-
Neste captulo, vou ao encalo de um exemplo de "teoria"
seguindoum conceito que floresceu na teoria literria e cultural e
cujos destinosilustram a maneira como as idias mudam medida que so
atradas parao reino da "teoria". O problema da linguagem
"performativa" enfocaquestes importantes que dizem respeito ao
sentido e aos efeitos da lin-guagem e nos leva a questes sobre
identidade e a natureza do sujeito.
O conceito de elocuo performativa foi desenvolvido no decnio
de1950 pelo filsofo britnico J.L. AustinG7 Ele props uma distino
entreduas espcies de elocues: as elocues constativas, tais como
"Jorgeprometeu vir", fazem uma afirmao, descrevem um estado de
coisas eso verdadeiras ou falsas. As elocues performativas no so
verdadeirasou falsas e realmente realizam a ao a que se referem.
Dizer "Prometopagar-lhe" no descrever um estado de coisas mas
realizar o ato deprometer; a elocuo ela prpria o ato. Austin
escreve que quando,numa cerimnia de casamento, o padre ou juiz
pergunta: "Voc aceitaessa mulher como sua legitima esposa?" e eu
respondo "Sim", no descre-vo coisa alguma, eu fao algo. "No estou
fazendo um relato sobre umcasamento: estou me entregando a ele."
Quando digo "Sim", essa e1ocu-o performativa no nem verdadeira nem
falsa. Pode ser adequada OLlinadequada, dependendo das
circunstncias; pode ser "feliz" ou "infeliz",
fornecem uma modalidade de crtica social. Expem a vacuidade
dosucesso mundano, a corrupo do mundo, seu fracasso em satisfazer
nos-sas mais nobres aspiraes. Expem a difcil situao dos oprimidos,
emhistrias que convidam os leitores, atravs da identificao, a ver
certassituaes como intolerveis.
Finalmente, a questo bsica para a teoria no domnio da narrativa
essa: a narrativa uma forma fundamental de conhecimento (dando
co-nhecimento do mundo atravs de sua busca de sentido) ou uma
estru-tura retrica que distorce tanto quanto revela? A narrativa
uma fontede conhecimento ou de iluso? O conhecimento que ela parece
apresen-tar um conhecimento que o efeito do desejo? O terico Paul
de ManGCobserva que, enquanto ningum de posse de suas faculdades
mentais ten-taria plantar uvas aproveitando a luz da palavra dia,
achamos muito dif-cil realmente evitar conceber nossas vidas pelos
padres das narrativasficcionais. Isso implica que os efeitos
esclarecedores e consoladores dasnarrativas so ilusrios?
Para responder a essas perguntas precisaramos tanto de
conheci-mento do mundo que seja independente das narrativas quanto
de algumabase para considerar esse conhecimento mais autorizado do
que o que asnarrativas proporcionam. Mas se existe ou no esse
conhecimento autori-zado separado da narrativa precisamente o que
est em questo na per-gunta a respeito de se a narrativa ou no uma
fonte de conhecimentoou de iluso. Portanto, parece provvel que no
possamos responder aessa pergunta, se que, de fato, ela tem uma
resposta. Ao invs disso,devemos ficar nos movendo para l e para c
entre a conscincia da nar-rativacomo uma estrutura retrica que
produz a iluso de perspiccia eum estudo da narrativa como o
principal tipo de busca de sentido nossadisposio. Afinal de contas,
mesmo a exposio da narrativa como retri-ca tem a estrutura de uma
narrativa: uma histria em que nossa ilusoinicial cede crua luz da
verdade e emergimos mais tristes mas maissbios, desiludidos mas
depurados. Paramos de danar em crculos e con-templamos o segredo.
Assim diz a histria.
I
1
7 inguagem Performativa
66 Paul de 1'\'1an(19] 9-]983). Expoente dos estudos literrios
norte-americanos. (N,T.)
-
na terminologia de Austin. Se digo "Sim", posso no conseguir
casar - se,por exemplo, j for casado ou se a pessoa que est
realizando a cerim-nia no estiver autorizada a realizar casamentos
nessa comunidade. Aelocuo "vai ser um tiro n'gua", diz Austin. A
elocuo ser infeliz - e omesmo, sem dvida, ocorrer com a noiva ou
noivo, ou talvez com ambos.
