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1629 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(8):1629-1638, ago, 2006 ARTIGO ARTICLE Cuidando de idosos altamente dependentes na comunidade: um estudo sobre cuidadores familiares principais Caring for the highly dependent elderly in the community: a study on the main family caregivers 1 Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. 2 Universidade Aberta da Terceira Idade, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. 3 Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 4 Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Correspondência C. P. Caldas Universidade Aberta da Terceira Idade, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier 524, 10 o andar, bloco F, sala 10.150, Rio de Janeiro, RJ 20559-900, Brasil. [email protected] Teresinha Mello da Silveira 1,2 Célia Pereira Caldas 2,3 Terezinha Féres Carneiro 4 Abstract This study aims to contribute to a better under- standing of the main family caregivers of highly dependent elderly. Performed in a geriatric out- patient unit, the study used a content analysis methodology, and data were collected with in- terviews and 14 group sessions with 24 subjects. The following categories emerged: denial versus acceptance of the disease before and after diag- nosis; how and why the main caregiver assumes this role; caregiver’s characteristics; caregiver’s experiences; meanings ascribed to care-giving; history of the caregiver’s relationship to the el- der before the disease; caregiver/elder relation- ship since onset of the disease; changes in the caregiver’s life; changes in the family; and caus- es for the appearance of the disease. In conclu- sion, there are three dimensions in the target is- sue: (1) implications of the legacies, multi-gen- erational transmission, repetition of the pat- terns, and myths and beliefs in each family sys- tem; (2) seniors as active participants in the care-giving decision; and (3) the support group as a key resource for the family. Aged; Caregivers; Family Introdução Com o aumento da expectativa de vida, aumen- ta também a possibilidade de o idoso ser aco- metido por doenças de ordens diversas. O pre- sente estudo trata de uma patologia cujo maior fator de risco é a idade avançada – a demência. Os dados epidemiológicos indicam que a sín- drome demencial tem sua incidência relacio- nada ao envelhecimento, acometendo de 5% a 10% das pessoas acima de 65 anos, 20% das pessoas de mais de 80 anos, podendo chegar a 47% dos idosos com mais de 85 anos 1 . A demência é uma síndrome que compro- mete o raciocínio, a memória, a percepção, a atenção, a capacidade de conhecer e reconhe- cer, a linguagem e a personalidade. Ela torna o seu portador cada vez mais dependente, por se tratar de um quadro progressivo e irreversível. As incapacidades do doente limitam-no ini- cialmente e, por fim, impedem-no de realizar as mais simples tarefas da vida diária. Além do mais, dificultam cada vez mais o relaciona- mento com amigos, com o trabalho e com a fa- mília 2 . Do ponto de vista médico, até o momento, pouco se pode fazer no sentido de impedir ou reverter o quadro, conseguindo-se, no máximo, retardar a evolução da doença, quando o diag- nóstico é feito na fase mais inicial. Com a evo- lução da doença, a pessoa torna-se progressi- vamente dependente de cuidados familiares.
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Cuidando de idosos altamente dependentes na comunidade: um estudo sobre cuidadores familiares principais

Apr 23, 2023

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Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(8):1629-1638, ago, 2006

ARTIGO ARTICLE

Cuidando de idosos altamente dependentes na comunidade: um estudo sobre cuidadoresfamiliares principais

Caring for the highly dependent elderly in thecommunity: a study on the main family caregivers

1 Instituto de Psicologia,Universidade do Estado do Rio de Janeiro,Rio de Janeiro, Brasil.2 Universidade Aberta daTerceira Idade, Universidadedo Estado do Rio de Janeiro,Rio de Janeiro, Brasil.3 Faculdade de Enfermagem,Universidade do Estado do Rio de Janeiro,Rio de Janeiro.4 Departamento dePsicologia, PontifíciaUniversidade Católica do Rio de Janeiro,Rio de Janeiro, Brasil.

CorrespondênciaC. P. CaldasUniversidade Aberta daTerceira Idade, Universidadedo Estado do Rio de Janeiro.Rua São Francisco Xavier524, 10o andar, bloco F, sala10.150, Rio de Janeiro, RJ20559-900, [email protected]

Teresinha Mello da Silveira 1,2

Célia Pereira Caldas 2,3

Terezinha Féres Carneiro 4

Abstract

This study aims to contribute to a better under-standing of the main family caregivers of highlydependent elderly. Performed in a geriatric out-patient unit, the study used a content analysismethodology, and data were collected with in-terviews and 14 group sessions with 24 subjects.The following categories emerged: denial versusacceptance of the disease before and after diag-nosis; how and why the main caregiver assumesthis role; caregiver’s characteristics; caregiver’sexperiences; meanings ascribed to care-giving;history of the caregiver’s relationship to the el-der before the disease; caregiver/elder relation-ship since onset of the disease; changes in thecaregiver’s life; changes in the family; and caus-es for the appearance of the disease. In conclu-sion, there are three dimensions in the target is-sue: (1) implications of the legacies, multi-gen-erational transmission, repetition of the pat-terns, and myths and beliefs in each family sys-tem; (2) seniors as active participants in thecare-giving decision; and (3) the support groupas a key resource for the family.

Aged; Caregivers; Family

Introdução

Com o aumento da expectativa de vida, aumen-ta também a possibilidade de o idoso ser aco-metido por doenças de ordens diversas. O pre-sente estudo trata de uma patologia cujo maiorfator de risco é a idade avançada – a demência.Os dados epidemiológicos indicam que a sín-drome demencial tem sua incidência relacio-nada ao envelhecimento, acometendo de 5% a10% das pessoas acima de 65 anos, 20% daspessoas de mais de 80 anos, podendo chegar a47% dos idosos com mais de 85 anos 1.

