Top Banner
O advento dos conceitos de cultura e civilização: sua importância para a consolidação da autoimagem do sujeito moderno The advent of the concepts of culture and civilization: Their importance to the self-image of the modern subject Caio Moura 1 Unicamp Filosofia Unisinos 10(2):157-173, mai/ago 2009 © 2009 by Unisinos – doi: 10.4013/fsu.2009.102.03 RESUMO: Este texto objetiva retraçar, por meio de uma análise histórico- filosófica, o nascimento das ideias de cultura e civilização no mundo moderno. De um lado, analisa alguns fatores que motivaram o advento de uma nova consciência social na Alemanha pré-romântica, responsáveis, entre outras coisas, pelo advento das noções de Kultur e Bildung; de outro, examina a natureza do discurso filosófico que motivou o surgimento da noção francesa de civilização no século XVIII. Não obstante as suas especificidades conceituais e históricas, que, em princípio, as tornam conceitos bastante diferentes entre si, cultura (Kultur) e civilização são atravessados por uma determinação comum que está ligada ao conjunto de transformações sofridas pelo sujeito moderno na segunda metade do século XVIII. Palavras-chave: cultura, civilização, Bildung, sujeito, barbárie. ABSTRACT: The text aims to review through a historical-philosophical analysis the rising of the ideas of culture and civilization in the modern world. On the one hand, it analyses some factors that motivated the outcome of the new social consciousness in the pre-romantic Germany responsible, among other things, for the notions of Kultur and Bildung. On the other hand, it investigates the nature of the philosophical speech that motivated the French notion of civilization in the 18th century. Despite their conceptual and historical 1 Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador Colaborador do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Rua Cora Coralina, Campus Unicamp 13083-896, Campinas, SP, Brasil. Bolsista de pós-doutorado pela Fapesp. E-mail: [email protected].
17
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
  • O advento dos conceitos de cultura e civilizao: sua importncia para a

    consolidao da autoimagem do sujeito moderno

    The advent of the concepts of culture and civilization: Their importance to the self-image

    of the modern subject

    Caio Moura1Unicamp

    Filosofi a Unisinos10(2):157-173, mai/ago 2009 2009 by Unisinos doi: 10.4013/fsu.2009.102.03

    RESUMO: Este texto objetiva retraar, por meio de uma anlise histrico-fi losfi ca, o nascimento das ideias de cultura e civilizao no mundo moderno. De um lado, analisa alguns fatores que motivaram o advento de uma nova conscincia social na Alemanha pr-romntica, responsveis, entre outras coisas, pelo advento das noes de Kultur e Bildung; de outro, examina a natureza do discurso fi losfi co que motivou o surgimento da noo francesa de civilizao no sculo XVIII. No obstante as suas especifi cidades conceituais e histricas, que, em princpio, as tornam conceitos bastante diferentes entre si, cultura (Kultur) e civilizao so atravessados por uma determinao comum que est ligada ao conjunto de transformaes sofridas pelo sujeito moderno na segunda metade do sculo XVIII.

    Palavras-chave: cultura, civilizao, Bildung, sujeito, barbrie.

    ABSTRACT: The text aims to review through a historical-philosophical analysis the rising of the ideas of culture and civilization in the modern world. On the one hand, it analyses some factors that motivated the outcome of the new social consciousness in the pre-romantic Germany responsible, among other things, for the notions of Kultur and Bildung. On the other hand, it investigates the nature of the philosophical speech that motivated the French notion of civilization in the 18th century. Despite their conceptual and historical

    1 Doutor em Filosofi a pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador Colaborador do Departamento de Filosofi a da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Rua Cora Coralina, Campus Unicamp 13083-896, Campinas, SP, Brasil. Bolsista de ps-doutorado pela Fapesp. E-mail: [email protected].

  • 158

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    Caio Moura

    peculiarities which, in principle, turn themselves into very different concepts, culture (Kultur) and civilization are crossed by a common determination that would be tied to a set of transformation suffered by the modern subject in the second half of the 18th century.

    Key words: culture, civilization, Bildung, subjectivity, barbarity.

    Introduo

    Precisar o contedo fi losfi co dos conceitos de cultura e civilizao no uma tarefa fcil. Suas variadas formas de emprego sugerem que tais ideias, longe de se revestirem de um sentido unvoco, caracterizam-se por uma dimenso po-lissmica, complexa, por vezes fragmentria. A diversidade de palavras propiciada pela lngua alem, mediante o uso de termos como Bildung (formao) e Kultur (cultura), fornece uma difi culdade adicional e um desafi o constante s tradues. Mas no apenas isso. O sculo XIX conheceu, desde suas primeiras dcadas, uma exploso de signifi cados dos termos cultura e civilizao. Passou-se a falar da cultura de povos e pases, mas tambm da cultura de grupos ligados pelas razes mais diversas, desde a religio, passando pela nacionalidade, at a etnia. Sob um ou outro aspecto, o signifi cado da palavra cultura designava o conjunto de com-portamentos e representaes de mundo. Ela procurava encontrar o trao singular de certa coletividade, na unidade, mais ou menos coerente, da totalidade de suas manifestaes. Ao lado desta ideia, o termo cultura tambm podia se revestir de um sentido bastante diverso (na verdade bem mais antigo), designando um conjunto de conhecimentos adquiridos por um indivduo por intermdio da instruo. Ser culto ou cultivado signifi cava essencialmente estar na posse de conhecimentos diversos, qualquer que fosse a sua natureza, cientfi ca, literria ou fi losfi ca.

    Todavia, o termo civilizao passou, e com mais intensidade, por um processo semelhante. Em seu sentido clssico, a ideia de civilizao englobava o progresso obtido no plano material pelas sociedades industriais e, naturalmente, designava uma particularidade do mundo ocidental moderno. Contudo, passou-se a falar do contraste entre uma civilizao antiga e uma civilizao moderna, da existncia de uma antiga civilizao grega e uma civilizao romana, ou mesmo da oposio mais geral entre civilizao ocidental e civilizao oriental, temas de inmeros debates entre os estudiosos (Guizot, 1838).

    A insurreio contra o mundo da conveno aristocrtica: o nascimento do conceito de Kultur como experincia vivida

    At meados do sculo XVIII, entretanto, as palavras civilizao e cultura so inteiramente desconhecidas. Para marcar a oposio frente ao selvagem ou ao brbaro, empregava-se, frequentemente, o termo civilidade. Deve-se a Erasmo a recepo deste termo, no fi nal do Renascimento, por ocasio da publicao do Tratado de civilidade pueril (Erasme, 2001), em 1530. Ainda que este pequeno texto fosse dedicado educao moral das crianas, seu contedo ultrapassava de longe a mera educao infantil e no demorou a alcanar um grande xito junto s cortes europeias como um ideal de conduta a ser buscado. A civilidade representava, antes de tudo, uma ao sobre o corpo e um domnio das aparncias: o comedimento dos gestos, a maneira de falar, o modo de se apresentar, de se portar mesa, tudo

  • 159

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    O advento dos conceitos de cultura e civilizao

    isso passou a integrar, ao lado das regras de polidez, um novo modelo de forma-o que pouco a pouco se imps entre as cortes da Europa. Por volta da primeira metade do sculo XVIII, a realeza francesa apropria-se da excelncia desse modelo. Seus hbitos so imitados por todas as cortes, incluindo as monarquias dos Esta-dos alemes. O francs2 a lngua falada pelos membros da nobreza da corte, que apenas reserva seu idioma materno s relaes com as classes subalternas. Em uma carta dirigida a Voltaire, Frederico II, prncipe da Prssia, afi rma no falar alemo seno para repreender seus servos e dar ordens s suas tropas. No se aprende essa lngua, escreve o prncipe, seno para fazer guerra (Frederic II, 1805, vol. XVI, p. 283). Dirigindo-se uma vez mais ao seu mais ilustre interlocutor, Frederico ainda mais sarcstico: eis o que eu disse aos cavalos que tero a honra de vos conduzir, referindo-se ao poema dedicado ao fi lsofo com o qual abrira a carta (Frederic II, 1805, vol. XIV, p. 236), para ento completar: dizem que a lngua alem feita para falar com os animais; e, na qualidade de poeta desta lngua, julguei que minha musa estivesse mais capacitada a inspirar os seus cavalos do que vos enviar os seus sons (Frederic II, 1805, vol. XIV, p. 236). Para alm do desprezo perante o alemo, lngua verborrgica (Frederic II, 1805, vol. XVI, p. 172-173), segundo o prncipe, suas cartas no se cansam de enaltecer o francs como uma lngua dos deuses (Frederic II, 1805, vol. XVI, p. 243), dotada de elegncia e fi neza (Frede-ric II, 1805, vol. XII, p. 45). Nenhum homem que no seja nascido na Frana, ou habituado desde muito tempo a Paris, enfatiza Frederico, poder possuir em sua lngua o grau de perfeio to necessrio para fazer bons versos ou elegante prosa (Frederic II, 1805, vol. XV, p. 14).

