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CULTURA ACSTICA E MEMRIA EMMOAMBIQUE: AS MARCAS INDELVEISNUMA
ANTROPOLOGIA DOS SENTIDOS
Jos de Souza Miguel Lopes*
RESUMO
Neste trabalho propomo-nos abordar inicialmente o lugar
ocupadopelo modelo sensorial auditivo numa Antropologia dos
sentidos.Em seguida analisaremos o modo como o fenmeno da repetio
setorna essencial para preservar o pensamento cuidadosamente
articula-do numa cultura acstica. Seguidamente trabalharemos as
complexasrelaes entre memria e reconstituio do passado e entre
memria epoder. Finalizaremos nosso texto com uma anlise das
implicaes daintroduo da escola numa cultura acstica bem como o
papel desem-penhado pela escola que se afigura determinante na
produo de lem-branas e no processo de recordao.
* Ex-Diretor Nacional de Formao de Quadros de Educao no
Ministrio da Educao de Moambique.Doutor em Histria e Filosofia da
Educao pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.
Uma idia s pode propagar-se no espao se antes atravessar o
tempo, ouseja, se resistir ao esquecimento, ao engano ou falsificao
e ao mesmotempo permanecer viva, evolutiva e frtil. Para tanto,
precisa fixar-se pri-meiro na memria, depois na matria. O paradoxo
apenas aparente, pois o que essafixao antecipa e garante o prprio
movimento do pensamento. Se a memria oprimeiro vetor da transmisso
das idias, ao exterioriz-las em suportes que suainscrio prolonga
sua vida alm dos limites do orgnico do indivduo. Dessa forma
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a mensagem desprende-se do corpo e do sujeito para ela prpria
incorporar-se emum rgo de memria e difuso, que sobrevive ao corpo e
ao sujeito originais. Doslex ao computador, os instrumentos que
serviram para modelar esses suportes tra-zem em si a marca de uma
antecipao: toda prtese tcnica representa uma primei-ra vitria do
esprito sobre a finitude humana, um primeiro passo na direo
dooutro, esteja ele distante no espao e no tempo.
Ns, que vivemos imersos na escrita, tendemos a achar difcil
imaginar quediscursos extensos, especialmente os feitos no passado,
possam ser citados e preser-vados sem o auxlio da escrita. Mas isso
possvel. As tradies orais e o conhecimen-to especializado podem ser
preservados e transmitidos sem os recursos arquivsticosde que
dispomos atualmente. Mesmo os estudiosos da Idade Mdia, que
conheciame usavam extensamente a escrita, na maior das suas
atividades acadmicas se apoia-vam primordialmente na memria e no em
documentos escritos (Carruthers, apudOlson, 1997, p. 115).
Numa cultura acstica, mais baseada no som, no ouvido, do que no
visual,no escrito, para resolver efetivamente o problema da reteno
e da recuperao dopensamento cuidadosamente articulado, preciso
exerc-lo segundo padres mne-mnicos, moldados para uma pronta
repetio oral. O homem moambicano recor-re msica e dana, s imagens
poticas, particularmente s metforas. Lana mode repeties e
redundncias, de frases feitas, de provrbios. uma oralidade rtmicae
corporal, imaginativa e potica, que emerge do interior, da voz, e
penetra no interi-or do outro, atravs do ouvido, envolvendo-o na
questo. Os integrantes desta cultu-ra invariavelmente sabem escutar
e narrar, contar histrias e relatar, utilizando umaenorme riqueza
expressiva, na qual se conjugam preciso e clareza.
O pensamento deve surgir em padres fortemente rtmicos,
equilibrados,em repeties ou antteses, em aliteraes e em expresses
epitticas ou outras ex-presses formulares, em conjuntos temticos
padronizados (a assemblia, a refeio,o duelo, o ajudante do heri e
assim por diante), em provrbios que so constante-mente ouvidos por
todos, de forma a vir prontamente ao esprito, e que so elesprprios
modelados para a reteno e a rpida recordao ou em outra forma
mne-mnica.
O fato de os povos orais comumente e muito provavelmente em todo
omundo julgarem as palavras dotadas de uma potencialidade mgica est
estreita-mente ligado, pelo menos inconscientemente, a sua percepo
da palavra como ne-cessariamente falada, proferida e, portanto,
dotada de um poder. Os povos profunda-mente tipogrficos esquecem-se
de pensar nas palavras como primariamente orais,como eventos e,
logo, necessariamente portadoras de poder: para eles, as
palavrastendem antes a ser assimiladas a coisas, l, em uma
superfcie plana.
Uma cultura oral, como a moambicana, no dispe de textos
escritos. Os
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seres humanos desta cultura oralista1 aprendem muito e possuem
grande sabedoria,mas no estudam. Como renem material organizado
para que possa ser recorda-do? Como se torna possvel trazer memria
aquilo que se prepara to cuidadosa-mente? A nica resposta : pensar
coisas memorizveis.
A cultura se relaciona estritamente com a memria e com os
procedimen-tos disponveis, numa determinada sociedade, de
processamento, armazenagem etransmisso das informaes. Neste
sentido, os limites da memria determinam acriao de vrios recursos
para a sua conservao.
Em uma cultura acstica, pode no haver palavras como aquelas
quecomumente procuramos no dicionrio. Nesse tipo de cultura,
intervalos silenciosospodem constituir uma slaba ou uma sentena,
mas no o nosso tomo: a palavra.Todas as expresses vocais so aladas,
desaparecendo para sempre antes mesmo deserem totalmente
pronunciadas. A idia de fixar essas expresses em uma linha,
oumumific-las para posterior ressurreio, no sequer ocorre.
Portanto, a memria,em uma cultura acstica, no pode ser concebida
como armazenamento ou tabui-nha da cera.
Assim, neste trabalho propomo-nos abordar inicialmente o lugar
ocupadopelo modelo sensorial auditivo numa Antropologia dos
sentidos. Em seguida anali-saremos o modo como o fenmeno da repetio
se torna essencial para preservar opensamento cuidadosamente
articulado numa cultura acstica. Seguidamente tra-balharemos as
complexas relaes entre memria e reconstituio do passado e
entrememria e poder. Finalizaremos nosso texto com uma anlise das
implicaes daintroduo da escola numa cultura acstica bem como o
papel desempenhado pelaescola que se afigura determinante na produo
de lembranas e no processo derecordao.
O LUGAR DA ACSTICA NUMA ANTROPOLOGIA DOS SENTIDOS
Tendo em vista as diferenas de significao dos sentidos que podem
destemodo existir entre as culturas, a Antropologia dos sentidos
sustenta que os modelos
1 Ong (1982), utiliza o conceito de cultura oral primria,
referindo-se a um tipo de sociedade que se encontrepreservada de
qualquer contato com as sociedades de culturas escritas, e/ou na
qual nenhum dos seus mem-bros letrado. Trata-se, portanto, de uma
categoria abstrata, no mais aplicvel a nenhuma sociedade
indgenaatual. Ong vem sendo criticado por diversos representantes
da moderna antropologia lingstica, que lheatribuem excessiva
simplificao e polarizao na anlise das sociedades consideradas orais
e escritas, igno-rando seus aspectos mistos e conflitivos.Ela
primria por contraste com uma oralidade secundria da cultura
contempornea de alta tecnologia, naqual uma nova oralidade
sustentada por aparelhos eletrnicos como o telefone, o rdio, a
televiso e outros cujo funcionamento depende da existncia da
escrita e da impresso (Ong, 1982, p. 11).
