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O advento dos conceitos de cultura e civilizao: sua importncia
para a
consolidao da autoimagem do sujeito moderno
The advent of the concepts of culture and civilization: Their
importance to the self-image
of the modern subject
Caio Moura1Unicamp
Filosofi a Unisinos10(2):157-173, mai/ago 2009 2009 by Unisinos
doi: 10.4013/fsu.2009.102.03
RESUMO: Este texto objetiva retraar, por meio de uma anlise
histrico-fi losfi ca, o nascimento das ideias de cultura e
civilizao no mundo moderno. De um lado, analisa alguns fatores que
motivaram o advento de uma nova conscincia social na Alemanha
pr-romntica, responsveis, entre outras coisas, pelo advento das
noes de Kultur e Bildung; de outro, examina a natureza do discurso
fi losfi co que motivou o surgimento da noo francesa de civilizao
no sculo XVIII. No obstante as suas especifi cidades conceituais e
histricas, que, em princpio, as tornam conceitos bastante
diferentes entre si, cultura (Kultur) e civilizao so atravessados
por uma determinao comum que est ligada ao conjunto de transformaes
sofridas pelo sujeito moderno na segunda metade do sculo XVIII.
Palavras-chave: cultura, civilizao, Bildung, sujeito,
barbrie.
ABSTRACT: The text aims to review through a
historical-philosophical analysis the rising of the ideas of
culture and civilization in the modern world. On the one hand, it
analyses some factors that motivated the outcome of the new social
consciousness in the pre-romantic Germany responsible, among other
things, for the notions of Kultur and Bildung. On the other hand,
it investigates the nature of the philosophical speech that
motivated the French notion of civilization in the 18th century.
Despite their conceptual and historical
1 Doutor em Filosofi a pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Pesquisador Colaborador do Departamento de Filosofi
a da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Rua Cora Coralina,
Campus Unicamp 13083-896, Campinas, SP, Brasil. Bolsista de
ps-doutorado pela Fapesp. E-mail: [email protected].
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Caio Moura
peculiarities which, in principle, turn themselves into very
different concepts, culture (Kultur) and civilization are crossed
by a common determination that would be tied to a set of
transformation suffered by the modern subject in the second half of
the 18th century.
Key words: culture, civilization, Bildung, subjectivity,
barbarity.
Introduo
Precisar o contedo fi losfi co dos conceitos de cultura e
civilizao no uma tarefa fcil. Suas variadas formas de emprego
sugerem que tais ideias, longe de se revestirem de um sentido
unvoco, caracterizam-se por uma dimenso po-lissmica, complexa, por
vezes fragmentria. A diversidade de palavras propiciada pela lngua
alem, mediante o uso de termos como Bildung (formao) e Kultur
(cultura), fornece uma difi culdade adicional e um desafi o
constante s tradues. Mas no apenas isso. O sculo XIX conheceu,
desde suas primeiras dcadas, uma exploso de signifi cados dos
termos cultura e civilizao. Passou-se a falar da cultura de povos e
pases, mas tambm da cultura de grupos ligados pelas razes mais
diversas, desde a religio, passando pela nacionalidade, at a etnia.
Sob um ou outro aspecto, o signifi cado da palavra cultura
designava o conjunto de com-portamentos e representaes de mundo.
Ela procurava encontrar o trao singular de certa coletividade, na
unidade, mais ou menos coerente, da totalidade de suas manifestaes.
Ao lado desta ideia, o termo cultura tambm podia se revestir de um
sentido bastante diverso (na verdade bem mais antigo), designando
um conjunto de conhecimentos adquiridos por um indivduo por
intermdio da instruo. Ser culto ou cultivado signifi cava
essencialmente estar na posse de conhecimentos diversos, qualquer
que fosse a sua natureza, cientfi ca, literria ou fi losfi ca.
Todavia, o termo civilizao passou, e com mais intensidade, por
um processo semelhante. Em seu sentido clssico, a ideia de
civilizao englobava o progresso obtido no plano material pelas
sociedades industriais e, naturalmente, designava uma
particularidade do mundo ocidental moderno. Contudo, passou-se a
falar do contraste entre uma civilizao antiga e uma civilizao
moderna, da existncia de uma antiga civilizao grega e uma civilizao
romana, ou mesmo da oposio mais geral entre civilizao ocidental e
civilizao oriental, temas de inmeros debates entre os estudiosos
(Guizot, 1838).
A insurreio contra o mundo da conveno aristocrtica: o nascimento
do conceito de Kultur como experincia vivida
At meados do sculo XVIII, entretanto, as palavras civilizao e
cultura so inteiramente desconhecidas. Para marcar a oposio frente
ao selvagem ou ao brbaro, empregava-se, frequentemente, o termo
civilidade. Deve-se a Erasmo a recepo deste termo, no fi nal do
Renascimento, por ocasio da publicao do Tratado de civilidade
pueril (Erasme, 2001), em 1530. Ainda que este pequeno texto fosse
dedicado educao moral das crianas, seu contedo ultrapassava de
longe a mera educao infantil e no demorou a alcanar um grande xito
junto s cortes europeias como um ideal de conduta a ser buscado. A
civilidade representava, antes de tudo, uma ao sobre o corpo e um
domnio das aparncias: o comedimento dos gestos, a maneira de falar,
o modo de se apresentar, de se portar mesa, tudo
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O advento dos conceitos de cultura e civilizao
isso passou a integrar, ao lado das regras de polidez, um novo
modelo de forma-o que pouco a pouco se imps entre as cortes da
Europa. Por volta da primeira metade do sculo XVIII, a realeza
francesa apropria-se da excelncia desse modelo. Seus hbitos so
imitados por todas as cortes, incluindo as monarquias dos Esta-dos
alemes. O francs2 a lngua falada pelos membros da nobreza da corte,
que apenas reserva seu idioma materno s relaes com as classes
subalternas. Em uma carta dirigida a Voltaire, Frederico II,
prncipe da Prssia, afi rma no falar alemo seno para repreender seus
servos e dar ordens s suas tropas. No se aprende essa lngua,
escreve o prncipe, seno para fazer guerra (Frederic II, 1805, vol.
XVI, p. 283). Dirigindo-se uma vez mais ao seu mais ilustre
interlocutor, Frederico ainda mais sarcstico: eis o que eu disse
aos cavalos que tero a honra de vos conduzir, referindo-se ao poema
dedicado ao fi lsofo com o qual abrira a carta (Frederic II, 1805,
vol. XIV, p. 236), para ento completar: dizem que a lngua alem
feita para falar com os animais; e, na qualidade de poeta desta
lngua, julguei que minha musa estivesse mais capacitada a inspirar
os seus cavalos do que vos enviar os seus sons (Frederic II, 1805,
vol. XIV, p. 236). Para alm do desprezo perante o alemo, lngua
verborrgica (Frederic II, 1805, vol. XVI, p. 172-173), segundo o
prncipe, suas cartas no se cansam de enaltecer o francs como uma
lngua dos deuses (Frederic II, 1805, vol. XVI, p. 243), dotada de
elegncia e fi neza (Frede-ric II, 1805, vol. XII, p. 45). Nenhum
homem que no seja nascido na Frana, ou habituado desde muito tempo
a Paris, enfatiza Frederico, poder possuir em sua lngua o grau de
perfeio to necessrio para fazer bons versos ou elegante prosa
(Frederic II, 1805, vol. XV, p. 14).