    O domnio da lngua francesa talvez tenha sido o sinal mais eloquente de uma disposio de esprito que norteou a civilidade europeia no sculo XVIII, mas certamente no foi o nico. A disciplina sobre o corpo, o comedimento dos gestos, a polidez dos hbitos eram parte de um processo de formao da nobreza que no tardou a atingir, em particular na Frana, setores sociais que no pertenciam originariamente aristocracia. O artigo de Jaucourt (1753), publicado na Enciclo-pdia, foi um sinal claro do quanto essa maneira de modelar a conduta no estava mais restrita, ao menos na Frana, aristocracia da corte. Intitulado Civilidade, Polidez e Afabilidade, Jaucourt (1753, vol. III, p. 497) as defi ne como maneiras honestas de agir e conversar com outros homens em sociedade, acrescentando mais adiante que a civilidade e a polidez constituem um certo decoro nas manei-ras e nas palavras, a fi m de agradar e marcar a deferncia que temos uns pelos outros (Jaucourt, 1753, vol. III, p. 497). As referncias da Enciclopdia a um certo gnero de conduta, contudo, terminam a. O verbete civilizar (Jacourt, 1753, p. 497), presente na mesma pgina, integra o vocabulrio jurdico-processual, no guardando nenhuma relao com a ideia de civilidade, e a palavra civilizao, que se disseminar na Frana somente a partir da dcada de 1770, no citada sequer uma nica vez em seus textos.

    Quase duas dcadas depois, Kant, ao publicar sua Ideia de uma Histria Universal do Ponto de Vista Cosmopolita, nos apresenta uma nova forma de ver a questo.

    2 O francs se torna uma lngua dominante na Europa, a partir de 1648, por ocasio do Tratado de Westflia que ps fi m Guerra dos Trinta Anos, na qual a Alemanha saiu amplamente derrotada. Em Quand lEurope parlait franais, Fumaroli (2001, p. 23) diz, a respeito da recepo da lngua francesa no continente europeu: O francs, tornado hegemnico na Europa a partir dos tratados de Westflia em 1648, era uma lngua em si mesmo incmoda, difcil, aristocrtica e literria, como o latim de Ccero ou o grego de Luciano, inseparvel, como seus ancestrais antigos, de um bom tom nas maneiras, de uma conduta social, e de uma qualidade de esprito, nutrida de literatura, na conversao.

  • 160

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    Caio Moura

    Somos altamente cultivados no domnio da arte e da cincia. Somos civilizados ao ponto de termos sido fatigados para aquilo que da urbanidade e da decncia de toda ordem. Mas quanto a considerar-nos como j moralizados, preciso ainda muito para isso. Pois a ordem da moralidade pertence ainda cultura (Cultur): por outro lado, a aplicao daquela ideia, que redunda apenas em uma aparncia de moralidade na honra e na decncia exterior, constitui simplesmente a civilizao (Civilisirung) (Kant, 1990, p. 82).

    A palavra cultura (Cultur) no pode traduzir o que da ordem da exteriori-dade; ela acena para algo pertencente a uma determinao interior do sujeito. A Kultur, palavra que surge na segunda metade do sculo XVIII3 entre os alemes e que no deve ser confundida com o vocbulo civilizao, integra um domnio per-tencente s realizaes do esprito, por meio do qual o homem se reconhece como sujeito moral. Assim, Kant (1990) nos d, nessa passagem, uma nova compreenso acerca do signifi cado da cultura. A Kultur ou Cultur, como o fi lsofo se refere mais frequentemente no texto4, segue uma determinao prpria, no encontra sua positividade em uma equivalncia com a noo inglesa e francesa de civilizao como progresso material, tampouco nas regras de decncia e decoro. Mas por meio dessa defi nio, Kant (1990) demarca um limite entre Cultur e civilidade e sela, por assim dizer, uma oposio que h muito vinha se fi rmando entre os alemes, mais precisamente desde que uma gerao de poetas, escritores e fi lsofos5 comeou, em meados do sculo XVIII, a por abaixo alguns dos valores do seu tempo. Seu texto talvez no tenha sido o primeiro a estabelecer essa delimitao, mas certamente foi o mais conhecido a esse respeito. O que o autor chama de Cultur orienta-se por uma matriz fi losfi ca diversa daquela seguida pela gerao do Sturm und Drang e dos adeptos do seu legado. Mas nem mesmo isso foi capaz de impedir que se fi zesse desse conceito, to caro aos alemes, um polo de oposio comum a um conjunto de valores que caminhavam inevitavelmente para um momento em que suas contradies no mais podiam ser ocultadas.

    Que oposio de valores essa? Em que medida esse confl ito se colocou na base de uma srie de transformaes que viria, entre outras coisas, fazer emergir o conceito de cultura (Kultur)? Em um estudo clssico sobre a formao da mentali-dade da sociedade ocidental, Elias (1973) analisou a gnese social dos conceitos de cultura e civilizao ao estudar o cenrio sociopoltico que produziu, da Alemanha do sculo XVIII, este antagonismo de valores. Forjados em meio a um quadro de particularidades histricas que permearam pases como Frana e Inglaterra, de um

    3 De acordo com Tonnelat (in Febvre e Tonellat, 1930), difcil estabelecer uma data precisa para a primeira apario do vocbulo Kultur no mundo alemo. O historiador francs identifi ca sua apario em Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit de Herder, publicada entre 1784 e 1791. Podemos encontrar igualmente o termo na terceira parte de Auch eine Philosophie der Geschichte, publicada em 1784, no mbito de uma discusso sobre o legado deixado pelas culturas passadas s novas culturas: a cultura (Kultur) no fora jamais a mesma, porque as infl uncias da natureza primeira, de agora por diante modifi cadas, lhe faltavam (Herder, 1964, p. 315).4 Na maior parte do texto, Kant (1990) comea a escrever a palavra com a letra c Cultur. Outro fi lsofo, Friedrich Nietzsche, para quem o conceito de cultura igualmente caro, emprega alternadamente em seus textos os dois modos de grafi a.5 Trata-se do Sturm und Drung (Tempestade e mpeto), movimento surgido na dcada de 70, do sculo XVIII, em reao ao conjunto de valores, convenes sociais e princpios literrios vigentes na poca que, sob a tica de uma nova gerao de poetas e escritores, representavam um obstculo expanso do gnio criativo do homem ou de tudo mais que fosse relacionado expresso de sua interioridade individual. Confundido frequentemente com o Romantismo, o Sturm und Drang foi, na verdade, sua forma embrionria, fato que tem levado muitos autores a denomin-lo de Pr-Romantismo. Nessa fase, o Sturm und Drang fortemente infl uenciado pela fi losofi a da natureza de Rousseau e tem como principais expoentes Lessing e, sobretudo, Herder e o jovem Goethe.