As elocues performativas no descrevem mas realizam a ao
quedesignam. ao pronunciar essas palavras que prometo, dou ordens
ou mecaso. Um teste simples para a performativa a possibilidade de
acrescen-tar "por meio desta" antes do verbo, em que por meio desta
significa "aoproferir essas palavras": "Por meio desta prometo";
"Por meio destadeclaro nossa independncia"; "Por meio desta lhe
ordeno ..."; mas no"Por meio desta ando at o centro". No posso
realizar o ato de andar pro-nunciando certas palavras.
A distino entre performativa e constativa capta uma
diferenaimportante entre os tipos de elocuo e tem a grande virtude
de nos aler-tar para o grau em que a linguagem realiza aes ao invs
de simples-mente relat-Ias. Mas, medida que Austin leva adiante sUa
explicaoda performativa, ele encontra algumas dificuldades. Voc
pode fazer umalista de "verbos performativos" que, na primeira
pessoa do presente doindicativo (prometo, ordeno, declaro).
realizam a ao que designam. Masno pode definir a performativa
listando os verbos que se comportamdessa maneira, porque, nas
circunstncias certas, voc pode realizar o atode ordenar que algum
pare de gritar gritando "Pare!" ao invs de "Pormeio desta ordeno
que voc pare'~ A afirmao aparentemente constati-va "Vou pagar a voc
amanh", que certamente parece que vai tornar-severdadeira ou falsa,
dependendo do que acontecer amanh, pode, nascondies certas, ser uma
promessa de pagar a voc, ao invs de umadescrio ou previso como "ele
vai pagar a voc amanh'~ Mas, uma vezque voc permita a existncia
dessas "performativas implcitas", em queno h verbo explicitamente
performativo, voc tem de admitir que qual-quer elocuo pode ser uma
performativa implcita. A sentena "O gatoest em cima do capacho",
elocuo constativa bsica, pode ser vistacomo a verso eliptica de
"Por meio desta afirmo que o gato est em cimado capacho", uma
elocuo performativa que realiza o ato de afirmar aque se refere. As
elocues constativas tambm realizam aes - aes dedeclarar, afirmar,
descrever e assim por diante. Vm a ser um tipo de per-formativa.
Isso se torna significativo num estgio posterior.
Y6
Os criticos literrios adotaram a noo da performativa como
algoque ajuda a caracterizar o discurso literrio. H muito tempo os
tericosafirmam que devemos atentar para o que a linguagem literria
faz tantoquanto para o que ela diz e o conceito da performativa
fornece uma jus-tificativa lingstica e filosfica para essa idia: h
uma categoria deelocues que, sobretudo, fazem algo. Como a
performativa, a elocuoliterria no se refere a um estado anterior de
coisas e no verdadeiraou falsa. A elocuo literria tambm cria o
estado de coisas ao qual serefere, em diversos aspectos. Primeiro e
mais simplemente, cria persona-gens e sua's aes, por exemplo. O
incio de Ulisses, de James Joyce,"Stately plump Buck Mulligan came
from the stairhead bearing a bowl oflather on which a mirror and a
razor lay crossed"GB,no se refere a algumestado anterior de coisas
mas cria esse personagem e essa situao.Segundo, as obras literrias
criam idias, conceitos, que colocam emcampo. La RochefoucauldG9
afirma que ningum jamais teria pensado emse apaixonar se no tivesse
lido a respeito disso nos livros e que a noode amor romntico (e de
sua centralidade na vida dos indivduos) discu-tivelmente uma slida
criao literria. Certamente, os prprios romances,de Dom Quixote a
Madame 8ovary, culpam outros livros pelas idiasromnticas.
Em resumo, a performativa traz para o centro do palco um uso da
lin-guagem anteriormente considerado marginal - um uso ativo,
criador domundo, da linguagem, que se assemelha linguagem literria
- e nosajuda a conceber a literatura como ato ou acontecimento. A
noo de li-teratura como performativa contribui para uma defesa da
literatura: aliteratura no uma pseudodeclarao frvola mas assume seu
lugar entreos atos de linguagem que transformam o mundo, criando as
coisas quenomeiam.
A performativa se vincula literatura de uma segunda maneira.