A demência é uma síndrome que compro-mete o raciocínio, a memória, a percepção, aatenção, a capacidade de conhecer e reconhe-cer, a linguagem e a personalidade. Ela torna oseu portador cada vez mais dependente, por setratar de um quadro progressivo e irreversível.As incapacidades do doente limitam-no ini-cialmente e, por fim, impedem-no de realizaras mais simples tarefas da vida diária. Além domais, dificultam cada vez mais o relaciona-mento com amigos, com o trabalho e com a fa-mília 2.

Do ponto de vista médico, até o momento,pouco se pode fazer no sentido de impedir oureverter o quadro, conseguindo-se, no máximo,retardar a evolução da doença, quando o diag-nóstico é feito na fase mais inicial. Com a evo-lução da doença, a pessoa torna-se progressi-vamente dependente de cuidados familiares.

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Pode acontecer de a família ficar desorienta-da, ocorrendo paralisações e/ou conflitos no seiofamiliar até ela se reorganizar, surgindo do grupoum ou mais membros dispostos a cuidar. Nessasocasiões, a equipe de profissionais procura expli-car e esclarecer a necessidade de o paciente sercuidado e se coloca à disposição para dar o su-porte necessário, tanto para o familiar enfermo,quanto para as pessoas que vão cuidar dele.

Comumente não há indicação de institucio-nalizar o idoso. Portanto, é fundamental que afamília e a comunidade aprendam a conviver elidar com esta realidade: a existência de pes-soas em processo demencial.

Para além da assistência e da saúde, as múl-tiplas tarefas práticas, a atenção e o carinho dis-pensados ao doente, os fatores econômicos, ouso de transportes coletivos, a moradia, entreoutros, devem ser considerados primordial-mente no caso dos idosos doentes. Todos essesfatores oneram de diferentes maneiras os fami-liares, responsáveis primeiros pelos cuidados.Desse modo, podemos avaliar a grandeza daproblemática e justificar não só nossa preocu-pação com o paciente demenciado, mas tam-bém com as pessoas que lidam com ele.

É nesse contexto que, na prática assisten-cial, inserem-se os grupos de suporte aos fami-liares de pacientes com alta dependência. Es-ses grupos têm como meta ajudar os cuidado-res a terem um envolvimento construtivo como parente que adoeceu, sem abdicar de sua vi-da pessoal.

O presente estudo tem como objetivo geralcontribuir com subsídios teóricos e práticos pa-ra uma melhor compreensão de quem é o cui-dador principal, como surge e como é construí-da sua subjetividade. Como objetivos específi-cos, buscamos verificar que injunções estão en-volvidas na relação cuidador principal/familiarcom síndrome demencial e oferecer recursospara os profissionais que trabalham com famí-lias que têm idosos e/ou com cuidadores fami-liares em instituição de saúde.

Método

O estudo foi realizado no Núcleo de Atenção aoIdoso (NAI), unidade ambulatorial da Universi-dade Aberta da Terceira Idade, Universidade doEstado do Rio de Janeiro (UNATI/UERJ). Essaunidade conta com um grupo de suporte aosfamiliares cuidadores de pacientes com alto ní-vel de dependência, que é coordenado poruma enfermeira, um médico e uma psicóloga,reunindo-se reúne semanalmente. Os sujeitosdeste estudo são os participantes desse grupo.

Trata-se de um estudo transversal, com autilização de método qualitativo para análisede conteúdo 3. A coleta de informações se deupor meio de entrevista realizada com auxílio deroteiro semi-estruturado e em 14 sessões dogrupo de suporte. As entrevistas e as sessões dogrupo foram gravadas, mediante autorização eassinatura do termo de consentimento livre eesclarecido, sendo posteriormente transcritas.A pesquisa obedeceu à Resolução 196/96 e foiapreciada pelo Comitê de Ética em Pesquisa daUNATI/UERJ.

Os sujeitos do estudo foram os 24 cuidado-res principais de idosos com diagnóstico de sín-drome demencial, participantes do grupo de su-porte, dos quais sete são homens e 17 são mu-lheres. A idade variou entre 28 e 89 anos: 11 en-tre 28 e 49 anos e 13 entre 50 e 89 anos. Quantoao grau de parentesco, três são esposas; quatrosão maridos; três são filhos; nove são filhas (umaé adotiva); uma é neta; uma é nora; duas são ir-mãs e uma é sobrinha. Dez cuidadores traba-lham fora e 14 não trabalham; 12 contam coma ajuda de acompanhantes profissionais. Arenda familiar varia entre 2 e 25 salários míni-mos: 14 cuidadores têm renda entre 2 e 10 sa-lários; dez têm renda entre 12 e 25 salários.Uma cuidadora é analfabeta; sete completa-ram o ensino fundamental; quatro têm ensinomédio e 12 têm nível universitário.

Resultados e discussão

Utilizando o método de análise de conteúdo 3,fizemos uma primeira leitura completa do ma-terial transcrito. Depois relemos cada entrevis-ta, registrando a freqüência de surgimento dasunidades de registro. A dinâmica própria dogrupo de suporte ofereceu dados que permiti-ram verificar a relevância dos temas expressosnas entrevistas. Pelos dados colhidos das en-trevistas e nos grupos, verificamos em quecontextos surgiam os temas, emergindo delesas seguintes categorias que serão discutidas aseguir: negação versus aceitação da doença an-tes e depois do diagnóstico; como e por quesurge o cuidador principal; características docuidador; vivências do cuidador; significadosdo ato de cuidar; história do relacionamentodo cuidador com o idoso antes da doença; re-lacionamento cuidador/idoso após a doença;mudanças na vida do cuidador principal; mu-danças na família; causas para o surgimento dadoença.