  • 161

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    O advento dos conceitos de cultura e civilizao

    lado, e Alemanha, de outro, os termos civilizao e cultura adquiriram signifi cados locais bastante diversos. Enquanto, na Inglaterra e na Frana, a palavra civilizao associava-se ao grau de progresso e desenvolvimento material da sociedade, na Ale-manha, de modo diverso, a ideia de civilizao (Zivilization) no se revestiu do mesmo cunho de universalidade observado naqueles pases. Seu alcance restringiu-se a uma classe social especfi ca, que guardava para si mesma, sem quaisquer intenes de compartilhar com os outros, aquilo que julgava ser o trao distintivo de seu orgulho e superioridade. Na segunda metade do sculo XVIII (mais especifi camente, a partir dos anos 70), a palavra civilizao equivalia, na Alemanha, ao que, na Frana, se entendia ainda por civilidade (Elias, 1973, p. 12-14). A barreira social que separava a classe mdia burguesa da aristocracia cortes, simbolicamente representada pelo formalismo dos hbitos, era apenas a parte visvel e imediata de uma ciso muito mais radical e profunda, que considerava, entre outras coisas, a completa excluso da primeira na participao dos negcios do Estado. Esta excluso naturalmente a colocava em uma posio social de inferioridade diante do universo da corte e, tal-vez, tenha sido o aspecto mais representativo, e igualmente determinante, de uma signifi cativa e profunda diferena de valores e anseios espirituais que se tornaria cada vez mais aguda nas ltimas dcadas do sculo XVIII.

    em meio a esse quadro de antagonismo poltico, social e espiritual que a ideia de Kultur encontra a raiz de seu desenvolvimento. Longe dos centros de deciso do poder poltico, restritos apenas aos crculos da realeza, e em posio de inferiorida-de social diante da nobreza da corte, a elite intelectual alem no pde vislumbrar, seno no mundo da Kultur, uma espcie de refgio existencial onde poderia afi rmar seus valores, recuperar sua autoestima, e obter, assim, a legitimao de sua condio social. A literatura constituiu um refgio natural tanto quanto o veculo de expresso por excelncia da identidade e dos ideais dos setores mais cultivados da classe mdia. Escritores e pensadores como Goethe, Herder, Lessing e muitos outros, j haviam dei-xado de lado o francs e o latim, que, juntos, constituam a lngua predominante das obras literrias e fi losfi cas, para, numa atitude deliberada de afi rmao do idioma germnico, escrever suas obras integralmente em alemo.

    A defesa da lngua alem, contudo, no constitua exatamente uma novidade nessa poca. Desde o sculo XVII, uma srie de autores infl uenciados pelos ideais da Reforma empenhou-se vivamente em fazer frente ao francs e ao latim, ao publicar suas obras no idioma germnico. Mas, a partir das ltimas dcadas do sculo XVIII, esse programa adquire um novo impulso; ele no mais se restringe aos setores religiosos da sociedade alem, mas abarca igualmente, e em primeiro plano, uma determinada parcela da burguesia alem. Isso signifi cou muito mais que o simples alargamento do patriotismo lingustico iniciado no sculo precedente, e o que peculiar a essa reabilitao do idioma alemo a nova diretriz fi losfi ca pela qual ela agora se conduz. As ideias do fi lsofo Rousseau marcaram profundamente a ge-rao de poetas e escritores do Sturm und Drang, fornecendo o fermento intelectual para que toda uma atitude contrria s principais linhas do programa da Filosofi a das Luzes pudesse ganhar corpo, volume e consistncia. O primeiro dos Discursos de Rousseau (1999), que versava sobre o suposto papel das cincias e das artes no aperfeioamento do gnero humano, valera-lhe o prmio oferecido pela Academia de Dijon, no ano de 1750. Sem o mesmo impacto do segundo de seus Discursos, que tratava da origem das desigualdades entre os homens (o prprio Rousseau o julgava a obra anterior com descaso), este ensaio exerceria, duas dcadas mais tarde, uma notvel infl uncia entre os alemes, e sobre Herder, em particular. Este trabalho tem o mrito de se deter, talvez como nenhum outro escrito de Rousseau, no confl ito entre a individualidade e as convenes impostas pela sociedade civilizada (societ polic), a partir de uma crtica ao pensamento iluminista apoiada em uma fi losofi a da natureza. Eis algumas de suas passagens mais importantes:

  • 162

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    Caio Moura

    Potncias da terra amai os talentos e protegei aqueles que os cultivam. Povos poli-ciados cultivai-os; escravos felizes, vs lhes deveis esse gosto delicado e fi no com que vos excitais, essa doura do carter e essa urbanidade de costumes que tornam to afvel o comrcio entre vs, em uma palavra: a aparncia de todas as virtudes, sem que se possua nenhuma delas (Rousseau, 1999, p. 190-191). A riqueza do vesturio pode denunciar um homem opulento, e a elegncia um ho-mem de gosto; conhece-se um homem so e robusto por outros sinais sob o traje rstico de um trabalhador e no sob os dourados de um corteso, que se encontraro a fora e o vigor do corpo. A aparncia no menos estranha virtude que a fora e o vigor da alma (Rousseau, 1999, p. 191). Antes que a arte polisse nossas maneiras e ensinasse nossas paixes a falarem a linguagem apurada, nossos costumes eram rsticos, mas naturais (Rousseau, 1999, p. 191). [...] todos os espritos se fundiram num mesmo molde: incessantemente a polidez impe, o decoro ordena; incessantemente seguem-se usos e nunca o prprio gnio. No se ousa mais parecer como se [...] (Rousseau, 1999, p. 192).

    As passagens citadas mobilizam elementos capitais que, mais tarde, seriam caros ao Sturm und Drang. A ideia de uma natureza pura, corrompida por algo que no de sua ordem e com a qual preciso obter uma reconciliao, foi um tema corrente ao longo dos sculos XVIII e XIX. Ao lado dessa ideia central, a noo de virtude constituiu um dos principais leitmotivs do Sturm und Drang, infl uenciando fortemente a vertente nacionalista liderada por Herder. A crtica realizada pelos alemes aos valores dominantes de sua poca se apropriava do pensamento de Rousseau para circunscrev-lo a um mbito mais especfi co: j no se tratava mais de compreender como a sociedade corrompeu a natureza do homem, mas questionar a situao de dependncia intelectual da Alemanha em relao Frana, da hegemo-nia de seus philosophes sobre a corte, da preponderncia do idioma francs sobre suas obras, de tudo, enfi m, que distanciava os alemes de si mesmos. Era preciso reatar o elo perdido de uma unidade espiritual h muito esquecida, recuper-la e dar-lhe uma nova grandeza e dignidade.

    O resgate das razes medievais germnicas, promovido por Herder, desempe-nha um papel da maior importncia nesse movimento de afi rmao da identidade alem; ele constitui um modo de fazer frente hegemonia dos valores franceses ao resgatar um esprito obscurecido e encoberto pela frieza e artifi cialidade dos hbitos da sociedade polic. A valorizao dos contos, da poesia, das lendas nacionais e de tudo mais que evoca o retorno s fontes de um passado pleno de fora e virtude exorta os alemes a reconhecer em sua prpria origem os traos de uma essncia perdida. Se o alemo de outrora se via privado de refi namento, instruo e das demais caractersticas caras ao mundo da civilidade, isso apenas indica o quanto sua integridade moral manteve-se intacta, junto com seu vigor, sua sade e a sua fora de esprito (Herder, 1964, p. 201). Eles desprezavam as artes e as cincias, a opulncia e o refi namento, escreve Herder (1964, p. 199), no melhor estilo rous-seauniano, para completar logo em seguida:

    [...] no lugar das artes a natureza; no lugar das cincias o bom senso nrdico; no lugar dos refi namentos, costumes fortes e bons, ainda que selvagens; e tudo isso eferves-cia que acontecimento! Suas leis, como elas respiravam a coragem viril, o senso da honra, a confi ana na inteligncia, na lealdade e venerao dos deuses!

