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Este foi o primeiro livro que escrevi na vida. Finalizei a estória em 2005. A trama acontece na Belém de 1930, com alguns momentos focados na feira do Ver-O-Peso. Em Cuia D'Água, mesclo ficção e fatos reais acontecidos em épocas remotas, na Belém do Pará dos meados da década de 1930.
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CUIA DAGUA romance

Jan 28, 2023

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Page 1: CUIA DAGUA romance

Este foi o primeiro livro que escrevi na vida. Finalizei a estória em 2005. A trama acontece na Belém de

1930, com alguns momentos focados na feira do Ver-O-Peso. Em Cuia D'Água, mesclo ficção e fatos reais

acontecidos em épocas remotas, na Belém do Pará dos meados da década de 1930.

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CAPÍTULO UM: Das Pessoas.

NEGRA BALBINA era vendedora de ervas. Mantinha uma banca na movimentada feira do Ver-

O-Peso. Esta senhora era bastante requisitada para curar problemas relacionados a paixões de toda

sorte, maus olhados e toques do malefício... mulher vivida, bastante experiente. Possuía muitos anos de

acurados estudos e aprendizagens dos cânticos e feituras de banhos de ervas, defumarias outras e

misturas cotidianas; estudos esses transmitidos oralmente pela sua bisavó – filha legitima da mãe

África. “Nhêga” Balbina, como era carinhosa (e respeitosamente) conhecida em toda região da vendaria

do Ver-O-Peso, dizia que ainda muito menina fora escolhida por sua bisavó para as aprendizagens,

“porque veio pré-destinada pelos orixás e guias deste povo”, como mencionava sua bisavó Ambrósia do

Chaco.

Até os vinte anos de idade Balbina não conseguia assegurar-se em sono noturno. Era

perseguida pelas “sombras”. Copiosas e densas aparições queriam impedir que se perpetuasse a

tradição mística deste povo negro em terras distantes de sua origem. Mas nhêga Balbina resistiu a essas

tentações escarlates de escaravelhos, pois seu destino seria passar a vida levando Luz a todos que dela

buscassem.

Certa vez sua bisavó dissera-lhe que não importava como era o candeeiro seguro pelo passante,

importava somente se a Luz que carregava, brilhava o suficiente para ajudar na difícil travessia, a noite

profunda das incertezas humanas. “Quase todas as pessoas são como pequenos barcos jogados à

correnteza, eles necessitam de um farol para guiá-los até um porto seguro: os seus próprios corações...”

– dizia a velha acorcundada Ambrósia, à sua netinha.

Os pesadelos da jovem Balbina cessaram de uma vez por todas quando em uma madrugada

frienta de um sonho, apareceu-lhe um negrão Banto. Sua pele lustrosa de um celestial negrume

continha uma luz fenomenal que enchia todos os aposentos da casa. Ele era musculosamente bem

dotado, muito atraente. Transmitia segurança e serenidade em seu olhar. Carregava nas faces delicadas

uma altivez guerreira, uma Paz e Força dignas de um rei. Seus grandes olhos eram caprichosamente

pintados de brancura sem igual, deixavam-se enegrecer nos centros pelas íris – densas pérolas

brilhantes e envolventes. Era um típico africano legítimo e sábio. Seria um rei encantado dos Bantos?

Balbina não saberia dizer... mas o conhecia.

O magnífico homem estava-lhe velando os sonhos, e a jovem nele confiava. O negro contou à

moça sonâmbula, que ele era feito da chama do fogo sagrado que Balbina carregava no coração. O

guardião de todos os ensinamentos que a velha Ambrósia do Chaco guardava para desabrochar à sua

escolhida. E o Banto também estava sempre por perto devido outro motivo, que anos depois Balbina

viria saber. O guerreiro a protegia de ANÔNIMO...

“Quem é Anônimo?” – perguntava ela inocentemente ao Banto. “É o demônio que habita em

todos nós. Anônimo nos espreita a todos. Ele reside nos descuidos dos detalhes, aguardando sempre

uma aresta para nos arremessar ao erro das escolhas”, contava o homem sobrenatural à moça que

dormitava amedrontada.

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A partir dessa noite, Balbina nunca mais irrompeu madrugada adentro fugindo ao sonhos

alucinantes, embora não se lembrasse do sonho com o negro, sabia que havia algo que a protegia desde

então.

(...)

BENTINHO era o mulatinho mais bem quisto em toda feira do Ver-O-Peso. Começou a trabalhar

ali ainda molecote. Vendia sacolas aos transeuntes desprovidos; depois passou a vender limões galegos

fresquinhos. Quando rapazola, mantinha uma banca de tabaco. Ganhava bem porque a caboclada não

passava um dia sequer sem que tragasse a fumaça daquele vicio dos pulmões.

Em sua banca podiam-se encontrar cigarros de todas as marcas, cigarretes para as “madamas”, charutos

para os comerciantes bem-sucedidos das cercanias, e ervas soltas para que o próprio freguês montasse

à vontade o seu cigarrinho de palha. Vendia também a retalho e pendurava contas no seu livrinho de

notas. Talvez por isso que todos gostavam de Bentinho.

Morava longe dali, tinha um modesto casebre, caprichosamente decorado e arrumado por sua

mãe, orgulhosa do filho sustentar a casa por força de seu próprio trabalho, suor digno adquirido no

esforço diário na maior feira a céu aberto da America Latina.

Bentinho era moço alto; esguio; de olhos vivos, amêndoas atentas e joviais. Bastante sério,

quase não arreganhava os dentes para calcular sorrisos. Falava pouco, somente o necessário que seu

trabalho como vendedor exigia. Não gesticulava muito, sempre econômico e eficaz no comunicar.

Aprendera com sua mãe a arte de escutar e observar contrapondo-se à tagarelice, fazendo disso seu

forte escudo contra intrigas e fofocas...

Não era vaidoso, porém, cuidava de sua aparência com estimo, zelo e asseio. Vivia metido

numas calças de linho, religiosamente passadas e engomadas por sua mãe. As camisas em botão sempre

para dentro das calças, combinando com as finas meias enfiadas nuns sapatos mimosamente

envernizados.

Gostava dos cabelos bem aparados, ensopados de vaselina. Mantinha um bigodinho ralo no

rosto oval, o que deixava as moçoilas irrequietas. Devido aos pelos do buço, Bentinho carregava uma

face algo misto de menino e homem feito, que as fascinava. Entretanto, o rapaz nunca se agradara de

nenhuma das adolescentes do bairro onde morava, e nem de lugar nenhum!

Não lhe atraiam as moças de porcelana, com rostos congelados em cachos loiros; nem gostava

de mulatinhas ou negrinhas de sensual balanço nas ancas, de olhares provocantes nas faces com

sorrisos molhados e carnudos; muito menos as moças que trabalhavam na feira do Ver-O-Peso. Parecia

que o coração do bonito rapaz estava imune aos cânticos do amor.

Certa vez uma moça de dezoito anos deslumbrara-se do jovem feirante, indo declarar-se a ele,

e Bentinho, meio sem jeito, não sabia o quê dizer. Pediu desculpas à senhorita, pois não poderia

namorar-lhe, nada sentia a não ser admiração e respeito pelo ato corajoso da declaração amorosa. E

diante disso não é que a moça apelou para feitiçaria! Encomendou um trabalho para “amarrar” o jovem

junto a ela. Não deu em nada. Após o dinheiro gasto, a mandinga apresentou-se tortuosa, pois Bentinho

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era pré-destinado à outra. Mas a rapariga cega de capricho, não queria saber das mãos silenciosas do

destino fiando o tecido tênue aos olhos mortais...

O feitiço não deu certo para ela, e o “espírito” executor veio-lhe cobrar o favor. Dizem que essa

senhorita ficou casada com o dito “espírito” que a tinha ajudado nessa empreitada. Ficou velha e

solteirona até o dia de sua morte, aos setenta e oito anos de idade, em meados de 1990. A solteirice

funesta e solitária fora o seu castigo por querer interferir no destino de outras pessoas.

(...)

CESÁRIO era descuidista. Ziguezaveava por entre a feira, sempre em busca de fregueses

distraídos com o troco da compra – momento quando a mão-leve do homem entrava em ação. Sua (má)

fama já era conhecida pelos feirantes que sempre o olhavam com raivosa desaprovação. Não era bem-

vindo nas cercanias das bancas e barracas, porque sua cara branquela e mal apessoada afastava os

fregueses de posses e mais atentos, que vinham fazer suas compras na tradicional feira do Ver-O-Peso.

