a presença britânica na Índia nunca excedeu algumas dezenasde milhares de civis, um número sempre demasiado reduzido para que pudessemdispensar os intermediários autóctones na maior parte das tarefas comerciais,administrativas e técnicas8. Por outro lado, é necessário notar que, no Oceano Índico, ocomércio existia muito antes da chegada dos Europeus. Estes últimos precisaram entãode negociar a sua introdução nas redes comerciais já bem estabelecidas e que seestendiam do Próximo Oriente e da África Oriental à Ásia do Sul e à China. Osubcontinente indiano, rico e produtivo, era um ponto de passagem obrigatório porrazões geográficas e económicas9. De facto, desde a sua chegada, estabelecera-se umacolaboração entre os Britânicos e certos sectores da população local: banians

(banqueiros e mercadores), armadores, munshis (secretários), dubashis (intérpretes), harkaras (informadores de mão), artesãos (tecelões, joalheiros, carpinteiros,construtores de navios, marinheiros...). No quadro das rivalidades inter-europeias dasegunda metade do século XVII (em particular com os Franceses), esta colaboraçãochegou a levar ao estabelecimento de um exército que compreendia soldados, artíficese armeiros indígenas.

8 No decurso dos séculos XVII e XVIII, como aconteceu com outros impérios que

comerciavam com o Oriente, os Britânicos cartografaram os mares e as costas entre aEuropa e a Ásia. De facto, mapas e roteiros marítimos eram utensílios indispensáveis ànavegação e formavam uma parte essencial da bagagem do bom marinheiro desde oséculo XII pelo menos10. Porém, os Europeus, na Ásia, não faziam grandes esforços paracartografar o interior, em parte porque as suas feitorias estavam situadas quer nascostas quer, como em Bengala, na foz dos rios, mas também porque os mapas sópassaram a fazer culturalmente parte do vade-mecum do viajante terrestre a partir doséculo XIX. Para o interior, contavam principalmente com as informações colectadaspelos viajantes e com os missionários que encontravam no seu caminho, informando-seconstantemente ou, com mais frequência, alugando o serviço de guias locais. Duas

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cartas excepcionais – como a de Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville que publicou, em1752, um mapa da Índia – baseavam-se na geografia antiga actualizada segundo osrelatos de viajantes contemporâneos, já que os cartógrafos europeus raramenteabandonavam o seu gabinete11.

9 A conquista territorial no Sul da Ásia, pela EIC modificou as necessidades. Depois da

batalha de Plassey, em 1757, os Britânicos encomendaram levantamentos das novaspossessões para defender as fronteiras, traçar as estradas comerciais terrestres efluviais, determinar a extensão e as riquezas potenciais das terras cultivadas, assegurara regularidade e a segurança das comunicações12.

10 Porém, os Britânicos não só eram pouco numerosos para empreender estes

recenseamentos, como tinham, eles próprios, pouca ou nenhuma experiência destegénero de inquérito. Por exemplo, depois da batalha de Plassey, o novo governo deBengala posto a funcionar pela EIC dirigiu-se à Navy para obter um cartógrafo-inquiridor. O almirante Watson comandante da frota em Calcutá respondeu:

“Recebi a vossa carta de hoje informando da necessidade de proceder a umlevantamento preciso e a um plano correcto das terras cedidas à Companhia peloNabob e solicitando a minha assistência para destacar da esquadra pessoalqualificado para este empreendimento.Parece-me que, para um trabalho que exige tantos cuidados e exactidão, não tenhoconhecimento de que na esquadra haja alguém com essa capacidade, e se assimfosse, estou certo de que um tal desempenho exigiria muito mais tempo do queaquele que aqui ficarei. Todavia, se inquirindo na esquadra, encontrar alguém queresponda às suas necessidades e seja voluntário para ficar na Índia, darei ordenspara que seja destacado para o vosso serviço”13.

11 De facto, entre os 184 empregados britânicos da YEIC catalogados por Reginald Henry

Phillimore no seu estudo magistral dos arquivos de serviço dos levantamentosterrestres da Índia, o Survey of India, que foram, de qualquer maneira, implicados noslevantamentos terrestres no século XVIII, nem um tinha qualquer formação nastécnicas da agrimensura. Como muitos de entre eles eram militares, aprenderam noterreno, pela prática, a arte do levantamento de pistas e de grandes caminhos14.

12 Note-se que cerca de 1760, quando os primeiros levantamentos extensivos foram

empreendidos na Índia, não existia um mapa detalhado unificado das Ilhas Britânicas –à excepção notável de uma carta da Escócia realizada por Escoceses sob a direcção deWilliam Roy no seguimento da revolta escocesa de 1745. Porém, não havia penúria demapas costeiros, portuários e de fortificações realizadas pelo estado-maior, e mapas derotas, de propriedades e de condados no domínio civil. Estes últimos eram fruto doslevantamentos realizados pelos agrimensores diplomados, cujos saber-fazer einstrumentos – mais comummente a cadeia métrica, ou o bastão15, e o esquadro deagrimensor – eram desapropriados a um levantamento extensivo16. O serviçocartográfico da Grã-Bretanha e da Irlanda, Ordinance Survey of Great Britain and Ireland,foi fundado somente em 1791, e só depois de 1801 se produziu o seu primeiro mapa,quer dizer quase vinte anos depois da edição do primeiro mapa britânico detalhado detoda a Índia17.

13 Os próprios indianos nunca tinham realizado nenhum mapa detalhado do conjunto do

subcontinente indiano, porém, mais uma vez, não existia aí uma penúria de mapaslocais que respondiam a diferentes necessidades. Segundo um estudo recente, existiammais de duzentos mapas antes do século XVIII, principalmente do Noroeste, do Centro edo Oeste do subcontinente18. Por outro lado os levantamentos de estradas e cadastrais

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detalhados eram realizados frequentemente. Diz-se que Rajaraja I de Thanjavour(985-1011) “dirigiu uma expedita estimativa das terras cultivadas com o fim de avaliar asua importância”19. De facto, desde o início da modernidade, existem registos cadastraisque davam conta da extensão e da propriedade das terras cultivadas e de uma tradiçãoda agrimensura em quase todo o subcontinente. Um texto em sânscrito, do início doséculo XVIII, que trata da agrimensura, traduzido por Benjamin Heyne (naturalista daMorávia e agrimensor ao serviço da EIC), descreve um método baseado em técnicascorporais:

A medida fundamental é a de uma polegada, que é determinada de três maneiradiferentes:Primeiro, alinhando três espigas de arroz em largura. Isto chama-se uma polegada.Segundo, medindo a circunferência do polegar da mão, largura cuja metade é umapolegada.Terceiro, medindo a segunda articulação do dedo médio, cuja metade vale umapolegada.Doze destas polegadas fazem um pé, dois pés fazem um bambu e quatro bambus aoquadrado fazem um are20. Estas medidas são universalmente compreendidas21.

14 No império mongol, as medidas terrestres eram conservadas nos arquivos do tesoureiro

da aldeia e regularmente controladas pelos funcionários de Estado. Para oslevantamentos das estradas, o jesuíta António Monserrate (1536-1600), que passouvários anos na corte de Akbar, descreve o cuidado com o qual este mandava medir assuas deslocações durante uma expedição a Cabul em 1581:

“A distância percorrida cada dia é medida com um bastão de dez pés, por oficiaisespeciais que têm instruções para seguir o rei de perto e para medir a distância,desde o momento em que ele deixa a sua tenda. Mais tarde, estas medidas são muitoúteis para calcular a superfície das províncias e as distâncias de diferentes locais,para as missões, enviados e mensageiros, e em caso de urgência. Duas medidas debastão de dez pés fazem aquilo a que se chama em persa uma corou, e em línguaindiana uma cosse. Esta vale duas milhas e é a medida usual da distância”22.

15 Da mesma forma, um outro jesuíta, Joseph Tieffenthaler (1710-1785), que viveu e viajou

muito no subcontinente durante mais de quarenta anos, descreve a variedade dasunidades de medida utilizadas para calcular as distâncias em diferentes lugares doNorte da Índia.

“As milhas medem-se neste país com uma corda grande de cinquenta grandesaunes23 (gazes) ou aunes reais sete vezes a largura de uma destas cordas faz umalégua Indiana.Uma outra maneira de determinar a milha é considerar quatrocentas larguras(spithamas) cada uma de doze Gazes e meia, medidas com um longo “roseau” (oubambu). Estas duas maneiras de fazer dão no mesmo: uma e outra dão cinco milgazes, o que é a medida de uma légua.Scherscha, Rei de Deli, da raça dos Afegãos deu a cada légua sessenta arpens24

(jugera), dos quais cada um é de sessenta gazes sekanderies, chamados assim graçasao nome do seu inventor Sekander [….] Rei de Deli, e que são mais pequenas do queas gazes reais; esta medida é usada na província de Deli.Na província de Malva, usa-se uma corda longa de sessenta gazes25; ela é estendidapor noventa vezes, o que perfaz a medida de uma milha.Na província de Guzerate, a légua contém cinquenta arpens. A milha real é deduzentos arpens chamados djerib, e um arpent é igual a 25 gazes reais, das quaiscada uma perfaz quatro palmos (spithamas), e das quais cinco mil fazem uma léguaindiana.Uma milha comum não vai além de 2857 ana; por consequência a milha da

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agrimensura (jugerale) ou real é três quartos maior que a milha comum; uma vezque a ultrapassa em 2143 gazes […]”26.

16 Exploravam-se, então, as distâncias medidas sob a forma tabular, de anuários ou de

manuais utilizados pela administração, a colecta de impostos e outras necessidades, talcomo são mencionadas por Montserrate. Estes anuários forneciam descriçõessistemáticas das províncias e das suas subdivisões, precisavam a sua localização eextensão, preenchendo largamente, mas não exclusivamente, a função de mapas, talcomo nós os concebemos hoje. O mais conhecido destes anuários é o Ain-i Akbari

compilado pelo publicista ‘Abu’al-Fazl ibn Mubarak (1551-1602) no fim do século XVI27.

17 Perchas28, cordas, grãos de cereais e elementos do corpo humano (polegadas, palmos,

pés, côvados, passos…) não eram os únicos a ser usados. Fabricantes muçulmanosproduziam no Sul da Ásia, astrolábios, normalmente usados por astrónomos, tantohindus como muçulmanos, desde o início do século XIV, para determinar coordenadascelestes e terrestres. Pelo fim do século, alguns manuais de utilização foram traduzidosdo árabe e do persa para diversas línguas vernaculares29.

18 Mencionemos, por fim, os instrumentos massivos de medida edificados pela arte de

pedreiro, que ainda hoje se podem ver em Jaipur, Delhi e Ujjain, testemunhos dacirculação científica e técnica entre a Ásia central e o Sul da Ásia30. De facto, a escola deastronomia dita “de Samarcanda” desenvolvia-se no subcontinente sob o patrocíniomogol. Desde o século XVII, as técnicas islâmicas e indianas de agrimensura sãointercaladas e largamente utilizadas.

19 Em todo o caso, longe de ser uma tabula rasa geográfica que esperava a chegada dos

Europeus para ser explorada e medida, a Ásia do Sul procedia correntemente àagrimensura e aos levantamentos assim como à sua representação; várias técnicasestavam em constante desenvolvimento através de processos de circulação e deadaptação negociada de saber-fazer e de instrumentos, processos intimamente ligados àsculturas e às economias de regimes pré-coloniais. Deste ponto de vista, os fins e astécnicas da agrimensura não eram muito diferentes daqueles que eram conhecidos naInglaterra na mesma época31. Assim, o mesmo aconteceu com outras actividadescoloniais, quando os Britânicos foram levados a apelar às competências indígenas paraefectuar os seus levantamentos na Índia.

Primeiros levantamentos extensivos na Índia e na Grã-Bretanha

20 A cartografia da Índia pelos Europeus começou de facto pela utilização dos recursos

disponíveis no seio dos organismos que empregavam igualmente autóctones –principalmente o exército, o sistema judiciário e o serviço dos impostos. O mesmosucedeu com alguns europeus (comerciantes ou missionários puderam apoiar-se sobreas redes comerciais dos mercadores e banqueiros autóctones, cujas rotas comerciaisestavam bem traçadas e eram mesmo por vezes utilizadas pelos exércitos locais). Assim,Tieffenthaler forneceu a um autóctone “versado em geografia uma bússola e enviou-opara atravessar as montanhas do Kumaon e as cataratas do Ghagra [...] até Patna eDeucara a fim de lhes medir as distâncias e de lhes determinar as localizaçõesrespectivas”. Também mandou realizar três grandes cartas do curso do Ganges e doGhagra por “gente da terra”32. E o sábio viajante francês Abraham-Hyacinthe Anquetil-

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Duperron (1731-1805) deixou um divertido relato onde seguia os primeiroslevantamentos europeus das estradas militares:

“Viajei no interior da Índia, só, em grupo, no corpo do exército. O oficial, oComandante, passa o dia no seu palanquim, dorme a maior parte do tempo. Nojantar, à noite, pede, num português corrompido, ao mouro mestiço, em inglês,segundo a Nação, ao seu Dobachi quantos cosses se fizeram, por quais lugarespassaram. Este interroga os beras [os portadores] ou responde ele mesmo, porque épreciso responder; e o número de cosses, o nome dos lugares é lançado noItinerário, sobre o Mapa. O que acabo de dizer, vi-o com os meus próprios olhos. Em1750, disse como brincadeira a M. de St. Paul, em segredo Doltabad, que contara naEuropa como ele fizera para preparar os Mapas, que aliás me pareceram feitos deforma muito adequada: o seu Dobachi tinha-mo confessado. Ele respondeu-me nomesmo tom: não acreditarão em si, acreditarão nos meus mapas”33.

21 James Rennell (1742-1830), “sem dúvida o primeiro grande geógrafo inglês”, pode ser

considerado como o primeiro inglês a ter sistematizado o uso destas tradições díspares,conjuntamente com os métodos europeus de levantamento costeiros e terrestres34.Nascido no Devonshire e muito cedo órfão, Rennel foi educado por Gilbert Burrington,vigário da Igreja vizinha de Chudleigh. Ali, este último assegurou ao rapaz umaeducação elementar, proporcionando-lhe, com catorze anos, um emprego de porta-bandeira num navio inglês no início da Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Operando aolargo das costas da Bretanha, o jovem James aprendeu pela prática a arte dolevantamento, costeiro e portuário.

22 Foi este magro saber- fazer que Rennell teve a vantagem de utilizar e de desenvolver na

Índia de 1764 a 1777, quando conseguiu um emprego ao serviço da EIC, comoengenheiro à experiência, no exacto momento em que o governo de Bengala procuravadesesperadamente pessoal competente em cartografia. Rapidamente, ele foi nomeadoengenheiro--topógrafo chefe (Surveyor-General) de Bengala. A primeira grande tarefa deque foi encarregado consistiu em fazer um inquérito sobre o delta do Ganges com o fimde “encontrar o braço mais curto e mais seguro que conduzisse do grande rio àRangafulla”35. Efectivamente, os ingleses consideravam o reconhecimento dos riosnavegáveis como sendo de primeira importância. No delta comum do Ganges e doBrahmapoutre que constituíam uma boa parte de Bengala, Rennel considerou os braçosnavegáveis como teria considerado as costas marítimas, traçando portanto um esboçodos milhares de ilhas que formam o delta. Utilizando as técnicas aprendidas na Navy, aomesmo tempo informou-se junto dos autóctones sobre a navegabilidade dos diversosbraços e ancoradouros que eles apresentavam36.

23 No seu regresso a Inglaterra, em 1777, quando decidiu editar os mapas de Bengala, de

Bihar e de Orissa e, mais tarde, do conjunto do subcontinente, Rennell serviu-se damaior parte dos seus levantamentos fluviais. Para o resto, embora conduzisse algunsdos reconhecimentos terrestres, principalmente à volta da região do delta, Rennelapoiou-se nos diários de marcha dos soldados e agrimensores, quer indianos quereuropeus. A partir deste diários e relatos de viagem, assim como dos de outros viajantese missionários europeus e asiáticos, começou a compilar o seu mapa de Bengala edepois o mapa do conjunto do subcontinente indiano. É interessante mencionar que elereferiu todas estas fontes na introdução ou Memória que acompanhou o seu primeiromapa do subcontinente indiano editada em 1783. À cabeça destes “peripatéticos”figuram um sipaio, Ghulam Muhammad, “para as rotas e a região entre Bengala e oDecão”, Mirza Mughal Beg para o Noroeste da Índia, e Sadanand, “um brâmane de génioe saber fora do comum” – segundo os próprios termos de Rennel – para o Guzerate37. Os

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informadores europeus compreendiam normalmente os jesuítas Monserrate eTieffenthaller, e franceses que estavam na Índia, tais como o marquês de Bussy, JeanLaw de Lauriston, Antoine Polier e Claude Martin – que dependiam, eles próprios, já ovimos, em grande parte, dos saberes autóctones38. E Rennell, com certeza, deu grandeuso aos quadros do Ain-i Akbari. No prefácio da primeira edição da Mémoire, escreveuassim:

“Para a divisão do Hindustão em províncias, etc., segui o esquema adoptado peloimperador Akbar, porque me parecer ser o mais permanente: as ideias de fronteiranão estão apenas impressas no espírito dos indígenas pela tradição, mas estãotambém precisadas no Ain-i Akbari, anuário que faz autoridade”39.

24 Para mais, na cartuxa emblemática situada em baixo à direita do mapa da península,

vemos representada a cooperação entre elites indianas e britânicas, um brâmane queoferece à Britannia manuscritos sagrados, outros brâmanes que esperam com outrosmanuscritos nos seus estojos40.

25 O mapa de Rennel era menos denso em informações dos que os mapas de Inglaterra ou

dos seus territórios do ultramar até aí realizados e iria servir de modelo, no detalhe ena precisão, para o futuro mapa de Inglaterra. Em reconhecimento das suas realizações,Rennell recebeu da Royal Society a medalha Copley em 1791. Nessa ocasião, Sir JosephBanks, presidente da Sociedade, proclamou:

“Poderei eu permitir-me dizer que a Inglaterra, orgulhosa por ser considerada arainha do progresso científico pelas nações vizinhas, se pode vangloriar de ummapa geral tão bem executado como o de Bengala e de Bihar pelo Major [Rennell],um território consideravelmente maior do que toda a Grã-Bretanha e a Irlanda; [...]a precisão dos seus levantamentos permanece sem rival quando comparada com osmelhores mapas dos departamentos que esta nação foi até hoje capaz de produzir”41.

26 Rennell e o seu amigo William Roy, reconhecido pelo seu mapa da Escócia, acaloravam

havia vários anos a opinião pública ao ridicularizar os mapas existentes da Inglaterra edas suas costas para incitar o governo a empreender uma cartografia uniforme dasIlhas Britânicas 42. Doravante acompanhados por Banks, os seus defensores viram osfrutos ao longo deste mesmo ano, que assistiu à fundação do serviço britânico decartografia.

27 Todavia, as técnicas e os instrumentos de agrimensura então utilizados pela Inglaterra

eram muito diferentes dos desenvolvidos na Índia. A única técnica que foi guardadacomo procedimento de levantamento a grande escala foi a triangulação, aperfeiçoadaprincipalmente em França em meados do século XVIII. Contudo, os Britânicos nãoquiseram utilizar o cercle repetiteur concebido pelos Franceses para realizar atriangulação; conceberam eles próprios um teodolito azimutal de três pés de diâmetro,com o qual os levantamentos foram de facto executados43. Esta reconfiguração dastécnicas utilizadas e para as quais terá contribuído o saber-fazer indiano, francês ebritânico, é uma ilustração da maneira como foi ponderada a importação de saberes epromovido o desenvolvimento de saberes e de instrumentos de carácter nacional. Arealização deste empreendimento cartográfico à escala nacional iria agregar à voltadestes saberes, saber-fazer e instrumentos, todos os participantes como membros de umestado-nação emergente, resultado tanto da aventura colonial como da rivalidadeintra-europeia.

28 Na Índia, pelo contrário, foi o método compósito de colecta de dados que foi retido e

desenvolvido pelos sucessores de Rennel. Assim, Thomas Call (Surveyor General de

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Bengala de 1777 a 1788) empregou pelo menos quarenta indianos na recolha dasinformações para o seu projecto de um atlas da Índia. Em 1783, escrevia:

“Durante o ano e meio que passou empreguei às minhas custas seis munshis e trintaharkaras para viajarem por diferentes partes da Índia a fim de recolhereminformações […] Fiz isto com o aval do honorável governador geral.”

29 E um ano mais tarde ainda:

“Sob as ordens do governador geral empreguei munshis para levantar as estradasentre lugares bem determinados no mapa, e assim obtive algumas informaçõesúteis”44.

30 Esta escolha não era um fenómeno isolado, nem a escolha de cartógrafos subalternos.

Bem pelo contrário, este apoio massivo no saber-fazer local era a regra comum. Omatemático e astrónomo Reuben Burrow (1747-1792), que foi o assistente do astrónomoreal Nevil Maskelyne, também apelou a astrónomos autóctones para obter ascoordenadas das cidades e de outros lugares precisos45. Alexander Allan (1764-1820),que mais tarde se tornou director da EIC e deputado nos Comuns, foi durante algumtempo comandante de um corpo de cinquenta guias indígenas criado em Madras em1780:

“Os guias – escreveu ele – examinaram e fizeram todas as observações necessárias,acerca de perto de cinco mil milhas de estradas. […] Considero como um dever quetenho para com o Corpo de guias […] pedir a sua excelência [o governador deMadras] para transmitir à honrada assembleia dos directores [de YEIC] os seusmapas e os seus diários e o seu livro de estradas que mandei traduzir em inglês”46.

31 Inútil será dizer que Allan e os seus predecessores, à cabeça do corpo de guias, não

tinham nem a competência, nem os meios financeiros, nem o tempo (em consequênciadas guerras que atravessavam o sul da península) para assegurar a estes guias(principalmente informadores para todo o serviço) um formação de agrimensoresocidentais47.

32 Também é preciso notar que muitos europeus, mais cedo, no século XVIII, mandaram

traduzir para inglês manuais autóctones de agrimensura e de astronomia e tomaramnotas detalhadas sobre as suas práticas48.

33 Quando a triangulação foi introduzida no subcontinente indiano, durante muito tempo

permaneceu apenas uma técnica – importante, é preciso dizê-lo – utilizada com outrastécnicas, tal como a contagem dos passos ou a apreciação da distância como função dotempo (o dia de marcha era a unidade comum). A tarefa de traduzir os relatórios e de, apartir daí, fazer mapas não era simples, já que toda uma gama de protocolos e deprocedimentos especiais estava por definir. Charles Reynolds (Surveyor General deBombaim, 1796-1807), que organizou numerosas equipas exclusivamente autóctonespara palmilhar o subcontinente, escreveu aos seus superiores, aflitos com o montantedo seu orçamento: “os seus reconhecimentos apenas podem ser explorados comutilidade se forem anotados e traduzidos por pessoas competentes para este trabalho”49.

34 No decurso das décadas seguintes, a reparação, adaptação e manutenção dos

instrumentos implicavam com frequência que se modificasse a sua estrutura e osprotocolos de utilização e, portanto, que também fossem recalibrados. O apport inglêsdo odómetro para medir a distância mostrou como o instrumento era “frágil, mau emprincípio e incapaz de operar noutro local que não fosse uma estrada suave ou sobreum relvado. Através do país ele cai aos bocados ao fim de uma ou duas milhas”50. Cercados anos de 1780 o capitão John Pringle, da infantaria de Madras, desenhou um

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odómetro mais robusto e mais bem adaptado ao tamanho e à démarche dos supletivos(lascars) locais. Em meados do século XIX, tendo sofrido contínuos melhoramentos, esteinstrumento continuava em uso, mas com uma aparência e um funcionamento muitodiferentes do seu primo inglês51. Por vezes foi preciso inventar novos métodos delevantamento, para circunstâncias ou terrenos que excluíam o recurso às técnicasusuais – um bom exemplo foi a cartografia da Ásia central nos anos de 1860 baseada nopasso rigorosamente calibrado de mercadores indianos52.

35 Por fim, em 1851, o Thomason Engineering Collège foi estabelecido em Roorkee (no Norte

da Índia) para formar agrimensores. As práticas de levantamento na Índia eram tãodiferentes das utilizadas na Grã-Bretanha, que “nenhuma obra inglesa que existia sobregeodesia ensinava ou abordava de maneira prática o sistema de levantamentoparticular aplicável a este país”53. Foi necessário conceber um manual inteiramentenovo. Radhanath Sikhdar, o calculador-chefe do Survey of lndia, foi redactor de mais demetade da obra. Assinale-se aqui que, embora as actividades de agrimensura tenhamdependido de actividades indígenas, um pouco por todo o lado no subcontinenteindiano, as pessoas, o saber-fazer, os procedimentos e os instrumentos implicados nestaactividade diferiam nos três territórios (de Calcutá, de Bombaim e de Madras) até àcriação do Colégio de Roorkee. Um estudo aprofundado revela que, mais do que umcondensado de todos estes modos locais, este novo manual foi uma tentativa para osestandardizar e para os difundir através de um território doravante dotado de umaadministração centralizada.

A emergência do mapa como representação“objectiva” do território

36 Se é possível dizer que as práticas cartográficas resultantes destas trocas foram de facto

híbridas, decorrentes da circulação dos actores, saber-fazer, instrumentos,procedimentos…, o que é que se pode dizer acerca do mapa moderno comorepresentação? Não será ela, como para nós actualmente, uma representação que sai deuma epistemologia inteiramente europeia? Noutras culturas, o que é que os mapaspodiam representar, supondo que aí tivessem existido? Finalmente, os mapas terão sidosempre uma representação europeia do terreno, instrumento indispensável para a suavisualização e para o seu domínio? É verdade que os mapas, representaçõestopográficas “objectivas”, presentes em todo o lado no mundo de hoje, são vistos comomeios indispensáveis de orientação e de comunicação, mas esta visão é o resultado deum longo processo. Por vezes temos tendência para negligenciar o facto de estes mapasterem eles próprios uma história, incorporando a evolução das redes sociais deprodutores de mapas, dos seus patronos, dos utilizadores de mapas e também dequestões epistemológicas relativas às suas funções como documentos “precisos”54.Vejamos, portanto, o que representavam os mapas e para que é que eles serviam, paraos Indianos e para os Britânicos, e como é que as coisas evoluíram no decurso doencontro colonial.

37 Um grande número de mapas, já o vimos, existiu na Índia pré-colonial. A variedade dos

estilos desses mapas dá testemunho do facto de o Sul da Ásia, região tão vasta ediversificada como a Europa, praticar, há muito tempo, trocas intensivas com asculturas maiores do Velho Mundo. Ressalve-se que algumas destas cartas fazem uso de

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convenções de cor: castanho-claro para os terrenos, castanho-escuro para asmontanhas, azul para os rios, branco para os oceanos55…

38 Embora os usos de todos estes artefactos não possam ser determinados de forma

precisa, alguns deles tinham objectivos claramente militares, fiscais e religiosos (comoos mapas de peregrinação e os mapas e globos cosmográficos). É conhecido pelo menosum atlas mundial, que faz parte de uma enciclopédia, Shahid-i Sadiq, redigida no séculoXVII por um persa que residia no Norte da Índia; comporta trinta e quatro mapasrealizados de acordo com as técnicas persas de projecção cilíndrica; importa notar quenesta época a Índia havia permanecido mais de mil anos em contacto constante com omundo islâmico e que o Norte da Índia era mesmo parte desse mundo56. Também seconhece a existência, em diferentes colecções na Grã-Bretanha e na Índia, de uma meiadúzia de globos cosmográficos todos eles amplamente baseados nos Puranas. O maisantigo e talvez o mais fascinante destes globos é o Bhugola de Ksema Karna – uma caixaesférica de cobre delicadamente trabalhada para representar as diferentes partesconstitutivas do universo segundo as fontes purânicas, mas denotando uma influênciaptolomaica (provavelmente um recipiente para especiarias)57. Pinturas jaina foramidentificadas como mapas com rotas para peregrinações58. Um manual de navegaçãocomportando mapas marítimos, datados de meados do século XVII, foi recentementedescoberto.

39 Um mapa podia ser utilizado como documento jurídico: na sua memória, Tarikh-i Asad

Beg Qazwini, Asad Beg escreve como deu conta ao imperador Akbar de responsabilidadesna fuga de um príncipe rajput, que todavia estava cercado:

“Uma peça de tecido de várias aunes foi trazida […] sobre ela foi desenhado o forteIraj com o rio de um lado, as muralhas e as portas do forte nos outros três lados. Olado por onde tinha fugido Bir Singh foi também indicado, bem como o local poronde ele tinha atravessado o rio. As forças acampadas em torno do forte foramindicadas […] o Bakshi [funcionário mogol, encarregado do recrutamento e da gestãodas pessoas] escreveu os nomes dos seus comandantes. Cada um deles teve quecolocar o seu próprio sinete sobre o documento, afirmando assim o seuassentimento com o desenho como representação. Quando todos os nobres jáhaviam imprimido o seu sinete sobre o mapa, [Asad Beg] declarou-lhes que aqueleera o relatório que enviaria ao imperador”59.

40 Os mapas indianos conhecidos não apresentam uma escala ou uma orientação

uniformes, assim como as cartas europeias do Sul da Ásia antes de Rennell. Porexemplo, a carta da Índia de d’Anville, paradigma da precisão na sua época, utilizavaseis escalas diferentes. De facto, mesmo os sucessores de Rennell na Índia continuarama compilar cartas usando escalas variadas não estandardizadas; pelo que Rennellamentou ter trabalhado e publicado as cartas desenhadas sobre escalas muitodiferentes, desenhadas pelos capitães Allan e Beatson para ilustrar os movimentos dosexércitos britânicos na Índia no fim do século XVIII 60.

41 Se os mapas indianos tinham usos múltiplos e variados, quais eram os usos dos mapas

do subcontinente indiano produzidos por ou para europeus, que era supostorepresentarem de maneira perfeitamente cientifica o mundo “real”, ser uminstrumento indispensável para a deslocação de europeus em regiões não familiares?Um exame dos destinos destes mapas até à viragem do século XIX lança uma luzsurpreendente sobre as utilizações que deles foram feitos na prática.

42 Comecemos pelos mapas da Índia preparados em 1770, sob a direcção do francês

Français Jean-Baptiste-Joseph Gentil (1726-1799), então em missão na corte d’Oudh.

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Embora este atlas de vinte e um fólios, destinado a ilustrar a tradução de YAin-i Akbari

por Gentil, cobrisse regiões praticamente desconhecidas dos Europeus (e aindainacessíveis durante várias décadas) e fosse bastante mais denso de informações do quequalquer outro atlas contemporâneo, os dois exemplares conhecidos desta realizaçãotinham inicialmente um fim decorativo61. Da mesma forma o mapa da Índia, realizadopor D’Anville para os Franceses, os mais treinados a usar mapas, estava destinado adecorar os escritórios dos “Messieurs les Commissaires du Roi à la Compagnie desIndes”, em Paris e não a servir para os administradores das feitorias francesas naÍndia62.

43 É necessário notar que, no início da sua estadia na Índia, Rennell não embarcou na

compilação de nenhuma carta de uma região ou outra. Inicialmente, o pedido dogovernador de Bengala, Henry Vansittart, mais não era do que: “manter um diárioconsagrado à vossa progressão, anotando o aspecto e a produção das regiõesatravessadas, o nome de cada aldeia e tudo aquilo que vos parece importante; destediário dar-me-eis uma cópia acompanhada dos croquis dos rios e das enseadas queconseguirdes fazer”63. Foi apenas um ano mais tarde, a pedido de Rovert Clive, quevoltou à Índia como sucessor de Vansittart, que Rennell começou a realizar o primeiromapa de Bengala, não como utensílio administrativo ou militar, mas para ilustrar osegundo dos três volumes da obra de Robert Orme, History of the Military Transactions of

the British Nation in Indoostan from the Year 1745. Rennell também desenhou numerososmapas para a colecção privada de Clive, com o fim de atrair a si os favores destegovernador todo-poderoso64. A mesma sorte tiveram muitos mapas contemporâneosdesenhados por outros cartógrafos, embora funcionários de Orme, History of the Military

Transactions of the British Nation in Indoostan from the Year 1745, motivados pelo arrivismoe o gosto do lucro. De facto, estes desenhos, sendo objectos únicos, eram altamenteapreciados pela sua qualidade estética; muitos deles encontraram lugar entre ascolecções privadas de membros do Parlamento ou de sociedades eruditas, e chegaram aestar na posse de certos directores e altos funcionários da própria EIC. Tanto assim quea Companhia, pressionada a obter a informação mais ampla sobre as suas possessões naÍndia, começou a inquietar-se com esta fuga de mapas. Já em 1766, o directório emLondres escrevia ao governador de Bengala:

“Um respeito muito ténue foi demonstrado, perante ordens muitas vezes repetidas,que diziam respeito à transmissão das cópias de todas as cartas e planos, […]todavia, parece-nos que certas cópias fizeram aqui a sua aparição [Londres], emparticular o mapa de região de Calcutá. Tê-lo-emos, portanto, como altamenteculpado por negligenciar a atenção que deve ter relativamente a este assuntoimportante, a não ser que nos faça chegar as cópias de todos os croquis, planos elevés das nossas fortificações, terrenos, ou outro, que estão em sua posse.”

44 E dois anos mais tarde:

“Receberemos com prazer o mapa que está a ser realizado pelo capitão Rennell,contudo devemos notar que este mapa nos deveria ser enviado em primeira-mão eque nenhuma cópia seja dada a não ser com o nosso acordo, regra até agora nãorespeitada, uma vez que Lord Clive e M. Vansittart estão os dois na posse de mapasde diferentes províncias realizadas pelo capitão Rennell.”

45 Pouco depois exprimem-se de maneira bem mais enérgica:

“Quando um levantamento é realizado, ninguém está autorizado a tirar dele umacópia, o que nos leva a reiterar o nosso espanto face à conduta desleal dos nossosgeógrafos, que não nos enviaram nenhum produto do seu trabalho, embora, paraisso, tenham, em larga medida, feito contribuir a Companhia […] Esta negligência é

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tanto mais grave quanto se descobre que os mapas de todas as províncias estão atítulo privado nas mãos de Lord Clive e do governador Vansittart. O nossoressentimento em relação à sua conduta teria ido ao ponto de os destituir, não forao facto de, pelo último barco, nos ter sido transmitida a notícia que assegura que osmapas serão acabados e nos serão enviados no próximo ano”65.

46 Estas queixas e ameaças, embora veladas, repetem-se pelo menos até à viragem para o

século XIX. Todavia, os mapas continuavam a fugir, tendo como destino, não tanto aspotências inimigas, como a França, mas os membros influentes da própria direcção daCompanhia que os compravam ou os recebiam como presente, em troca de favorespassados e futuros. Mesmo os “mapas originais [de Rennell] […] foram levados paraInglaterra por algumas das mais altas autoridades na Índia e considerados comopropriedade privada até à sua descoberta acidental na colecção de uma senhora nobre[…] e voltados a comprar pelo directório pela soma de cem libras”66.

47 O que aconteceu às cartas impressas do subcontinente? Estes objectos produzidos em

quantidade não eram destinados a um público mais lato, habituado a ler mapas, e afuncionários do terreno? A resposta é surpreendente; só muito tarde, no século XIX,começaram a visar um público ou um uso preciso na Grã-Bretanha. Como o públicobritânico letrado experimentava, à luz das conquistas britânicas, um interessecrescente pela Índia, surgiu um mercado potencialmente lucrativo que levou Rennell aeditar o seu mapa da Índia. No prefácio às duas primeiras edições escreve:

“Enquanto o teatro das guerras britânicas no Indostão esteve limitado a uma zonaparticular, a geografia desta região suscitou pouca curiosidade; mas, agora que nosempenhámos em guerras, alianças ou negociações com todas as potências principaisdo Império, e que içámos a bandeira britânica de um lado ao outro, um mapa doIndostão, detalhando as condições locais dos nossos laços políticos e os movimentosdos nossos exércitos, só pode interessar altamente àqueles que se impressionamcom o esplendor das nossas vitórias ou cuja atenção desperta para o presenteestado crítico dos nossos assuntos nesta região do globo”67.

48 Rennell precisa como este mapa “está em duas folhas largas que se podem juntar para

uma visão de conjunto, ou podem ser dispostas separadamente em atlas, segundo aconveniência ou a fantasia de quem o adquire”. Todavia, considerando a cartuxadecorada e as gravuras, é evidente que Rennell preferia a primeira opção. Além domais, um mapa em papel “couché” espesso não era conveniente à inserção num livro.Jean III Bernoulli (1744--1807), tradutor e editor em francês de Rennell, por seu lado,decidiu cortar este mapa em três partes com a mesma escala e imprimi-lo em papel finoe resistente autorizando a sua inserção num livro uno e capaz de suportar frequentesdobragens e redobragens. Esta apresentação correspondia melhor ao contexto daEuropa continental, onde a cultura cartográfica estava já muito difundida68.

49 Quanto ao processo de desenvolvimento da cultura cartográfica junto do grande

público britânico, por um lado, e, por outro, à evolução destes mapas em direcção aoestatuto de instrumentos unívocos de representação cartográfica, indispensáveis àsdeslocações terrestres, essa é uma longa história. Não decorre apenas de uma evoluçãointerna nas Ilhas Britânicas e não pode ser separada das práticas geográficas dospráticos, dos instrumentos e mapas saídos da aventura colonial indiana e dos esforçosda EIC para regular a circulação deste novo tipo de informação, reservada parabenefício exclusivo da Companhia e da nação britânica.

50 De facto, como os interditos da Companhia não podiam travar a fuga das cartas em

direcção ao mercado da arte, foi só no início do século XIX que se tornou possível

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concretizar a utilidade destes mapas como instrumentos de terreno. A EIC formou nasua escola militar de Addiscombe, criada em 1809, gerações de militares treinados paraler e utilizar os mapas. Estes começaram então a tornar-se úteis e a substituirprogressivamente os guias autóctones. Assim sendo, surgiu uma procura sustentada demapas nos diversos serviços da Companhia, bem como a necessidade de estandardizaras convenções topográficas. Numerosas técnicas de reprodução, a litografia porexemplo, contribuiriam para simplificar os mapas, dissociando-os da sua tendênciaclássica para o estetismo e as procuras do mercado de arte. Em resumo, a culturacartográfica, tal como hoje a conhecemos, foi inicialmente imposta pelo controlo dacirculação dos mapas, depois pela formação de um público apto a considerá-los comoutensílios de terreno, por fim pela estandardização das convenções topográficas. Pormeio do seu raio de acção transnacional, a EIC teve um papel decisivo neste processo.

Conexões, cruzamentos, circulações

51 Este panorama dos primeiros levantamentos terrestres extensivos sob o regime

colonial britânico autoriza-nos a avaliar melhor outros pontos de vista que respeitamas práticas científicas e culturais.

52 Sustentar a ideia de que os colonizadores ocidentais se teriam servido da sua ciência

moderna para melhor dominar as populações autóctones é permanecer prisioneiro doponto de vista segundo o qual a ciência é um produto puramente ocidental, a linha deseparação por excelência entre a Europa e o resto do mundo. Espero ter mostrado, comeste exemplo preciso (mas existem outros igualmente significativos, como a botânicaou as estatísticas), que, bem pelo contrário, a história das práticas científicas ditasocidentais ultrapassa as fronteiras da Europa e se mistura inextricavelmente com ahistória das práticas eruditas de outros povos, noutras regiões69. Mais ainda, o estado-nação na Europa, a sua identidade, as suas instituições económicas e sociais, e até asmaneiras de raciocinar histórica e antropologicamente, não foram uma simplesprodução dos países do Ocidente, mas antes o resultado de adaptações das suasinstituições aos modos de organização das sociedades sobre as quais eles tinhamestabelecido um domínio70.

53 De facto, constata-se que o Sul da Ásia era, quanto ao desenvolvimento científico, muito

mais do que “um espaço místico e religioso”, ou uma terra incognita, e que o acto deobservar e de medir, inerente à agrimensura terrestre, não era de forma alguma umaactividade cientifica essencialmente britânica, marcante de uma diferença fundamentalentre Europeus e indígenas. Os levantamentos terrestres quantitativos eram tãocomuns no Estado Mogol como na Inglaterra no período pré-colonial e, no primeirocaso, estas práticas foram continuamente reconfiguradas no decurso dos séculosatravés nomeadamente de uma interacção prolongada com o mundo islâmico. Pode-semesmo sustentar que, nos dois casos, elementos militares e fiscais, materializados poruma rede de estradas importante e a agrimensura cadastral, figuravam entre ascaracterísticas essenciais do Estado71. Os Britânicos, muito conscientes do saber-fazer

indiano, reconheceram-no plenamente e esforçaram-se para o desenvolver nas suaspróprias instituições militares e fiscais nascentes na Índia, apoiando-se nos contadoresdas aldeias, incorporando agrimensores indianos, traduzindo textos autóctones quetratavam da agrimensura e da astronomia. É precisamente através destasreconfigurações do saber-fazer e das práticas na Índia, depois na Grã-Bretanha (com a

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fundação da Ordinance Survey), e dos vaivéns entre os dois espaços que emerge o mapacomo instrumento de governo na Grã-Bretanha e, simultaneamente, no ImpérioBritânico.

54 Assim, mais do que por caminhos lineares de difusão ou de transferência, é por

processos de circulação dos homens e das práticas, das informações e dos saberes, dosinstrumentos e dos objectos, que as ciências e as técnicas se desenvolvem. Estesmesmos processos permitem a sua apropriação e naturalização em diferenteslocalidades, originando práticas ancoradas nestes diferentes lugares conectados pelosseus trajectos.

55 A “história conectada” esforçou-se por fornecer um quadro para pensar estas

características partilhadas no contexto da primeira modernidade. De facto, para queestas circulações entre regiões tão distintas no contexto da primeira modernidade (e daexpansão europeia) estejam investidas de sentido, existe um conjunto partilhado devalores, que estrutura as trocas comerciais, e de construções ideológicas e de práticasmateriais ligadas à formação do Estado72. Assim, o comércio transcontinental, baseadoem trocas monetárias, depois a formação dos impérios mogol e britânico, organizados apartir de exércitos e das funções administrativas e fiscais constituídas, fornecem oscontextos de poder que subentendem a conexão dos espaços britânico e sul asiático. Éisso que permite a circulação, num espaço doravante conectado, dos actores, práticas eobjectos científicos, a interacção entre eles e, eventualmente a construção de novasconexões anteriores, produzindo assim novos objectos e práticas que servem por seuturno para consolidar as conexões anteriores e para reconfigurar, e até mesmoestender, este espaço. Tendo restituído as suas conexões, o historiador tornainteligíveis os valores, símbolos e ideologias do mundo no qual se situam os actoresreferidos.

56 Por seu lado, a “história cruzada”, quando apela a uma acção “como princípio activo, no

qual se desenvolve a dinâmica do inquérito, segundo uma lógica de interacções onde osdiferentes elementos se constituem uns em relação aos outros, uns através dos outros”,também encontra aqui um terreno de aplicação fértil73. Ela também nos permite cruzarobjectos, pessoas e disciplinas a fim de melhor delimitar a complexidade dos objectos epráticas construídos em contextos transnacionais, ou mesmo transcontinentais. Emcontrapartida, ao reconhecer a não-linearidade dos processos de transferência e dedifusão em geral, as propostas da história cruzada negligenciam a explicitação dosprocessos de poder que presidem às circulações e interacções entre homens, práticas eobjectos que aparecem em situações de assimetria como aquelas que aqui sãoapresentadas. Mais a mais, permanecem silenciosas perante aquilo que continua a ser apreocupação central dos science and technology studies e deste estudo em particular: aemergência da novidade, ou a “ciência a fazer-se”. Sobre estes dois aspectos este estudotraz um olhar que poderá servir para enriquecer as proposições da história cruzada.

57 Porém, aquilo que me parece fundamental no contributo da perspectiva aplicada no

presente estudo é a asserção da circulação como método de análise74. Seguindo astrajectórias dos actores, aqui sobretudo Rennell e o seu mapa, este método exige aopróprio historiador que ele mude de ponto de vista em função dos movimentos dosactores. O método concentra-se nas tentativas desses actores para fazerem seu umlugar no mundo, reconfigurando-o, mudando os seus ingredientes, introduzindo, entresi e o tecido social novos objectos e recomposições. Seguindo, portanto, o devir dosactores, e o seu grau de sucesso nestas mudanças e recomposições, este método faz uso

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das mudanças de escalas históricas, passando de vidas singulares a níveis nacionais,transnacionais e transcontinentais75. Assim sendo, esta metodologia permite umamelhor apreensão da maneira como os eruditos e os objectos científicos e técnicosadquirem a capacidade de intervenção prática sobre o mundo moderno. Permite-nossobretudo ver como emergem e se constituem conjuntamente, nascendo de um mesmomovimento, objectos científicos, técnicas, nações, impérios, identidades nacionais.

NOTAS

1. Para uma apresentação mais completa desta renovação na história das ciências, ver Dominique

Pestre, “Pour une histoire sociale et culturelle des sciences. Nouvelles définitions, nouveaux

objets, nouvelles pratiques”, Annales HSS, 1995, 50-3, pp. 487-522.

2. Ver, por exemplo, Gyan Prakash, Another Reason. Science and the Imagination of Modern India,

Princeton, Princeton University Press, 1999.

3. Matthew Henry Edney, Mapping an Empire. The Geographical construction of British India, 1765-1843,

Chicago/Londres, The University of Chicago Press, 1997. As citações são retiradas

respectivamente das páginas 25 e 32. Para a parte que respeita à resistência dos camponeses

indianos ver p. 325 ss. Ver também o número especial consagrado à etnografia colonial da revista

South Asia Research, 1999, 19-1, em particular a contribuição de Gloria Goodwin Raheja: “The

Ajaib-Gher and the Gun ZamZammah: Colonial Ethnography and the Elusive Politics of

“Tradition” in the Literature of the Survey of India”, pp. 29-52.