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sensoriais universalistas da cultura, quer sejam visuais ou
auditivos, quer se apoiemno texto ou na palavra, devem dar lugar
explorao de ordens sensoriais prpriasdas culturas.
No h como deter e possuir o som. Posso deter uma cmara
cinematogr-fica e fixar um quadro na tela. Se detiver o movimento
do som, no tenho nada apenas silncio, ausncia absoluta de som. Toda
sensao ocorre no tempo, mas ne-nhum outro campo sensorial resiste
completamente a uma imobilizao, a uma es-tabilizao, idntica do som.
A viso pode registrar o movimento, mas pode tam-bm registrar a
imobilidade. Na realidade, ela favorece a imobilidade, pois, para
exa-minar algo atentamente por meio da viso, preferimos mant-lo
imvel. Muitas ve-zes, reduzimos o movimento a uma srie de
instantneos a fim de ver melhor o que o movimento. No existe o
equivalente de um instantneo para o som. Um oscilo-grama
silencioso. Ele existe fora do mundo sonoro (Ong, 1998, p. 42).
Na comparao com os demais sentidos importa ainda destacar uma
dascaractersticas do som: a sua relao com a interioridade. Essa
relao importanteem virtude da interioridade da conscincia e da
prpria comunicao humanas. Paratestar o interior fsico de um objeto
como interior, nenhum sentido funciona de modoto eficaz quanto o
som. O sentido humano da viso mais adaptado luz
refletidadifusamente pelas superfcies. (A reflexo difusa, de uma
pgina impressa ou umapaisagem, contrasta com a reflexo especular,
de um espelho). Uma fonte de luz, talcomo um fogo, pode ser
interessante, mas oticamente desconcertante: a vista nopode se
concentrar em nada dentro do fogo. De modo anlogo, um objeto
transl-cido, como um alabastro, interessante, porque, embora, no
seja uma fonte de luz,a vista tambm no pode se concentrar nele. A
profundidade pode ser percebidapela vista, porm de forma muitssimo
agradvel como uma srie de superfcies: ostroncos de rvores em um
bosque, por exemplo, ou cadeiras em um auditrio. Avista no percebe
um interior estritamente como um interior: dentro de um aposen-to,
as paredes que ela percebe so ainda superfcies, exteriores.
Ouvir um fenmeno fisiolgico; escutar um ato psicolgico. No
primeironvel nada distingue o homem do animal, enquanto o segundo
um ato de decifra-o, e, neste processo de escuta, comea a
desenvolver-se um espao intersubjetivoem que escuto tambm quer
dizer escuta-me.
Construda a partir da audio, a escuta, de um ponto de vista
antropolgi-co, o sentido prprio do espao e do tempo, apreendido
atravs da percepo degraus de afastamento e dos ritmos regulares da
excitao sonora. Tal como para omamfero, o territrio demarcado por
cheiros e sons, tambm para o homem fatoque freqentemente
subestimado a apropriao do espao em parte tambmsonora os espaos de
rudos familiares so reconhecveis, reconhecidos. sem d-vida a partir
desta noo de territrio, ou de espao apropriado, que a escuta
uma
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ateno que permite captar tudo o que seja susceptvel de perturbar
ou alterar oespao prprio (extensvel a espao comunitrio, lingstico,
nacional etc.).
O paladar e o olfato no contribuem muito para registrar a
interioridade oua exterioridade. O tato, sim. Porm, ele destri
parcialmente a interioridade no pr-prio processo da percepo. Se eu
desejasse descobrir pelo tato se uma caixa estvazia ou cheia, teria
de fazer um buraco para inserir uma mo ou um dedo: issosignifica
que a caixa est, nesse sentido, aberta, e assim menos um
interior.
A audio pode registrar a interioridade sem viol-la. Posso bater
numacaixa para descobrir se est vazia ou cheia ou numa parede para
saber se oca ouslida. Ou posso fazer uma moeda tinir para saber se
de prata ou de chumbo.
Todos os sons registram as estruturas interiores do que quer que
os produ-za. Um violino cheio de concreto no soar como um violino
normal. Um saxofonesoa diferentemente de uma flauta: sua estrutura
interna diferente. E, acima detudo, a voz humana vem do interior do
organismo humano, que fornece as resso-nncias vocais.
A vista isola; o som incorpora. A viso supe o observador fora do
que elev, a uma distncia, ao passo que o som invade o ouvinte. A
viso disseca, comoobservou Merleau-Ponty (1961).
Numa cultura acstica, na qual a palavra existe apenas no som,
sem qual-quer referncia a um texto visualmente perceptvel e a uma
conscincia, nem mesmo possibilidade de um tal texto, a
fenomenologia do som penetra profundamente nosentimento de
existncia dos seres humanos, na qualidade de palavra falada, pois
omodo como a palavra vivenciada sempre importante na vida psquica.
A aocentralizadora do som (o campo sonoro no est espalhado diante
de mim, mas atoda a minha volta) afeta o sentido humano do cosmos.
Para as culturas acsticas, ocosmos um evento contnuo, com o homem
em seu centro.
A maioria das caractersticas do pensamento e da expresso
fundados nooral est intimamente relacionada economia unificadora,
centralizadora, interiori-zadora do som tal como percebido pelos
seres humanos. Uma economia verbaldominada pelo som mais conforme s
tendncias agregativas (harmonizadoras) doque s analticas,
dissecadoras, que viriam com a palavra inscrita, visualizada: a
viso um sentido dissecador.
A REPETIO: MARCA PECULIAR DE PRESERVAO DOPENSAMENTO
CUIDADOSAMENTE ARTICULADO
O discurso oral, de um modo geral, tem na repetio uma de suas
marcasmais peculiares. comum atribuir-se o fenmeno necessidade de
reforar a infor-
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mao contida numa mensagem que se desenvolve linear e
irreversivelmente nacadeia do tempo e que, por esse motivo, no
permite qualquer espcie de reviso,quer por parte do emissor, quer
por parte do receptor. H pois, um retorno constan-te s palavras ou
sentidos chave, num esforo para evitar a disperso em relao
aocontedo fundamental.
Assim, numa cultura acstica, para resolver com eficcia o
problema dereter e recordar o pensamento cuidadosamente articulado,
o processo dever seguirmodelos mnemnicos, formulados para uma rpida
repetio oral. Possuindo ape-nas os recursos de sua memria de longo
prazo para reter e transmitir as representa-es que lhes parecem
dignas de perdurar, os membros das culturas acsticas explo-ram ao
mximo o nico instrumento de inscrio de que dispem. Nos seus
discur-sos polticos orais e escritos, por exemplo, o presidente
moambicano Samora Ma-chel era bastante repetitivo.