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Negação versus aceitação da doença antes e depois do diagnóstico

A comunicação do diagnóstico sempre causaimpacto nos familiares. Muitos cuidadores fi-cam surpresos com a informação e esperam ouque o diagnóstico esteja errado e exista algumapossibilidade de reversão, ou que ocorra umaespécie de “milagre”. Dos 24 entrevistados, 21se recusaram inicialmente a aceitar a doençaao serem informados do diagnóstico.

“Eu não acreditei, eu perguntei: Dr., eu possoacreditar no que o Sr. está me dizendo? Não épossível. Ele está tão sadio!” (Dilma, esposa, 63anos).

Apesar de no início ser difícil aceitar ou mes-mo perceber os sintomas, com a evolução dadoença as pessoas passam paulatinamente aaceitar o quadro, embora essa aceitação nãoseja total em nenhum dos entrevistados.

As sessões gravadas do grupo de suportemostram que, na população investigada, a par-ticipação no grupo colabora para que a doençaseja aceita mais facilmente, porque não só ou-tros membros partilham da mesma problemá-tica e a doença não fica tão estigmatizada, co-mo também as intervenções dos coordenado-res facilitam a aceitação do quadro patológico,objetivando um melhor relacionamento entreo cuidador e o sujeito cuidado.

“É sempre difícil você aceitar que a sua mãeestá assim, não é? Eu cada vez chamo mais gen-te para vir para cá. Não tem problema, não é? Édifícil, eu ainda acho difícil, mas eu estou mui-to mais feliz. Eu estou aceitando muito melhor!”(Geórgia, filha, 48 anos).

Como e por que surge o cuidador principal

Os entrevistados alegam diferentes motivos pa-ra estarem no lugar de cuidador principal.

Os cônjuges alegam que têm de cuidar. Mos-traram-se surpresos com a pergunta que fize-mos e entendemos, por diversos indícios nosrelatos, que eles cuidam em decorrência doacordo que fizeram, no casamento, de um cui-dar do outro. Em seu relato identificamos oscontratos, as promessas feitas no altar por oca-sião do matrimônio e as marcas de uma épocaem que a maioria dos casais se mantinha juntoaté a morte 4.

“Então eu procedi em termos da nossa situa-ção de marido e mulher, quer dizer, um cuidan-do do outro (...) Em decorrência da ligação quetinha com ela, automaticamente surgiu a ques-tão da pessoa cuidadora, não por ser a minhamulher, mas uma questão normal de cuidados,de um tratamento (...) É uma troca que existe no

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casal, embora meus filhos sempre procurem aju-dar” (Antônio, marido, 78 anos).

Os filhos justificam-se pelo lugar que ocu-pam na família. Um porque é o filho mais velho,outro porque é o líder, outro porque é solteiro,uma porque é a filha mais nova, outros porqueforam abandonados. Constatamos que o con-flito em torno de quem vai cuidar ocorre maisentre os filhos, visto que os esposos sentem-sena obrigação de cuidar. Contudo, não observa-mos grandes dificuldades no surgimento docuidador principal entre os sujeitos entrevista-dos. Somente uma filha, uma nora e uma irmãtiveram um outro parente cuidando antes de-las, mas todas três não são contra o papel quehoje assumem. Os outros, embora reclamandopor vezes da falta de apoio dos parentes, torna-ram-se cuidadores principais desde o início.

Não observamos, entre os entrevistados, quealgum deles tenha se tornado cuidador princi-pal por falta de opção. Ser cuidador principalimplica um processo que envolve todo o siste-ma familiar, desta maneira existe todo um mo-vimento na família que vai influir na decisão dequem vai cuidar. Os entrevistados acham queeles é que teriam que cuidar. Não importandopor que razão, em todas as entrevistas consta-tamos as dívidas de reciprocidade, alguns lega-dos, transmissões geracionais, os mitos, as re-gras, as características comuns ao cuidador eos acordos implícitos 5,6.

Constatamos que o papel de cuidador é cons-truído no relacionamento, com a influência dediversos fatores referentes à história familiar.Dentre os entrevistados, vinte sabiam que ocu-pariam esse lugar e passaram a cuidar tão logoo familiar precisou de atenção. Isso indica que,de alguma forma, esse papel já estava imagina-do ou predeterminado. Ademais, existe umatendência de os padrões familiares se repetiremem virtude das transmissões geracionais 6,7.Não só as expectativas, mas também os confli-tos são transmitidos multigeracionalmente 5.

“Na nossa família é sempre o mais velho quecuida. Minha mãe é a mais velha e cuidou daminha avó e eu já vejo na minha filha todo ojeitinho para cuidar. Ela é muito minha amiga,me ouve, me compreende, sempre foi acostuma-da com velhinhos...” (Luíza, nora, 37 anos).

Dez entrevistados (não cônjuges) disseramque os familiares cuidados os elegeram comocuidadores. Esses participantes corroboram ahipótese de que a escolha é mútua, principal-mente se levarmos em consideração que, alémdeles, os sete cônjuges entrevistados, achamque um deve cuidar do outro. Estes dados sãobastante significativos, mas carecem de estu-dos transgeracionais mais aprofundados.

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“Eu sei que seria eu, foi uma escolha dela.Minha irmã no domingo até falou: ‘Ah! É por is-so, não é? Você quer que ela fique com você por-que você é muito paparicada. A comidinha quevocê gosta, o suquinho’...” (Cibele, filha, 47 anos).

Alguns sujeitos afirmam que nunca foi con-versado em família sobre quem iria cuidar.Constatamos a combinação de elementos fa-miliares, situacionais, de personalidade e só-cio-culturais influindo no surgimento do cui-dador principal 8.

No grupo, essa categoria emergiu nos mo-mentos em que os participantes relatavam co-mo decidiram ser cuidadores, o que aconteceuna família para o familiar tornar-se cuidadorprincipal, a preferência do familiar sobre quemiria cuidar. Observamos que, na tentativa decompreender melhor por que eles estão nestepapel, este tema muitas vezes vem sob a formade pergunta.