Cesário era larápio por natureza, contam que desde pequeno já tinha essa má índole de

enganar e cobiçar o alheio. Seu primeiro furto foi aos oito anos de idade quando da visita de uma tia.

Cesário deparou-se com o camafeu que sua parenta usava no colarinho. O garoto a um canto da sala,

retorcia suas mãos, estalando vagarosamente seus compridos e ágeis dedos, meditando como

executaria o furto. Sua maior qualidade psíquica era observar...

Desde muito criança cultivava uma atenção a tudo, nada lhe escapava aos olhos profundos e

nervosamente discretos. Na ocasião, quando sua mãe Olívia servia café à tia do menino, derramou-lhe

sem querer o líquido na blusa da visita. Cesário – contemplando a cena – sorriu malignamente...

Aguardou a ida das duas ao toalete, momento em que abandonaram o camafeu à mercê. Em cima da

mesinha da sala, jazia a jóia que nunca mais fora vista pela família. Apenas Cesário sabia onde

“empenhar” o fruto do roubo. Peça de ouro 18, era valioso pelas delicadas ornamentações.

O menino havia vendido o artefato para comprar bilhetes a fim de brincar no arraial de Nazaré,

à época das festividades. Numa noite nazarena divertiu-se tanto... além da mesada entregue por sua

mãe, havia também o dinheiro da venda do furto. O moleque comeu tantos doces, maçãs do amor,

balas e algodão doce; participou das brincadeiras de pescaria, arremessos, e outros mimos do parque.

Torrou toda grana sem o menor remorso.

Seu corpo adulto tinha a maleabilidade de uma serpente. Magro e esguio, sustentado por

fortes e longas pernas. Sua cabeça e ombros pendiam um pouco para o lado esquerdo para observar as

coisas, tratava-se mais de um cacoete antigo.

Enterrados no rosto magro, seus grandes olhos acompanhavam toda movimentação da feira, não perdia

uma chance sequer para roubar. Era rápido nas corridas. Conhecia buracos e esconderijos em toda

região do comércio. E seus convivas eram da mais alta malandragem jamais vista.

Possuidor de uma anatomia que muito o ajudava na sua qualidade de punguista. As mãos de

Cesário nasciam de dedos longos, fortes, finos, e leves, coreograficamente precisos na ação de roubar!

Um sucesso inigualável na natureza, as suas mãos! Entretanto, o que assustava mesmo os transeuntes,

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era seu sorriso... além de sua boca abrigar dentes disformes e amarelados por conta do vício do fumo, o

riso de Cesário era de fatal pisica!

(...)

NATIVIDADE era rendeira do Ceará. Diziam que viera com os pais para Belém, ainda mocinha.

Que era de família pobre e nordestina, e que aprendeu o oficio na infância, a arte da rendaria e

bordado.

A velha ganhava a vida com a venda das delicadas fazendas que tecia pacientemente. Ela

mantinha uma banquinha bem no centro da feira do Ver-O-Peso. Todas as tradicionais damas da

sociedade paraense da década de 30, do século passado, mantinham em suas casas as famosas

rendinhas de dona Natividade. Eram realmente lindas toalhinhas de estantes; belas rendas para as

meninas em primeira comunhão; anáguas; véus de noiva; além de outras delicadezas.

A artesã já estava próxima dos arredondados setenta anos de idade. Era solitária. Morava em

companhia de Rogério – seu gato de estimação. Ela preferiu a reclusão após a morte de seus pais,

porque sabia que ninguém poderia dividir a vida a dois com ela... muito religiosa, era devota de São

Benedito da Praia. Natividade juntamente com dona “Beloca”, (como era mais conhecida dona Isabel),

encarregavam-se da organização da festa em homenagem ao santo negro. Abraçaram esta causa no

inicio dos anos 20.

Tudo começou porque tia “Beloca” resolvera fazer uma promessa ao santo. Seu filho recém

nascido fora desenganado pelos médicos, entretanto, por intermédio milagroso de São Benedito, o

menino cresceu forte e sadio. Natividade conheceu tia “Beloca” logo que chegara a Belém, tornaram-se

comadres e irmãs em devoção pelo santo praieiro.

A velha rendeira, era simpática com os feirantes, fregueses e transeuntes em geral, e esses a

tratavam como uma avó bondosa e acolhedora. Natividade sempre dava conselhos e conversava com os

mais jovens que a procuravam em sua casa ou mesmo na feira. Nunca se intrometera na vida alheia, a

menos que pedissem... E no meio dessa rotina, as pessoas comuns nunca perceberam que Natividade

sustentava um olhar longe, melancólico e misterioso. A verdade era que esta senhora carregava consigo

um enorme segredo, e arrastava seus dias tentando escondê-lo, às vezes, de si própria...

(...)

STÉLIO era de boa alma, mas sofria de idiotice crônica. A família muito dolorosamente

contrariada, após inúmeras tentativas de segurá-lo em casa, o abandonara de vez, porque Stélio no

auge de seus ataques enfrentava ferozmente seus parentes, objetivando morar ao léu. Vivia como

andarilho pelas ruas de Belém. A força de sua loucura o obrigava andar rigorosamente a pé dias e dias

sem eira nem beira, numa interminável procissão solitária. A natureza do moço, porém, não era

violenta.

Stélio descendia de uma abastada família, tradicional estirpe belenense. Entretanto, nenhum

dinheiro foi capaz de curar sua moléstia. Quando menino, queixava-se cotidianamente à mãe sobre

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umas dores de cabeça. O médico da família receitava-lhe leves analgésicos. O rapaz já vinha agindo

estranho, desde então... Até que um dia – um extremo colapso! Stélio acordara completamente

transtornado. Não reconhecia onde estava, não reconhecia sua família e irmãos... correu pela casa,

“tenho que ir”, gritava ao atravessar a porta da rua.

Na ocasião tentaram de tudo. Internaram Stélio na Santa Casa de Misericórdia, cercaram-no de

todo conforto e remédios revolucionários da época. E nada...

O pai do rapaz, o dr. Francisco Ferreira da Costa Prado não queria transferir o menino para a

Capela do Hospício, também conhecido como Hospital Juliano Moreira. O capelão de lá, nos anos de

1930, era o padre Leandro Pinheiro; o religioso sabia deste caso na família Costa Prado, já tinha ofertado

leito a Stélio, porém a família não queria admitir um “Costa Prado” num hospital para loucos da cidade.

Seria demais vergonhoso... Então, dr. Francisco decidiu transferir o garoto da Santa Casa para a capital

do País. Lá haveria médico que salvasse o primogênito da linhagem Costa Prado.

No dia da mudança, Stélio aproveitou-se de uma aresta, breve instante de descuido. Escapou!

Passos frenéticos, braços abertos ao ar, sorriso no peito. Ganhou a rua tão rapidamente que ninguém

conseguiu alcançá-lo. Ficando apenas nas paredes da Santa Casa a figura de d. Regina, a chorar e

lamentar-se pelo destino do filho.

Rostos estranhos foram testemunhas da difícil decisão que o patriarca Costa Prado tomara. Em

meio ao desespero perante a fuga de Stélio, o pai dele ainda pôde ver seus olhos sorrindo, como nunca

vira antes. Dr. Francisco compreendeu que seu primogênito seria mais feliz caso seguisse a liberdade de

sua insanidade, do que enclausurado numa suposta cura que ninguém sabia se um dia alcançaria a alma

do amado filho do dr. Francisco e dona Regina.

Então, o jovem Stélio vagaria a vida inteira por todas as ruas e vielas da cidade de Belém do

Grão Pará. Seu lugar favorito era a feira do Ver-O-Peso. Stélio era seduzido pelas cores, pelos cheiros e

balburdia que ali se via todos os dias. Os feirantes já o conheciam e o tratavam com amabilidade.

Stélio dependia da bondade deles para alimentar-se e conversar diariamente. O “rapaz

doidinho”, como o chamavam, era prestativo levando recados e pequenas coisas de troca entre os

trabalhadores da feira e comerciantes do local. Todos tinham uma convivência pacifica e fraterna com o

jovem.

Dizem que até os últimos dias de sua vidas, os pais de Stélio iam escondidos ao Ver-O-Peso

entregar dinheiro e agasalhos para a velha Natividade, que era responsável por repassá-los a Stélio.