Emprincpio pelo menos, a performativa rompe o vnculo entre sentido
einteno do falante, j que o ato que realizo com minhas palavras
noest determinado pela minha inteno mas por convenes sociais
elingsticas. A elocuo, insiste Austin, no deveria ser considerada
como
68 Na traduo de Antonio Houaiss: "Sobranceiro, fomido, Buck
f\1ulligan vinha do alto da escada. comulll \';IS\lde barbear,
50breo qual se cruzavam um espelho e uma navalha". Jamcs Joyce,
Ulisses. Ed. Civilizaao Brasikil':l.2". cd .. Rio de Janeiro. 1967.
p. 3. (N.T.)69 La Rochefollciluld (1613-1680). Autor clssico
francs, tornou-se o principal expoente ela mrilJ/(/.
11111,1I(1I11LIliterria francesa de epigrama que expressa, de modo
breve, uma verdade spera ou paradoxal.
97
Laura Castro
Laura Castro
Laura Castro
Laura Castro
Laura Castro
Laura Castro
Laura Castro
-
o sinal exterior de algum ato interior que ela representa
verdadeira ou fal-samente. Se digo "Prometo" em condies adequadas,
prometi, realizei oato de prometer, qualquer que seja a inteno que
possa ter tido em menteno momento. Como as elocues literrias so
tambm acontecimentosem que a inteno do autor no pensada como sendo
o que determina osentido, o modelo da performativa parece altamente
pertinente.
Mas se a linguagem literria performativa e uma elocuo
perfor-mativa no verdadeira ou falsa, mas feliz ou infeliz, o que
significa parauma elocuo literria ser feliz ou infeliz? Isso mostra
ser um questocomplicada. Porum lado, felicidade pode ser apenas um
outro nome parao que geralmente interessa aos crticos. Confrontados
com a abertura dosoneto de Shakespeare "My mistress's eyes are
nothing like the sun"70,perguntamos no se essa elocuo verdadeira ou
falsa, mas o que faz,como se encaixa no resto do poema e se
funciona de modo feliz emrelao aos outros versos. Essa poderia ser
uma concepo de felicidade.Mas o modelo da performativa tambm dirige
nossa ateno para as con-venes que possibilitam a uma elocuo ser uma
promessa ou um poema- as convenes do soneto, digamos. A felicidade
de uma elocuoliterria poderia, portanto, envolver sua relao com as
convenes de umgnero. Ela cumpre e desse modo consegue ser um
soneto, ao invs de serum tiro n'gua? Mas, mais que isso,
poder-se-ia imaginar, uma com-posio literria feliz somente quando
se torna literatura plenamente,ao ser publicada, lida e aceita como
uma obra literria, assim como umaaposta se torna uma aposta somente
quando aceita. Em resumo, anoo de literatura como performativa
impe-nos a reflexo sobre o com-plexo problema do que ela para que
uma seqncia literria funcione.
O prximo momento chave nos destinos da performativa chega
quan-do Jacques Derrida adota a noo de Austin. Austin havia
distinguido entreperformativas srias que realizam algo, como
prometer ou casar, eelocues "no-srias': Sua anlise, diz ele, se
aplica a palavras proferidasseriamente: "No devo estar brincando,
por exemplo, ou escrevendo umpoema. Nossas elocues performativas,
felizes ou no, devem ser enten-didas como sendo emitidas em
circunstncias comuns': Mas Derrida argu-menta que o que Austin
deixa de lado ao apelar para "circunstnciascomuns" so as inmeras
maneiras pelas quais fragmentos de linguagem
70 "Os olhos de minha am3da no se parecem com o sol." (NT.)