Características do cuidador

Nesta categoria verificamos que a maior partedos cuidadores é de mulheres, o que reflete umdado da nossa cultura 9,10.

As entrevistas mostraram que 16 cuidado-res são pessoas decididas, que buscam solucio-nar problemas, que fazem muitas coisas aomesmo tempo e que se acham as melhores na-quilo que fazem. Essas características ficammais evidentes nas mulheres.

“Porque é assim, a minha mãe sempre achouque eu sabia me virar melhor. É porque eu souassim, se eu preciso de uma coisa e não posso ter,eu vou me virar, mas vou conseguir ter. Eu já tedisse que eu sou uma lutadora, não é?” (Regina,filha, 51 anos).

Dos sujeitos entrevistados, 15 cuidadoresnão pedem ajuda por acharem que não devem,por acharem que sabem cuidar melhor, ou poracharem que os outros deveriam saber que têmque ajudar 9.

“Não, eu não vou pedir. Eu não vou acredi-tar que alguém vai cuidar dela direito, do jeitoque ela gosta, do jeito que ela quer. Eu a conhe-ço, eu sei a hora certa de dar uma bronquinha,entendeu? Ela caminha, fala, faz as coisas por-que eu forço...” (Olívia, sobrinha, 55 anos).

Dezessete entrevistados são pessoas que sedizem e/ou demonstram de diversas formasque são prestativas, disponíveis, solidárias. Per-cebemos esses aspectos também quando con-vidamos os cuidadores para participar das en-trevistas. O esforço para fornecer dados, a pron-tidão em atender à solicitação, o interesse emparticipar, corroboram o que eles falam e de-monstram no ato de cuidar. As sessões de gru-

po também deixam transparecer esses atribu-tos utilizados para ajudar os companheiros. Doisdos sujeitos entrevistados se disseram submis-sos e alegam que cuidam porque sempre se sub-meteram ao autoritarismo da pessoa cuidada.

“Até hoje parece que eu a ouço dando ordensna minha vida e eu tenho que cumprir. E olhaque eu já estou bem melhor...” (Cibele, filha, 47anos).

Ser capaz de perceber o que o outro precisa –ter sensibilidade – é uma característica que foimais identificada nos relatos do que explicita-da pelos cuidadores.

“Eu já sei quando ela quer ir ao banheiro,quando ela quer comer, a posição do corpo delame diz se ela está tristinha. Às vezes ela quer meenganar, mas eu olho para ela e vejo logo: ‘O queque é isso, tia? O que que você pegou aí?’ Eu jásei que é doce, e ela não pode comer...” (Olívia,sobrinha, 55 anos).

As características do cuidador principal tor-nam-se evidentes não só no que é falado, comonas atitudes no grupo. No intercâmbio entre oscomponentes, podemos observar: habilidades,sensibilidade, empatia. São características queparecem fazer parte da personalidade de quemcuida, mas tomam mais expressão no ato decuidar. Sendo assim, cuidar também é uma ma-neira de se auto-realizar. A auto-realização éabordada pelos entrevistados como uma formade dar significado ao ato de cuidar.

Vivências do cuidador

A análise desta categoria nos permitiu verificaros sentimentos, os estados de espírito e a for-ma como os cuidadores experimentam inter-namente e expressam o ato de cuidar. Entre ossujeitos investigados, cuidar de um familiar quedemenciou mobiliza muitos sentimentos anta-gônicos em curto espaço de tempo: amor e rai-va, paciência e intolerância, carinho, tristeza,irritação, desânimo, pena, revolta, insegurança,negativismo, solidão, dúvida quanto aos cuida-dos, medo de ficar doente também, medo de opaciente estar sofrendo, medo de o pacientemorrer. Dessa maneira, tanto nas entrevistas,quanto nas sessões de grupo, seus relatos sãoora muito otimistas, ora muito pessimistas.

“É um sofrimento ver minha mãe decair. En-carar essa decadência, não sei... é o lado triste,tomar consciência que ela pode morrer, que euposso morrer. Eu nunca tive esse cuidado com avida, eu acho que ainda não estou preparada,mas eu pensei que minha mãe pode morrer e fi-quei com muito medo” (Geórgia, filha, 48 anos).

Contudo o sentimento mais comum foi aculpa, relatada e/ou expressa por 21 sujeitos.

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Todos disseram que se sentem muito culpados,seja pelo sofrimento do paciente, seja por nãoconseguir cuidar com tranqüilidade. As pes-soas entrevistadas estão muito presas aos con-ceitos de certo e de errado, revelando sentimen-tos de dívida e/ou de culpa para com a pessoacuidada. Essa avaliação é freqüente quandouma pessoa tem que tomar conta de alguém.Quando se julga falhando em alguma coisa, apessoa sente-se culpada. A culpa relacionada aparentes próximos pode ser resultado da eclo-são de sentimentos negativos em relação aopaciente que agora está mais fragilizado. Podeser, ainda, decorrente de questões não resolvi-das no relacionamento do cuidador com a pes-soa cuidada, anteriores à doença.

Os cuidadores relatam cansaço, desgaste,revolta, depressão e somatizações. São pessoas,na sua grande maioria, com mais de quarentaanos, e alguns, mesmo antes do encargo de cui-dar, já apresentavam doenças crônicas. Doiscuidadores têm câncer e estão bem debilita-dos. O risco de agravamento das doenças de-corrente do desgaste relativo às muitas ativida-des desenvolvidas pelo cuidador de idosos de-pendentes foi alvo de vários estudos 10,11,12.

Embora cuidar possa ser sofrido, a evolu-ção da doença e a aceitação da nova realidadepodem conduzir a mudanças. Alguns cuidado-res relatam que passaram por várias etapas eque hoje são outras pessoas.