A poesia do moambicano Jos Craveirinha apresenta inmeros
exemplosda concretizao do princpio da repetio, inspirados nas
formas desta poesia oral(Matusse, 1993, p. 105). Observemos um
extrato do poema Quero ser tambor(Craveirinha, 1982, p. 123):
Nem rio correndo para o mar do desespero.Nem zagaia temperada no
lume vivo do desespero.Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do
desespero.[...]S tambor velho de gritar na lua cheia da minha
terra.S tambor de pele curtida ao sol da minha terra.S tambor
cavado nos troncos duros da minha terra!
Uma outra forma de poesia oral o provrbio. Nos quatro cantos do
mun-do, os provrbios so ricos de observaes acerca desse espantoso
fenmeno humanodo discurso na sua forma original oral, acerca de
seus poderes, sua beleza, seus peri-gos. A mesma fascinao pelo
discurso oral continua inalterada sculos depois de aescrita ter
sido posta em uso. importante notar que os provrbios fazem
freqente-mente aluso a fenmenos naturais e vida animal. Se vires um
crocodilo chegar,nunca lhe estendas o leno, diz um conhecido
provrbio moambicano; A fora docrocodilo a gua, para referir que,
quando lutais no vosso domnio, podereis ven-cer, no tenteis sair
dele: sereis como peixe fora de gua (apud Junod, 1996, p. 158),
oque pensamos, se prende ao fato de nesses domnios imperar uma
espcie de perfei-o, uma lgica imanente e funcional, diferente dos
comportamentos humanos,mais instveis e arbitrrios. Como no sorrir
perante a metfora que procura denun-ciar aquele que acredita
excessivamente nas suas capacidades, muito espelhada noprovrbio da
etnia ronga do sul de Moambique: Aquele que engole um grandecaroo
tem confiana no tamanho da sua garganta. Ou aquele outro As
tatuagens
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nas costas so conhecidas daquele que as faz. No so conhecidas
daquele que astem, para significar que no podereis saber o que
suceder, se voltardes as costas(Op. cit., p. 158), ou ainda No
percas o teu tempo a olhar os montes de ervas ms,pensando que o teu
trabalho acabou (Idem, p. 159).
A narrativa do escritor moambicano Mia Couto explora largamente
omodelo e a tcnica do provrbio nas passagens de carter reflexivo,
sendo este um dosseus elementos marcantes. Em Terra sonmbula, numa
seqncia de frases, ele pro-cura de forma sinttica caracterizar e
justificar, com base numa pretensa verdadeuniversal, a tentao da
personagem de abandonar o seu projeto inicial num dadoponto da ao:
As idias, todos sabemos, no nascem na cabea das pessoas. Come-am
num qualquer lado, so fumos soltos, tresvairados, rodando procura
de umadevida mente (Couto, 1992, p. 44). O escritor afirma que:
Estas estrias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer
coisa acontecidade verdade mas que no foi contada como se tivesse
ocorrido na outra margem domundo. Na travessia dessa fronteira de
sobra escutei vozes que vazaram o sol. Outrasforam asas no meu vo
de escrever. A umas e outras dedico este desejo de contar e
deinventar. (Couto, 1986, p. 19)
Segundo Henri Junod,2 a etnia Tsonga do sul de Moambique possui
uma
considervel coleo de enigmas que contm duas frases e que se
chamam svitekateki-sana. Recolhi cerca de uma centena. Teria
facilmente podido recolher dez vezes mais.Uma mulher que vivia na
nossa vizinhana, Lixanyi, conhecia grande nmero e po-dia recit-los
sem parar at altas horas da noite. (Junod, 1996, p. 161)
Em Mia Couto visvel o uso de provrbios, sentenas, frases feitas
e porta-doras de significao didtico filosfico.
A narrao, recorre frmula, instrumento privilegiado das culturas
acsti-cas, nas quais a natureza auditiva e mental das palavras est
relacionada no s aosmodos de expresso e produo cultural, mas aos
processos de transmisso e apren-dizagem. A frmula aqui entendida
sobretudo como um procedimento mnemo-tcnico, um quadro estrutural,
um meio de ligar elementos que sem o apoio da escri-ta seriam mais
dificilmente memorizados para sua transmisso e difuso.
Interes-sante, como a frmula e sua repetio se fazem presentes no
espantoso filme Centraldo Brasil.3 Para Lopes (1999, p. 69) muito
da trama do filme est permeada pela
2 Henri Junod, que faz um sculo foi expulso de Moambique pelo
governo colonial portugus, acusado deexcesso de cumplicidade com as
populaes, entre as quais vivia desde 1889 (Feliciano, 1996, p. 15)
produziuum alentado trabalho de 1.040 pginas Usos e costumes dos
Bantu (1. ed. em ingls publicada em 1912/13 ea 1. ed. em portugus
publicada em 1917) que constitui uma fonte importante para o
entendimento das cultu-ras africanas, particularmente as
moambicanas.
3 Filme de Walter Salles, 1998 (Brasil).
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dualidade do mundo oral e do mundo letrado. O mundo letrado
encontra aindamarcas do mundo da oralidade, marcas que aliceram a
transmisso cultural de co-munidades que no tiveram acesso ao cdigo
escrito. Por isso o recurso memria,s formas repetitivas, se
constitui num trao muito particular desse universo oral.Isaas, o
irmo que Josu acaba de conhecer, manda-lhe repetir o trava-lngua,
essamodalidade de parlenda em prosa ou em verso, bem caracterstica
das culturas deoralidade, ordenada de tal forma que se torna
extremamente difcil e, s vezes, quaseimpossvel, pronunci-la sem
tropeo: L atrs da minha casa tem um p de umbuboto, umbu verde, umbu
maduro, umbu seco e umbu secando (Carneiro & Berns-tein, 1998,
p. 91). Numa outra conversa, novamente Isaas, pede ao irmo para
dizer:Diga cinco vezes em carreado, sem errar, sem tomar flego,
vaca preta, boi pinta-do. Diga (Idem, p. 97).
MEMRIA E RECONSTRUO DO PASSADO: UMA FORMADE LEGITIMAR AS
REIVINDICAES DO PRESENTE
Toda sociedade tem um dever com relao a seu passado: ela deve
impedirque ele seja irremediavelmente apagado. No que seja preciso
subjugar o presenteao passado, nem que todas as lies do passado
sejam igualmente recomendveis. Opassado benfico no quando alimenta
o ressentimento ou o triunfalismo, masquando seu gosto amargo nos
leva a transformar-nos a ns mesmos. Um povo deverecuperar seu
passado no para repeti-lo nem para legitimar suas reivindicaes
pre-sentes conduzindo assim ao ciclo interminvel de vinganas e
represlias. As guer-ras balcnicas so um bom exemplo dos desastres
provocados por uma memriaestritamente literal , mas para encontrar
ali uma lio para o futuro, para tentarmeditar sobre as injustias do
passado, reanimar o prprio ideal da justia.