93
podem ser repetidos "no-seriamente" mas tambm seriamente, como
umexemplo ou uma citao, por exemplo. Essa possibilidade de ser
repetidaem circunstncias novas essencial para a natureza da
linguagem; qual-quer coisa que no pudesse ser repetida de um modo
"no-srio" no serialinguagem mas alguma marca inextricavelmente
ligada a uma situaofsica, A possibilidade de repetio bsica para a
linguagem e as perfor-mativas em particular s podem funcionar se
forem reconhecidas comoverses ou citaes de frmulas regulares, tais
como "Sim", "Prometo': (Seo noivo dissesse "OK" em vez de "Sim",
ele poderia no conseguir se casar.)"Ser que uma elocuo performativa
poderia ser bem-sucedida", pergun-ta Derrida, "se sua formulao no
repetisse uma forma "codificada" ouitervel [repetvel], em outras
palavras, se a frmula que profiro para abriruma reunio, batizar um
barco ou realizar um casamento no fosse iden-tificvel como estando
de acordo com um modelo itervel, se no fosse
portanto identificvel como uma espcie de citao?" Austin deixa de
ladocomo anmalos, no-srios ou excepcionais os casos especficos
daquiloque Derrida chamou de uma "iterabilidade geral" que deveria
ser conside-rada uma lei da linguagem. Geral e fundamental, porque,
para algo ser umsigno, deve poder ser citado e repetido em todos os
tipos de circunstncias,inclusive as "no-srias': A linguagem
performativa no sentido de queno apenas transmite informao mas
realiza atos atravs de sua repetiode prticas discursivas ou de
maneiras de fazer as coisas estabelecidas. Issoser importante para
os destinos posteriores da performativa.
Derrida tambm relaciona a performativa com o problema geral
dosatos que do origem ou inauguram, atos que criam algo novo, tanto
naesfera poltica quanto literria. Qual a relao entre um ato
poltico,como uma declarao de independncia, que cria uma nova
situao, e aselocues literrias, que tentam inventar algo novo, em
atos que no sodeclaraes constativas mas so performativas, como as
promessas?Tanto o ato poltico quanto o literrio dependem de uma
combinaocomplexa, paradoxal, da performativa e da constativa, em
que, para SCI'bem-sucedido, o ato deve convencer, referindo-se a
estados de coisas cm
que o sucesso consiste em criar a condio qual se refere. As
OlJl";lSliterrias afirmam falar-nos sobre o mundo, mas, se so
bem-sucedirJ;]e" o
so atravs da criao dos personagens e acontecimentos que
rCI;}\;lllIAlgo semelhante est em ao nos atos inaugurais da esfera
pollil';l. Nd"Declarao da Independncia" dos Estados Unidos, por
exemplo, ;1 ',('11
9l)
Laura Castro
Laura Castro
-
tena-chave diz: "Ns portanto ... solenemente tornamos pblico e
decla-ramos que essas colnias Unidas so e de direito tm que ser
estadoslivres e independentes': A declarao de que esses so estados
indepen-dentes uma performativa que deve criar a nova realidade a
que se refe-re, mas, para sustentar essa afirmao, acrescenta-se-Ihe
a afirmaoconstativa de que eles tm que ser ser estados
independentes.
A tenso entre a performativa e a constativa surge claramente
tam-bm na literatura, onde a dificuldade que Austin encontra em
separar aperformativa da constativa pode ser vista como uma
caracterstica crucialdo funcionamento da linguagem. Se cada elocuo
tanto performativaquanto constativa, incluindo pelo menos uma
afirmao implcita de umestado de coisas e um ato lingstico, a relao
entre o que uma elocuodiz e o que ela faz no necessariamente
harmoniosa ou cooperativa.Para ver o que est envolvido na esfera
literria, vamos voltar ao poemade Robert Frost, "The Secret
Sits":
We dance round in a ring and suppose,But the Secret sits in the
middle and knows.
Esse poema depende da oposio entre suposio e saber. Para
explo-rar que atitude o poema adota em relao a essa oposio, que
valoresatribui a seus termos opostos, poderamos perguntar se o
prprio poemaest na modalidade da suposio ou do saber. O poema supe,
como "ns"que danamos em crculo, ou sabe, como o segredo? Poderamos
imaginarque, como um produto da imaginao humana, o poema seria um
exem-plo de suposio, um caso de dana em crculos, mas seu carter
gnmi-co, proverbial, e sua confiante declarao de que o segredo
"sabe", ofazem parecer realmente muito entendido. Assim, no possvel
tercerteza. Mas o que o poema nos mostra sobre o saber? Bem, o
segredo,que algo que se conhece ou no se conhece - portanto, um
objeto dosaber - aqui se torna, por metonmia ou contigidade, o
sujeito de saber,o que sabe e no o que ou no sabido. Ao usar a
maiscula e personi-ficar a entidade, o Segredo, o poema realiza uma
operao retrica quepromove o objeto do conhecimento posio de
sujeito. Mostra-nos,desse modo, que uma suposio retrica pode
produzir o conhecedor,pode transformar o segredo num sujeito, num
personagem desse pequenodrama. O segredo que sabe produzido por um
ato de suposio, que
100
desloca o segredo do lugar de objeto (Algum sabe um segredo)
paril olugar de sujeito (O Segredo sabe). O poema mostra, desse
modo, que suaafirmao constativa, que o segredo sabe, depende de uma
suposio per-formativa: a suposio que faz do segredo o sujeito que
deve saber. A sen-tena diz que o Segredo sabe mas mostra que isso
uma suposio.