“Agora eu estou vivendo outra coisa, outromomento. Primeiro eu não aceitava de jeito ne-nhum e achava injusto o que estava acontecen-do comigo e isto me deixava mais cansada, maisesgotada, porque eu achava que ela estava mecastigando: ‘Agora o seu último castigo é cuidar!’Hoje é diferente, é uma mágica que aconteceu,eu passei a fazer tudo com mais alegria e tudomudou e ela também mudou. Eu me sinto maisfeliz, mais leve, fico cansada ainda, mas é dife-rente...” (Geórgia, filha, 48 anos).

Como nas entrevistas individuais, as ques-tões sobre o que sentem, que sintomas apre-sentam, emergiram com constância nas sessõesgrupais, nas formas mais variadas. No grupo,entretanto, aparece como um pedido de ajuda.É importante chamar a atenção para este fatoporque notamos que as experiências internasdo cuidador são revistas, pensadas e (re)expe-rimentadas nas sessões. Dessa forma, pude-mos mais facilmente perceber as mudançasoperadas com as pessoas que cuidam, no de-correr do tempo.

Constatamos, em diversos membros do gru-po, mais otimismo, bom humor, alegria, menosangústia, apesar de persistirem sentimentos detristeza, cansaço, dúvida e medos de várias or-

dens. Essas mudanças apontam para a legiti-midade do suporte grupal para cuidadores depessoas idosas com alto nível de dependência.

Significados do ato de cuidar

A dor, a dificuldade, as preocupações referen-tes ao ato de cuidar conduzem à busca de umsignificado para esse ato. É importante signifi-car o sofrimento para aprender e crescer doponto de vista existencial. Crescimento, grati-dão, doação, amor, dever, reparação, obriga-ção, elaboração de conflitos, resgate de omis-sões, troca, suprir necessidades de carinho oude amor, missão, descobrir potencial, aprendi-zado, vontade de Deus, são significados que osnossos entrevistados deram para o cuidar.

“Cuidar é o crescimento comum, o cresci-mento espiritual, é ter ímpeto” (Geórgia, filha,48 anos).

No caso dos cônjuges homens, observamosque eles são muito gratos às mulheres por te-rem cuidado dos filhos enquanto eles trabalha-vam, por terem cuidado da casa. Significar ocuidado como dívida de gratidão, nesses casos,faz-nos pensar que o papel de dona de casa eravalorizado e caracteristicamente feminino, de-notando, assim, as marcas de uma época 4,9.

Consideramos que significar o cuidar é ummecanismo de sublimação, por isso eles exal-tam, tornam sublime o cuidado. Quando os cui-dadores sublimam, seguem adiante com maisfacilidade. Os nossos entrevistados mostraram,mais especificamente nesta categoria, a forçaque têm os preceitos morais e religiosos parasignificar o cuidar. Os depoentes confirmampesquisas 10,13 sobre a importância da espiri-tualidade e da religião para ajudar a enfrentaras dificuldades inerentes ao cuidar, ao mesmotempo em que ambas dão um sentido à vida.Constatamos, em muitos entrevistados, a ne-cessidade de ter um sentido de vida pautadoem seus próprios valores, para interpretarem eavaliarem suas experiências. Significar torna oato de cuidar um sentido.

Esta categoria apresentou um aspecto cu-rioso na dinâmica grupal. O grupo é como umacaixa de ressonância. A vulnerabilidade de umecoa na vulnerabilidade do outro. Se um parti-cipante está mais fragilizado, os outros ficamangustiados porque deparam com a sua pró-pria fragilidade. Assim, quando eles dão um sig-nificado para um companheiro, estão dandopara eles também. No grupo de suporte, algunscuidadores relataram o quanto eles melhora-ram como pessoas quando passaram a cuidar.

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História do relacionamento do cuidador com o idoso antes da doença

No grupo estudado, 17 entrevistados disseramter bom relacionamento com a pessoa cuidadaantes da doença. As histórias são longas e de-talhadas. Vejamos um fragmento no qual pode-mos verificar o cuidar como dívida de recipro-cidade 14:

“Bem, como casal nós sempre nos demosbem, eu até falo para ela: ‘Se hoje eu tivesse quecasar de novo, eu ia casar com você. Mas ela pa-rece que não entende mais o que eu digo. Eusempre trabalhei muito (...) Quase não paravaem casa (...) ‘correndo atrás’, sabe? Ela que davaconta de tudo, cozinhava muito bem. Eu brincodizendo que era quase igual à minha mãe. Ago-ra ela não consegue fazer nem a comida. Criouos três filhos, todos os três se formaram (...) Nãotinha briga nem confusão. Hoje sou eu que façotudo para ela...” (Heraldo, esposo, 71 anos).

Os sete cuidadores que relataram conflitosno relacionamento, antes de o familiar adoe-cer, são filhos. Observamos neles a tentativa deatualização de antigos conflitos, tentativas dereparação e de resgate. Por vezes, a tentativa deresolver antigos conflitos dificulta ver o com-portamento do paciente como sintoma da do-ença, e esses cuidadores dão a impressão deestarem, em parte, vivendo um tempo já pas-sado. No relacionamento familiar, o passado eo presente podem se misturar, sem que seusmembros se dêem conta, na tentativa de reso-lução de antigos conflitos, os quais podem seraté transmitidos intergeracionalmente 5.

A história do relacionamento mostrou-sebastante importante para compreender não sóo surgimento, mas a construção da subjetivi-dade do cuidador, na medida em que ela se fazno relacionamento com a pessoa cuidada. Per-cebemos que os relacionamentos, anteriormen-te à doença, já apontavam quem seria o cuida-dor e como cuidaria.