O domnio da lngua francesa talvez tenha sido o sinal mais
eloquente de uma disposio de esprito que norteou a civilidade
europeia no sculo XVIII, mas certamente no foi o nico. A disciplina
sobre o corpo, o comedimento dos gestos, a polidez dos hbitos eram
parte de um processo de formao da nobreza que no tardou a atingir,
em particular na Frana, setores sociais que no pertenciam
originariamente aristocracia. O artigo de Jaucourt (1753),
publicado na Enciclo-pdia, foi um sinal claro do quanto essa
maneira de modelar a conduta no estava mais restrita, ao menos na
Frana, aristocracia da corte. Intitulado Civilidade, Polidez e
Afabilidade, Jaucourt (1753, vol. III, p. 497) as defi ne como
maneiras honestas de agir e conversar com outros homens em
sociedade, acrescentando mais adiante que a civilidade e a polidez
constituem um certo decoro nas manei-ras e nas palavras, a fi m de
agradar e marcar a deferncia que temos uns pelos outros (Jaucourt,
1753, vol. III, p. 497). As referncias da Enciclopdia a um certo
gnero de conduta, contudo, terminam a. O verbete civilizar
(Jacourt, 1753, p. 497), presente na mesma pgina, integra o
vocabulrio jurdico-processual, no guardando nenhuma relao com a
ideia de civilidade, e a palavra civilizao, que se disseminar na
Frana somente a partir da dcada de 1770, no citada sequer uma nica
vez em seus textos.
Quase duas dcadas depois, Kant, ao publicar sua Ideia de uma
Histria Universal do Ponto de Vista Cosmopolita, nos apresenta uma
nova forma de ver a questo.
2 O francs se torna uma lngua dominante na Europa, a partir de
1648, por ocasio do Tratado de Westflia que ps fi m Guerra dos
Trinta Anos, na qual a Alemanha saiu amplamente derrotada. Em Quand
lEurope parlait franais, Fumaroli (2001, p. 23) diz, a respeito da
recepo da lngua francesa no continente europeu: O francs, tornado
hegemnico na Europa a partir dos tratados de Westflia em 1648, era
uma lngua em si mesmo incmoda, difcil, aristocrtica e literria,
como o latim de Ccero ou o grego de Luciano, inseparvel, como seus
ancestrais antigos, de um bom tom nas maneiras, de uma conduta
social, e de uma qualidade de esprito, nutrida de literatura, na
conversao.
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Caio Moura
Somos altamente cultivados no domnio da arte e da cincia. Somos
civilizados ao ponto de termos sido fatigados para aquilo que da
urbanidade e da decncia de toda ordem. Mas quanto a considerar-nos
como j moralizados, preciso ainda muito para isso. Pois a ordem da
moralidade pertence ainda cultura (Cultur): por outro lado, a
aplicao daquela ideia, que redunda apenas em uma aparncia de
moralidade na honra e na decncia exterior, constitui simplesmente a
civilizao (Civilisirung) (Kant, 1990, p. 82).
A palavra cultura (Cultur) no pode traduzir o que da ordem da
exteriori-dade; ela acena para algo pertencente a uma determinao
interior do sujeito. A Kultur, palavra que surge na segunda metade
do sculo XVIII3 entre os alemes e que no deve ser confundida com o
vocbulo civilizao, integra um domnio per-tencente s realizaes do
esprito, por meio do qual o homem se reconhece como sujeito moral.
Assim, Kant (1990) nos d, nessa passagem, uma nova compreenso
acerca do signifi cado da cultura. A Kultur ou Cultur, como o fi
lsofo se refere mais frequentemente no texto4, segue uma determinao
prpria, no encontra sua positividade em uma equivalncia com a noo
inglesa e francesa de civilizao como progresso material, tampouco
nas regras de decncia e decoro. Mas por meio dessa defi nio, Kant
(1990) demarca um limite entre Cultur e civilidade e sela, por
assim dizer, uma oposio que h muito vinha se fi rmando entre os
alemes, mais precisamente desde que uma gerao de poetas, escritores
e fi lsofos5 comeou, em meados do sculo XVIII, a por abaixo alguns
dos valores do seu tempo. Seu texto talvez no tenha sido o primeiro
a estabelecer essa delimitao, mas certamente foi o mais conhecido a
esse respeito. O que o autor chama de Cultur orienta-se por uma
matriz fi losfi ca diversa daquela seguida pela gerao do Sturm und
Drang e dos adeptos do seu legado. Mas nem mesmo isso foi capaz de
impedir que se fi zesse desse conceito, to caro aos alemes, um polo
de oposio comum a um conjunto de valores que caminhavam
inevitavelmente para um momento em que suas contradies no mais
podiam ser ocultadas.
Que oposio de valores essa? Em que medida esse confl ito se
colocou na base de uma srie de transformaes que viria, entre outras
coisas, fazer emergir o conceito de cultura (Kultur)? Em um estudo
clssico sobre a formao da mentali-dade da sociedade ocidental,
Elias (1973) analisou a gnese social dos conceitos de cultura e
civilizao ao estudar o cenrio sociopoltico que produziu, da
Alemanha do sculo XVIII, este antagonismo de valores. Forjados em
meio a um quadro de particularidades histricas que permearam pases
como Frana e Inglaterra, de um
3 De acordo com Tonnelat (in Febvre e Tonellat, 1930), difcil
estabelecer uma data precisa para a primeira apario do vocbulo
Kultur no mundo alemo. O historiador francs identifi ca sua apario
em Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit de Herder,
publicada entre 1784 e 1791. Podemos encontrar igualmente o termo
na terceira parte de Auch eine Philosophie der Geschichte,
publicada em 1784, no mbito de uma discusso sobre o legado deixado
pelas culturas passadas s novas culturas: a cultura (Kultur) no
fora jamais a mesma, porque as infl uncias da natureza primeira, de
agora por diante modifi cadas, lhe faltavam (Herder, 1964, p.
315).4 Na maior parte do texto, Kant (1990) comea a escrever a
palavra com a letra c Cultur. Outro fi lsofo, Friedrich Nietzsche,
para quem o conceito de cultura igualmente caro, emprega
alternadamente em seus textos os dois modos de grafi a.5 Trata-se
do Sturm und Drung (Tempestade e mpeto), movimento surgido na dcada
de 70, do sculo XVIII, em reao ao conjunto de valores, convenes
sociais e princpios literrios vigentes na poca que, sob a tica de
uma nova gerao de poetas e escritores, representavam um obstculo
expanso do gnio criativo do homem ou de tudo mais que fosse
relacionado expresso de sua interioridade individual. Confundido
frequentemente com o Romantismo, o Sturm und Drang foi, na verdade,
sua forma embrionria, fato que tem levado muitos autores a
denomin-lo de Pr-Romantismo. Nessa fase, o Sturm und Drang
fortemente infl uenciado pela fi losofi a da natureza de Rousseau e
tem como principais expoentes Lessing e, sobretudo, Herder e o
jovem Goethe.
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O advento dos conceitos de cultura e civilizao
lado, e Alemanha, de outro, os termos civilizao e cultura
adquiriram signifi cados locais bastante diversos. Enquanto, na
Inglaterra e na Frana, a palavra civilizao associava-se ao grau de
progresso e desenvolvimento material da sociedade, na Ale-manha, de
modo diverso, a ideia de civilizao (Zivilization) no se revestiu do
mesmo cunho de universalidade observado naqueles pases. Seu alcance
restringiu-se a uma classe social especfi ca, que guardava para si
mesma, sem quaisquer intenes de compartilhar com os outros, aquilo
que julgava ser o trao distintivo de seu orgulho e superioridade.
Na segunda metade do sculo XVIII (mais especifi camente, a partir
dos anos 70), a palavra civilizao equivalia, na Alemanha, ao que,
na Frana, se entendia ainda por civilidade (Elias, 1973, p. 12-14).