As histrias que vivem no imaginrio popular na forma de contos,
fbulas,lendas e mitos poderiam ser vistas como uma tentativa de
reconstruo do passadoatravs de dados presentes hoje no mundo em que
se insere a sociedade moambica-na. Ao narrar, cria-se uma memria
coletiva, cujas lembranas so selecionadas pelopovo que as
viveu.
Se pacfico aceitar a memria como um elemento essencial da
identidade,da percepo de si e dos outros, essa percepo difere,
segundo nos situemos na esca-la do indivduo ou na escala de um
grupo social, ou mesmo de toda uma nao. Se ocarter coletivo de toda
memria individual nos parece evidente, o mesmo no se po-de dizer da
idia que existe uma memria coletiva, isto , uma presena e
portantouma representao do passado que seja compartilhada nos
mesmos termos por todauma coletividade.
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Assim, o que se retm do passado o que ainda est vivo ou que
aindapode viver na conscincia do grupo. Nas palavras de Philipe
Aris:
bem possvel que os homens de hoje sintam a necessidade de fazer
emergir superfcieda conscincia os sentimentos outrora enterrados na
memria coletiva profunda. Nessecaso, no se trataria da procura de
uma sabedoria ou de uma verdade intemporal, masda pesquisa das
sabedorias annimas, das sabedorias empricas que presidem s
relaesntimas das coletividades com cada indivduo, com a natureza,
com a vida, com amorte, com Deus e com o alm. (Aris, 1990, p.
479)
A memria coletiva4 fundamenta-se em um espao-tempo
compartilhado,um quadro de tenses e negociaes. O legado consensual,
porque tem como funoessencial fortalecer a crena do corpo social em
sua prpria perpetuao, nunca se d priori, e sua construo exige a
manuteno e a regulao incessantes dessa existn-cia em conjunto.
curioso constatar que, ao mesmo tempo que os tempos passados, a
me-mria coletiva sofre uma verdadeira revoluo documental nos bancos
de dados, nocomputador, torna-se memria eletrnica. Ao mesmo tempo a
memria do passadose expande na literatura, na filosofia e na
psicologia, destacando dimenses da me-mria pessoal, do esprito, das
emoes e sonhos (do subconsciente). Essa memriano tratada como um
vasto reservatrio, ao estilo da memria eletrnica. Nem sesitua no
nvel do consciente, do dado concreto. Est mais prxima do latente,
cons-trudo principalmente na infncia.
Numa cultura de forte tradio oral, parece ocorrer uma espcie de
rejeioda racionalidade cientfica ao procurar valorizar-se o
passado, ao qual se atribui umcarter sagrado. A isto no certamente
alheio o fato de a memria nas culturasacsticas se cristalizar em
torno dos antepassados ancestrais.
O conhecimento a prpria palavra, ela que transmite os
conhecimentosde uma gerao para outra e permite a estruturao do
corpo social, em que a faladeve reproduzir o vaivm que a essncia do
ritmo. Em certos casos extremos, co-mo por exemplo no campo da
magia, a fala a materializao da cadncia. A pa-lavra atribuda ao
Ancestral comum, ao Ancestral fundador, enfim, ao mais velho,
sempre repetida com o maior cuidado e os jovens, ao serem
iniciados, so treinados,por anos afora, na arte da memorizao.5
4 Os historiadores em geral admitem, de maneira mais ou menos
declarada, que as representaes do passadoobservadas em determinada
poca e em determinado lugar contanto que apresentem um carter
recorrentee repetitivo, que digam respeito a um grupo significativo
e que tenham aceitao nesse grupo ou fora dele constituem a
manifestao mais clara de uma memria coletiva. Fazer a histria
dessas manifestaes, isto ,realizar uma pesquisa sobre a representao
autctone de fatos passados e de sua evoluo cronolgica, permi-te
chegar mais perto da noo de memria coletiva, ainda que por uma
abordagem emprica, prpria doshistoriadores.
5 Laburthe-Toira & Warnier (1997, p. 307), ao referirem-se
excepcional memria dos africanos, relatam adescrio de uma venda de
gado feita por um rapaz suazi. Quando se trata de gado sua memria
impressio-
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O treinamento da memria faz parte da formao cotidiana do
africano.Um genealogista, isto , aquele que um profundo conhecedor
das linhagens fami-liares, pode ficar horas falando sobre a origem
de uma linhagem, sem se enganaruma s vez. Segundo Mouro Registros
dessas informaes, feitas por pesquisado-res diferentes com o mesmo
informante, mostraram que, normalmente, no ocorre-ram erros, por
mnimos que fossem (Mouro, 1997, p. 16).
A autenticidade da transmisso assegurada pela existncia de uma
sriede normas rigorosamente observadas na chamada cadeia de
transmisso. Este fato muito importante, pois, quando ocorrem mutaes
profundas, os problemas deanlise complicam-se. Interrompida a
cadeia, a segurana nos dados bem menor.Nesse caso, torna-se
necessrio um estudo em profundidade, ao nvel da interpreta-o dos
mitos. Numa perspectiva de tempo, a memria vai da visual familiar:
doconhecimento dos atos familiares mais prximos chega-se memria
histrica. Nes-te processo aporta-se, finalmente, memria mtica, que
gira em torno da figura doantepassado comum, fundador do grupo
social e familiar.
Para a Antropologia Social, a transmisso da cultura social pode
ser descri-ta assim: como os nossos genes possuem armazenados um
conjunto de cdigos deinformao que orientam o desenvolvimento do
organismo, desde o nascimento at morte, ou seja, um armazenamento
transferido de gerao em gerao, assim aonvel da cultura social, as
sociedades para se manterem e usufrurem de suas prpriasformas de
continuidade orgnica, tm de armazenar a informao acumulada paraser
reutilizada. O principal mtodo para fazer isto o lingstico. possvel
observaristo no caso da informao documental respeitante s nossas
leis e literatura, nossacincia e tecnologia, com a qual nos
educamos e atravs da qual absorvemos valorese atitudes, bem como a
incorporamos, reutilizamos e lhe fazemos acrscimos.
Como se obtm os mesmos tipos de resultados numa cultura acstica?
Numatal cultura, o armazenamento e transmisso entre as geraes
somente podem-seefetivar atravs das memrias individuais. Para Eric
Havelock:
A informao lingstica pode ser incorporada numa memria
transmissvel, tal comouma memria pessoal, s que ela obedece a duas
leis da composio: ela deve ser rtmi-ca e deve ser mtica, no sentido
grego original contido na palavra mtico. (Havelo-ck, 1988, p.
128)
No que se refere histria e formao das culturas, a escolha dos
itensque devem ser registrados ou eliminados jamais objeto de
indiferena.
nante, e com paixo, com entusiasmo que ele faz o relato das
circunstncias de uma venda, relato acompa-nhado dos menores
detalhes.