Natividade fazia esse favor com o maior zelo e sigilo possível.

(...)

POTIGUAR era mestre em capoeira e também pai de santo. Mantinha o mais respeitado

terreiro de Candomblé que havia em Belém, na década de 30. Potiguar era conhecido por fazer

(somente) o bem sobre o solo sagrado de seu terreiro. Sua fama de pai de santo conseguiu atravessar o

gueto dessa religião afro-brasileira. As noites de cânticos e danças seduziam muita “gente de outra cor”,

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que vez por outra estacionava nos domínios de mestre Potiguar em busca de “reza”. Como explicar esse

chamado musical dentro dos brancos? Seria o som do batuque requebrado ou os pés ululantes em

rodopios dos negros e mestiços que enfeitiçavam de beleza e encanto àqueles olhos azuis-ingleses ou

verdes-patrícios?

Ou seria o animo místico e indecifrável que há certas horas baixava nos corpos buliçosos e

suados dos filhos de santo, materializando-se em quadris frenéticos e sensuais bailados

enlouquecidamente felizes, terreiro adentro?

Tal espetáculo fabuloso dos espíritos guerreiros dos Bantos, dos batuques de Mina, das

tradições Afro, assombravam de prazer testemunhal os olhos dos arianos, que empalideciam as faces

frente ao maravilhoso milagre corpóreo.

Ninguém sabe ao certo dizer o motivo de tal fascínio. O que importa é saber que muitos

brancos católicos freqüentavam àqueles batuques buliçosos promovidos no terreiro de mestre Potiguar,

e todos buscavam benza, desfeitos para quebrantos, febres de mal-querenças, maus olhados, proteção

espiritual, conselhos dos Pretos velhos, enfim... pois como dizia velha Ambrosina à sua neta Balbina,

“não importa o candeeiro, e sim sua Luz a iluminar as Noites profundas da Alma...”

E por esse motivo mestre Potiguar recebia com igual atenção todos que ali acompanhassem as

rodas de batuques, incorporações e defumações acharutadas.

Potiguar freqüentava constantemente a Feira do Ver-O-Peso para comprar ervas, matos verdes,

cipós odorantes da floresta Amazônica, matos diversos, catinga-de-mulata, patichouli, cobras secas,

azougues, paninhos e outros ingredientes para fazer banhos, oferendas e encantarias nos rituais que

presidia. Recorria sempre à banca de Nhêga Balbina, para fazer a feira diária de suas necessidades. E

também ali todos o conheciam.

O mestre em capoeira mantinha uma agregada na família – a formosa indígena Jandiara, que

lhe veio como presente das regiões do Baixo Amazonas, caindo-lhe nas mãos sobre a promessa de

educá-la aos costumes dos brancos e depois enviá-la de volta à sua tribo.

(...)

JANDIARA descendia da tribo Kaiapó. A família dela há muito deixara a região de Altamira, e

resolvera rumar para alguma cidade, tudo para atender ao pedido da pequena. A jovem índia queria

alfabetizar-se aos costumes dos brancos, para depois retornar à sua tribo consciente e poderosa de

argumentar com àqueles que lá iam a fim de roubar-lhes os territórios.

A família de Jandiara escolhera a cidade de Abaetetuba para fincar morada provisória. A

mocinha Kaiapó era a caçula de seis irmãos. Muito delicada e de bons gestos. Fora prometida à custódia

de mestre Potiguar indo para a capital.

A indiazinha aprendia as letras da civilização branca e também tinha aulas de economia

doméstica com professora particular mantida pelo próprio Potiguar. Além dessa atividade, Jandiara

aprendia a coser roupar e cozinhar. Nos altos de seus quinze anos ainda mantinha posturas infantis

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como ter ao colo bonecas e tomar banhos de chuva. Adorava brincar com um papagaio que mestre

Potiguar tinha em casa. De alma doce e virgem, natural a todo gentio que ainda não se corrompera com

as ilusões sociais dos homens brancos.

TENÓRIO DA CUNHA, comerciante com descendência patrícia. Carregava uma cara branca e

macilenta, alegremente enfeitada e envolvida por uns fios gritando para o grisalho, pareciam compor

uma pequena vassoura a escovar-lhe as faces. Seus grandes olhos felizes adoravam afogar-se no vinho

após o almoço, costume frequentemente reprimido pela sua vigilante (e zelosa) esposa, a mexicana

Maria Gonzalez.

Após o ano de seu casamento, em 1925, Deus os presenteara com o nascimento de duas

meninas: Maria Lúcia e Maria Inês. Tenório da Cunha mantinha o bem afamado botequim Águia de

Ouro, que era fortemente frequentado pelo povo do Ver-O-Peso: pracinhas; marinheiros; feirantes;

passantes de toda ordem social; fregueses diversos; pescadores; caboclos; e por quem mais ali estivesse

em busca de molhar a garganta com a ardente água arquivada nos alambiques da vida.

Vinte anos mais tarde lembro-me que seu Tenório vendera o Águia de Ouro ao senhor Manoel

Sarmanho, devoto fervoroso de São Benedito da Praia, existe até um “causo” sobre como o seu Manuel

conseguiu a estátua do santo. Dizia-se à boca pequena que Sarmanho nascera em Salinópolis (município

da região do salgado, no estado do Pará), e que era de família muito religiosa. Pôs ele um altar dentro

do bar, suspirando a imagem do “santo preto”.

Seu Manoel conseguira a estátua por intermédio de um de seus fregueses, na mais verdade –

um atravessador! Soube-se depois que a escultura de madeira fora encontrada por um mestiço, e

depois entregue ao atravessador. Este sujeito tinha uma dívida antiga no “pendura” do bar, então

ofereceu a imagem ao seu Manoel, como pagamento.

Dizem que o santo fora achado por acaso mesmo! O tal caboclo viajava despreocupado, cortava

a região do Marajó, quando avistou algo boiando, achou que fosse uma pessoa, e mergulhou. Ao chegar

próximo viu uma mala, carregou-a a bordo e dentro havia um embrulho. Era o santo! As pinturas muito

gastas por causa da água salgada eternizavam mais ainda o sofrimento golpeado no rosto negro a

carregar um menino-Jesus...

Após a entrada do santo no bar, ninguém mais se atrevia a proferir palavrões ou discussões de

baixo calão. Respeitavam a presença sacra. Durante anos, o Águia de Outro era ponto de reza durante

as festividades de São Benedito, até que pela força do tempo, o costume da procissão foi se apagando

na memória do povo belenense.

(...)

Voltando ao seu Tenório da Cunha, o proprietário do Águia de Ouro, na década de 30. Ele

também conhecia muitas histórias extraordinárias. Em seus anos desengordurando o balcão, viu e ouviu

muita coisa: bêbadas lamentações; brigas; episódios de amores não correspondidos; histórias de

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bravura de pracinhas e marinheiros; estórias de visagens, contadas pelas bocas ressacadas de álcool a

vagarem pelos paralelepípedos das estreitinhas ruas da Cidade Velha; causos madrugueiros saídos da

fantástica imaginação dos feirantes... Muitas alegrias e tristezas coloriram a fábula de vida daquela

gente ouriçada, que pela convivência periódica, já eram todos praticamente uma grande família.

Uma dessas narrativas será contada aqui. É uma história de amor... um amor tão forte que

superou até mesmo as barreiras de todas as crenças e credos em todos os santos. Quase uma lenda

esquecida envolta pela poeira dos anos, tendo seu desfecho ainda vagando na memória coletiva de um

povo moreno. Uma história que ninguém poderia imaginar... nem mesmo o protagonista, que hoje jaz

em Paz na serenidade alcançada por todos aqueles que enfrentam seus destinos pavorosos... e que

mesmo assim, seguiram a Canção das Águas.

CAPÍTULO DOIS: Dos Acontecimentos.

Diariamente embalados pelo vento da madrugada, espalhavam-se eles como um desabrochar

de Tamba-Tajá. Vinham de diversos cantos da cidade. Era bonito de se ver, pareciam promesseiros

transbordando oferendas para algum santo. Caminhavam lentamente, ainda sob o efeito de bolhas de

sono, embebes por um transe sereno e gentil. Executavam uma coreografia de comum acordo de todos

que surgiam das penumbras. Montavam suas barracas de feira.