  • 163

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    O advento dos conceitos de cultura e civilizao

    Esse posicionamento, pouco comum para uma poca que no reconhecia na Idade Mdia seno o recndito de um passado de ignorncia e obscurantismo, representava bem mais (a despeito de seu compromisso com suas razes passadas e de sua reprovao ao despotismo esclarecido de Frederico) que a adeso a um programa de cunho poltico-nacionalista.6 O culto s fontes nacionais era parte no apenas de uma nova disposio de esprito, mas de um programa fi losfi co bem mais amplo que inseria o Sturm und Drang em linha direta de coliso com a Filosofi a das Luzes. A crena no progresso incessante dos povos, no aprimoramento moral da humanidade e na razo calculadora e universal, todas elas teses centrais do Iluminismo, encontravam na reabilitao da Idade Mdia promovida por Herder um ponto de tenso que ia alm do legado crtico deixado por Rousseau. A exaltao ao medievalismo germnico, por conseguinte, no podia se resumir apenas a uma valorizao da honra, do vigor fsico e psquico, em oposio ao esclarecimento e etiqueta; ela vai alm, para reconhecer nessa poca um perodo de efervescncia criativa que lhe singular e que impede a comparao com outras pocas.

    No plano simblico, o resgate das razes germnicas procura promover a au-tonomia espiritual, e tambm social, por parte de uma classe mdia cultivada que no almeja progredir socialmente nem afi rmar e ver reconhecidos os seus prprios valores. Junto a ela, a ecloso de uma nova mentalidade ganha, crescentemente, espao e demarca suas diferenas histricas, fi losfi cas e estticas, diante do esprito de toda uma poca, a ponto de se constituir em um divisor de guas na histria das ideias. Esse advento de um novo campo das ideias, indissocivel de uma nova disposio de nimo, caracterstica de toda uma gerao, perfaz uma espcie de movimento circular: o Sturm und Drang ver em Rousseau a fonte de inspirao fundamental para as suas ideias. Mas, medida que esse processo est em curso, particularmente atravs dos escritos de Herder, suas proposies ganham auto-nomia e uma tonalidade prpria, abrindo dessa forma um horizonte de refl exo inteiramente novo para a poca.

    Resta, ento, ao Sturm und Drang, no apenas retomar as teses rousseau-nianas, mas lev-las s ltimas consequncias ao conduzi-las para o interior de um contexto singular de onde elas eclodem com fora redobrada. Expressar o que singular em cada requer uma reconciliao com as virtudes que habitam o nosso ser interior e com as quais se perdeu contato. Na Alemanha dos tempos de Frede-rico, essas virtudes foram corrompidas pela frieza e superfi cialidade dos hbitos de uma sociedade que toma suas prprias normas de disciplina e boa conduta como o trao da mais alta civilidade e distino. O movimento de valorizao das razes germnicas medievais e de crtica Filosofi a das Luzes jamais poderia, portanto, representar uma atitude desinteressada e fortuita por parte do Sturm und Drang. Ele corresponde aos anseios de uma nova gerao, de suas diferenas ticas, estticas e fi losfi cas frente ao esprito de sua poca e da consequente imploso de seus valores, incluindo as convenes sociais estabelecidas pela aristocracia francesa. No de admirar que, na Alemanha oitocentista, onde os hbitos franceses eram copiados pelos crculos da corte, as regras de etiqueta tenham provocado tanta reao em certos setores cultivados da classe mdia. Elas representavam muito mais que um cdigo de comportamentos; eram a expresso concreta de uma atitude, de um modo de pensar, de ser e agir, que aglutinava, com fora particular, um conjunto de ideais com os quais qualquer relao de submisso j no era mais possvel. Sua subverso era inevitvel, tanto quanto necessria, e fazia parte de um engajamento

    6 Herder e a nova gerao literria, que junto a ele desabrochava, no alimentavam quaisquer aspiraes de natureza poltica, quer em relao a uma possvel emancipao do regime, quer em relao unifi cao dos estados alemes.

  • 164

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    Caio Moura

    que buscava promover uma nova tomada de conscincia, a partir de uma insurreio de foras que habitavam a interioridade individual.

    Os Sofrimentos do Jovem Werther (Goethe, 2001) mobiliza, de forma parti-cularmente intensa, os elementos capitais da nova tomada de atitude que marcam este perodo. Trata-se da reivindicao de uma gerao, ou de um determinado extrato social, acerca do reconhecimento de seu prprio valor em meio a uma sociedade aristocrtica, que no reconhece nada seno sua prpria etiqueta; mas tambm, e acima de tudo, de uma insurreio contra os obstculos presentes em um ambiente socialmente hostil que, em larga medida, impedem a livre expresso da interioridade individual.

    Pode-se dizer muito a favor das regras, mais ou menos tanto quanto se pode dizer para louvar as etiquetas sociais. Um homem que se forme seguindo-as, jamais produzir algo falto de gosto e ruim. Da mesma forma que algum que se molda segundo as leis e as boas maneiras jamais ser um vizinho insuportvel, ou um malvado digno de nota. Mas em compensao, as regras, por mais que se diga algo em favor delas, destroem o verdadeiro sentimento da natureza e sua genuna expresso! (Goethe, 2001, p. 24-25).

    Outra passagem deixa igualmente clara em que medida os valores estabele-cidos pela sociedade aristocrtica constituem um obstculo real expanso interior do personagem:

    O que mais me vexa so essas fatais relaes sociais. Sei bem, como qualquer outro, que necessria a distino de classes e conheo as vantagens que ela traz para mim mesmo; mas no gostaria que essa distino atravancasse o meu caminho quando poderia conduzir-me a alcanar um pouco de alegria, ou fazer-me gozar um vislumbre da felicidade deste mundo (Goethe, 2001, p. 96).

    O que se l nas linhas escritas pelo jovem pensador no representa seno os anseios tpicos de uma gerao tomada por um novo estado de esprito face aos valores e ideias de seu tempo. O formalismo, a pompa, a aparncia, o comedimento e tudo o mais prprio da societ polic, ou do Grand Monde, como chamou Frederico (Frederic,1805, vol. XVI, p. 172-173), dar lugar sublevao dos sentimentos e dos instintos como a marca de uma espontaneidade do esprito capaz de conduzir o homem a si mesmo e de reconcili-lo com sua prpria humanidade, ou com a genuna expresso do esprito germnico, no caso de Herder (1964). Elias (1973, p. 32) d a perfeita sntese desse movimento: leviandade, cerimonial, conversao superfi cial de um lado; interiorizao, profundidade de sentimento, leitura, formao da personalidade individual do outro [...].

    Compreende-se melhor porque tanto o Sturm und Drang quanto o romantismo alemo jamais tenham se constitudo em torno de aspiraes polticas. Na esfera da poltica, talvez mais do que em qualquer outra, o clculo estratgico, a frieza e a racionalidade encontravam a sntese mxima de sua realizao. Tratava-se de um mundo nascido e organizado em torno de valores com os quais todo e qualquer compromisso de conciliao estivesse destinado a jamais se realizar. A impossibilidade absoluta dessa conciliao imaginria fi ca clara por conta da reao de Frederico II, expoente maior do mundo da poltica alem, s primeiras obras do Sturm und Drang que fl orescem na Alemanha. Em uma carta redigida a Voltaire, no ano de 1775, justamente quando as obras literrias do Sturm und Drang comeam a ganhar repercusso dentro e fora da Alemanha, Frederico (1805) mostra o quanto era grande o abismo que separava esses dois mundos, ao revelar a sua recusa em reconhecer, como um bom adepto dos ideais de gosto do Classicismo, o seu valor literrio:

  • 165

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    O advento dos conceitos de cultura e civilizao

    Os alemes tm a ambio de desfrutar por sua vez as vantagens das belas-artes: eles se esforam em igualar Atenas, Roma, Florena e Paris. Por mais amor que eu tenha por minha ptria, eu no saberia dizer at aqui o que eles de fato alcanaram: pois lhe faltam duas coisas: a lngua e o gosto. A lngua demasiado verborrgica: a boa companhia fala o francs e mesmo alguns dos mais renomados mestres e profes-sores no podero dar-lhes a polidez e os rodeios desembaraados que eles apenas poderiam adquirir na sociedade do grand monde. [...] Eles acreditam obter xito no teatro; mas at aqui nada de perfeito surgiu. A Alemanha atualmente como era a Frana do tempo de Franois I. O gosto pelas letras apenas comea a se expandir [...] (Frederic II, 1805, vol. XVI, p. 172-173).