Nesse estgio da histria da performativa, o contraste entre
constativae performativa foi redefinido: a constativa linguagem que
afirma repre-sentar as coisas como elas so, nomear as coisas que j
esto aqui, e a per-formativa so as operaes retricas, os atos de
linguagem, que minam essaafirmao impondo categorias lingsticas,
criando as coisas, organizando omundo em lugar de simplesmente
representar o que existe. Podemos iden-tificar aqui o que se chama
de uma "aporia" entre a linguagem performati-va e constativa. Uma
"aporia" o "impasse" de uma oscilao no resolv-vel, como quando a
galinha depende do ovo e o ovo depende da galinha. Anica maneira de
afirmar que a linguagem funciona performativamentepara dar forma ao
mundo atravs de uma elocuo constativa, tal como"A linguagem d forma
ao mundo"; mas, inversamente, no h maneira deafirmar a transparncia
constativa da linguagem exceto por um ato de fala.As proposies que
realizam o ato de afirmar necessariamente afirmam nofazer nada a no
ser simplesmente exibir as coisas como elas so; contudo,se voc quer
mostrar o contrrio - que as afirmaes de representar ascoisas como
elas realmente so impem suas categorias sobre o mundo -no h como
fazer isso exceto atravs de afirmaes a respeito do que ouno o caso.
O argumento de que o ato de afirmar ou descrever de
fatoperformativo deve assumir a forma de afirmaes constativas.
O momento mais recente dessa pequena histria da performativa
osurgimento de uma "teoria performativa do gnero e da sexualidade"
nateoria feminista e nos "gay and lesbian studies". A figura-chave
aqui afilsofa norte-americana Judith Butler, cujos livros Gender
Trouble:Feminism and the Subversion of Identity (1990), Bodies that
Matter (1993)e Excitable Speech: A Politics ofthe Speech Act
(1997), exerceram grandcinfluncia no campo dos estudos literrios e
culturais, particularmente n;]teoria feminista, e no campo
emergente dos "gay and lesbian studies'~ ()nome "Queer Theory" foi
adotado recentemente pela vanguarda dos "CF1Ystudies", cujo
trabalho na teoria cultural se vincula aos movimento',polticos para
liberao dos "gays': Ela adota como seu prprio rwlYlt' ('devolve
sociedade o insulto mais comum que os homossexuais ('tIl"()f1
101
-
"O da esquerda uma gracinha."
tram, o epteto "Queer!"71 A aposta que a ostentao desse nome
podemudar seu sentido e fazer dele uma insgnia honrosa ao invs de
uminsulto. Aqui um projeto terico est imitando a ttica dos
organizaesativistas mais visveis envolvidas na luta contra a AIOS -
o grupo ACT-UP,por exemplo, que em suas manifestaes usa slogans
como "We are here,we are queer, get used to it!"72
Gender Trouble, de Butler, trava discusso com a noo, comum
nostextos feministas norte-americanos, de que uma poltica feminista
exigeuma noo de identidade feminina, de caractersticas essenciais
que asmulheres compartilham como mulheres e que conferem a elas
interessese metas comuns. Para Butler, ao contrrio, as categorias
fundamentais daidentidade so produes culturais e sociais, mais
provavelmente o resul-tado da cooperao poltica do que sua condio de
possibilidade. Elascriam o efeito do natural (lembre-se de Aretha
Franklin: "Voc faz comque eu me sinta como uma mufher natural") e,
impondo normas(definies do que ser uma mulher), ameaam excluir
aquelas que noesto de acordo. Em Gender Trouble, Butler prope que
consideremos ognero como performativo, no sentido de que no se o
que se mas oque se faz. Um homem no o que ele mas algo que ele faz,
umacondio que ele encena. Seu gnero criado pelos seus atos, do
modoque uma promessa criada pelo ato de prometer. Voc se torna
umhomem ou uma mulher por atos repetidos, que, como as
performativas deAustin, dependem das convenes sociais, das maneiras
habituais de sefazer algo numa cultura. Assim como h maneiras
regulares, socialmenteestabelecidas de prometer, fazer uma aposta,
dar ordens e casar, hmaneiras socialmente estabelecidas de ser
homem ou mulher.