Esta categoria surgiu nos encontros do gru-po de suporte somente quando um participan-te associava fatos da sua história passada ao re-lacionamento atual com a pessoa cuidada, oucom os outros familiares. Desse modo, os par-ticipantes não se aprofundavam na história dorelacionamento, até mesmo porque este não éo objetivo desse tipo de grupo. Nas entrevistasindividuais, ao contrário, a história do relacio-namento foi o assunto em que os participantesmais se estenderam.

Relacionamento cuidador/idoso após a doença

O relacionamento do cuidador com o parentecuidado foi descrito como bom, segundo 19entrevistados. Eles se referem ao esforço paradar carinho, compreender, estimular, emboratenham momentos de impaciência, desânimoe cansaço.

“Eu tenho muito carinho, amor, eu aprendia dar amor. A minha irmã dá presentes. Tudodela é o dinheiro. Ela nem liga, ela quer é amore ela sente (...) A gente pensa que ela não sente,mas ela sente” (Cibele, filha, 47anos).

No entanto, os cuidadores têm dúvidas so-bre se estão se relacionando bem ou não com opaciente, e isso ocorre em virtude de suas vivên-cias subjetivas, na medida em que experimen-tam internamente sentimentos antagônicos emuita culpa, como já vimos. É comum falaremem se dar sem ter retorno. O comportamentoagressivo de alguns pacientes, por vezes, exas-pera os cuidadores, e estes lamentam por nãoserem reconhecidos pelo esforço que fazem.

Dentre os filhos com dificuldades no rela-cionamento com o doente, três falam em epi-sódios de agressão física (sacudidas e tapas) edois relatam agressão verbal ocasional. Ne-nhum deles, entretanto, deixa de ser solidáriono cuidar, sendo as agressões esporádicas, dei-xando os agressores muito culpados.

“Eu reajo, reajo sim, porque a gente perde apaciência, ela testa a gente, testa além do limite,porque ela fica agressiva, me irrita, eu fico ner-vosa...” (Fernanda, filha, 49 anos).

Quando a pessoa se sente obrigada a cui-dar, a dívida de reciprocidade desperta senti-mentos ambíguos, que podem conduzir à agres-são 14. No entanto, não podemos esquecer queos comportamentos anti-sociais do sujeito de-menciado desestabilizam emocionalmente ocuidador, o qual se descontrola reagindo comviolência. É possível que este esteja sobrecar-regado física e psicologicamente, carecendo deapoio de diferentes ordens. Segundo os depoen-tes, os relatos de violência ocasional acontece-ram em horas de desespero.

Os familiares cuidados também apresen-tam alterações de humor e têm, algumas vezes,reações intempestivas, violentas, atirando ob-jetos, batendo no cuidador, gritando ou xin-gando. O apoio da família, dos amigos e dosprofissionais é muito importante, principal-mente nesses momentos 11,12.

Um aspecto intrigante dentro desta catego-ria refere-se a como a pessoa cuidada se rela-ciona com o seu cuidador. A par de todas as di-ficuldades que possam existir no relaciona-

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mento, e da perda de contato com a realidade,a pessoa que demenciou cria um laço de de-pendência forte com o cuidador e conta comele para tudo, não querendo que ninguém maisa acompanhe. Talvez o cuidador seja a únicapessoa com quem ela interage e com quem,mesmo com todas as dificuldades que possater, busca uma relação pessoal e não uma rela-ção de uma pessoa para com um objeto dodiagnóstico.

Diferentemente das entrevistas individuais,cujos relatos apontaram para um relaciona-mento com poucos conflitos, as situações deimpasse aparecem mais nas sessões de grupo.Os participantes se atêm mais aos impasses nogrupo porque sabem que ali é o lugar em queeles podem redimensionar e elaborar melhoros conflitos relacionais.

Mudanças na vida do cuidador principal

Muitas mudanças práticas ocorrem na vida docuidador 11,15. A adaptação do ambiente físicofoi um tema bastante freqüente e abarca a mu-dança do paciente para a casa do cuidador, amudança do cuidador para a casa ou para per-to do paciente e as reformas para criar um am-biente propício para uma pessoa com demên-cia. Alguns cuidadores sentem-se invadidoscom a presença de um acompanhante.

“É aquela gente toda dentro de casa e é co-mida e é bebida e mudam as coisas de lugar...Eu sei que eu preciso, mas tem hora que me dávontade de chutar tudo. ‘Vai embora, eu nãoquero mais vocês aqui!’ [chora] Parece que a ca-sa não é minha...” (Julieta, esposa, 70 anos).

Os entrevistados enfatizaram também a in-versão de papéis, o que implica a mudança decomo eles se viam anteriormente. Entretanto,mais do que qualquer outra mudança, e quetem a ver com a mudança de papéis, a preocu-pação constante com o parente cuidado foi oque os entrevistados abordaram com mais fre-qüência. Este parece ser um aspecto que des-gasta muito os cuidadores e que indica o quan-to eles estão circunscritos ao papel que desen-volvem. Pelo fato de as atitudes do paciente se-rem imprevisíveis e também por as pessoas quecuidam não se tranqüilizarem quando outro es-tá cuidando no seu lugar, elas ficam o tempo to-do preocupadas com o que possa estar aconte-cendo com o parente, alvo dos seus cuidados.

“Tenho um psicólogo que diz: ‘Vai, vai ao ci-nema (...)’ Eu sei que todo mundo vai, sai. Mepergunta se eu vou? Não vou, não quero ir, nãome interessa. As obrigações que eu tenho eu fa-ço: vou na rua toda hora, vou ao meu médico,mas só de ver ele assim tão paradinho não me

dá vontade de fazer mais nada. Minhas filhasfalam: ‘Mãe, você ainda não se acostumou?’ ‘Fi-lha, podem passar vinte anos que o meu amor, aminha paixão (...) Eu queria dividir o que eletem comigo...” (Julieta, esposa, 70 anos).