Epidemias coloridas, o alaranjado e enrugado ouro desfolhando-se novamente – um sol parido

da manhã. Seus raios preguiçosos vazavam calor e movimento ao caminhar crescente junto aos

paralelepípedos da Castilhos França e arredores da feira do Ver-O-Peso. Todo tipo de homens e

mulheres traziam seus pregões, na esperança do ganha-pão de cada dia.

Eram os feirantes. Os pescadores. Ferreiros. Sapateiros. Carroceiros. Frutas. Legumes. Jarros e

garrafas. Pimenta de cheiro. Pimenta do reino. Farinha d’água. Cachos parrudos de açaí. Paneiros.

Cerâmica marajoara. Caixotes arregalados de limões. Anéis de latão, cordões, brincos de vidros

coloridos que alegravam o coração das mocinhas em idade vaidosa. Tantas e tantas mercadorias outras

que se possa imaginar.

Até leitões vivos dialogavam aos berros, de igual para igual com todos que ali estivessem! E

sem essa balburdia de falatório embriagado de sons, cheiros, cores, gritos, sorrisos e malandragens, não

existiria o corpo taludo da feira, e sem esse corpo não haveria também a alma irrequieta do Ver-O-Peso

na pessoa de seus freqüentadores.

E ao calor do sol desamarrotado, tudo ganhava graça e movimento numa saturação de matizes

e gestos. À medida que a quentura roçava àquele lugar, aumentava também o som da orquestra: vozes

e estrondos de caixotes jogados no chão; tilintar de facões decepando corpos de peixes; ressonar de

carroças passando; chinelos arrastando-se em pegadas fumegantes. Tudo tinha ali para todos.

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Acordes crescentes de um Altino Pimenta, a música da feira era regida por uma batuta cabocla

e invisível... Minúsculos carimbós amorenados nas ancas carnudas das moças paraenses torciam os

pescoços masculinos que por ali passassem – uma vertigens de jambú... Era assim a invasão da melodia

vespertina, todos os dias na maior feira da América Latina.

Tudo começava a ganhar jeito por volta das quatro da matina. Aos olhos de quem estivesse fora

daquela rotina dramaticamente espetacular, o que se via era uma pintura caprichosa, dinâmica,

dolorosa e desordenada, embriagada de odores definitivos e exclusivamente nortistas, cores explosivas

e sotaque paraura ainda escutado nos dias atuais.

A vida movimentava-se num ritmo único e circular. Um Lundum, um Siriá ou talvez um carimbó.

Gestos misteriosos cortejados por uma neblina úmida de rio, com o sabor e suor marimbondo. Vidas

entrecortadas – um clima místico e envolvente, um sagrado-profano ao parto majestoso e doloroso

daquele lugar mágico e úmido, a feira parindo-se todos os dias através das mãos dos feirantes.

Os primeiros a desaneblinarem-se do transe preguiçoso da noite, eram os pescadores. Muitos

dormitavam no próprio barco ancorado aos cais. Os caboclos saiam de suas naus carregando um silêncio

religioso, como se realizassem uma prece de gestos. Mal se falavam, comunicavam-se através do olhar e

das intenções. Tratava-se de uma compreensão diferente, como o influxo e refluxo das pequenas ondas

enamoradas do cais.

Alguns cabras passavam a tarde e metade da noite pescando motivados a venderem o

resultado das redes, na manhã seguinte. Os náuticos homens manobravam os caixotes pitiús, jogando

os peixes macerados na pedra e os banhavam para estarem sempre fresquinhos ao julgamento e olhos

atentos do freguês.

Seguidos dos peixeiros, chegavam os pequenos donos de barracas. Alguns mais caprichosos,

forravam o tabuleiro com jornal “A Província do Pará” ou com “A Folha do Norte”, antes de deitarem as

frutas.

Sim! O zelo dos feirantes é para o agradamento do freguês. A exigência deste era tanta, que os

legumes vinham organizados por cores, tipos e tamanhos. Aos olhos do consumidor, as mercadorias

gabavam-se como bandeirolas coloridas e sorridentes.

Na parte mística da feira – estavam as famosas “garrafadas”; as ervas milagrosas; olho-de-boto;

defumações para todos os gêneros e gostos (e problemas...); amuletos benzidos, compotas, etc. – neste

beco de feira também havia uma maneira de se apresentar as mercadorias. A ordem dos produtos vinha

do menor para o maior em termos de importância. O freguês muito necessitado do poder místico,

perdia-se por entre as barracas de ervas, que por vezes lembravam um pequeno território da selva

Amazônica (cheiros, cores, bichos, mistérios...). Tudo ali era feito discretamente, à surdina da

investigação de boca em boca. O sigilo continua sendo a alma dos negócios...

Às sete da manhã a feira já está em sedas e toalhas quentes, toda prontinha, aguardando as

mãos e os olhos da freguesia sobre si: vovós e vovôs. Adoram madrugar para serem os primeiros a pisar

naquele solo sagrado e falador. As últimas notícias sobre tudo e sobre todos da cidade, se fazia

conhecer primeiro naquele lugar e por aquelas bocas...

Page 11: CUIA DAGUA romance

”Esse quiabo não está bom!”

“Queres me roubar no preço! Olhe, veja só!”

“Menina... a dona Zulmira não pegou a afilhada em semvergonhice com o Matias ontem, atrás

da cortina da sala...”

Mesmo parecendo agressivo para um voyeur desavisado, tudo não passava de um teatrinho de

comum acordo entre feirantes e velhos fregueses de longa data. Boas relações de amizade e confiança.

Caro leitor, caro leitor... as relações humanas são cheias de mistérios que a selvageria pré-

histórica deixou fossificada na modernidade. E o que parece antipatia, trata-se na verdade, da

manifestação de carinho e reconhecimento da existência do outro. Viver moldado em uma sociedade

civilizada requer muito trabalho mental e raciocínio – um teatro de caras e bocas. A comunicação

humana vai além das palavras, é algo quase incompreensível e inacreditável – a civilização!

Igualmente no meio da turba, todos os dias o punguista profissional Cesário passeava pela

feira, pronto para começar seu trabalho de observação.

“pegaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Aquele cabra ali roubou minha carteira!” E uma cobra de rabo

se formava, vários caboclos agindo em favor da vítima, correndo sofregamente: “Lá vai ele... pega, pega,

pega, olha aí, olha...” – mas ninguém conseguia pegar o malandro. Este se enfiava por entre as barracas,

abaixava-se por detrás dos passantes, dava meia volta, volta e meia, entrava num buraco qualquer. E só

era visto novamente passados uns dias. Os policiais não podiam fazer nada. Nunca pegaram Cesário. O

sujeito continuava em sua lida diária,trabalhava duro...

Um dia Cesário estava num canto ao paredão do Mercado de Ferro. Suas grandes orbes

acompanhavam todos os lances dos transeuntes desavisados. Os olhos do ladrão até pareciam

independentes, como os de um camaleão. Era assustador a perspicácia daquele bandido. Até então,

nada conseguia tirar- lhe de seu ponto de equilíbrio...

“Que anjo lindo... simplesmente lindo...”.

Era mesmo uma beleza selvagem e inocente, sensual e provocante. Cesário foi invadido por um

sentimento visceral, arrebatando todas as correntes que amarravam seu coração pantanoso de raposa.

Como uma navalha afiadíssima, rompeu um corte fatal no interior do golpista, que nem ele mesmo se

apercebera... jorrava um desespero de não saber o que estava acontecendo dentro de si. E ao mesmo

momento em que o ladrão era invadido por tais sentimentos desconhecidos, um prego enferrujado

rasgava a pele de seu dedo. A mão de Cesário escapava para junto de um caixote adormecido no meio

das frutas, “ai cacete...”. Num relance desviou os olhos de seu anjo. Quando voltou seu rosto amarelo e

sem vida alguma em busca da moça, não havia mais nada. A partir daquele momento Cesário perdeu

todos os sentidos. Enlouquecera de paixão por aquela garota.

“Quem é ela? Preciso saber.” A passos pesados e desnorteados foi ter com Nhêga Balbina.

Rodeou-a como uma serpente d’água. “Balbina, o que há de novo?”. Quando a rendeira levantou os

olhos em direção ao ladrão, um vento frio afugentou sua alma. A artesã dos fios penetrou nos

filamentos do coração-bandido constatando que Cesário, que sempre fora doente da alma e governado

por todas as torpezas da humanidade, agora estava embebido de um antídoto doloroso e eficaz: o

Page 12: CUIA DAGUA romance

amor. Era assustador... quando o amor chega a tocar o coração de pessoas como este ladrão,

desconhecedor dos limites e escrúpulos para seus caprichos perversos, o “amor” não é exatamente

como o julgamos conhecer em seu mais belo aspecto. A emoção fica pelo avesso, tornando-se

sentimento grosseiro, arrastando-se como correntes de uma prisão dos sentidos. Sem escapatória

transforma o ser que ama em indivíduo possessivo e agressivamente ciumento, não sabe desvincular o

sentido de posse, do integro ato da renúncia.