A barreira social que separava a classe mdia burguesa da
aristocracia cortes, simbolicamente representada pelo formalismo
dos hbitos, era apenas a parte visvel e imediata de uma ciso muito
mais radical e profunda, que considerava, entre outras coisas, a
completa excluso da primeira na participao dos negcios do Estado.
Esta excluso naturalmente a colocava em uma posio social de
inferioridade diante do universo da corte e, tal-vez, tenha sido o
aspecto mais representativo, e igualmente determinante, de uma
signifi cativa e profunda diferena de valores e anseios espirituais
que se tornaria cada vez mais aguda nas ltimas dcadas do sculo
XVIII.
em meio a esse quadro de antagonismo poltico, social e
espiritual que a ideia de Kultur encontra a raiz de seu
desenvolvimento. Longe dos centros de deciso do poder poltico,
restritos apenas aos crculos da realeza, e em posio de
inferiorida-de social diante da nobreza da corte, a elite
intelectual alem no pde vislumbrar, seno no mundo da Kultur, uma
espcie de refgio existencial onde poderia afi rmar seus valores,
recuperar sua autoestima, e obter, assim, a legitimao de sua condio
social. A literatura constituiu um refgio natural tanto quanto o
veculo de expresso por excelncia da identidade e dos ideais dos
setores mais cultivados da classe mdia. Escritores e pensadores
como Goethe, Herder, Lessing e muitos outros, j haviam dei-xado de
lado o francs e o latim, que, juntos, constituam a lngua
predominante das obras literrias e fi losfi cas, para, numa atitude
deliberada de afi rmao do idioma germnico, escrever suas obras
integralmente em alemo.
A defesa da lngua alem, contudo, no constitua exatamente uma
novidade nessa poca. Desde o sculo XVII, uma srie de autores infl
uenciados pelos ideais da Reforma empenhou-se vivamente em fazer
frente ao francs e ao latim, ao publicar suas obras no idioma
germnico. Mas, a partir das ltimas dcadas do sculo XVIII, esse
programa adquire um novo impulso; ele no mais se restringe aos
setores religiosos da sociedade alem, mas abarca igualmente, e em
primeiro plano, uma determinada parcela da burguesia alem. Isso
signifi cou muito mais que o simples alargamento do patriotismo
lingustico iniciado no sculo precedente, e o que peculiar a essa
reabilitao do idioma alemo a nova diretriz fi losfi ca pela qual
ela agora se conduz. As ideias do fi lsofo Rousseau marcaram
profundamente a ge-rao de poetas e escritores do Sturm und Drang,
fornecendo o fermento intelectual para que toda uma atitude
contrria s principais linhas do programa da Filosofi a das Luzes
pudesse ganhar corpo, volume e consistncia. O primeiro dos
Discursos de Rousseau (1999), que versava sobre o suposto papel das
cincias e das artes no aperfeioamento do gnero humano, valera-lhe o
prmio oferecido pela Academia de Dijon, no ano de 1750. Sem o mesmo
impacto do segundo de seus Discursos, que tratava da origem das
desigualdades entre os homens (o prprio Rousseau o julgava a obra
anterior com descaso), este ensaio exerceria, duas dcadas mais
tarde, uma notvel infl uncia entre os alemes, e sobre Herder, em
particular. Este trabalho tem o mrito de se deter, talvez como
nenhum outro escrito de Rousseau, no confl ito entre a
individualidade e as convenes impostas pela sociedade civilizada
(societ polic), a partir de uma crtica ao pensamento iluminista
apoiada em uma fi losofi a da natureza. Eis algumas de suas
passagens mais importantes:
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Potncias da terra amai os talentos e protegei aqueles que os
cultivam. Povos poli-ciados cultivai-os; escravos felizes, vs lhes
deveis esse gosto delicado e fi no com que vos excitais, essa doura
do carter e essa urbanidade de costumes que tornam to afvel o
comrcio entre vs, em uma palavra: a aparncia de todas as virtudes,
sem que se possua nenhuma delas (Rousseau, 1999, p. 190-191). A
riqueza do vesturio pode denunciar um homem opulento, e a elegncia
um ho-mem de gosto; conhece-se um homem so e robusto por outros
sinais sob o traje rstico de um trabalhador e no sob os dourados de
um corteso, que se encontraro a fora e o vigor do corpo. A aparncia
no menos estranha virtude que a fora e o vigor da alma (Rousseau,
1999, p. 191). Antes que a arte polisse nossas maneiras e ensinasse
nossas paixes a falarem a linguagem apurada, nossos costumes eram
rsticos, mas naturais (Rousseau, 1999, p. 191). [...] todos os
espritos se fundiram num mesmo molde: incessantemente a polidez
impe, o decoro ordena; incessantemente seguem-se usos e nunca o
prprio gnio. No se ousa mais parecer como se [...] (Rousseau, 1999,
p. 192).
As passagens citadas mobilizam elementos capitais que, mais
tarde, seriam caros ao Sturm und Drang. A ideia de uma natureza
pura, corrompida por algo que no de sua ordem e com a qual preciso
obter uma reconciliao, foi um tema corrente ao longo dos sculos
XVIII e XIX. Ao lado dessa ideia central, a noo de virtude
constituiu um dos principais leitmotivs do Sturm und Drang, infl
uenciando fortemente a vertente nacionalista liderada por Herder. A
crtica realizada pelos alemes aos valores dominantes de sua poca se
apropriava do pensamento de Rousseau para circunscrev-lo a um mbito
mais especfi co: j no se tratava mais de compreender como a
sociedade corrompeu a natureza do homem, mas questionar a situao de
dependncia intelectual da Alemanha em relao Frana, da hegemo-nia de
seus philosophes sobre a corte, da preponderncia do idioma francs
sobre suas obras, de tudo, enfi m, que distanciava os alemes de si
mesmos. Era preciso reatar o elo perdido de uma unidade espiritual
h muito esquecida, recuper-la e dar-lhe uma nova grandeza e
dignidade.
O resgate das razes medievais germnicas, promovido por Herder,
desempe-nha um papel da maior importncia nesse movimento de afi
rmao da identidade alem; ele constitui um modo de fazer frente
hegemonia dos valores franceses ao resgatar um esprito obscurecido
e encoberto pela frieza e artifi cialidade dos hbitos da sociedade
polic. A valorizao dos contos, da poesia, das lendas nacionais e de
tudo mais que evoca o retorno s fontes de um passado pleno de fora
e virtude exorta os alemes a reconhecer em sua prpria origem os
traos de uma essncia perdida. Se o alemo de outrora se via privado
de refi namento, instruo e das demais caractersticas caras ao mundo
da civilidade, isso apenas indica o quanto sua integridade moral
manteve-se intacta, junto com seu vigor, sua sade e a sua fora de
esprito (Herder, 1964, p. 201). Eles desprezavam as artes e as
cincias, a opulncia e o refi namento, escreve Herder (1964, p.
199), no melhor estilo rous-seauniano, para completar logo em
seguida:
[...] no lugar das artes a natureza; no lugar das cincias o bom
senso nrdico; no lugar dos refi namentos, costumes fortes e bons,
ainda que selvagens; e tudo isso eferves-cia que acontecimento!
Suas leis, como elas respiravam a coragem viril, o senso da honra,
a confi ana na inteligncia, na lealdade e venerao dos deuses!