4. Frederick Cooper, “Conflict and Connection: Rethinking Colonial African History”, American

Historical Review, 1994, 99-5, pp. 1516-1545, aqui p. 1517.

5. Para uma apresentação destas abordagens, ver respectivamente Sanjay Subrahmanyam,

“Connected Histories: Notes Towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia”, Modern Asian

Studies, 1997, 31-3, pp. 735-762, e Serge Gruzinski, “Les mondes mêlés de la monarchie catholique

et autres connected historiés”, Annales HSS, 2001, 56-1, pp. 85-117; Arjun Appadurai, The Social Life of

Things. Commodities in Cultural Perspective, Cambridge, Cambridge University Press, 1986, e

Nicholas Thomas, Entangled Objects. Exchange, Material Culture, and Colonialism in the Pacific,

Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1991; assim como a contribuição de Michael

Werner e Bénédicte Zimmermann “Penser l’Histoire croisée: entre empirie et réflexivité”, in De la

comparaison à l’histoire croisée, Paris, Le Seuil, 2004, 236 pages. “ Le Genre humain ”.

6. Serge Gruzinski, “Les mondes mêlés...”, op. cit., p. 87.

7. Linda Colley, Britons. Forging the Nation, 1707-1837, New Haven/Londres, Yale University Press,

1992. Ver também Roy Porter e Mikulas Teich (dir.), The Scientific Revolution in National Context,

Cambridge, Cambridge University Press, 1981.

8. Segundo uma estimativa, durante a primeira metade do século XIX, para a província de Madras

a proporção de Britânicos relativamente aos Indianos que estavam ao serviço da administração

colonial era de 1 para 180. Ver Robert E. Frykenberg, Guntur District, 1788-1848. A History of Local

Influence and Central Authority in South India, Oxford, Clarendon Press, 1965, p. 7.

9. Ver Ashin Das Gupta, The World of the Indian Ocean Merchant, 1500-1800, Delhi, Oxford University

Press, 2001.

10. Para uma história das técnicas de navegação oceânica, ver Eva Germaine Rimington Taylor,

The Haven-Finding Art. A History of Navigation from Odysseus to Captain Cook, Londres, Hollis & Carter,

Cultura, Vol. 24 | 2007

147

Page 149: Cultura intelectual das elites coloniais - OpenEdition Journals

1956. Taylor mostra que o primeiro mapa portuário europeu conhecido data de cerca de 1275. Na

mesma época, o viajante Marco Polo assinala o uso de mapas marítimos no Oceano Índico. Por

outro lado, sabe-se que os Turcos e os Árabes também utilizavam mapas marítimos no

Mediterrâneo e no Oceano Índico. Ver Gerald R. Tibbetts, “The Rôle of Charts in Islamic

Navigation in the Indian Ocean”, in John Brian Harley e David Woodward (dir.), The History of

Cartography, vol. 2, Book 1, Cartography in the Traditional Islamic and South Asian Societies, Chicago/

Londres, The University of Chicago Press, 1992, pp. 256-262.

11. Os jesuítas foram a única excepção a estas práticas. Desde o começo da sua acção missionária

na China, que se propuseram como principal objectivo fazer o mapa do Império chinês. O atlas da

China produzido pelos jesuítas durante a primeira metade do século XVIII foi o clímax deste

empreendimento. Ver Theodor N. Foss, “A Western Interpretation of China: Jesuit Cartography”,

in Charles E. Ronan e Bonnie B. C. Oh (dir.), East meets West. The Jesuits in China, 1582-1773, Chicago,

Loyola University Press, 1988, pp. 209-251. Para o subcontinente indiano, os jesuítas fizeram

observações astronómicas sistemáticas, fornecendo as coordenadas de muitos lugares. Estas

foram incluídas nos seus mapas por cartógrafos europeus como d’Anville. A este propósito, ver

Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville, Éclaircissemens géographiques sur la carte de l’Inde, Paris,

Imprimerie royale, 1753.

12. British Library, India Office Records (doravante citado como IOR), Bengal Public

Consultations, 1 de Agosto de 1757. P/l/29, f° 247: carta de 27 de julho de 1757 de Robert Clive e

dos membros do conselho em Muxudavad [sic] para o presidente e o conselho de Fort William,

Calcutá.

13. IOR, Bengal Public Consultations, 1 de Agosto de 1757. P/l/29, f° 259: carta datada de 3 de

Agosto de 1757 do almirante Charles Watson para o conselho de Fort William.

14. Reginald Henry Phillimore, Historical Records of the Survey of India, Dehra Dun, Survey of India,

1945-1968, 5 vol., vol. I, pp. 307-400.

15. Instrumento de medida de dez pés. (N. T.)

16. Para uma história dos usos dos mapas cadastrais na Europa, ver Roper T. P. Kain e Elizabeth

Baigent, The Cadastral Map in the Service of the State. A History of Property Mapping, Chicago/Londres,

The University of Chicago Press, 1992.

17. Raleigh Ashlin Skelton, “The military survey of Scotland, 1747-1755”, The Scottish Geographical

Magazine, 1967, 83, pp. 1-15, fornece uma história detalhada desta primeira cartografia da Escócia.

Para a história dos primórdios da cartografia unificada na Grã-Bretanha, ver Charles Close, The

Early Years of the Ordnance Survey, Newton Abbot, David & Charles reprints, 1969, e W A. Seymour

(dir.), A History of the Ordnance Survey, Folkestone, William Dawson, 1980. Para as práticas

instrumentais dos agrimensores ingleses, ver James A. Bennett e Olivia Brown, The Complete

Surveyor, Cambridge, Whipple Museum of the History of Science, 1982, p. 10.

18. Susan Gole, Indian Maps and Plans from Earliest Times to the Advent of European Surveys, Delhi,

Manohar, 1989; e Reginald Henry Phillimore, “Three Indian Maps”, Imago Mundi, 1952, 9, pp.

111-114. Para uma história geral da cartografia no Sul da Ásia, ver Joseph E. Schwartzberg, “South

Asian Cartography”, in John Brian Harley e David Woodward (dir.), The History of Cartography, op.

cit., p. 400 sq.

19. The Imperial Gazetteer of India – Madras, II, p. 134, citado por Reginald Henry Phillimore,

Historical Records..., op. cit., vol. I, p. 133.

20. Medida agrária de superfície que vale 1000 metros quadrados. (N. T.)

21. National Archives of India, New Delhi (NAI), “The “Chetrie Ganietam” – a Sanskrit work on

land measurement translated by Benjamin Heyne”, Memoirs of the Survey of India (1773-1866), p. 3,

f° 2.

22. Antonio Monserrate (ed. H. Hosten), “Mongolicae Legationis Commentarius”, Memoirs of the

Asiatic Society of Bengal, 1914, III, 9, pp. 513-704. Esta citação é extraída da tradução inglesa do

relato, em latim, de Monserrate: John S. Hoyland e S. N. Banerjee, The Commentary of Father

Cultura, Vol. 24 | 2007

148

Page 150: Cultura intelectual das elites coloniais - OpenEdition Journals

Monserrate, S. J. on his Journey to the Court of Akbar, Cuttack/Londres, Oxford University Press, 1922,

p. 78.

23. Antiga medida de extensão francesa equivalente a 44 polegadas. (N. T.)

24. Antiga medida agrária francesa que valia 50 a 51 ares, conforme as regiões. (N. T.)

25. Termo indo-persa para designar uma medida linear que corresponde mais ou menos a um

“yard” em inglês e portanto um pouco menos que um metro actual. (N. T., a partir de um

esclarecimento dado pelo autor.)

26. Jean Bernoulli (dir.), Description historique et géographique de l’Inde, Berlim, Pierre Bourdeaux,

1786-1788, 3 vol., vol. I, pp. 23-24: “La Géographie de l’Indoustan, écrite en Latin, dans le pays

même, par le Père [sic] Joseph Tieffenthaler, Jésuite & Missionnaire apostolique dans l’Inde.”

27. ‘Abu ‘al-Fazl ibn Mubarak, Ain-i Akbari, traduzido em inglês por H. Blochmann (vol. I) e H. S.

Jarrett (vol. II e III), Calcutta, Asiatic Society of Bengal, 1873-1894. Na descrição dos doze soubahs,

ou províncias, do império de Akbar, ‘Abu ‘al-Fazl descreve as diferentes unidades de medida

através do império para os levantamentos cadastrais e das estradas: vol. II, pp. 58-62 e 414-418.

Na parte consagrada às crenças e aos saberes dos hindus, pormenoriza os meios utilizados na

região para determinar a longitude e a latitude, e junta uma tábua das coordenadas dos lugares

conhecidos do Oceano Atlântico até à China: vol. III, pp. 33-36 e 46-105. Ver também Jadunath

Sarkar, The India of Aurangzib (Topography, Statistics and Roads). Compared with the India of Akbar.

With extracts from the Fûiulasatu-t-tawarikh and the Chahar Gulshan, Calcutta, Bose Brothers, 1901.

28. Medida antiga de comprimento, vara comprida. (N. T.)

29. Ver David Pingree, “Jyotihsastra: Astral and Mathematical Literature”, History of Indian

Literature, Wiesbaden, Otto Harrassowitz, 1981, vol. 6, fasc. 4, pp. 52- 54, e Robert T. Gunther, The

Astrolabes of the World, Oxford, Oxford University Press, 2 vol., 1932, vol. I, pp. 179-228.

30. George Rusby Kaye, The Astronomical Observatories of Jai Singh, Calcutta, Superintendent

Government Printing, 1918; e, de forma mais geral, Richard C. Foltz, Mughal India and Central Asia,

Karachi, Oxford University Press, 2000.

31. Ver Christopher Alan Bayly, Empire and Information: Intelligence Gathering and Social

Communication in India, 1780-1870, Cambridge, Cambridge University Press, 1996, p. 20 sq.

32. Jean Bernoulli (dir.), Description..., op. cit., vol. I, 6, e vol. II, p. 267 sq.: “Des Gange & du Gagra,

avec une très grande Carte, par M. Anquetil Du Perron de l’Acad. des Insc, & B. L. & Interprète du

Roi pour les langues orientales, à Paris.”

33. Ibid., vol. II, pp. 466-467.

34. Cléments Robert Markham, Major James Rennell and the Rise of Modern English Geography, New

York, Macmillan & Co., 1895, p. 9.

35. Instruções a James Rennell datadas de 6 de Maio de 1764, redigidas par Henry Vansittart Esq.,

Governador de Fort William, reimpressas in T. H. D. La Touche (dir.), The Journals of Major James

Rennell Written for the Information for the Governors of Bengal during his Surveys of the Ganges and

Brahmaputra Rivers, 1764 to 1767, Calcutta, Asiatic Society, 1910, p. 9. Rangafulla é o nome da

enseada que liga Hougly a Sunderbans.

36. Ibid. Ver também a correspondência de Rennell com o seu tutor, o reverendo Gilbert

Burrington, IOR, ms. Eur/D1073, e os seus mapas manuscritos nos arquivos da Royal Geographical

Society, Londres.

37. James Rennell, Memoir of a Map of Hindoostan, or the Mogul’s Empire, 1.ª ed., Londres, edição de

autor, 1783, p. vi, 66 n. e 69; e A Bengal Atlas. Containing Maps of the Theatre of War and Commerce on

that Side of Hindoostan, Londres, 1781, p. x. Para a descrição de Sadanand por Rennell, ver a edição

de 1793 du Memoir, p. 185, n. 6.

38. Jean Bernoulli (dir.), Description..., op. cit., vol. I, p. IX. Sobre Martin e Polier, ver

respectivamente Rosie Llewellyn-Jones, A Very Ingenious Man: Claude Martin in Early Colonial India,

Delhi, Oxford University Press, 1992, e Muzaffar Alam e Seema Alavi, A European Experience of the

Cultura, Vol. 24 | 2007

149

Page 151: Cultura intelectual das elites coloniais - OpenEdition Journals

Mughal Orient. The Vjaz-i Arsalani (Persian Letters, 1773-1779) of Antoine-Louis Henri Polier, Delhi,

Oxford University Press, 2001.

39. James Rennell, Memoir, op. cit., 1.ª ed., p. m.

40. Ver “Explanation of the Emblematical Frontispiece to the Map”, ibid., p. xn.

41. Royal Society Journal, 1790-1793, Book 34, pp. 389-390.

42. Ver o prefácio à segunda edição da Memoir, pp. rv-v n. Roy tinha já tentado por duas vezes, em

1763 e em 1766, convencer o governador britânico a refazer o levantamento de toda a Grã-

Bretanha. Ver Catherine Delano-Smith e Roger J. P. Kain, English Maps: A History, Londres, British

Library, 1999, p. 218.

43. Ver Charles Close, The Early Years..., op. cit., e Sven Widmalm, “Accuracy, Rhetoric, and

Technology: the Paris-Greenwich Triangulation, 1784-88”, in Tore Fràngsmyr, John L. Heilbron e

Robin E. Rider (dir.), The Quantifying Spirit in the Eighteenth Century, Berkeley, University of

California Press, 1990, pp. 179-206.

44. IOR, Bengal Public Consultations, P/2/63 e P/3/7 datados de 6 de Outubro de 1783 e de 29 de

Novembro de 1784. Um número considerável de mapas resultante de levantamentos similares

encontra-se nas colecções da British Library: ver, por exemplo, add. ms. 13907 (a, b, c, d, e).

45. IOR, X/520.

46. IOR, Madras Military Consultations, 12 de Dezembro de 1797, citado por Reginald Henry

Phillimore, Historical Records..., op. cit., vol. I, p. 287. Um certo número de livros de estradas dos

agrimensores autóctones está conservado nos India Office Records e nas Memoirs do Survey of

India nos Arquivos Nacionais da Índia em Nova Deli.

47. Sobre a origem dos guias, ver a carta datada de 31 de Janeiro de 1790 ao governador, “Report

on the proposed Guides”, Oriental and India Office Collections (OIOC), British Library, Mackenzie

Ms., General Collection, ms. 69, pp. 60-61.

48. Ver, por exemplo, a carta de Tiberius Cavallo a James Lind, datada de 13 de Agosto de 1791:

British Library, Add. Ms. 22897, P 123-124. Agradeço a Simon Schaffer o facto de me ter dado esta

referência.

49. IOR, Bombay Military Consultations, 13 de Janeiro de 1807, citado por Reginald Henry

Phillimore, Historical Records..., op. cit., vol. I, p. 288.

50. Ralph Smyth e Henry Landour Thuillier (dir.), A Manual of Surveying for India Detailing the Mode

of Operations on the Revenue Surveys in Bengal and the North-Western Provinces, Calcutta, Thacker,

Spink & Co., 1851, pp. 360-361.

51. Para maiores detalhes sobre o desenvolvimento e a evolução do odómetro na Índia, ver

Reginald Henry Phillimore, Historical Records..., op. cit., vol. I, pp. 198-199.

52. Ver Kapil Raj, “La construction de l’empire de la géographie. L’odyssée des arpenteurs de Sa

Très Gracieuse Majesté, la reine Victoria, en Asie centrale”, Annales HSS, 1997, 52-5, pp. 1153-1180,

e “When Humans become Instruments: the Indo-British Exploration of Tibet and Central Asia in

the Mid-19th Century”, in Marie- Noelle Bourguet, Christian Licoppe e Hans Otto Sibum (dir.),

Instruments, Travel and Science. Itineraries of Precision in the Natural Sciences, 18th-20th centuries,

Londres, Routledge, 2002, pp. 158-185.

53. Ralph Smyth e Henry Landour Thuillier, A Manual of Surveying for India, op. cit., p. m

54. Para uma história das relações que a sociedade inglesa mantinha com os mapas, ver Catherine

Delano-Smith e Roger J. P. Kain, English Maps, op. cit. Ver também Jerry Brotton, Trading Territories.

Mapping the Early Modern World, Londres, Reaktion Books, 1997, p. 19 sq.

55. Ver Joseph E. Schwartzberg, “South Asian Cartography”, loc. cit., p. 356.

56. Um exemplar do Shahid-i Sadiq encontra-se na British Library, OIOC (IO Islamic 1537 &

Egerton 1016). Ver Irfan Habib, “Cartography in Mughal India”, Medieval India, a Miscellany, 1977,

4, pp. 122-134

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150

Page 152: Cultura intelectual das elites coloniais - OpenEdition Journals

57. Simon Digby, “The Bhugola of Ksema Karna: A Dated Sixteenth Century Piece of Indian

Metalware”, Art and Archeology Research Papers, 1973, 4, pp. 10-31. O globo encontra-se

actualmente no museu da História das Ciências da Universidade de Oxford.

58. Ver, por exemplo, William Norman Brown, “A Painting of a Jaina Pilgrimage”, in Rosane

Rocher (dir.), India and Indology: Selected Articles, Delhi, Motilal Banarsidass, 1978, pp. 256-258; e

Chandramani Singh, “Early 18th-Century Painted City Maps on Cloth”, in Robert Skelton et al.

(dir.), Facets of Indian Art, Londres, Victoria & Albert Museum, 1986, pp. 185-192.

59. Traduzido do manuscrito OIOC, ms. Or. 1996. Agradeço a Muzaffar Alam e Sanjay

Subrahmanyam por me terem assinalado a sua existência e de me terem facultado uma sua

tradução.

60. James Rennell, The Marches of the British Armies in the Peninsula of India, during the Campaigns of

1790 and 1791; Illustrated and Explained by Reference to a Map, Compiled from Authentic Documents,

Londres, W. Bulmer & Co., 1792, pp. 4-5.

61. A British Library e a Bibliothèque Nationale em Paris possuem, cada uma delas, um exemplar.

62. Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville, Eclaircissemens géographiques..., op. cit., p. m.

63. T. H. D. La Touche (dir.), The Journals of Major James Rennell..., op. cit., p. 9.

64. Ver John Malcolm, The Life of Robert, Lord Clive, Londres, John Murray, 1836, 3 vol., vol. II, p.

523. Alguns dos mapas da colecção privada de Clive encontram-se na biblioteca da Universidade

de Cambridge (ms. Plans.x. 13).

65. IOR, Court Despatches to Bengal, datados de 19 de Fevereiro de 1766, 16 de Março e 11 de

Novembro de 1768.

66. Thomas Best Jervis, “Historical and Geographical Account of the Western Coast of India”,

Transactions of the Bombay Geographical Society, 1840, 4-1, pp. 1-244, aqui p. 170.

67. James Rennell, Memoir, op. cit., 1.ª ed., p. i.

68. Jean Bernoulli (dir.), Description..., op. cit., vol. III, p. n.

69. Ver Serge Gruzinski, “Les mondes mêlés...”, loc. cit.

70. A este propósito, ver Christopher Alan Bayly, Imperial Meridian. The British Empire and the

World, 1780-1830, Londres/New York, Longman, 1989.

71. Ver respectivamente Muzaffar Alam e Sanjay Subrahmanyam, “L’État moghol et sa fiscalité

(XVIe-XVIIIe siècle)”, Annales HSS, 1994, 49-1, pp. 189-217, e John Brewer, The Sinews of Power. War,

Money and the English State, 1688-1783, Londres, Unwin Hyman, 1989.

72. Sanjay Subrahmanyam, “Connectée! Historiés...”, loc. cit. Ver também idem, “Imperial and

Colonial Encounters: Some Reflections”, Nuovo-mundo – mundos nuevos, 2003, 3 (<http://

www.ehess.fr/cerma/Revue/presentacion.html>).

73. Ver Michael Werner e Bénédicte Zimmermann, op. cit.

74. Para uma primeira tematização histórica da circulação ver Claude Markovits, Jacques

Pouchepadass e Sanjay Subrahmanyam (dir.), Society and Circulation. Mobile People and Itinérant

Cultures in South Asia, 1750-1950, Delhi, Permanent Black, 2003. Para uma abordagem sociológica

mais relacionada com os science and technology studies, ver Bruno Latour, Science in Action. How to

Follow Scientists and Engineers Through Society, Milton Keynes, Open University Press, 1987.

75. Sobre este assunto ver Michel Callon e Bruno Latour, “Unscrewing the Big Leviathan: How

Actors Macro-structure Reality and How Sociologists Help Them Do So”, in Karin Knorr-Cetina e

Aaron Victor Cicourel (dir.), Advances in Social Theory and Methodology: Towards an Integration of

Micro- and Macro-Sociologies, Boston/Londres, Henley/Routledge & Kegan Paul, 1981, pp. 277-303.

Cultura, Vol. 24 | 2007

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Page 153: Cultura intelectual das elites coloniais - OpenEdition Journals

RESUMOS

Este artigo recupera o papel dos cartógrafos indianos na construção da ciência cartográfica

britânica e a maneira como o saber-fazer local (ainda que em contexto colonial) se projectou na

metrópole. Mostra-se, assim, como a ciência cartográfica na Índia antecipou em larga medida as

realizações então em curso na Grã-Bretanha. À noção passiva de difusão, substituem-se as noções

mais activas, de recepções, de representações e de apropriações historicamente situadas. Com

este estudo sobre cartografia, o autor põe em evidencia a cooperação entre elites indianas e

britânicas. O saber-fazer indiano – protagonizados pelo que chama de cartógrafos subalternos – e

em especial a técnica da agrimensura foram plenamente reconhecidos pelas instituições coloniais

militares e fiscais, que se esforçaram por o desenvolver. Sem pôr em causa a relação entre saber/

poder nos processos coloniais, Kapil Raj define zonas de negociação e mostra mesmo como os

saberes produzidos por elites não ocidentais se projectaram no Ocidente e o transformaram.

In opposition both to the dominant vision of colonial science as a hegemonic European enterprise

whose universalization can be conceived of in purely diffusionist terms, and to the more recent

perception of it as a simple reordering of indigenous knowledge within the European canon, this

chapter seeks to show the complex reciprocity involved in the making of geography within the

colonial context. Focused on the early decades of British colonial conquest in South Asia and the

formalisation of intercultural encounter through the creation of administrative, military and

technical institutions which employed both Europeans and South Asians, it examines the

resultant knowledge practices that co-emerged in terrestrial surveying and cartography in India

and Britain. While noting that these practices were significantly different in each region – the

former depending crucially on the accounts of indigenous travellers and surveyors, the latter

mainly on trigonometrical instruments – the chapter nonetheless shows that the knowledge

created in each context while being local in nature, nevertheless participated wholly in the

emergence of transnational cartography.

ÍNDICE

Keywords: science, empire, cartography, Great Britain, India

Palavras-chave: ciência, império, cartografia, Grã-Bretanha, Índia, agrimensura

AUTORES

KAPIL RAJ

EHESS, Paris

Maître de Conférence na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, France, e está

associado ao Centre Alexandre Koyré pour l’Histoire de la Science. Ensinou e publicou

amplamente sobre práticas científicas modernas em contextos coloniais e pós-coloniais. O seu

livro Relocating Modern Science: Circulation and the Construction of Knowledge in South Asia and Europe,

1650-1900 foi publicado pela Palgrave Macmillan. O seu projecto mais recente inclui um livro sobre

a botânica na época moderna, na zona do Oceano Índico, e um trabalho de co-autoria sobre o

papel dos intermediários na construção do conhecimento científico no mundo globalizado da

modernidade.

Cultura, Vol. 24 | 2007

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Page 154: Cultura intelectual das elites coloniais - OpenEdition Journals

Do dilúvio universal ao Pai ToméFundamentos teológico-políticos e mensuração do tempo nahistoriografia brasílica (1724-1759)

From the Universal Deluge to Father Thomas: Theological and political

foundations and measuring of time in the Brazilian historiography (1724-1759)

Íris Kantor

1 Consideradas, em princípio, como agremiações de natureza apenas literária, as

academias eruditas brasílicas tiveram papel importante na construção do discursohistórico sobre o povoamento, conquista e colonização no continente americano.Reunida em duas academias, fundadas na cidade de Salvador, em 1724 e 1759, a eliteletrada propôs escrever a história dos domínios americanos no Império português,buscando universalizar seus dilemas a partir da experiência local.2

2 Uma das questões cruciais para a fixação do cânon historiográfico brasílico consistiu no

estabelecimento de uma cronologia comum entre o Velho e o Novo Mundo. Nesseartigo, veremos de que forma os eruditos brasílicos conceberam o passado docontinente americano, conjugando a concepção de tempo católica com a aventuracolonial, então em curso. O problema não era novo, já desde o início do século XVI,cronistas, teólogos e juristas viram-se desafiados a encontrar as conexões geográficas ecronológicas entre a Cristandade latina e o continente recém-descoberto.3

3 O magistrado Caetano de Brito e Figueiredo (1671-1732), membro da Academia Brasílica

dos Esquecidos, preparou dissertação sobre a história natural do Brasil (1724), na qualalertou para as dificuldades técnicas de recuar 5926 anos na “fabricação” da história doNovo Mundo4. Repetindo a expressão clássica do cosmógrafo Pedro Nunes (1502-1578),indagava aos colegas como descrever as realidades encontradas sem “degenerar ahistória em fábula”. Um novo céu, um novo mar, uma nova região com tantasparticularidades e circunstâncias lhe obrigavam a adaptar o sistema de classificaçãoclássico ou, eventualmente, a criar novos “nomes próprios” para identificar “tão novasregiões”5.

4 Assim, de modo bastante inventivo, os acadêmicos brasílicos procuraram enfrentar as

polêmicas relacionadas com a antiguidade geológica do continente americano. A

Cultura, Vol. 24 | 2007

153

Page 155: Cultura intelectual das elites coloniais - OpenEdition Journals

juventude do continente constituía um dos argumentos fundamentais para justificaçãoda inferioridade natural e humana dos americanos.6 Por isso, muitos deles ousaramnegar veementemente as teses difundidas na Europa por Francis Bacon (Nova Atlântida,1627) e, posteriormente, por Buffon (Histoire naturelle, 1749)7. Refutaram, também, osdemais autores hispano-americanos que defendiam a não universalidade do Dilúviobíblico, como fizera o jesuíta José Acosta. Os acadêmicos brasílicos, por sua vez,advogavam que os primeiros habitantes do continente americano eram, também, comoos europeus, descendentes diretos de Noé, transmigrados imediatamente após o Dilúvioprimordial.

5 Os eruditos ancoravam-se nos argumentos do padre Antonio Vieira de que a formação

geológica da América era coetânea à criação das outras três partes do mundo:“porventura aquela metade do Mundo a que chamavam quarta parte, não foi criadajuntamente com a Ásia, com a África e com a Europa?”8. Sob essa perspectiva, o marcozero da história do continente americano começava com a criação do mundo bíblico.Embora reconhecessem as numerosas dificuldades de estabelecer uma cronologiadesses tempos imemoriais, os eruditos adotaram a contagem bíblica do tempo,apropriando-se, nessa medida, das controvérsias cronológicas que, também, sedesenvolviam nas mais diferentes academias e centros de cultura religiosa européias.

Querelas cronológicas e concorrência intra-eclesiástica

6 Como se sabe, a impossibilidade de harmonização das cronologias tornara-se objeto de

grandes controvérsias e investigação entre os eruditos das diferentes congregaçõesreligiosas na Europa, sobretudo entre os beneditinos de Santo Mauro (em Paris) e osjesuítas bolandistas (na Antuérpia). Freqüentemente, a gazeta jesuítica francesaMémoire de Trévoux publicava relatos de missionários nas quatro partes do mundo,alimentando e difundindo as polêmicas sobre a universalidade ou não do Dilúviobíblico9.

7 A identificação da dispersão geográfica dos povos após o Dilúvio representava um

enorme desafio intelectual, porque facilitava o ordenamento cronológico das diferentescivilizações bíblicas, como também reiterava o pressuposto da origem comum dogênero humano. O empenho desses eruditos religiosos dirigia-se à criação de umametodologia que permitisse fixar uma escala universalizadora da contagem do tempo.Um esforço que terminaria dando lugar ao desenvolvimento das investigaçõescomparadas acerca da formação das línguas, dos povos, das religiões e mitologias nãoeuropéias.

8 Durante o período filipino, em que o Papado procurou restringir os privilégios do

Padroado oriental, Urbano VIII promulgou novas regras para a beatificação ecanonização, proibindo formalmente qualquer forma de veneração pública, inclusive apublicação de livros e milagres ou revelações de pessoas supostamente santas10.Jansenistas e oratorianos acusavam os jesuítas de naturalizar os milagres e deconfundir aquilo que era da ordem natural (paganismo) com o que pertencia à ordemdo sobrenatural (milagre). Acusações mútuas de heresias e incredulidades ameaçavam oideal de uma história cristã universal11. Curiosamente, embora as disputas cronológicasestivessem restritas aos círculos eruditos, elas também alimentaram o debate sobre os

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métodos jesuíticos de evangelização que, desde meados do século XVII, tornaram-seobjeto da crítica jansenista, especialmente, em relação à atitude sincrética dosmissionários na China.12

9 Eruditos de diferentes ordens religiosas confrontavam suas versões sobre as

incoerências cronológicas nos textos da patrística, nas coleções conciliares e nashagiografias13. A contribuição mais significativa no campo da hagiografia veio dosjesuítas flamengos na Antuérpia, onde, por intermédio da publicação da coleção Acta

Sanctorum, os jesuítas conseguiram mobilizar eruditos e missionários na busca de fontesautênticas sobre a vida dos santos e mártires cristãos14. Além da intensa produçãohagiográfica, eles estiveram envolvidos com a edição das cartas ânuas, textosconciliares, compêndios de história universal, missionária e biografias dos membrosnotáveis da Companhia. Enfim, a historiografia jesuítica transformava-se num veículode propaganda e defesa da Ordem.

10 A obra do jesuíta Daniel Papebroch (1628-1714) teve enorme repercussão em Portugal e

na América portuguesa. Ele foi um dos primeiros a questionar a autenticidade dosdocumentos merovíngios (que provavam o título de domínio dos mosteiros beneditinosfranceses), apontando também outras falsidades, como a da lenda da fundação daordem carmelita por Santo Elias, e dos jerônimos por São Jerônimo. Em reação, obeneditino francês Jean Mabillon rebateu as acusações e publicou o seu tratado De Re

Diplomatica (1681), onde apresentou o seu método crítico de autentificação de fontesdocumentais, condenando a obra do jesuíta.

11 Enfim, como se vê, o estabelecimento das cronologias, das vidas santas e milagres foi

alvo de acirrados debates entre os eruditos europeus, não apenas pelo seu conteúdoteológico, mas também porque envolviam questões de natureza política (competiçãoentre as diferentes ordens religiosas) e desafios intelectuais quanto à idade da Terra edatação do aparecimento do gênero humano. Meu objetivo aqui é, sobretudo, mostrarde que forma os historiadores brasílicos dialogaram com os modelos de interpretaçãoveiculados pelas academias européias. Quais foram as modalidades de interlocuçãoexperimentadas naquele contexto? Como eles perceberam e auto-representaram a suacondição política e intelectual?

12 Na Academia Real de História Portuguesa o recurso à cronologia bíblica já não

constituía um referencial dominante entre os historiadores régios.15 Aliás, a atitudedominante era marcar distância em relação aos cronistas-mores alcobacenses doperíodo filipino, considerando desnecessário recuar até o tempo do Dilúvio paraexplicar a gênese da nação portuguesa16. Segundo os historiadores régios, o marco zeroda história portuguesa tinha sido a vitória de Afonso Henriques na batalha contra osmouros em Ourique (1139). Utilizando o método crítico de autenticação de fontes, oshistoriadores da Academia Real elaboraram progressivamente à passagem doprovidencialismo teológico ao providencialismo monárquico, muito embora ageopolítica ultramarina exigisse uma atitude conciliadora para não colocar em risco osprivilégios do Padroado e a vocação apostólica da expansão imperial17.

13 Em termo gerais, com exceção dos círculos eruditos eclesiásticos, o discurso

historiográfico no mundo das academias européias tendia à dessacralização. Contudo,nas academias brasílicas houve notável concessão aos temas de natureza religiosa, àsnarrativas de milagres, às visões proféticas e biografias de vidas santificadas;distanciando-se, nesse sentido, da historiografia produzida na Academia Real deHistória Portuguesa. De fato, como procurarei demonstrar mais adiante, o recurso à

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linguagem teológico-política era estratégico, pois permitia transformar a América emsujeito e objeto da História Universal, razão pela qual, do meu ponto de vista, as elitescoloniais optaram pela manutenção de certos problemas, métodos e estilos próprios dahistoriografia sagrada.

14 Se no Reino a Academia Real de História Portuguesa adotara novos critérios

cronográficos, na América, os eruditos brasílicos não descartaram a perspectivaprofética do passado proposta pelo padre Antonio Vieira18. As discussões dosacadêmicos renascidos incluíam problemas de investigação relacionados com osignificado teológico da colonização, como por exemplo: “se o descobrimento daAmérica e a conversão dos seus habitantes foram profetizados por alguns santos, pelosprofetas do testamento velho e novo”. Os eruditos retomavam as projeçõesrenascentistas sobre a localização do Paraíso Terreal, se ele estava ou não situado naAmérica. A formulação dessas questões representava uma tentativa de universalizaçãoou de ocidentalização do passado americano. Essa opção levaria à aceitação dojuramento do rei Afonso Henriques como um prenúncio da vocação imperial lusitana,cruzando os destinos da América ao destino da Nação portuguesa19. Os eruditosbrasílicos procuraram harmonizar a interpretação providencialista dos jesuítas com omilenarismo dos frades franciscanos, reforçando a conotação sagrada da expansãoportuguesa.

15 Freqüentemente, os sócios da Academia dos Esquecidos (1724) invocavam a alegoria da

translatio imperii para transmitir a idéia de que a América poderia ser uma nova Romacristianizada. Com efeito, a perspectiva providencialista dos historiadores brasílicosnão significava uma rejeição aos pressupostos da Razão ilustrada, mas, pelo contrário,expressava uma atitude eclética diante dos novos paradigmas em formação no mundoeuropeu20.

16 O empenho em transformar a América portuguesa em sujeito e objeto da História

Universal – na trilha semeada pelo Padre Antônio Vieira – justificava a manutenção eaté a acentuação da linguagem teológica-política dos eruditos brasílicos. O“desencantamento” da historiografia luso-americana poderia representar umasubtração da experiência vivida na América, e, por isso mesmo, abria brechas para areiteração dos estigmas da inferioridade natural e a degenerescência moral daspopulações americanas21.

A defesa da universalidade do Dilúvio bíblico

17 Perguntavam-se os Acadêmicos Renascidos se o Dilúvio universal tinha compreendido

ou não grande parte do Novo Mundo, ou se dele tinham escapado os seus habitantes.Aparentemente arcaizante, o problema do Dilúvio universal tinha um significadopolítico estratégico: recuando as origens do continente até o momento da Criação doMundo, era possível relativizar as teorias que propunham a existência de distintosregimes de temporalidade entre o Velho e o Novo Mundo.

18 Os eruditos baianos procuravam dialogar diretamente com os eruditos hispano-

americanos. O clérigo Gonçalo Soares da França, por exemplo, criticava as opiniões deJosé Acosta, de Antônio de Herrera e do Padre Afonso Ovalle, sobretudo quanto à versãode que o Dilúvio não teria sido verdadeiramente universal, mas apenas particular22.Acreditava que se devia dar crédito aos relatos orais dos índios, por isso, ao contrário

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dos cronistas hispano-americanos, defendeu a contribuição das “fabulações” indígenasà formação do cânon histórico brasílico:

“(...) porque nem tem tomos, nem conservam arquivos em que depositemmemórias, e as verdades duram menos nas tradições que nas estampas (...) nem sejulgue menos acreditada a verdade das tradições quando concorrem ascircunstâncias necessárias, e conducentes para ela. De outra sorte deixaríamos decrer tudo o que não está escrito só porque não está escrito, ou seria falso tudo o quesó escutamos dos acontecimentos humanos; e se nem a Igreja se pode reger semtradições, como duvidaremos absolutamente do que ouvimos, só porque o nãolemos; também nas memórias se imprimem os sucessos, donde nem todos setransferem as estampas, e muito menos poderiam passar da reminiscência ao papelcasos, que sucederam entre nações, que totalmente ignoravam os primeirosprincípios de ler e escrever”23.

19 Outro acadêmico, o beneditino D. Domingos de Loreto Couto, também defendia o uso

das tradições orais e das fábulas para escrita da história americana; baseando-se naobra do jesuíta Afonso Ovalle, ele cita o encontro entre o provincial Diogo de Torres eos índios num vale de Quito:

“(...) e lhe responderam, que repetia cantando as coisas memoráveis de seusantepassados, porque como não tinham livros com aquela diligência conservavamnas memórias os sucessos antigos. Perguntou-lhe o Provincial o que de presentecantara? Respondeu, que em primeiro lugar cantara a história de um dilúvio, quehouvera no mundo, e inundara toda terra, que depois desse dilúvio, passadosmuitos séculos, viera ao Peru um homem branco chamado Tomé, a pregar uma leinova, nunca ouvida naquelas regiões”24.

20 Já que o sentido último da “missão evangelizadora” implicava penetrar no distante

universo indígena, aproximando-o do repertório cultural europeu, D. Domingos LoretoCouto utilizava a obra de Afonso Ovalle, a seu favor, para autorizar o uso das tradiçõesorais na elaboração do cânon historiográfico luso-americano. Estava convicto de que aescrita da história americana não poderia negligenciar o uso de fontes orais.Testemunhos vivos dos povos ditos “sem-história”, dado que somente essas tradiçõespoderiam atestar a antigüidade do continente. O clérigo benditino chamava a atençãoque também os antigos gregos tinham conservado sua história cantando as coisasmemoráveis de seus antepassados.

As pegadas do apóstolo das Índias na América

21 Se os índios cantavam a sua história, recordando a grande inundação ou dilúvio que

teria atingido o continente em tempos remotos, eles também padeciam do mal do“esquecimento” da herança evangélica semeada pela passagem de São Tomé pelocontinente americano. A questão não era banal, uma vez que incidia sobre (ao menos noplano teórico) a legitimidade do instituto da “guerra justa” contra o “gentio bravo” (outambém chamado, pejorativamente, índio tapuia)25. O esquecimento da pregação doapóstolo permitia a transformação do índio “gentio ou pagão” em “infiel”, embora,após a promulgação do Diretório dos Índios em 1755-58 (legislação que procuravapromover a aculturação civil do índio), a retórica que justificava a catequese começassea ser transposta para uma linguagem laica, ou seja formulada em termos de umquestionamento sobre as possibilidades civilizatórias dos súditos indígenas.

22 As primeiras referências à passagem do apóstolo das Índias orientais pela América

datam do século XVI. Os cronistas jesuítas teriam sido os grandes difusores da crença

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nas pegadas americanas de São Tomé. O pregador teria sido o primeiro a semear oevangelho e a ensinar o cultivo da mandioca aos ameríndios em sua marcha do litoralpara o interior do continente americano26. Herói civilizador nas Américas lusitana ehispânica, o apóstolo sintetiza um estilo de evangelização praticado pela Companhia deJesus. São Tomé transformou-se em intérprete ou mediador cultural ao converter-se àcultura do índio para poder realizar a missão salvífica27. No século XVII, o jesuíta Simãode Vasconcellos (1597-1671) identificou as pegadas de São Tomé em cinco lugares,lembrando que suas pegadas eram veneradas pelos índios, os quais ainda conservavamna memória os ensinamentos daquele sábio a quem teriam apelidado de pai Zumé ouSumé28.

23 A exumação dos rastros de Santo Tomé tornou-se um exercício de arqueologia, bem

como uma forma de especulação histórico-cronológica sobre as origens do povoamentono continente. Não parece ser mera coincidência o fato de que o santo é popularmenteconhecido como o santo que “precisa ver para crer”, um santo que exige provasdocumentais!!! Por volta de 1729, o cirurgião-mor do Rio de Janeiro, Mateus Saraiva(membro da Academia dos Felizes no Rio de Janeiro e sócio da Academia dosRenascidos), chegou a emitir um parecer sobre as inscrições lavradas nas pedras naserra de Itaguatiara (Rio das Mortes/MG) –, para serem, posteriormente, apresentadaspor Martinho de Mendonça de Pina e Proença na Academia Real de História Portuguesaem Lisboa29. As análises do cirurgião-mor confirmavam que as inscrições constituíamprovas materiais da passagem de São Tomé pela América.

24 No entanto, entre os acadêmicos havia também dissonâncias. Frei Gaspar da Madre de

Deus, por exemplo, opôs-se às evidências apresentadas pelos seus colegas da Academiados Renascidos. Em conformidade com a orientação da Academia Real de HistóriaPortuguesa, ele não via necessidade de recuar a cronologia até os tempos imemoriais doDilúvio; seu ponto de partida era a descoberta da América, do Brasil ou da fundação dacapitania de São Vicente (São Paulo). No espectro geral da historiografia luso-americana, a posição de Frei Gaspar parece ter sido a menos providencialista, opondo-se a visão joaquimista de Frei Jaboatão, por exemplo. Frei Gaspar da Madre de Deusduvidava da “fé histórica” alimentada pela maioria de seus colegas relativa à passagemde São Tomé pela América.

25 Frei Gaspar da Madre de Deus preferia questionar a argumentação corrente, provando

que as supostas “pegadas” de São Tomé não passavam de fósseis vegetais: “hão deconhecer que todas se vêem gravadas em certa casta de pedra, a que alguns filósofoschamam vegetativa”30. Da mesma forma, recusava-se a aceitar o argumentosobrenatural: “porque a nenhum filósofo é lícito reputar milagrosos sem razãoconvincente os fenômenos que cabem a força da natureza”31.

26 Tinha certa razão Frei Gaspar da Madre de Deus quando se referiu ao fato de que os

analistas costumavam tratar as inscrições como se fossem fósseis ou documentosregistrados no “livro da natureza”. O cirurgião-mor do Rio de Janeiro, Mateus Saraiva,por exemplo, inspirava-se nas teorias do jesuíta Athanasius Kircher (1602-80) emMundus subterraneus (1664), para defender uma perspectiva que conciliasse a análisegeológica com as fontes bíblicas. Ou seja, a observação da formação geológica(estratigráfica) permitiria a datação das eras pré e pós-diluvianas. A perspectiva calcadanos relatos bíblicos servia para atestar a antigüidade do continente, e, assim, confirmara retórica geopolítica da colonização.

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27 Em seu clássico estudo sobre os fundamentos edênicos da colonização, Sérgio Buarque

Holanda escreveu que as cruzes apostólicas arvoradas nas andanças de São Toméseriam posteriormente reivindicadas como marcos de antiga ocupação européia noNovo Mundo.32 O acadêmico tenente José Miralles comentou em sua história militar:“(...) pois somente esta memória escrita na casca das árvores, e algumas cruzes de pãoarvoradas, reconheciam os portugueses que bastavam para posse Real do quedescobriam”33.

28 O senhor de engenho Sebastião da Rocha Pita, um dos poucos membros americanos da

Academia Real de História Portuguesa, chamou atenção para o fato de que a presençado evangelista era uma herança comum das duas Américas (a castelhana e a lusitana).34

São Tomé realizara uma espécie de “translatio interna”; em sua rota de deslocamentoda costa atlântica ao Pacífico, ele teria aberto o caminho indígena de Peabiru (entreSanta Catarina e o Peru), segundo a versão difundida pelo superior da Companhia deJesus Antônio Ruiz de Montoya35. O cronista jesuíta fixara essa versão em plenaexpansão dos paulistas em direção às províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tapedurante a União Ibérica36. A partir da transfiguração americana de São Tomé, forjava-seum mito que ligava as duas Coroas a um passado apostólico comum.

29 A permanência do tema entre Esquecidos e Renascidos denota o desejo de

singularização e universalização da experiência americana. Caetano de Brito eFigueiredo dedicou em sua dissertação de história natural um capítulo especial paratratar do apostolado de São Tomé. Baseando-se nos escritos de Simão de Vasconcelos,Las Casas e Afonso Ovale, ele também chamava a atenção para a presença do apóstoloem Quito e no México37. Rebatendo a opinião do cronista das Índias, Antônio Herrera(por negar a importância do episódio), Caetano de Brito e Figueiredo lembrava oscolegas que também o cardeal César Barônio (1538-1607) tinha posto em dúvida apassagem de São Tiago pela Península Ibérica, sendo obrigado a rever sua posição,posteriormente38.

30 A argumentação de Caetano de Brito e Figueiredo não era apenas um exercício de

especulação cronológica ou arqueológica, mas tinha conseqüências teológicas ejurídicas. Uma argumentação negativa (que rejeitasse a passagem do apóstolo pelaAmérica) podia criar uma situação demasiadamente ambígua : “daqui que teriam osÍndios uma desculpa, que parece evidente, para não serem condenados. Ninguém éculpado em não crer o que se lhe não pregou”39. Portanto, mais do que uma persistênciamessiânica40, a presença de São Tomé criava precedentes importantes para aviabilização do cativeiro indígena segundo o estatuto da guerra justa, uma vez que osíndios bravos (tapuias, como eram genericamente designados) passavam a serconsiderados apóstatas.