– Santo Deus! – exclamou Balbina, arregalada.

– Nhêga, tu sabes quem era aquela moça ajuremada que estava aqui, indagorinha mesmo?

– Não vi, não sei e nem quero saber... e chispa daqui Cesário, não quero tu espantando meus

fregueses!

– Ora tia Balbina, era a afilhada do mestre Potiguar, já esquecestes? Estavam aqui comprando

ervas na sua banca – elucidou os fatos, o abobalhado Stélio saltitando por algo a fazer.

– hmmm... então a moça é da ossada de mestre Potiguar – Cesário foi se afastando da

realidade diante daquela informação. Imaginava como poderia aproximar-se da moça. Sua mente

perspicaz logo percebeu que a menina não saia de casa sem a presença do velho capoeira.

– Deve haver algum jeito... – matutava.

Desde esse dia Cesário não se preocupava em colocar seus dedos magros em cima das carteiras

alheias, e até mesmo recolhia sua palidez monetária dos freqüentadores do Ver-O-Peso. Era absorvido

por Jandiara. Sua mente arquitetava um meio de vencer todas as impossibilidades que o destino,

naturalmente transpôs entre ele: assumidamente larápio e vagabundo, e a índia Kaiapó.

Pela primeira vez, o bandido se deu conta no quê seus atos o transformaram. Sabia ser

impossível esse romance acontecer, real apenas em seus devaneios. Isso o amargurava profundamente.

O seu desejo por Jandiara transformou-se em cruel castigo psíquico por todos os furtos cometidos por

ele, desde o dia em que roubara o camafeu de sua tia.

Passados alguns dias, novamente mestre Potiguar encontrava-se no Ver-O-Peso, estimulado

por suas compras habituais na feira. Jandiara o ajudava a carregar as sacolas. Cesário a observava de

longe, como caranguejeira antes de consumar o inseto preso na teia. O branquelo punguista

emagrecera mais ainda, sua face estava em ossos; seus olhos afundaram-se em olheiras maciças,

parecia que tinha sido socado nas vistas. Andava desalinhado nos cabelos, nas roupas encardidas,

camisa em desabotôo. Verdadeira alma penada vagando pelo mercado.

Em torno do bandido, Anônimo soprava-lhe pensamentos loucos de raptar a moça para juntos

viverem o amor destorcido do coração de Cesário... mas Potiguar já havia previsto em seu terreiro que

algo de muito ruim estava para acontecer em breve. Uma vez no seu ponto de candomblé, lá no

Jurunas, um de seus filhos de santo foi morada de Preto Velho na roda, segredando-lhe este em

transe: “nhô preto, cuidado cum zóio de cobiça! Guarde a menina de jambu bem longe das mão de furto,

senão uma desgraça há de acontecer...”

(...)

Page 13: CUIA DAGUA romance

Cesário seguia em direção a Potiguar e Jandiara, que circulavam bem no coração do Ver-O-

Peso. O moço caminhava como se não tivesse vontade própria, ia sendo puxado pelo desejo de possuir a

moça. Seu corpo e alma não mais lhe pertenciam, estava fraco da cabeça e esta era dominada por

Anônimo: “anda, vai lá. Peça para carregar a sacola das mãos de Jandiara, mostre ao mestre Potiguar

que és prestativo...”

Tal salamandra, Cesário apresentou-se aos dois: – Bom dia mestre Potiguar... posso ajudar a

carregar as compras?” – o rapaz retorceu os olhos de cobiça em direção à moça Kaiapó. Potiguar, por

sua vez, estranhara o cordial comportamento de Cesário, foi educado recusando a oferta inusitada vinda

do ladrão, e rapidamente arredou Jandiara de perto do bandido. Ambos caminharam apressadamente

para longe das vistas do mão-leve.

O bandido ficou imóvel... triste, de uma tristeza autoconsciente. Não ousou levantar os olhos

do chão. Sentia-se um nada, um tostão de réis sem valor perdido numa sarjeta lamacenta. Pela primeira

vez em toda sua vida – chorou.

Os passantes enterrados em sua pressa habitual, nem percebiam as lágrimas no rosto

amarelado do bandido. Ele mal sabia como se comportar a mercê de novos anseios profundos e

desconcertantes provenientes do amor. Não compreendia tais sentimentos, apenas as sensações, e

estas eram deficientes para alcançar a perfeição de tal virtude. O rapaz lentamente morria em seu

interior. Sua alma de carniça estava sendo devorada a bicos de urubus.

Anônimo continuava a arrebanhar o pouco que sobrara de Cesário: “se ela não pode ser tua por

força do destino comum, cave um destino para ela! Ofereça-me uma porção de imbu, mais um trago de

cachaça na encruzilhada, que eu te ofertarei o coração da moça...”

Vagarosamente o punguista afundava-se nessa sugestão, e quando estava no lamaçal de

inflexões até o pescoço, raspou seus bolsos em busca de um boró para tomar o bonde até a Avenida São

Jerônimo. O ladrão ia à procura de não-sei-quem, que sabia de um homem que fazia “amarrações”.

Decidiu-se em optar pela oferenda ao Maligno em toca de possuir o coração de Jandiara. Já

dentro do coletivo, Cesário não pensava em nada, parecia sem alma; junto dele seguia invisivelmente

Anônimo, sorrindo vencedor, ambos atravessados pelo mesmo pensamento. Nem prestavam atenção

no trajeto que o bonde fazia. Não consideravam a eficiência do transporte coletivo trazido a Belém pelo

norte-americano J.B. Bond, ignoravam também que este refinado homem viria tornar-se cônsul dos

Estados Unidos residindo na cidade das mangueiras no inicio de 1900. Não sabiam Cesário, nem

Anônimo que antes de abraçar o consulado o ilustre Sr. Bond foi o responsável pela implantação das

linhas de bondinhos a partir do ano de 1868 e por mais trinta anos seguintes. Mais tarde esse progresso

ficou sob custódia da Cia. Urbana de Estrada de Ferro, também da Cia. de Bondes Paraenses, entretanto

as linhas de bondes urbanos na capital nortista popularizaram-se definitivamente pelos braços da

empresa inglesa “Pará Eletric Railways and Company”, a partir daqui que as coisas melhoraram, porque

no inicio de 1868 as linhas de bondes eram poucas e restritas. Entretanto, a investida urbanística e

paisagística na cidade de Belém ganhou fôlego através do então governador Antônio Lemos. Além dos

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bondes elétricos e ampliação de suas linhas, a cidade ganhara iluminação pública elétrica e também as

contas a pagar... Nas décadas de 1920, havia condução disponível na av. São Jerônimo; praça da

República; na Av. 15 de Agosto; na Rua Paes de Carvalho, na Av. 16 de Novembro e no próprio Ver-O-

Peso. O regresso dos coletivos passava pela Rua João Alfredo e Santo Antônio; retornando novamente

pelas ruas iniciais ao trajeto.

Saiba querido leitor, que o “boró” que Cesário raspara de seu bolso em pagamento pela

condução oferecida, funcionava como uma espécie de vale-transporte. Os usuários dos bondinhos de

outrora pagavam sua passagem com esse “boró”.

Mas como o progresso é um menino forte, teimoso, faminto e esperto... ele deu cabo dos

saudosos bondinhos. Sendo eles suspensos de uso em 26 de abril de 1947, e a Cia. Pará Eletric ficou

responsável até a década de 1950, apenas pela geração de energia pública na cidade. E o transporte

coletivo foi orquestrado pela Viação Sul Americana. A novidade estilística ficava por conta do designer

do ônibus: em formato de zepelin. No entanto, essa é outra história em um outro tempo. Voltemos a

1930, onde o lendário ladrão do Ver-O-Peso e Anônimo ainda curtiam um passeio de bonde.

Cesário desceu do bonde na São Jerônimo, caminhou um pouco até em frente a uma casa

verde, bateu palmas e chamou por um tal de Alonso. Quase como um segredo, o ladrão abriu a boca: –

“Óh Alonso, abre a porta... sou eu: Cesário!”.