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O advento dos conceitos de cultura e civilizao
Esse posicionamento, pouco comum para uma poca que no reconhecia
na Idade Mdia seno o recndito de um passado de ignorncia e
obscurantismo, representava bem mais (a despeito de seu compromisso
com suas razes passadas e de sua reprovao ao despotismo esclarecido
de Frederico) que a adeso a um programa de cunho
poltico-nacionalista.6 O culto s fontes nacionais era parte no
apenas de uma nova disposio de esprito, mas de um programa fi losfi
co bem mais amplo que inseria o Sturm und Drang em linha direta de
coliso com a Filosofi a das Luzes. A crena no progresso incessante
dos povos, no aprimoramento moral da humanidade e na razo
calculadora e universal, todas elas teses centrais do Iluminismo,
encontravam na reabilitao da Idade Mdia promovida por Herder um
ponto de tenso que ia alm do legado crtico deixado por Rousseau. A
exaltao ao medievalismo germnico, por conseguinte, no podia se
resumir apenas a uma valorizao da honra, do vigor fsico e psquico,
em oposio ao esclarecimento e etiqueta; ela vai alm, para
reconhecer nessa poca um perodo de efervescncia criativa que lhe
singular e que impede a comparao com outras pocas.
No plano simblico, o resgate das razes germnicas procura
promover a au-tonomia espiritual, e tambm social, por parte de uma
classe mdia cultivada que no almeja progredir socialmente nem afi
rmar e ver reconhecidos os seus prprios valores. Junto a ela, a
ecloso de uma nova mentalidade ganha, crescentemente, espao e
demarca suas diferenas histricas, fi losfi cas e estticas, diante
do esprito de toda uma poca, a ponto de se constituir em um divisor
de guas na histria das ideias. Esse advento de um novo campo das
ideias, indissocivel de uma nova disposio de nimo, caracterstica de
toda uma gerao, perfaz uma espcie de movimento circular: o Sturm
und Drang ver em Rousseau a fonte de inspirao fundamental para as
suas ideias. Mas, medida que esse processo est em curso,
particularmente atravs dos escritos de Herder, suas proposies
ganham auto-nomia e uma tonalidade prpria, abrindo dessa forma um
horizonte de refl exo inteiramente novo para a poca.
Resta, ento, ao Sturm und Drang, no apenas retomar as teses
rousseau-nianas, mas lev-las s ltimas consequncias ao conduzi-las
para o interior de um contexto singular de onde elas eclodem com
fora redobrada. Expressar o que singular em cada requer uma
reconciliao com as virtudes que habitam o nosso ser interior e com
as quais se perdeu contato. Na Alemanha dos tempos de Frede-rico,
essas virtudes foram corrompidas pela frieza e superfi cialidade
dos hbitos de uma sociedade que toma suas prprias normas de
disciplina e boa conduta como o trao da mais alta civilidade e
distino. O movimento de valorizao das razes germnicas medievais e
de crtica Filosofi a das Luzes jamais poderia, portanto,
representar uma atitude desinteressada e fortuita por parte do
Sturm und Drang. Ele corresponde aos anseios de uma nova gerao, de
suas diferenas ticas, estticas e fi losfi cas frente ao esprito de
sua poca e da consequente imploso de seus valores, incluindo as
convenes sociais estabelecidas pela aristocracia francesa. No de
admirar que, na Alemanha oitocentista, onde os hbitos franceses
eram copiados pelos crculos da corte, as regras de etiqueta tenham
provocado tanta reao em certos setores cultivados da classe mdia.
Elas representavam muito mais que um cdigo de comportamentos; eram
a expresso concreta de uma atitude, de um modo de pensar, de ser e
agir, que aglutinava, com fora particular, um conjunto de ideais
com os quais qualquer relao de submisso j no era mais possvel. Sua
subverso era inevitvel, tanto quanto necessria, e fazia parte de um
engajamento
6 Herder e a nova gerao literria, que junto a ele desabrochava,
no alimentavam quaisquer aspiraes de natureza poltica, quer em
relao a uma possvel emancipao do regime, quer em relao unifi cao
dos estados alemes.
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que buscava promover uma nova tomada de conscincia, a partir de
uma insurreio de foras que habitavam a interioridade
individual.
Os Sofrimentos do Jovem Werther (Goethe, 2001) mobiliza, de
forma parti-cularmente intensa, os elementos capitais da nova
tomada de atitude que marcam este perodo. Trata-se da reivindicao
de uma gerao, ou de um determinado extrato social, acerca do
reconhecimento de seu prprio valor em meio a uma sociedade
aristocrtica, que no reconhece nada seno sua prpria etiqueta; mas
tambm, e acima de tudo, de uma insurreio contra os obstculos
presentes em um ambiente socialmente hostil que, em larga medida,
impedem a livre expresso da interioridade individual.
Pode-se dizer muito a favor das regras, mais ou menos tanto
quanto se pode dizer para louvar as etiquetas sociais. Um homem que
se forme seguindo-as, jamais produzir algo falto de gosto e ruim.
Da mesma forma que algum que se molda segundo as leis e as boas
maneiras jamais ser um vizinho insuportvel, ou um malvado digno de
nota. Mas em compensao, as regras, por mais que se diga algo em
favor delas, destroem o verdadeiro sentimento da natureza e sua
genuna expresso! (Goethe, 2001, p. 24-25).
Outra passagem deixa igualmente clara em que medida os valores
estabele-cidos pela sociedade aristocrtica constituem um obstculo
real expanso interior do personagem:
O que mais me vexa so essas fatais relaes sociais. Sei bem, como
qualquer outro, que necessria a distino de classes e conheo as
vantagens que ela traz para mim mesmo; mas no gostaria que essa
distino atravancasse o meu caminho quando poderia conduzir-me a
alcanar um pouco de alegria, ou fazer-me gozar um vislumbre da
felicidade deste mundo (Goethe, 2001, p. 96).
O que se l nas linhas escritas pelo jovem pensador no representa
seno os anseios tpicos de uma gerao tomada por um novo estado de
esprito face aos valores e ideias de seu tempo. O formalismo, a
pompa, a aparncia, o comedimento e tudo o mais prprio da societ
polic, ou do Grand Monde, como chamou Frederico (Frederic,1805,
vol. XVI, p. 172-173), dar lugar sublevao dos sentimentos e dos
instintos como a marca de uma espontaneidade do esprito capaz de
conduzir o homem a si mesmo e de reconcili-lo com sua prpria
humanidade, ou com a genuna expresso do esprito germnico, no caso
de Herder (1964). Elias (1973, p. 32) d a perfeita sntese desse
movimento: leviandade, cerimonial, conversao superfi cial de um
lado; interiorizao, profundidade de sentimento, leitura, formao da
personalidade individual do outro [...].
Compreende-se melhor porque tanto o Sturm und Drang quanto o
romantismo alemo jamais tenham se constitudo em torno de aspiraes
polticas. Na esfera da poltica, talvez mais do que em qualquer
outra, o clculo estratgico, a frieza e a racionalidade encontravam
a sntese mxima de sua realizao. Tratava-se de um mundo nascido e
organizado em torno de valores com os quais todo e qualquer
compromisso de conciliao estivesse destinado a jamais se realizar.