31 Segundo a perspectiva do padre Antônio Vieira, a transfiguração americana do apóstolo

confirmava os arcanos universais da Translatio Imperii: ou seja, a migração do poderespiritual e político do Império Assírio, para o Persa, Grego, Romano, e, finalmente,Lusitano41. Vieira reinterpretou a idéia corrente sobre o deslocamento geográfico dosimpérios do Oriente para o Ocidente, atribuindo-lhe um sentido de renovação espiritualda cristandade, inspirando-se na visão de Justo Lípsio42. Vieira não só transformava osentido cíclico original (Políbio) de sucessão e decadência dos impérios, mas inseria aAmérica na órbita da história da cristandade universal. Na senda deixada peloscronistas seiscentistas que reencontraram o Paraíso na América – Antônio de Leon

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Pinelo e Simão de Vasconcellos –, ele transformara a peregrinação do apóstolo da Ásiapara América numa espécie de prenúncio do V Império Lusitano:

“(...) cumpriu-se pontualmente a profecia, porque o mar, comendo pouco a pouco aterra, chegou ao lugar sinalado, e no mesmo tempo chegaram a ele os Portugueses.Igual glória (e não sei se maior de Portugal) a da Índia, que ainda tivesse a São Tomépor seu apóstolo e Portugal por seu profeta. Ainda Portugal não era de todo cristão,e já os apóstolos plantavam as balizas da fé em seu nome e conheciam e pregavamque ele era o que havia de fazer cristão no Mundo. Lembre-se outra vez Portugaldestas obrigações, e de quanto lhe merece Cristo”43.

32 Se os acadêmicos régios ainda manifestaram algum interesse pela comprovação da

pregação de São Tomé na Ásia, cabe destacar que sua transformação em apóstolo dasÍndias Ocidentais nunca chegou a inquietar os eruditos portugueses, ao contrário doque sucedeu com os historiadores brasílicos.44 Sérgio Buarque de Holanda notou asimetria que fez do apóstolo das Índias Orientais um apóstolo das Índias Ocidentais:

“Pouco faltaria, em verdade, para que não apenas na Índia, mas em todo o mundocolonial português, essa devoção tomasse um pouco o lugar que na metrópole e naEspanha em geral, como em todo o Ocidente europeu, durante a Idade Média e maistarde, tivera o culto bélico de outro companheiro e discípulo de Jesus, cujo corpo sejulgava sepultado em Compostela.”45

33 Finalmente, consideramos que a estrutura profética de compreensão da história

elaborada pelo padre Antônio Vieira marcou profundamente a escrita da históriabrasílica. Mais do que uma persistência de um imaginário renascentista, o prisma deVieira permitia recuar a cronologia e sofisticar as representações do passado.Conscientes do crescente peso da América no âmbito do Império português, os eruditosbrasílicos anunciavam sua perspectiva do devir histórico optando pela nativização doprovidencialismo lusitano.46 Assim, o modelo de Vieira deslocava a centralidade daMetrópole, invertendo, no plano teológico, a geografia política da vida espiritual47. Se,por um lado, a reiteração da linguagem teológico-política imprimia um tom arcaizante,por outro politizava-se o diálogo historiográfico nos circuitos ilustrados católicos.Significativamente, a historiografia luso-americana tinha na matriz vieiriana decompreensão da história universal o seu principal ponto de convergência com ahistoriografia portuguesa (Ourique). Contudo, a estrutura profética de interpretação dahistória tornava-se politicamente ameaçadora durante o consulado pombalino, quandoos inacianos foram acusados de heresiarcas, difusores das crenças milenaristas,quietistas, probabilistas e ultramontanas. Nessa conjuntura de combate às visõesproféticas e místicas, as obras do Padre Antônio Vieira foram proscritas pela Real MesaCensória48.

34 Os eruditos luso-americanos, no entanto, não abandonaram os paradigmas bíblicos,

adotando uma estratégia discursiva eclética que lhes permitia sincronizar astemporalidades do Novo e do Velho Mundo. A história do futuro ou o futuro do passadoera, a seu modo, também, uma projeção utópica tipicamente ilustrada! Como escreveuDomingos Loreto Couto: “constituem nossas terras um segundo Paraíso terreal” 49. Oprojeto de escrever a História Universal da América portuguesa concebido pelaAcademia dos Renascidos parece ser um fenômeno de dupla natureza: ocidentalização(desejo de integração), mas também de afirmação americanista (resignificação local)das elites intelectuais no âmbito do Império português.

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NOTAS

2. Francisco Iglésias, “Um conceito equívoco: a História Universal”, História e Ideologia, Editora

Perspectiva, São Paulo, 1971, pp. 43-47; Fernando Novais, “Francisco Iglésias e a Historiografia”,

in João Antônio de Paula (org.). Presença de Francisco Iglésias, Belo Horizonte, Autêntica, 2001, p.

64.

3. Lewis Hanke, “The theological significance of the discovery of America” in Revista de História,

vol. L, n. 100. São Paulo, 1974, pp. 133-146; Laura de Mello e Souza, “Os Novos Mundos e o Velho

Mundo”, in M. Lígia Prado e Diana Gonçalves (org.), Reflexões Irreverentes, São Paulo, Edusp, 2002,

pp. 151-169; Rolena Adorno, “La discussión sobre la naturaleza del índio”, in Ana Pizarro, América

Latina: palavra, literatura e cultura, Campinas/São Paulo, Editora da UNICAMP, volume 1. 173-192;

Laura de Melo e Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz, São Paulo, Cia. das Letras, 1986, primeiro

capítulo; Manuela Carneiro da Cunha, “Imagens de Índios do Brasil: o século XVI”, in Ana Pizarro,

América Latina: palavra, literatura e cultura, Campinas/São Paulo, Editora da Unicamp, volume 1.

151-173. 1993; Carem Bernand e Serge Gruzinski, História do Novo Mundo, São Paulo, Edusp, 2001.

4. Para sua biografia, veja-se: Stuart Schwartz, Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial, São Paulo,

Perspectiva, 1979. Consultei, também: BNL Memorial de Ministros cód. 1077. letra C.

5. Caetano de Brito e Figueiredo, “Aparato Isagógico às Dissertações Acadêmicas nas quais se

descreve a natureza das coisas principais do Brasil que somente pertence à História Natural”, in

José Aderaldo Castello, O movimento academicista no Brasil, São Paulo, Secretaria de Cultura, 1969,

p. 146.

6. Antonello Gerbi, La disputa del Nuevo Mundo, Cidade do México, Fondo de Cultura, 1982.

7. Bacon advogou em favor da tese de que o Dilúvio Universal não teria atingido o Novo Mundo:

“deveis considerar os habitantes da América como um povo jovem, mil anos mais jovem que o

resto do mundo, pois que tanto tempo transcorreu entre o Dilúvio Universal e sua particular

inundação. (...) Como se vê, por causa desse grande acidente de tempo perdemos nossa relação

com os americanos, com quem, dada a maior proximidade, tínhamos comércio mais intenso que

com todos os outros”. Francis Bacon, “Nova Atlântida” (1627), trad. José A. Reis de Andrade,

Bacon: Os Pensadores, São Paulo, Abril, 1973, p. 256.

8. Antônio Vieira, História do Futuro, introd. Maria Leonor Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa

da Moeda, 1982. cap. XI, p. 174.

9. O texto bíblico não oferecia informações suficientes para fazer a contagem aritmética e

verificar a antigüidade das civilizações chinesa ou asteca, por exemplo. As observações

astronômicas, desde então, tornaram-se um recurso importante para calcular a idade da Terra e

dos povos antigos. As observações e relatos dos missionários em regiões distantes contribuíram

para criar, a partir do século XVII, uma nova ciência da datação. Chantal Grell, L’Histoire entre

éruditon et philosophie, Paris, PUF, 1993, pp. 57-66; Blandine Kriegel . L’Histoire à l’âge classique,

volume III, Paris, PUF,1988, p. 249.

10. Cf. Leila Mezan Algranti, Livros de devoção, atos de censura: cultura religiosa na América portuguesa

(1750-1821), tese (livre-docência), Universidade Estadual de Campinas, 2001, p. 74.

11. George Huppert, The idea of perfect history: historical erudition and historical philosophy in

Renaissance France, London, Univesity of Illinois Press, 1970, p. 141.

12. Pascale Girard, Os religiosos ocidentais na China moderna: ensaio de análise textual comparada,

Macau, Fundação Macau, 1999, pp. 53-57.

13. Chantal Grell, op. cit., 1993, pp. 57-62; Carlo Ginzburg, History, rhetoric, and proof, London,

University Press of New England, 1999, pp. 71-91.

14. Série hagiográfica editada pela primeira vez em 1643, sob a coordenação do erudito jesuíta

Jean Bolland (1596-1655) na Antuérpia.

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15. Isabel Ferreira da Mota, A Academia Real da História: os intelectuais, o poder cultural e o poder

monárquico no século XVIII, Coimbra, Minerva, 2003, pp. 53-75.

16. Durante o domínio filipino, o cargo de cronista-mor do reino foi transferido aos cronistas

cistercienses de Alcobaça. Foram esses cronistas-mores (do tempo dos Filipes) que buscaram as

raízes de Portugal regredindo até o Genesis, segundo essa interpretação: o povo português era

descendente de Túbal, neto de Noé, de quem se seguiu toda uma linhagem dos primeiros reis

lusitanos. Hernâni Cidade, A literatura autonomista sob os Filipes, Lisboa, Livraria Sá da Costa, s/d,

pp. 79-105.

17. Desde a criação da Academia Real de História Portuguesa (em 1720), os historiadores régios

propunham uma clara distinção entre a história sagrada e profana; diferenciando os planos da

investigação heurística do trabalho hermenêutico propriamente dito. O uso do método crítico era

condição para validação das interpretações. De modo que, as narrativas fundadas em tradições

orais, fábulas ou descrição de milagres só adquiriam alguma plausibilidade quando fundadas nas

regras da “boa crítica”, ou seja, na comprovação documental dos acontecimentos descritos. A

especialização do discurso historiográfico nas academias setecentistas européias foi fruto desse

diálogo entre as novas técnicas de erudição crítica (fixadas por Mabillon) e a narrativa histórica.

Iris Kantor, Esquecidos e Renascidos: a historiografia acadêmica luso-americana (1724-59), São Paulo ,

Hucitec, 2004.

18. Maria Carneiro da Cunha, “Importação e exportação da história do Brasil”, Novos Estudos

Cebrap, São Paulo, março 1996, n. 44, pp. 73-87; Maria V. Jordan, “The empire of the future and

the chosen people: father António Vieira and the prophetic tradition in the Hispanic world”,

Luso-Brasilian Review, 41, 2003, pp. 45-57.

19. Ana Isabel Buescu, Memória e Poder: Ensaios de história cultural, Lisboa, Edições Cosmos, 2000, p.

18.

20. Jonathan Israel, Radical Enlightenment, 2001.

21. Antonello Gerbi, La disputa del Nuevo Mundo, Cidade do México, Fondo de Cultura, 1982.

22. Antonello Gerbi, La disputa del Nuevo Mundo, op. cit., p 78.

23. Gonçalo Soares da França, “Dissertação da história eclesiástica do Brasil”, in José Aderaldo

Castello, O Movimento Academicista no Brasil, São Paulo, Secretaria de Cultura, 1969, pp. 250 e 261.

24. Domingos Loreto Couto, Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambucana, Recife, Fundação de

Cultura, 1981, p. 66. Francisco Ovalle, História do Reino do Chile, Livro 8, cap 1.

25. Pedro Puntoni, A Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil

(1650- -1720), São Paulo, Hucitec/Edusp, 2002.

26. Segundo Sérgio Buarque de Holanda os dados foram publicados na Nova Gazeta Alemã,

referindo-se a viagem de Cristovão Haro. Sérgio Buarque de Holanda, Visão do paraíso, São Paulo,

Cia Editora Nacional, 1985, pp. 106-107. Ver também o trabalho de Edgard Leite, História e Essência:

historiografia jesuítica colonial, Rio de Janeiro, UERJ, 2001, p. 114.

27. Adriana Romeiro e Ronald Raminelli, “São Tomé nas Minas: a trajetória de um mito no

século”, in Revista Varia História, departamento de História da UFMG, n. 21, 1999; Serge Gruzinski

e Rui Loureiro, Passar Fronteiras; II Colóquio Internacional sobre mediadores culturais, Lagos, 1999.

28. Simão de Vasconcelos, Notícias curiosas e necessárias das cousas do Brasil (1668), Lisboa, Comissão

Nacional de Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, 105-127.

29. “Inscrição enigmática formada em quatro regras para argumento de serem também os sinas

povoadores da América” e “Interpretação que deu o Padre José Mascarenhas...”, in Códice Costa

Matoso (estudo crítico de Luciano Figueiredo), Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1999, pp.

374-382.

30. Frei Gaspar da Madre de Deus, “Noticias dos anos em que se descobriu o Brasil e das Entradas

das Religiões e suas Fundações”, Memórias da Capitania de São Vicente., São Paulo, Weiszflog, 1920,

p. 363.

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31. Frei Gaspar da Madre de Deus, “Notícias dos anos em que se descobriu o Brasil e das Entradas

das Religiões e suas Fundações”, Memórias da Capitania de São Vicente., op. cit., p. 364.

32. Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1985, p. 105.

33. José Miralles, “História Militar do Brazil”, Anais da Bibloteca Nacional, Rio de Janeiro, 1900, vol.

22, pp. 1-238, p. 82.

34. Sebastião da Rocha Pita, História da América portuguesa (1730), São Paulo/Belo Horizonte,

Edusp/Itatiaia, 1976, p. 41.

35. Antonio Ruiz de Montoya, Conquista espiritual hecha por los religiosos de la compania de Jesus en las

provincias del Paraguay, Parana, Uruguay e Tape, Madrid, 1639, p. 32.

36. Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso, op. cit., pp. 112-3.

37. Caetano de Brito e Figueiredo, in José Aderaldo Castello, op. cit., 1969, p. 262.

38. Caetano de Brito e Figueiredo, “Aparato Isagógico...” in José Aderaldo Castello, O movimento

academicista no Brasil, São Paulo, Secretaria de Cultura, 1969, p. 264.

39. Caetano de Brito e Figueiredo, “Aparato Isagógico...” in José Aderaldo Castello, O movimento

academicista no Brasil, São Paulo, Secretaria de Cultura, 1969, p. 269.

40. Adriana Romeiro e Ronald Raminelli consideram que o mito de São Tomé seja uma

persistência dos aspectos messiânicos inseridos no imaginário edênico renascentista. “São Tomé

nas Minas: a trajetória de um mito no século”, in Revista Varia História, Departamento de História

da UFMG, n. 21, 1999, p. 68; Paolo Rossi. O nascimento da ciência moderna na Europa, São Paulo,

EDUSC, p. 324.

41. Antônio Vieira, História do Futuro. Introdução de Maria Leonor C. Buescu, Lisboa, Imprensa

Nacional-Casa da Moeda, 1982, p. 60 e pp. 197-199.

42. Em Da Constância, Justo Lípsio defende a idéia de que a América sucederia a Europa,

transformando-se numa nova Roma. Jan Papy. Hodie omnibus orior quasi tu! Lipsius profecy on the

New World and the development of an American identity at the University of Lima.

43. Antônio Vieira, História do Futuro, op. cit, p. 226.

44. João Francisco Marques, “A tutela do sagrado”, in Francisco Bethencourt e Diogo Ramada

Curto (orgs.), A memória da Nação, Lisboa, Sá da Costa, 1991, p. 291; Luis Filipe Thomaz, A Lenda de

S. Tomé e a Expansão Portuguesa, Lisboa, IICT, 1992.

45. Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso, São Paulo, Cia. Editora National, 1985, p. 105.

46. Manuela Carneiro da Cunha, “Importação e exportação da história do Brasil”, Novos Estudos

Cebrap, São Paulo, março 1996, n. 44, pp. 73-87.

47. Alcir Pécora, Teatro do sacramento, São Paulo, Edusp, Unicamp, 1994, pp. 256-267; Plínio Freire

Gomes, Um herege vai ao paraíso: o Brasil e a cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição, São

Paulo, Cia. das Letras, 1997; Adriana Romeiro, Um visionário na corte de D. João V: Revolta e

milenarismo nas Minas Gerais, Belo Horizonte,.Editora da UFMG, 2001, pp. 209-229; Hernâni Donato.

“No Brasil, o paraíso: um mito do descobrimento”, Notícia Bibliográfica e Histórica, Campinas, PUC,

2001, pp. 362-373.

48. Primeiro edital publicado pela Mesa Censória proibindo as obras que apresentassem profecias

milenaristas em 10 de junho de 1768. Luiz Carlos Villalta, Reformismo ilustrado e práticas de leitura:

usos do livro na América portuguesa, doutoramento, São Paulo, FFLCH-USP, 1999, pp. 212-214;

Virgínia Maria Trindade Valadares, Elites setecentistas mineiras: conjugação de dois mundos

(1700-1800), Lisboa, Doutorado, Universidade Clássica de Lisboa, 2002, p. 88.

49. Domingos Loreto Couto, Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco (1757)..., op. cit., 1981, p. 37.

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RESUMOS

O artigo explora duas polêmicas eruditas que contribuíram para fixação do cânon historiográfico

brasílico setecentista. Aparentemente arcaizantes, os temas do Dilúvio Universal e o debate em

torno da passagem do Apóstolo São Tomé pela América portuguesa constituíram importantes

referências na construção da memória histórica brasílica. As elites letradas luso-americanas

procuraram construir uma interpretação alternativa frente às teorias de inferiorização da

América e dos Americanos.

This essay discusses two erudite debates that contributed to the fixation of a Brazilian

historiographical model in the 18th century. The themes of the Universal Deluge and the

discussion about the trip of the Apostle Saint Thomas through Portuguese America – apparently

old fashioned topoi – became important references for the historical memory of colonial Brazil.

Actually, the intellectual elites luso-brazilian attempted to build an alternative interpretation to

the theories that inferiorize America and Americans.

ÍNDICE

Keywords: biblical deluge, apostle Saint Thomas, Catholic Enlightenment, chronological

disputes, erudite debates

Palavras-chave: dilúvio bíblico, apóstolo São Tomé, ilustração católica, querelas cronológicas,

polêmicas eruditas

AUTOR

ÍRIS KANTOR

Universidade de São Paulo

Licenciou-se em História pela Universidade de São Paulo (1988), obteve o título de mestre em

História Social pela Universidade de São Paulo (1996) e o doutoramento em História Social pela

Universidade de São Paulo (2002) . É professora da Universidade de São Paulo, onde lecciona

História Ibérica, pesquisadora do Projecto Temático Dimensões do Império Português, e

colaboradora da Companhia das Índias da Universidade Federal Fluminense. Publicou: Esquecidos

& Renascidos: Historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759), 1.ª ed. Hucitec: São Paulo, 2003;

organizou com Istvan JANCSÓ a colectânea. Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. São

Paulo: EDUSP / Hucitec / Fapesp / Imprensa Oficial, 2001.

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De “antigos conquistadores” a“angolenses”A elite colonial de Luanda no contexto da cultura das Luzes, entrelugares da memória e conhecimento científico

Elites and scientifical knowledge. Reception and reconfiguration of the

Enlightenment in Angola (1750-c.1800)

Catarina Madeira Santos

NOTA DO AUTOR

AbreviaturasAHU – Arquivo Histórico UltramarinoANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo

1 Quando se referem elites coloniais em Angola, na época moderna, está a considerar-se

um espaço geográfico relativamente exíguo que coincide com as áreas de efectivaimplantação da sociedade colonial nesta zona da África Ocidental e, portanto, secircunscreve às cidades de Luanda ou Benguela e aos presídios, dispostosmaioritariamente à volta da malha de rios que atravessa o hinterland de Luanda.Embora, sob o ponto de vista da população de origem colonial, se verificasse aintromissão de particulares no sertão, do ponto de vista da estrutura social, essesindivíduos, maioritariamente comerciantes, que percorriam o interior, não formavamum grupo homogéneo, nem reproduziam ou difundiam de forma sistemática padrõesculturais e sociais europeus. E se nos situarmos na designação “portugueses” – e naidentidade para que ela remete –, a imprecisão ainda se torna maior, uma vez querestam interrogações sobre os critérios (cor, local de nascimento, etc.) e designativosque esses indivíduos, dispersos pelo sertão, usavam para se diferenciar e portantodefinir a si mesmos1. As elites coloniais organizaram-se, assim, a partir e à volta deestruturas e instituições da administração imperial, e dos municípios, e é, portanto,desses grupos que aqui se trata, sabendo que as intercessões com um mundo

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envolvente (africano ou luso-africano) e muito mais plural, nunca deixaram de se fazersentir.

2 Este artigo centra-se na cidade de Luanda, considerando ao mesmo tempo o seu papel

de pólo da administração central, residência do governador de Angola espaço deimplantação de órgãos centrais e de funcionamento daquela que foi, durante muitotempo, a única câmara em Angola2. É neste espaço urbano que se instala, organiza,configura e reconfigura uma elite imperial que é também uma elite colonial, quer dizer,uma elite que, ao mesmo tempo que se inscreve nas malhas da administração imperial,se faz e refaz do contexto local em que existe.

3 No que toca à História de Angola, o tema das elites coloniais tem sido estudado,

maioritariamente, para os séculos XIX e XX, em articulação com todas as polémicassobre a existência/inexistência de uma crioulidade angolana e a emergência de ideiasde autonomia e de cariz nacionalista. A História de África, de uma maneira geral, foi ede alguma forma continua a ser, contaminada por posições ideológicas ditadas a partirde vários sectores. A questão da formação de elites em cenários coloniais não pôdedeixar de ser, também ela, condicionada pela experiência que os autores vivenciaramde processos de independência ou ainda pela vontade de promover, através dafabricação de uma memória travestida de história, programas de acção política numdeterminado presente. Há, portanto, o perigo de resvalar para categorias ideológicas.Por isso, à exclusividade da representação é importante contrapor a consideração dadiversidade dentro da elite, a partir das práticas. Mário António marcou a diferençaquando, ao estudar os temas da crioulidade, os colocou em moldes académicos e nãoideologizados3. Ann Stam realizou um dos raros trabalhos sobre as elites em Angola naprimeira metade do século XIX e finalmente, Jill Dias, num artigo fundamental efundacional, que incide sobre o final do século XIX até 1926, desenhou toda aarquitectura da formação de uma elite em Luanda e aí enunciou muitas questões quenão valem apenas para aquela cronologia mas servem para interrogar e perceberprocessos mais antigos4. Finalmente, Marcelo Bittencourt faz chegar a história da elitede Luanda aos processos de independência5. Mas, tudo o indica, ainda há uma “históriamais antiga” que anda à espera de ser escrita. Por isso, este artigo, em alternativa, quercentrar-se na segunda metade do século XVIII, – embora com aberturas para o séculoXVII e a primeira metade de Oitocentos – para pôr em evidência a especificidade que,durante esse período, vai adquirindo a identidade e o discurso identitário da elitecolonial de Luanda. Esse é um período de profundas reformulações que aponta paraprodutos socioculturais e formulações identitárias inéditas.

4 A definição dos contornos dessa singularidade não pode deixar de ser relacionada com

a construção, e aplicação no terreno, de um projecto pombalino dirigido à Áfricasubsariana, que planeava converter Angola numa colónia de povoamento, nageneralidade comparável ao que o Brasil propunha como imagem nos meiosadministrativos ligados à política imperial. Esse projecto supunha um conjunto muitodiverso e completo de reformas6, de que fazia parte a reeducação e reconversão dasociedade colonial. Mas, ao contrário do que aconteceu no Estado da Índia7 e no Brasil8,essas mutações sociais não passaram pela revisão do estatuto dos indígenas (africanos),mas traduziram-se, ao mesmo tempo, na reforma e no reforço da elite governativasedeada em Luanda. Reforma pela imposição de directivas de educação e acção política,inspiradas num modelo racionalista de governo, que pretendiam pôr fim a práticasadministrativas de Antigo Regime; reforço através da instalação em Luanda de

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militares, engenheiros e outros agentes imperiais, e ainda pela promoção dos “naturaisdo país”, incluindo os mulatos, para a ocupação dos cargos públicos. Os homens ligadosao governo da cidade e da colónia deveriam, agora, corporizar um padrão culturalcomum, que era também um modelo de acção política, e ser os executores privilegiadosde um modelo polido ou civilizado de governo.

5 Esta nova conjuntura metropolitana e imperial repercutiu-se, assim, em Angola no

plano da reconfiguração da sociedade, seus actores, mobilidade e estratégias deascensão ou posicionamento e ainda formas de auto-representação através da produçãode “discursos” identitários. No plano da história das elites, essa conjuntura assumiuduas expressões distintas que envolveram actores sociais diferenciados. Num primeiroplano, verifica-se uma espécie de reinvenção da elite instalada em Luanda, isto é, daschamadas “antigas famílias” de Luanda – “os antigos conquistadores” –, os descendentesde europeus nascidos localmente (brancos ou mestiços), famílias maioritariamenteligadas ao tráfico de escravos e externamente legitimadas no argumento da reconquistade Luanda aos holandeses e, de uma maneira geral, na participação em guerras deconquista ao longo do século XVII. Os critérios de identificação destas famílias cedo seencontraram estabelecidos e revelaram- -se em tópicos bastante precisos: as ligaçõesfamiliares que faziam a articulação entre a elite camarária e a elite colonial; aacumulação de cargos da administração local com cargos da administração central edos presídios; o exercício de funções militares e especialmente a participação em acçõesde Conquista; e, finalmente, o facto de estes homens serem grandes proprietários deterras, cujo produto abastecia Luanda, e de, assim, serem também grandesproprietários de escravos, para além de se envolverem activamente nas matériasligadas ao tráfico atlântico e às redes comerciais brasileiras. Ora, com a chegada aAngola de governadores reformadores (o primeiro foi D. António Álvares da Cunha,entre 1753 e 1758), esses colonizadores descendentes foram naturalmente chamados aparticipar de uma nova maneira de pensar e fazer a política, em especial através dosseus membros mais jovens, captados para a frequência de novas instituições de ensino eaprendizagem, segundo métodos e objectivos reformados e reformadores. A tensãoentre saberes e práticas não tardou a instalar-se, como se verá.

6 Em segundo lugar, foi promovida a instalação de quadros da administração imperial

oriundos quer do Reino quer do Brasil, para colmatar a falta de oficiais em Angola. Nadécada de 1750, a administração encontrava-se desmunida de homens, em quantidade equalidade. Na cidade de Luanda e em Benguela, muitas patentes militares permaneciamvagas e o mesmo acontecia para a administração da fazenda ou da justiça. Acorrespondência trocada entre o governador António de Vasconcelos (1758-1764) e oseu antecessor, no Conselho Ultramarino, retratava-o, quando procedia à identificaçãominuciosa dos nomes a que era possível deitar mão, ainda assim, e referia a fortepresença de africanos no governo dos presídios. A partir deste momento, a“burocracia” do Império valia-se de outros agentes, e foi assim que começaram aaparecer em Angola os engenheiros e os militares de carreira, como via eficiente nareforma e renovação da estrutura administrativa e em particular das capitanias-mores,nos presídios sertanejos, “para que paulatinamente se reformasse esse desanimadocorpo de oficiais”9. O que tem interesse mencionar é o facto de estas personagens doImpério se terem estabelecido em Angola com as suas famílias, se terem casado e tidofilhos, vindo a inscrever-se na sociedade colonial luandense, passando a fazer parte delae, portanto, transformando-a. Foi esse o caso da família Pinheiro de Lacerda (vide infra),que deu origem a uma verdadeira dinastia de cartógrafos e deixou um acervo importante

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de cartografia e de textos descritivos de zonas de Angola até à altura debilmenteexploradas.

7 Num e noutro caso, o que estava em causa era a invenção de uma elite de poder que,

sendo capaz de manipular novos saberes – inspirados na cultura das Luzes edisponibilizados por uma educação reformada, muito em especial a formação deengenheiro –, pudesse personificar o perfil do novo homem de Estado, habilitado para aaplicação sistemática de um projecto de colonização racional e portantouniversalizante.

8 Assim, quando chegaram os anos sessenta do século XVIII, começou a ser possível

identificar uma nova geração de administradores e de militares – a que chamarei daquipara a frente a geração de 60 – que participou das reformas pombalinas, levando-as àprática, tanto quanto possível e que depois, ao longo dos cerca de cinquenta anossubsequentes, se vai encontrando activa nos momentos mais emblemáticos da Históriadaquele território. A geração de 60 revestiu, ao mesmo tempo, uma expressão imperial –porque circulava pelo império, de e para a metrópole, de e para o Brasil – e umaexpressão local – neste caso uma expressão angolana –, porque se imbricou com a elitede Luanda, quer reforçando-a, tornando-se parte dela, quer reorganizando-a, pelaproposta e inculcação de novos programas político-culturais. A elite parece confundir-se com a geração – a geração de 60 –, uma vez que, sob o ponto de vista ideológico, eapesar de todas as formas de “bricolage” engendradas ao nível individual, severificavam fracturas abruptas no discurso. Do ponto de vista das ideias e conceitosmanipulados por estes homens, não existiam descompassos qualitativos em relação aoque se passava na mesma altura com os homens da ilustração no Brasil ou em Portugal.Mas já a incidência do discurso sobre o contexto, essa, não foi a mesma. A situação, ocontexto colonial, que é o local, refractou os discursos fundadores, lançados a partir daEuropa, e estes, por sua vez, refractaram os discursos identitários enraizados emcontexto colonial. A intercepção é mútua. E para a elite de Luanda, tomadaabstractamente, a segunda metade do século XVIII foi, como se mostra de seguida, ummomento de reelaboração desse discurso através, também, de uma recriação de lugaresde memória.

1. Um Iluminismo dos trópicos?

9 Porque o local refracta os modelos veiculados pelo centro, e porque aqui se trata de

compreender como a cultura das Luzes se projectou num cenário africano colonial,importa sublinhar a ideia de que os espaços coloniais são, ao mesmo tempo, espaços derecepção10, aplicação e produção do Iluminismo. Aliás, o movimento iluminista foi, em simesmo, profundamente plural, admitiu várias declinações e assumiu, portanto,expressões muito diferenciadas entre si. A verdade é que a reviravolta operada nalinguagem e na hierarquização dos saberes, na segunda metade do século XVIII,produziu resultados multiformes e revestiu-se de sentidos tão variados como oscontextos em que ocorreu11. Num livro datado de 1971, hoje clássico, Anthropologie et

Histoire au siècle des Lumières, Michèle Duchet propunha escrever uma história doIluminismo cujos actores intelectuais não fossem só os intelectuais letrados –normalmente estudados pelos historiadores e os teorizadores, isto é, os filósofos dasLuzes, intelectuais universais, autores conscientes, por escolha moral, teórica oupolítica, capazes de formular o exemplar e o universal. Uma história do Iluminismodeveria incluir também outros actores que, ou não articularam a sua filosofia política

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na escrita, fazendo-o através de rebeliões e outras formas de afirmação/resistência,caso dos escravos – o que permitiria a construção de uma história intelectual daescravidão (v. g., trabalhos de Rebecca Scott, Frederik Cooper, Laurent Dubois e numcerto sentido o de Paul Gilroy também, quando se refere às culturas dissidentes damodernidade do Atlântico Negro e olha os negros como agentes com capacidadescognitivas e até com uma história intelectual12 ) –, ou articularam a sua filosofia políticanuma literatura menor ou minoritária (aquela que uma minoria produz numa línguamaior, v. g. Deleuze 13), querendo com isto englobar todos aqueles que, semconfigurarem o perfil do filósofo das Luzes, e sem terem participado directamente nareflexão e produção acerca das “questões fundamentais da Humanidade”,desenvolveram movimentos ou atitudes públicas ou escreveram peças textuais que,resultando da incidência do Iluminismo europeu nas paisagens tropicais, se podemexaminar como parte da “biblioteca”, em sentido lato, do Iluminismo, naquelas queforam as suas expressões coloniais, reconfigurando, assim também, a própria“biblioteca colonial”. Esta hipótese, a ser encarada e experimentada, permite que sefaça uma história intelectual das elites coloniais – abarcando aqui figuras como osadministradores, os engenheiros militares, os oficiais camarários – ou das elitesafricanas, e até uma história intelectual da escravatura, uma vez que o que se está aadmitir é que a cultura das Luzes, em contextos coloniais, não só foi recebida comoproduzida e recriada por vários actores capazes de se tornar autores, muito para lá daspremissas europeias, e por vezes em dissonância com os produtos europeus coetâneos.Trata-se, afinal, de propor ao lado do intelectual universal, uma espécie de intelectualespecífico, comprometido com a sua circunstância histórica e, por isso mesmo, também,mais engajado num compromisso político imediato, mas também de propor outrasfiguras que, não sendo intelectuais, fizeram usos contextuais e estratégicos da culturaintelectual14.

10 Por outro lado, a ideia de que o Iluminismo, e portanto todo o pensamento filosófico,

científico e/ou literário que com ele viaja, foi meramente transplantado para cenárioscoloniais15, receptáculos passivos de um centro criador externo, pode ser contestada etem aliás sido objecto de estudos recentes. É o caso dos trabalhos acerca dosrepresentantes do Iluminismo na América, onde se mostrou como aí se participou emtodo um debate que, longe de constituir uma reflexão retardada de ideias enunciadaspela primeira vez na Europa, revelava um verdadeiro interesse em criticar asepistemologias eurocêntricas16. Ou ainda, para o Império britânico, os trabalhos sobreHistória da Ciência, onde se mostrou como a administração imperial precisou derecorrer aos conhecimentos locais para colmatar falhas do sistema britânico e emalguns casos, como por exemplo a cartografia, o centro de inovação e de produção sesituou na Índia para só depois se repercutir em espaços europeus17.

11 Afinal a grande questão que é colocada pela historiografia mais recente é a de saber se o

processo de transmissão e apropriação do conhecimento é um simples processo dedifusão e aceitação ou se, pelo contrário, radica na recepção e na reformulação activasdos conhecimentos e “utensílios intelectuais” em circulação. Importa, portanto,perceber quais são as expressões do Iluminismo nos espaços coloniais, tal como ele foipensado e dito por aqueles que com ele se identificaram, o que é o mesmo que dizer,para o caso de Angola, com as elites letradas, inscritas na circunstância colonial.

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2. Os livros, os seus leitores e os seus autores, numacirculação atlântica

12 A década de 1750 marca um momento de viragem na história de Angola e na sua

história intelectual. Nesse sentido, identificam-se linhas de intervenção do programapombalino que colaboraram directa ou indirectamente na “refeição” (no sentido dereconfiguração) do discurso identitário da elite de Luanda. Pelas vias atlânticas queconduziam ao Reino, pelo trilho do Brasil, circulavam livros, panfletos, cartas erumores. Era também essa circulação que fazia participar a elite de Luanda e as elitesbrasileiras de um universo comum de referências culturais.

13 No contexto pombalino, a circulação de livros obedeceu a dois planos. Em primeiro

lugar, importa mencionar um tipo de leitura formativa que se procurou fazer valer. Adivulgação de obras, recentemente publicadas com o sentido de justificarideologicamente a nova ordem, repercutiu-se em Angola, logo em 1759 com o enviopara África de uma Colecção Authentica; mais tarde, em 1770, Francisco Xavier deMendonça Furtado fazia chegar exemplares da Dedução Cronológica e Analítica (1768),para serem distribuídos “pelas pessoas mais dignas na forma das Ordens de SuaMajestade”18. Já numa linha de difusão e imposição de uma matriz racionalista, quepermitisse “trazer à civilidade as gentes bárbaras”, chegaram a Angola, com a tutela doConselho Ultramarino, vários exemplares da tradução dos Ofícios de Cícero, para que serepartissem pelas pessoas “capazes de se aproveitarem de suas lições”.

14 O que tem interesse salientar a partir destas referências é uma “rudeza” com que estas

máximas racionalistas e as suas fontes aparecem transpostas para Angola. Martinho deMelo e Castro enviou esses exemplares explicando ser indispensável que os habitantesde Angola, até ao momento bárbaros, conseguissem ter princípios morais que osfizessem “civis e para lhos infundir, não pode haver livro melhor do que o da traduçãodos Ofícios de Cícero, que Sua Majestade mandou estampar para o uso do Colégio daNobreza... porque é uma lição bem proveitosa em todas as idades e em todos os estados”19. Paralelamente na correspondência oficial vem citado, especificamente, um conjuntode livros destinado ao ensino da geometria, ao mesmo tempo que os engenheiros, quedurante este período seguiram para Angola, por sua vez, se fizeram acompanhar delivros úteis ao exercício da sua profissão.

15 Houve portanto, um conjunto de novas referencias, e de informações, sob a forma

material de livros ou não, que foi posto a circular com o fim de vir a ter o seu papel na(re)constituição do arquivo ou da biblioteca disponíveis e manipulados pelos actoressociais no terreno.

16 Em paralelo, desenvolveu-se também um tipo de leitura livre, associada à emergência

setecentista do papel das bibliotecas privadas e das novas práticas de leitura. No corpus

da Real Mesa Censória (1768) encontram-se listas de livros, encomendados a grandeslivreiros de Lisboa e destinados a Luanda e Benguela. Destas listas, estão ausentes asobras mais significativas da época, quer dizer, obras de carácter filosófico capazes deevidenciar e produzir fracturas ideológicas irredutíveis; mas estão presentes outras, demaior divulgação, que provam a vulgarização de formas discursivas e remetem para umnovo conceito de educação e para a cultura das Academias. Exemplos disso são: Breves

Instruções aos Correspondentes da Academia, Tratado da Educação Física dos Meninos ou aindaMemórias Económicas da Academia das Ciências (1789). Nestas listas destaca-se a presença

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de um número bastante elevado de gramáticas, bem como de dicionários de línguafrancesa e de língua inglesa. Literaturas francesa e inglesa que, por sua vez, sãorelativamente raras nestas relações, o que faz pensar na probabilidade de a literaturaestrangeira entrar em Angola na sequência das ligações atlânticas aos portosbrasileiros20.

17 Mas também se encontram indícios da existência, em Luanda, neste final do século

XVIII, de bibliotecas privadas, bibliotecas em aberto. Muitos dos volumes que ascompunham entrariam na cidade não só pelas vias controladas pelas instâncias oficiais,mas também pela via que dava acesso ao mundo brasileiro, já que a relação com o Reinose fazia através do Brasil. A integração do e no mundo americano era não só funcionalcomo ficcional.

18 Alguns dos homens ligados ao Governador D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho

(1764-1772) afirmavam ter lido obras em língua francesa e língua inglesa. Sem citaremtítulos, filiavam-nos nos novos tempos das Luzes. A obra de Montesquieu, por exemplo,chega a aparecer citada num parecer dado pela Câmara de Luanda – Discurso Político

sobre a necessidade que há de fazer a guerra aos Negros do Norte e do Mossul – parafundamentar a ideia de que a guerra, em si mesma, não era um fim, mas antes um meiopara atingir a paz, causando o menor prejuízo possível21. Um dos tópicos maisdifundidos pelas Luzes acerca da guerra e da paz aparecia assim reutilizado pelomunicípio para legitimar uma tomada de posição. E, finalmente, a Aula de Geometria(vide infra) funcionou como pólo de vulgarização de leituras e de ideias, em especial detoda a literatura que suportava a aprendizagem da cartografia ou da arte defortificação. Qual seria a localização física destas obras? Que tipo de circulação sofriam?Estas são hipóteses a que até ao momento não foi possível dar sustentação documental,porque faltam inventários dessas livrarias em Angola. A notícia de bibliotecas privadas,constituídas por filhos do país, só começa a ser segura a partir da primeira década doséculo XIX. Os proprietários dessas bibliotecas seriam homens ligados a ideiasnacionalistas que reclamavam a autonomia de Angola. Uma biblioteca muito citada é ade Manuel Patrício Correia de Castro, nascido em Luanda, em 1789, filho natural de umamulher parda e de um cónego da catedral de Luanda que deixou, à data da sua morte(1833), uma biblioteca de mais de quatrocentos volumes, onde se podiam encontrar osPensamentos de Pascal, Obras de Montesquieu, Epístolas de Cícero, etc.22.

19 Houve uma relação que se estabeleceu no Sul e que, sem excluir o Norte, o manteve à

margem. Uma relação que, sendo de colónia para colónia, foi construindo um espaço decomunicação e de mútua identificação. O Brasil constituía-se o território privilegiadode diálogo e troca. E mais, no plano cultural, a direcção que tomaram os trânsitosatlânticos colocou os “brasileiros” a caminho de Angola. O vínculo ao Brasil dá-se,assim, a ler ao contrário, no plano cultural, já que foi muitas vezes por essa via que emAngola se tomou conhecimento das novas da Europa, dada a ligação indirecta a Lisboa.E não foi só no tempo da Reconquista de Luanda aos Holandeses, nem na altura em que,depois da Inconfidência Mineira (1789), muitos dos seus protagonistas foram lançadoscomo degredados em Angola. Antes, durante e depois outras personagens oriundas doBrasil encararam Angola como espaço de fixação, como um lugar para onde se vai e sequer ir. Essa aproximação pode ser atestada em vários momentos. Não esqueçamos, porexemplo, que o governo de Luanda tomou conhecimento da Lei de 3 de Setembro de1759 (sobre a expulsão da Companhia de Jesus), através de uma Colecção que, vinda daBaía, chegara às mãos de um morador de Luanda23. O canal aberto para garantir o

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afluxo de escravos aos principais portos brasileiros estava aberto e receptivo, portanto,para no retorno trazer a Angola produtos culturais, fossem eles livros, periódicos,panfletos ou as ideias que os “brasileiros” recém-chegados aí faziam afluir.

20 As ligações intelectuais do Brasil a Angola, neste final do século XVIII, assumiram

expressões duradouras que se prenderam com a própria construção de uma memóriaescrita angolana. Entre as figuras que do Brasil entram em Angola, destaco EliasAlexandre da Silva Correia. Militar de carreira, ligado ao movimento académicobrasileiro da Baía (à Academia dos Renascidos), esteve em Angola na década de 1780,contactou com grande parte da elite militar e letrada de Luanda e participou na Guerrade Cabinda, onde toda a geração de 60 esteve presente. Por fim, fundamental e provadeste envolvimento nas redes atlânticas de sociabilidade, foi o facto de ter escrito umaHistória de Angola em dois volumes, que seguia o modelo estrito da Academia dosRenascidos, por sua vez inspirado na programa da Academia da História. Esta figurapermite, assim, objectivar uma ligação a uma elite intelectual colonial, e maisespecificamente a uma academia colonial, sedeada na Baía24. Elias Alexandre era filhobastardo de José Mascarenhas Pacheco Pereira de Melo, fundador da Academia dosRenascidos, a quem se deve um projecto historiográfico de recomposição da história doBrasil (com um percurso que incluía a Academia de História, academias espanholas e aUniversidade de Coimbra, jurisprudência canónica) e tendo partido do Brasil paraAngola integrou pela primeira vez este território numa narrativa académica25.

3. Representar e descrever: a aula de geometria.

21 Depois do afastamento do modelo cultural escolástico, tal como ele fora veiculado pela

Companhia de Jesus e o seu Colégio em Angola, a reforma do ensino seguiu as mesmaslinhas da metrópole. Fundamental para o tema das elites coloniais é a instrução, isto é,o acesso a uma nova cultura escrita, através de instituições para isso vocacionadas. EmAngola, aliás como no Brasil e no Estado da Índia, até aí, a educação fora asseguradaacima de tudo pelas ordens religiosas. No hinterland de Luanda, a presença doscarmelitas descalços e dos capuchinhos remonta aos inícios do século XVII, e depois, nocontexto da Contra--Reforma, os jesuítas construíram na cidade de Luanda o seuColégio, onde dispunham de uma Biblioteca e ministravam as primeiras letras aosmeninos. Com Pombal inicia-se uma fase de reformas educacionais que passa peloapagamento das antigas estruturas. Expulsos os inacianos, em 1759, e fechado o seucolégio, a Coroa, através do Governo de Luanda, veio a assumir directamente aresponsabilidade da educação, estipulando para isso o imposto do subsídio literário,introduzindo as aulas régias. Este é um momento que se quer, e que é, de ruptura comum anterior paradigma educativo.

22 No tocante ao ensino das primeiras letras, as aulas dificilmente funcionaram em

Luanda. Faltavam professores, manuais e livros que suportassem as novas directivaspedagógicas. Os meninos e as meninas, após a fragmentação do sistema pedagógicojesuíta, viam-se sem mestres. Num manifesto do “povo de Luanda”, apresentado àvereação da Câmara da mesma cidade, os moradores reclamavam o subsídio de ummestre para os meninos e outro para as meninas. Este manifesto é significativo a váriostítulos26. Por um lado é prova de que as reformas educativas pombalinas deram origema um enorme vazio, já que, anulada a estrutura religiosa, o Estado não foi capaz deassegurar um ensino público. A opção consistiu, em muitos casos, na cedência a formas

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de privatização27. Por outro lado, sob o ponto de vista da elite de Luanda, capaz de sefazer ouvir no município, é notória a associação do estatuto à instrução.

23 Mas, do ponto de vista da elite associada ao poder, o que parece ser realmente central é

assinalar a fundação, em Luanda, da Aula de Geometria e Fortificação, no ano de 1769,durante o governo de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho. Esta aula introduziauma nova matriz de conhecimentos em contexto colonial. Marcava, de facto, uma outrafase, claramente distinta do ensino ministrado pelos religiosos, e dava testemunho daconvocação do saber dos engenheiros por parte de um Estado que se proclamava policé

e portanto civilizado. O governo era mobilizado por uma visão pragmática doconhecimento científico e, nessa medida, promovia um conjunto de instituiçõescientíficas e literárias capazes de veicular e/ou ministrar ensinamentos práticos ecientíficos. É o caso das academias e das aulas, de uma maneira geral. Assim, a Aula deGeometria, de Luanda, não constituiu excepção, mas remete para um traço do tempo. Oexercício da profissão de engenheiro, que está associado a uma determinada práticacognitiva e a uma certa percepção do mundo, nomeadamente através da medição comrecurso a instrumentos, configura uma identidade profissional que por sua vezconstitui um critério de categorização28.