Nas sessões de grupo, esta categoria deixoumais claros elementos que quase não foramabordados nas entrevistas individuais. Dentreas mudanças na vida pessoal, as perdas econô-micas e o relacionamento com um ajudante ouum acompanhante profissional foram bastantecomentados, juntamente com as outras mu-danças já discutidas na análise desta categoria.Sobre o relacionamento com os acompanhan-tes foram apontados aspectos positivos por al-guns, como a divisão das tarefas, a importânciade ser alguém que não está tão envolvido como portador da doença e o conhecimento técni-co para cuidar.

Outros cuidadores referiram-se mais aos as-pectos negativos, como os gastos extras, a pre-sença de estranhos em casa, a necessidade deestarem atentos para ver se o acompanhantenão vai maltratar o paciente.

Mudanças na família

A análise desta categoria evidencia os transtor-nos no relacionamento dos familiares quandoum de seus membros adoece. As pessoas lidamcom a eclosão e o prosseguimento da doençapautadas por crenças, mitos, normas e papéisestabelecidos, que concorrem para a dinâmicade cada família em particular. Em certas famí-lias, a regra é dividir as responsabilidades; emoutras, é obrigação cuidar dos pais; em outras,os velhos atrapalham, e assim por diante. Con-siderando a atual pluralidade de modelos defamília, as reações são as mais variadas e refle-tem também as demandas econômicas e sócio-culturais.

“Eu e a T. [irmã] sempre fomos assim: umaajuda a outra. A mamãe ia trabalhar e a gentesempre contou uma com a outra. Mas como eute disse, a T. não tem dinheiro. Eu ainda ajudoela. Então eu arco com as responsabilidades ecom as despesas. Para você ter uma idéia, estemês só, eu gastei mais de R$ 1.500,00 com a ma-mãe. Mas a T. me ajuda em tudo. A gente com-bina, quando uma não pode a outra vai. Agora,o resto da família...” (Fernanda, filha, 49 anos).

Onze entrevistados queixaram-se do afas-tamento dos outros parentes. As reclamaçõesgiravam em torno da falta de participação nastarefas e de auxílio econômico. Alguns entre-vistados já tinham dificuldade no relaciona-mento com os outros parentes, mas a maioriarelata, com surpresa, os impasses que surgiram

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no âmbito da família a partir do momento emque souberam que a pessoa que demenciouprecisava ser cuidada.

O sentimento de solidão experimentadopelos cuidadores parece estar ligado ao fato deeles acharem que não devem pedir ajuda, mes-mo quando estão assoberbados com as tarefas.Se um membro da família, por característicaspessoais, oferece ajuda, eles ficam agradecidos,mas não recorrem aos outros familiares.

A mudança no sistema familiar causa crisese pode trazer rupturas. O ritmo de vida da fa-mília é atropelado pela doença 16. A adaptaçãoa essa nova situação não se faz imediatamentee, algumas vezes, é necessária a mediação deum profissional.

Quando a rede de interações já é conflituo-sa antes da doença, ou a harmonia da famíliadeve-se a um contato formal ou distante, ou,ainda, quando nas normas da família não ca-bem negociações e acordos explícitos, a divi-são das tarefas fica mais difícil e surgem res-sentimentos e desavenças.

Verificamos nesta categoria aspectos comocompetição entre os irmãos, disputa pelo amordos pais, falta de diálogo franco, afastamentode alguns membros, alianças com uns e exclu-são de outros parentes. As doenças na famíliapodem desencadear essas questões. O sistemafamiliar, pela vulnerabilidade de seus mem-bros que ainda não se estabilizaram depois dasmudanças de papel e da quebra do equilíbrio,torna-se um terreno fértil para a eclosão de umaverdadeira crise, o que aumenta consideravel-mente o risco de disrupção. Esse estágio é tem-porário, e nas famílias mais saudáveis tende asurgir um outro equilíbrio a médio prazo 17. Per-cebemos, em mais de metade dos entrevista-dos, esse estado de crise.

Esta categoria surge no grupo como um dostemas com maior carga emocional. Os conflitoscom e entre os familiares, as omissões, o afasta-mento e as rupturas deixam os cuidadores mui-to mobilizados. A falta de franqueza para evitaro confronto emocional, a longo prazo, dificultao ajustamento. Nesses casos, nas terapias fami-liares, deve ser estimulada a comunicação fran-ca entre as pessoas envolvidas 17. Nessa ótica, otrabalho no grupo de suporte deve considerar aresponsabilidade do cuidador que se cala dian-te dos demais familiares e se queixa no grupo,questionando sobre as impossibilidades deuma comunicação direta com os parentes e le-vando-os a compreender que eles também es-tão se omitindo quando não falam.

Causas para o surgimento da doença

Esta categoria aponta para uma preocupaçãointensa de alguns sujeitos com o que teria cau-sado a doença no familiar. Os sujeitos que semostraram mais objetivos detiveram-se nas di-mensões fisiológicas, genéticas e de heredita-riedade. Interessam-se por tudo que é publica-do sobre o quadro patológico, e a participaçãode um deles no grupo de suporte é mais nosentido de obter esclarecimentos e de transmi-tir informações.

“Desde que eu soube que minha mãe estavadoente, eu tratei de conhecer tudo sobre o as-sunto. Já freqüentei vários grupos diferentes,leio tudo que sai sobre Alzheimer. Não adiantaficar só preocupado com o doente, tem que terconhecimento. Tem que se informar. Eu achoque o que eu posso dar de melhor para a minhamãe é uma pessoa que tenha experiência sobreo assunto. Não adianta a gente cuidar sem sa-ber o que é melhor. Uma enfermeira, por exem-plo, pode ajudar muito mais do que eu. Eu nãovou deixar de dar atenção, de ver o que ela pre-cisa, mas não sou eu, um leigo, que vou cuidar”(Carlos, filho, 42 anos).