Um fio de janela abriu-se vagarosamente, e de lá um par de olhos amendoados surgiu da

penumbra: – “Entra, homem!” – Alonso aviou dois tragos de pinga e ambos sentaram-se junto a uma

mesinha modesta e acanhada. O ambiente era árido, os restritos móveis que habitavam lá, estavam

todos gastos e machucados por causa do tempo, sendo que as janelas fechadas da casa aumentavam

ainda mais o aspecto lúgubre do recinto.

Aproximando-se de seu comparsa, o ladrão anunciou como se fosse devorá-lo: – “Alonso,

preciso de um favor seu! Como se chama o cabra que faz amarrações?” Alonso assustou-se com a

repentina investida: – “Olha, toma cuidado com isso, homem! Esse negócio é perigoso... eu faço de tudo

nessa vida, mas não gosto de mexer com o desconhecido... essas coisas do tinhoso!”

– “Anda, homem! Deixa de frescura... Preciso mesmo. Diga-me logo”!

Meio acabrunhado, o dono da casa cuspiu a resposta contrariado do amigo:

– “Não é um home, é uma mulher quem faz esses troços. O nome dela é Dionísia”. Alonso

puxou um pedaço de papel do bolso de sua camisa desalinhada e mal abotoada, era a notinha da pinga

que comprara na manhã de anteontem, da qual consumia ambos. Aprumou uma ponta de lápis das

algibeiras, anotou algo em garranchos.

– “Taí, mas não a contrarie!” – Com um pesado semblante completou o serviço de informante:

– “Ela faz o que pedimos, mas sempre nos pede algo em troca. Seja lá o quê for, dê a ela, senão a

criatura te pragueja para o resto da vida...”

Cesário não escutou uma linha sequer da recomendação do amigo. Agarrou o papel e

arreganhou os dentes tortos e amarelados de cárie e nicotina. Libertou uma gargalhada negra e sinistra,

Page 15: CUIA DAGUA romance

apreciou o colega de furto, com os olhos em bugalhos e saiu depressa sacolejando seu corpo magro e

desconjuntado. Nem olhou para trás. Foi no local ensinado por Alonso, no mesmo dia.

Chegou ao tal endereço quase à noite. Ainda não era hora morta. A porta da casa estava

aberta, haviam umas pessoas sentadas num banco longo estirado na parede lateral da sala. Cesário fez o

mesmo até chegar a sua vez.

Após quase duas horas de espera, guiado por um homem de aspecto aterrorizante, Cesário

desemboca numa sala repleta de objetos estranhos: garrafas de vidro em líquidos ensopando animais

empanados, bichos peçonhentos dependurados dissecados numas prateleiras decoradas na parede de

cimento e barro. Lá estava a Dionísia confundindo-se com seus próprios artefatos. Seus cabelos brancos-

acinzentados, desgrenhados e insolúveis estavam domesticados com dificuldade por um laço vermelho.

Os olhos dela permaneciam sem o bago. Notoriamente em transe, dirigiu-se a Cesário: – “Sei porque

estás aqui, cabra...”

Com indelicada persistência, o ladrão metralhou a réplica: – “Então faça o quê vim pedir-lhe,

velha!”. Consumida por um sorriso de escárnio, Dionísia maldosamente confirmou o trato, mas pediu

algo em troca para o ladrão.

(...)

Passados uns noves dias, todos no Ver-O-Peso notaram a ausência do punguista, alastrando-se

boatos de que ele fora preso pelos pracinhas, lá para as bandas da Avenida 15 de Agosto. Em seguida

vinha logo a versão dos pesqueiros, afirmando de pés juntos que Cesário havia bebido tanta cachaça

próximo ao cais, que tropeçou e caiu nas águas do Guajará. Outros diziam que Cesário se juntara aos

rebeldes que tentaram o levante da Revolução de 30, contra o governador Eurico Vale, e por isso havia

sumido do mapa por uns tempos, até que a poeira baixasse...

O certo é que todos estavam aliviados pelo desaparecimento do bandido. E a vida na maior

feira ao ar livre da América Latina continuava, em ritmo de siriá. Cachos de açaí fresquinhos à venda

suculenta do suco. Comércio de folhas raras e “mágicas” vindas diretamente da floresta amazônica.

Cheiros cheirosos de patichouli, garrafadas, artefatos diversos, maniçoba crua e cozinhada. Jabús, carne

de sol, e inoportunas iguarias outras, de gosto para tudo! E num dia comum desses, que Jandiara e

Bentinho avistaram-se pelo meio da feira. Naquele turbilhão de gente indo e vindo, feito ondas da baia

do Guajará junto ao pé do cais do Ver-O-Peso, o jovem casal sumiu com o povo dali. Não havia ninguém

ao redor deles, somente o olhar de um para o outro. A predestinação do rapaz acontecera: era de

Jandiara o coração dele; e de Bentinho, o dela.

Como a menina havia se agradado do rapaz, foi tudo mais fácil quando o moço pediu ao mestre

Potiguar para namorá-la de porta. O velho capoeira percebeu a sinceridade nos olhos do mulatinho.

Mas o chamego entre eles era vigiado num ajuste de namoro sério e compromissado, com hora

marcada para começar e terminar de baixo das barbas de Potiguar. Das 18:00h até às 20:00h, um

namoro comportadamente sentado no sofá da sala tendo ao meio de Bentinho e Jandiara, a porção de

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gente moradora da casa do velho capoeira. Era dureza... mas Bentinho se satisfazia com o único beijo de

boa noite permitido. A bela indiazinha entregava esse afago ao seu amado, junto ao portão da casa,

momentos antes de Bentinho ir-se embora.

Numa noite dessas, Bentinho fora abordado por Cesário, que reaparecera pelas redondezas,

depois de um mês mais ou menos. O vendedor de cigarros estranhou a repentina aproximação do

ladrão. Extremamente sombrio e imóvel, penosamente o punguista soltara a voz:

– Olá bentinho... tens cigarros aí?

– Boa noite Cesário. Desculpe, mas não vendo cigarros fora da minha banca na feira. Mas se

passares lá amanhã bem cedo, te vendo uns, certamente.

– Não. Eu queria uns agora... – o malandro andava vagarosamente e todo melindrado às vistas

de Bentinho. Já soubera que este mantinha compromisso sério com a índia protegida de Potiguar.

– Eu soube que estás namorando Jandiara...

– Sim, é verdade.

Bentinho desconfiava, queria sair daquele diálogo sem jeito.

– Cesário eu vou indo. Tenho que acordar cedo amanhã, afinal trabalho na feira, sabes como é.

Boa noite.

Mal terminara a frase, Bentinho enfiara-se rua adentro numa pernada só, desaparecendo na

primeira quebra de esquina. O bandido permanecia imóvel, encostado no muro defronte a casa da moça

kaiapó. Era paciente, posto que Dionísia assegurou-lhe que o coração de Jandiara seria dele e de mais

ninguém. Diante daquela esperança chafurdada, Cesário emagrecera ainda mais (se isso era possível!).

Tornou-se uma caveira ambulante. Sua face ossuda e cadavérica mal podia manter os dentes acavalados

dentro da boca. Dava medo seu semblante inóspito. Ele agora era sobressaltado por visões do inferno.

Vez por outra avistada uma sombra de gente que o rondava constantemente. Sempre o mesmo

espectro: Anônimo.

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CAPÍTULO TRÊS: Do Inevitável.

Foi numa noite de outubro que Bentinho bebeu pela última vez uns tragos, em comemoração

ao aniversário de seu Tenório da Cunha. Os festejos foram ali mesmo no botequim Águia de Ouro. Ao

longo de todo dia 03 de outubro de 1930, os trabalhadores do Ver-O-Peso ajuntaram-se para despejar

parabéns junto ao dono do estabelecimento.

Apareciam mimos inusitados das mãos dos feirantes e amigos de Seu Tenório, um deles foi uma

peixeira enferrujada. O senhor que ofertava o presente ao comerciante, dizia tratar-se de um artefato

de família que trazia sorte. Seu Tenório aceitava tudo. Tinha gratidão e amizade com as pessoas que

trabalhavam nas redondezas.