    Da parte da burguesia alem cultivada, a possibilidade dessa aproximao igualmente remota: na medida em que sente que sua identidade se consolida, o distanciamento entre suas aspiraes e os ideais que regem o mundo aristocrtico torna-se cada vez mais agudo. Como antes, a burguesia cultivada permanece distan-ciada da esfera dos negcios polticos e socialmente isolada em seu prprio mundo. A diferena que agora ela no mais se v abandonada ao espao vazio e estril, que em outros tempos lhe havia sido destinado, e passa a constituir, pela primeira vez, um universo que lhe prprio. O campo da cultura (Kultur) corresponde a esse espao singular que nasce em meio reviravolta dos valores vigentes, promovida pela gerao do Sturm und Drang. Ele signifi ca uma resposta a um mundo com o qual passa a polarizar e frente ao qual os setores da burguesia cultivada podem afi rmar sua autonomia espiritual. De um lado, uma classe que nada produz e para quem os ideais de civilidade se resumem a um conjunto de convenes de etiqueta; de outro, um segmento da sociedade que extrai seu orgulho e autoconfi ana por meio de suas realizaes. A Kultur, diferentemente do conceito francs de civilizao (noo determinada pela ideia de progresso material), circunscrita pelo domnio do esprito; ela engloba as realizaes artsticas, intelectuais e mesmo religiosas de um povo e demarca, por assim dizer, um espao de autonomia diante da esfera dos negcios polticos. Como horizonte de afi rmao de um segmento intelectual incipiente, a cultura aglutina um conjunto de anseios e valores em plena ebulio, valores que, no ao acaso, encontraro na literatura fl orescente alem o seu veculo de expresso por excelncia.

    Uma vez mais Goethe nos mostra em Werther, por intermdio de um aconte-cimento marcante, o signifi cado essencial da Kultur como espao de independncia e afi rmao individual. Trata-se, mais precisamente, de uma passagem do romance em que o protagonista, no caso o prprio Werther, narra o episdio embaraante no qual se v obrigado, por sugesto do prprio anfi trio, a retirar-se de uma re-cepo social em razo de sua origem social. Escreve Goethe (2001, p. 104): Vs conheceis, disse-me o conde, a nossa esquiptica etiqueta. A sociedade, segundo me parece, no vos v aqui com prazer. E continua:

    Saudei a ilustre companhia, sa, subi num cambriol e fui a M... para ver da montanha o pr do sol e ler no meu Homero aquele belo canto em que o autor narra como Odisseu foi abrigado pelo dignssimo criador de porcos (Goethe, 2001, p. 105).

    A passagem acima talvez seja a mais emblemtica e signifi cativa do livro. Werther abandona a recepo social e busca exlio no seio da natureza. Mas no o faz sem levar consigo a Odissia de Homero para, ironicamente, ler o trecho em que Odisseu, transformado por Palas Atena em velho, desfruta da hospitalidade do criador de porcos que, ao longo da trama, se revelar o mais fi el e nobre dos seus servos. O gesto de Werther, mais do que portar uma fi na ironia, simboliza o momento de uma superao, de uma passagem, ou talvez mesmo de uma

  • 166

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    Caio Moura

    descoberta: o indivduo abandona o universo da conveno social para buscar abrigo em um espao propcio ao seu desenvolvimento interior; a natureza no mais constitui um refgio do esprito, ela agora sucedida pelo mundo da Kul-tur, este horizonte singular onde o homem doravante poder projetar o seu ser interior para com isto ver a sua prpria individualidade constituda e afi rmada como princpio e valor.

    Werther no representa mais do que um dos muitos pontos de partida para que o mundo da Kultur possa ser compreendido como um espao de realizao do esprito. Assistiremos, a partir disso, o domnio da cultura gradativamente se afi rmar como uma possibilidade de expresso do sujeito, ou como um espao, para utilizar as palavras de Heidegger (1962, p. 123), de uma experincia vivida.

    justamente na medida em que a Kultur se consolida como experincia vivida que se assiste ao surgimento daquilo que os alemes chamariam de Bildung (formao). Qual o seu signifi cado? No se deve encarar a Bildung unicamente como uma sucesso conceitual da Kultur. Enquanto esta ltima designa o domnio das produes humanas, a Bildung representa o processo de formao necessrio ao ingresso no mundo da Kultur. A Bildung um conceito complementar ao de Kultur, mas ao mesmo tempo muito mais do que isso; ela representa a consumao daquilo que a Kultur acenava como horizonte possvel, mas ainda no totalmente realizvel. Em Werther (Goethe, 2001), o mundo da cultura um refgio do esprito que, por vezes, ainda obscurecido pelo da natureza ou que, perturbado por um conjunto de valores ainda presentes, no atingiu sua total autonomia. O indivduo no chegou plenamente a si mesmo, encontrando-se ainda em confl ito com as re-gras de um mundo que no lhe pertence. A Kultur ainda um domnio incipiente, e, mesmo quando Werther se refugia na leitura de Homero, para encontrar nesse gesto a possibilidade simblica de afi rmao de um espao prprio de realizao individual, o far em uma situao ainda pouco confortvel. Essa obra traduz um estgio incipiente da cultura, e por isso mesmo uma tarefa inacabada; o indivduo no se emancipou inteiramente, no tendo ainda encontrado sua prpria via de desenvolvimento, ou tampouco constitudo um horizonte que lhe inteiramente prprio. Somente quando isso ocorrer, a tarefa iniciada por Werther (Goethe, 2001) poder ser consumada.

    Se a Bildung acena para algo mais do que um conceito complementar ao de Kultur porque representa uma nova etapa no processo de consolidao do indiv-duo como princpio e valor. O fenmeno literrio conhecido como Bildungsroman, romance de formao, pode ser tomado como um bom exemplo desse estgio que marca a individualidade moderna. Escritas em sua maior parte nas primeiras dcadas do sculo XIX, suas obras ilustram o conjunto de experincias e situaes que condu-ziro, ao fi m de uma jornada de autoaprendizado, o indivduo a si mesmo. No plano concreto, e no mais simblico, a Bildung consuma aquilo que era at ento uma promessa ou uma tarefa realizada pela metade. O fl orescimento da individualidade no se depara mais com os mesmos obstculos de outrora; o indivduo agora possui a certeza e a segurana de chegar a si mesmo, unicamente por intermdio de seus prprios esforos, sem se deparar com entraves de ordem social que representem uma ameaa ao seu desenvolvimento interior. verdade que as experincias pelas quais passar so imprevisveis e escapam ao seu controle. Contudo, no isso que est em questo. O que se coloca verdadeiramente em jogo na Bildung a abertura de uma via que permita ao indivduo constituir, em meio ao mundo que o cerca, um espao de realizao interior materializado sob a forma de uma tica privada.

    Por isso, no surpreendente que o campo da cultura tenha signifi ca-do, tanto para a elite intelectual alem e mesmo para alguns segmentos do

  • 167

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    O advento dos conceitos de cultura e civilizao

    pensamento liberal7, um espao onde os indivduos poderiam promover seu aperfeioamento interior, cultivando suas virtudes, exprimindo livremente seus pensamentos e opinies, externando o seu gnio criativo. Trata-se de uma es-pcie de substrato sobre o qual o exerccio da liberdade pode se consumar, mas de uma liberdade determinada por uma representao subjetivista inclinada a circunscrever no apenas a ao, mas tambm os seus efeitos, esfera particular de cada um. Orientada pela oposio ao mundo da poltica, o domnio da cultura assim, por excelncia, um espao privado de constituio e desenvolvimento da individualidade enquanto tal.