A impossibilidade absoluta dessa conciliao imaginria fi ca clara
por conta da reao de Frederico II, expoente maior do mundo da
poltica alem, s primeiras obras do Sturm und Drang que fl orescem
na Alemanha. Em uma carta redigida a Voltaire, no ano de 1775,
justamente quando as obras literrias do Sturm und Drang comeam a
ganhar repercusso dentro e fora da Alemanha, Frederico (1805)
mostra o quanto era grande o abismo que separava esses dois mundos,
ao revelar a sua recusa em reconhecer, como um bom adepto dos
ideais de gosto do Classicismo, o seu valor literrio:
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O advento dos conceitos de cultura e civilizao
Os alemes tm a ambio de desfrutar por sua vez as vantagens das
belas-artes: eles se esforam em igualar Atenas, Roma, Florena e
Paris. Por mais amor que eu tenha por minha ptria, eu no saberia
dizer at aqui o que eles de fato alcanaram: pois lhe faltam duas
coisas: a lngua e o gosto. A lngua demasiado verborrgica: a boa
companhia fala o francs e mesmo alguns dos mais renomados mestres e
profes-sores no podero dar-lhes a polidez e os rodeios
desembaraados que eles apenas poderiam adquirir na sociedade do
grand monde. [...] Eles acreditam obter xito no teatro; mas at aqui
nada de perfeito surgiu. A Alemanha atualmente como era a Frana do
tempo de Franois I. O gosto pelas letras apenas comea a se expandir
[...] (Frederic II, 1805, vol. XVI, p. 172-173).
Da parte da burguesia alem cultivada, a possibilidade dessa
aproximao igualmente remota: na medida em que sente que sua
identidade se consolida, o distanciamento entre suas aspiraes e os
ideais que regem o mundo aristocrtico torna-se cada vez mais agudo.
Como antes, a burguesia cultivada permanece distan-ciada da esfera
dos negcios polticos e socialmente isolada em seu prprio mundo. A
diferena que agora ela no mais se v abandonada ao espao vazio e
estril, que em outros tempos lhe havia sido destinado, e passa a
constituir, pela primeira vez, um universo que lhe prprio. O campo
da cultura (Kultur) corresponde a esse espao singular que nasce em
meio reviravolta dos valores vigentes, promovida pela gerao do
Sturm und Drang. Ele signifi ca uma resposta a um mundo com o qual
passa a polarizar e frente ao qual os setores da burguesia
cultivada podem afi rmar sua autonomia espiritual. De um lado, uma
classe que nada produz e para quem os ideais de civilidade se
resumem a um conjunto de convenes de etiqueta; de outro, um
segmento da sociedade que extrai seu orgulho e autoconfi ana por
meio de suas realizaes. A Kultur, diferentemente do conceito francs
de civilizao (noo determinada pela ideia de progresso material),
circunscrita pelo domnio do esprito; ela engloba as realizaes
artsticas, intelectuais e mesmo religiosas de um povo e demarca,
por assim dizer, um espao de autonomia diante da esfera dos negcios
polticos. Como horizonte de afi rmao de um segmento intelectual
incipiente, a cultura aglutina um conjunto de anseios e valores em
plena ebulio, valores que, no ao acaso, encontraro na literatura fl
orescente alem o seu veculo de expresso por excelncia.
Uma vez mais Goethe nos mostra em Werther, por intermdio de um
aconte-cimento marcante, o signifi cado essencial da Kultur como
espao de independncia e afi rmao individual. Trata-se, mais
precisamente, de uma passagem do romance em que o protagonista, no
caso o prprio Werther, narra o episdio embaraante no qual se v
obrigado, por sugesto do prprio anfi trio, a retirar-se de uma
re-cepo social em razo de sua origem social. Escreve Goethe (2001,
p. 104): Vs conheceis, disse-me o conde, a nossa esquiptica
etiqueta. A sociedade, segundo me parece, no vos v aqui com prazer.
E continua:
Saudei a ilustre companhia, sa, subi num cambriol e fui a M...
para ver da montanha o pr do sol e ler no meu Homero aquele belo
canto em que o autor narra como Odisseu foi abrigado pelo dignssimo
criador de porcos (Goethe, 2001, p. 105).
A passagem acima talvez seja a mais emblemtica e signifi cativa
do livro. Werther abandona a recepo social e busca exlio no seio da
natureza. Mas no o faz sem levar consigo a Odissia de Homero para,
ironicamente, ler o trecho em que Odisseu, transformado por Palas
Atena em velho, desfruta da hospitalidade do criador de porcos que,
ao longo da trama, se revelar o mais fi el e nobre dos seus servos.
O gesto de Werther, mais do que portar uma fi na ironia, simboliza
o momento de uma superao, de uma passagem, ou talvez mesmo de
uma
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Caio Moura
descoberta: o indivduo abandona o universo da conveno social
para buscar abrigo em um espao propcio ao seu desenvolvimento
interior; a natureza no mais constitui um refgio do esprito, ela
agora sucedida pelo mundo da Kul-tur, este horizonte singular onde
o homem doravante poder projetar o seu ser interior para com isto
ver a sua prpria individualidade constituda e afi rmada como
princpio e valor.
Werther no representa mais do que um dos muitos pontos de
partida para que o mundo da Kultur possa ser compreendido como um
espao de realizao do esprito. Assistiremos, a partir disso, o
domnio da cultura gradativamente se afi rmar como uma possibilidade
de expresso do sujeito, ou como um espao, para utilizar as palavras
de Heidegger (1962, p. 123), de uma experincia vivida.
justamente na medida em que a Kultur se consolida como
experincia vivida que se assiste ao surgimento daquilo que os
alemes chamariam de Bildung (formao). Qual o seu signifi cado? No
se deve encarar a Bildung unicamente como uma sucesso conceitual da
Kultur. Enquanto esta ltima designa o domnio das produes humanas, a
Bildung representa o processo de formao necessrio ao ingresso no
mundo da Kultur. A Bildung um conceito complementar ao de Kultur,
mas ao mesmo tempo muito mais do que isso; ela representa a
consumao daquilo que a Kultur acenava como horizonte possvel, mas
ainda no totalmente realizvel. Em Werther (Goethe, 2001), o mundo
da cultura um refgio do esprito que, por vezes, ainda obscurecido
pelo da natureza ou que, perturbado por um conjunto de valores
ainda presentes, no atingiu sua total autonomia. O indivduo no
chegou plenamente a si mesmo, encontrando-se ainda em confl ito com
as re-gras de um mundo que no lhe pertence. A Kultur ainda um
domnio incipiente, e, mesmo quando Werther se refugia na leitura de
Homero, para encontrar nesse gesto a possibilidade simblica de afi
rmao de um espao prprio de realizao individual, o far em uma situao
ainda pouco confortvel. Essa obra traduz um estgio incipiente da
cultura, e por isso mesmo uma tarefa inacabada; o indivduo no se
emancipou inteiramente, no tendo ainda encontrado sua prpria via de
desenvolvimento, ou tampouco constitudo um horizonte que lhe
inteiramente prprio. Somente quando isso ocorrer, a tarefa iniciada
por Werther (Goethe, 2001) poder ser consumada.
Se a Bildung acena para algo mais do que um conceito
complementar ao de Kultur porque representa uma nova etapa no
processo de consolidao do indiv-duo como princpio e valor. O
fenmeno literrio conhecido como Bildungsroman, romance de formao,
pode ser tomado como um bom exemplo desse estgio que marca a
individualidade moderna. Escritas em sua maior parte nas primeiras
dcadas do sculo XIX, suas obras ilustram o conjunto de experincias
e situaes que condu-ziro, ao fi m de uma jornada de
autoaprendizado, o indivduo a si mesmo. No plano concreto, e no
mais simblico, a Bildung consuma aquilo que era at ento uma
promessa ou uma tarefa realizada pela metade. O fl orescimento da
individualidade no se depara mais com os mesmos obstculos de
outrora; o indivduo agora possui a certeza e a segurana de chegar a
si mesmo, unicamente por intermdio de seus prprios esforos, sem se
deparar com entraves de ordem social que representem uma ameaa ao
seu desenvolvimento interior. verdade que as experincias pelas
quais passar so imprevisveis e escapam ao seu controle. Contudo, no
isso que est em questo. O que se coloca verdadeiramente em jogo na
Bildung a abertura de uma via que permita ao indivduo constituir,
em meio ao mundo que o cerca, um espao de realizao interior
materializado sob a forma de uma tica privada.