Bem ao finalzinho da tarde, mestre Potiguar e Bentinho passaram no boteco a fim de prestigiar

o natalício do amigo. Stélio balbuciava algo enquanto circulava discretamente absorvido por entre os

convivas do bar. Outros cabras enterrados em seus copos de cachaça, nem ligavam para o que Stélio

falava, mas o rapaz doidinho era o único que conseguia distinguir a figura de Anônimo por entre as

pessoas. O primogênito da família Costa Prado ficava imóvel a um canto, totalmente melindrado pela

presença maligna porta a fora do estabelecimento. Certa vez, Stélio viu Cesário acompanhado pelo

espectro horripilante, então dissera ao ladrão que havia uma sombra com sorriso de fogo junto dele,

mas o bandido deu de ombros, achou que fosse mais uma crise de loucura de Stélio.

Do lado de fora do Águia de Ouro, Anônimo tentava as mentes fracas já chafurdadas na cana. O

fantasma não podia entrar no estabelecimento devido à imagem de São Benedito da Praia. E nesse dia

por tratar-se do natalício de seu Tenório, o pessoal ficou ali, beirando a meia-noite. Estava liberada a

farra além do costumeiro horário de funcionamento do boteco. Na verdade para aqueles indivíduos

macerados de rio e oleosamente bronzeados pela ensolarada labuta diária, tudo era motivo para ingerir

o cotidiano em festejos alcoólicos.

O torpor da cachaça aliviava as dores do espírito – expiações que não se acalmam quando se

leva uma vida difícil e sem sonhos. Como a vã Filosofia incentiva que todo homem precisa sonhar e

sapatear a melodia das bacantes, cada qual deve encontrar a tal porta que liga o real ao imaginário

inerente a cada um; nem que seja à base de narcóticos... e a alma do Ver-o-Peso, que são aquelas

pessoas lindamente humildes e inocentemente desconhecidas de si, que carregam consigo a

simplicidade gentio liberta de qualquer noção – vivem seus dias brancos entrecortados por um sol

escarlate encorajado pela azulada maresia da cachaça do Abaeté. Desse modo, todos no Águia de Ouro

estavam alegres. Ultrapassaram a linha entre o mundo real e o contemplativo, tudo era aguardente!

Ironicamente, apenas Stélio mantinha-se sobre si. Mesmo embebes, ninguém oferecia álcool ao rapaz

doidinho. Uma frágil sensatez.

Os últimos gatos pingados saíram do Águia de Ouro quase à meia-noite. Dispersaram-se cada

um para um lado. Bentinho dissera ao padrinho de Jandiara que ainda devia passar na casa de uma tia

que morava perto, “bem ali no canto... Na Cidade Velha”. Era imprescindível Bentinho ir lá para pegar

um dinheiro para sua mãe quitar uma dívida logo pela manhã seguinte. O vendedor de cigarros não

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podia faltar àquele apelo materno. E para cumprir essa peleja, afastou-se do pai de santo, beirando seu

caminho a passos acrobáticos; mais porre do que um peru prestes a falecer.

Já próximo a Igreja do Carmo, Bentinho fora abordado por um homem de cor, sentado

encostado a um poste de esquina. Mastigava tabaco, costume surpreso pelos moradores da área,

denunciando que o vulto tratava-se de uma pessoa do interior. Vestia uns panos crus, amarelados e

levemente puídos. Seu cabelo seco, bem rente ao couro, indicava um senhor já bastante gasto pelos

anos corridos. As cores do cabelo confundiam-se com as vestes. O homem tinha um aspecto

assombrosamente debochado. Dominava-lhe um sorriso de escárnio disfarçado pelos cantos da boca

semi-serrada. Em meio a esse sorriso desconfortável, o franzino velho negro com voz sumida dava luz a

uma toada:

“A carroça leva os desavisados para junto da porta dos esquecidos...

Quem não molhar a garganta, ficará na companhia do maldito...”

Sem levantar a cabeça, o homem avistou Bentinho:

– Ei rapaz, faça um favô para esse véio nêgo. Dê aquela cuia d’água pra eu molhá minha garganta...

O vendedor de cigarros olhou para o lado, havia uma cuia preta com água dentro parada no chão.

Bentinho não viu nenhum inconveniente em satisfazer a vontade do homem. Foi em direção à cuia, em

seguida em direção ao velho, acocorou-se e depositou no chão a cuia d’água bem em frente ao homem.

Então, o velho profetizou:

– A noite tá escura hoje, que nem o fundo dessa cuia... não achas, rapaz?

Foi quando o mulatinho inclinou-se para ver o fundo do recipiente. Sua cabeça começou a

rodopiar. Estranhamente uns bem-te-vis iniciaram seu canto característico, mas em apenas uma nota:

“hééééim... hééééim... hééééim...”, e ao redor, as formas das coisas foram destorcendo. Bentinho

parecia cair sem parar num chão que ia se afundando! Quis gritar socorro, mas sua voz estava presa.

O rapaz olhou novamente para o senhor negro agachado a sua frente, aterrorizou-se. Este tinha

os dentes serrilhados arregalados numa bocarra de pirarucu, e seus olhos ardiam em brasa. Anônimo

disfarçado no velho da cuia, agora se transfigurou em um “Cancão de Fogo”, foi ele invocado pela bruxa

Dionísia para roubar o coração da menina Jandiara para Cesário apossar-se. Entretanto, para isso

acontecer, a feiticeira deveria evaporar de Bentinho toda esperança de amor que ele nutria pela moça

kaiapó.

Em meio à vertigem, Bentinho tentava permanecer erguido, mas era difícil. Repentinamente a

rua fora tomada de uma neblina espessa, que embriagava o rapaz mais do que a cachaça que ele bebera

minutos antes, no Águia de Ouro. Foi cambaleando em direção às portas da Igreja do Carmo: “isso é

coisa do maligno...”, pensou Bentinho. Precisava sair daquela encruzilhada antes da meia-noite.

Caminhava com dificuldade, os passos pesados nunca chegavam à Igreja. Olhou ao redor, tudo mudara

de aspecto. Um terreno remoto, lúgubre como um pântano. De repente ergueram-se horrendas árvores

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carregadas de cipós entrelaçados, escondendo a fachada da Igreja, que sumia dentro do mato. A noite

enegrecera ainda mais!

Como um eco ensurdecedor, ouvia-se a gargalhada de Cesário. Bentinho sentia a presença de

outras entidades além do velho Cancão, um vento frio que aos poucos ia congelando a alma do rapaz.

Completou-se a hora morta da noite. Os ponteiros dos relógios pararam. O tempo naquele

pedaço da Cidade Velha estava nas mãos do Cancão de Fogo. Muitas sombras libertavam-se dos pontos.

A visão dos infernos ecoando a risada de pisica e escárnio do ladrão do Ver-O-Peso atordoava mais e

mais a mente de Bentinho. Havia uma maldade no coração do bandido, que mesmo o amor não podia

permanecer são dentro daquele homem. E quando acontece dessa emoção sublime não mudar o ser

humano, muda o próprio afeto, transformando-o em combustível para atrocidades sentimentais.

Cesário em pessoa apareceu naquele lugar de horas paradas. Sibilou um cântico. Com faces

cadavéricas, com feições de Anhangá e os olhos revirados da orbe, o punguista iniciou vagarosamente

uma canção, evocando Bóia-Ussú – a cobra grande do mal, que os ribeirinhos amazônicos acreditam

cavar dia e noite por debaixo da terra, provocando as quedas e deslizes nas encostas e barrancos de

rios.

“Bóia-Ussú... Bóia-Ussú

Cuja mãe adormeceu no parto,

Pai encantado,

Beiço encarnado

Venha a essa terra

Tomar conta do que é seu!

Cava em cima,

Cava em baixo,

Leva a alma

Desse desgraçado...”

Num salto, o chão tremeu. A dantesca serpente acordara de seu sono. Mexeu-se nas entranhas

da cidade, causando leve tremor no Centro Histórico de Belém. Numa seqüência de rachaduras o chão

despregou-se, abrindo espaço para desenrolar a cauda do gigantesco peçonhento. Uma agonia auditiva

sem igual tomou conta de tudo. Como se todas as serpentes do mundo ao mesmo tempo sibilassem

seus chocalhos!

A medonha Bóia-Ussú desobstruiu o chão bem a frente de Bentinho, emergindo sua colossal

cabeça de ferro. De pele escarlate vibrante, a cobra fazia reluzir tal faca afiada, todo reflexo que nela

rebatesse. Cegava os olhos. No alto da cabeça o animal exibia seus pequenos chifres abaulados.