    Para alm de uma determinao de classe

    Por tudo isso, o signifi cado mais fundamental da noo de cultura esteve longe de se resumir a um embate de classes. A ideia de que a sua gnese pode derivar unicamente de um processo social marcado pela tenso de valores de diferentes grupos, por mais esclarecedora que tenha sido, no pode dar conta do seu signifi cado mais essencial. A querela literria entre o Pr-Romantismo (ou Sturm und Drang) e o Classicismo, ocorrida na Alemanha no incio da segunda metade do sculo XVIII, constituiu a perfeita ilustrao de como o conjunto de ideais e aspiraes, que se colocaram na base do conceito de cultura, encontrou a sua raiz em um processo bem mais amplo e profundo. O confronto desses dois movimentos, sem dvida, demarca as diferenas relativas a ordens sociais distintas: o Classicismo representando os valores sociais do mundo aristocrtico, e o Pr-Romantismo expressando os anseios de uma burguesia cultivada que ambiciona se projetar literria e artisticamente. Mas no essencial, esse confl ito carrega em sua esteira uma mudana mais fundamental; ele um dos inmeros sinais da irrupo de uma nova tomada de subjetividade no Mundo Moderno8, de uma transformao profunda da representao que o homem faz de si mesmo como sujeito, cujo signifi cado jamais pode ser restrito a um confl ito social localizado entre os alemes. inevitvel que um movimento profundamente comprometido com o extravasamento da interioridade individual como o Sturm und Drang encontre nas bases racionais da arte clssica um poderoso obstculo as suas pretenses de legitimidade. A Arte Potica de Boileau (1966), espcie de poema-diretriz dos preceitos do Classicismo, constitui a fi el representao dessa dimenso normativa da arte que deve orientar, de uma ponta a outra, todo o fazer artstico. Fiel concepo de imitao racional da natureza, os versos de Boileau (1966) seguem risca os ditames da arte clssica. Eles apresentam ao leitor um conjunto ordenado de regras rgidas a serem seguidas na construo do poema, insistindo no rigoroso disciplinamento dos impulsos subjetivos do artista, no comedimento, no equilbrio e na razo como metas a serem perseguidas pelo autor, no apenas na fabricao do texto, mas tambm, e essencialmente, na composio do carter dos personagens do drama.

    7 Nesse sentido, vale a lembrana da obra mais clebre de Humboldt (2004): Os Limites da Ao do Estado. No obstante ao fato de discorrer sobre os preceitos que norteiam a doutrina liberal clssica, a peculiaridade desse livro no consiste propriamente em uma refl exo fi losfi ca sobre a esfera poltica ou sobre as instituies do Estado, mas na tentativa de pensar as condies polticas de instaurao da Bildung como ideal tico de afi rmao da livre individualidade. E isso no poderia ser levado adiante sem que Humboldt mobilizasse algumas das matrizes centrais do pensamento alemo do fi nal do sculo XVIII, especialmente aquelas oriundas das obras de Herder e Goethe. As ideias de originalidade, de desenvolvimento individual por intermdio da experincia, de natureza interior como fora espontnea, todas herdadas originariamente da gerao de alemes da fase pr-idealista, encontraram, no por acaso, na doutrina liberal um terreno favorvel para sua plena efetivao.8 Sobre o papel do Sturm und Drang na formao da identidade moderna, ver o sub-captulo A virada expressivista da quarta parte de As Fontes do Self - a construo da identidade moderna, de Taylor (1997).

  • 168

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    Caio Moura

    No uma surpresa ver o Sturm und Drang colocar abaixo esse horizonte de compreenso das coisas, por meio do qual as regras rgidas de produo da arte potica constituem um entrave ao poder da imaginao. Por essa razo, a arte no pode mais constituir uma imitao da natureza, mas uma expresso interior dos estados de alma do homem; a arte agora emancipa o homem, no podendo ser dissociada de uma crescente liberdade que no quer mais se defrontar com limites ou regras de toda ordem. A cultura no pode ser apenas um espao de afi rmao de um grupo social incipiente, de suas realizaes artsticas, intelectuais ou espiri-tuais; a cultura , acima de tudo, o horizonte que torna possvel a materializao do gnio humano; ela quem assegura que a essncia desse sujeito, tomado como imaginao criadora, possa externar toda a sua energia interior sob a forma de uma experincia vivida. A cultura representa, em outros termos, um substrato de expresso do sujeito e tem na arte o seu elemento indissocivel: a arte o produto de uma experincia vivida; a cultura, o suporte de uma vivncia concreta.

    Mas em que medida o advento da noo de cultura constitui um acontecimento decisivo para a consolidao da autoimagem do homem moderno enquanto sujeito? A resposta a tal indagao depende de um exame prvio do conceito de civilizao, cujo contedo essencial no to diferente como em princpio se pode pensar.

    A convergncia entre Kultur e civilizao como horizonte de afirmao do sujeito moderno

    Foi em meados do sculo XVIII que o termo civilizao surgiu pela primeira vez na Frana9. Sua data de nascimento pode ser precisada: 1757 com a publicao de LAmi des Hommes, de autoria de Mirabeau pai.10 Nesta obra, a palavra civilizao desponta como um conceito ainda incipiente, longe do signifi cado que mais tarde a ela se convencionou atribuir: a religio , incontestavelmente, o primeiro e mais til freio da humanidade: o primeiro mbil da civilizao (civilisation) (Mirabe-au, s.d., p. 377). O termo ainda circunscrito pela ideia de civilidade, tal como encontramos em Jaucourt (1753) e em outras obras da poca, nas quais se refere a uma forma de suavizao dos comportamentos, de policiamento dos hbitos, de disciplina das condutas. preciso esperar ainda cerca de uma ou duas dcadas para que, ao menos entre os franceses, a palavra civilizao possa adquirir o contedo como ainda hoje conhecemos, quando comea a ser pensada em moldes iluministas numa oposio frontal barbrie.

    O conceito iluminista de civilizao faz explodir com o mximo de fora todo o sentido universalista que os ideais de civilidade vinham adquirindo nas ltimas dcadas. Esse sentido, todavia, ainda permanece limitado e relativamente vago; a

    9 Entre os britnicos, a palavra surge dez anos mais tarde com a obra An Essay on the History of Civil Society, de Adam Ferguson. Mas ao contrrio de LAmis des Hommes, que emprega o termo de modo ainda ambguo, em Ferguson (1991) podemos encontr-lo claramente associado ideia de progresso, tal como sugerem as primeiras linhas de seu livro: As produes naturais so geralmente formadas por etapas. Os vegetais nascem de um delicado broto, e os animais de um estado infante. Mais tarde, sendo ativos, estendem juntos suas operaes e seus poderes, e alcanam certo progresso naquilo que executam, bem como nas capacidades que adquirem. No caso do homem, porm, esse progresso continua em maior escala do que em qualquer outro animal. No somente nos avanos individuais que vo da infncia maioridade, mas nos progressos da prpria espcie humana que, partindo da rudeza, alcana a civilizao (Ferguson, 1991, p.1). Outra passagem da obra do autor refora, uma vez mais, a relao entre civilizao e progresso: No progresso da civilizao, novos destemperos irrompem e novos remdios so aplicados [...] (Ferguson, 1991, p. 188). 10 Com relao ao surgimento do conceito de civilizao, importante citar os seguintes estudos Febvre e Tonellat (1930), Elias (1973), Beneton (1975) e Starobinski (2001). importante observar que tanto o trabalho de Beneton (1975), como o primeiro captulo do livro de Starobinski (2001), que aborda o sentido da palavra civilizao, apoiam-se, em larga medida, nas pesquisas pioneiras de Fevbre (Febvre e Tonellat, 1930).

  • 169

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    O advento dos conceitos de cultura e civilizao

    civilidade no diz respeito propriamente quilo que o homem possui de universal, ainda que a educao do corpo, das paixes e dos instintos fosse o resultado de uma ordenao da razo, mas a um conjunto de regras de etiqueta a serem observadas. Estas regras, apesar de sua relativa ampliao, ainda eram dirigidas a um extrato social economicamente privilegiado. Agora, no se trata mais do homem, mas da humanidade, do gnero humano, como portador de uma identidade universal capaz de lhe dar uma nova dignidade, ao mesmo tempo em que lhe assegura uma capacidade singular de agir sobre o mundo. A razo esse poder que permite ao homem reconhecer em si sua prpria humanidade e fazer com que ela se materialize em uma srie de conquistas e realizaes de ordem material. A razo humana, diz Holbach (1773, p. 163-164), no est ainda sufi cientemente exercida; a civilizao dos povos no terminou ainda. A civilizao (Holbach (1773) se refere ao sentido que o termo ainda conserva em Mirabeau (s.d.)) no se realizou inteiramente porque ainda no foi capaz de levar a razo a sua mais alta determinao. preciso dar-lhe uma nova dignidade, uma nova envergadura, reconhecer nela um novo poder que, at ento, no foi revelado e que, uma vez alcanado, far com que ela assuma para si nova funo, se no contrria anterior, mais ambiciosa e completa.