Por isso, no surpreendente que o campo da cultura tenha signifi
ca-do, tanto para a elite intelectual alem e mesmo para alguns
segmentos do
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O advento dos conceitos de cultura e civilizao
pensamento liberal7, um espao onde os indivduos poderiam
promover seu aperfeioamento interior, cultivando suas virtudes,
exprimindo livremente seus pensamentos e opinies, externando o seu
gnio criativo. Trata-se de uma es-pcie de substrato sobre o qual o
exerccio da liberdade pode se consumar, mas de uma liberdade
determinada por uma representao subjetivista inclinada a
circunscrever no apenas a ao, mas tambm os seus efeitos, esfera
particular de cada um. Orientada pela oposio ao mundo da poltica, o
domnio da cultura assim, por excelncia, um espao privado de
constituio e desenvolvimento da individualidade enquanto tal.
Para alm de uma determinao de classe
Por tudo isso, o signifi cado mais fundamental da noo de cultura
esteve longe de se resumir a um embate de classes. A ideia de que a
sua gnese pode derivar unicamente de um processo social marcado
pela tenso de valores de diferentes grupos, por mais esclarecedora
que tenha sido, no pode dar conta do seu signifi cado mais
essencial. A querela literria entre o Pr-Romantismo (ou Sturm und
Drang) e o Classicismo, ocorrida na Alemanha no incio da segunda
metade do sculo XVIII, constituiu a perfeita ilustrao de como o
conjunto de ideais e aspiraes, que se colocaram na base do conceito
de cultura, encontrou a sua raiz em um processo bem mais amplo e
profundo. O confronto desses dois movimentos, sem dvida, demarca as
diferenas relativas a ordens sociais distintas: o Classicismo
representando os valores sociais do mundo aristocrtico, e o
Pr-Romantismo expressando os anseios de uma burguesia cultivada que
ambiciona se projetar literria e artisticamente. Mas no essencial,
esse confl ito carrega em sua esteira uma mudana mais fundamental;
ele um dos inmeros sinais da irrupo de uma nova tomada de
subjetividade no Mundo Moderno8, de uma transformao profunda da
representao que o homem faz de si mesmo como sujeito, cujo signifi
cado jamais pode ser restrito a um confl ito social localizado
entre os alemes. inevitvel que um movimento profundamente
comprometido com o extravasamento da interioridade individual como
o Sturm und Drang encontre nas bases racionais da arte clssica um
poderoso obstculo as suas pretenses de legitimidade. A Arte Potica
de Boileau (1966), espcie de poema-diretriz dos preceitos do
Classicismo, constitui a fi el representao dessa dimenso normativa
da arte que deve orientar, de uma ponta a outra, todo o fazer
artstico. Fiel concepo de imitao racional da natureza, os versos de
Boileau (1966) seguem risca os ditames da arte clssica. Eles
apresentam ao leitor um conjunto ordenado de regras rgidas a serem
seguidas na construo do poema, insistindo no rigoroso
disciplinamento dos impulsos subjetivos do artista, no comedimento,
no equilbrio e na razo como metas a serem perseguidas pelo autor,
no apenas na fabricao do texto, mas tambm, e essencialmente, na
composio do carter dos personagens do drama.
7 Nesse sentido, vale a lembrana da obra mais clebre de Humboldt
(2004): Os Limites da Ao do Estado. No obstante ao fato de
discorrer sobre os preceitos que norteiam a doutrina liberal
clssica, a peculiaridade desse livro no consiste propriamente em
uma refl exo fi losfi ca sobre a esfera poltica ou sobre as
instituies do Estado, mas na tentativa de pensar as condies
polticas de instaurao da Bildung como ideal tico de afi rmao da
livre individualidade. E isso no poderia ser levado adiante sem que
Humboldt mobilizasse algumas das matrizes centrais do pensamento
alemo do fi nal do sculo XVIII, especialmente aquelas oriundas das
obras de Herder e Goethe. As ideias de originalidade, de
desenvolvimento individual por intermdio da experincia, de natureza
interior como fora espontnea, todas herdadas originariamente da
gerao de alemes da fase pr-idealista, encontraram, no por acaso, na
doutrina liberal um terreno favorvel para sua plena efetivao.8
Sobre o papel do Sturm und Drang na formao da identidade moderna,
ver o sub-captulo A virada expressivista da quarta parte de As
Fontes do Self - a construo da identidade moderna, de Taylor
(1997).
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Caio Moura
No uma surpresa ver o Sturm und Drang colocar abaixo esse
horizonte de compreenso das coisas, por meio do qual as regras
rgidas de produo da arte potica constituem um entrave ao poder da
imaginao. Por essa razo, a arte no pode mais constituir uma imitao
da natureza, mas uma expresso interior dos estados de alma do
homem; a arte agora emancipa o homem, no podendo ser dissociada de
uma crescente liberdade que no quer mais se defrontar com limites
ou regras de toda ordem. A cultura no pode ser apenas um espao de
afi rmao de um grupo social incipiente, de suas realizaes
artsticas, intelectuais ou espiri-tuais; a cultura , acima de tudo,
o horizonte que torna possvel a materializao do gnio humano; ela
quem assegura que a essncia desse sujeito, tomado como imaginao
criadora, possa externar toda a sua energia interior sob a forma de
uma experincia vivida. A cultura representa, em outros termos, um
substrato de expresso do sujeito e tem na arte o seu elemento
indissocivel: a arte o produto de uma experincia vivida; a cultura,
o suporte de uma vivncia concreta.
Mas em que medida o advento da noo de cultura constitui um
acontecimento decisivo para a consolidao da autoimagem do homem
moderno enquanto sujeito? A resposta a tal indagao depende de um
exame prvio do conceito de civilizao, cujo contedo essencial no to
diferente como em princpio se pode pensar.
A convergncia entre Kultur e civilizao como horizonte de afirmao
do sujeito moderno
Foi em meados do sculo XVIII que o termo civilizao surgiu pela
primeira vez na Frana9. Sua data de nascimento pode ser precisada:
1757 com a publicao de LAmi des Hommes, de autoria de Mirabeau
pai.10 Nesta obra, a palavra civilizao desponta como um conceito
ainda incipiente, longe do signifi cado que mais tarde a ela se
convencionou atribuir: a religio , incontestavelmente, o primeiro e
mais til freio da humanidade: o primeiro mbil da civilizao
(civilisation) (Mirabe-au, s.d., p. 377). O termo ainda
circunscrito pela ideia de civilidade, tal como encontramos em
Jaucourt (1753) e em outras obras da poca, nas quais se refere a
uma forma de suavizao dos comportamentos, de policiamento dos
hbitos, de disciplina das condutas. preciso esperar ainda cerca de
uma ou duas dcadas para que, ao menos entre os franceses, a palavra
civilizao possa adquirir o contedo como ainda hoje conhecemos,
quando comea a ser pensada em moldes iluministas numa oposio
frontal barbrie.
O conceito iluminista de civilizao faz explodir com o mximo de
fora todo o sentido universalista que os ideais de civilidade
vinham adquirindo nas ltimas dcadas. Esse sentido, todavia, ainda
permanece limitado e relativamente vago; a
9 Entre os britnicos, a palavra surge dez anos mais tarde com a
obra An Essay on the History of Civil Society, de Adam Ferguson.