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A COMPLEXA RELAO ENTRE MEMRIA, HISTRIA E PODER
A complexa relao entre memria e histria, por um lado, e cultura
e po-der, por outro, levam Edward Said a afirmar que:
Toda sociedade e toda tradio oficial tendem a se defender contra
interferncias emsuas narrativas sancionadas; ao longo do tempo
essas adquirem um status quase teol-gico, com heris fundadores,
idias, valores e alegorias nacionais tendo um efeito in-calculvel
sobre a vida cultural e poltica. (Said, 1993, p. 314)
Pierre Nora descreve o movimento de vai-e-vem entre a memria e a
hist-ria que produz os lugares da memria. A memria, por outro lado,
est aberta dialtica da lembrana e do esquecimento (...) e acomoda
apenas aqueles fatos quelhe convm (Nora apud King, 1996, p.
77).
Ser possvel pretender captar a histria de uma memria nacional
unica-mente pelo vis de grupos restritos ou de setores da sociedade
particularmente sensibi-lizados pelo passado ou que tm tendncia,
como o Estado, a propor representaes dopassado? Que representaes
dele fazem os grupos mais amplos e mais heterogneos?Como afirma
Kammen: pinamos e organizamos nossas memrias de forma a aten-der
nossas necessidades psquicas (Kammen, apud Thomson, Frish &
Hamilton, 1996,p. 88). Mas o estudo da memria freqentemente revela,
por exemplo, uma tensoentre as tradies locais e nacionalistas. Em
cada pas podem ser identificados fatoresque afetam a especificidade
do processo e a forma assumida pela rememorao.6 Oprimeiro o papel
do governo como guardio da memria pblica.
O grau de centralizao afeta o tratamento dado memria. H
freqente-mente uma tenso entre as memrias locais e a retrica
nacionalista pblica, umatenso que se intensifica quando a
comunidade imaginada nacional torna-se mui-to circunscrita. As
comunidades locais, por exemplo, podem se apropriar de
formasmateriais de comemorao nacional, como monumentos guerra, mas
no necessa-riamente de seu contedo, submetendo a expresso da memria
aos interesses locais.
A memria coletiva pode ser tambm a memria do poder, a memria
en-quadrada utilizada como forma de dominao, cujo objetivo marcar o
que deve serlembrado e apagar o que se deve esquecer. Segundo
Jacques Le Goff:
(...) a memria coletiva foi posta em jogo de forma importante na
luta das forassociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memria e
do esquecimento uma dasgrandes preocupaes das classes, dos grupos,
dos indivduos que dominaram e domi-nam as sociedades histricas. Os
esquecimentos e os silncios da histria so reveladoresdesses
mecanismos de manipulao coletiva. (Le Goff, 1990, p. 426)
6 Na Austrlia, por exemplo, os estados tm programas escolares
diferenciados e no h um currculo padronacional.
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CULTURA ACSTICA E MEMRIA EM MOAMBIQUE: AS MARCAS
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Avaliar e ter a dimenso dessa idia, fundamental para que
possamosentender como possvel lidar com a memria coletiva,
tomando-a em sua acepomais produtiva e positiva para a sociedade. O
passado institui-se como uma refern-cia insubstituvel, na qual a
comunidade vai buscar a inspirao para a sua condutano presente, bem
como o exemplo para a explicao dos fenmenos com que
depara.Acredita-se que a finalidade dos relatos consiste em evitar
que as aes e os feitos doshomens se apaguem com o tempo e tombem na
morte e no esquecimento. Ao queparece, foi com vistas consecuo
deste duplo objetivo fixar a memria e barrar aao corrosiva do tempo
que os historiadores de diferentes pocas mobilizaramtoda a sorte de
calendrios, elaboraram cronologias, instalaram ciclos e
perodos,fixaram datas, estabeleceram fatos e documentos,
perscrutaram anais, decifraraminscries, analisaram monumentos
etc.
A tenso freqente entre as memrias locais e a retrica
nacionalista pbli-ca se intensifica quando a comunidade imaginada
nacional torna-se muito cir-cunscrita. As comunidades locais, por
exemplo, podem-se apropriar de formas mate-riais de comemorao
nacional, como monumentos guerra, mas no necessaria-mente de seu
contedo, submetendo a expresso da memria aos interesses locais.
Este recurso freqente ao passado acaba, em muitos casos, por
fazer emer-gir um confronto com a leitura oficial feita pelo poder
poltico. Nesse esforo defixao, se verdade que a tentativa de salvar
o passado foi acompanhada do senti-mento de a humanidade carregar
um peso o fardo do passado , um sem nmerode acontecimentos annimos,
porm reais, vividos por camponeses, artesos e not-veis de
diferentes pocas, foi simplesmente relegado ao esquecimento, assim
comouma infinidade de acontecimentos de especial relevo foi banida
da memria, expur-gada dos arquivos e varrida da histria oficial.
Para nos convencermos disso bastanos reportarmos aos exemplos das
revolues francesa e russa, que cedo cuidaram deapagar os vestgios
de uma pliade de personagens ilustres e eventos incmodos, coma
esperana de, assim, melhor controlar o tempo e governar a histria.
Um exemplona realidade moambicana o romance Ualalapi, de Ungulani
Ba Ka Khosa, que uma desmitificao das verses correntes da Histria
de Ngungunhane:7 a colonial,que o apresenta como um covarde e
traidor, e a revolucionria, que lhe atribui umincondicional
estatuto de heri o que convida a refletir sobre a validade de
umaoutra, transmitida oralmente, a qual contm tambm, obviamente, as
suas doses deparcialidade e , em certa medida, uma forma diferente
de olhar para a Histria deMoambique dos ltimos cem anos. H, com
efeito, uma abordagem dos seus acon-tecimentos mais marcantes,
feita atravs do premonitrio discurso de Ngungunhanena altura da
partida para o exlio nos Aores. Trata-se, portanto, da adoo do
imagin-
7 Ngungunhane foi imperador de Gaza (regio do sul de Moambique),
no perodo colonial, tendo-se opostofortemente dominao
portuguesa.
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rio tradicional na leitura dessa Histria, uma vez que as
desgraas que se abatem sobreo pas so vistas como sendo devidas ao
desrespeito pelo sistema de valores da tradio.
A narrativa oral, ao criar um outro discurso, margem da Histria
oficial,viabiliza tambm uma desconstruo dessa Histria e constri uma
memria pr-pria, porque est baseada no na histria aprendida, e, sim,
na histria vivida, hist-ria cultural retida na memria dos
contadores. Essa histria cultural que se guardana memria, , com
freqncia, uma seleo dos fatos que tiveram especial relevn-cia no
percurso das transformaes que marcaram esse povo.
AS IMPLICAES DA INTRODUO DA ESCRITA NO UNIVERSO ORAL
A impresso criou uma nova percepo da propriedade privada das
pala-vras. As pessoas em uma cultura acstica podem nutrir algum
senso de direito depropriedade sobre um poema, mas essa percepo
rara e geralmente enfraquecidapela partilha comum de conhecimento,
frmulas e temas dos quais todos se servem.