    A civilizao, portanto, uma meta que s ser atingida no instante em que o ho-mem, saindo da barbrie e superando toda a ordem de obstculos, polticos ou religiosos, que lhe so colocados poder, fi nalmente, fazer progredir o conhecimento como condio decisiva do aperfeioamento da vida civil. Obstculos sem nmero, prossegue Holbach (1773, p. 164), em aluso clara ao antigo regime e ao poder religioso, se opuseram at aqui ao progresso dos conhecimentos, cuja marcha pode apenas contribuir para aperfei-oar nossos governos, nossas leis, nossas instituies e nossos costumes.

    A civilizao indissocivel do progresso. A humanidade marcha progressi-vamente at alcanar uma autonomia que lhe permitir erigir um novo mundo para si. Como diz Holbach (1773, p. 159), Somos visivelmente menos ignorantes, menos brbaros, menos selvagens que nossos pais. Por essa razo, a civilizao tambm um estado, o qual deixa para trs sua antiga condio brbara para ingressar em um domnio dito civilizado.

    Esse fato, por si s, seria sufi ciente para banir defi nitivamente os antigos ideais de civilidade (etiqueta) desse novo horizonte de representao? A resposta a tal indagao no pode ser seno negativa. No novidade que aps o pro-cesso revolucionrio que culminou com o ocaso do Antigo Regime, a burguesia francesa havia incorporado, fazia tempo, os hbitos da corte. Por isso, o conceito de civilizao no poderia representar uma ruptura radical com a antiga noo de civilidade e to pouco releg-la a um plano inferior no qual permaneceria em uma espcie de quase esquecimento. Em sua edio de 1798, o Dicionrio da Academia Francesa defi ne civilizao como: ao de civilizar ou estado daquilo que civiliza-do (Dictionnaire de lacadmie franoise, 1798, p. 248). A ideia de civilidade no desaparece, mas se desloca para desempenhar uma funo subsidiria em relao civilizao. Algum que possui civilidade algum que essencialmente ingressou no domnio da civilizao.

    Nas primeiras dcadas do sculo XIX, a ideia de civilizao comea a perder, ao menos aparentemente, sua unidade ao se misturar a sentimentos de nacionalidade ideologicamente associados s fi guras do Estado e da Nao. A concepo mais geral de uma civilizao contraposta barbrie no desaparece desse contexto, mas passa a conviver com uma crescente multiplicao de seu prprio sentido. Assim no se fala apenas em uma civilizao capaz de englobar toda a humanidade, mas de civilizaes plurais e quase to variadas quanto as nacionalidades. Mas esse plu-ralismo no to amplo a como se pode imaginar primeira vista. Ele se restringe, na maioria dos casos, apenas s naes europeias ou a certos imprios ou povos

  • 170

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    Caio Moura

    que deixaram seu legado para a Histria. Fala-se de uma civilizao francesa, de uma civilizao espanhola ou inglesa, mas tambm de uma civilizao grega ou romana, para se fazer meno Antiguidade.

    De qualquer modo, o termo civilizao contemplou, em maior ou menor grau, um alargamento conceitual ao longo do sculo XIX e mesmo depois dele. Esse fe-nmeno corresponderia a um distanciamento do seu signifi cado de origem? Nessa linha de pensamento, Franois Guizot, clebre historiador do sculo XIX, mostra (involuntariamente, bem verdade) que as coisas no se passaram exatamente dessa maneira. Em uma de suas mais conhecidas obras, Histria Geral da Civilizao da Europa, Guizot parece aderir, em um primeiro exame, ao uso ampliado que se convencionou dar palavra: evidente que h uma civilizao europeia; que uma certa unidade eclode nas diversas civilizaes dos pases da Europa (Guizot, 1838, p. 26). E acrescenta mais adiante: por minha conta, estou convencido de que h, com efeito, uma destinao geral da humanidade, um acmulo que transmitido atravs da civilizao e, consequentemente, uma histria universal da civilizao a ser escrita (Guizot, 1838, p. 28). Nesta passagem, o autor indica o progresso e o bem-estar material como os traos centrais da civilizao. Mas, aos olhos do histo-riador, esses elementos no so o bastante para que a civilizao possa se revestir de seu signifi cado pleno. Por isso, progresso e bem-estar material no podem ser os atributos essenciais da civilizao. Ao lado da vida exterior (Guizot, 1838, p. 36), assim o historiador se refere ao aprimoramento da vida civil, deve haver algo de mais elementar que desempenhe o papel de elo originrio da civilizao.

    Transportemo-nos para outros tempos: tomemos a Frana dos sculos XVII e XVIII; evidente que, tanto de um ponto de vista social quanto soma e distribuio do bem-estar entre os indivduos, a Frana deste perodo era inferior a alguns pases da Europa, como, por exemplo, a Inglaterra e a Holanda. Creio que na Holanda e na Inglaterra a atividade social era bem maior, crescia mais rapidamente, distribua me-lhor seus frutos do que na Frana. Contudo, perguntem ao bom senso geral; ele lhes responder que a Frana deste mesmo perodo era o pas mais civilizado da Europa. A Europa no hesitou nessa questo. Encontramos traos desta opinio pblica sobre a Frana em todos os monumentos da literatura europeia (Guizot, 1838, p. 33-34).

    Se a Frana atingiu um estgio superior frente aos demais pases porque ela desenvolveu, de modo singular e com mais fora que outros povos, algo que no pode ser reduzido apenas vida material de uma sociedade. Se esse fato corres-ponde ou no realidade, isso pouco importa. importante reter que, por trs do francocentrismo do clebre professor, reside o elemento chave que est no mago do discurso fi losfi co da modernidade: o projeto civilizatrio no poder consumar-se plenamente enquanto permanecer atrelado apenas s ideias de progresso e desenvolvimento material compreendidos, em si mesmos, como fatores exteriores representao geral da noo de civilizao. preciso que o homem realize uma natureza distinta do progresso que, ultrapassando a vida exterior, alcance a base de seu prprio ser, como uma dimenso pertencente vida interior. Um outro desenvolvimento da vida social se manifesta a com esplendor: o desenvolvimento da vida individual, da vida interior, o desenvolvimento do prprio homem, de suas faculdades, de seus sentimentos, de suas ideias (Guizot, 1838, p. 34). Vida interior e exterior no so independentes uma da outra; ambas entrelaam-se, determinam-se mutuamente. Todavia, essas duas formas fundamentais da vida humana devem ser remetidas a uma origem que se coloca como causa primeira e fundamento de sua existncia. Ora, esse fundamento no pode mais ser encontrado em um ele-mento exterior, independente do homem e da vida social, to pouco na noo de

  • 171

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    O advento dos conceitos de cultura e civilizao

    Deus, como garantia ltima de todas as coisas. o prprio homem, como sujeito, que doravante aparece como o elemento imanente e originrio nessa relao. ele quem desempenha o papel de garantia e fundamento da civilizao. As condies materiais, sociais ou polticas de uma sociedade podem no ter atingido o grau de desenvolvimento desejado e no ter ainda se colocado altura do esplendor de sua humanidade, mas isso apenas uma questo de tempo. Chegar o mo-mento em que o progresso interior ser acompanhado de modo irreversvel pelo desenvolvimento exterior11. Apesar disso, deve haver uma origem que assegure a sua existncia, e esta deve ser encontrada no prprio homem. Quando ele se desenvolve interiormente, qual a necessidade que se lhe apodera nesse instante? a necessidade de transferir seu sentimento para o mundo exterior, de realizar para fora seu pensamento (Guizot, 1838, p. 37). Esse mundo exterior, essa regio situada fora do plano do pensamento a civilizao. A civilizao no apenas uma meta, uma necessidade.