Mas ao contrrio de LAmis des Hommes, que emprega o termo de modo
ainda ambguo, em Ferguson (1991) podemos encontr-lo claramente
associado ideia de progresso, tal como sugerem as primeiras linhas
de seu livro: As produes naturais so geralmente formadas por
etapas. Os vegetais nascem de um delicado broto, e os animais de um
estado infante. Mais tarde, sendo ativos, estendem juntos suas
operaes e seus poderes, e alcanam certo progresso naquilo que
executam, bem como nas capacidades que adquirem. No caso do homem,
porm, esse progresso continua em maior escala do que em qualquer
outro animal. No somente nos avanos individuais que vo da infncia
maioridade, mas nos progressos da prpria espcie humana que,
partindo da rudeza, alcana a civilizao (Ferguson, 1991, p.1). Outra
passagem da obra do autor refora, uma vez mais, a relao entre
civilizao e progresso: No progresso da civilizao, novos destemperos
irrompem e novos remdios so aplicados [...] (Ferguson, 1991, p.
188). 10 Com relao ao surgimento do conceito de civilizao,
importante citar os seguintes estudos Febvre e Tonellat (1930),
Elias (1973), Beneton (1975) e Starobinski (2001). importante
observar que tanto o trabalho de Beneton (1975), como o primeiro
captulo do livro de Starobinski (2001), que aborda o sentido da
palavra civilizao, apoiam-se, em larga medida, nas pesquisas
pioneiras de Fevbre (Febvre e Tonellat, 1930).
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O advento dos conceitos de cultura e civilizao
civilidade no diz respeito propriamente quilo que o homem possui
de universal, ainda que a educao do corpo, das paixes e dos
instintos fosse o resultado de uma ordenao da razo, mas a um
conjunto de regras de etiqueta a serem observadas. Estas regras,
apesar de sua relativa ampliao, ainda eram dirigidas a um extrato
social economicamente privilegiado. Agora, no se trata mais do
homem, mas da humanidade, do gnero humano, como portador de uma
identidade universal capaz de lhe dar uma nova dignidade, ao mesmo
tempo em que lhe assegura uma capacidade singular de agir sobre o
mundo. A razo esse poder que permite ao homem reconhecer em si sua
prpria humanidade e fazer com que ela se materialize em uma srie de
conquistas e realizaes de ordem material. A razo humana, diz
Holbach (1773, p. 163-164), no est ainda sufi cientemente exercida;
a civilizao dos povos no terminou ainda. A civilizao (Holbach
(1773) se refere ao sentido que o termo ainda conserva em Mirabeau
(s.d.)) no se realizou inteiramente porque ainda no foi capaz de
levar a razo a sua mais alta determinao. preciso dar-lhe uma nova
dignidade, uma nova envergadura, reconhecer nela um novo poder que,
at ento, no foi revelado e que, uma vez alcanado, far com que ela
assuma para si nova funo, se no contrria anterior, mais ambiciosa e
completa.
A civilizao, portanto, uma meta que s ser atingida no instante
em que o ho-mem, saindo da barbrie e superando toda a ordem de
obstculos, polticos ou religiosos, que lhe so colocados poder, fi
nalmente, fazer progredir o conhecimento como condio decisiva do
aperfeioamento da vida civil. Obstculos sem nmero, prossegue
Holbach (1773, p. 164), em aluso clara ao antigo regime e ao poder
religioso, se opuseram at aqui ao progresso dos conhecimentos, cuja
marcha pode apenas contribuir para aperfei-oar nossos governos,
nossas leis, nossas instituies e nossos costumes.
A civilizao indissocivel do progresso. A humanidade marcha
progressi-vamente at alcanar uma autonomia que lhe permitir erigir
um novo mundo para si. Como diz Holbach (1773, p. 159), Somos
visivelmente menos ignorantes, menos brbaros, menos selvagens que
nossos pais. Por essa razo, a civilizao tambm um estado, o qual
deixa para trs sua antiga condio brbara para ingressar em um domnio
dito civilizado.
Esse fato, por si s, seria sufi ciente para banir defi
nitivamente os antigos ideais de civilidade (etiqueta) desse novo
horizonte de representao? A resposta a tal indagao no pode ser seno
negativa. No novidade que aps o pro-cesso revolucionrio que
culminou com o ocaso do Antigo Regime, a burguesia francesa havia
incorporado, fazia tempo, os hbitos da corte. Por isso, o conceito
de civilizao no poderia representar uma ruptura radical com a
antiga noo de civilidade e to pouco releg-la a um plano inferior no
qual permaneceria em uma espcie de quase esquecimento. Em sua edio
de 1798, o Dicionrio da Academia Francesa defi ne civilizao como:
ao de civilizar ou estado daquilo que civiliza-do (Dictionnaire de
lacadmie franoise, 1798, p. 248). A ideia de civilidade no
desaparece, mas se desloca para desempenhar uma funo subsidiria em
relao civilizao. Algum que possui civilidade algum que
essencialmente ingressou no domnio da civilizao.
Nas primeiras dcadas do sculo XIX, a ideia de civilizao comea a
perder, ao menos aparentemente, sua unidade ao se misturar a
sentimentos de nacionalidade ideologicamente associados s fi guras
do Estado e da Nao. A concepo mais geral de uma civilizao
contraposta barbrie no desaparece desse contexto, mas passa a
conviver com uma crescente multiplicao de seu prprio sentido. Assim
no se fala apenas em uma civilizao capaz de englobar toda a
humanidade, mas de civilizaes plurais e quase to variadas quanto as
nacionalidades. Mas esse plu-ralismo no to amplo a como se pode
imaginar primeira vista. Ele se restringe, na maioria dos casos,
apenas s naes europeias ou a certos imprios ou povos
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Caio Moura
que deixaram seu legado para a Histria. Fala-se de uma civilizao
francesa, de uma civilizao espanhola ou inglesa, mas tambm de uma
civilizao grega ou romana, para se fazer meno Antiguidade.
De qualquer modo, o termo civilizao contemplou, em maior ou
menor grau, um alargamento conceitual ao longo do sculo XIX e mesmo
depois dele. Esse fe-nmeno corresponderia a um distanciamento do
seu signifi cado de origem? Nessa linha de pensamento, Franois
Guizot, clebre historiador do sculo XIX, mostra (involuntariamente,
bem verdade) que as coisas no se passaram exatamente dessa maneira.
Em uma de suas mais conhecidas obras, Histria Geral da Civilizao da
Europa, Guizot parece aderir, em um primeiro exame, ao uso ampliado
que se convencionou dar palavra: evidente que h uma civilizao
europeia; que uma certa unidade eclode nas diversas civilizaes dos
pases da Europa (Guizot, 1838, p. 26). E acrescenta mais adiante:
por minha conta, estou convencido de que h, com efeito, uma
destinao geral da humanidade, um acmulo que transmitido atravs da
civilizao e, consequentemente, uma histria universal da civilizao a
ser escrita (Guizot, 1838, p. 28). Nesta passagem, o autor indica o
progresso e o bem-estar material como os traos centrais da
civilizao. Mas, aos olhos do histo-riador, esses elementos no so o
bastante para que a civilizao possa se revestir de seu signifi cado
pleno. Por isso, progresso e bem-estar material no podem ser os
atributos essenciais da civilizao. Ao lado da vida exterior
(Guizot, 1838, p. 36), assim o historiador se refere ao
aprimoramento da vida civil, deve haver algo de mais elementar que
desempenhe o papel de elo originrio da civilizao.
Transportemo-nos para outros tempos: tomemos a Frana dos sculos
XVII e XVIII; evidente que, tanto de um ponto de vista social
quanto soma e distribuio do bem-estar entre os indivduos, a Frana
deste perodo era inferior a alguns pases da Europa, como, por
exemplo, a Inglaterra e a Holanda. Creio que na Holanda e na
Inglaterra a atividade social era bem maior, crescia mais
rapidamente, distribua me-lhor seus frutos do que na Frana.