24 Com a fundação desta aula, o grande objectivo consistia na formação de jovens luso--

africanos, brancos e mulatos que, tendo nascido em Angola e sendo portanto “filhos daterra”, pudessem colaborar no programa de reformas. A vantagem seria dupla: aaprendizagem era feita em Luanda e os alunos seriam “filhos do país”, adaptados aoclima e às condições locais. Assim se evitava a entrada de engenheiros da metrópole,inadaptados à realidade local e incapazes de resistir às condições bacteriológicas queem pouco tempo os liquidavam. Aí deveriam ser recrutados os futuros ocupantes dascapitanias-mores nos presídios, como se sabe a estrutura mais duradoura e resistenteda administração em Angola, e que estivera desde sempre estreitamente ligada aosinteresses do tráfico e em permanente relação com as elites africanas. Doravante, essescapitães-mores – sem deixarem de estabelecer a articulação necessária com asaristocracias africanas, especialmente para a abertura dos caminhos e a garantia decarregadores, destinados ao tráfico – estariam munidos dos instrumentos intelectuais etécnicos necessários para a elaboração de plantas de fortalezas, plantas das novaspovoações civis (um dos aspectos mais relevantes da política deste período, vide infra,) eoutras ligadas à organização militar, ou o simples reconhecimento e representação doespaço, através da cartografia, da quantificação e sistematização de informação29.Tratava-se de relacionar a aprendizagem local do manejo dos instrumentos, o exercícioda sua utilização no terreno, com a disponibilização desse conhecimento para a acçãogovernativa na colónia de Angola.

25 Um parêntesis para dizer que, neste processo, nada foi linear. A verdade é que, no

exercício quotidiano, estes novos actores teriam que se defrontar com aqueles quetinham ocupado e em alguns casos ainda continuariam a ocupar as capitanias-mores.Muitos eram membros das antigas famílias de Luanda, participantes dos interesses daelite colonial, mas também estavam próximos das elites africanas com quemestabeleciam contactos diários, ora de cooperação ora de repressão. De qualquer forma,situavam-se num “entre dois mundos”, na “fronteira” da sociedade colonial com asafricanas de que, afinal, se encontravam dependentes quer para dar curso à aquisição eencaminhamento dos escravos em direcção ao tráfico atlântico, quer para daí extrairbenefícios privados. A sua acção assentava numa antiga e lenta aprendizagem das

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lógicas de interacção e dela dependera até aí a conservação do poder de Luandanaquelas áreas. O que isto também quer dizer é que a intervenção dos engenheiros-militares se veio inscrever num espaço social já ocupado e estruturado e, portanto, nãopodia deixar de suscitar vários tipos de resistência da parte dos seus actores. Essaoposição ficou muito evidente no momento em que Luanda demandou aos capitães-mores a colaboração num programa de territorialização da administração, através dafundação de povoações civis que, a médio prazo, deveriam substituir os presídiosmilitares e encerrar o ciclo dos capitães-mores em Angola. Atentando contra estatutosinstalados, essa solicitação parecia condenada ao insucesso. A verdade é que, na zona decolonização mais antiga, coincidente com os presídios do hinterland de Luanda, essapolítica de territorialização do Estado se revelou um verdadeiro fracasso. As antigasestruturas de colonização, em vez de funcionarem como apoios para umareestruturação da colonização, acabaram por se constituir em obstáculos poderosos ede facto muito eficientes. Paradoxalmente, no planalto de Benguela, onde as estruturasda colonização eram praticamente nulas, e apesar das incidências do contexto africano,a verdade é que a rede de povoações civis foi fundada e, pelo menos nos trinta anos quese seguiram, sobreviveu30. Assim, este comportamento “estigmatizante” dos capitães-mores longamente estabelecidos face aos outsiders só pôde funcionar porque aquelavelha estrutura estava bem instalada nas suas posições de poder – nomeadamente pelaparticipação activa das redes do tráfico – e, em relação a elas, os actores recém-chegados estavam naturalmente afastados31.

26 Independentemente das tensões sociais, a verdade é que nesta época, em Angola, se

produziu um corpo de mapas relativamente numeroso. Muitos dos autores destesmapas eram homens nascidos em Luanda, que seguiram a carreira militar,frequentaram como alunos, e depois também como formadores, a Aula de Luanda.Representam-se algumas das costas de Angola, plantas de fortalezas já existentes oumeramente projectadas. Mas, no princípio da arte praticada pelos engenheirosmilitares, encontrava-se a ideia de inaptidão do desenho para reproduzir a organizaçãocomplexa daquilo que não era um espaço, mas sim um território. O desenho é incapazde tudo revelar. Na voz da Encyclopédie, o verbete “Reconnoître”, sublinhava: “on croitcommunément n’avoir rien omis pour bien reconnoître un pays lorsqu’on s’en procuredes cartes ou qu’on en a fait lever; mais si l’on tient aux connaissances qu’elles peuventdonner, on ne connoît le pays que très imparfaitement. Pour être vraiment utiles, ilfaut qu’elles soient accompagnées d’un mémoire particulier, qui explique toutes lescirconstances du terrain”32. O reconhecimento da incompleteza da cartografia obrigavaà articulação entre cartografia e memória descritiva. Há, assim, uma associaçãonecessária entre os mapas e as memórias descritivas. Os Relatórios ou Memórias,elaborados por engenheiros saídos desta Aula de Geometria, constituem, também, umbom exemplo da modernidade do ensino da Geometria em Angola, não só porqueprovam o cumprimento de um programa teórico-prático, como põem esseconhecimento ao serviço da administração colonial. Conhecer através da descriçãocientífica o espaço africano é o passo que antecede e garante a futura ocupação.Conhecer o território é produzir o território e garantir a hipótese da sua apropriação.Nesses Relatórios, verdadeiros dossiers, que correspondem a uma nova modalidade derepresentação do mundo, procedia-se ao reconhecimento de territórios ainda poucoexplorados, muitas vezes territórios de implantação política africana, procurando naclareza de linguagem, no rigor de um método de exposição, no conhecimento físico-matemático e cartográfico, a sistematização de matérias e informações. O ideal da

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descrição é a exaustividade. O modelo cognitivo associa a problematização ao cálculo,num processo em que o auxílio à decisão de natureza política necessita de umconhecimento especializado, o conhecimento do engenheiro. Retomo aqui a expressãousada por Bernard Lepetit sobre as descrições do século XVIII, para sublinhar que elasrevelam a “intelligentzia del fare”33 que remete para uma aliança entre saber e poder.

27 Afinal, para se administrar é preciso saber o quê. Essa era a posição do futuro Conde da

Cunha, D. António Álvares da Cunha, que trabalhava, em 1753, num mapa geral de todoo reino de Angola, dizia ele, porque certamente não deixaria de ser útil aos seussucessores, “pois não é possível que possam compreender a vastidão destes domínios,sem que algum tome o trabalho de o mostrar com clareza em uma carta geográfica”34. Oexemplo paradigmático resultante deste movimento é o do cartógrafo PinheiroFurtado, que, em 1790, finalizou um mapa de Angola, conciliando as cartas de Jean-Baptiste Bourguignon d’Anville com os novos elementos dos exploradores e dospráticos da costa e do sertão. Toda a cartografia de fortes e fortalezas, de algumaspovoações, plantas da fábrica de ferro, mas também dos potentados africanos (vejam-seas cartas do país do Mossulo desenhadas por Félix Xavier Pinheiro de Lacerda) eespaços controlados pelas comunidades africanas, produzida em Luanda, atesta avivacidade de uma técnica de representação e de uma cultura política que,instrumentalizando-a, tem por objecto a produção ideológica da colónia.

28 O significado destas representações e descrições ganha, assim, outros significados. Não

tanto o reforço de um poder hegemónico que se exerce a partir de fora, mas a produçãode uma nova realidade espacial e política, no plano local. Esses mapas e descrições vãosendo produzidos em busca da (re)constituição e traçado do espaço invocado peladesignação Angola e, ao mesmo tempo que representam um espaço que se domina ou sequer dominar, participam também na produção ideologicamente homogénea dessemesmo espaço. É uma abstracção, pela representação de uma ideia de Angola, que, semcorresponder no terreno a uma qualquer uniformidade (dada a fragilidade dasestruturas coloniais e dada a multiplicidade de poderes africanos), funcionará comoreferente para uma futura acção no terreno.

29 Deste grupo da Aula de Geometria, fizeram parte indivíduos oriundos das mais antigas

famílias de Luanda – Velasco Galiano, Matoso, Andrade Câmara, Monteiro de Morais,Teixeira Mendonça –, outros homens descendentes de famílias, menos conhecidas eainda os filhos daqueles que chegaram a Angola vindos do Brasil e aí se instalarampassando a participar da vida local.35.

30 Das biografias, com reconstituição de trajectórias, que tenho vindo a elaborar, destaco

três casos paradigmáticos. A reconfiguração de perfis, isto é, a maneira como osmembros de elite já estabelecida e inscrita nas lógicas coloniais em marcha acolhem eadoptam formas de inscrição social até aí inéditas fica patente na figura de Martinho deTeixeira Mendonça. Era um dos grandes proprietários de arimos do hinterland deLuanda e também um dos grandes abastecedores do Terreiro do Trigo, mandadoinstituir em 1765 em Luanda, para recolher o produto das fazendas. Em 1781 dizia-seum dos “mayores [agri]cultores deste pays [Angola]”, que recolhia “anualmente humaavultada porção de mantimentos no Terreiro publico desta cidade [Luanda]”36. Capitão-mor do Dande (1769), e depois sargento-mor, manteve-se intimamente associado àfundação de novas povoações37. Fez a embaixada ao Marquês do Mossulo (1785). Nogoverno do Barão de Moçâmedes serviu como juiz da alfândega. Em 1799 chegou a

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tenente-coronel efectivo. E revela, nas cartas que escreve, uma extrema nostalgia dogoverno de Sousa Coutinho38.

31 António Máximo de Sousa Magalhães é inteiramente um produto do seu tempo, sem

ligações directas ao mundo do tráfico atlântico. Não pertencendo às mais conhecidas eantigas famílias do Luanda, era homem branco, filho legítimo de um Chantre e de D.Máxima de Almeida, nascido na cidade de Luanda em 1741. Assentou praça aos 21 anose formou-se com habilitações de engenheiro aos 24 anos na Aula de Geometria eFortificação. Além de ter ensinado a mesma disciplina em Luanda, progrediu nacarreira militar, chegando ao seu topo já no século XIX. É uma figura que pode seracompanhada durante cerca de quarenta anos, percorreu Angola de Cabinda a Benguela(por pouco de “Cabinda ao Cunene”…), como capitão-mor ou em acções de guerra, eproduziu uma quantidade assinalável de cartografia e relatórios. O que me pareceimportante sublinhar nesta biografia, e em outras semelhantes, é o facto de se tratar deum indivíduo nascido na colónia que fez a sua formação em Luanda e a carreira emAngola, tendo aí produzido literatura e cartografia e engendrado, como se verá, umaabertura para a produção de um discurso local, sobre a história e a política locais39.

32 Finalmente, a família Pinheiro de Lacerda40 enquadra-se na categoria daquelas elites

imperiais que, vindas do Brasil se instalam em Luanda na segunda metade do séculoXVIII. Quando Paulo Martins Pinheiro de Lacerda chegou a Angola, o seu curriculum jáestava preenchido pelas campanhas do Sul, na América. Define-se, a si mesmo, comoum “soldado das conquistas”, disposto a percorrer as praças do Império. Casou-se nacidade de Luanda, sendo pai de um outro militar, importante nesta conjuntura, FélixXavier Pinheiro de Lacerda. Sabia “excelentemente de Fortificação”, estudara a ciênciada artilharia e a arte de bombeiro no Brasil. Esse estudo “... e a Longa Experiência...”habilitaram-no acerca das regras dos desenhos e construções, da Arquitectura Militar, edo serviço de Infantaria. Participou nas principais guerras da época, aliás como AntónioMáximo de Sousa Magalhães de quem foi companheiro de armas. Participou na guerrado Bailundo, 1774-1776, como tenente comandante de artilharia. Foi “conquistador” daQuissama em 1783. Fez parte da Junta de Guerra do Mossulo, em 1790. Durante ogoverno de D. Manuel Almeida e Vasconcelos, o seu nome e o do seu filho vêmindicados no grupo de homens de confiança do governador, capazes de assegurar umdesempenho isento:

“Com a boa frente que faz aos oficiais que ele sabe terem-se distinguido em valor eaptidão ao serviço, tem movido bastante emulação aos outros e se pode esperarportanto, que as nossas Armas sejam felizes em qualquer acção a fim, peladisposições de um tão inteligente Chefe, como porque ele a confiará de pessoa desua escolha, conceito e préstimo conhecido de que Angola não está destituída;porque além de Paulo Martins, a quem Sua Magestade com tanta justiça premioucom o Posto de Coronel; está seu filho Capitão e Comandante do mais importanteCorpo da Milícia daquele Estado, qual é o da Artilharia, rapaz intrépido, amante doserviço e muito prático da Guerra do negro: Eu tive o gosto de o ver manobrar como seu corpo, assim no exercício de peça de Campanha, como no de muralha; e possocertificar a V. Ex.ª que ainda o não vi fazer mais certo e rápido em parte alguma...”41.

33 No campo da produção literária constitui um dos casos mais significativos, pela sua

sensibilidade etnográfica. O texto da Notícia da Cidade de S. Filipe de Benguela e dos

Costumes dos gentios habitantes daquele sertão42 foi considerado por G. M. Childs como aalusão histórica mais significativa à estrutura social dos “Ovimbundo”43. Apercebe-se daimportância da criação de gado, na organização da estrutura social e é capaz de referiros seus usos rituais nessas sociedades, quando descreve que não “comem dele, [gado], a

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carne e só é para (...) ir criando grande número em que consiste a sua riqueza eostentação”. O ápice desta ostentação vem mencionado, explicitamente, na ocasião dosfunerais, quando o gado, morto, era consumido nas cerimónias rituais e depois as suasossadas dispostas em cemitérios ao longo dos caminhos – “oratórios feitos com partes doboi”44. Dá portanto lugar à ideia de riqueza como ostentação por oposição à noçãoeuropeia de riqueza como acumulação e consegue transmitir todas essas variaçõesconceptuais num texto onde se reconhece uma narrativa “antropológica” avant la lettre.Além disso apresenta uma descrição do processo de eleição de alguns sobas do sertão deBenguela, só comparável às narrativas dos viajantes do final do século XIX. Na Memória

sobre a conquista da Quissama, descreveu o método tradicional para a fabricação do sal ealudiu ao uso de pedras de sal como moeda corrente em todo o sertão de Angola45.Trata-se portanto de uma obra pioneira e, por isso mesmo, isolada no tempo. Mas a suaocorrência em Angola neste período não pode deixar de fazer pensar que os modelos depercepção haviam mudado. É nesta mudança do olhar que novos esquemas mentais,dirigidos às ciências da vida – onde o “observado” se distingue do “relatado”, o “olhar”da “linguagem”, “aquilo que se vê daquilo que se lê”46 –, privilegiam a observação eabrem um espaço ao exame e sistematização da cultura material como fonte deinformação válida. Por seu lado, o filho de Paulo Martins Pinheiro de Lacerda, FélixXavier Pinheiro de Lacerda, é um dos mais importantes e melhores cartógrafos desteperíodo. São da sua autoria a “Planta Topográfica do Pais do Marquês do Mossulo”; e a“Planta de uma parte do país do Mossulo”47.

4. A política da língua e as suas contradições

34 Em toda esta narrativa, importa interrogar de que maneira se podem situar as

transacções com a cultura africana. Até que ponto a imposição de um padrão culturalracionalista foi capaz de apagar espaços de “mestiçagem” cultural, até que ponto arealidade africana se manteve ou pôde ser mantida nas franjas da sociedade colonial?Essa avaliação merece ser feita a partir da questão da língua, tanto mais que a políticada língua e o debate sobre as línguas no século XVIII ocuparam uma posição central48. Aimposição de uma ideologia trouxe consigo a ideologização da língua. À multiplicidadebabélica das línguas deveria substituir-se uma língua matricial e portanto única. Dava-se, assim, a extensão, até aos domínios da língua, de uma política de disciplina colonial,harmónica com um projecto de enquadramento novo das colónias numa ordemhomogeneizadora e avessa a particularismos ou a factores de descentralização eautonomia. Mas, e é aqui que interessa chegar, a tensão entre a língua portuguesa e asvariantes do quimbundo haviam atravessado a história das relações luso-africanas,sobretudo no hinterland de Luanda49.

35 A pragmática da língua chocava, assim, com um programa de imposição de uma língua

comum. Tem interesse insistir neste tópico para perceber como é que o modelo seconfrontou com o terreno. E, quando se pensa a elite instalada na cidade de Luanda éimportante retomar o problema do ponto de vista da construção da sociedade colonial.Aí, a questão da educação dos filhos dos colonos ocupou um lugar central. As mulheres,mulatas ou negras, com filhos de brancos, educavam os filhos na cultura ambunda efaziam-nos falar o quimbundo. A criação e a socialização das crianças determinavam,pela base, a urdidura de uma cultura crioula. Nas fontes, a vários passos surgem

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referências ao facto de em Luanda se falar o quimbundo ocupando o português umaposição muito secundária.

36 Mas não era apenas aí, na vida privada do quotidiano, que a cultura ambundo “minava”

as estruturas sociais coloniais. A verdade é que a própria administração, e mesmo ogoverno geral, dependiam de um domínio das línguas locais. Desde logo porque,historicamente, se constata a porosidade das línguas coloniais aos vocábulos e aovocabulário local, muitas vezes como forma de reconhecer – ou, pelo menos, dedesignar – instituições sem correspondência na Europa. Mas também porque a mestriada língua quimbundo não deixaria de ser olhada como um instrumento importantepara a realização dos programas políticos. Se o capuchinho Frei Bernardo deCannecatim é definitivo nas suas afirmações, já no final do século XVIII – “... de tudo oque fica ponderado se conclui, que a inteligência da Língua Bunda, ou geral do Reino deAngola, é utilíssima, e necessária aos Eclesiásticos no exercício do seu ministério; aosGovernadores, e Magistrados na Regência do Estado, e Administração da Justiça; aosChefes Militares no acerto do seu Commando, e na felicidade de suas operações; aosCommerciantes em fim no manejo do seu negocio, sendo uma ruína, e uma desgraça,que todas estas pessoas não vejam o objecto de suas funções, senão ao través da opacasombra de hum Negro interprete”50 –, o governador D. Francisco Inocêncio de SousaCoutinho, alguns anos (1764) antes, reconhecia que os engenheiros que chegavam daEuropa pouco ou nada conseguiriam fazer no sertão sem conhecerem a línguaquimbunda51. Aliás, o próprio tráfico de escravos e todas as discussões judiciais emtorno da escravização legítima, com lugar no Juízo das Liberdades, mais a intervençãodo Catequizador das Liberdades, pressupunham uma manipulação linguística segura52.Assim, a política pombalina para a imposição do português como língua comumacabava por se confrontar com a impossibilidade de governar, eficientemente, sem odomínio do quimbundo, quer através dos intérpretes quer através de umaaprendizagem directa.

37 Da mesma maneira, as reformas pedagógicas, extensivas a Angola, deviam deparar-se

com uma cultura crioula, uma cultura do quotidiano, longamente sedimentada porcontactos e trocas sucessivas entre a sociedade colonial e as culturas africanas. Aespecificidade dessa crioulidade cultural – se bem que no plano linguístico, como sesabe, não exista um crioulo de Angola – fica bem à vista na preponderância da língualocal, o quimbundo, sobre a língua portuguesa. O quimbundo era, de facto, a línguausada no quotidiano, não só pelos africanos, mas também pelos europeus, num regimeassinalável de diglossia. A própria administração não podia dispensar o conhecimentoda cultura ambundo. Certos cargos, sobretudo os que implicavam o contacto com omundo jurídico africano, supunham o bilinguismo do seu titular, em tudo preferível àutilização dos línguas ou intérpretes, presentes de uma maneira geral na estrutura detodo o império português.

38 Era no exercício do quotidiano, para o qual o tema da língua funciona como um ecrã de

acesso, que a elite formal se inter-relacionava com o mundo africano e era tambémnesse quotidiano que se revelava aquilo a que se poderá chamar o perfil de uma elitecrioula, no sentido sociocultural e nunca no sentido linguístico. Essas são as transacçõese acomodações no quotidiano. E, nesse quotidiano, o português era a língua da escrita edo poder e o quimbundo a língua franca, da oralidade, e da experiência para brancos eafricanos.

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5. Dizer e “dizer-se”: da história à memória

39 Com a vulgarização de novos instrumentos intelectuais e quadros mentais, esta elite

não só produziu objectos culturais, como engendrou argumentos identitários originais.Todas as personagens de quem até aqui se falou têm em comum um percurso, umaformação e ainda o facto de serem autores quer de mapas geográficos quer de textos(mais ou menos literários, mais ou menos especializados), mas têm como objectocomum o espaço e as realidades conotadas com a colónia de Angola. Essa narrativa deum espaço que ao mesmo tempo que está a ser feito, está a ser dito é fundamental paraperceber o que vem a seguir.

40 Há um processo que leva à formação, em Luanda, de uma literatura cujo objecto era a

própria história de Angola. Joseph Miller e John Thornton já apontaram nesta direcçãoquando se referiram a uma certa efervescência cultural luandense, especialmente uma“longa e vigorosa tradição de escrita local” centrada em Luanda53. E o facto é que, paraalém da História de Angola de Elias Alexandre da Silva Correia, mas que é produto dealguém que chega de fora, o caso mais interessante de fixação da memória da colónia deAngola é o do Catálogo dos Governadores de Angola. Na verdade este é um texto sobre aHistória de Angola que resulta da fixação por escrito de tradições orais veiculadaslocalmente. Fixação que é realizada intensamente durante o período em estudo e queresulta da articulação entre uma memória escrita, guardada nos arquivos de Estado,com uma tradição oral guardada e transmitida no seio da população colonial. Essestextos circulavam sob a forma de manuscritos, vinham copiados por várias mãos e eramescritos portanto por vários autores – funcionavam, assim, como uma espécie depalimpsestos – para depois serem devolvidos aos seus leitores com novas interferênciase alguns erros. O Catálogo dos governadores de Angola parece aproximar-se daquilo que J.Vansina apelidou de “group accounts”, tradições orais manipuladas por vários autores,afinal memórias orais de famílias tradicionais e de conquistadores, neste casoparcialmente fixadas por escrito, capazes de dar testemunho de uma profundaconsciência da realidade colonial, que é também sinal da génese de uma identidadelocal54. Para fundamentar esta ideia de uma activa construção da memória por partedos moradores de Luanda, tem interesse citar o que diz o governador D. Miguel Antóniode Melo (1798), a propósito do Catálogo dos Governadores de Angola:

“De tudo isto [história da colónia de Angola] achará V. Exª provas nos arquivosd’este estado, e na tradição que se conserva dos sucessos passados entre os seusactuais moradores (...)”55.“O dito Catalogo [dos Governadores de Angola] corre manuscrito, e as copias quedele tenho visto se acham bastantemente viciadas com erros dos Copistas, alem dealguns descuidos em que o Autor caiu talvez por não ter à mais abundância de livroscom que pudesse apurar melhor diversas noticiais que dá dos sujeitos de quemescreve. Todas as que se encontram na obra de João Monteiro de Morais foramtiradas umas de nossos Historiadores, impressos, outras de tradições que ele aquiouviu e que passam por boas e antigas, e outras finalmente de Documentos queainda pôde ver, mas que hoje já não aparecem” 56.

41 A isto se acrescenta que, para o período em estudo, e depois de percorrer um grande

volume de documentação, me foi possível constatar a ocorrência de “memórias” ou“informações”, muitas vezes anónimas que, sem serem produzidas na sequência de umaencomenda estadual, mas, ao que tudo indica, a título privado, reportam a umadescrição de Angola e Benguela, nos seus aspectos históricos, geográficos, corográficos,administrativos, comerciais, e também naturalistas, através de sistematizações de

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plantas ou minerais. Procurei identificar cada uma delas e inventariá-las, para quepossam ser olhadas, não só como fontes históricas, mas também enquanto peçastextuais autónomas, como objectos de reflexão literária que, estimadas no seu conjunto,dão sinal de uma vitalidade intelectual local e de um interesse na investigação eprodução de um saber colonial africanista, capaz de configurar e sedimentar namemória escrita, a memória colonial passada de geração em geração.

42 Note-se que a estrutura e composição destes textos diferem radicalmente do Catálogo

dos Governadores. Os seus autores são, na sua maioria, os tais militares de carreira, comhabilitações de engenheiro, dispondo dos instrumentos intelectuais que lhes permitemelaborar, com precisão, descrições geográficas, quantificar e, em alguns casos, chegar auma compreensão “etnográfica”, com todas as limitações que a palavra me merece,para esta época. A representação pela cartografia e a descrição, quer através de textosquer através de “estatísticas” (quadros) onde o número e os números surgem paradescrever mais do que para quantificar, organizam esses textos e inscrevem-nos numgénero que sistematiza e acumula informação que deve servir o Estado, mais do quefixam informações sucessivamente reelaboradas por várias gerações. Algumas peçasencerram já uma sensibilidade etnográfica muito forte e constituem as primeirasnotícias sólidas sobre as zonas mais remotas de que o governo de Luanda pretendiaapropriar-se, pelo menos intelectualmente, por meio de descrições. E, em muitos casos,esta apropriação intelectual é sobretudo uma apropriação imaginada.

43 Para os estudos de cariz naturalista, cite-se o trabalho de Álvaro de Carvalho e Matoso

(membro de uma das antigas famílias de Luanda), intitulado Produtos medicinais de que

usam os habitantes da África Ocidental, principalmente os de Angola e seus sertões, 1784. Ou ostextos escritos pelo engenheiro Paulo Martins Pinheiro de Lacerda, como Memória sobre

a conquista da Quissama, e ainda um texto de carácter etnográfico, importantíssimo parao conhecimento do planalto de Benguela, Notícia da Cidade de S. Filipe de Benguela e dos

Costumes dos gentios habitantes daquele sertão.

44 Estes textos noticiam um contexto favorável à produção de uma memória da colónia e,

mais, parecem constituir uma fixação de um conhecimento luandense – agorasuportado pelos instrumentos do conhecimento científico de que se serve – também emconstrução, acerca da sua história e recursos naturais. Em alguns casos, a apreensãototal do espaço de Angola e Benguela é abarcado. A apreensão espacial faz-se emrelação a um todo que só passa a ser possível a partir desta época. A necessidade de“arredondar Angola”57, expressão usada por Sousa Coutinho para descrever aapropriação física de um espaço colonial ainda em construção, e portanto a definição doslimites da colónia e a estruturação do espaço através de uma efectiva instalaçãoterritorial e administrativa, foi complementada por uma apropriação intelectual. Acartografia, mas também o discurso memorialista e/ou historicista, arredondam

intelectualmente uma ideia de Angola e legitimam, no plano das representações e daideologia, uma ocupação de facto.

45 A explosão de uma produção literária e cartográfica em Luanda corresponde a uma recriação

do discurso local, recriação que foi o resultado visível de uma política cultural recente,ao mesmo tempo, parte activa na definição de uma nova ideia de Angola – uma vez quea geografia abarcada pela designação de Angola passou a conter uma área geográficamuito mais lata do que a linha de presídios do Cuanza ou a articulação frágil comBenguela e o seu interior –, mas também na reformulação dos argumentos identitárioslocais, concretamente, por meio do uso político do vocábulo angolense58.

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46 O que é específico desta geração, para além da sua competência técnica e dos referentes

intelectuais que integra e transmite, é o facto de veicular um discurso onde vemvalorizada a ideia de naturalidade em relação a uma terra que é Angola. No discurso dealguns elementos desta elite, incluindo os oriundos das tais antigas famílias de Luanda,o uso político do vocábulo angolense, no sentido de natural de Angola, emerge. Estamanifestação situa-se no plano do indivíduo e não corresponde a uma expressão maisgeral. Mas não há dúvida de que se identificam alguns indivíduos, cujo pensamento seemancipa de referentes anteriores.

47 A verdade é que, ainda durante a primeira metade do século XVIII, nas petições de

privilégios e outras mercês elaboradas pelos moradores de Luanda, o requerenteinvocava muitas vezes o facto de pertencer às mais antigas famílias de Luanda, aquelasfamílias que haviam participado decisivamente na Restauração de 1648 (“descendentesdos Restauradores”) e como tal restabelecido a soberania portuguesa em Angola. São os“conquistadores” assim ditos e assim reconhecidos. Este constitui um dos tópicos queconfigura parte do discurso sobre Angola e a cidade de Luanda e os seus moradoresdesde o século XVII ao século XX. A importância do corpo dos “antigos conquistadores”deve ser associada aos primeiros moradores de Luanda, os que tinham chegado aAngola nas décadas inaugurais de colonização oficial, ou os seus descendentes. Ainvocação desse tópico de autolegitimação, que é uma forma de autoconsciência, apertença às mais antigas famílias de Luanda”, a pertença à geração dos conquistadores,vem mencionada noutros contextos. E mais: todo o período, a restauração de Luanda àsmãos dos Holandeses, é ele mesmo um lugar de memória recuperado e ritualizado pelosdescendentes desta primeira elite. Esse tópico vai atravessando várias cronologias e vaisendo ciclicamente rememorado no momento da confirmação dos privilégios que o Reide Portugal atribuiu a esse corpo através do organismo que localmente osrepresentava59.

48 Ao longo da década de 1780, o argumento, fundamentado nas guerras de Restauração e

brandido pela elite local, aparece silenciado, sem, no entanto, nunca chegar adesaparecer. Na mesma documentação burocrática, as pretensões da elite local, atravésda prática epistolar dirigida às instâncias administrativas em Lisboa, mantêm-se, masos argumentos mudam. Agora o argumento decisivo é o argumento da naturalidade emrelação ao território angolano, que se traduz na afirmação de uma condição, através dadesignação “angolense”. O vocábulo angolense60 começa a ser usado e é invocado comodesignativo de um estatuto que se reconhece autónomo, isto é, para designar umconjunto de indivíduos cuja identidade se define em relação ao facto de terem nascidoem Angola e não já na invocação de um qualquer critério de legitimidade que se baseiena soberania portuguesa. Este é, sem dúvida, um novo argumento que até aqui não seencontrava formulado. Se bem que os estudos sobre elites do século XIX indiquem apermanência da invocação do aniversário da ressurreição de Angola, em 1648, averdade é que a geração de 1760 acrescenta ao elenco de argumentos deautolegitimação a questão da naturalidade, e isto muda muita coisa.

49 Se a distinção é feita, é porque se quer nomear uma realidade social que não pode ser

dita com recurso às designações até aí estabelecidas. O vocábulo angolense é usado comosubstantivo, não como adjectivo, para classificar uma realidade social que parece exigira invenção de um novo designativo. O importante aqui é notar como, quando e porquê adesignação angolense é adiantada. Que alguém se declare angolense só tem oportunidadee revela pertinência nas condições precisas em que o termo desencadeie a projecção de

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um certo número de traços que distingam o indivíduo assim identificado dos indivíduoscom quem se relaciona, remetendo-o aos contornos de uma categoria que o transcendee ao mesmo tempo o limita.

50 Sobre a utilização do vocábulo angolense, mas apenas como adjectivo, a historiografia

refere que o qualificativo angolense era já detectável no princípio da História de Angola,de Elias Alexandre da Silva Corrêa, quando nomeava o país como ‘África Angolense’ eacrescenta que ele seria administrado “até uma boa parte da primeira metade do séculodas independências africanas”61. Ora, parece importante alargar o campo de explicaçãopara dizer que esta valorização da naturalidade tem directamente a ver com toda apolítica levada a cabo neste período.

51 Até aqui detive-me em todo o processo que revela a progressiva construção

“imaginada” de um espaço unitário e coerente que pudesse preencher a designaçãoAngola. Através da apropriação física do espaço (guerra, fundação de povoações civis),através da sua apropriação intelectual, pela cartografia ou uma escrita memorialista ehistoricista. Mas há mais do que isso, ou melhor, há uma expressão social de todo esteprocesso. Alguns governadores (em especial D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho eo Barão de Moçâmedes) empenharam-se em colocar nos lugares da administraçãocolonial os naturais de Angola. E toda esta questão deve ser também relacionada com acor, quer dizer, com a promoção social dos mulatos. As directivas governativas dasegunda metade de setecentos reconheciam que a hipótese de constituição de umasociedade colonial em Angola, a ser colocada, não podia prescindir da categoria dosmulatos. A verdade é que a diluição dos brancos e sobretudos dos seus filhos mulatos,nas malhas africanas, vinha sendo posta, com preocupação, pelos governadores. Maisfacilmente se africaniza o branco do que se ocidentaliza o africano. Daí a especificidadeda questão dos mulatos quando colocada para Angola. Por isso, a individualização socialdos mulatos, pela atribuição de privilégios e protecção através de instituições criadaspara o efeito, revela uma política de reestruturação social, eu diria até de produção dasociedade colonial, a partir da substância humana que a própria colónia poderiaoferecer. Sousa Coutinho propõe a liberdade dos filhos dos mulatos – “Eu desejei queSua Majestade libertasse todos os Mulatos; pois seria o único Meio de Povoar o País...”62

– e cria condições para acolher os órfãos, em casas pias, onde lhes seriam ministradosensinamentos sobre ofícios mecânicos, ou em famílias que os deviam receber63. Aespecialização profissional far-se-ia ao nível das artes mecânicas e artesanais. Algunsanos mais tarde, o Barão de Moçâmedes (1784-1790) reincidia “...que os mulatos sejamtodos libertos por muitas razões...”64. O que esta política significava era a hipótese defazer ocupar os cargos públicos por naturais da terra, dispensando os oficiais vindos doReino.

52 Assim, aquela que teria sido, de facto, a via mais eficaz de transformação social, em

grande parte decorrente das circunstâncias coloniais dadas, assentaria naquilo a que sepode chamar a produção do mulato, no sentido em que residiria na consolidação ecrescimento desta categoria intermédia – capaz, pela sua própria constituição, deestabelecer uma ponte entre as culturas africanas e a elite portuguesa projectada emÁfrica – o elemento-chave para a formação de uma sociedade colonial em Angola. O queestava de facto em causa era a invenção da sociedade colonial na África subsariana – ésem dúvida em questões sociais como esta que o Brasil (ou se quisermos os vários“Brasis”) funciona como modelo – e essa era a condição para a sua sobrevivência, forados frágeis quadros de implantação territorial, até aí vigentes: o presídio e a feira.

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53 De todo este processo, o que parece importante sublinhar é a identificação de um

primeiro uso político do vocábulo angolense, uso esse que se repete e ecoa emcronologias posteriores e que vem associado à especificidade da política pombalina, dasegunda metade do século XVIII. Aliás, todo o período pombalino e pós-pombalino foi,desde muito cedo, colado à figura, doravante mítica, do governador D. FranciscoInocêncio de Sousa Coutinho – a personagem identifica um tempo e esse tempo é a

personagem –, constituindo--se num outro lugar de memória que, sem anular o tempo dos

conquistadores, se lhe acrescenta. E a verdade é que as memórias colectivas são muitasvezes, e ao mesmo tempo, noções gerais e representações de factos e de pessoas65.Depois da saída de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, a geração que se formarana Aula de Geometria ou que com ele trabalhara na construção de fortalezas, na Fábricade Ferro, na edificação do Terreiro do Pão ou na reestruturação dos presídios, oumesmo na conquista de Novo Redondo e na fundação das novas povoações, é uma“geração órfã”, que perdeu o seu suporte, mas insiste em manter as suas referências66.Em 1796, Martinho Teixeira de Mendonça, dirigindo-se a D. Rodrigo de Sousa Coutinho,e referindo Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (pai do anterior), afirmava,explicitamente, “... pela sua Piedade e Justiça, que praticou com nós Angolenses, aindahoje o chamamos nosso Pai...”67. Este efeito de reflexo – entre uma naturalidade, que sedefine face ao território, associada à política pombalina, uma nova concepção de ensinoe a valorização dos naturais de Angola, para a ocupação de cargos públicos – ficaevidente na Memoria Geographica, e Política das Possessões Portuguezas n’Affrica Occidental,

que diz respeito aos Reinos de Angola, Benguela e suas Dependências. Origem de sua decadência,

e atrazamento, suas conhecidas produções, e os meios que se devem applicar para o seu

melhoramento, de que deve rezultar mui grandes vantagens à monarquia68 do angolense(nascido em Luanda) e mulato, Joaquim António de Carvalho e Menezes, datada de184569. Nesse texto, depois de referir a Aula de Geometria e de Fortificação, diz:

“Estes dois estabelecimentos se devem a D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho,quando foi governador em os anos de 1764 a 1772, é tudo quanto Angola apresentade melhor, e mais útil, é o resultado do génio incansável, probidade e desinteressede tão ilustre varão, mais lembrado ainda por sua honradez, e actos de filantropiaque nunca se apagarão da memória dos angolenses”70.

54 Num momento em que o governo de Lisboa preferia candidatos europeus, sem ligações

locais, e foi cada vez mais assim, as elites crioulas eram despromovidas. Já no início doséculo XX o angolense, jornalista e escritor Cordeiro da Matta, autor mulato, formadono espírito do romantismo, um dos promotores da imprensa angolana de pendornacionalista, não deixaria de incluir o governo de Sousa Coutinho, como lugar dememória, no seu Repositório de Coisas Angolenses (Usos, Costumes, tradições, lendas e

anedotas), extensa obra manuscrita, organizada por itens, onde recolheu artigos deimprensa, legislação, relatórios, etc., que, segundo o mesmo autor, se relacionavam comtemas estruturantes de uma identidade angolense71.

55 Assim, a circulação de novos modelos culturais – muito em especial o conhecimento

científico veiculado pela figura do engenheiro militar e seus saberes – conduziu a umareformulação dos argumentos identitários dessa elite e dos lugares de memória a elesassociados. Ao argumento da (re)conquista de Luanda aos holandeses, situada numtempo ciclicamente rememorado – os antigos conquistadores – vem acrescentar-se oargumento da naturalidade – os angolenses. Essa nova formulação, que decorre tambémde uma reelaboração do arquivo e/ou biblioteca coloniais, seria daí por diante, ao longo doséculo XIX, retomada e associada ao tempo em que foi produzida (o tempo do

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governador D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho), e assim também associada a um(novo) lugar de memória.

56 É claro, à margem de todo este processo, há micro-histórias que se insinuam na grande

problemática, cujos protagonistas são homens que obedecem a várias temporalidades edão uma leitura plural dos acontecimentos políticos. Há homens que transitam deregisto em registo, fazendo uma espécie de “bricolage” ideológico que lhes permitesentirem-se igualmente bem e aptos nas suas várias identidades, produzindo umaespécie de estilhaçar das categorias. Essa dimensão não poderá ser escamoteada… e, emrelação a Angola, muito menos.

NOTAS

1. Esta linha de investigação foi explorada por Peter Mark, para o caso dos lançados na Guiné, Cf.

“The evolution of ‘Portuguese’ identity: luso-africans on the upper Guinea Coast from the

sixteenth to the early nineteenth century”, Journal of African History, 40, 1999, pp. 173-191. Num

estudo sobre a obra de António de Oliveira Cadornega (História Geral das Guerras Angolanas),

Francisco Soares analisa os contextos em que o vocábulo “portugueses” é empregue por aquele

autor, investigando as várias identidades que o termo recobre nesta obra do século XVII.

Francisco Soares, “Tirar Doutrina”: Cruzamentos Narrativos de Cadornega, http://

www.triplov.com/cyber_art/francisco_soares/Tirar-doutrina.

2. O caso da câmara de Massangano deve ser olhado num outro prisma. Na verdade a fundação da

câmara de Massangano tem mais a ver com a fuga dos oficiais da câmara de Luanda, por altura da

ocupação holandesa, do que com uma fundação autónoma. Em 1755, Correia Leitão, na passagem

que por ali fez, confrontava a memória antiga, de uma “grande povoação de gente branca”,

memória provavelmente remetida ao tempo em que os moradores de Luanda ali se haviam

refugiado para escapar aos Holandeses, com a visão de uma aldeia despovoada e quase sem

moradores; cf. Manoel Correia Leitão, “Relação e breve sumário da viagem que eu, o sargento-

mor dos moradores do Dande fiz às remotas partes de Cassange e Olos, por mandado do Ill.mo e

Ex.mo Senhor Governador e capitão general dêstes Reinos, D. António Alvares da Cunha

(1755-1756)”, in Gastão Sousa Dias (ed.), “Uma viagem a Cassange nos meados do século XVIII”,

Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 56, 1938, p. 12. Aliás, na década de 1760, pensou-se a sua

extinção, uma vez que, à existência oficial da estrutura camarária e respectivos ofícios, não

correspondia o seu exercício. A proposta chegou a ser discutida no Conselho Ultramarino. Ofício

de António de Vasconcelos, 4 de Outubro de 1760, AHU, Cx. 43, Doc. 90.

3. Mário António, Luanda, ilha crioula, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1968; idem, A formação da

literatura angolana: 1851-1950, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997.

4. Jill Dias, “Uma questão de identidade: respostas intelectuais às transformações económicas no

seio da elite crioula da Angola portuguesa entre 1870 e 1930”, Revista Internacional de Estudos

Africanos, n.º 1, Janeiro/Junho 1984, pp. 61-94; Anne Stamm, “La société créole à Saint Paul de

Loanda dans les années 1838-1848”, in Revue Française d’Histoire d’Outre-Mer, Tome LIX, 217, 1972,

pp. 578-609, idem, L’Angola à un tournant de son histoire, 1838-1848, travaux de recherche effectués

sous la direction de Henri Brunschwig, directeur d’études à l’Ecole Pratique des Hautes Études, s.

l., s. ed.

5. Marcelo Bittencourt, Dos Jornais às Armas. Trajectórias da Contestação Angolana, Lisboa, Veja, 1999.

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6. Sobre o projecto pombalino dirigido a Angola e toda a problemática relacionada com a sua

aplicação no terreno vide, Catarina Madeira Santos, Um governo polido para Angola. Reconfigurar

dispositivos de domínio (1750-c.1800), Dissertação de Doutoramento apresentada à École des Hautes

Études en Sciences Sociales e à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de

Lisboa, 2005.

7. No Estado da Índia (pelo alvará de 2 de Abril de 1761), todos os vassalos naturais da Ásia, sendo

cristãos, passavam a ser juridicamente equiparados aos do reino. Cf. Maria de Jesus Lopes, Goa

Setecentista. Tradição e Modernidade (1750-1800), Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 1996, pp.

39-72.

8. No Brasil, o “Directório dos Índios” (1757-1798), reiterando uma sucessão de decretos e alvarás,

sobre a liberdade dos índios, em datas anteriores, convertia os índios em vassalos, apesar de não

ser muito claro o que é que esta palavra efectivamente continha de assimilação do seu estatuto;

cf. Rita Heloísa Almeida, O Directório dos Índios. Um projecto de “civilização” no Brasil do século XVIII,

Editora UNB, 1997.

9. AHU, Cx. 43, Doc. 43.

10. Recepção, no sentido em que é definida por Hans Robert Jauss, Pour une Esthétique de la

Réception, Paris, Gallimard, 1978, passim.

11. Para Portugal vide Ana Cristina Araújo, A Cultura da Luzes em Portugal. Temas e Problemas,

Lisboa, Livros Horizonte, Temas de História de Portugal, 2003, p. 16 e ss. Algumas discussões mais

recentes e a revisão fundamental podem ser encontradas em Michel Delon e Jochen Schlobach, La

Recherche Dix-Huitièmiste. Objets, méthodes et instituitions (1945-1995), Paris, 1998.

12. Rebecca Scott, Slave Emancipation in Cuba. The Transition to Free Labor, 1860–1899, University of

Pittsburg Press, 2000, onde a autora mostra como os próprios escravos aceleraram a eliminação

da escravatura e a desmontaram peça por peça, nomeadamente através da fuga, da participação

na sublevação nacionalista, da acção legal ou da compra da própria liberdade. Frederik Cooper e

Ann Laura Stoler, Tensions of Empire: Colonial Cultures in a Bourgeois World. Berkeley: University of

California Press;Laurent Dubois, A Colony of Citizens: Revolution & Slave Emancipation in the French

Caribbean, 1787-1804, University of North Carolina Press, 2004; Paul Gilroy, Introdução The Black

Atlantic, Modernity and Double Consciousness, Harvard University Press, Harvard Massachusetts,

2000, maxime, capítulo 6.

13. Gilles Deleuze, Felix Guattari, Kafka – Pour une littérature mineure, Paris, Les Éditions Minuit,

1996, p. 29.

14. Antonio Gramsci, Selections from the Prison Notebooks. Ed Quintin Hoare and Geoffrey Nowell

Smith. Lawrence and Wishart. London, 1971, p. 418; Edward Saïd, Representations of the Intellectual:

The 1993 Reith Lectures, Vintage, 1994, Michel Foucault, Dits et Écrits, vol. II, p. 720.

15. Vide o artigo “canónico” de George Basalla, “The Spread of Western Science”, Science, 156 (5

May 1962), pp. 611-622, onde a tese “difusionista” é explanada.

16. J. Cañzareszares-Esguerra, How to write the history of the New World. Histories, Epistemologies and

Identities in the Eighteenth-Century Atlantic World, Stanford University, 2001, p. 266 e ss.

17. Ver sobre este assunto o artigo de Kapil Raj publicado neste número. Para um desenho do

estado da arte sobre conhecimento científico vide, do mesmo autor, Relocating modern science,

Circulation and the construction of scientific knowledge in South Asia and Europe, Seventeenth to

Nineteenth centuries, New Delhi, Permanent Black, 2006, pp. 1-26 e ainda Dominique Pestre, “Pour

une histoire sociale et culturelle des sciences. Nouvelles définitions, nouveaux objets, nouvelles

pratiques”, Annales HSS, 1995, 50-3, pp. 487-522.

18. AHU, Cx. 54, Doc. 12.

19. AHU, Cód. 472, art.º 58.

20. ANTT, Real Mesa Censória, Cx. 151, Documentos expedidos para Angola (1795-1807).

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21. A conquista não se faz tanto pela guerra, como pela agricultura, indústria e religião. A noção

de conquista aproxima-se, assim, da noção de civilização. Sobre este tópico vide Santos, op. cit.,

cap. 8.