Assim, os calendrios, datas, anais, arquivos, ao instaurarem
referncias fi-xas, permitem o nascimento da histria direcionada. A
forma narrativa perde sua efi-ccia, sua centralidade, e aquele
devir indefinido que a caracterizava, sem ponto fixo,onde tudo
volta, abre-se agora para uma dicotomia: aquilo que permanece e
aquiloque passa, o presente e o passado, o ser e o devir. Tambm
surge a possibilidade de sedesenhar um declnio ou uma progresso,
uma linha. A prpria memria se separado sujeito e estocada, ficando
disponvel para a coletividade, suscetvel de ser con-sultada,
comparada etc. Com o surgimento da impresso, a prpria idia de um
pas-sado estocado, delimitado, visvel em seu registro, destacado do
presente, acumul-vel, colabora para a idia de progresso, de
linearidade. Com a apario do alfabeto, dacaligrafia, e por fim da
impresso, o tempo torna-se cada vez mais linear e histrico.
O pensamento aninha-se na fala, no em textos, cujos
significados, todos,so adquiridos pela referncia do smbolo visvel
ao mundo do som. O que o leitorest vendo nesta pgina no so palavras
reais, mas smbolos codificados pelos quaisum ser humano
adequadamente informado pode evocar na sua conscincia
palavrasreais, num som real ou imaginado. impossvel escrita ser
mais do que marcas emuma superfcie, a menos que seja usada por um
ser humano consciente como umapista para palavras soadas, reais ou
imaginadas, direta ou indiretamente.
Apenas o alfabeto fontico produz uma quebra entre olho e ouvido,
entresignificado semntico e cdigo visual; e assim, apenas a escrita
fontica tem o poderde transladar os homens da esfera tribal para a
esfera civilizada, e propor-lhes umolho por um ouvido (McLuhan,
1977).
Portanto, nas sociedades pr-alfabticas, a comunicao implicava a
utili-
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zao de todos os sentidos simultaneamente. A comunicao oral
acompanhadade gestos e implica ver e ouvir. Alm disso, o espao da
palavra falada acstico. Ain-veno do alfabeto vai criar uma
civilizao visual. O espao acstico ceder lugara um espao limitado,
linear. A pgina escrita proporciona, ento uma nova formade pensar a
noo de espao, bem menos rica do que nas sociedades orais. Com
oadvento da imprensa e a possibilidade da produo de escritos em
larga escala, osefeitos da tecnologia da escrita tendem a tornar-se
ainda mais intensos. Assim, ins-taura-se uma cultura com modos de
pensar lineares, uniformes, contnuos. Agora,na era eletrnica da
humanidade, estaramos retornando utilizao dos demaissentidos, alm
do visual, que caracterstico da era Gutenberg.
Scribner e Cole (1981) demonstraram que a introduo da escrita
numasociedade tradicional no produz efeitos cognitivos gerais como
a capacidade de me-morizar, classificar e derivar inferncias
lgicas. A fonte das mudanas cognitivasimportantes, se que elas so
reais, precisou ser procurada em outro lugar, como amodificao das
condies sociais ou dos processos de aprendizado. Patricia
Green-field exprimiu a opinio generalizada ao afirmar que o volume
de Scribner e Coledeveria livrar-nos definitivamente da crena
etnocntrica e arrogante de que bastauma simples tecnologia para
criar em seus usurios um conjunto distinto de proces-sos cognitivos
e, ainda por cima, superior (Greenfield, 1983, p. 219).
Jack Goody (1968) props uma teoria geral acerca das conseqncias
da in-troduo da escrita em culturas orais, partindo da idia de que
a escrita descontex-tualiza o pensamento. Goody interpreta a sua
introduo como um processo queconduziria inevitavelmente adoo de
formas de pensamento e de governo das re-laes sociais mais
impessoais, (por exemplo enfraqueceria o papel do
parentesco),abstratas, lgicas, racionais.
O processo de letramento de uma sociedade grafa leva a alteraes
signifi-cativas no prprio componente lexical da lngua dessa
sociedade e um bom exem-plo de que os efeitos da introduo da
escrita mostram-se de maneira mais transpa-rente quando determinada
sociedade comea a escrever a sua prpria lngua.
Se se pode estabelecer, de um ponto de vista terico a oposio
estruturaloral/escrito, deve-se considerar entretanto, que a
fronteira entre o modo de socializa-o oral e a escolarizao no to
clara como se pretende. Uma no pode ser pensa-da sem a outra, quer
pelo fato de que a cultura escolar originria de uma apropria-o de
certos elementos da cultura oral com o objetivo de integrao social
como osrituais de separao com as relaes de parentesco que ligam
simbolicamente os alu-nos ao professor ou numa perspectiva
hegemnica, dado que nem os procedi-mentos do oral, nem os
procedimentos do escrito os processos mnemotcnicos porexemplo
constituem blocos monolticos, mas cujos complexas trocas
recprocaspermanecem por muito tempo entre esses conjuntos
culturais.
A escrita pode ser estudada como uma extenso e potencializao da
mo-
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dalidade oral de comportamento. Isso nos permitiria, ento,
determinar que novosmeios de tratar o mundo e o self so
disponibilizados na passagem da forma decomportamento oral escrita.
Essas so as conseqncias do letramento em peque-na escala. Por meio
da institucionalizao e da adoo de tecnologia, algumas des-sas
formas de tratar o mundo e o self, conseqncias do letramento, so
disponibili-zadas a grupos mais amplos. Essas so as conseqncias do
letramento em grandeescala.
O comportamento lingstico pode produzir uma mudana qualitativa
nacapacidade de comunicao do ser humano, por seu potencial
intrnseco de articularaspectos do mundo com os quais convive. Essa
habilidade de articular aspectos situ-acionais de objetos, de
agentes e de experincias constituintes de uma situao eseus
inter-relacionamentos um pr-requisito essencial especificao e
instru-o. Atravs de especificaes e instrues, podem-se planejar e
programar as ativi-dades do mundo. A expresso prpria articulada tem
um papel a desempenhar nacomplexa programao do prprio comportamento
do indivduo. Atravs do com-portamento lingstico, o ser humano pode
lidar no s com o mundo imediata-mente presente, interativo, mas com
mundos distanciados dele no espao e no tem-po. Ademais, pode lidar
no s com o mundo real visvel e dado, mas com mundospossveis
(imaginados) e situaes no-fatuais. O comportamento lingstico faz
comque no se fique restrito a produzir experimentos reais e com que
se possa recorreraos experimentos dos gedanken (Olson &
Torrance, 1995, p. 193).
No decorrer da histria, o uso da lngua natural de forma oral e o
uso da es-crita (no sentido da utilizao de textos) revelaram-se
inadequados para atender snecessidades de representao de mundos em
construo e construdos. Novas nota-es, novas formalizaes e novas
linguagens tiveram de ser concebidas, e novas tc-nicas
grfico-visuais tiveram de ser inventadas, para dar conta dessas
abstraes, ma-nipul-las e transform-las. Muitas dessas idias ou
tcnicas esto na vertente domi-nante da elaborao terica e da
pesquisa atuais. Grande parte desse trabalho faz usoimprescindvel
de formalizaes e da tecnologia computacionais.