Contudo, perguntem ao bom senso geral; ele lhes responder que a
Frana deste mesmo perodo era o pas mais civilizado da Europa. A
Europa no hesitou nessa questo. Encontramos traos desta opinio
pblica sobre a Frana em todos os monumentos da literatura europeia
(Guizot, 1838, p. 33-34).
Se a Frana atingiu um estgio superior frente aos demais pases
porque ela desenvolveu, de modo singular e com mais fora que outros
povos, algo que no pode ser reduzido apenas vida material de uma
sociedade. Se esse fato corres-ponde ou no realidade, isso pouco
importa. importante reter que, por trs do francocentrismo do clebre
professor, reside o elemento chave que est no mago do discurso fi
losfi co da modernidade: o projeto civilizatrio no poder
consumar-se plenamente enquanto permanecer atrelado apenas s ideias
de progresso e desenvolvimento material compreendidos, em si
mesmos, como fatores exteriores representao geral da noo de
civilizao. preciso que o homem realize uma natureza distinta do
progresso que, ultrapassando a vida exterior, alcance a base de seu
prprio ser, como uma dimenso pertencente vida interior. Um outro
desenvolvimento da vida social se manifesta a com esplendor: o
desenvolvimento da vida individual, da vida interior, o
desenvolvimento do prprio homem, de suas faculdades, de seus
sentimentos, de suas ideias (Guizot, 1838, p. 34). Vida interior e
exterior no so independentes uma da outra; ambas entrelaam-se,
determinam-se mutuamente. Todavia, essas duas formas fundamentais
da vida humana devem ser remetidas a uma origem que se coloca como
causa primeira e fundamento de sua existncia. Ora, esse fundamento
no pode mais ser encontrado em um ele-mento exterior, independente
do homem e da vida social, to pouco na noo de
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O advento dos conceitos de cultura e civilizao
Deus, como garantia ltima de todas as coisas. o prprio homem,
como sujeito, que doravante aparece como o elemento imanente e
originrio nessa relao. ele quem desempenha o papel de garantia e
fundamento da civilizao. As condies materiais, sociais ou polticas
de uma sociedade podem no ter atingido o grau de desenvolvimento
desejado e no ter ainda se colocado altura do esplendor de sua
humanidade, mas isso apenas uma questo de tempo. Chegar o mo-mento
em que o progresso interior ser acompanhado de modo irreversvel
pelo desenvolvimento exterior11. Apesar disso, deve haver uma
origem que assegure a sua existncia, e esta deve ser encontrada no
prprio homem. Quando ele se desenvolve interiormente, qual a
necessidade que se lhe apodera nesse instante? a necessidade de
transferir seu sentimento para o mundo exterior, de realizar para
fora seu pensamento (Guizot, 1838, p. 37). Esse mundo exterior,
essa regio situada fora do plano do pensamento a civilizao. A
civilizao no apenas uma meta, uma necessidade.
Eis o ponto do entrelaamento entre Kultur e civilizao aqui
reside o ponto nodal de nossa argumentao. Ambas nascem da
necessidade do sujeito de externar sua humanidade em algo que ele
possa, sem quaisquer impedimentos, exprimir sua natureza de modo
pleno. Por esse motivo, a ideia de civilizao, a despeito de seu
forte contedo subjetivo, jamais poderia nascer em meio ao sculo
XVII no esteio do sujeito cartesiano, nem mesmo nas dcadas que
imediatamente se seguiram ao seu nascimento. No basta que o homem
apenas se interprete como um sujeito de conhecimento para, deste
ato, fazer desabrochar sua identidade universal. preciso que essa
identidade substancial passe por uma transformao qualitativa que
pro-mova, a partir de condies inteiramente novas, a ecloso de uma
nova humanitas capaz de se projetar sob a forma de um poder
criador. Ora, isso s possvel quando o homem no mais se representa
unicamente como sujeito de conhecimento, mas se enxerga igualmente
como sujeito esttico e moral.
Assim, a identidade do homem, compreendido como sujeito, jamais
estar consolidada em sua plenitude, antes que ele prprio se
reconhea paradoxalmente projetado em uma nova fundao que, no
podendo mais sobrepor-se antiga, deve representar, acima de tudo, a
instaurao de uma nova ordem universal como concretizao de sua
natureza mesma. Esse evento fundamental, sem o qual sua humanidade
no est completa, possibilita a produo de um acontecimento
igualmente decisivo: o homem, que se representa como sujeito,
subjectum, en-tendido como um fundamento substancial de todas as
coisas, tem necessidade de que a imagem que faz de si mesmo se
desdobre para fora e se materialize em um plano exterior, que
constitui o fi rmamento para a consolidao defi nitiva de sua prpria
identidade. Esse substrato fi ctcio, doravante chamado de civilizao
e cultura, constitui o prolongamento de um sujeito que encontra na
exterioriza-o de si mesmo a possibilidade de alcanar a plenitude de
sua manifestao. No fi nal do sculo XVIII, quando a instituio de uma
nova ordem est em curso ou se consolida como uma aspirao possvel e
realizvel, assistimos, no por acaso, o conceito de civilizao
originar-se de uma nova autoimagem do homem, que, pela primeira
vez, representa a si mesmo, no apenas como sujeito de conhecimento,
mas simultaneamente como sujeito moral e sujeito esttico. A
combinao em maior ou menor grau entre esses trs fatores far com que
os conceitos de civilizao e cultura sejam circunscritos ao plano do
sujeito e constitudos como o fundo de uma nova identidade
universal, respectivamente pensada como progresso material e moral,
reino dos fi ns e horizonte das realizaes artsticas e intelectuais.
Mais do
11 A esse respeito, Condorcet (1988, p. 81) afi rmava: Sem dvida
esses progressos podero seguir uma marcha mais ou menos rpida; mas
jamais ela ser retrgrada.
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Caio Moura
que simplesmente representar a derivao de uma nova ordem
poltica, da qual seria seu mero refl exo, Kultur e civilizao passam
a exprimir um novo mundo que assegura ao homem o pertencimento a
uma identidade universal que o distancia na mesma medida da
barbrie.
Tudo isso talvez seja sinal de que h muito tempo a cultura tenha
deixado para trs o seu signifi cado mais originrio, quando sua
tarefa primordial consistia em arrancar o homem de dentro de si
para elev-lo a uma dimenso mais vasta da existncia, como o
horizonte de suas aes, produes e pensamentos. Agora, a cultura no
mais eleva o homem para alm de si mesmo; o prprio homem, como
sujeito, que elevado para alm de todas as coisas, constituindo o
ncleo de gravidade, a partir do qual tudo se organiza, incluindo a
a natureza, a histria e a arte. A civilizao, como progresso
material, representa o horizonte no qual o sujeito de conhecimento
pode dispor dos meios da natureza de acordo com os desgnios da sua
vontade; a cultura, como reino dos fi ns, a instncia sobre a qual
se desenrolam as aes racionais de um sujeito moral que molda a
histria segundo o seu querer; a cultura, como horizonte de obras, o
substrato de expresso de um sujeito esttico tornado o ncleo
ontolgico de toda arte.
Nessa inverso de perspectivas, cultura e civilizao no apenas
assumem a forma de uma fundao do sujeito. Elas fi guram como uma
espcie de espelho que devolve ao homem a sua imagem para fundi-la
no regozijo de sua prpria representao. Nisso consiste o seu
distanciamento diante da barbrie.
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Submetido em: 12/05/2009Aceito em: 24/06/2009