22. Carlos Pacheco, José da Silva Maia Ferreira. O Homem e a sua Época, Luanda, União dos Escritores

Angolanos, 1990, p. 105 e ss.

23. AHU, Cx. 43, Doc. 54.

24. Sobre a Academia dos Renascidos ver Iris Kantor, De Esquecidos a Renascidos: Historiografia

acadêmica luso-americana (1724-1759). 1.ª ed. Hucitec, São Paulo, 2004, p. 14.

25. Idem, ibidem, p. 393 e ss.

26. Carta de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho dirigida ao juiz, presidente, vereadores e

procurador do Senado da Câmara, 31 de Outubro de 1770, Arquivo da Câmara de Luanda, Cód. n.º

24, Registo da correspondência trocada entre o governador e o senado, 1762 a 1801 (sem numeração).

27. Ver, para o Brasil, um processo similar em Carlos Villalta, “Vida privada e colonização. O

lugar da língua, da instrução e dos livros”, AAVV (Laura de Mello e Souza dir.), História da Vida

Privada no Brasil, vol. I Cotidiano e vida privada na América portuguesa, Companhia das Letras, 2005,

pp. 331-386.

28. Massimo Quani, “Identtitá professionale e pratica cognitiva dello spazio: il caso dell’ingegnere

cartografo nelle periferie dell Império Napoleónico”, in Quaderni Storici, 90, anno XXX, fascicolo 3,

dicembre 1995, pp. 679-696.

29. Beatriz Siqueira Bueno, “Desenho e desígnio – O Brasil dos engenheiros militares”, in Oceanos,

n.º 41, A Construção do Brasil Urbano, Jan.-Mar. 2000, pp. 49 e ss. Ver também Valeria Pansini, L’Oeil

du topographe et la science de la guerre. Travail scientifique et perception militaire (1760-1820), thèse

soutenue à l’EHESS, 2002, cap. 2.

30. Vide, Santos, op. cit., Cap. 7.3. A Territorialização do Estado.

31. Norbert Elias, The Established and the outsiders. A sociology enquiry into community problems, 2.ª

ed., Sage Publications, London, Thousand Oaks, New Delhi, 1994, pp. xix-xxi.

32. Cf. “Reconnoître”, Diderot e D’Alembert (dir.), Encyclopédie [...], 1751 et 1772.

33. Bernard Le Pepetit, “In presenza del luogo stesso...Pratiche dotte e identificazione degli spazi

alla fine del XVIII secolo”, Quaderni Storici, 90, anno XXX, fascicolo 3, dicembre, 1995, pp. 657-678,

pp. 664 e 667.

34. AHU, Cx. 38, Doc. 82.

35. Vide “Carlos Pacheco, José da Silva Maia Ferreira. O Homem e a sua Época, Luanda, União dos

Escritores Angolanos, 1990; idem, “A origem napolitana de algumas famílias angolanas, os

Fançony”, in Anais da Universidade de Évora, 5, 1995, pp. 181-201.

36. Petição apresentada à Câmara, 26 de Maio de 1781, Arquivo da Câmara de Luanda, Cód. 24

(sem numeração).

37. Biblioteca Nacional de Lisboa, Res. Cód. 8742, fl. 73-73v.

38. AHU, Cx. 83, Doc. 61.

39. Sobre esta personagem, vide Santos, op. cit, 12.2.4.2. O novo militar: engenheiros, cartógrafos,

“etnógrafos” e “soldados das conquistas”.

40. Sobre esta personagem, vide Santos, op. cit., 12.2.4.2.

41. AHU, Cx. 77, Doc. 86.

42. Annaes Maritimos e Coloniaes, Quinta Série, Parte Não Oficial, Lisboa, da Imprensa Nacional,

1845, pp. 486-491.

43. Cf.Gladwyn Murray Childs, Umbundu Kinship and Character, London, New York, Toronto,

Oxford University Press, 1949, p. 17.

44. Annaes Maritimos e Coloniaes, Quinta Série, Parte Não Oficial, Lisboa, da Imprensa Nacional,

1845, pp. 486-491.

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45. José Joaquim Lopes de Lima, Ensaios sobre a statistica das possessões portuguezas na África

Occidental e Oriental, na Ásia Occidental, na China, e na Oceânia, Lisboa, Imprensa Nacional, 1846,

Livro III, Parte I, p. 25.

46. Foucault, Les Paroles..., p. 55.

47. IICT, CEHCA.

48. Michèle Duchet, Essais d’Anthropologie. Espace, langues et histoire, Paris, Puf, 2005, pp. 169 e ss.

Prefácio de Alfredo Margarido a Paulo Feytor Pinto, Como Pensamos a Nossa Língua e as Línguas dos

Outros, Lisboa, Estampa, 2001, pp. 13-22; Bethania Mariani, Colonização e linguística. Línguas, política

e religião no Brasil (séculos XVI a XVIII) e nos Estados Unidos da América (século XVIII), São Paulo,

Pontes, 2004.

49. Jan Vansina, “Portuguese vs kimbundu: Language Use in the colony of Angola (1575-c.1845)”,

Bulletin des Seances, Mededelingen der Zittingen, 47, 2001, pp. 267-281; Catarina Madeira Santos,

Ana Paula Tavares, Africae Monumenta – A Apropriação da Escrita pelos Africanos. Arquivo Caculo

Cacahenda, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 2002.Finalmente, Óscar Ribas

explica a existência de duas formas distintas do quimbundo: o quimbundo de Luanda e o do

interior. Além desta diferença fundamental, acrescenta, que as variantes dialectais são quase

tantas como as povoações. Óscar Ribas, Dicionário de regionalismos angolanos, Matosinhos,

Contemporânea, 1994, pp. 246-247.

50. Fr. Bernardo Maria de Cannecatim, Diccionario da Lingua Bunda ou Angolense explicada na

portugueza, e Latina, Lisboa, Na Impressão Régia, 1804, p. V.

51. AHU, Cx. 48, Doc.44.

52. Carta do governador António Vascncelos, anterior a 1760, AHU, Cx. 43, Doc. 5.

53. John K.Thornton e Joseph C. Miller, “A crónica como fonte, história e hagiografia. O Catálogo

dos Governadores de Angola”, in Revista Internacional de Estudos Africanos, n.º 12 e 13, Jan-Dez., 1990

pp. 9-55, sobretudo, pp. 10-11.

54. J. Vansina, Oral tradition as history, London/Nairobi, James Currey/Heinemann, 1985, p. 19.

55. D. Miguel António de Melo, “Relatório do Governo...”, Boletim da Sociedade de Geografia de

Lisboa, 5.ª série, 1885, p. 557.

56. Carta de D. Miguel António de Melo, 5 de Junho de 1798, Arquivos de Angola, vol.I, n.º 1, 1933, s.

pp.

57. Com mais rigor, “é preciso arredondar este imenso país”, AHU, Cx. 51, Doc. 25.

58. Para esta questão, vide, Santos, op. cit., cap. 12.2. Elites da continuidade e elites da ruptura.

59. Em 1781, por exemplo, a Câmara de Luanda pede a confirmação dos privilégios “que os

senhores Reys Pays lhes havião concedidos em remuneração dos serviços feitos pelos Povoadores

desta cidade a fim da restauração”Petição, São Paulo da Assunção, em Câmara, 8 de Agosto de

1781, Arquivo da Câmara de Luanda, Cód. 24.

60. Óscar Ribas regista o vocábulo angolense: “o que é natural ou habitante de Angola. O mesmo

que angolano; cf.,Dicionário de regionalismos angolanos, Matosinhos, Contemporânea, 1994.

61. Francisco Soares, Notícia da Literatura Angolana, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,

2001, p. 83.

62. Filmoteca Ultramarina Portuguesa, R-5-3-7, Memória de D. Francisco Inocêncio de Sousa

Coutinho sobre matérias do seu governo (1665-1769), Arquivo da Casa de Linhares. Mss 45/1, fl. 8.

63. Carta de D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, 13 de Setembro de 1769, Colecção do

Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, DL 81.02.14.

64. Do Barão de Moçâmedes para Seabra da Silva, 15 de Dezembro de 1784, AHU, Cód., 1642, fl. 15.

65. Maurice Halbwachs, Les Cadres sociaux de la mémoire, Paris, Albin Michel, 1994, p. 279 e ss.

66. Elias Alexandre insistia na censura que o povo de Angola teria manifestado perante algumas

medidas de D. António de Lencastro, contrárias ao espírito do seu antecessor, e reiterava-as

quando apelidava de Sábio a D. Francisco Inocêncio. Elias Alexandre da Silva Corrêa, História de

Angola,Lisboa, Ática, 1937, vol. II, p. 46.

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67. AHU, Cx. 83, Doc. 61.

68. Lisboa, Na Tipografia Carvalhense, 1834.

69. Sobre esta figura vide Francisco Soares, Notícia..., op. cit., p. 83; Mário António, A formação da

literatura angolana: 1851-1950, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997, p. 44. Ver também

Carlos Pacheco, Joaquim António de Carvalho e Meneses e a génese da polémica literária em Angola,

Braga, Conselho Internacional da Lusofonia, 1995.

70. Memória Geográfica e Política..., p. 11.

71. Arquivo Histórico Nacional de Angola, J. Cordeiro da Matta, Repositório de Coisas Angolenses

(Usos, Costumes, tradições, lendas e anedotas), 600 fls.

RESUMOS

Na segunda metade do século XVIII, a circulação de novos modelos culturais – muito em especial

o conhecimento científico veiculado pela figura do engenheiro militar e seus saberes – conduziu a

uma reformulação dos argumentos identitários da elite de Luanda, e dos lugares de memória a

eles associados. Ao argumento da (re)conquista de Luanda aos holandeses, situada num tempo

ciclicamente rememorado – os antigos conquistadores – vem acrescentar-se o argumento da

naturalidade – os angolenses. Essa nova formulação, que decorre também de uma reelaboração

do arquivo e/ou biblioteca coloniais, seria daí por diante, ao longo do século XIX, retomada e

associada ao tempo em que foi produzida (o tempo do governador D. Francisco Inocêncio de

Sousa Coutinho), e assim também convertida num (novo) lugar de memória.

This essay aims at analysing the explosion of a literary and cartographic production in Luanda,

during the Enlightenment period, and to underline the local creation of an original speech, and

the creation and re-creation of memory. When related to the History of Angola, colonial elites

have been mostly studied for the 19th and 20th centuries, connected with the debate on the

existence/inexistence of an Angolan creole culture. Alternatively, this paper focuses on the

second half of the 18th century, the Enlightenment period, when there is a kind of re-invention

of the elite established in Luanda. These families called themselves “the old families” and were

connected with the slave traffic and externally legitimated by the argument of having

reconquered Luanda from the Dutch. The arrival of new individuals in the Angolan

administration, engineers and military, the foundation of the “Aula de Geometria e Fortificação”,

in Luanda, in the year of 1769, aiming at the education of young engineers, whites and mulattos,

the circulation of cultural objects, books, pamphlets and letters for the Atlantic roots, and the

vulgarization of new intellectual skills and representations, stimulated the production of original

arguments and cultural objects. The “old families” were confused with the new generation - the

generation of 60.

ÍNDICE

Keywords: science, empire, Enlightenment, Angola, crioule, identity

Palavras-chave: ciência, império, Luzes, Angola, crioulos, identidade

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AUTOR

CATARINA MADEIRA SANTOS

EHESS, Paris.

Doutorada em História pela EHESS e pela FCSH-UNL. Actualmente faz um pós-doutoramento

(CEAF-EHESS e IICT) sobre “Produção e circulação de saberes em Angola (séculos XVII-XX)” e é

investigadora responsável do projecto, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia:

“Memórias Africanas da Escravatura: Inquéritos etnográficos nas Áfricas Lusófonas (1936-1939)”

(CEAF-EHESS e IICT). Principais publicações: 1996 “A formação das estruturas fundiárias e a

territorialização das tensões sociais: S. Tomé na primeira metade do século XVI”, Stvdia, n.º 54/55,

Lisboa, IICT, pp. 51-91; 1999 “Goa é a chave de toda a Índia”, Perfil Político da capital do Estado da Índia

(1505-1570), CNCDP, Lisboa, 373 pp.; 2002 Africae Monumenta, vol. I – Arquivo Caculo Cacahenda (em

colaboração com A. P. Tavares) edição, introdução, glossário e índices, Lisboa, IICT, 555 pp; 2005

“Entre deux droits, les Lumières en Angola (1750-1800)”, Annales, HSS, Paris, n.° 4, pp.817-848 ;

2007 Um Governo “Polido” para Angola: reconfigurar dispositivos de domínio (1750-c.1800), Lisboa, Centro

de História de Além Mar, Universidade Nova de Lisboa, 638 pp. (em publicação). É investigadora

associada ao CHAM (FCSH-UNL) e “chercheur associée” no Centre d’Études Africaines da

E.H.E.S.S. /C.N.R.S.

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Entrevistas

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Entrevista a Elikia M’BokoloCatarina Madeira Santos e Ângela Barreto Xavier

1 Elikia M’Bokolo é historiador e Directeur d’Études na École des Hautes Études en

Sciences Sociales, Membro do Comité de redacção dos Cahiers d’études africaines eProdutor na Radio France Internationale de Mémoire d’un Continent, emissão semanal deHistória de África.

2 O seu principal tema de investigação é a História moderna e contemporânea de África.

O enfoque é colocado na evolução e nas transformações políticas, em relação estreitacom os processos intelectuais, culturais e sociais. Mais do que as peripécias do tempopresente e a sua interpretação, interessa-lhe compreender o conjunto dos fenómenosde longa duração – permanências e recorrências, rupturas e inovações, captações ereapropriações – na sua interacção com as dinâmicas contemporâneas. A reflexão, osquestionários e as publicações consideram várias escalas: o continente, a Áfricasubsariana, as “regiões” (em particular a África Central) e os Estados (os dois Congos,Moçambique e mais recentemente o Gana). É dada uma especial atenção aos problemase desafios da memória. Este campo cobre também os problemas ligados à história das“diásporas” africanas, em particular na Europa e nas Américas, e ao seu lugar,demasiado desconhecido e subestimado, na História moderna e contemporânea daÁfrica.

3 Livros: Affonso 1er, le roi chrétien de l’ancien Congo, Paris, Dakar, Abidjan, Yaoundé, ABC,

Nouvelles éditions africaines, Clé, 1975, 95 pp. (Grandes figures africaines, 16e siècle);Mirambo : un grand chef contre les trafiquants d’esclaves, com J. M. Garraud, Paris, ABC,1976, 90 pp. (Grandes figures africaines, 19e siècle), Msiri : bâtisseur de l’ancien royaume de

Katanga (Shaba), Paris, Dakar, Abidjan, Nouvelles éditions africaines, 1976, 94 pp.(Grandes figures africaines, 19e siècle); Le roi Denis, la première tentative de modernisation

du Gabon, com B. Rouzet, Paris, Dakar, Abidjan, Yaoundé, ABC, Nouvelles éditionsafricaines, Clé, 1976, 94 pp. (Grandes figures africaines, 19e siècle); Le Continent convoité,

l’Afrique au XXe siècle, Paris, Montréal, Études Vivantes, 1980, 281 pp. [2.ª edição revista eaumentada 1985, Le Seuil]; Noirs et Blancs en Afrique équatoriale : les sociétés côtières et la

pénétration française vers 1820-1874, Paris, New York, Éd. de l’EHESS, Mouton, 1981,302 pp. (Civilisations et sociétés, n.° 69); L’Afrique centrale : stratégies de développement et

perspectives, Paris, Éd. de l’Unesco, 1987, 149 pp. (Études et documents); Afrique noire.

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Histoire et civilisations. Tome 1. Jusqu’au XVIII e siècle, Paris, Hatier, Aupelf-UREF, 1995,496 pp. (Universités francophones) com uma tradução portuguesa: África Negra. História

das Civilizações, T. I, Até ao Século XVIII, Lisboa, Vulgata, 2003, 584 pp.; Afrique noire.

Histoire et civilisations, Tome 2. Du XIX e siècle à nos jours, Paris, Hatier, AUF, 2004 [2.ªedição revista e aumentada, 1.ª ed. 1992], 587 pp. (trad. portuguesa Colibri, 2007);Kwame Nkrumah, Paris, Presses des Sciences Po, 2005. Direcção de edições: Histoire

générale de l’Afrique, com I. Baba Kaké (dir.), Paris, ABC, 1977-1978, 12 tomes; L’Afrique

entre l’Europe et l’Amérique. Le rôle de l’Afrique dans la rencontre de deux mondes (1492-1992),Paris, Éd. de l’Unesco, 1995, 188 pp. (Mémoire des peuples); Demos Afrique, Paris, Éd. del’Unesco, 2000; Au coeur de l’ethnie : ethnies, tribalisme et État en Afrique, com J.L. Amselle,Paris, La Découverte, 2005 [edição revista e aumentada, 1.ª ed. 1985, 2.ª ed. 1999]; Le

Panafricanisme au XIXe siècle, Paris, OIF, 2007. Conselheiro científico: “Le Roi blanc, lecaoutchouc rouge, la mort noire” (Peter Bate, BBC Art, 2005).

Catarina Madeira Santos / Ângela Barreto Xavier– Muitas vezes as autobiografias emesmo os ensaios de ego-História propõem leituras teleológicas dos percursos individuais,como se tudo, desde a origem, tivesse apontado para um resultado. No seu caso, o interessepelo estudo da História manifestou-se muito cedo? Tem memória de como é que issoaconteceu? Está relacionado, de algum modo, com a sua história pessoal? De que maneira a suavivência pessoal o conduziu à escrita da História, e da História de África? Ou de que maneira écapaz de identificar caminhos “interrompidos” ou “inacabados”?

Elikia M’Bokolo – Eu diria que aí existe uma espécie de paradoxo porque, hoje, eu nãome imagino a fazer outra coisa que não seja História. Ora, o meu interesse pelaHistória chegou realmente bastante tarde. Eu nasci em Kinshasa, era um excelentealuno e sofri muito com o “malthusianismo” intelectual em contexto colonial. Haviamuito poucos livros para ler, poucos debates intelectuais, o mesmo para os lugares desocialização intelectual enquanto tais, fora da escola, que era aliás um meiototalmente separado do resto da sociedade. Assim, em Kinshasa li muito, mas a minhapaixão era sentida por coisas que me afastavam da condição presente. A minhaprimeira cultura fundou-se nos livros que encontrava no Centro Cultural Americano eportanto nos grandes romancistas e escritores americanos do Oeste americano.Ingurgitei praticamente todo o Fenimore Cooper, talvez duas ou três vezes, muitojovem li também os poemas de Whitman. Mas, de facto, não havia muita coisa. Oslivros de literatura eram recolhas de textos e portanto, está a ver, recolhas deseiscentas páginas e no seu interior existiriam – o quê? – cinco poemas de Verlaine,dois de Ronsard, alguns excertos de Montaigne. Em suma, sentia-me extremamentefrustrado. Quando cheguei a França, com a idade de 17 anos, fui para Lyon. E é muitointeressante porque cheguei com os meus pais, com toda a família (pai, mãe, irmãos,irmãs). O meu pai era aquilo a que se chamava, em contexto colonial, um médicoafricano. Faltava-lhe, portanto, tornar-se um médico especializado de corpo inteiro.Foi um privilégio o facto de ter vindo jovem para a Europa e ter vindo com os meuspais. Nessa altura tinha uma bulimia de leituras. Além disso, caí num meio muitobom, em Lyon. Um meio da província, onde se tem tempo para fazer as coisas, e onde,na biblioteca municipal, me dei a conhecer às pessoas. Estava num excelente liceu, oLycée Ampère, era muito bom aluno, e portanto podia perguntar ao bibliotecário:“Tem este género de livro?” Li muitíssimo. A minha primeira paixão foi uma paixãoliterária, que ia desde Hemingway a Montherlant, passando por Camus, Sartre, enfim,li-os todos. Há até uma coisa espantosa, penso que sou uma das raras pessoas vivas ater lido integralmente Les Misérables de Victor Hugo, porque o queria fazer, e porquetinha lido alguns extractos. Portanto, trata-se de uma formação literária clássica. Fiz

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muito latim e grego. Quando entrei no Hypokhâgne e Khâgne, continuei a fazer isso,mais a Filosofia, a História, o Inglês, e a minha primeira licenciatura é umalicenciatura em letras clássicas. Como não era bolseiro na época – fui-o um poucomais tarde – e tinha necessidade de complementar os meus rendimentos mensais,dava aulas particulares aos filhos das boas famílias lionesas, aulas de latim, de grego ede francês.

Até ao início dos meus vinte anos não tinha uma paixão particular pela História.Havia períodos da História que me interessavam. Mas sem que eu imaginasseverdadeiramente o que iria fazer. De facto não fazia ideia nenhuma. Entre as coisas deHistória que me interessavam lembro-me que, vindo daquele país que sedescolonizava, quando cheguei a Lyon, um dos cursos mais interessantes quefrequentei foi um curso de História de um Professor de seconde que nos dava aulassobre a História da França do século XVIII. Era um professor socialista, e então numaaula ele disse: “Oiçam, como vocês têm um amigo africano que está aqui, pois bem,este ano vou falar prolongadamente da escravatura dos africanos e do tráfico deescravos”. Numa idade jovem e para saber mais, fui à Bibliothèque Municipale deLyon e li o livro de Gaston Martin L’Ère des négriers, sobre Nantes no século XVIII, queé um livro notável. Agora, depois do que veio a seguir, pode-se dizer, “bem, mas háisto”; mas, quando li esse livro, não era para fazer disso uma carreira. A outra coisaque também me apaixonou, acabado de chegar ao mesmo liceu, foi a publicação dolivro de René Dumont, L’Afrique est mal partie. O professor de Francês, que era umnormalien, um homem muito cultivado – e vim a saber mais tarde que ele tinha sidoum dos secretários de um movimento, Comité de Vigilance des IntellectuelsAntifascistes –, esse professor disse-me: “M’Bokolo, existe este livro que apareceu eque tem provocado muita agitação em França. Gostava que o apresentasse aos seusamigos com os seus argumentos críticos”. Portanto, o primeiro trabalho que fiz sobreÁfrica foi um trabalho para dizer se estava ou não de acordo com René Dumont, sobrea ideia de que África Negra tinha começado mal. Eu não estava de acordo com RenéDumont, com essa ideia de ter começado mal. Eu pensava que ela se tinha lançado eque tinha hipóteses porque, com a idade que eu tinha e tendo em conta aquilo quefazia, eu pensava que nós éramos muitos e que um dia voltaríamos a África; não sepodia dizer que África tinha começado mal. A minha própria família era uma famíliade quadros e portanto eu podia ver aí uma espécie de paixão patriótica. Não estava deacordo com a ideia de uma África que tivesse começado mal. Mas, no que diz respeitoao que René Dumont dizia sobre as novas formas da corrupção, a ditadura, odespotismo de certos poderes, eu estava de acordo. Assim, eu diria que na época mefaltavam os argumentos para explicar que não havia contradição entre o facto deexistirem estes fracassos na modernidade, que podiam explicar-se por processoshistóricos, e o facto de a minha fé me fazer pensar que África podia começar. Mas oque de bom houve nisto tudo foi a possibilidade de começar a saber naquele momentoque para discutir África era necessário ter conhecimentos.

E era necessário ser africano?

Não, não, era necessário ter conhecimentos porque eu reconhecia totalmente aDumont o direito de escrever sobre África, só que não estava de acordo com ele epensava também que havia coisas que ele não dizia. Nomeadamente, o facto de –estamos na altura em 1962 –, no Congo, Patrice Lumumba ter sido assassinado no anoanterior e para nós isso era um verdadeiro problema. Se estávamos bloqueados, era

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por causa desse assassinato, não por causa de práticas que fossem inatas. Esta é umasegunda questão que é importante. Também me lembro de, quando fiz um outrocurso, sempre com esse mesmo professor, sobre a revolução bolchevique, termos sidoalguns a pensar que ele tinha passado muito depressa por esse assunto. Teríamosgostado que ele se fixasse preferencialmente aí para que pudéssemos compreender oque se tinha passado. Nessa altura ele disse-nos: “Mas, se querem saber mais, vão àbiblioteca”.

Pode-se dizer que foi um estudante soixante-huitard? De que maneira foi influenciado por esseambiente?

Pode dizer-se que sim, de facto, porque eu entrei na École Normale Supérieure em1967. Portanto no ano lectivo de 67-68, era aluno na École Normale e quando se dá acrise de 68 eu estou lá dentro. Mesmo que não esteja seguro de que possa serconsiderado como um soixante-huitard. Pode dizer-se que eu estava dentro domovimento porque, justamente, tendo chegado a Paris em 67, a E.N.S. está na Rued’Ulm e na Rue d’Ulm encontrava-se também a Cinémathèque Française. Portanto emSetembro, Outubro, Novembro de 67 a cinemateca fez toda uma série sobre o cinemasoviético dos anos 20 e 30, e por lá passou todo o Eisenstein, todo o tipo de coisas.Portanto, nós estávamos plenamente por dentro. Na época dá-se também a guerra doVietname e pode-se dizer que eu pensava que entre aquilo que se passava noVietname e connosco havia qualquer coisa em comum e, aliás, em 68 havia pequenasquerelas. O PC e os partidos de esquerda em França batiam-se pela paz no Vietname;nós, pelo contrário, defendíamos a ideia da vitória do povo vietnamita. Não éexactamente a mesma coisa. Nós opúnhamo-nos à ideia de paz pela paz, queríamosque a paz terminasse com a vitória do povo vietnamita e, portanto, que os deixassemfazer o que eles queriam fazer, sem lhes dar quadros e normas. E de facto, há ainda aquestão da História africana. É interessante porque, na época, o meu pai e algunsamigos discutiam muito, e enquanto me tornava adulto não estava associado a estasdiscussões, mas ia escutando aquilo sobre que discutiam. Sob a insistência de um dosmeus tios, que era médico africano, lancei-me na leitura de Nations nègres et culture deChanka Anta Diop. E penso que eu também devo ser um dos raros a ter lido Nations

nègres et culture da primeira à última página, porque tinha todo o tempo à minhafrente e, portanto, como dizer… Hoje eu aligeiraria o meu ponto de vista, porque naépoca, talvez porque tinha outras necessidades, o livro não me impressionouparticularmente por uma qualquer radicalidade. Bem, a tese do livro é muitocomplicada, e pode-se dizer que o livro está construído de uma forma surpreendente,para um historiador, porque é em parte um livro de História, de Linguística e dePolítica Cultural. Tudo isto me parecia um pouco mal atado, diria, e por outro lado,que os egípcios ou que os seus faraós fossem negros, confesso que não via em que éque isso mudava o mundo (risos).

Isso afastava-o de uma geração, do ponto de vista intelectual?

Sim, eu já estava numa outra geração e numa outra problemática. Em contrapartida,na mesma época, no momento de passar o bac, tínhamos no programa o estudo dascivilizações mundiais e aí havia o estudo das civilizações africanas. Um dosprofessores que eu tinha na época, o mesmo aliás, disse-nos: “Bem, como o M’Bokoloestá aqui, para estudar as civilizações africanas, vamos escolher o que escreveu sobreo assunto um historiador africano. Foi portanto assim que eu li pela primeira vez umtexto de Joseph Ki-Zerbo que era, portanto, um texto de manual escrito para turmas

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finalistas e que explicava as civilizações africanas. O que ali encontrei que me pareceuinteressante, mas sem me impressionar desmesuradamente ou me dar vontade deestudar História, foi o facto de ele mostrar que existem processos. Que a África estáem movimento – vem de um lado e segue numa outra direcção – e que, portanto, emtraços largos, tinha sido gloriosa, depois fora dominada e agora estava talvez arecomeçar. Por tudo isto, essa abordagem pareceu-me sedutora. Mas, devo confessar,não me passava pela cabeça estudar História, mesmo se o facto de me ter investidotão intensamente no estudo do latim e do grego já era uma maneira de fazer História.Trabalhar os textos de Tácito ou de Tucídides é uma maneira de aprender o ofício dehistoriador. Assim, foi tarde, e talvez mesmo por defeito, que decidi que ia fazerHistória. Porque quando entrei na E.N.S., queria ter uma agregação; e teria comcerteza conseguido uma agregação em letras sem problema, mas na época eu eraanti-senghoriano.

Estava em contacto com os intelectuais africanos, que nessa altura circulavam pelos meiosfranceses?

É interessante porque em Lyon, na altura de tomar as decisões intelectuais, porquefoi de Lyon que eu parti, estava em contacto com duas estruturas. Por um lado osintelectuais dos Camarões, exilados políticos, que eram membros da UPC (Union desPopulations du Camerons), com quem estava em contacto, nomeadamente quando osmeus pais voltaram ao Congo. E eu achava estranho porque eles estavamcomprometidos politicamente, eram verdadeiros militantes comprometidos, masdiziam-me sempre: “Elikia, tu não estás aqui para fazer política, tu trabalhas bem naescola, para nós tu deves continuar a trabalhar. Deixa cair a política”. E o outromovimento que também ali existia era a Fédération des Etudiants de l’Afrique Noireen France. A federação de vários grupos de estudantes por país, que era ummovimento, eu diria de esquerda, ou de extrema-esquerda, de que me sentiapróximo, e ao qual aderi. Mas é preciso dizer que eu não tinha muito tempo porquetinha um investimento importante a fazer nos meus concursos. Mas destas duasexperiências, a UPC e a FEANF, retirei uma espécie de reticência face a Senghorporque em primeiro lugar eu considerava a sua poesia insípida, preferia Aimé Césaire.Isto é, mesmo assim, um problema, uma diferença, e por outro lado pensava que, nastomadas de posição, que um e outro tinham, Césaire era mais claro. O Discours sur le

Colonialisme é um texto notável, bem escrito, enquanto que em Senghor nãoencontrava nada disso. E depois, no meio que eu frequentava, Senghor passava porser, no vocabulário da época, o suporte do neocolonialismo francês na África, porqueo víamos vir muitas vezes a Paris, dava-se bem com De Gaulle e com GeorgesPompidou, lembrava que Pompidou tinha sido seu camarada de turma, enfim, tudoisto me enervava prodigiosamente e portanto, considerava Senghor insípido,politicamente vulgar e intelectualmente desinteressante. Mas, de qualquer maneira,se traçarmos as fronteiras, esta geração – Senghor, mas Chanta também – parecia-meum pouco longe, enquanto Césaire me parecia próximo. Tanto mais que Césaire,quando eu cheguei a Paris, escreveu Une saison au Congo, a famosa peça de teatro sobrea queda de Lumumba e a chegada de Mobutu. Portanto, havia ali umaresponsabilidade em relação ao presente que me parecia mais interessante que estaespécie de nostalgia em relação ao passado que não era muito criativa, do meu pontode vista.

Este compromisso com o presente, de que fala relativamente a Aimé Césaire, também ocaracteriza a si? O seu percurso individual pode confundir-se com a História da África

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contemporânea, e mais especificamente com a História da República Democrática do Congo,tanto mais que assistiu ao processo de independência e ao assassinato de Patrice Lumumba?

Penso que sim. Essa ego-história está de facto ligada à História de África e dos lugaresde África que atravessei porque todo o esforço, toda a paixão intelectual e a paixãopelo trabalho intelectual que eu tive só tinham sentido se relacionados com aemancipação do Congo. Eu trabalhava porque sabia – com dezassete anos eu sabia –que o Congo de amanhã éramos nós, os professores, os médicos, os engenheiros, etc.Mas, ao mesmo tempo, eu vivi, aos 15-16 anos, o drama da independência do Congo.Na minha família nós éramos por Lumumba; era muito claro: não estávamos do ladode Kasa vuvu, estávamos contra o tribalismo, e no que toca à independência nacionalnão pensávamos que o Congo fosse uma nação, mas estávamos contra umaancoragem tribal. Considerávamos que era necessária qualquer coisa a um nível maiselevado. Mesmo se reconhecíamos uma origem pelo lado do pai ou da mãe, visávamosa construção da Nação. Ora, Lumumba foi assassinado e na minha experiência, se eufinalmente acabei por escolher a História foi também por isso. A certa altura, penseifazer estudos de filosofia, mas quando entrei na E.N.S. Paulin Hountondji, quetambém era normalien, saía. Na altura encontrei-me com ele e conversámos. Serfilósofo depois de Hountondji? Não, isso não me interessava. Então o que é que merestava? Restavam-me as ciências sociais. Tinha muito má opinião da etnologia,porque, na minha juventude, no Congo, os etnólogos eram os missionários e osmissionários eram tribalistas. Tinham-se identificado com as tribos do Congo e eu nãoqueria fazer etnografia. O mais próximo disso era a História. Foi portanto umaescolha política, porque os jovens da minha geração leram e releram (a chorarLumumba) a famosa carta que ele escreveu à mulher, dizendo: “Um dia a História diráo que foi o nosso combate”. No fundo foi isso, mas sem saber verdadeiramente o queera a História, porque de facto, nesta época, os livros de História que eu tinha lidoeram livros de História europeia. Verdadeiros livros de História que referissem outrosmundos, conhecia muito poucos. Mas, mesmo assim, conhecia. Li um livro sobre oJapão. Nunca esquecerei esse livro. É o livro de Takahashi, que se chama Japan’s

Emergence as a Modern State. O livro é muito importante porque Takahashi explica quese o Japão fez o meiji, não foi porque as dinâmicas europeias o tenham aberto, masporque as dinâmicas sociais do Japão o conduziram a fazer essa escolha. Para nós, eraprodigioso. Ao mesmo tempo, na mesma época, havia poucas coisas sobre a África.

Quais foram as suas leituras de referência, os primeiros livros?

Na minha formação profissional, o Japão, em primeiro lugar; em segundo lugar oslivros de Jean Chainon. Chainon era professor em Paris e depois professor em ParisVII. É o especialista da História da China. Escrevera manuais de História da China, dasguerras do ópio, até à revolução. Era muito interessante porque se via toda aefervescência, a queda da tradição. Na minha família somos republicanos, portanto,ver o regime imperialista a afundar-se, cerca de 1791 ou 1792, na China, erafascinante. E, depois, todos aqueles estudantes, aquelas burguesias nacionais,camponeses, tudo isto era absolutamente apaixonante. E um terceiro livro, que não éum livro de História mas de Economia. É um livro de Charles Bettelheim que seintitula L’Inde indépendante. Este livro é apaixonante porque, apesar de tudo, tambémé um livro de História. Como é que a Índia foi desindustrializada pelos ingleses, comofoi reindustrializada pela colonização e como se tornou independente. Estamos nosanos sessenta e Nehru acaba de morrer. Depois há todas as outras leituras. A minhaformação de historiador inicial é uma formação em História da Europa do fim do

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século XVIII e do século XIX, até 1914, com uma grande focalização na França. ARevolução Francesa, a restauração, etc. Então há também uma coisa fascinante. EmLyon, portanto, também li o livro de Henri Brunschwig, que acabava de ser publicado,Mythes et réalités de l’Impérialisme colonial français. Um livro pequeno, mas muito bemfeito. Um livro de erudição com arquivos, citações de textos, etc. Brunschwigexplicava que, no caso da colonização francesa, a motivação nacionalista patrióticaera mais importante do que os cálculos económicos, até 1914. E que o rendimentoeconómico da colonização foi globalmente fraco, a não ser para certas categoriassociais francesas, nomeadamente mercantis, e talvez para algumas cidades francesas.Eu não estava de acordo com estas teses porque eu pensava que, ao insistir-sedemasiado na dimensão nacionalista da motivação colonial, se estaria a minar emdemasia a dimensão económica. E as coisas são estranhas porque, mais tarde, quandocheguei a Paris, eu procurava seminários que falassem de África…

E o que é que encontrou?

Fiz uma licenciatura em Sociologia. Havia sociólogos e antropólogos de uma nulidadeque não se pode imaginar. Havia professores de História, que eu achava de umagrande desenvoltura, nomeadamente Hubert Deschamps, que era um antigogovernador colonial, professor de História na Sorbonne. E embora fizesse História deÁfrica não levava isso verdadeiramente a sério. Era profundamente chocante;enquanto os cursos de Georges Balandier e de Paul Mercier – digamos Mercier para aetnologia, mas mais etnologia, Balandier para a sociologia, mas também um poucopara etnologia _, enfim para mim eram uma introdução à História de Áfricacontemporânea, mais do que verdadeiramente um curso de Sociologia. Um dia fui aocurso de H. Brunschwig, ao seu seminário na École Pratique des Hautes Études. Esteseminário tinha lugar no Colégio de França. Ele pedia às pessoas que seapresentassem, para dizerem o que lhes interessava. Então ele perguntou-me se eutinha lido livros de História. E eu disse: “Eu li o seu livro.” Ele perguntou-me: “E o queé que pensa dele?”; “Não gostei”. Então ele disse-me, um pouco vexado: “Oiça, vocêtem o direito de não gostar, mas não lhe estou a pedir para gostar ou não gostar deum livro. Se tem alguma coisa contra esse livro, então é necessário que o escreva.Aceito discutir consigo, se me trouxer um papel onde diga de que é que não gostou nomeu livro. Mas dizer assim que não gostou, isso não faz sentido”. A verdade é que ascoisas correram bem, porque depois eu comecei a trabalhar para dizer com quemestava de acordo e com quem não estava, porquê e como. Bem, parece-me que é aquique interfere, penso eu, o primeiro livro de História africana que para mim foi umaenorme perturbação: é a tese de doutoramento, publicada em Oxford, de OnwukaDike. Esta tese é fabulosa, chama-se Trade and Politics in the Niger Delta, 1830-1885: An

Introduction to the Economic and Political History of Nigeria, como as teses inglesas, com250 páginas, que eu devorei por fim, pela primeira vez.

Esse foi o defining moment…

Sim, foi aqui que surgiu um livro de História. Assim, na minha cabeça, tenhoChesneaux, Takahashi, etc., na medida em que eles nos mostram, portanto, aInglaterra que passa do tráfico de escravos ao comércio legítimo e à colonização. Mas,sobretudo, ele mostra que as sociedades do Delta, neste contexto, eram sociedadesacéfalas. Ora, anteriormente, o que eu tinha lido era sobre os grandes impérios,enquanto agora eram unidades pequenas e sociedades em movimento, com escravos

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que se tornam príncipes, príncipes que se tornam escravos. É qualquer coisa deprodigioso… e pensei: “A História é isto.”

Como é que um historiador de África olha e entende os subaltern studies, os post-colonialstudies e o desmantelamento do Orientalismo? Podemos considerar que o mesmo processoocorreu ou ocorre para a historiografia africana? Será possível dizer que também um certo“africanismo” tem vindo a ser desmantelado? Tanto mais que referiu que a historiografia sobre aÍndia, a China, o Japão, a Indonésia e com ela a historiografia anglo-saxónica constituíram pólosde perturbação no seu percurso intelectual, na medida em que lhe deram acesso a processoscoloniais e, portanto a processos não europeus, que o ajudaram a pensar África. Será assim?

Em grande parte sim, porque a sensibilidade adquirida até aí faz com que eu nãotenha a certeza de que antes eu tivesse condições para ter compreendido. Dike fezcom que, naquele momento, eu tivesse encontrado uma História africana que não éuma História africana… Não é uma etnologia, não é uma África voltada sobre simesma, a repetir coisas, a tradição, mas é uma sociedade que mexe e que manipula astradições. Assim, isto quer dizer que o “africanismo”, baseado essencialmente naetnologia, etnografia, sistemas de cultura, sistemas de pensamento, etc., fosse pelosares. Isso não fazia sentido. Assim, quando chegou o momento de ler o Orientalismo, eudisse, SIM. Não era uma revolução, eram coisas com as quais eu estava, de facto, deacordo. Então, não tardou que nós próprios continuássemos essa desconstrução,procurássemos desconstruir os conceitos, mas destruir também a cronografia daHistória pré-colonial e da História colonial, pós-colonial. Procurar, pelo contrário, oslugares onde as coisas se entrelaçam e, no fundo, encarar o estudo de África pelassociedade africanas, tal como elas se produzem e se transformam no tempo, com ousem contacto com o mundo exterior. Não se trata de uma História que seja anti-colonial, isso não faz sentido; é uma História na qual se fazem entrar todos osprocessos que estão em presença.

Como é que olha o caminho da História de África, inicialmente muito influenciada pela ideologia,para depois se afastar progressivamente e começar, de facto, a fazer a História das civilizaçõesafricanas. Afinal, como é que se passa esta relação entre Ideologia e História?

Desde o início que eu sempre gostei da erudição; quer dizer, os debates de ideias, etc.,são interessantes, mas, quanto a mim, o nosso métier deve ser fundado sobre ummínimo de erudição: as fontes e o seu tratamento, a discussão sobre as cronologias,etc. É a partir daqui que se podem construir discursos. Portanto, quanto ao impériodas ideologias, eu sempre pensei que temos necessidade de ideologia, mas quandoestamos no nosso métier, é preciso deixá-la à porta, para verdadeiramente exercer oofício de historiador. E isto chega ao ponto de criar problemas com jovens africanos,quando lhes digo: “O que tu disseste passa bem num meeting, eu até aplaudiria, masnum texto de História não passa, porque o que te permitiria afirmar isso não está aí”.

Em sua opinião, esse olhar esclarecido que a nova História de África tem vindo a construir já foicapaz de desmontar os grandes estereótipos ligados a África? E estou também a pensar natendência que há para tomar o todo pelas partes. Quer dizer, referir África e os africanos comose essas designações fossem suficientes, conjugar a cultura africana no singular, referindo-se atoda a “África” como a um só bloco cultural, omitindo assim a pluralidade, as várias Áfricas.Parece-lhe que a comunicação entre essa História científica e o grande público (europeu ouafricano) se faz, de facto? O seu eco chega além do circuito dos historiadores? Afinal, o que éque mudou, se que é que mudou, ao longo do século XX, depois das independências africanas eda constituição de uma historiografia africana, na percepção que o Ocidente tem de África?

Eu diria que os estereótipos antigos nunca deixaram de estar presentes. E é muitodifícil desembaraçarmo-nos deles, seja porque estes estereótipos são negativos, seja

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porque, no contexto actual, são mais positivos. Por isso se diz África, que é quaseessencializada, e se diz os Africanos. Recentemente, fiz uma conferência no Musée duQuai Branly, sobre a colonização belga no Congo. Um dos ouvintes que ali estavareagiu, dizendo: “Nós, os Europeus, devemos ter vergonha, quando vemos aquilo quefizemos em África”. Portanto, o estereótipo antigo existe, mas é complicado porqueexistem novos estereótipos que apareceram e que podem ser de todos os tipos. Aliás,essa não é uma questão de Europeus ou de não Europeus, porque, por exemplo,podemos ouvir os Africanos dizer: “África não quer o desenvolvimento”, ou “asculturas africanas opõem-se ao desenvolvimento”. Outros podem dizer, pelocontrário: “África é uma espécie de conservatório da Humanidade, onde se encontra asabedoria, a questão da sabedoria, etc.” Portanto, estes estereótipos novos vêm-seinscrever nos antigos e, por vezes, combatem-nos. Estamos sempre a ser apanhadospelo choque, pela tensão entre erudição, saberes e representações ideológicas. Porisso, tentei ultrapassar isso num dos livros onde falo da História no singular, querdizer, a prática do métier, e das civilizações no plural. Portanto, geografia epluralidade no tempo e na cronologia. Aliás, essa pluralidade nunca é a mesma. Diz-sea África Ocidental, Central, em permanência, mas o Ocidente pode vir a tornar-se ocentro. Este puzzle pode dar várias coisas, consoante estamos num século ou noutro,consoante estudamos este ou aquele problema.

Pensando agora no seu livro Histoire de l’Afrique Nègre, como é que definiria a originalidade daconstrução do objecto que ali é dado, relativamente àquilo que foi feito antes e em relação aopanorama historiográfico africanista? O que é que permite identificar aquele género de História?

Primeiro eu diria que é uma História descomplexada. É totalmente descomplexada. Éum livro de História com vocação para ser submetido a um balanço, para sercomparado exactamente com aquilo que há pouco dizíamos, os livros sobre a China,etc. Mais, eu diria que nos detalhes da cozinha, portanto, na questão do método, ateoria é posta no armazém, porque, se não o fizermos, nunca mais se pára. Oimportante é mostrar como é que em concreto se faz a História. Mais do que mostraros utensílios, importa mostrar o produto. Quando se vai a um restaurante, o que secome é o prato e pouco nos importa que seja feito num forno de microondas ou numforno a lenha. E depois há uma terceira coisa: importa mostrar que África mexe, mexee não pára de mexer em permanência; no fundo é isso, não existe um sentido no qualas coisas vão, mas tudo mexe e remexe; e se mexe é porque continuará a mexer. Seexiste uma mensagem, é essa: tudo continuará a mexer.

Acredita na utilidade social do historiador? Acredita que a informação construída pelo historiadorde hoje pode ainda intervir nos significados da memória histórica colectiva?