o00
~8
~lt))(f~J )
o o08~-~"
~,~,~ ~:: ).' ;;:':;: li'&~ ~,,' I()
f
Isso no significa que o gnero uma escolha, um papel que
vocveste, como escolhe roupas para vestir pela manh. Isso sugeriria
que hum sujeito no marcado pelo gnero, anterior ao gnero, que
escolhe, aopasso que, de fato, ser um sujeito ser marcado pelo
gnero: voc nopode, nesse regime de gnero, ser uma pessoa sem ser
homem ou mulher."Sujeito ao gnero mas subjetivado [feito sujeito]
pelo gnero", escreveButler em Bodies that Matter, "o "eu" nem
precede nem se segue aoprocesso de atribuio de gnero, mas surge
apenas no interior de e comomatriz das prprias relaes de gnero".
Tampouco dever-se-ia pensar aperformatividade do gnero como um ato
singular, algo conseguido porum nico ato; ao contrrio, a "prtica
reiterativa e citacional", a repe-tio compulsria de normas de gnero
que animam e limitam o sujeitomarcado pelo gnero mas que so tambm
os recursos a partir dos quaisso forjados a resistncia, as
subverses e os deslocamentos.
Desse ponto de vista, a elocuo " uma menina!" ou " um
menino!"pela qual um beb , tradicionalmente, saudado quando vem ao
mundo, menos uma elocuo constativa (verdadeira ou falsa, de acordo
com asituao) do que a primeira de uma longa srie de performativas
que criamo sujeito cuja chegada anunciam. A nomeao da menina inicia
umprocesso contnuo de formao da menina, atravs de uma "tarefa"
derepetio compulsria de normas de gnero, "a citao forosa de
umanorma': Ser um sujeito receber essa tarefa de repetio, mas - e
isso importante para Butler - uma tarefa que nunca realizamos
completamentede acordo com a expectativa, de modo que nunca
habitamos completa-mente as normas ou idias de gnero de que somos
obrigados a nos apro-ximar. Nessa lacuna, nas diferentes maneiras
de realizar a "tarefa" degnero, residem possibilidades de
resistncia e mudana.
A nfase recai aqui na maneira como a fora performativa da
linguagemvem da repetio de normas anteriores, de atos anteriores.
Assim, a fora doinsulto "Bicha!" vem no da inteno ou autoridade do
falante, que muitoprovavelmente algum idiota desconhecido da vtima,
mas do fato de que ogrito "Bicha!" repete insultos gritados do
passado, interpelaes ou atos deexrdio que produzem o sujeito
homossexual atravs do oprbio reiterado ouda abjeo (a abjeo envolve
tratar algo como tendo passado dos limites:"tudo menos isso!").
Butler escreve:
71 Gria qu~ pode: ser traduzida como "bicha" ou '\jado",
Refere~se_ em geral. ao homossexual masculino. (N.T.)71 "Estamos
aqui. somos bichas, acostume~se!" (N.T.)
102
"Bicha" deriva sua fora precisamente atravs da invocao repetido
...
1O:~
-
pela qual um vnculo social entre comunidades homofbicas se forma
aolongo do tempo. A interpelao ecoa interpelaes passadas e liga
osfalantes, como se falassem em unssono atravs do tempo. Nesse
sentido, sempre um coro imaginrio que vitupera "bicha!"
o que confere ao insuto sua fora performativa no a prpriarepetio
mas o fato de que ele reconhecido como estando de acordocom um
modelo, com uma norma, e se liga a uma histria de excluso. Aelocuo
implica que o falante o porta-voz do que "normal" e traba-lha para
constituir o destinatrio como tendo passado dos limites. arepetio,
a citao de uma frmula que se vincula a normas que susten-tam uma
histria de opresso, que d fora especial e malignidade ainsultos de
outra maneira banais como "preto" ou "judeu". Eles acumulama fora
da autoridade atravs da repetio ou citao de um conjunto deprticas
autorizadas, anteriores, falando como se fosse com a voz detodos os
vituprios do passado.