A ESCOLA COMO LUGAR FULCRAL DE PRESERVAO DA MEMRIA DO
PASSADO
Uma das grandes preocupaes do homem ao longo da sua existncia
temsido, por um lado, ampliar o raio de alcance no espao e no tempo
da palavra oral e,por outro lado, dar a conhecer aos outros, que
habitam em diferentes regies do pla-neta, a maior quantidade
possvel de informao sobre o que se passa ao seu redor. Orecurso
escrita, e mais recentemente s fitas de udio e vdeo, disquetes,
satlites etodos os complexos aparelhos usados na mdia e nos
sistemas educacionais, tem em
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CULTURA ACSTICA E MEMRIA EM MOAMBIQUE: AS MARCAS
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vista reduzir as restries de alcance espcio-temporais que a
linguagem oral por sis no pode vencer.
A escola que nasceu colada reproduo da cultura, do saber, dos
hbitos ecomportamentos, ligada aos processos mais imediatos e
totais da socializao, noconsegue divorciar-se da tradio
biologicamente to indispensvel espcie hu-mana e to necessria
sobrevivncia e identidade do grupo. Todas as tentativas deconverter
a experincia escolar num exerccio de apreenso lgica, metdica de
ha-bilidades e saberes frente ao futuro apreender para a vida, o
trabalho, a cidadania no conseguiram desvincular a escola dessa
funo de cultivar a memria do passado.
A escola est intimamente associada construo de identidades:
temati-zar e explorar os espaos, os objetos, as lembranas corpreas.
A pedagogia escolar naeducao bsica continua fiel s velhas normas:
celebrar o passado, encontrar smbolosdos fatos que se deseja
recordar e provocar sentimentos para as crianas aderirem aeles com
paixo. Das trs potencialidade humanas a serem cultivadas por toda a
aopedaggica (memria, intelecto, vontade), apenas o cultivo do
intelecto merecer aateno quando se ultrapassa a idade infantil,
quando a escola passa a ensinar.
No apenas na educao do adolescente e do jovem se perdem as ricas
di-menses da evocao do passado. Tambm na educao bsica das crianas,
h per-das significantes. As reformas educacionais tendem a impor
currculos cada vez maisrgidos, guiados por uma concepo cada vez
mais racionalista da educao escolar.O intelecto e o seu cultivo, ou
melhor, o adestramento, se impem sobre as outraspotncias do
esprito, memria e vontade. Uma corrente pedaggica antimemria
seinfiltra em nome da centralidade do intelecto. Centralidade posta
por uma concep-o racional: a formao do sujeito racional, de sua
autodeterminao racional, dacompreenso terica do real, etc.
memria do passado se contrape o conhecimento lgico
antecedentes,determinantes, conseqncias, a busca das causas, das
ltimas causas. Este conheci-mento se legitima como o mais perfeito,
o nico conhecimento. Enquanto a mem-ria relegada esfera do
impreciso, ao mgico, ao imaginrio. Da, ser tolerada, ape-nas, na
primeira infncia, no tratamento que a escola d recordao do passado;
medida que a criana se aproxima da idade da razo, esse tratamento
do tempopassado dever ser descartado. Entre a 4a e 5a classes (e
por vezes antes), se d essecorte, como fcil de constatar nos livros
didticos e na prpria organizao do tem-po e do trabalho pedaggico. O
conhecimento passa a ser metdico, com lgica, sememoo e paixo, sem
evocao. Contrape-se a inteligncia memria nos pro-gramas escolares,
enquanto os psiclogos, como Jean Piaget, demonstram que me-mria e
inteligncia, longe de se contrapor, se apoiam mutuamente. E so
vnculosprimrios da codificao e reproduo das relaes sociais.
Na ltima dcada, falou-se muito dos vnculos entre saber e poder,
entre o
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domnio das habilidades e dos saberes no confronto entre
dominantes e dominados.As anlises do currculo escolar acentuaram
essas dimenses polticas. Entretanto odiscurso ficou reduzido ao
chamado saber acumulado e a sua transmisso discipli-nada nas
classes e disciplinas escolares, nos livros didticos e na docncia
dos mestrescompetentes. Numa viso reducionista, reivindicou-se
escola que ensinasse, che-gando a condenar-se as festas e
comemoraes como tempo perdido que desvirtuavaessa funo
docente-transmissora e ocupava tempos, escassos, na alienao dos
futu-ros cidados conscientes. A escola, em seu tradicionalismo, no
abandonou o quea constituiu em suas origens mais remotas: cultivar
a conscincia, o sentimento dopassado, da tradio histrica.
Comemor-los, cant-los, evoc-los, porque a consci-ncia e o
sentimento do passado no outra coisa seno a conscincia do grupo,
decada indivduo, de sua identidade cultural.
A escola no conseguira fugir a esse papel que traz como marca de
origem,como expresso digital. Poder sim, recuper-lo, abrir maiores
espaos no cultivo dopassado pblico e privado, trat-lo com maior
competncia e sobretudo democrati-z-lo para que minorias no
monopolizem a memria social e com elas destruam asidentidades ou as
enfraqueam. No ser uma minoria (no caso moambicano, su-lista) que
desde os tempos da luta armada contra o colonialismo portugus e no
ps-independncia ocupou altos cargos, na cpula dirigente da Frelimo,
quem tem mono-polizado essa memria social do povo moambicano? Ser
possvel pretender captara histria de uma memria nacional unicamente
pelo vis de grupos restritos ou desetores da sociedade
particularmente sensibilizados pelo passado ou que tm ten-dncia,
como o Estado, a propor representaes do passado? Que representaes
de-le fazem os grupos mais amplos e mais heterogneos? Na sociedade
moambicana,de forte tradio oral, os especialistas da memria so os
velhos. So eles a memriada sociedade. Sua importncia de tal
natureza que quando um velho morre se cos-tuma dizer que uma
biblioteca desapareceu. Na luta pela dominao da recorda-o e da
tradio histrica, a escola pode cumprir um papel relevante no
abando-nando, antes retomando, o peso poltico e cultural do cultivo
da memria do passadotanto coletivo quanto individual. A escola no
pode abandonar a fora do simblico,a fora da imagem. Todos os nossos
sentidos podem despertar lembranas e emoese a escola, nas suas
origens, uma das instituies mais visveis de evocao do passa-do. Mas
um passado no institucionalizado, cuja incorporao na escola possa
re-presentar a democratizao da memria e a possibilidade de novos
espaos de defesade identidades tidas como marginais: identidades
populares, de classe, gnero, etnia.
A escola determinante na produo das lembranas e no processo de
re-cordao. Se dependesse da experincia e tradio escolar, seria
difcil cairmos noesquecimento do passado. Todas as culturas tm um
conjunto de processos diferen-ciados de educao da memria. Nas
sociedades modernas, a escola se destaca pelo
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seu carter tcnico, ritual, institucionalizado de educar a memria
coletiva mais doque as memrias individuais. Mas ser que o aluno
encontra espao para que edu-que a sua memria tnica, de classe ou de
gnero? Na verdade, o que a escola cultivano ser uma memria coletiva
seletiva? Sendo seletiva, no ser difcil escola fugirao processo de
manipulao consciente ou inconsciente que o poder e uns
grupossociais exercem sobre a memria individual, grupal, tnica e de
classe? Ter o letra-mento participado no cultivo da memria coletiva
e tambm nos esquecimentos enos silncios de vestgios histricos
reveladores de identidades e de lutas?