Eu diria que, não só ele pode, como – no contexto actual do início do século XXI –deve porque aquilo que se vê – como poderei dizer? – é que , na maior parte doscasos, não existe uma gestão explícita da memória. Pode-se dizer de outra maneira:salvo casos excepcionais, mas que causam alguns problemas, não existe uma política,ou políticas, ou estratégias, sobre a memória ou em relação à memória. Deixam-se ascoisas um pouco assim, sem direcção. Ora o trabalho da memória é um trabalhocontínuo na sociedade. Se não existe debate sobre a memória – o que é o caso damaior parte dos países –, não existe debate, nem política, e depois passam-se as coisasmais extraordinárias. Primeira coisa: por exemplo, desde os anos 1990, e talvez atéantes, a luta das sociedades contra o poder despótico corrompido, etc., produziucoisas extraordinárias porque se verificou que havia pessoas que consideravam que,uma vez que o poder de então era mau, teria sentido fazer marcha-atrás, em direcção

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ao passado, para encontrar um bom poder. Acontecem coisas surpreendentes quefazem com que, em certos casos, em certos países e camadas sociais, o períodocolonial seja “fetichizado” de uma maneira positiva. Há exemplos bastante concretos.Veja-se, por exemplo, Brazzaville, cidade que foi espoliada pela guerra civil, que estáem reconstrução. O mais belo monumento em Brazza custou uma fortuna e é umgigantesco mausoléu onde se encontra o corpo de Pierre Savorgnan de Brazza.Portanto, neste país, o referente mais visível é um herói colonial. Não se podemdeixar assim as coisas. Noutros países as pessoas voltam ao passado pré-colonial, umpassado pré-colonial que, nesse caso, também é fixado e inventado. Em livrosfundadores de pessoas como Hobsbawm, dizem-se coisas extremamente importantessobre o nacionalismo na Europa, porque ninguém se dá conta que se está a inventar opassado e que as pessoas inventam um “passado pré-colonial”. Isso é muitoimportante. Outro aspecto importante é que o crescimento demográfico é muito forteem todos os países africanos e por isso a sociedade muda, o que faz com que osantigos cânones de transmissão de conhecimentos passados, das famílias mais oumenos alargadas, não funcionem mais. Então, pode dizer-se que se reportam as coisasà Escola. Mas o estado das escolas é tal que se pode dizer que é um dos aspectos maisnegligenciados; portanto, temos gerações de miúdos que chegam ao fim do ensinosecundário, e por vezes à Universidade, com conhecimentos quase nulos do passadoe, com mais razão, do continente.

Quais as vantagens e desvantagens de ser um insider a fazer a História de determinado país(para usar uma terminologia mais antropológica, ser um observador participante que domina ocódigo cultural), ou um outsider a fazê-lo? Qual o relevo que a “pertença” e a “distância” podemter no forjar de uma subjectividade objectiva? Está ao mesmo tempo dentro e fora como é queisso se passa dentro de um mesmo sujeito, como é que sente esse movimento?

Durante muito tempo, evitei trabalhar directamente sobre o Congo. Precisamente porcausa disso. Perguntava-me se seria capaz de manter a distância, se não iria cair numcerto número de erros, porque eu tinha colegas que faziam isso e com quem nãoestava de acordo, dizendo este e este livro são maus. A contrario, trabalhando antessobre sociedades próximas, mas não sobre o Congo, esperava de alguma maneira omomento em que eu julgaria que poderia começar a fazê-lo. Mas, quando olhamosbem para alguns dos muito bons livros, eles são escritos por outsiders. Para mim umdos melhores livros é o de Wilks sobre o reino Ashanti, que é uma verdadeira jóia.Sabemos que ele dedicou quarenta ou cinquenta anos da sua vida para acabar esselivro. Portanto é um outsider que se tornou um insider, à custa da prática e daaprendizagem da língua. As pessoas contam-lhe histórias e finalmente o insider éalguém que sofre uma certa socialização. Portanto, temos outsiders que são melhoresdo que os insiders e temos os que se tornam insiders. Penso que se pode aceitar apaixão, quando se gosta de dar a conhecer as questões com o máximo deobjectividade e de detalhe, para fazer com que os outros gostem também. Portanto,esta dimensão bastante afectiva é um dos fermentos do trabalho, mas sempreprocurando manter a distância. Não é fácil, mas, de tanto tentar, chega o momentoem que se pode de facto fazê--lo, incluindo a História do tempo presente. Vamos retertrês verbos: construir (isto é, o que está na cabeça), restituir (isto é, dizer), e explicar (oprocesso). Construir, restituir e explicar o processo; quer dizer, fazer com que osoutros compreendam e que um dia, talvez, possam construir o mesmo processo deuma outra maneira, com outras interpretações.

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O seu tempo de trabalho divide-se entre os seminários na EHESS, a Radio France Internationalee o seu escritório. De acordo com aquilo que posso perceber, para si, a academia não se basta asi mesma. É necessário que ela esteja em diálogo com a sociedade. E de facto, quando seassiste aos seus seminários, a impressão com que se fica é a de que os africanos ali vão paradiscutir entre eles e consigo as questões africanas. Já o ouvi dizer: “Obrigado, a discussão foimuito apaixonante”. Gostaria de o ouvir acerca desta relação entre a academia e a vida activa,para lhe perguntar também, relativamente à clássica formulação de Gramsci, se se posicionacomo um intelectual orgânico ou um intelectual tradicional.

A academia é um lugar importante e essencial, mas é um espaço profissional que seutiliza durante um certo tempo. Aí aprendemos a fazer certas coisas, isto é, essahistória, um discurso que é construído, que outras pessoas dominam e que se dá àdiscussão, cujas provas são postas em causa por outras pessoas que podem dizer quenão estão de acordo com o método, mas que estão de acordo com a conclusão, ou quenão estão de acordo com isto ou com aquilo. Isso para mim é importante, comotrabalho. O que quer dizer que, mesmo que pare profissionalmente, isso é qualquercoisa que eu quero continuar a fazer. Colocar-me sempre em causa, relativamente aospares. Mas é claro que isso não chega, porque eu acredito muito naquilo a que porvezes se chama a prática republicana da História. Durante os meus estudos deHistória, os verdadeiros professores de História, os realmente bons, como MauriceAgulhon, ou alguém como Pierre Vilar, Jacques Le Goff ou Marc Ferro, eram pessoasque explicavam sempre que o nosso ofício de historiador era, de facto, a apropriaçãopelo indivíduo de uma aventura colectiva que nos cabia construir e reconstruir e queo complemento desta abordagem era a restituição, daquilo de que nosapropriávamos. Não se faz a História para os pares. Faz-se História para que ela entreno saber social colectivo. Portanto, sem a restituição, para mim não há História. Emrelação a um historiador que está na academia, eu posso ter muita estima por ele, maspara mim isso não chega, se esse trabalho de retorno não for feito; porque o grandetalento do historiador deve ser a capacidade de fazer compreender e suscitar o gostopelo que faz, aos outros. E, uma vez que se trata de uma aventura humana, como nãopensar que todos os homens a devem partilhar? Eu sou homem e nada do que dizrespeito à humanidade me é indiferente. Qualquer homem está interessado naHistória. Eu vejo que, quando falo de História de África nas profundezas da França, aspessoas interessam-se, e porquê? Porque é a aventura humana. A sorte que eu tive,foi uma sorte soberba, foi ter encontrado no meu caminho alguns “mais velhos” queeu que faziam rádio, que eram jornalistas e que um dia me disseram: “Vem connosco,vamos fazer coisas”. E portanto aquilo que aprendi nesse trabalho dos media foi acontar a História. E isso parece-me que foi importante porque eu vi que algunscolegas, grandes especialistas da Revolução Francesa, quando em 1989 se celebrava obicentenário, não sabiam contar a História. Esta é uma enorme riqueza. Há a escritaacadémica e há a escrita não académica, da imprensa, das revistas (em Áfricatrabalhei numa revista durante – não sei – três ou quatro anos a fazer artigos deHistória); e há depois a escrita oral; agora há ainda outra coisa: a imagem. Tudo istodá ao historiador de hoje uma paleta de discursos tão variada que me parece que onosso trabalho se tornou ainda mais apaixonante que no tempo de Michelet.

Vai com frequência ao Congo e esteve lá durante o processo eleitoral de 2006. Um historiadorpode ajudar a compreender os processos do presente e em certos casos a unir o que estáseparado? Quando vai ao Congo participa desta construção de uma união possível?

Sim, o que fiz, em 2006 e também em 2005, foi participar em todo o debate congolês.O debate sobre o fim da guerra, sobre a paz, sobre o processo eleitoral, trazendo para

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esse mesmo debate o olhar do historiador. Portanto, uma primeira coisa é isso.Espantando muitas pessoas, eu bati-me pela reactivação da memória; não umamemória arquivada, ou uma memória de museu, mas uma memória viva que desselugar a um debate. Lumumba, por exemplo, é alguém sobre quem devemos discutir.Não é necessário estarmos de acordo. Mas, quando se concorda que é um objectosobre o qual todos temos qualquer coisa a dizer, isso torna-se num património. Masfoi difícil porque, por causa de tudo o que se passou nos últimos anos, as pessoasexcluem e escolhem. E isso dá-lhes uma memória compartimentada, que acaba pordegenerar em práticas de intolerância e de desconhecimento do outro. Depois,durante as eleições foi necessário explicar às pessoas como é que as coisas se passam,o que as leva a votarem ou não, ou que votarem desta maneira ou daquela. Então, aexplicação rápida da imprensa, nomeadamente estrangeira, foi: “Tratar-se-á de umvoto tribal?” A resposta é não. “Ou é um voto regional?” Mais uma vez a resposta énão. Então o que é que faz com que seja assim? É que há processos nacionais, globais elocais que fazem com que, num mesmo país, haja uma maioria disto ou daquilo. Isso éverdade hoje, mas amanhã não será assim. Portanto, trata-se de restituir estesprocessos. Bem, a verdade é que estive lá uma primeira vez e pediram-me que fosseuma segunda vez; por vezes ainda me voltam a pedir. As pessoas ficavam muitosurpreendidas por ver que as coisas que lhes pareciam fruto do acaso – não estou adizer que tudo está determinado – podem ser, até certo ponto, explicadasintelectualmente. Penso que esse trabalho deve ser feito, sobretudo num contexto emque, na África Central as Igrejas de despertar e outras fazem as pessoas acreditar quea autonomia das sociedades e a autonomia dos indivíduos, no fundo, não existe,porque é Deus ou é a Providência quem predetermina a História. Eu tive um embateduro em parte com o episcopado congolês, que repetia que é Deus quem faz aHistória. Eu disse que de maneira nenhuma, são os homens que fazem a História. Querdizer, são os homens em sociedade que fazem a História, e não Deus. Se fosse Deus,não se compreenderia que, sendo Ele bom, como é que Ele poderia deixar as pessoasnum estado de miséria tão grande. Não é Deus, mas as sociedades que põemoportunidades diante de nós. Podemos ir para a direita ou para a esquerda, parar,recuar ou avançar. Tudo isto é possível. E isso eu penso que é uma coisa importante.Conto restituir este episódio, em algum lado, para mostrar como um historiador seencontra no presente. É certo que o nosso antepassado comum em relação a isto éMarc Bloch. O Marc Bloch de L’Étrange défaite para mim permanece um modelo. Querdizer, não é preciso estar sempre a fazer isso. Mas em certas alturas é preciso fazê-lo.O que é próprio do intelectual é ser específico. Ele faz as suas coisas, escreve, etc. Mashá momentos em que há quase uma necessidade de entrar no jogo e no debate.

Chegamos, então, ao “intelectual africano”. Gostaria de o ouvir sobre esta designação, tantomais que, no Verão de 2006, esteve no Brasil, em Salvador da Baía, e participou num encontro deintelectuais africanos. Assim, eu teria duas questões. Primeiro, será possível chegar a umadefinição de intelectual africano? É diferente de um intelectual europeu, por exemplo, e se sim,em quê? Segunda questão, como é que deve ser encarado este género de encontros?

Podemos começar pelo fim, porque de facto eu penso que esse meio, chamemos-lheassim, experimenta uma espécie de nostalgia, tem o sentimento de que num passado,que não está muito longe, quando os intelectuais se encontraram, alguma coisa sepassou. Do lado, digamos, africano a questão é um pouco mais ampla. Houve umencontro em 47, para fundar a Présence Africaine, depois em 56, em Paris, e depois em59. Depois houve as independências. Então eu tenho a impressão de que, quando se

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quer que o mundo mude, pensa-se: “Como antigamente as reuniões foram seguidas demudança, talvez que, repetindo uma reunião, ela seja seguida de umamudança.“Esquecendo que: 1 – a relação entre essas reuniões e essas mudanças nãoestá estabelecida; 2 – não é porque uma coisa se fez uma vez que, se a recomeçarmos,ela produzirá os mesmo efeitos. Esta é a primeira questão.

Intelectual é uma palavra muito complicada porque me parece que há um certo abusono seu uso. Por vezes o seu tratamento não é suficientemente rigoroso. Hoje, porvezes, quando se fala de intelectual, é para designar pessoas que têm diplomas. Mas,com o risco de confundir os experts, os profissionais e os intelectuais. Um bomprofessor de Filosofia ou de Etnologia não é forçosamente um intelectual. Um bomexpert do Banco Mundial, ou da EFAO, ou da OMS, não é forçosamente um intelectual.Portanto, é preciso ser diplomado para ser um intelectual? A resposta é não. É precisoter uma competência reconhecida em algum lado, suficientemente reconhecidasocialmente para que, graças a essa competência se possa intervir de maneiracredível e eficaz no debate social. Os diplomas não são necessários. É a competênciareconhecida no domínio. Eu diria que um bom romancista pode ser um intelectual.Um bom cineasta – por exemplo, Sembène Ousman: pode dizer--se que ele produzuma obra de intelectual porque os seus filmes colocam uma série de questões queinterpelam as pessoas. Há uma certa confusão em relação a isto. Eu penso que houvemomentos em que a intelligentzia foi muito activa em África. Foi o que aconteceu, porexemplo, nos anos 50; e pode-se remontar aos anos trinta, vinte ou até mesmo talveza 1900 ou 1880. Mas esse fenómeno da emergência dos intelectuais faz parte dosfenómenos acontecimentais. Não está na estrutura porque, por definição, aintervenção do intelectual dá-se sobre momentos precisos. Há momentos que osolicitam e momentos que não o solicitam. Ora, o momento actual solicita; asindependências, a situação crítica e tudo o que está à volta solicitam e muito. Mas,mais uma vez, muitas vezes aquilo que se vê é, acima de tudo, uma expertise, ouanálises profissionais, mais do que tomadas de posição propriamente intelectuais.Delas eu diria que são: 1 – desinteressantes; 2 – são suficientemente gerais para darconta daquilo que se passa; 3 – produzem efeitos.

E para o africano…

Aí há um problema porque, quando se diz intelectual africano, está a dizer-seintelectual originário de África. Ora, da maneira mais rigorosa, intelectual africanodeveria querer dizer aquele cuja intervenção diz respeito a África. Ora, África nãoexiste forçosamente. Um intelectual que contribui para construir essa África, porexemplo, em relação à questão da mundialização, pode dizer, “África”. Mas, essaÁfrica não é dada, é um discurso intelectual que vai tentar mostrar como, face aodebate sobre a mundialização, se pode falar de África; nessa altura, mais do queafirmar a sua existência, trata-se de colocar o problema. Será que estes intelectuaisafricanos, neste sentido, existem? Não me parece.

E se a designação for no sentido de afirmar a existência de um discurso especificamenteafricano? O discurso produzido pelos intelectuais africanos teria uma determinadaespecificidade. Aliás, é um pouco isso que diz Paulin Hountondji quando se refere a uma filosofiaafricana, a um paradigma de pensamento africano. Existirão categorias do discurso que possamser identificadas como estruturantes de um discurso africano? Isto relaciona-se com outraquestão: os estudantes africanos que vão para a Europa e para os Estados Unidos, e que assimoptam por uma educação ocidental, são obrigados a expressar-se em línguas que não são as

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suas, a usar aparelhos conceptuais que são os ocidentais. De que maneira podem fazer passar asua maneira de pensar? Como é que este imperialismo das línguas deve ser visto?

Eu penso que o que define essa africanidade não serão as categorias nas quais sepensa, mas as questões que se colocam. Mas também o facto de o intelectual se dirigira alguém, o público a que se dirige e os factos que se investigam. Primeiro asquestões, depois o público, que portanto determina o compromisso e os factos que seinvestigam – os factos sobre África ou sobre o que toca a África. Quanto à questão dalíngua, eu acho que é empolada. Aliás, pergunto-me se essa não será uma questãofrancófona, porque é verdade que não se constrói o discurso da mesma maneira,dependendo se se fala em tal ou tal língua, mas eu consigo desenvencilhar-me. E, paraisso, vou dar um exemplo. Há dois anos o governo congolês tinha decidido proclamarPatrice Lumumba e Laurent Désiré Kabila heróis nacionais. Tomaram a decisão e paraisso foi necessário justificar intelectualmente a decisão. Então fez-se apelo aoshistoriadores. Primeira coisa: a maior parte dos historiadores não respondeu aoapelo, precisamente porque tinha uma concepção de História que é catedrática,universitária: “Essas coisas são política, não são para nós”. Eu fui com um outrocolega, e fizemos o nosso discurso em francês. Começa o debate, e uma mulherdeputada quer fazer uma intervenção. Começa a falar em francês, mas depois diz queé complicado o que tem para dizer e pede-nos para falar em lingala. “Com certeza,diga”. Bem, ela falou em lingala e era necessário responder-lhe. Então eu respondi emlingala. Mas, num discurso em Nova Iorque ou em Paris, eu não falaria assim.Portanto, eu fiz esta explicação muito longa para explicar em lingala o que é um lieu

de mémoire, porque precisamos de um lieu de mémoire e porque é que se faz certaescolha em detrimento de outra. Esta conferência foi difundida em lingala por todo oCongo e a reacção que obtivemos foi fabulosa. A questão dos jornalistas que nostinham acompanhado era: “Os professores da Universidade também falam lingala”. Aspessoas estavam espantadas. É o discurso profano. Mas, quando olhamos bem,reconhecemos estes perfis de intelectuais. Veja alguém como Amadou Hâmpaté Bâ,Ki-Zerbo e muitos outros, como Ajoyi na Nigéria. São pessoas capazes de dizer ascoisas nas suas línguas, mas de as dizer de outra maneira, porque mesmo assim hápatrimónios culturais. Os procedimentos, a retórica para convencer as pessoas queprocedem da mesma maneira numa sociedade x ou numa sociedade y. Eu diria quebasta sabê-lo e ser capaz de balançar entre um e outro. Quando se faz um semináriode investigação e quando nos dirigimos a alunos da escola primária, não estamos afazer exactamente a mesma coisa. E os grandes historiadores, os grandes professoressempre o souberam fazer.

Como é que vê o panorama académico africano? Existe uma desigualdade? Que centrosacadémicos destacaria?

Há uma desigualdade muito grande e uma situação que eu diria que é bastanteinquietante. A desigualdade faz com que certos pólos funcionem bem ou bastantebem. Se olharmos para a África do Sul, o Gana, a Nigéria, em parte, e outros, as coisasanda bem. Há permutas, debates, publicações que se fazem, por conseguinte as coisasandam. E depois há lugares que estão completamente desmoronados. Na RepúblicaCentro-Africana, no Chade, não há nada. E depois, a maioria dos países está num“entre dois”, onde as coisas às vezes não funcionam por razões financeiras, às vezespor razões políticas. Isso parece-me ser bastante inquietante e é necessário evocar averdadeira extorsão que a maior parte dos países do Norte faz sobre os Estadosafricanos. Não deixo de ficar perturbado quando verifico como as universidades

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nigerianas durante um dado período foram esvaziadas, em grande parte, dos seusintelectuais e nomeadamente dos seus historiadores. Pode-se pensar que auniversidade de Dacar teve o mesmo destino, e hoje talvez esteja a recuperar. Issoparece-me ser muito grave e interrogo-me quando é que o movimento começará afazer-se no outro sentido. Bem, começou em parte a fazer-se. Se posso citar o seunome, Paulin Hountondji voltou a África, primeiro ao Zaire e seguidamente ao Benim.Penso que, se muitas pessoas começarem a fazer este mesmo movimento de maneiradefinitiva ou temporária, isso pode contribuir para equilibrar muito as coisas; eumesmo, quando tomei consciência desta situação desequilibrada, decidi que eranecessário que, de uma maneira ou outra, encontrasse o meio para ir ensinar emKinshasa. Faço-o porque no momento em que tomei essa decisão, há três anos, nodepartamento de História, no primeiro ano, havia um ou dois estudantes. Depois demuito trabalhar, neste ano de 2006-2007, conseguimos através de concursos, porconseguinte eliminando, reter cerca de trinta estudantes. Não é mau. No próximo anochegaremos a 50...

Quando se fala das universidades em África, ouve-se muitas vezes dizer: “Sim, muito bem, masnão existem os meios – como é que se formam alunos sem bibliotecas, por exemplo?”. Como éque encara este género de críticas?

Bem, a combinação entre interior e exterior faz com que se vá fazer como quando asuniversidades americanas nasceram. Os professores que vinham do estrangeiro parafazer os seus cursos criavam as bibliotecas desse curso e vinham com o queprecisavam. Isso quer dizer que, se não há muito dinheiro, é a nós, a mim, a quem vaidaqui, que cabe levar a ferramenta necessária para construir. E aí, estou certo quefuncionaria, quando vejo as reacções de certos bancos, certos homens de negóciosque estariam prontos a dar quinhentos, seiscentos dólares para adquirir as obrasbásicas. De resto, sonho com o dia em que, quando já cá não estiver, a minhabiblioteca venha a ser dada a uma instituição universitária. É claro que a sua vocaçãoé essa.

Quais serão os efeitos actuais da História colonial? Depois das colonizações e dasdescolonizações, como é que se pode pensar a presença das comunidades africanas na Europae nomeadamente em França?

Já durante a colonização, os colonizados começaram a viver em França e essemovimento prolongou-se após a colonização; outras pessoas vieram, quer dosdepartamentos ultramarinos ou dos territórios ultramarinos franceses, quer doantigo império francês, quer de outros territórios africanos. Então isso acabou portrazer grandes problemas porque as pessoas que viviam aqui começaram a colocar-sequestões. As crianças iam à escola, e os próprios africanos não percebiam muito bemcomo é que estavam aqui e as pessoas lhes continuavam a perguntar: “De onde vem,porque está aqui?” E o trabalho da memória foi algo de fabuloso porque entre osafricanos se começou a evocar o passado, dizendo: “Estamos aqui por causa dacolonização”; enquanto na minha geração se dizia: “Estamos aqui devido a Lumumbae não voltaremos”. E depois as pessoas diziam: “Não ficaremos aqui pouco tempo.”Começou-se a falar da colonização e seguidamente da escravidão; em 1981, quandoFrançois Mitterrand tomou o poder, este debate começou em França, mas ao mesmotempo, nos departamentos ultramarinos; então apercebemo-nos de que as pessoascomeçavam a falar de escravidão. Aqui, em França, houve muitos problemas porquequem saía dos departamentos ultramarinos, que são procedentes da escravidão,considerava que a França metropolitana e “os africanos” eram identicamente

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responsáveis pela sua escravidão. Nós, os outros africanos, tentávamos explicar queos africanos entraram na máquina infernal da escravidão, eu diria, obrigados eforçados. Por conseguinte, se se coloca o problema da escravidão, há várias maneirasde o pôr e uma das maneiras de o fazer é a partir, eu diria, das duas extremidades dacadeia: a extremidade que iniciou o processo e a extremidade que beneficiou doprocesso, deixando entre parênteses os anéis intermédios sobre os quais discutireimais tarde. Este debate, importante, correspondeu de resto aos debates que tiveramlugar ao mesmo tempo nos Estados Unidos, na América do Sul, nas instituiçõesinternacionais, nomeadamente a UNESCO, com o projecto A rota dos escravos.

Finalmente, é necessário reconhecer que o meio associativo francês se bateu muitobem, já que de degrau em degrau se chegou ao momento em que um deputadooriginário da Guiana ousou apresentar um projecto de lei sobre a escravidão. O que sepassou como desafio de memória é interessante porque, com efeito, este projecto nãofoi discutido. Não houve debate, nem sobre a História nem sobre a memória, e assimformou uma maioria para dizer sim à lei. Era uma maneira – como se diz em francês –de botter en touche. Não se discutia e acabava-se com o problema. Então pedimos que,dado que se reconhecera que era um crime e que era necessário repará-lo, arepresentação do passado da França, isto é, os cursos de História, os cursos deFilosofia, o curso de Literatura, deviam integrar estas dimensões da História. Ora, ocombate continuou de maneira sub-reptícia porque este assunto não foi cuidadoquem estava contra esta lei; encontrava o meio para responder fazendo votar aítambém uma lei que declara que a colonização teve aspectos positivos. Se acolonização teve aspectos positivos, teve-os em relação a quê? positivos em relação aoestado das sociedades africanas antes da colonização? Ora, nós defendemos a ideia deque o estado das sociedades africanas, antes da colonização, se explica em parte pelaescravidão. Por conseguinte era uma maneira de apagar esta questão. E sabe que adinâmica em questão é extremamente interessante. Quando se discutia esta lei sobrea colonização, arderam dois edifícios em Paris, com africanos no seu interior, o quelevou a que as pessoas começassem a dizer: “Aí está, temos de facto um problema, umproblema de memória, de História, um problema de discriminação”. Os que estãocontra nós dizem que queremos fazer o comunitarismo. Ora, nós, que trabalhámossobre as etnias, sobre as nações, sobre povos, sabemos que os africanos em Françanão formam uma comunidade, nem de língua, nem de religião, nem de origem, nemde cultura. Formam um todo, na medida em que vieram por serem vítimas dediscriminação, uma discriminação memorial e económica. Portanto, para fazer comque não haja comunitarismo, é preciso lutar contra as discriminações. Se nos cursosde História e de Geografia se integrarem as tomadas de posição de Montaigne sobreos indianos e os africanos, em vez de se falar dele apenas como o pensador dosEnsaios, etc., e se em vez de se dizer o Grande Século de Luís XIV, se disser, sim é oGrande século de Luís XIV, mas ele tratou mal os protestantes e os Africanos, etc., nãohá mais comunitarismo. Este é um combate extremamente apaixonante porque aFrança está a descobrir que a nação, assim como as etnias, são processos, produções,pode-se mesmo dizer, invenções (risos) e, portanto, podem aí ser injectadas novasquestões. Então, estamos a dizer a mesma coisa que para África. O que é quequeremos fazer com estas colectividades que aí estão? Desta maneira, damo-nosconta de que a questão da especificidade africana é relativa.

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A Academia Francesa está atenta?

Aí há uma dificuldade porque o meio académico francês pensa que há umaespecificidade da França. Estamos numa situação que é estranha e absolutamenteescandalosa, que é esta: se virmos o volume de cursos de História e de investigação deHistória a nível superior – mas o mesmo é verdadeiro ao nível secundário – damo-nosconta de que 95% das investigações de História e do ensino de História incidem sobrea França e o seu lugar na Europa, e o resto do mundo é remetido para as margens dasociedade. Eu e os meus amigos, que ensinamos estas outras coisas, somos um poucoumas curiosidades nesta paisagem onde há vinte cursos sobre a Revolução Francesa,que frequentemente dizem a mesma coisa, enquanto sobre as Antilhas é precisomuito tempo até encontrar um, e sobre África nem se fala.

Isso é verdade, mas, de qualquer maneira, com toda a polémica à volta da lei Taubira, verificou-se uma produção imensa de bibliografia sobre temas coloniais. A certa altura, a impressão quedava era que se tratava de aproveitar um momento do mercado. Avançou-se de facto no debate?

É isso, há um efeito um pouco comercial. Havia um debate e era necessário publicarmuito. Publicou-se um pouco de tudo, com carácter de urgência. O debate na verdadenão teve realmente lugar porque foi recuperado por outros debates. Estes debatessobre o tráfico dos escravos e a colonização, foi submergido pelo debate sobre anação, a identidade nacional, o comunitarismo. Mas o que é bom e que permanece éque as questões ficaram na sociedade. As pessoas continuam a colocar-se questões, oque quer dizer que seremos obrigados de uma maneira ou de outra a responder.

Tive uma prova disso, quando, em 2001, sensivelmente, o número de conferências, dereuniões e de encontros sobre essas temáticas abundava, e isso em toda a França. Nãoé um fenómeno parisiense é um fenómeno geral. Uma das perguntas que me coloco éesta: será que noutros países da Europa existe este tipo de processo, em Inglaterra, naAlemanha…

Aproximemo-nos agora da África lusófona. Um vez que tem muito contacto com o meioacadémico português e também com os PALOP, conhece a colonização portuguesa? O que é quepensa acerca do processo colonial português? Será possível afirmar uma especificidade dacolonização portuguesa, que alguns apelidariam de colonialismo doce, relativamente às outrascolonizações europeias?

Se há uma especificidade no colonialismo português eu diria que é a seguinte:começou cedo e terminou tarde. Há sempre alguns elementos, isto é, as culturasnacionais em dados momentos interferem no processo de colonização. Mas eu não ocreio, porque na minha infância havia muitos angolanos que tinham fugido de Angolapara ir para o Congo, e nós achávamos que o Congo, na época dos belgas, era duro.Por conseguinte, se os angolanos fugiam de Angola, era porque havia aí problemas.Esta é a primeira questão. A segunda coisa que é desconcertante é que também haviaportugueses que fugiam de Angola para o Congo. E esses portugueses vinham para oCongo, onde a colonização era racista, é claro. Estes portugueses eram consideradospelos Belgas como “petits blancs” e viviam connosco no bairro africano; onde eu viviahavia portugueses ao lado. E de resto no nosso vocabulário em lingala e kikongomuitas palavras que utilizamos vêm do português. Por exemplo, “arroz” diz-se“roso”, “mesa” diz-se “messa”, “vinho” diz-se “vino”, etc. Portanto, alguns grupos deportugueses que estavam em África e que conhecemos em meados do século XX erampessoas que eu diria que estavam fora da rede colonial, eram homens como todos osoutros. Isso fazia com que, visto a partir do Congo, as pessoas se impressionassemcom o facto de os Portugueses não se comportarem como os outros brancos, entenda-

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se colonizadores. Mas, no que toca ao sistema colonial, eu penso que é uma“colonização”, sabendo, de resto, que a colonização se alterou de acordo com asépocas. Assim, não há uma colonização francesa, oposta a uma colonização inglesapor sua vez oposta a qualquer coisa. Essa oposição faz-se frequentemente fora deÁfrica, é a representação que as elites coloniais têm, mas vê-se que muda de acordocom as épocas. Em certas épocas a colonização é feroz, noutras é distendida. Aevolução dos regimes políticos na metrópole induz consequências, sem que se possadizer que o salazarismo em Portugal tenha produzido necessariamente umacolonização mais dura que a das democracias. Porque, afinal, a Inglaterrademocrática é que vai fazer a terrível guerra dos Mau-Mau, a França republicana éque vai fazer a guerra da Argélia, a guerra nos Camarões. Por tudo isto, não creiomuito nessa especificidade.

Sim, essa leitura está muito relacionada com o discurso luso-tropicalista…

Esse discurso coloca, mesmo assim, problemas face a certas questões. Se olharmos acolonização francesa, por exemplo, no fim do Antigo Regime, nos anos 1740, 1780,constata-se na França uma obsessão pela corrupção do sangue francês ou do sanguedos franceses, pela mistura dos sangues, com uma política explícita de proibição doscasamentos com pessoas de cor. O que se vê na colonização portuguesa é que porrazões sobre as quais se pode discutir, não se verifica esta proibição. Eu penso queeste é um aspecto extremamente importante e que, visto de África, sempresurpreendeu, porque a importância deste grupo de mestiços, que são diferentes dosmestiços do Cabo e da África do Sul, mostra-o. Sim, é uma colonização que de certamaneira é mesmo assim singular, porque isto existe. A ideia que era doce, bom… Massabe que neste debate há também as pessoas que dizem que a colonização inglesa eramelhor que a francesa porque os ingleses mantinham as línguas, as culturas e oscostumes locais, enquanto os franceses os suprimiam. É uma maneira absurda depensar que os costumes, as línguas, as tradições podem ser conservados, como seguarda o vinho numa garrafa, quando, de facto, se trata de processos. E também sepoderia acusar a Inglaterra de ter folclorizado, fixado, endurecido um certo númerode aspectos que eram pontuais; de ter criado uma espécie de essência, enquanto nocaso dos países que “assimilaram”, o que se verifica é que a “assimilação” não erarealmente completa, porque os chefes, os sábios, os féticheurs, enfim, todas estaspessoas, na verdade, continuaram a trabalhar.

Essa continuidade das estruturas ditas pré-coloniais permite que se faça a ponte com aactualidade. Hoje, quando se fala dessa África global, ouve-se dizer que “África tem um défice deEstado, de implantação do Estado”. Ao mesmo tempo, em alguns países realizam-se encontrosou assembleias de autoridades tradicionais. A visão é no mínimo estranha, quando os chefestradicionais se vêm reunir à volta do chefe de Estado. Dá para perguntar qual é a tradição queaqui está em jogo e qual é a diferença entre o poder do chefe de Estado e o poder reivindicadopor (e ao mesmo tempo solicitado a) estas autoridades. Haverá uma verdadeira possibilidade dediálogo entre os novos Estados africanos e estas formas políticas, que se dizem a si mesmas,formas políticas pré-coloniais? Quais as possibilidades deste diálogo?

A verdade é que esse diálogo a mim me perturba. Primeiro porque as autoridadestradicionais não são todas tradicionais. Algumas, e isso é o produto da História, são àsvezes muito recentes. O segundo ponto é que, nestas autoridades ditas tradicionais,algumas têm um poder, para usar uma palavra neutra, um poder espiritual,simbólico, religioso, ou outro, que lhes permite ter uma influência sobre a sociedade;outras não têm estritamente poder algum fora do folclore. Onde, mesmo assim, eu

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vejo uma questão é nisto: estamos agora em regimes democráticos onde alegitimidade do poder procede da escolha dos cidadãos. Portanto, se se trata de opoder, saído das urnas, procurar não se sabe o quê – talvez legitimidade, maisengenharia social ou outra coisa – junto do poder tradicional, isso quer dizer que háalgo que não está bem. Se, pelo contrário, pensamos que, tendo em conta aexperiência de África e a experiência de outros países, a democracia não tem sentidoa não ser se for articulada com as práticas sociais locais, aí estou acordo, mas nacondição de esse diálogo não se limitar aos chefes, mas inclui também as associaçõesde partidos, etc. Se é isso, de acordo, mas se é um face-a-face entre o poder ditomoderno e o poder dito antigo, deve-se temer que haja, em poucos tempo, umaconfiscação da legitimidade por parte de um grupo pseudo-tradicional e portantomoderno que então nos conduzirá. Isso pode agradar a pessoas que procuram aespecificidade africana e isso é claro em países onde há analfabetismo, credulidade esuperstição. Isso quer dizer que a democracia representativa será uma casca vazia etambém que as pessoas eleitas vão utilizar a credulidade popular para fazer, mais oumenos, não importa o quê. Portanto, pessoalmente confesso que sou contra esse tipode coisas. Se os chefes, quer dizer, as pessoas que têm a autoridade tradicional, têmuma influência real, bem, procura-se um meio. Não sei. Afinal, no passado africano,que conhecemos, a sua história e não a lenda, os chefes eram designados; entãoporque não designá-los? Restitui-se uma dimensão democrática à base. Se as pessoasprocederem a eleições ou modos de designação, podem-se discutir os detalhes. Emcertos casos, seriam mais designações por notáveis, novos ou velhos, do melhor deentre eles. Noutros, o sufrágio universal. Aí, penso que há uma forma de Estado e dedemocracia a inventar. Sobre isso estou certo. Assim, estou convencido de que, e nãosei por que meio, como houve dinâmicas sociais que a colonização não controlou eque os Estados modernos não controlam, as fronteiras dos Estados africanos se vãomover; aliás só se podem mover.

Precisamente para acabar, queria saber como é que olha hoje o futuro do continente africano.Tomando o exemplo das fronteiras, entre outros, como é que vê a sobrevivência do legadocolonial?

Eu penso que haverá mudanças, ainda que hoje os Estados, as elites intelectuais eoutros se prendam a estas fronteiras porque há considerações demográficas,ecológicas; há apetites de poder entre os Estados e há também as dinâmicas locais.Tomo o exemplo da África que conheço. Na fronteira entre Angola e o Congo, ondeestá a fronteira? São as mesmas sociedades. Esta fronteira tem um sentido ou umalógica? Na fronteira do Congo Democrático e do Congo Brazzaville, há um rio. Ora,todos sabemos que à noite as pirogas transitam por este rio, num sentido e noutro. Deresto, viu-se que em 87, quando Kinshasa estava bloqueada pela guerra, o tráfegoentre os dois Congos se fez através das pirogas, como acontecia em 1800 ou em 1780.Penso que isso vai mudar, e é bom que mude. O problema é saber que direcção vaitomar essa mudança. O puzzle irá constituir-se à volta de pequenas unidades pseudo-tribais, ou, de facto, serão novas nações que se constituirão? Poder-se-á promover umprocesso mais virado para as grandes estruturas? Eu, como intelectual, e acreditandoque a África é uma construção, penso que podemos construir nessa direcção, eapostaria em estruturas relativamente largas. Por conseguinte, os Estados. Um Estadocomo Angola, talvez um pouco maior que Angola, que suporia uma articulação de umaparelho de Estado e de um poder central com unidades locais, onde a vida real daspessoas se organizasse. Apostaria antes nisso, mas isso só é possível se o poder, as

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elites, os arquivistas que trabalham em África, tiverem uma ideia clara do quequerem para o continente, ou seja, se tiverem uma ambição, para aquilo que pode sera África de amanhã, dos caminhos que podem tomar, sabendo que não se podereconstruir o passado e não se pode repetir o que os outros fizeram. Para umhistoriador é fabuloso, é necessário inventar o futuro.

Depois da realização desta entrevista, um novo acontecimento veio reacender a reflexão acercada relação que a Europa, ou uma certa Europa, insiste em manter com África: o discurso queNicolas Sarkozy dirigiu à “elite da juventude africana”, na Universidade de Dacar, no Senegal, a 26de Julho de 2007. As reacções surgiram em catadupa, da parte de vários sectores intelectuais.Quer também deixar aqui o seu comentário sobre o episodio “Sarkozy em África”?

O discurso de Sarkozy em Dacar é um monumento fabuloso que seria necessário daraos alunos e estudantes africanos para que o dissecassem, porque nos revela coisasextraordinárias sobre o nível de conhecimento que alguns homens de Estadoeuropeus têm sobre as questões africanas, sobre a sua visão actual, no ano de 2007, daÁfrica de hoje e da África de ontem e sobre esta espécie de audácia e de inconsciênciaque faz com que, perante os Africanos, se deixe de temer o ridículo. Como é que, hoje,ainda é possível sustentar um discurso que trata do “homem africano”? Mas, afinal, oque é o “homem africano”? Sobretudo se for distinguido, como declarou NicolasSarkozy, pelo facto de estar fora da História e de, de dia para dia, de ano para ano, deuma geração para outra geração, repetir as mesmas coisas! É extraordinário.

É tanto mais perturbador quanto, entre os antigos países colonizadores, a França éum daqueles em que as investigações sobre o passado de África e sobre as dinâmicascontemporâneas em África foram levadas mais longe. Apesar de tudo, estamos nopaís de Yves Coppens, de Georges Balandier, de Yves Person, para citar apenas estesnomes. Estamos num país onde brilhantes investigadores do Senegal, para não falardo Dahomé, e dos Camarões defenderam, durante mais de cinquenta anos, tesesfundamentais sobre África, publicadas em França por editores franceses. Estamos nopaís onde, em 1885, um Anténor Firmin publicou, contra Gobineau (cujo ensaio De

l’inégalité des races humaines acabava de ser reeditado), um livro de rara densidade, De

l’égalité des races humaines. A coisa mais extraordinária, e que nos dá que pensar, é estaignorância beata e a mediocridade satisfeita com que se comprazem os homens deEstado face às produções intelectuais que os seus próprios governos continuam afinanciar.

E que audácia! Ir a Dacar, uma das capitais intelectuais e artísticas de África e domundo, entrar na Universidade que ostenta o nome de Cheikh Anta Diop, hoje ohistoriador mais famoso do continente africano, para dar uma lição aos Africanos eexplicar-lhes que o problema deles é o facto de nunca terem estado na História. Umaproeza como esta supõe uma mistura única de ignorância, de inconsciência e de gostode provocação.

Eu olho para tudo isto com o sorriso de quem se diverte. É um ar conhecido. Mas eisque a este sorriso se junta a perplexidade. Até onde é que é preciso ir para encontraras raízes, a arqueologia de um tal discurso? Certamente não a Montaigne, nem aRabelais, nem a Bosman, nem a Hegel. Não, fiquemos na República francesa com assuas ambiguidades mal assumidas e sem cessar e/ou sempre reprimidas e este hábitoterrível de se demitir da sua parte de responsabilidade em África, em relação aosoutros, em relação aos Africanos. Há cerca de 150 anos, uma vez o tráfico de escravosabolido, muito bons republicanos esqueceram o papel da França neste acontecimento

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sinistro. No momento em que apenas se trata de colonizar África, é necessáriojustificar o “direito de colonizar”, isto é, “o dever de colonizar”, como hoje se diz o“direito de ingerência”, “o dever de ingerência”. Alguns espíritos iluminados põem-seentão a falar da escravatura, mas da “escravatura africana”, daqueles flagelos que osafricanos se teriam infligido a si mesmos e que teriam entravado a sua caminhada emfrente, bloqueando assim o progresso geral da humanidade. Sarkozy é, sob este pontode vista, o digno herdeiro de Victor Hugo, o grande republicano. Em 1879, os Negros,mestiços e os “amigos dos Negros”, presentes em Paris, reuniram-se num granderestaurante para comemorar o 31.º aniversario da abolição da escravatura e deram apalavra a Victor Hugo, reputado “amigo dos Negros” e encarregado de presidir a estebanquete humanitário. Hugo atira-lhes à cara frases terríveis, de que o discurso deSarkozy é, praticamente, um decalque: África Portentosa, a África filha do horrorabsoluto e mãe do horror absoluto. A África, fardo da Humanidade; a África, esse“Cam” que impede “Sem” de realizar as suas proezas; a África que nada produziu naHistória porque sempre esteve fora da História. Sustentar tais propósitos no pais doabbée Gregoire, de quem se conhece o famoso livro De la litterature des Nègres, éexactamente o mesmo que ir ao país de Senghor e de Cheick Anta Diop, tendo deitadopara o lixo os ensinamentos do saber universitário francês.

Racismo, como nos amarras ! É preciso confessá-lo: no fundo de tudo isto, jaz de facto,o racismo, este racismo republicano que nunca foi ofuscado pela conjugação conjuntada retórica dos direitos do homem e do discurso da fraternidade com odesconhecimento, o desprezo mais brutal e a opressão do Outro, por mais que elehabite um outro continente e que tenha uma outra cor de pele, “o homem africano”.

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Entrevista a Sanjay SubrahmanyamÂngela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos

1 Sanjay Subrahmanyam, Professor e Director do Center for India and South Asia na

Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) desde 2004, fez os seus estudos em NovaDeli, na University of Delhi e na Delhi School of Economics, onde leccionou até 1995.Nessa altura integrou a École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, comoDirecteur d’ Études, e tornou-se, em 2002, Professor na Universidade de Oxford. Étambém Joint Managing Editor da Indian Economic and Social History Review (Nova Deli).

2 Os seus livros e inúmeros artigos, publicados nas mais diversas línguas, abordam

matérias tão vastas quanto a história económica e comercial, as relações entre ahistória política e económica, a análise da cultura política e a história cultural, econtemplam múltiplas experiências imperiais – desde a portuguesa e espanhola, àbritânica, passando pela mongol – e um espectro amplo de fontes e de arquivos. Aeconomia política dos impérios, os comportamentos dos agentes envolvidos emexperiências imperiais, o papel dos discursos nas construções identitárias, a construçãoda memória histórica (quer por parte dos agentes históricos, quer pelo própriohistoriador), as articulações que se podem estabelecer entre processos históricos comgeografias distintas são alguns dos temas sobre os quais a sua investigação temincidido. Livros em língua inglesa: The Political Economy of Commerce: Southern India,

1500-1650 (Cambridge University Press, 1990); Improvising Empire: Portuguese Trade and

Settlement in the Bay of Bengal, 1500-1700 (Oxford University Press, 1990); com V. NarayanaRao e David Shulman, Symbols of Substance: Court and State in Nayaka-period Tamilnadu

(Oxford University Press, 1992); The Portuguese Empire in Asia, 1500-1700: A political and

economic history (Longman, 1993); com Muzzafar Alam, The Mughal State, 1526-1750

(Oxford University Press, 1998); The Career and Legend of Vasco da Gama (CambridgeUniversity Press, 1998); Penumbral Visions: Making Polities in Early Modern South India

(University of Michigan Press, 2001); com V. Narayana Rao and David Shulman, Textures

of Time: Writing History in South India, 1600-1800 (The Other Press, 2003); Explorations in

Connected History (Vol. I – Mughals and Franks, Vol. II – From the Tagus to the Ganges). Livros em português: Comércio e Conflito. A presença portuguesa no Golfo de Bengala

(1500-1700) (Lisboa, Ed. 70, 1994); O Império Asiático Português (1500-1700). Uma História

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Política e Económica (Lisboa, Difel, 1995); A Carreira e a Lenda de Vasco da Gama (Lisboa,CNCDP, 1998)

Ângela Barreto Xavier e Catarina Madeira Santos – O seu interesse pelo estudo dahistória – e da história imperial, nas suas várias facetas – manifestou-se muito cedo? Temmemória de como é que isso aconteceu? Está relacionado, de algum modo, com a sua históriapessoal?