Mas o vnculo da performativa com o passado implica a
possibilidadede desviar ou redirecionar o peso do passado, tentando
captar e redirecionaros termos que carregam uma significao
opressiva, como na adoo de"Bicha" pelos prprios homossexuais. No
que voc se torna autnomo aoescolher seu nome: os nomes sempre
carregam peso histrico e estosujeitos aos usos que os outros faro
deles no futuro. Voc no pode con-trolar os termos que escolhe para
se nomear. Mas o carter histrico doprocesso performativo cria a
possibilidade de uma luta poltica.
Agora, bvio que a distncia entre o incio e o final
(provisrio)dessa histria muito grande. Para Austin, o conceito de
performativaajuda a pensar um aspecto especfico da linguagem
negligenciado porfilsofos anteriores; para Butler, um modelo para
se pensar os processossociais cruciais em que uma quantidade de
questes est em jogo: (1) anatureza da identidade e como ela
produzida; (2) o funcionamento dasnormas sociais; (3) o problema
fundamental do que hoje chamamos de"agncia": em que medida e sob
que condies posso ser um sujeitoresponsvel que escolhe meus atos; e
(4) a relao entre o indivduo emudana social.
H, desse modo, uma grande diferena entre o que est em jogo
paraAustin e para Butler. E eles parecem ter principalmente em
vista tiposdiferentes de atos. Austin est interessado em como a
repetio de uma
104
~
~.
li~t~.1i
-
rrepetio obrigatria, que pode no entanto desviar-se das normas.
A lite-ratura, que deve "renovar" num espao de conveno, exige uma
expli-cao performativa de norma e acontecimento.
Terceiro, como deveramos conceber a relao entre o que a
lin-guagem faz e o que diz? Esse o problema bsico da performativa:
podehaver uma fuso harmoniosa entre fazer e dizer ou h aqui uma
tensoinevitvel que governa e complica toda a atividade textual?
Finalmente, como, nessa era ps-moderna, deveramos pensar o
acon-tecimento? Tornou-se lugar comum nos Estados Unidos, por
exemplo,nessa era dos meios de comunicao de massa, dizer que o que
acontecena televiso "acontece e ponto final", um acontecimento
real. Quer aimagem corresponda a uma realidade ou no, o
acontecimento meditico um acontecimento genuno a ser considerado. O
modelo da performati-va oferece uma explicao mais sofisticada de
questes que so muitasvezes cruamente afirmadas como um embaamento
das fronteiras entrefato e fico. E o problema do acontecimento
literrio, da literatura comoato, pode oferecer um modelo para
pensar os acontecimentos culturais,de modo geral.
106
8 dentidade, Identificaoe o Sujeito
Muitos dos debates tericos recentes dizem respeito identidade e
funo do sujeito ou eu. O que esse "eu" que sou - pessoa, agente
ouator, eu - e que faz com que ele seja o que ? Duas perguntas
bsicas sub-jazem ao pensamento moderno sobre esse tpico: primeiro,
o eu algodado ou algo construido e, segundo, ele deveria ser
concebido em ter-mos individuais ou sociais? Essas duas oposies
geram quatro vertentesbsicas do pensamento moderno. A primeira,
optando pelo dado e peloindividual, trata o eu como algo interno e
singular, algo que anterior aosatos que realiza, um mago interior
que variadamente expresso (ou noexpresso) em palavras e atos. A
segunda, combinando o dado e o social,enfatiza que o eu determinado
por suas origens e atributos sociais: voc homem ou mulher, branco
ou negro, britnico ou norte-americano, eassim por diante, e esses
so fatos primrios, dados do sujeito ou eu. Aterceira, combinando o
individual e o construdo, enfatiza a naturezacambiante de um eu que
se torna o que atravs de seus atos especfi-cos. Finalmente, a
combinao do social e do construido enfatiza que metorno o que sou
atravs das variadas posies de sujeito que ocupo, comopatro e no
empregado, rico e no pobre.
A tradio moderna dominante no estudo da literatura trata a
indi-vidualidade do indivduo como algo dado, um mago que expresso
CI1\palavras e atos e que pode, portanto, ser usado para explicar
a