CONCLUSO
Temos tendncia a considerar que a lngua e o corpo de saber
(histria,geografia, matemtica, cincias naturais) que um jovem de
quinze ou dezesseis anospossui nas sociedades com um elevado nvel
de letramento, adquiridos depois deuma dezena de anos passados na
escola, respeitando a progresso traada pelos pro-gramas, no esto ao
alcance de um jovem africano ou de um ndio brasileiro queno
freqentaram a escola ocidental. Vimos que a tradio oral manifestava
um sa-ber lingstico e elaborava os meios de sua transmisso. Mas o
contador de estriasou o griot, funciona igualmente como o professor
de histria e de poesia (porqueele tem uma funo muito mais
importante, ele a memria histrica) e os jogos in-fantis permitem
igualmente ao mais jovens uma iniciao aos trabalhos dos
adultos.Aprendem sobre agricultura, sobre a caa, sobre a pesca,
jogando, o que significa quecertas atividades ldicas tm
simultaneamente uma funo de iniciao vida futu-ra. Nas sociedade de
pastores, a criana bem cedo possui um rebanho que ela cui-da sob a
vigilncia do pai; ela aprende a contar os animais, a trat-los, a
verificar osmais adequados para a reproduo, etc. Sob este ponto de
vista, poder-se-iam apre-sentar numerosos exemplos, todos eles nos
revelando a mesma coisa: toda a socieda-de tem necessidade de
transmitir seus conhecimentos, suas descobertas, suas tcni-cas e
ela prpria cria os meios para esta transmisso. Nas culturas
letradas, a escoladesempenha este papel, mas ela no seno uma, entre
tantas outras respostas a esseproblema fundamental que as culturas
acsticas tambm resolveram.
O mesmo vale para as leis, a memria social, a organizao poltica,
todosos elementos que em nossas casas passam pelo texto escrito,
mas que existem igual-mente na ausncia da escrita. A Bblia e o
Alcoro so exemplos cannicos de textosorais, recolhas de parbolas,
de narrativas, que reunidas e transcritas num certo mo-mento de sua
histria, lhes assegurou a perenidade do carter oral que os
fundou.Mas sem dvida cumpriram, antes de serem transcritos, uma
funo comparvelquela que desempenhavam anteriormente.
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Existe pois, uma especificidade das culturas acsticas, uma
regulao dosfenmenos sociais fundada unicamente na fora da palavra e
nos seus acessriosmnemotcnicos, especificidade que as diferencia
amplamente das culturas letradas.
A oralidade no um ideal e nunca foi. Abord-la positivamente no
de-fend-la como um estado permanente para qualquer cultura. O
letramento abre pos-sibilidades palavra e existncia humana de uma
forma inimaginvel sem a escrita.
Que modos de expresso e pensamento do universo acstico se podem
re-cuperar acadmica e culturalmente? Aqueles que atravs da voz e do
som, incorpo-ram fundindo utilidade e esttica o ritmo, a rima, a
msica, a cano, o canto, afrmula, a expresso potica e o corpo
movimento, dana, gestos. Aqueles queimplicam, em unssono, o corpo e
a mente, que frente perspectiva nica e ao pontode vista fixo, ao
linear, analtico e distante, recorrem ao enftico, repetio
envol-vente e a confrontao/identificao com ele ou com os ouvintes.
Aqueles, enfim,que privilegiam os valores estticos, emocionais,
poticos e imaginativos, a fantasia,o humor e a ironia, o absurdo,
os jogos de palavras, o paradoxo, o contraditrio e oambguo, a
metfora, o mito e a retrica como relato ou arte de contar histrias.
Noa fragmentao e o isolamento, mas o global e o comunicativo. S a
partir do desen-volvimento da oralidade como cultura e da
revalorizao na escola e em outros con-textos sociais de intercmbio
de informao dos modos de expresso e pensamentocaractersticos dessa
oralidade, possvel assentar um novo letramento em Moam-bique. No a
partir da oposio e do esquecimento, menos ainda a partir do
quixo-tesco desprezo, mas a partir do pleno desenvolvimento de
ambos os mbitos o daoralidade e o da escrita; ou seja, a partir
daquela interao que corresponde a umacultura no j apenas acstica,
mas tampouco apenas escrita, mas mista.
A maior parte dos conhecimentos em uso atualmente, aqueles de
que nosservimos em nossa vida cotidiana, nos foram transmitidos
oralmente, a maior partesob a forma de narrativa (histrias de
pessoas, de famlia ou de empresas). Domina-mos a maior parte de
nossas habilidades observando, imitando, fazendo, e no estu-dando
teorias na escola ou princpios nos livros. Rumores, tradies e
conhecimentosempricos em grande parte ainda passam por outros
canais que no o impresso ou osmeios de comunicao audiovisuais.
As formas sociais do tempo e do saber que hoje nos parecem ser
os maisnaturais e incontestveis baseiam-se, na verdade, sobre o uso
de tcnicas historica-mente datadas e, portanto transitrias.
Compreender o lugar fundamental das tec-nologias da comunicao e da
inteligncia na histria cultural nos leva a olhar deuma nova maneira
a razo, a verdade e a histria, ameaadas de perder sua preemi-nncia
na civilizao da televiso e do computador.
Estar a memria, como identidade coletiva, se diluindo, se
perdendo? Pa-rece tornar-se a cada dia mais evidente que o mundo
moderno no cultiva a mem-
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ria como um compartilhamento no qual podem se cruzar histria e
intimidade,pblico e privado, tomando como ponto culminante a vida
social entre os homens eas razes por eles criadas. O processo
vivido no mundo moderno de desenraiza-mento, no qual o indivduo no
cria laos entre seu passado e o presente, ou seja, emsua atuao
real, ativa e natural na configurao social.
Assim, a memria coletiva poder ser um instrumento de
continuidade eestabilidade ou poder ser uma forma especfica de
dominao ou violncia simblica,na medida em que pode assumir um
carter destruidor e opressor, de enquadramento.
No que se refere histria e formao das culturas, a escolha dos
itensque devem ser registrados ou eliminados jamais objeto de
indiferena. Nesse senti-do, a tentao das sociedades modernas de
capitalizar infinitamente tudo o que pro-duzem levanta uma questo
capital: as novas tecnologias podem afianar a utopia deuma apreenso
total dos acontecimentos, fenmenos e mensagens, mas no nos im-pede
de recordar que a memria indissocivel do esquecimento.
ABSTRACT
In this work we intend to approach us initially the place
occupied bythe auditory sensorial model in an Anthropology of the
senses. Soonafter we will analyze the way as the phenomenon of the
repetition itbecomes essential to preserve the thought carefully
articulated in anacoustic culture. Afterwords will work the complex
relationships be-tween memory and rebuilding of the past and
between memory andpower. We will conclude our text with an analysis
of the implications ofthe introduction of the school in an acoustic
culture as well as the papercarried out by the school that if
decisive in the production of memoriesand in the process of
memory.
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