Sanjay Subrahmanyam – A minha família era de burocratas, inicialmente burocratase funcionários coloniais que trabalhavam para os britânicos e – a partir da geração domeu pai e com os meus irmãos – burocratas que trabalharam num quadro nacional (e‘nacionalista’) nas áreas da defesa e da diplomacia. Em minha casa houve sempreinteresse pela história, sobretudo pela história política e militar, bem como porestudos de estratégia. Era sobretudo esse tipo de livros que se encontrava nasestantes lá de casa, para além de teatro e de ficção. Um dos meus irmãos mais velhos,por exemplo, estava fascinado por Napoleão. Mais tarde, na universidade,desenvolveu um profundo interesse pela história social britânica (de esquerda), dotipo daquela que era feita por Christopher Hill e os seus discípulos, acabando porseguir, porém, a carreira diplomática. O meu interesse pela história remonta aoensino básico (entre os 10 e os 12 anos), quando tive uma professora excelente queensinava muita história colonial. Esse interesse desvaneceu-se durante cerca de dezanos, altura em que iniciei um mestrado na Delhi School of Economics. Entretanto, asminhas preferências iam para a matemática e para a literatura, muito embora a partirdos 16 anos estivesse sobretudo concentrado em estudar Economia. Mas, a partir dosanos 80, duas influências tornaram-se decisivas. Uma foi a do meu tio materno, J.Krishnamurty, historiador económico que trabalhava sobre a Índia colonial,principalmente sobre questões demográficas e do trabalho. A outra foi a dos meusprofessores mais importantes, Dharma Kumar e Om Prakash. Om Prakashfamiliarizou-me com a história do comércio e do Oceano Índico. Ele próprio começaraa trabalhar nos arquivos da Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC) sob adirecção de Tapan Raychaudhuri (também na Delhi School of Economics), e o seugrupo de amigos incluía Ashin Das Gupta, Michael Pearson, John Richards, S.Arasaratnam, Anthony Disney, e outros. Foi então que comecei o meu mestrado, mastinha grandes dúvidas acerca da Economia, disciplina na qual me tinha licenciado. Erabastante bom, sobretudo na Microeconomia (e tinha começado a aventurar-me nateoria dos jogos), mas acabei por optar especializar-me em economia política e emhistória económica. Quem me encorajou a deixar a economia pura e dura foi DharmaKumar, mais conhecida pelo seu trabalho na história económica do Sul da Índia noperíodo colonial. Foi também ela quem me persuadiu a ficar na Índia para fazer omeu doutoramento, em vez de ir para o Reino Unido ou para os Estados Unidos (comooutros colegas meus). Foi o que aconteceu, tendo terminado a tese em Delhi, em 1986,recebendo o grau de doutor em 1987.

Até que ponto foi permeável – como alguma juventude e intelectualidade indiana –, às ideiasmaoístas da vizinha China, ao marxismo da URSS, ou até mesmo aos discursos críticos nasenda do Maio de 68? Teve algum envolvimento político no seu percurso ou fez-se, por assimdizer, à margem da política?

Era muito novo para sentir a influência directa do momento maoísta na Índia. Essa foia geração anterior à minha, a de Partha Chatterjee, ou do meu grande amigo, agoraem Paris, o historiador da ciência Kapil Raj. Quando eu estava em plena adolescência,já a paisagem política era diferente. Os esquerdistas estavam a cair em descrédito,

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especialmente o Partido Comunista da Índia (marxista), devido à rigidez estalinista doseu posicionamento. E a violência revolucionária defendida pelos maoístas (na Índiadenominados Naxalitas) não era de todo atractiva. Cortar as mãos e as cabeças daspessoas em resposta a feudos locais, e em nome da luta de classes, foi aquilo em queprincipalmente se tornou. Nos finais dos anos 70, muitos daqueles que seautodesignavam maoístas já não tinham reflexão ideológica de facto (e, muito menos,sofisticada). Em todo o caso, alguns amigos meus faziam parte desse meio. Creio,contudo, que o momento político para as pessoas do meu grupo foi o estado deemergência por dois anos, declarado por Indira Gandhi em 1975, o qual marcou atodos pelo que significou de suspensão da democracia, dos direitos humanos, e porcausa do programa brutal de esterilização forçada dos pobres das cidades. Apesar deter 14 ou 15 anos, lembro-me de fazer parte de um grupo da escola secundária que sepronunciou sobre isto, juntamente com o meu grande amigo Kapil Paranjape, hojeum dos matemáticos mais conhecidos da Índia. Mas o meu ponto de vista, como odele, creio, era mais liberal do que marxista.

A partir do momento em que me tornei historiador profissional, deixei de estarenvolvido em política. Contudo, já escrevi várias coisas que tiveram um sentido ouimplicações políticas, sobretudo em artigos publicados na imprensa indiana (no Times

of India, no India Today ou no Outlook) ou em aparições ocasionais na televisão indiana(como aconteceu para discutir com um político da extrema-direita sobre a naturezado nacionalismo indiano). Nestes contextos, os marxistas ortodoxos gostam de mecaracterizar como um hindu de direita, enquanto os nacionalistas hindus meconsideram marxista… Finalmente, fui atacado por fundamentalistas hindus, os quaisme acusam de ser pró-islâmico, e por alguns anti-modernistas (como os discípulos doguru indigenista Ashis Nandy), por ter criticado as suas posições em relação aosecularismo e outras questões. Ninguém pode escrever uma história completamentelivre de implicações políticas. Em todo o caso, procuro diferenciar os meus escritosmais “populares” daqueles que são mais académicos, relegando para os primeiros osargumentos de natureza política. Mesmo assim, por vezes as coisas confundem-se.

Se lhe pedíssemos para referir as suas afeições intelectuais, que nomes seleccionaria?

É uma lista muito eclética. Se penso naqueles que admiro desde há muito tempo,incluiria nomes como Voltaire (de quem era grande admirador na adolescência),Gogol, algum Flaubert (L’Education Sentimentale em particular), G. K. Chesterton, AkiraKurosawa, Vladimir Nabokov, Jorge Luis Borges, mas também o primeiro John Barth.Isso no que diz respeito a figuras da literatura. A partir de um ângulo diferente,acrescentaria o Joseph Schumpeter. No que diz respeito a pessoas que conheço deperto, e que exerceram uma grande influência intelectual sobre mim, referiria AshinDas Gupta, Velcheru Narayana Rao, Muzaffar Alam e David Shulman. Maisrecentemente conheci pessoalmente Carlo Ginzburg, cuja clareza e rigor admiro.Aprendi imenso, também, com Serge Gruzinski, sobretudo para a análise da culturavisual. Quando era mais novo, fui muito influenciado pelo método filológico ehistórico de Luís Filipe Thomaz e de Jean Aubin. Antes de os conhecer bem, um dosencontros mais cruciais da minha vida aconteceu em 1983, em Goa, com GeoffreyParker. Tive um grande choque quando me explicou a quantidade de arquivos queconhecia e dominava, tendo estabelecido para mim um novo patamar de excelência ede amplitude de horizontes. O já desaparecido Friedhelm Hardy, em relação a quemdiscordei sob muitos aspectos, ensinou-me imenso sobre como trabalhar fontes

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textuais, a partir da sua perspectiva de historiador das religiões da Índia. Do outrolado do espectro, e se quiser ser completamente justo, tenho de admitir a minhainclinação por Charles Boxer, que conheci nos últimos anos da sua vida. Outrohistoriador que me influenciou pela amplitude da sua visão, e que me encorajou aaventurar-me noutras direcções foi Chris Bayly, nos anos 80, assim como DenysLombard, quando me levou para Paris. Trata-se de uma colecção bastante eclética,mas pode-se ver que uns quantos – mas não todos – têm uma tendência pronunciadapara projectos macro-históricos.

No século XVI, Erasmo de Roterdão gostava de ser visto como “cidadão do mundo”, e no séculoXVIII os filósofos das Luzes faziam a apologia do cosmopolitanismo. Estas duas imagensinformaram muita da imaginação intelectual europeia. Quem apresentaria, do mundo ondenasceu, como alternativa a estes ícones da cultura intelectual europeia?

Erasmo e os filósofos das Luzes tiveram a vantagem de terem sido universalizados,pelo que se tornaram, pelo menos na aparência, património de todo o mundo. Asgrandes referências da tradição filosófica da Índia não nos são acessíveis, em partepor razões da língua, ou porque são de imediato percebidas como obscuras eprovincianas. Mas, se olharmos para um conjunto de nomes dos séculos XV e XVI, taiscomo o poeta Annamacharya e o historiador Abu’l Fazl, eles constituem fontesintelectuais que não nos obrigam a posicionar-nos em relação a uma única genealogiaintelectual (a da Europa ocidental). Podia juntar dezenas de nomes oriundos do Sul daÁsia. Narayana Rao fê-lo, nos seus trabalhos recentes sobre Srinatha, Dhurjati,Gurajada Apparao, Vishvanatha Satyanarayana e outros. Estes últimos derivam damesma tradição regional, a Telugu. São “cosmopolitas”? Não é fácil responder.

No seu percurso académico pode identificar-se uma translação de um enfoque e de umainterpretação mais economicista do processo histórico para uma abordagem cada vez maispolítica e cultural. Pode atribuir-se um sentido a esta dinâmica? Ela resulta da vontade de ver omesmo processo histórico a partir de diferentes perspectivas, polifonicamente ou como umpoliedro, ou, e ao invés, da sua própria transformação enquanto historiador?

Não vejo o processo da mesma forma. Os meus primeiros trabalhos não eram“economicistas” no sentido de Gary Becker ou Douglass North. Não procuro lógicas emotivações económicas por detrás de todo o tipo de processos, e sempre me opus aesse tipo de raciocínio. Tratou-se mais, ao invés, dos objectos de estudo que estavamsob análise. Comecei como historiador do comércio e do intercâmbio comercialdentro de uma tradição (a da Delhi School of Economics), mas, mesmo olhando para omeu primeiro livro, The Political Economy of Commerce, já então procurava umamaneira de alargar os contextos da história do comércio internacional. De facto, o OmPrakash e eu estivemos numa luta constante enquanto escrevia o meu doutoramento.Ele aconselhava-me a abandonar certas temáticas, pois não era aquilo que “nós” (ouseja, os historiadores económicos) devíamos estudar. Mas, se observarmos o seutrabalho e o meu, nessa fase, é visível a emergência de uma diferença conceptual. Malacabei a tese, e depois de me ter libertado da necessidade de dar resposta às suascríticas, comecei a procurar problemáticas mais amplas. O problema é que a minhapreparação, nessa altura, era bastante limitada, quer no que dizia respeito a conhecere aceder a outro tipo de fontes, quer na maneira como as podia ler de um modo maissofisticado. Mas em 1992, dois anos após o meu primeiro livro, escrevi com NarayanaRao e David Shulman, Symbols of Substance, em torno da cultura política seiscentista esetecentista do Sul da Índia. Como se pode ver, nessa altura já tinha aprendido coisasnovas, quer através de Rao e de Shulman, quer de outros colegas que tinha conhecido

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entretanto. Ou seja, a minha luta tem sido sempre a de alargar os meus horizontes ede entender como é que pessoas com outras formações académicas e intelectuaistrabalharam as mesmas fontes. Recordo-me de a antropóloga Veena Das me termostrado uma fraqueza minha num seminário que dei em Delhi, em 1983, no qual nãodei a atenção devida às estruturas de parentesco na Ásia portuguesa. Precisei de unsmeses para perceber de que é que ela estava a falar, mas finalmente compreendi. Ou,para dar um outro exemplo: em 1985 era incapaz de saber o que fazer com a estruturaretórica, ou os conteúdos, de uma crónica mogol, e podia até não a ter utilizado. Nofim da década de 1990, já me sentia mais confortável com este tipo de fontes, graças aanos de diálogo com Muzaffar Alam. Ou seja, isto é uma actividade dolorosa, umaescalada da montanha, na qual por vezes me sinto sem coragem, até porque atendência geral é ter o seu campo de investigação por volta dos trinta e cultivá-lo aolongo da vida (entrevê-se aqui alguma influência de Voltaire!). A minha opção temsido a de abrir novas áreas de reflexão, sem abandonar as antigas. É claro que o factode a própria historiografia se ter tornado mais culturalista ao longo dos últimos anos(o famoso “cultural turn”) providenciou um contexto para isto. Mesmo assim, arriscodizer que me movimentei em mais campos e documentação do que a maior parte dosmeus coetâneos. A outra dificuldade é combinar este ecletismo com alguma coerênciaintelectual, de modo a não combinar de forma arbitrária métodos e perspectivas quesão radicalmente dissonantes, e de forma a não dizer o oposto daquilo que disse noano anterior.

Apesar de ser relativamente jovem, já escreveu muitos livros, cuja marca, em termos deentendimento dos processos imperiais da época moderna, é incontornável. Como é queconsegue manter, simultaneamente, um altíssimo nível de produtividade e de qualidade? Existealguma pulsão política que estimula essa abundância historiográfica, ao mesmo tempo que sevislumbra uma vontade de forjar novas interpretações da história?

Voltando ao que disse antes, não passo a maior parte da minha vida a fazer política.Preocupo-me com a política, claro, quer com a política dos países onde vivo (o queinclui o lugar onde trabalho – a universidade), quer com a política internacional. Masnão sinto isso como uma força motora daquilo que faço. Penso estar motivado porduas ou três coisas. Uma são as afinidades e as amizades. Muito do meu trabalho éfeito no contexto de colaborações, e é essa química que me motiva. Falo imenso comamigos e colaboradores, e tenho uma conta telefónica monstruosa ao fim do mês. Otrabalho em equipa também providencia um sistema de controlo de qualidade. Umsegundo factor é um sentimento de insatisfação comigo mesmo. Não me parece quetenha utilizado o meu tempo da maneira mais eficiente no passado; pelo contrário,acho que desperdicei imenso tempo, se me comparar, por exemplo, com DavidShulman. Receio que um dia o tempo comece a faltar e eu não tenha feito o suficiente(o que quer que isso possa significar). Também cometi erros no passado, quer nainterpretação, quer na leitura de textos. Isso faz-me ficar irritado comigo mesmo, porvezes. Sempre que um livro meu sai e eu o leio, sinto-me frustrado. Contudo, possovoltar a lê-lo dez anos mais tarde e pensar: “Na realidade, partes do livro não sãomás”. Em terceiro lugar, as expectativas depositadas em mim. Tenho dificuldade emdizer que não, e acabo por fazer coisas para não desapontar os outros. Um poucocomo a roda de um moinho, incapaz de parar. Todas estas motivações sãoessencialmente psicológicas. Se a política fosse a força motora, escreveria artigosmais populares e usaria outros meios de comunicação, em vez de livros e revistasacadémicas. E se o dinheiro fosse a motivação, escreveria para editoras comerciais,

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como o meu amigo Felipe Fernández-Armesto. Ou seria, alternativamente,economista.

Pode dizer-nos algo mais sobre o seu último livro, Explorations in Connected History, eexplicitar as vantagens da metodologia aí privilegiada (em particular, o posicionamento de cadahistória “local” num espaço histórico muito mais vasto)? São as “Connected Histories” um outromodo – menos hegemónico – de olhar a globalização?

A ideia de “histórias conectadas” surgiu em resposta ao trabalho do especialista naÁsia do Sueste Victor Lieberman, que apareceu com um projecto de históriacomparativa, no qual sugeria que a Birmânia, o Laos e a Tailândia eram bastantesimilares, a partir de uma determinada perspectiva político-institucional, com aFrança e a Espanha. Mais tarde publicou um livro intitulado Strange Parallels. Nocontexto de uma conferência sobre o trabalho de Lieberman, respondi ao seu convite,não escrevendo um estudo sobre a Índia (que era aquilo que ele pretendia), massugerindo que a história comparativa não era, necessariamente, a forma maisfecunda de prosseguir a investigação com o objectivo de entender o mundo da épocamoderna. À medida que fui reflectindo, percebi que o já falecido Joseph Fletcher tinhaproposto algo de semelhante, mas não exactamente igual. A minha proposta era,então, observar fenómenos que articulam histórias para além das tradicionaisfronteiras do pensamento, o que nos convida a reunir os objectos que são comparados– e assim separados – de forma mais banal. Pode ter a ver com “globalização”, masnão necessariamente. É mais uma forma de mostrar que se pode fazer coisas maisinteressantes no contexto da história de Portugal do que, por exemplo, compararPortugal e Inglaterra, e ver o primeiro como um espelho do segundo, como um casode um regime burguês falhado, de industrialização ou capitalismo retardado, comoaté Magalhães Godinho faz.

Por falar em globalização, de que forma é que, no seu entender, o processo de globalização seinterliga com as experiências coloniais e pós-coloniais? Trata-se, como defendem alguns, deuma nova forma de imperialismo? Ou, ao invés, há lugar para novas experiências à margem doconceito de império?

Estou menos interessado do que Serge Gruzinski na ideia de “globalização”. Atéconcordo, de certa forma, com Frederick Cooper, para quem este pode ser umconceito demasiado amplo e superficial para servir de estímulo intelectual. Por outrolado, é claramente ideológico, correspondendo à necessidade recente de atribuir aocapitalismo um nome mais respeitável. Assim sendo, se olharmos para a história docapitalismo comercial e para os mercados inter-regionais, esta é, de facto, uma velhahistória, uma história conhecida. De facto, todos nós conhecemos alguns impériosque ou foram movidos, ou essencialmente motivados, pelo desejo de obter novasfontes de bens de consumo, ou novos mercados para os seus produtos, o que no casodo império britânico oitocentista foi designado como o “imperialismo do comérciolivre”. É a história banal que Immanuel Wallerstein em parte contou, com algumdetalhe excessivo, para o período posterior a 1450. Mas a história do mercado nãoestá contida, em todo o caso, na história das experiências imperiais e coloniais. Ahistória do comércio no Oceano Índico entre, por exemplo, 1100 e 1500, não é, na suamaioria, a história da criação de grandes impérios comerciais. A maior parte dosimpérios que então existiam, os Mongóis, os Ming, os Timúridas, era territorial. Oproblema é que, por um lado, os apologistas da “globalização” como ideologia, ousublinham pouco mais do que as virtudes positivas, ou lhe atribuem o carácter deinevitabilidade, inserindo-a numa teleologia. Era este tipo de telos que Francis

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Fukuyama tinha em mente (e que alguns escritores mais economicistas, como JeffreyWilliamson, ainda têm no seu inconsciente). Por outro lado, é certamente possívelestudar os passados coloniais e imperiais sem utilizar o vocabulário da globalização.Ainda assim, tenho curiosidade em perceber se a tentativa de atribuir à ideia deglobalização uma trajectória e uma temporalidade histórica específicas, comoGruzinski faz em Les Quatre parties du monde, terá eco na historiografia futura. Poragora, a situação não é muito clara em relação ao seu impacto.

Enquanto historiador indiano, ou seja, originário de um território que conheceu múltiplasexperiências coloniais, que vive numa situação pós-colonial e que se insere, cada vez mais, nummundo global, como vê o futuro da Índia nesse novo contexto?

A situação indiana é simultaneamente preocupante e interessante. O crescimentorecente foi muito rápido, mas os seus efeitos nas cidades têm sido bastante caóticos. Éuma espécie de crescimento selvagem, que lança todo o tipo de questões relativas àsustentabilidade, para não falar das consequências ecológicas. (O mesmo se passa coma China, asseguram-me os historiadores daquela região, como Bin Wong.) Eu cresci,em parte, em Bangalore, uma cidade que se tem tornado numa espécie de história deterror ecológico, nos últimos tempos. Ao mesmo tempo, não podemos idealizar umsistema de crescimento lento, com pobreza de massas constante, o qual surgiu com ocolonialismo, e assim continuou desde então. Suspeito que no futuro, a médio prazo,terá de haver uma transferência de população do “Sul” (ou de parte do Sul) para o“Norte”, numa escala global. Está toda a gente preocupada com o mercado de capital,mas a regulação dos mercados de trabalho é uma situação da qual se não pode fugir.Actualmente, está toda a gente fascinada com a Índia enquanto mercado, mas há maispara a história do que apenas isso.

Qual o lugar que reconhece à língua inglesa e às línguas locais no próprio espaço indianoenquanto idiomas “condutores” de discursos, sabendo-se, por exemplo, que no mundoacadémico o inglês é cada vez mais a língua franca? E tendo em conta que a própria estruturada língua inglesa encerra já, por assim dizer, certas formas de pensar, em que medida é que épossível fazer teorias “diferentes”? É possível pensar, expressar-se – e ser ouvido – fora dalíngua inglesa?

Não me sinto muito à vontade com o lugar que o inglês assumiu, desde o século XIX(com o apogeu do império britânico), e sobretudo a partir dos últimos cinquentaanos. A realidade é que é cada vez mais difícil encontrar, na Índia, um “discurso dasCiências Sociais” em línguas regionais, apesar de estas sobreviverem num contextohumanista, ou enquanto línguas de expressão literária. Contudo, mesmo no querespeita a literatura, é muito claro que escritores de ficção de segunda categoria queescrevem em inglês recebem mais atenção do que os melhores escritores queescrevem em línguas indianas. É difícil perceber aonde é que vamos chegar com isto,nos próximos cinquenta anos. Se mesmo o francês, outrora a grande “língua dateoria”, tem passado um mau bocado, e se o alemão, desde 1945, tem perdido terreno,o que irá acontecer ao português para lá das telenovelas e da música? A situação édifícil para todos os que têm uma relação afectiva com estas línguas. Por outro lado,outras duas línguas parecem manter a sua escala mundial, caso do mandarim (chinês)e do espanhol. Mas eu, por exemplo, estou a fazer esta entrevista em inglês, porquefazê-lo em português requereria três vezes mais tempo, apesar de estar ciente de que,se o fizesse em português, poderia ser diferente. Ainda assim, não me parece quetenhamos chegado ao ponto de as “formas de pensar” que existem nas outras línguas

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tenham sido substituídas pelas do inglês. Se analisarem o meu inglês com atenção, aípoderão identificar traços das estruturas profundas de outras línguas.

Fukuyama tinha anunciado o “fim da história”, enquanto agora, após a queda das Torres Gémeas,se fala de um “regresso da história”. Como vê esta obsessão pela história no mundo “ocidental”?Existe o mesmo tipo de historicismo no mundo indiano, ou são outras as manifestaçõespolíticas e culturais face ao estado político actual?

Fukuyama e outros desenvolvem o seu pensamento a partir de um vocabulárioimplícito do milenarismo cristão, e explicitamente hegeliano. Nenhum destes temmuita ressonância hoje em dia na Índia. Mais do que isso, o que me preocupa é a“auto-orientalização” de intelectuais indianos no contexto dos estudos pós-coloniais,no qual insistem em que a “história” é um problema ocidental, devendo eles viverfora da história. Esta é a posição de Ashis Nandy, Ranajit Guha e outros. Para mim,estas posições são falaciosas do ponto de vista empírico – ignorando a produçãohistórica da Índia antes de 1800 –, e tendenciosas na perspectiva de que existe uma“identidade indiana pura” que deve ser recuperada desta maneira. Também mostracomo é que pensadores tão problemáticos quanto Mircea Eliade – com a suaglorificação de uma versão espúria da ideia de “mito” – informam esta forma depensar.

Esse novo “orientalismo” que invade os espaços “ocidentais” – nomeadamente a recenteobsessão com tudo o que diz respeito ao mundo islâmico: qual é a sua ressonância no espaçodo Índico?

O problema é que, na Índia, muitos movimentos políticos de extrema-direitapartilham a islamofobia de parte do establishment e dos media ocidentais. As raízesencontram-se no movimento nacionalista indiano e na teoria das duas nações, nocontexto da qual ideólogos como V. D. Savarkar argumentaram que hindus emuçulmanos nunca poderiam partilhar o mesmo espaço político. Na Índia, estatendência – que encontra muito apoio na classe média e nas elites – ressurgiu nosanos 80, com a subida ao poder do BJP (Partido Popular Indiano), e a ideia explícita deque os muçulmanos tinham de pagar aos hindus, por meio de uma violência sectária,por tudo aquilo que tinha acontecido no período medieval. Esta tendência continua ater muita força, ainda hoje. Assim sendo, muita gente de direita, na Índia, sente-seuma aliada natural do Ocidente, tendo o Islão como inimigo comum. Há centenas deblogues e de sites na internet cujo objectivo é disseminar esta ideia. Num certosentido, a teoria Samuel Huntington é a matriz para esta aliança entre “civilizaçãoocidental” e “civilização hindu” contra a “civilização islâmica”.

Na época moderna, muitos produtores de “narrativas históricas” tiveram um papel importante naprodução de “sentido histórico”. Pensamos, por exemplo, nas narrativas que fixavam aidentidade de certos grupos a partir da sua vinculação a determinadas origens, a certa história,algumas das quais foram, aliás, objecto do livro com Narayana Rao e David Shulman Texturesof Time: Writing History in South India, 1600-1800. Acredita que a informação construída pelohistoriador de hoje pode ainda intervir nos significados da memória histórica colectiva? Acreditana utilidade social do historiador?

É evidente que há uma distância enorme entre o mundo que observámos em Textures

of Time e o mundo actual, sobretudo porque a oralidade tinha uma posição diferenteno mundo, mas também devido à multiplicação dos media, que hoje têm um papelimportante na memória histórica colectiva. E claro, como já foi notado por muitosobservadores, vivemos num mundo de excesso de comunicação. Um trabalho dehistória que pode ter sido extremamente importante em 1985, hoje pode estar

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completamente esquecido. Algumas das narrativas históricas a que se estão a referirpodem ter sido percebidas como significativas porque elas desempenharam um papelefectivo nas políticas identitárias, ao comprovarem as queixas de um grupo emrelação a outros. Com toda a franqueza, não tenho o mínimo interesse emdesempenhar esse papel hoje, e considero preocupantes – por instrumentalizarem ohistoriador – fenómenos como o Livro Negro. Quanto à nossa “utilidade social”,estaremos bem posicionados para a julgar? Nem sequer estou seguro de saber comodesenvolver uma experiência conceptual que permita julgar a utilidade social de algotão vasto quanto o papel do historiador. Mas sei que – e ao contrário do que édefendido por muitos teóricos pós-coloniais – a história não é apenas um dispositivomau, opressivo, e hegemónico, inventado pelo Ocidente.

Por seu turno, quais as vantagens e desvantagens de ser um insider a fazer a história dedeterminado país (para usar uma terminologia mais antropológica, o ser um observadorparticipante que domina o código cultural), ou um outsider a fazê-lo? Qual o relevo que a“pertença” e a “distância” podem ter no forjar de uma subjectividade objectiva?

Não é muito claro o que é um insider, quando se está a fazer a história dos séculos XVIe XVII. Não faço história contemporânea, e a maior parte dos objectos que estudoestão separados de mim pelo menos dois séculos, senão mais. Não sinto que pertençamais à Calecute de 1498 do que à Baía de 1622. Em todo o caso, o problema tem duasfaces. Primeiro, muita historiografia ainda está organizada dessa maneira, tal comoaprendi à minha custa quando escrevi sobre Vasco da Gama. Alguns historiadoresportugueses, que nunca tinham estudado aquele tema, ainda assim achavam que, dealguma forma, ele lhes “pertencia”, interpretando a questão como uma guerra“territorial”, cujo fim era decidir quem é que obtinha as melhores posições dehistória da expansão portuguesa na Europa e na América (isto é muito engraçado,quando visto retrospectivamente, já que nada tenho a ver com esse posicionamento).Do mesmo modo, por vezes os historiadores indianos rejeitam instintivamente –muito embora menos, nos últimos cinquenta anos – as perspectivas de historiadoresingleses e americanos, devido à sua nacionalidade. Na realidade, o pior acontece nosEstados Unidos, quando historiadores de origem indiana (que cresceram nos EstadosUnidos), se reclamam mais bem posicionados para entender a Índia em virtude do seuADN. Não há nada que comprove que essas pessoas dominam melhor os códigosculturais do que qualquer outra pessoa, ou que podem ler e interpretar melhordocumentos quatrocentistas em língua tamil ou em telugu do que, por exemplo,David Shulman. O segundo problema diz respeito ao grande público. Aqui, a questão émais complexa, e as pessoas podem sentir-se agradadas com o facto de umestrangeiro estudar a “sua” história e entrar nos “seus” arquivos. Devo dizer, porém,que enquanto determinadas coisas eram para mim fáceis (ou óbvias), no estudo daÍndia era-me correlativamente mais difícil, no início, ler e analisar documentos naTorre do Tombo do que a Jorge Flores (por exemplo). Não vejo qualquer diferençaóbvia entre ser um insider e um outsider. Neste sentido, estamos bastante distantes dasituação da antropologia.

A sua relação com Portugal é intensa e, ao mesmo tempo, ambígua. Por um lado, marcou umelevado número de gerações de historiadores, os seus livros fazem parte das estantes dequalquer biblioteca universitária, e são amplamente utilizados por investigadores, professores ealunos. Nesse sentido, o relevo do seu discurso na formação das “elites” é notável. Por outrolado, algumas das suas interpretações do processo histórico no qual os portugueses estiveram

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envolvidos têm sido menos bem recebidas pelo público em geral. Como é que interpreta esseparadoxo?

Na verdade, não creio que isso seja absolutamente verdade, e o paradoxo é umailusão. Em primeiro lugar, tenho três livros traduzidos em português. Dois destes, umsobre o golfo de Bengala, e o outro sobre o império português, não chegaram aogrande público. O problema surgiu com o terceiro livro, sobre Vasco da Gama.Coleccionei um vasto número de cartas e respostas que recebi de Portugal, apropósito deste livro. É para mim claro que a maior hostilidade surgiu por parte domeio académico, especialmente entre as elites que vocês mencionaram antes. É certoque algumas destas cartas provinham de historiadores conservadores, que defendem,ainda, as posições do Estado Novo, razão pela qual consideraram a minha perspectivainsultuosa. Algumas respostas vieram de pessoas que achavam que devia continuar atrabalhar, apenas, sobre o Oceano Índico, não enveredando pela história portuguesapropriamente dita (e aqui vislumbra-se uma manifestação curiosa do dilema “insider-

outsider”). Mas, se regressarmos aos jornais e revistas da época, apercebemo-nos deque os ataques mais violentos são oriundos da chamada “esquerda intelectual”,sobretudo da escola de Magalhães Godinho. Uma fracção disto deve-se, creio, ao queeu considero ser um aspecto da arrogância e (quase racismo) do excepcionalismoeuropeu que caracteriza as posições desta escola, que nunca utilizou seriamente oshistoriadores não-ocidentais e as fontes persas e turco-otomanas. Outra parte resultado facto de muitos deles combaterem as tais guerras “territoriais” imaginárias, àsquais já me referi. É claro que o facto de ter criticado Godinho numa nota de rodapé –precisamente pela sua arrogância eurocêntrica – em nada ajudou. No que diz respeitoao público em geral, algumas pessoas (nomeadamente algumas que se reclamavamdescendentes de Gama) ficaram furiosas. Mas a verdade é que também recebibastantes cartas positivas, e até cartas pedindo-me que explicasse alguns detalhessobre este ou aquele aspecto da história em relação ao qual alguém estavaparticularmente fascinado. Se o público em geral reagiu mal, tal dever-se-á, receio, àmanipulação realizada por alguns historiadores, isto ainda antes de o livro ter sidotraduzido em português!

Aliás, no seu entendimento, há algo de específico na experiência imperial portuguesa? Em quemedida é que as preferências por, e as conexões entre Ásia do Sul, África e América do Sul, lheconferiram algo de diferente?

Esse é um tema vasto e fascinante. Sim, a experiência portuguesa é, de facto,específica, e simultaneamente, relacionada com outras. Não há dúvida de que asrelações específicas e em constante mudança dentro do próprio império são degrande interesse, em particular as dinâmicas complexas de vaivém entre o mundo doAtlântico Sul e do Oceano Índico. Os historiadores brasileiros começam a explorarestas relações com resultados muito interessantes. Em todo o caso, também acho quese não deve exagerar a singularidade do império português, de certo modo aperspectiva gizada durante o Estado Novo. Houve imensas transacções mútuas com oimpério espanhol que seria útil explorar. Por outro lado, o império britânicoinspirou-se em alguns aspectos no exemplo português. Penso, por exemplo, que todoo sistema de country trade tem mais do que uma mera semelhança com o comércio dos“casados” portugueses no Oceano Índico. Simultaneamente, e como Clarence-Smithenunciou há já muito tempo, não havia um, mas muitos impérios portugueses, eaquele que se reinventou no século XIX exibia características emprestadas de outras

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experiências imperiais. Não é como se, na Goa de 1880, a voz ou visão dominantecontinuasse a ser a de Afonso de Albuquerque ou a de D. João de Castro.

Uma análise do seu percurso académico identifica, de imediato, a passagem por vários centrosde excelência do mundo europeu e americano, desde a École des Hautes Études en SciencesSociales à Universidade de Oxford e, agora, à UCLA. Como é que pode ser entendido essepercurso, semelhante ao de muitos outros intelectuais indianos, também eles em grandesuniversidades americanas, e diferente destes por causa da passagem – menos frequente – pelauniversidade europeia?

A minha situação é, de facto, um pouco peculiar, ainda que possa ser vista como partede um movimento de “diáspora de intelectuais” sobre o qual Jackie Assayag e outrosescreveram. Muitos daqueles que refere deixaram a Índia mais cedo, com 21 ou 22anos, para fazerem o doutoramento. Foram depois socializados no contexto britânicoou americano, vivendo serenamente desde então. Eu permaneci na Índia até aos meustrinta e tal anos, tendo ensinado na Delhi School of Economics, altura em que memudei para a EHESS (a minha mulher, nessa época, era francesa), a partir dos laçosque tinha estabelecido em Paris nas minhas anteriores estadas como visitante. Estivelá à volta de dez anos, indo então para Oxford, em parte porque estava relativamenteinsatisfeito com o sistema francês – muito embora não lamente um único momentoque aí vivi. Mas a verdade é que tinha poucos estudantes graduados em Paris, já queos temas que estudava eram vistos como marginais. Quando eu e o Gruzinskipropusemos algumas alterações na estrutura da EHESS, de modo a que os “airesculturelles” se integrassem melhor com a história, fomos rudemente criticados pelaadministração e por muitos historiadores da Europa. Penso que a área da história daEHESS está lentamente a pagar o preço do seu provincianismo, e da sua incapacidadeem se adaptar aos novos tempos. Não se pode viver eternamente sob as glórias dopassado ou de algumas “estrelas” como Chartier, Boureau, Schmitt e Gruzinski.

Tenho de admitir que em Oxford as coisas não foram muito melhores, pois aí o ensinoda história é especialmente eurocêntrico e conservador. Por exemplo, a história daÍndia apenas era ensinada enquanto história do império britânico. Apesar de estar àfrente de uma cátedra, tinha a impressão de que o meu papel era essencialmentedecorativo (e o próprio John Elliott confirmou ter sentido, às vezes, o mesmo,enquanto Regius Professor). Tudo isto acabou por me conduzir até à UCLA, apesar deter declinado ofertas anteriores desta e de outras universidades americanas, comoChicago. Tive sempre algumas suspeitas em relação ao sistema académico americano,baseadas nas curtas visitas que aí fazia desde 1987. E sendo que na vida nada ésimples, não creio que a minha carreira académica, aqui, o seja. É verdade que tenhomuitos recursos, melhores estudantes graduados, e também vejo que existe potencialpara melhor integrar diferentes partes do mundo numa visão histórica complexa,sem uma hierarquia anacrónica e explícita entre elas. Ainda assim, é como subir amontanha. Apercebo-me de que o facto de não me ter socializado na academiaocidental desde novo continuará a ser um obstáculo, pois continuo a encontrarconvenções que considero detestáveis (e que outros intelectuais da Índia quetrabalham nos Estados Unidos aceitam facilmente), entre as quais incluiria amentalidade guetista de muitos intelectuais indianos e a obsessão com a política daetnicidade.

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E como vê esta “hegemonia” da produção intelectual – teórica, nomeadamente – de origemindiana? Como interpreta o facto de boa parte desta acontecer em centros académicos“ocidentais”?

Não creio que haja uma verdadeira hegemonia intelectual, já que, em termos deconteúdos, o que é que aí é verdadeiramente “indiano”? Trata-se de autores quetrabalham a partir de um mesmo quadro de referências – Heidegger, Benjamin,Foucault, etc.–, tal como muitos outros na academia americana. A sua genealogiatransporta-os para trás, como agora muitos admitem (e como foi mostradoclaramente por Thomas Blom Hansen), para a crítica romântica das Luzes, o quetambém nada tem de particularmente indiano. Aceito que, quando da emergência dosSubaltern Studies, se manifestou uma espécie de onda e de efeito de rede, de tal modoque as universidades americanas querem agora ter alguém a ensinar teoria pós-colonial e história ao estilo “subalterno”. E as pessoas têm adoptado como slogan

expressões do tipo Provincialising Europe, sem terem lido, sequer, o livro deChakrabarty, de modo a perceber o seu argumento. Mas não vejo nenhum historiadorda Europa ou dos Estados Unidos a sentir-se profundamente perturbado pela leituradeste livro, já que ele não é assim tão radical em relação ao que estes já fazem. Essetipo de trabalho não desafia, no essencial, a divisão de trabalho estabelecida, nosentido daquilo que Gruzinski já desenvolve. Há também a minha colega Lynn Hunt,um pilar do sistema americano na área da história, que escreveu uma recensão críticaa elogiar este tipo de trabalho. Não podemos considerar tudo isto como uma espéciede literatura radical underground de samizdat. É, de facto, uma articulação com coresetnicistas de um fenómeno mais geral, com o qual a academia americana se senteperfeitamente confortável. Naturalmente, isto não quer dizer que não haja algunstrabalhos muito importantes (sejam livros ou ensaios), ou gente muito inteligente atrabalhar neste sentido. Em todo o caso, se pensarmos sobre isso, a maneira comotodo o movimento aconteceu terá sido a seguinte: nos anos 60 e 70 havia, para ahistória indiana, qualquer coisa como a “Escola de Cambridge”. Aqueles que delafaziam parte negavam constantemente a sua existência. Mesmo assim funcionavamcomo um colectivo, publicando conjuntamente, agindo em rede, como grupo deapoio, de modo que os melhores de entre eles, como Chris Bayly ou David Washbrook,“puxavam” os demais. Ranajit Guha e os seus discípulos observaram, seguiram eaproveitaram imenso este modelo. O que criaram foi um lobby, um grupo de acçãocolectiva e de apoio mútuo, que, com o passar dos anos, perdeu todo o seu verdadeiroconteúdo ideológico (ou até mesmo idealista). As recepções desta “escola” no mundolatino-americano, por exemplo, são ainda mais curiosas, pois tentam infundir umaconcha vazia de acção etno-política, com um conteúdo ideológico profundo. É o tipode fenómeno que o sociólogo Mancur Olson analisou há muito tempo.

Há imenso tempo que deixou a academia indiana, muito embora esteja envolvido em váriasactividades com colegas indianos, projectos, revistas, etc. Como é que vê as transformações daacademia indiana desde o momento em que a abandonou, ou seja, nos últimos dez anos?

A situação da Índia é complicada, interessante para alguns e deprimente para muitos.Desde meados dos anos 90, as universidades onde se estudam humanidades e ciênciassociais têm gradualmente diminuído. Instituições como a Delhi School of Economicsperderam muitos dos seus professores, pois os que se reformaram não foramsubstituídos. É claro que os institutos de tecnologia, gestão, direito e outros vãomuito bem, pois o financiamento do Estado tem sido gradualmente substituído porfinanciamento privado e por propinas pagas pelos alunos. Mas não é possível

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financiar um departamento de história dessa maneira, pelo menos na Índia.Simultaneamente, há alguns centros de investigação independentes, frequentementefinanciados privadamente, pelas fundações Ford e Rockfeller, por vezes comresponsabilidades de ensino (outras vezes nem isso). Isto pode ser um efeito colateralda redução da actividade económica do Estado, já que as universidades eramessencialmente financiadas por ele. Ainda assim, algumas revistas científicas sãoboas. E há alguns lugares nos quais se pode dar uma conferência interessante, peranteuma audiência estimulante. Mas estes são cada vez menos os departamentosuniversitários. Suspeito que isto será uma fase transitória e que daqui a dez anos opêndulo oscilará numa outra direcção. Mas, enquanto se move desta maneira,teremos cada vez mais indianos educados, da elite, que deixaram a Índia não aos 21 e22 anos, mas sim aos 17 e 18. Isto é bom para as universidades americanas, claro, etalvez seja uma manifestação superficial do movimento laboral a que me referi atrás(mas tenho dúvidas).

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Recensões críticas

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WACHTEL, Nathan, A Fé daLembrança. Labirintos MarranosHugo Guerreiro

REFERÊNCIA

WACHTEL, Nathan, A Fé da Lembrança. Labirintos Marranos, Lisboa, Editorial Caminho,2003, 532 pp.

1 Estigmatizada por milhares de anos de perseguição, a fé judaica, tal como a conhecemos

hoje, é marcada tanto pela figura de Abraão e pela lei de Moisés como pelas práticas deresistência e adaptação a contextos sociais adversos e de cariz inquisitorial. Fenómenomuito estudado à luz dos acontecimentos trágicos do século XX, as práticaspersecutórias das comunidades hebraicas ao longo dos tempos conhecem no campohistoriográfico um volumoso número de trabalhos. Contudo, a influência que este tipode práticas teve sobre as comunidades judaizantes, sobre as estruturas mentais e sociaise sobre as práticas religiosas, é uma área em larga medida ainda por estudar, salvohonrosas excepções, em particular no período moderno. Centrando-se nas incertezasidentitárias das comunidades de cristãos-novos das colónias americanas no períododourado da expansão ibérica, a última obra de Nathan Wachtel, A Fé da Lembrança,publicada no original em 2001, vem precisamente colmatar essa lacuna.

2 Wachtel, professor de História e Antropologia no Collège de France, completa com este

livro uma trilogia dedicada à “história subterrânea” da América Latina do períodomoderno. Fazendo uso dos relatos dos vencedores, La Vision des vaincus, Le Retour des

Ancêtres e agora A Fé da Lembrança fazem a inversão de ângulo, tentando recuperar aperspectiva dos vencidos, sejam eles tribos andinas ou europeus judaizantes.Assumindo as limitações da documentação disponível, opta-se então por uma análiseparticularizada, centrada na figura do indivíduo ou de pequenos grupos, numaabordagem próxima da história das mentalidades francesa e metodologicamenteassente na micro-história trilhada por Ginzburg ou Levi. “Regresso a uma história de

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outros tempos? É principalmente a natureza das nossas fontes que impõe a redução daescala.”2

3 Quais são então essas fontes? Inevitavelmente os arquivos do Santo Ofício. Recorrendo

às actas inquisitoriais conservadas em arquivos da Cidade do México, Lima, Lisboa eMadrid, Wachtel parte inicialmente para uma análise de grupo suportada por métodosquantitativos e com base nos dados recolhidos nos inventários de sequestro,distribuição populacional e características sociais. De uma amostra de 250 indivíduoscadastrados como judaizantes nos processos inquisitoriais do decénio de 1640 na Cidadedo México, podemos perceber que, apesar de heterogéneo a nível económico (20%caracterizados como pobres, 45% de estrato médio e 15% bastante ricos), estacomunidade marrana demonstrava no geral um grau elevado de literacia (todos oshomens sabiam ler e escrever e entre as mulheres 68% sabiam ler e 50% sabiamescrever) e uma forte inclinação para as actividades comerciais (cerca de 83%).

4 Mais curioso é o facto de quase todas as vítimas destes processos inquisitoriais serem

cristãos-novos de origem portuguesa, não só no Brasil mas também no México e Peru. Éverdade que a união dinástica de 1580 permitiu uma maior mobilidade entre os doisimpérios; contudo, isso por si só não justifica a perpetuação das práticas judaizantesentre os emigrantes portugueses e a ausência destas nas comunidades hispânicas.Partindo da teorização inicial de Espinosa, Wachtel explica esta situação devido àsdiferentes características e temporalidade dos movimentos inquisitoriais no Portugal ena Espanha europeus do início do período moderno. A perseguição e conversão forçadacomeçou em Espanha ainda em finais do século XIV, seguindo-se um processo gradualmas longo de repressão e integração que acabou por eliminar sistematicamente os laçosde solidariedade entre os seus elementos. Em Portugal este movimento surgiu maistardiamente, cerca de um século depois, e foi mais imediato. A passagem àclandestinidade foi facilitada pela relativa tolerância até 1536, ano em que éestabelecido o Tribunal do Santo Ofício, permitindo o desenvolvimento de um cripto-judaísmo de cariz específico e disseminado pelas diferentes possessões coloniais.

5 É esta diáspora marrana de origem lusitana, facilitada pelo domínio judeu das técnicas

financeiras inerentes ao desenvolvimento de um império comercial, que vai dar origemao termo “Nação”. De cariz ambíguo, as expressões “Naçam Portuguesa o Hespanhola”,“Portugueses da Nação Hebraica” ou simplesmente “Nação” serviram como significantede uma identidade própria, sem limites territoriais definidos, assente numa rede desolidariedade entre judeus e cristãos-novos judaizantes de origem ibérica que sealastrou de forma complexa do Novo Mundo ao Império Otomano, passando por Venezae Antuérpia.

6 Definido assim de forma geral o objecto de estudo do livro, Wachtel inicia então uma

análise particularizada, escolhendo sete casos por entre os milhares de processosinquisitoriais encontrados. Em molde de galeria de retratos, estamos perante umatentativa de reconstituição quase biográfica, dificultada pela unilateralidade efragmentação das fontes, das estruturas culturais, sociais e religiosas da identidademarrana. Dos sete casos apresentados por Wachtel, escolhemos aqui três exemplosdevido às suas diferentes características.

7 Juan Vicente, sapateiro de profissão, é um exemplo extremo da mobilidade, da extensão

das redes de solidariedade e, por fim, do trágico desfecho que muitos cristãos-novosconheceram às mãos do Santo Ofício. O seu primeiro processo surge no tribunal deÉvora, onde em 1582 se entregou voluntariamente afirmando que “cego pelo diabo”

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havia judaizado. Esta auto-denúncia, motivada pela crescente vaga de prisões na suaterra natal de Campo Maior, teve por objectivo conseguir a indulgência dos juízes.Seguindo um modelo estereotipado de confissão, Juan Vicente acabou por denunciaramigos e família. Se ele e a sua mulher, Isabel Vaez, conseguiram ser admitidos àreconciliação, menos sorte tiveram a sua mãe e irmã, condenadas a arder na fogueirado auto-de-fé de 16 de Dezembro de 1584.