    Eis o ponto do entrelaamento entre Kultur e civilizao aqui reside o ponto nodal de nossa argumentao. Ambas nascem da necessidade do sujeito de externar sua humanidade em algo que ele possa, sem quaisquer impedimentos, exprimir sua natureza de modo pleno. Por esse motivo, a ideia de civilizao, a despeito de seu forte contedo subjetivo, jamais poderia nascer em meio ao sculo XVII no esteio do sujeito cartesiano, nem mesmo nas dcadas que imediatamente se seguiram ao seu nascimento. No basta que o homem apenas se interprete como um sujeito de conhecimento para, deste ato, fazer desabrochar sua identidade universal. preciso que essa identidade substancial passe por uma transformao qualitativa que pro-mova, a partir de condies inteiramente novas, a ecloso de uma nova humanitas capaz de se projetar sob a forma de um poder criador. Ora, isso s possvel quando o homem no mais se representa unicamente como sujeito de conhecimento, mas se enxerga igualmente como sujeito esttico e moral.

    Assim, a identidade do homem, compreendido como sujeito, jamais estar consolidada em sua plenitude, antes que ele prprio se reconhea paradoxalmente projetado em uma nova fundao que, no podendo mais sobrepor-se antiga, deve representar, acima de tudo, a instaurao de uma nova ordem universal como concretizao de sua natureza mesma. Esse evento fundamental, sem o qual sua humanidade no est completa, possibilita a produo de um acontecimento igualmente decisivo: o homem, que se representa como sujeito, subjectum, en-tendido como um fundamento substancial de todas as coisas, tem necessidade de que a imagem que faz de si mesmo se desdobre para fora e se materialize em um plano exterior, que constitui o fi rmamento para a consolidao defi nitiva de sua prpria identidade. Esse substrato fi ctcio, doravante chamado de civilizao e cultura, constitui o prolongamento de um sujeito que encontra na exterioriza-o de si mesmo a possibilidade de alcanar a plenitude de sua manifestao. No fi nal do sculo XVIII, quando a instituio de uma nova ordem est em curso ou se consolida como uma aspirao possvel e realizvel, assistimos, no por acaso, o conceito de civilizao originar-se de uma nova autoimagem do homem, que, pela primeira vez, representa a si mesmo, no apenas como sujeito de conhecimento, mas simultaneamente como sujeito moral e sujeito esttico. A combinao em maior ou menor grau entre esses trs fatores far com que os conceitos de civilizao e cultura sejam circunscritos ao plano do sujeito e constitudos como o fundo de uma nova identidade universal, respectivamente pensada como progresso material e moral, reino dos fi ns e horizonte das realizaes artsticas e intelectuais. Mais do

    11 A esse respeito, Condorcet (1988, p. 81) afi rmava: Sem dvida esses progressos podero seguir uma marcha mais ou menos rpida; mas jamais ela ser retrgrada.

  • 172

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    Caio Moura

    que simplesmente representar a derivao de uma nova ordem poltica, da qual seria seu mero refl exo, Kultur e civilizao passam a exprimir um novo mundo que assegura ao homem o pertencimento a uma identidade universal que o distancia na mesma medida da barbrie.

    Tudo isso talvez seja sinal de que h muito tempo a cultura tenha deixado para trs o seu signifi cado mais originrio, quando sua tarefa primordial consistia em arrancar o homem de dentro de si para elev-lo a uma dimenso mais vasta da existncia, como o horizonte de suas aes, produes e pensamentos. Agora, a cultura no mais eleva o homem para alm de si mesmo; o prprio homem, como sujeito, que elevado para alm de todas as coisas, constituindo o ncleo de gravidade, a partir do qual tudo se organiza, incluindo a a natureza, a histria e a arte. A civilizao, como progresso material, representa o horizonte no qual o sujeito de conhecimento pode dispor dos meios da natureza de acordo com os desgnios da sua vontade; a cultura, como reino dos fi ns, a instncia sobre a qual se desenrolam as aes racionais de um sujeito moral que molda a histria segundo o seu querer; a cultura, como horizonte de obras, o substrato de expresso de um sujeito esttico tornado o ncleo ontolgico de toda arte.

    Nessa inverso de perspectivas, cultura e civilizao no apenas assumem a forma de uma fundao do sujeito. Elas fi guram como uma espcie de espelho que devolve ao homem a sua imagem para fundi-la no regozijo de sua prpria representao. Nisso consiste o seu distanciamento diante da barbrie.

    Referncias

    BENETON, P. 1975. Histoire de mots: culture et civilisation. Paris, Presses de la fon-dation nationale de sciences politiques, 165 p.

    BOILEAU-DESPRAUX, N. 1966. LArt potique: suivi de Lpitre aux pisons (Ars potique) dHorace et dune anthologie de la posie prclassique en France (1600-1670). Paris, Union gnrale dditions, 303 p.

    CONDORCET. 1988. Esquisse dun tableau historique et progrs de lesprit humaine. Paris, Flammarion, 350 p.

    DICTIONNAIRE DE LACADEMIE FRANOISE. 1798. 5 ed., Paris, Chez J.J. Smits, 2 volumes.

    ELIAS, N. 1973. La civilisation des moeurs. Paris, Calmann-Levy, 342 p.ERASME. 2001. Trait de civilit purile. Paris, Arthme Fayard, 63 p.FEBVRE, L.; TONELLAT, . 1930. Civilisation, le mot et lide. Paris, La Renaissance

    du Livre, 155 p.FERGUSON, A. 1991. An essay on the history of civil society. New Jersey, Transaction

    Publishers, 320 p.FREDERIC II. 1805. Oeuvres posthumes de Frederic II, roi de la Prussie. 6 ed.,

    Potsdam, Aux dpens des Associs, volumes XIV e XV, 24 volumes.FUMAROLI, M. 2001. Quand lEurope parlait franais. Paris, ditions de Falois, 638 p.GOETHE, J.W. 2001. Os Sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre, L&PM Edito-

    res, 216 p. GUIZOT, F. 1838. Histoire gnrale de la civilisation en Europe depuis la chute de

    lempire romain jusqu la Rvolution franaise. Bruxelas, Lacrosse, Libraire-diteur, 290 p.

    HEIDEGGER, M. 1962. Chemins que ne mnent nulle part. Paris, Gallimard, 461 p.HERDER, J.G. 1964. Une autre philosophie de lhistoire. Auch eine Philosophie der

    Geschichte. Paris, Aubier, 369 p.HOLBACH, P.H.D. 1773. Systhme Social ou principes naturels de la morale et

    de la politique avec un examen de linfl uence du governement sur les moeurs Troisime partie. Londres, [s.e.] 166 p.

    HUMBOLDT, W. von. 2004. Os limites da ao do Estado. Rio de Janeiro, Topbooks, 374 p.

    JACOURT, C. 1753. Civilit, Politesse, Affabilit. In: D. DIDEROT (org.), Encyclopdie ou dictionnaire raisone des sciences, des arts et des mtiers. Paris, Chez Brias-son, David lin, Le Breton et Durant, Volume 3, p. 497-497.

  • 173

    Filosofi a Unisinos, 10(2):157-173, mai/ago 2009

    O advento dos conceitos de cultura e civilizao

    KANT, E. 1990. Ide dune histoire universelle au point de vue cosmopolitique. 1990. In: E. KANT, Opuscules sur lhistoire. Paris, Flamarion, p. 69-89.

    MIRABEAU, V.R. [s.d.]. LAmi des Hommes, ou Trait de la Population. Disponvel em: http://visualiseur.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k89089c, acesso em: 17/08/2009.

    ROUSSEAU, J.-J. 1999. Discurso sobre as cincias e as artes. In: Rousseau - volume. 2. So Paulo, Nova Cultural, p. 168-214. (Coleo Os Pensadores).

    STAROBINSKI, J. 2001. As mscaras da civilizao. So Paulo, Companhia das Letras, 308 p.

    TAYLOR, C. 1997. As fontes do self a construo da identidade moderna. So Paulo, Edies Loyola, 672 p.

    Submetido em: 12/05/2009Aceito em: 24/06/2009