Para esses cuidadores, embora sejam pes-soas preocupadas com os parentes que preci-sam ser cuidados, o conhecimento técnico deum profissional é mais importante para o pa-ciente do que o contato afetivo.

Compreender melhor a doença dá mais se-gurança, maior senso de controle e aponta paraduas direções. Uma delas é ter uma explicaçãológica, que não envolva o cuidador, ou seja, adoença nada tem a ver com o relacionamento de-le com a pessoa cuidada. A outra direção apontapara a possibilidade de tratamento ou de cura.

O desejo dos cuidadores de saber por que oseu familiar demenciou toma outra dimensãono contexto do grupo. Acreditamos que, comoos coordenadores são profissionais especialis-tas voltados para a saúde dos idosos e, no ima-ginário dos participantes, com conhecimentopara responder às questões referentes à origemda doença, o grupo torna-se um lugar propíciopara esse tipo de questionamento 18.

Considerações finais

Quando uma síndrome demencial atinge ummembro da família, todo o sistema familiar éatingido. Saber quem é o cuidador principal,como e por que ele surge no sistema familiar éum dado importante e carente de investigação.

Os dados revelaram três dimensões muitosignificativas da questão estudada. A primeira

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delas mostra as implicações dos legados, dastransmissões multigeracionais, das repetiçõesdos padrões, dos mitos e das crenças caracte-rísticos de cada sistema familiar, o que contri-bui não só para o surgimento do cuidador prin-cipal, mas também para o papel que cada mem-bro ocupa dentro da família.

A nova arrumação de papéis, decorrente damudança no ritmo de vida da família ou do sur-gimento de uma doença, não se faz sem crise,pois desequilibra a estabilidade familiar, umavez que são postos em xeque esses mesmos mi-tos, padrões e crenças.

Assim, vemo-nos diante da necessidade denos aprofundarmos em estudos transgeracio-nais com as famílias dos idosos. A verificaçãode como esses modelos são passados, incorpo-rados e transformados pelo grupo, de forma amanter, ou não, as regras que delimitam deter-minado sistema familiar, dará maior sustenta-ção ao trabalho com as famílias que tenhamidosos sadios ou doentes.

A segunda dimensão destaca o subsistemacuidador/idoso demenciado. Essa dimensãoindica que, nesse subsistema, o familiar que éalvo de cuidados também é um participanteativo na decisão de quem vai cuidar dele, oraaceitando, caso o cuidador seja aquele que elequer, ora reagindo, até que tenha o cuidadorque deseja.

Sobre esse aspecto, é importante que sejamrevistos os conceitos sobre o idoso demencia-do. É preciso escutá-lo e compreendê-lo, paraque a relação do cuidador com a pessoa cuida-da seja construtiva para ambos. É necessário

que os profissionais conheçam e desenvolvamhabilidades de comunicação não verbal paradar esse suporte ao cuidador.

A terceira dimensão demonstra o quantoum grupo de suporte, com uma proposta deoferecer recursos para além das informações eesclarecimentos, pode ser importante para osfamiliares que cuidam de idosos com alto nívelde dependência. As sessões gravadas do grupode suporte reforçaram muitas das colocaçõesfeitas nas entrevistas individuais. No contextodo grupo, elas emergem de forma peculiar, ten-do em vista a dinâmica própria do processogrupal.

Pelos dados colhidos, neste e em outros es-tudos, identificamos que a maneira como osfamiliares cuidam está ligada a como conce-bem o ato de cuidar. O grupo investigado apon-ta para as possibilidades de mudança dos par-ticipantes, elaborando e (re)significando o cui-dado. A elaboração e a (re)significação rever-tem-se em benefícios para o cuidador, para apessoa dependente e para os familiares que nãoestão participando, visto que o relacionamentode quem cuida não muda em uma só direção.

Ao destacar esse último aspecto, considera-mos a necessidade de aprofundamento dos es-tudos referentes ao apoio fornecido na dinâmi-ca grupal. O apoio formal deve incluir os gru-pos de suporte, e estes carecem de uma funda-mentação teórica e metodológica consistentespara assegurar a prática daqueles profissionaisque se dispuserem a trabalhar com cuidadoresfamiliares.

Resumo

O presente estudo tem como objetivo contribuir parauma melhor compreensão do cuidador familiar prin-cipal de idosos altamente dependentes. Realizado emuma unidade ambulatorial, utilizou-se o método deanálise de conteúdo. Os dados foram colhidos atravésde entrevista e em 14 sessões de grupo com 24 cuida-dores principais de idosos com diagnóstico de demên-cia, emergindo as seguintes categorias: negação versusaceitação da doença antes e depois do diagnóstico; co-mo e por que surge o cuidador principal; característi-cas do cuidador; vivências do cuidador; significadosdo ato de cuidar; história do relacionamento do cui-dador com a pessoa cuidada antes da doença; relacio-

namento cuidador/idoso após a doença; mudanças navida do cuidador; mudanças na família; causas parao surgimento da doença. Concluiu-se que existem trêsdimensões na questão estudada: (1) há implicaçõesdos legados, das transmissões multigeracionais, dasrepetições dos padrões, dos mitos e das crenças carac-terísticos de cada sistema familiar; (2) o idoso tambémé um participante ativo na decisão de quem vai cui-dar dele; (3) o grupo de suporte é um recurso muitoimportante para os familiares.

Idoso; Cuidadores; Família

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Recebido em 25/Fev/2005Aprovado em 06/Dez/2005

Colaboradores

T. M. Silveira trabalhou na concepção da pesquisa, nacoleta e análise dos dados, na pesquida bibliográficae na redação. C. P. Caldas trabalhou na redação e re-visão do texto. T. F. Carneiro trabalhou na pesquisa.