8 Em 1588 Juan e Isabel embarcam para o Brasil, já em fuga de novas denúncias que

acusavam Juan de ter apedrejado o sambenito que havia sido condenado a usar comosinal de infâmia. É já na Baía que o casal trava conhecimento com Diego Nuñez de Silva,médico cristão-novo, que daí por diante se tornará seu companheiro de viagem. Em1591 chegam a Buenos Aires e daí partem para Santiago del Estero. É aí que énovamente denunciado, desta feita por António Suarez Mexia, natural de Campo Maiorcom quem Juan Vicente havia tentado travar amizade fazendo-se passar por um amigoda família. A nova fuga leva o casal a Potosí, onde recebem auxílio de Gonçalo de Luna(Vicente havia partilhado o calabouço em Évora com o pai deste) e de um grupo decristãos-novos onde este se encontra inserido. Apesar de o casal voltar à estrada,passando por Cusco, Caraz, Lima, Arica e novamente Potosí, fazendo questão de nuncaficar mais de dois anos no mesmo local, acabam por ser finalmente presos em Chicama,denunciados por Gonçalo de Luna e Diego Nuñez da Silva, que haviam sidoanteriormente presos. Com alguma astúcia e bafejado pela sorte, Juan Vicenteconseguirá em 1612, e ao fim de mais de dez anos de reclusão motivada pela espera dachegada do processo de Évora, uma segunda sentença de reconciliação. Isabel Vaezconhece um destino diferente acabando por morrer na prisão em 1603.

9 Juan Vicente veria a sua vivência miserável, enquanto ensabatinado pelas ruas de Lima,

interrompida por uma ordem régia que ordenava o desterramento dos portuguesescondenados. É assim que chega a Cartagena, onde lhe é movido um terceiro processo doqual são desconhecidos os trâmites. Acabaria por arder na fogueira no auto-de-fé de 17de Junho de 1626, como “herege judaizante, pertinaz, relapso e penitente fingido”3.

10 O indivíduo vitima do próximo processo aqui analisado partilha muito pouco com a

figura de Juan Vicente, provavelmente apenas o facto de ser cristão-novo de origemportuguesa. O processo movido a Manuel Bautista Perez rodeia-se de contornosbastante distintos, quanto mais não seja por estarmos a falar de um dos mais ricosnegociantes do vice-reino do Peru. Nascido em Coimbra no ano de 1590, Perez pertenciaao círculo das grandes famílias bancárias de Lisboa, tendo assumido a posição de feitorna costa da Guiné entre 1617 e 1618. A sua primeira viagem enquanto traficante deescravos foi de tal modo lucrativa que lhe permitiu desde logo instalar-se em Lima e daíempreender as suas actividades comerciais. Aquando da sua prisão, em 1635, a suafortuna pessoal estava avaliada em mais de quinhentos mil pesos.

11 Os problemas de Manuel Bautista Peres com a Inquisição começaram em 1625, com

suspeitas de tentativa de ocultação de bens confiscados pelo Santo Ofício a um outroacusado que havia entretanto morrido na prisão. Chamado a depor, Perez refugiou-seno conselho dos teólogos para não responder às perguntas dos juízes. Em 1627 surgeum novo processo: três testemunhas relatavam a afixação de um cartaz no centro dacidade, convocando potenciais interessados na lei de Moisés à casa de Perez. Tal como ocaso anterior, também este não teve continuidade.

12 O terceiro, e último processo, é de natureza distinta, inserindo-se na repressão da

chamada “Grande Cumplicidade” e instigado pela crescente desconfiança, a partir da

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década de 30, em relação à espécie de monopólio comercial exercido pelos portuguesesna colónia peruana: “parecia ao castelhano que não faria bons negócios se não tivesseum português associado na loja”4. Imiscuem-se assim ao teor religioso do processofactores económicos e um crescente sentimento de inveja de vários sectores dasociedade de Lima.

13 O desenrolar do processo mostra-nos duas facetas bem distintas do mesmo indivíduo:

exteriormente Manuel Bautista Perez exibia um fervoroso sentimento religioso pelasfiguras de Cristo, da Virgem e do Espírito Santo, era assíduo na assistência à missa esete das treze testemunhas abonatórias eram religiosos que atestaram a sua devoçãopela fé católica. Por outro lado, outros testemunhos revelavam uma diferente ordem decomportamentos, em particular durante reuniões de negócios e em conversas tidas emlongos passeios pela cidade onde a fé hebraica e a fé católica eram comparadas edebatidas. Estamos assim perante uma figura contraditória, mas por natureza ou poraparência? Wachtel acredita que esta dualidade de comportamentos é a face visível deuma dicotomia interna, entre o passado de uma fé lembrada pela tradição oral e umareligiosidade vivida ostensivamente, de forma barroca. Sem nunca se confessarjudaizante, Manuel Bautista Perez morreu no auto-de-fé de 23 de Janeiro de 1639,acompanhado do seu cunhado Sebastian Duarte com o qual terá trocado um último“beijo de paz judaico”.

14 O último caso aqui apresentado diz respeito a Francisco Botello. Devido ao tipo de

técnica usada para a recolha de provas incriminatórias, este é o processo que nosmostra um olhar mais próximo, mesmo intimista, sobre as relações privadas, emparticular com a esposa Maria de Zárete. As crenças religiosas, dúvidas e desabafos sãoaqui esmiuçados pelo relato minucioso de Gaspar de Alfar, espião do tribunal quepartilhou a prisão com Francisco Botello e o seu parceiro de conversas, Juan Pacheco deLéon.

15 A juventude de Francisco de Botello, passada entre a Andaluzia e Viseu, fica desde logo

marcada pela Inquisição, já que os seus pais foram presos em Córdova e grande parte dasua formação foi ministrada pelo seu tio António Cardado. Ao atingir os 18 anos, Botelloinicia um périplo intenso que o levará às Américas em 1620. Na Nova Espanha o seuperfil errante mantém-se, sabendo-se apenas que subsistiu durante um ano comocomerciante em Otucpa. Em 1636 casa-se com Maria Zárete, de origem cristã-velha,assumindo a gerência de uma estalagem na Cidade do México. Esta nova vivência,aparentemente feliz e tranquila, é interrompida a 1 de Dezembro de 1642, quandoBotello é preso pela Inquisição com base num único e débil testemunho. É só após trêsanos de cativeiro que entra em cena Gaspar de Alfar, relatando meticulosamente, e aolongo de meses, as conversas comprometedoras de Botello e Léon, deixando bempatente as diferenças identitárias e de práticas de um cristão-novo judaizante deorigem ibérica e de um judeu convicto criado em Livorno. Dois temas centrais àsconversas dos dois reclusos: a prática do jejum, (“faça--lhe algum sacrifício que lhe sejaagradável, que eu também farei”5) e o relato e sucessiva interpretação de sonhos (“poisnão são sonhos mas revelações da alma”6).

16 Botello era desconhecedor em grande medida das tradições da fé hebraica e talvez por

isso mostrasse uma tolerância invulgar pelos cristãos (“seja cada um o que é: vou comquem vou, sou de quem sou”7) e em particular com a sua mulher (“se ela fizesse nanossa lei tudo o que faz na sua, seria uma santa e estaria canonizada”8). Léon era poreducação e carácter bem mais veemente na afirmação do seu judaísmo (“o que tenho

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gravado na alma e no coração é a Lei verdadeira. Aquela que os meus pais meensinaram e que mamei com o leite materno”9), tornando-se mestre de Botello emmatéria de fé. Outro tema recorrente de conversa era a “Nação”, ficando bem marcadasas facetas económica e de entreajuda entre os seus membros. Léon frequentementedescrevia os seus sonhos de liberdade e de regresso a Livorno acompanhado de Botello(“É uma terra muito rica, ao saber que és da Nação, todos te favorecerão e ajudarão;passados quatro dias, já estarás rico”10). Já com provas suficientes, Francisco Botello éfinalmente condenado, em 21 de Fevereiro de 1649, a duzentas chibatadas e àproscrição da Nova Espanha.

17 Botello volta a ser denunciado em 1656, desta feita com a mulher, devido a uma zanga

familiar com José Zárete, mestiço que havia ficado ao cuidado do casal após a fuga dosseus pais. Considerado relapso, dificilmente Francisco Botello sairia vivo deste segundoprocesso. Novas provas são reunidas durante o longo período de cárcere e, a 19 deNovembro de 1659, Botello ardeu na fogueira como “o mais empedernido de quantosjudeus foram, em muitos séculos, castigados pelo Santo Ofício, deixou-se queimar vivosem que se conseguisse fazê-lo pronunciar o nome de Jesus ou da Santíssima Virgem”11.

18 Muito já foi dito sobre o uso dos arquivos inquisitoriais, esses videotapes do passado,

aplicados à micro-história. A Fé da Lembrança é um bom exemplo de como a fonte e ométodo continuam válidos para reconstruir e trazer ao presente as experiênciaspessoais do passado – “A vitima está ali, ofegante, no meio desses fólios amaralecidos”12. Apesar de Giovanni Levi, em conferência recente em Lisboa, ter recusado essadependência da micro-história em relação ao fenómeno inquisitorial, o facto é quepoucos documentos do período moderno conservam tanta informação sobre umnúmero tão alargado de indivíduos. É esta interligação que leva Wachtel a quaselamentar o fim dos tribunais do Santo Ofício13 e que o impossibilita de prosseguir estalinha de investigação para um período posterior ao século XIX. É precisamente sobrecomo contornar esta ausência de documentação que trata o epílogo do livro. Em jeitode diários de campo, são abordadas as investigações iniciais sobre a perpetuação domarranismo em território brasileiro, pois, tal como na Europa, também nas Américas aInquisição conheceu variantes distintas em territórios portugueses e espanhóis.

19 Na conclusão, Wachtel, partindo do particular para o geral, analisa a condição marrana

acrescentando à definição supracitada de Gebhardt a valorização das práticassecretistas e a poderosa reconstrução religiosa de que foram sujeitos os cristãos-novosno continente sul-americano (acrescentaríamos nós ainda os laços económicos que seunem ao termo “Nação” e que surgem abundantemente em muitos dos processosanalisados). Destaca-se a erosão provocada pelo olvido e pela resistência a este. A figuramarrana surge marcada pelo dever da lembrança de uma fé dos seus antepassados, deque em larga medida desconhecem os mitos e rituais, pela recusa de uma fé imposta,mas inevitavelmente assimilada e fundida nas crenças hebraicas, e pelas práticas deadaptação a um meio sócio-religioso que lhe é profundamente hostil.

20 Num último momento é ainda proposta a comparação do fenómeno marrano com o

despontar do modernismo europeu racionalista, tolerante e laicizante de Montaigne ouVoltaire. Poderá o mesmo tipo de sentimento ser encontrado nos cristãos-novos daEuropa? Se sim, não serão Uriel da Costa ou Espinosa os exemplos mais próximos destefenómeno? Não partilharam ambos, com os diferentes sujeitos de A Fé da Lembrança, omesmo modelo de desenraizamento social e de questionamento teológico interior? Não

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será apanágio de qualquer bom livro responder mas também levantar novas questõesao leitor?

NOTAS

2. Wachtel, p. 33.

3. Wachtel, p. 49.

4. Wachtel, p. 86.

5. Wachtel, p. 185.

6. Wachtel, p. 187.

7. Wachtel, p. 196.

8. Wachtel, p. 218.

9. Wachtel, p. 195.

10. Wachtel, p. 190.

11. Wachtel, p. 149.

12. Wachtel, p. 36.

13. “Infelizmente para os historiadores, a documentação inquisitorial estancou-se subitamente” –

Wachtel, p. 363.

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VERGÈS, Françoise, “Nègre je suis,nègre je resterai”. Entretiens avecFrançoise VergèsCatarina Madeira Santos

REFERÊNCIA

VERGÈS, Françoise, “Nègre je suis, nègre je resterai”. Entretiens avec Françoise Vergès,Paris, Albin Michel, 2005, 151 pp.

1 Neste livro Françoise Vergès relata o seu encontro com o poeta, dramaturgo, ensaísta e

político, Aimé Césaire, nascido em 1913, na então colónia francesa da Martinica, e dealguma forma procura resgatar para o século XXI uma figura que, juntamente comLéopold Senghor, marcou profundamente a História do pensamento africano do séculoXX, através da fundação e formulação daquele que foi o movimento literário eideológico da Negritude, estreitamente associado aos projectos anti-colonialistas e aodesmantelamentos dos impérios coloniais.

2 O que move F. Vergès é a tentativa de estabelecer uma “genealogia” das ideias, através

da restituição da obra, por onde se possa criar uma relação com os debates do presente:“o fim dos impérios coloniais, e as questões que coloca, a igualdade, ainterculturalidade, a escrita da história dos anónimos, dos desaparecidos do mundonão-europeu” (p. 17). O livro está dividido em duas partes. Uma primeira reproduz oregisto das conversas que F. Vergès manteve com A. Césaire na Martinica, em Julho de2004. A segunda parte, “pós-fácio”, reúne ensaios da autora, onde a obra de A. Cesaire élida à luz da actualidade e dos grandes temas do pós-colonialismo, numa perspectivacrítica que recupera o pensamento de Césaire e, ao mesmo tempo, procura reconheceras vias e os limites da sua aplicabilidade.

3 O aparecimento deste livro em volta de Aimé Césaire tem a sua razão de ser. E deve

explicar-se, pelo menos, por duas circunstâncias. Em primeiro lugar enquadra-se numasequência de outras publicações que, desde os anos 90, foram marcando diferentes

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posições em relação à recepção da obra de Aimé Césaire, no contexto pós-colonial. Em1989 surgiram críticas oriundas de sectores ligados ao manifesto da crioulidade elideradas por P. Chamoiseau, R. Confiant e J. Bernabé. Aí se acusava Césaire de fazeruma celebração exclusivista da Negritude em detrimento da Antilhanidade e portanto dosvalores da crioulidade. Posteriormente, a publicação da obra de Raphael Confiant, Aimé

Césaire. Une traversée paradoxale du siècle, acentuava uma certa contradição entre o arrojoda obra poética e o carácter conciliador da acção política, nomeadamente a partir de1946, quando colabora em todo o processo que transforma a Martinica em“département d’outre-mer”, com estatuto administrativo, e assim ocupa o lugar dedeputado da Martinica, com representação no Parlamento francês. Em forma dereacção, seguiu-se a obra de Annie Lebrun, Pour Aimé Césaire (1994), onde se forneciauma defesa emocional do poeta. Depois Roger Toumson publicou Aimé Cesaire, le nègre

inconsolé (1994) e desenhou uma biografia organizada a partir do ideal do homem negro.Sem querer exagerar nas referências que envolvem o livro em análise, tem interessenotar que Edouard Glissant, o grande pai do discurso da crioulidade (v. g., Le Discours

antillais), também natural da Martinica, recupera a obra de Césaire no ensaio La Cochée

du Lamentin para celebrar o seu percurso. E em 2003, alguns dos mais destacadosintelectuais africanos tomaram a iniciativa de o homenagear, durante um colóquio emBamako, capital do Mali, originando uma publicação Césaire et Nous. Une rencontre entre

l’Afrique et les Amériques au XXIe siècle, onde o carácter polifacetado da sua personalidadevem tratado. Num certo sentido a obra de Vergès está na sequência destas publicaçõese, sem escapar a um fascínio (aliás confessado) pela personagem, nem por isso deixa derevelar um esforço crítico na análise da sua obra, o que fica claro quando põe um poucode lado a obra poética, onde se situa a universalidade e perpetuidade do seu legado,para se centrar na temporalidade das palavras e das posições políticas.

4 Por outro lado, e aqui se situa o segundo plano de enquadramento, este livro surge num

momento em que a sociedade civil francesa pós-colonial enfrenta um aceso debate emtorno do colonialismo, da escravatura, da relação entre passado colonial, memória epresente, mas também experimenta profundas fracturas sociais. A lei Taubira,publicada em Fevereiro de 2005, ao propor uma leitura light do colonialismo francês (erecomendar que nas escolas francesas se ensinasse e valorizasse a face positiva da acçãocolonial), despoletou uma produção bibliográfica inédita e um debate público sobre ostraços contemporâneos da escravatura e do colonialismo. Em todo este contexto,Françoise Vergès ocupa uma posição que não é, nem podia ser, totalmente neutral. Énatural da Reunião, actualmente professora de Ciências Políticas no King’s College emLondres e vice-presidente do “Comité pour la Mémoire de l’esclavage”. Possui umavasta obra no âmbito dos estudos pós-coloniais e das memórias da escravatura e é umadas vozes mais activas no debate que está em curso. No panorama bibliográfico francês,esta aproximação entre o discurso da Negritude e as problemáticas do pós-colonialismotem um carácter profundamente inovador, na medida em que os estudos pós-coloniaistêm entrado, a duras penas, na academia francesa.

5 A entrevista que nos dá Aimé Césaire em discurso directo não é, nem sobre a poesia,

nem sobre o teatro, mas sobre temas mais gerais como a escravatura e a reparação, asolidão do poder, a República e a diferença cultural. Trata-se da invocação de umpercurso que remete para o momento em que Césaire deixa a Martinica colonial, espaçode recusa, e se dirige a Paris, onde frequenta a École Normale Supérieure, faz amigos,como Léopold Senghor ou Michel Leiris e se coloca questões que conduzem à revelaçãoda “identidade negra”, do “Nègre fondamental” (p. 27), da ideia de uma especificidade

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africana, entendida como especificidade negra. A referência ao grande clássico Cahier

d’un retrour au pays natal, livro de poemas onde aparece pela primeira vez o termoNegritude, depois retomado por L. Senghor, nem por isso ofusca a posição do homem emrelação aos vários tempos em que foi precisando colocar-se. Do diálogo ressalta a críticaao pretenso universalismo dos valores de civilização impostos pelo colonialismofrancês, por oposição ao reconhecimento da diferença cultural, conotado com o tipo decolonização praticado pela Inglaterra. E é em aspectos como este, da contestação douniversalismo, que Vergès conduz, de facto, a conversa para depois, no pós-fácio,revelar ao leitor a actualidade de algumas posições de Aimé Césaire.

6 Da leitura deste livro fica-nos o retrato de um pensador, na sua dimensão política. Ao

contrário dos intelectuais que celebram o poeta, Vergès incide sobretudo no homem deacção e na actualidade dos seus escritos políticos. Obras como Discours sur lecolonialisme ou Cahier d’un retour au pays natal, continuam a ser objecto de interessepor parte de estudiosos de todo o mundo, desde os Estados Unidos à Alemanha e aoJapão. Para a actualidade, Aimé Césaire representa o intelectual profundamenteenraizado na sua circunstância, o “intelectual africano” que age politicamente. E paraquem está de fora e pode pensar em relação a outros intelectuais oriundos de outras“Áfricas”, o interesse deste livro reside precisamente aí: na revelação do compromissoentre a voz do poeta e do ensaísta com a voz do político. E dá para pensar noutrasfiguras e perguntar se, de facto, ao longo do século XX, nos países africanos que faziama sua independência, a figura do intelectual/académico e a figura do político não forammaioritariamente ditas por um mesmo sujeito.

7 Uma nota ainda para revelar um tom intimista, sem no entanto cair no

sentimentalismo, do diálogo que Françoise Vergès estabelece com esta figura. Há,claramente, uma “motivação afectiva” atrás deste volume, por mais que ela apareçarevestida pelo aparato crítico próprio das obras científicas. Entre Vergès e Cèsaire ostraços da cumplicidade são facilmente apreensíveis e invocados ao longo dos diálogos:uma naturalidade tropical (“vous êtes réunionnaise… je suis martiniquais”, v. g., p. 19),o traço da marca colonial, onde a França é a Metrópole, a condição insular, aexperiência de cidades crioulas, Fort-de-France na Martinica, Saint Louis, na Reunião…E, até por isso, este volume ganha originalidade.

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ARAÚJO, Ana Cristina, A Cultura dasLuzes em Portugal, Temas e ProblemasNuno Martins

REFERÊNCIA

ARAÚJO, Ana Cristina, A Cultura das Luzes em Portugal, Temas e Problemas, Lisboa, Livros Horizonte, 2003, 126 pp.

1 Inserido na colecção Temas de História de Portugal, cujo objectivo, balizado pelos seus

coordenadores, Isabel Cluny e Nuno Gonçalo Monteiro, é “colocar à disposição dosleitores interessados textos sintéticos, mas actualizados, sobre grandes temas daHistória de Portugal”, A Cultura das Luzes em Portugal, Temas e Problemas é um ensaio-síntese da autoria de Ana Cristina Araújo e pretende gizar uma análise interpretativa dapermeabilidade do espaço cultural português às novas correntes filosóficas depensamento associadas ao período das Luzes, em articulação com as singularidades darecepção, assimilação e reprodução próprias no espaço cultural de Portugal na centúriade Setecentos.

2 Ana Cristina Araújo, reputada investigadora e autora de estudos centrados na

problematização da época das Luzes em Portugal, é professora da Faculdade de Letrasna Universidade de Coimbra, membro do Instituto de História e Teoria das Ideias,investigadora do Centro de História da Sociedade e da Cultura e redactora da Revista de

História das Ideias.

3 Com frequência, uma leitura e apreensão menos atenta da globalidade dos estímulos

implícitos às correntes filosóficas emergentes no século XVIII, associada àrepresentação do Iluminismo, como fenómeno global, uno e de difusão transparente,conduz à ideia de que as Luzes se acenderam na Europa do século XVIII, de um centropeninsular até às periferias, onde Portugal ocuparia uma posição de receptor tardio.Nada mais errado.

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4 A presente obra proporciona visibilidade ao impacto do novo pensamento produzido

além-fronteiras, às repercussões numa elite erudita nacional que, desta forma,descobria uma ignição para discutir o ideário de pensar a natureza, o homem, a políticae a organização social. Assimilando essas ideias, mas não sendo mero receptáculo,procurando criticá--las objectivamente, produzindo e teorizando num frenesimclandestino que se estendeu e contaminou os círculos eruditos, adquiriu uma dimensãoà qual as forças dominantes da sociedade portuguesa responderam, em diferentesmomentos, de diferentes formas e com diferentes recursos.

5 Ana Cristina Araújo transporta o leitor para o plano das ideias, para o palco dos novos

espaços de sociabilidade e discussão intelectual, não obedecendo a uma lógicacronológica, porque uma exposição temporal e factual não é a sua intenção. E aindabem. Importa--lhe sim, oferecer uma interpretação da conjuntura nacional face aopensamento europeu, da postura do Estado e do clero face a uma renovada epistéme, doprocessamento interno das diversas correntes filosóficas e da sua repercussão ereprodução, visitando os espaços físicos e mentais de fermentação de uma modernidadenacional. Todo este manancial de intenções é substantivo e claramente problematizadoem A Cultura das Luzes em Portugal, explorando os estádios de consenso e contradiçãoque a enformam.

6 Para este fim, a autora dividiu o livro em dois blocos, Modernidade Cultural e Mentalidade

Barroca e Cosmopolitismo e Opinião Pública, precedidos de uma longa introdução, onde semanifestam os postulados da reflexão. O resultado é uma construção intelectual numespaço analítico onde, primeiramente, se expõem e traçam as singularidades quedistinguiram os diferentes níveis de aquisição e cruzamento de uma anunciadamodernidade intelectual por oposição, complemento e transformação a umamentalidade barroca dominante nas esferas do poder, insegura e caduca. Na segundaparte, aborda-se concretamente o que foi a cultura das Luzes em Portugal, as reacções etensões geradas, os meios e suportes de difusão, a emergência de espaços públicos, adivulgação directa enlevada na produção cultural ou na subtileza dos discursos, adifusão de objectos culturais, a profusão de livros proibidos em circulação, a apetênciade um público cada vez mais vasto, os instrumentos de repressão e controlo censório doEstado.

7 As preocupações subjacentes à organização da primeira parte do livro, prendem-se com

a identificação de campos ideológicos, várias vezes antagónicos, mas também cúmplicese coexistentes. A percepção dos antigos pelos modernos no período inicial damodernidade é delineada na evidência da permeabilidade às modernas teorias na esferado conhecimento, principalmente nos domínios da Física, da Astronomia e daMatemática. Os modernos “descobriram” a racionalidade como fundamento da verdadecientífica, cuja centralidade é intrínseca aos métodos propostos pela vanguarda dopensamento europeu, com princípios submissos a propostas de interpretação danatureza e do mundo em eixos diferenciados. O método cartesiano, da razão pura, ou ométodo de Newton, mecanicista, reflectiam a dificuldade de interpretação do presentepara o homem do século XVIII e de entendimento das leis da natureza, que lhe confiava,aos poucos, os seus mais profundos segredos. Em Portugal, contrariamente à ideia deuma retardatária e periférica recepção das novidades estrangeiras, esta múltiplaassunção de escrutínio do mundo era quase em simultâneo descoberta, recepcionada eapreendida com actualidade, apesar das limitações de alcance, objecto de reflexões em

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privado e em pequenos grupos, discutida pelos primeiros modernos, factor de umaprogressiva evolução do pensamento.

8 A confiança na lógica natural, na razão natural e no empirismo, precedida por uma

submissão à Geometria de toda a percepção da natureza e das noções apreendidas pelossentidos, são as tendências que se prefiguram no caminho do domínio do conhecimentoem defesa da liberdade de pensamento.

9 E quem foram estes modernos? Que dilemas se lhes depararam no confronto das novas

ideias com o pensamento escolástico instituído e enraizado no ontos? Quecompromissos assumiram ou permitiram, consciente e inconscientemente, perante odilema do alinhamento com a moral oficial de forma a não chocar com as posiçõesescolásticas? O choque dos paradigmas mecanicista de Newton, racionalista deDescartes ou empirista de Locke, com os dogmas da fé, irredutivelmente defendidospelos jesuítas, garantes da filosofia católica, proporcionou o aceso debate entre oaristotelismo escolástico e os novos sistemas filosóficos.

10 A estruturação de uma nova gnose, pela introdução de novos vocábulos na língua

portuguesa, oriundos dos campos da Filosofia e do experimentalismo; pelas técnicascartesianas, sustentáculo da razão pura e da ciência experimental; pela Geometria,vórtice e sustento do conhecimento; pela modernização do ensino das matériascientíficas e dos modelos de saber; pelos estudos gramaticais e lexicográficos, e dafunção da palavra, numa problemática filosófica de nexo com a fé instituída, éexplorada por Ana Cristina Araújo, numa visualização do caminho para umamodernidade pelo rompimento com o logos barroco.

11 Ao leitor é proporcionado um contacto superficial, mas significativo e substantivo, com

a produção escrita que progressivamente emerge da fermentação das ideias no seio daselites eruditas nacionais. Importantes obras como a Logica Racional, Geometrica e Analitica

(1744), de Manuel de Azevedo Fortes, apesar da evidente auto-censura, comosalvaguarda do impacto na ruptura epistemológica, aliada a um temor em desafiar osprimados do todo-poderoso catolicismo vigente na sociedade portuguesa de setecentos,são vigorosos testemunhos de uma transformação de ideias, propostas de debate eobjectos de divulgação que, paulatinamente, estruturavam um desiderato para amodernidade, apesar das grilhetas da Igreja cuja resistência ao reconhecimentometodológico do experimentalismo e do empirismo, aos primeiros trabalhos decompendiação e outros contributos avulsos, era uma realidade que adquiria um sentidocada vez mais forte. Uma corrente anti-modernista coexistia, surda mas eficaz, e a suaface visível era denunciada pelo bloqueio à publicação de obras científicas estrangeirasem Portugal.

12 Esta dupla realidade, num complexo e intricado jogo entre as instituições do poder,

complacentes por vezes, promotoras, noutras, ou ainda censórias e repressivas, com omeio dos pensadores modernistas, é explorada pela autora, para se poder apreender oclima das Luzes em Portugal, o impacto na sociedade, os mecanismos promotores oubloqueadores, que potenciaram ou inibiram, que favoreceram ou antagonizaram. Masera peremptório e indisfarçável que a penetração era uma realidade e que a filosofia dasLuzes, ou a linguagem dos sentidos, adquiriu uma dinâmica que dificilmente se deteria.

13 A abertura do espírito dos grandes do Reino vai produzindo efeitos, sobretudo nas

gerações mais novas, e obras como o Verdadeiro Método de Estudar para ser útil à República

e à Igreja (1746), de Luís António Verney, trouxeram para o domínio público novas

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ideias que punham em causa a mentalidade barroca e assumiam a ruptura com aescolástica instituída.

14 O inelutável trilhar do progresso da razão e das artes, do optimismo científico dos

filósofos, conduz à ascensão de um novo homem, intelectual e moralmente, nodespertar da civilidade dos povos e das nações. Este é o eixo axial para a segunda partedo livro. Se, antes, a essência é a descoberta, recepção, assimilação e produção própriado pensamento das Luzes, agora, a autora expõe a própria cultura das Luzes no palcoportuguês.

15 As reformas do ensino, os meios de divulgação, os mecanismos editoriais, as práticas

culturais, a relação com os poderes censórios são agora expostos, sintética massistematizadamente. A Educação, sustentada pela Filosofia, é factor primordial decivilização e, transportada numa matriz cristã de aperfeiçoamento do género humano,deveria promover uma ordem universal de valores agregados à utilidade social daciência. Estes critérios, e a crítica à dependência intelectual e doutrinal, sãoequacionados por Luís António Verney sem as grilhetas de tudo o que subjuga o espírito na

base da descoberta da verdade, legitimando as operações mentais do raciocínio e dodiscurso. Verney, Teodoro de Almeida, Frei Manuel do Cenáculo ou Ribeiro Sanchesforam eruditos esclarecidos, contribuindo para a construção de um novo modelo deensino, na sua forma e conteúdos, inserido na órbita ideária das Luzes. Apesar dasdiferentes concepções e posições, estes eruditos partilhavam do objectivo comum: afelicidade ser útil ao género humano, idealizando a contribuição da Filosofia e das ciênciasracionais como motor para a compreensão da natureza e do homem, preterindo arevelação divina à universalidade da razão natural.

16 A política cultural durante o regime do Marquês de Pombal tem uma face no ensino,

como suporte para a difusão da boa educação, e outra, na censura, para controlo daopinião pública e defesa da ideologia do Estado. Em capítulos próprios, ficam evidentesas dinâmicas proporcionadas e vivificadas pela imprensa, na tripla função de cimentaro espaço reservado à opinião pública, de amplificar o exercício da crítica e de funcionarcomo agente de difusão cultural.

17 Ana Cristina Araújo seleccionou três jornais, o Anónimo (1752-1754), a Gazeta Literária

(1761-1762) e o Jornal Enciclopédico (1779-1793), como case studies de curta vida,revelando o modus operandi, as preocupações, as temáticas abordadas, os apoiosexternos e internos, a singular inovação que representaram na segunda metade desetecentos. Simultaneamente, complexificam-se e diversificam-se estes mecanismos.Existem vários livreiros estrangeiros em Portugal, publicam-se obras de ciênciamoderna em língua portuguesa, proliferam os espaços dedicados a colecções de HistóriaNatural e a experiências científicas, promovem-se expedições e viagens científicas,nascem jardins botânicos e museus, inauguram-se as bibliotecas. A abertura deequipamentos culturais em finais de setecentos reflecte a necessidade social e cultural,também simbólica, das interacções de uma nova sociabilidade.

18 O panorama da relação de toda esta dinâmica com a censura, é objecto de análise

transversal, evidenciando a sua volubilidade, com excepções e permissões, na repressãodos livreiros, nas opções editoriais, no controlo das importações e nos expedientespraticados, que denunciam as dificuldades de funcionamento e os paradoxos doaparelho censório no Portugal setecentista.

19 Uma referência final para a extensa bibliografia apresentada, cuja riqueza se oferece

como fonte para o prolongamento do estudo de assuntos específicos ou a exploração de

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conteúdos vinculados à temática. Finalmente, A Cultura das Luzes em Portugal é, também,servida por um índice onomástico, secção essencial e imprescindível para posterioresconsultas e estudos.

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HALLWARD, Peter, AbsolutelyPostcolonial: Writing between theSingular and the SpecificMarcos Cardão

REFERÊNCIA

HALLWARD, Peter, Absolutely Postcolonial: Writing between the Singular and theSpecific, Manchester, Manchester University Press, 2001, 433 pp.

1 Na contracapa deste livro o filósofo esloveno Slavoj Žižek escreve: “finalmente a voz

que secretamente todos estávamos à espera (...) se cada livro pudesse ser uma arma,este sê-lo--ia!” Da exclamação passemos à interrogação: será que nos dias que corremainda existem livros que recusem o cepticismo reinante e abalem os consensosestabelecidos?

2 Findo o século das rupturas e das catástrofes, encontramo-nos entre paradigmas, um

local de eterno presente, dominado por falsos consensos, singularidades epragmatismo. Visando elaborar uma filosofia pós-colonial da subjectividade, este livro,árido mas eficiente em termos pedagógicos, desafia criticamente as categoriasestabelecidas para interpretação do mundo, em particular as nomenclaturas avançadaspelas teorias pós-coloniais. Estas inicialmente enfatizaram a fragmentação, o quesupostamente conduziria a uma nova atenção ao contexto e à pluralidade das posiçõesdo sujeito; porém, estas suposições rapidamente resvalaram para uma metacategoria“indiferenciada” em que tudo se tornou indistinto, singular e particular.

3 É no impasse teórico dos estudos pós-coloniais que Peter Hallward – através de um

aturado estudo literário das obras do caribenho Edouard Glissant, do norte-americanoCharles Johnson, do argelino Mohammed Dib e do cubano Severo Sarduy – procurareafirmar a validade da literatura, independentemente das leituras parciais da políticaou do interpretativismo desconstrucionista. Este projecto reenvia-nos para a filiação

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original dos estudos pós-coloniais que, no que diz respeito à literatura, foramrecorrentemente breves, insubstanciais e, por vezes, simplesmente anedóticos.1

4 Peter Hallward, professor de Filosofia Moderna na Universidade de Middlessex,

publicou Absolutely Postcolonial em 2001 e, posteriormente, tornou-se um divulgador daobra filosófica de Alain Badiou no mundo anglófono, com a publicação de Badiou: A

Subject to Truth (2003); Think Again: Alain Badiou and the Future of Philosophy (2004), umvolume editado por Peter Hallward e Slavoj Žižek; e o recente Out of this World: Deleuze

and the Philosophy of Creation (2006). São ecos destes autores, entre outros, queperpassam neste trabalho controverso.

5 Absolutely Postcolonial está dividido em cinco capítulos, quatro deles dedicados aos

romancistas referidos, seguidos por excursus no final de cada capítulo, nos quais o autorexpõe os seus conceitos, ao mesmo tempo que critica os conceitos hegemónicos daordem pós-moderna: híbrido, intersticial, contingente, singular, indeterminado eunívoco.

6 Na introdução são analisados dois conceitos fulcrais na tese do autor: singular e

específico, que designam dois pólos abstractos distintos. O primeiro consiste numprocesso interno de individuação não-relacional e particular que substitui ahistoricidade pela contingência; e o segundo, por essência relacional, pressupõedeliberações, escolhas, riscos e potencia novos universalismos2. Hallward argumentaque o discurso pós-colonial está acoplado a uma empresa essencialmente singular,autoconstituída e auto-regulada, que resiste à mediação, logo não tem objectoespecífico susceptível de interpretação. Não se trata apenas de uma críticaterminológica à singularização dos conceitos (agência, contexto, eu, outro, política, cultura)postos em prática pela teoria pós-colonial, é também uma clara condenação daabordagem singular de raiz deleuziana3 operada por outras teorias, em particular pelateoria literária.

7 Para resistir à tendência da singularização o autor propõe uma reconceptualização

teórica global e uma inovação política incisiva4. Em primeiro lugar, preencher a lacunaque existe actualmente nos estudos pós-coloniais que, segundo Hallward, fazem umaleitura dos textos literários de forma “apologética”, “particularista” e “parcial”, em vezde efectivarem uma leitura detalha dos textos “nos seus próprios termos”. Em segundolugar, reconceptualizar o específico, não como sinónimo do particular, intrínseco oulocal, mas como uma equação activa e subjectiva da relacionalidade enquanto tal. Emterceiro lugar, quebrar o laço entre política e cultura, não cedendo à omnipresença dacultura reificada na sociedade contemporânea nem ao comunitarismo identitárioreinante. Em quarto lugar, reafirmar a autonomia limitada do campo literário e da suacapacidade de criação e invenção de palavras não submetidas às qualidades específicasque governam a sua produção; impedindo deste modo a exclusão da literatura para umaespécie de “regresso dos deuses” romântico, ou para afirmação de um didactismo do“como deve ser” do realismo socialista. Por fim, retomar a palavra/significadouniversal, com vista a prescrever as condições de possibilidade válidas para qualquerrelação independentemente das suas especificidades e contingências.

8 Recuperemos a questão do singular e do específico na abordagem que o autor faz do

trabalho de Glissant, Johnson, Dib e Sarduy que, apesar da sua origem radicalmentediversa, apresentam uma concepção singular da realidade. Pese embora airredutibilidade das posições e trajectórias de cada dos autores: Dib partilha uma versãodo misticismo islâmico; Sarduy e Johnson partilham uma versão do budismo; e Glissant

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segue o modelo “tout-monde”, ou seja, uma versão nomadológica de origem deleuziana.5 O singular, como nomádico e não relacional, afirma a passividade e a univocidade decada indivíduo; em contraponto, a categoria de específico valoriza a relação do sujeitoem cada situação/contexto e sugere a preeminência do sujeito sobre o objecto. Oprojecto seria produzir um conceito de sujeito que não tivesse como sustentáculo oobjecto.

9 Hallward socorre-se de Franz Fanon para explicar este processo: um indivíduo torna-se

sujeito na sequência de um processo militante de descolonização. Este processorelacional conduz à universalidade (um universal político), “desobstruindo”6 o sujeitoque anteriormente estava constrangido pela situação colonial. Todavia, a eliminação doconstrangimento colonial (ou outro) não produz necessariamente o específico, pois esteprocesso só é possível através de sucessivas “desobstruções”. Pretende-se no fundo aconversão das relações objectivadas e singulares em relações subjectivas e específicas. Emresumo, parece-nos claro que a ênfase na relacionalidade7 e nas taxinomias de específico

e singular reconduzem-nos às noções de sujeito e objecto, ou não será o sujeito específico

(“desobstruído”) um sinónimo contemporâneo do sujeito universal emancipado? Seassim é, quais são os trilhos dessa emancipação?

10 Aqui entramos no ponto mais espinhoso da análise de Hallward, que propõe o regresso

específico do estado-nação para fazer face aos “minimercados” particularistas doculturalismo contemporâneo; desvalorizando assim a resistência liminar ao estado-nação por parte das teorias pós-coloniais que o consideram um obstáculo à dinâmicasingular de crioulização cultural. Hallward defende um nacionalismo neo-jacobino

inclusivo e solidário, indiferente às especificidades particulares, que assegure à acçãopolítica alguma durabilidade. Esta reabilitação, excessivamente voluntarista, pressupõeque o estado-nação se encarregue da “transubstanciação” de comunidades locais e dassuas tradições na nação moderna (“comunidade imaginada”) que, independentementedas desigualdades, engendra laços de camaradagem horizontais entre os seusconstituintes. Nesta lógica, o estado- -nação “sublimaria” as formas locais deidentificação, impondo-lhes uma significação “patriótica” universal e, contiguamente,posicionar-se-ia como uma espécie de fronteira pseudonatural da economia demercado, separando o comércio “interno” do comércio “externo”. Esta forma denacionalismo económico, ou seja, a “sublimação” da actividade económica elevada àcategoria de coisa étnica, legitimada enquanto contribuição patriótica para a grandezadas nações, esbarra evidentemente na lógica imanente ao Capital, cuja natureza“transnacional” é, por definição, indiferente às fronteiras do estado-nação.

11 Curiosamente a perspectiva de reabilitação do estado-nação proposta neste livro

coincide com o argumento universalista que, para além de transcender ascontingências empíricas, prescreve critérios válidos para todas as relações numa dadasituação. Neste caso a legitimidade não decorre da integridade de uma dada relaçãoparticular (do estilo empregador/empregado ou senhor/escravo) mas sim do critérionormativo aplicado a cada relação em geral, o que implica deliberação, decisão etomada de partido (militante e subjectiva), ou seja, a universalidade é um resultadoexcepcional que tem a sua origem num momento, a consequência de uma decisão e uma“maneira de ser” que transcende um saber ou uma representação. A concepçãoespecífica da relacionalidade radica num “surgimento incalculável” que requer umadisposição subjectiva transversal a todas as representações e indiscernível ao tempo, ouseja, deve ser necessariamente a-histórico e sem predicados descritivos preexistentes.

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Nesta passagem Hallward repercute nitidamente o trabalho événementiel de AlainBadiou.8

12 Em suma, Absolutely Postcolonial é um manifesto teórico para o século XXI que versa uma

multiplicidade de temas que vão desde a distinção entre política e cultura; areafirmação de uma certa autonomia do campo literário; a adopção de uma políticaespecífica para fazer face às tendências globais eminentemente singulares; até àdemonstração que, contra todas as evidências em contrário, a era das invençõespolíticas está longe de ter terminado.

13 Os argumentos, a densidade e a perspicácia do livro de Peter Hallward são inegáveis,

mas será que este “exercício de pensamento” é transponível para outros campos dosaber? Que consequências trariam a operacionalidade de tais teorias? No caso dasCiências Sociais acreditamos que a tónica da relacionalidade “desobstruiria” os saberescompartimentados de cada disciplina, por vezes excessivamente singulares e presos a“jogos de linguagem” particulares, e abalaria o modo de funcionamento do trabalhoacadémico corrente (explicativo, verificável, empírico, solucionador de problemas, etc).A dimensão do “aparato teórico” seria crucial para a efectivação de um projectotransdisciplinar que possibilitasse elaborar “metacomentários”9 capazes de traduzircriticamente a realidade, minando desta forma as fronteiras disciplinares do trabalhoacadémico. Nesta linha, a abordagem de Peter Hallward, ainda que incompleta econtraditória, é uma lufada de ar fresco que visa interpretar, da forma mais alargadapossível, os vários contextos específicos, problematizando, ao mesmo tempo, osprocedimentos dessa análise.

NOTAS

1. “Having long since absorbed the boundary-blurring lessons of deconstruction, many

postcolonial literary critics seem embarrassed by what remains of their disciplinary affiliation.

Most postcolonial readings are brief, often insubstantial, sometimes simply anecdotal” (p. 335).

2. “Roughly speaking, a singular mode of individuation proceeds internally, through a process

that creates its own medium of existence or expansion, whereas specific mode operates, through

the active negotiation of relations and the deliberate taking sides, choices and risks, in a domain

and under constraints that are external to these takings” (p. XII).

3. “Deleuze accepts that there has only ever been one ontological proposition: Being is univocal.

(…) Deleuzian univocity is the condition of radically singular difference, i.e. difference free from

the limits of constituent relations between the differed. Difference rests entirely in the ‘Creating’,

so to speak” (p. 12). Ver também Peter Hallward, Out of this World: Deleuze and the Philosophy of

Creation, London, Verso Books, 2006.

4. “Postcolonial writing is indeed worthy of systematic and thorough interpretation, but such

interpretation can only proceed on the basis of an unapologetically contemporary theoretical

framework” (p. XIX).

5. “I will argue that Glissant’s later concept of the Tout-monde, or whole-world, is not

fundamentally relational in the specific sense used in the present study, so much as the medium

and expression of a singular whirlwind of self-differentiation and constant or ‘chaotic’

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metamorphosis. Like Deleuze, Glissant arrives at a theory of la Relation defined primarily by its

transcendence of relations with or between specific individuals” (p. 67).

6. Que corresponde a “Despecification” no original em inglês: “the subject qua subject only comes

into being through and as a result of the militant process of decolonisation as such. Despecification

– here the explosion of colonial constraints – is itself the process of subjectivation” (p. 50).

7. “Relationality, in short, is not itself dialectical (even though many relations are inflected in a

dialectic way). Relation is the unchanging medium and transcendental condition of our

existence. (…) Relation does not distribute its ‘terms’ in a singular dissemination, but provides

the medium in which these terms persist and change” (p. 252).

8. Ver Alain Badiou, L’Être et l’événement, Paris, Éditions du Seuil, 1988; no qual enuncia e valida

(filosoficamente) a equação matemática = ontologia; e articula os pontos nodais da sua filosofia:

Ser, Acontecimento e Sujeito. Para Badiou há quatro “procedimentos genéricos”: o amor , a arte

(criação), a ciência (conceptual) e a política (emancipadora). A Verdade irrompe de um destes

quatro Acontecimentos e tem como finalidade um Sujeito que é fiel às consequências do

Acontecimento. Este impulso de fidelidade é uma “escolha pura” indiscernível, pois a Verdade é

ilimitada nas suas formas; inominável, porque não tem nomes nem é legislável; indecidível, no

sentido em que a Verdade não é uma garantia permanente, ela acontece e é perpetuamente

verificável; e genérica, pois a Verdade não pertence ao conhecimento nem é representável. Estes

conceitos, entre outros, são desenvolvidos no segundo tomo de Alain Badiou, Logique des mondes.

L’Être et l’événement 2, Paris, Éditions du Seuil, 2006; onde prossegue ‘formalizações lógicas’ que

(re)inventem a metafísica contemporânea.

9. Ver entrevista a Frederic Jameson conduzida por Xudong Zhang, “Marxism and the Historicity

Theory”, publicada no New Literary History, 29 (3) (1998), pp. 353-383; in The Jameson Reader, Ed.

Michael Hardt e Kathi Weeks, Blackwell, Oxford, 2004 (2000) pp. 149-163.

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