Então, a cobra levantou sua face, desvirginando a terra e o asfalto; abriu vagarosamente os olhos, como

se não fizesse esse gesto por anos a fio. Uns fiozinhos luminosos e negros mergulhados num copo de

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fogo. A sinistra aparição enxergava tudo com se fosse energia. Não enxergava as formas, apenas a alma

das formas... Bentinho sentia-se como num pesadelo.

CAPÍTULO 4: Da Salvação

Balbina estava serena enterrada em seu costumeiro trabalho de preparar banho de ervas,

quando algo a arrebatou dessa tarefa manual. A senhora levantou-se, indo até a cozinha. Despertou

para sua cuia d’água em cima do jirau, e viu claramente o que acontecia com Bentinho, Cesário e

Anônimo... Balbina mesmo com todos os poderes passados de geração em geração, não podia penetrar

no mundo das Horas Mortas. Lembrou-se dos Encantados! Atraiu a presença de Norato, Iara, Uirapuru e

do Curupira, eles pelejariam em favor do mulatinho em apuros.

Norato – cobra grande feito Bóia-Ussú, praticava o bem em oposição à outra serpente, ajudava

os pescadores dos rios amazônicos, resgatando-os de naufrágios e tempestades. Ele agiria junto com

Iara – sereia dos salgados, habitante das águas oceânicas do Norte do Brasil; tinha ancas de peixe

formoso, com cauda recoberta de escamas douradas. Seus olhos eram dois faróis de estrela, a moça

encantada tinha os cabelos negros como noites das lendas da tribo Tupinambá. Da outra ponta do

escalão, ficaria o passarinho tímido e arredio, o pequeno Uirapuru, de poderes místicos contra as

entidades do mal. Seu canto é tão poderoso que Tupã permitiu-lhe cantar apenas cinco minutos de um

único dia em cada ano. O passarinho faria par com o maroto e rebelde menino das matas, o pequeno de

cabelo de fogo e pés virados para trás. Travesso como ninguém, o Curupira confundiria Bóia-Ussú e

Anhangá num piscar de olhos!

Pena que há essas horas o padrinho de Jandiara ressonava ao odor da cachaça do Abaeté, e sua

alma perdia-se no equivoco entre o lá e o aqui... poderia ele ajudar Bentinho a safar-se da emboscada

armada por Cesário e Anônimo, caso estivesse consciente de si!

Como dizem os sábios – o corpo físico precisa fadigar-se para que a alma se liberte, mestre

Potiguar estava nesse estado, infelizmente a peso da cachaça...

Neste instante o troféu da disputa entre os dois homens, dormia. Jandiara sequer imaginaria

mesmo em seus sonhos, o que estava acontecendo com seu amado Bentinho. Contudo, as forças do

Bem e do Mal estavam em pé de igualdade. Na praça do Carmo, Bóia-Ussú já liberto das entranhas da

terra, lançava seu olhar de encantamento para ferir os olhos do vendedor de cigarros, mas Bentinho

estava tão atordoado que mal podia manter-se de pé.

Com os olhos fixos em sua cuia d’água, Balbina acompanhava os fatos. Os aliados tocaram-se

rumo a Cidade Velha, em direção ao Largo do Carmo. Já com o plano miraculoso em ação, o Curupira

soprou à Bóia-Ussú que os Encantados estavam à procura do passarinho Uirapuru, por isso a serpente

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medonha não os importunou, nem desconfiava do real motivo deles adentrarem naquele fragmento de

Hora Morta. Fingiram não ligar para o pobre rapaz que perdia mais e mais os sentidos, diante o horror

do encantamento do poderoso peçonhento.

Na verdade Uirapuru estava descansando bem no topo da cabeça de Bóia-Ussú. Começara o

jogo! O passarinho iniciara seus minutos de flauta... a serpente permanecia imóvel sob aquela

maravilhosa melodia. Então o pequeno Curupira arrastou consigo Bentinho dali, que nem mais

imaginava o que ocorria, em completo estado de apatia. Iara atirou-se em direção de Cesário,

intimidando-o com sua beleza sobrenatural, ordenou ao ladrão para ele caminhar em direção ao cais do

Ver-O-Peso e atirar-se na maré. Até hoje alguns pescadores que dormem em suas naus ancoradas no

cais da feira, dizem ouvir um choro de homem, um agonizante lamento de amor durante as madrugadas

de lua nova...

Enquanto Bóia-Ussú regozijava-se com o canto do passarinho, Norato cavava outra ponta do

asfalto. Engoliu Bentinho e chafurdou a terra até chegarem num terreno seguro. Uirapuru terminou seu

hino, Bóia-Ussú revirara seus olhos e viu que nada havia ali. Não encontrando o vendedor de cigarros,

devolveu-se ao seu sono profundo, adentrado às entranhas da terra. Os ponteiros do relógio

retornavam aos seus lugares. A Hora Morta na Praça do Carmo findara.

Faltava neutralizar agora, o terrível Anhangá, desprotegido do corpo do ladrão do Ver-O-Peso,

que agora jazia bem no fundo da Baía do Guajará, voltara a ser Anônimo. Enquanto isso, noutro canto

da cidade, a velha rendeira Natividade tecia sua tapeçaria, curiosamente o desenho era um sol com um

casal de amantes trocando juras de amor. Faltavam poucos pontos em cruz para celebrar o desenho.

Natividade ignorava a peleja que se afrontava bem no coração da Cidade Velha.

Natividade ao terminar o arremate e passar o nó no último ponto dado, um milagre aconteceu!

A paisagem tecida abriu-se em diáfanos. Um pequeno lago de luz formou-se em torno do pano bordado.

“Senhor, finalmente!” A velha incredulamente, exclamou com lágrimas nos olhos. Era chegada a hora.

Natividade havia esperado mais de mil anos por esse momento. Concentrou-se, retornando ao seu

estado Original. O anjo Natividade resolvera virar gente e cair na Terra na esperança de reencontrar

Coaraci, seu grande amor. Há muito tempo atrás, Deus, na sua infinita misericórdia, apiedou-se de

Natividade. O Altíssimo percebeu que um de seus amados anjos estava triste, pois este apaixonara-se

pelo Sol.

(...)

Natividade tornou-se luz igual ao que brilhava na tapeçaria que acabara de fiar. Adentrou na

paisagem indo parar exatamente onde Norato ruminava Bentinho para fora de si, salvando-o da

presença de Bóia-Ussú. Ninguém percebia Natividade, sendo ela apenas um pontinho de luz, misturava-

se aos vagalumes.

Mesmo agora a salvo da sinistra cobra do mal, Bentinho sofrera as conseqüências; por uma

fração de segundos, ele olhara bem nos olhos de Bóia-Ussú, e seus sentidos foram atirados na areia

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fétida da praia negra dos Exus. Embora seu corpo a salvo, sua alma não poderia mais retornar ao mundo

dos vivos... Bentinho estava morto.

Natividade foi até Jandiara, chamou os sonhos da moça para socorrer a alma de Bentinho, a

pequena índia kaiapó pediu ajuda a Tupã, suplicou em lágrimas ajuda de Coaraci – o Sol dos indígenas,

para que guiasse ambos. Sim! Jandiara pediu a Tupã para acompanhar seu amado nessa caminhada

rumo ao horizonte. E como o apelo da moça veio do coração, não podia ser negado. Jandiara também

falecera, dormindo.

Ao sentir a presença de Coaraci, Natividade compreendeu que seu Amor Perfeito estava

presente, indo ambos ao encontro um do outro, formaram infinita luminosidade que guiava os passos

do jovem casal enamorado. Bentinho e Jandiara seguiam em um belo cortejo de casamento rumo ao

horizonte. Não existia passado, nem presente, nem futuro, apenas Amor infinito para aquelas almas.

(...)

Bentinho e Jandiara foram enterrados um ao lado do outro no Cemitério de Santa Izabel. Na

ocasião fez uma tarde agradável. Passarinhos cantavam animadamente, rodopiando de arvore em

arvore. O sol da tardinha estava morno e alaranjado, beijava as folhas secas que cantavam arrastadas

pelo chão, ao sopro do vento. Uma sincera ladainha era entoada pelos presentes, última homenagem

aos moribundos.

Ninguém mais soube de Natividade. Alguns acreditam que ela havia retornado à sua terra natal,

o que de certa forma acontecera realmente... e do famoso ladrão do Ver-O-Peso, por muitas décadas

imaginou-se mil e uma coisas, menos que Cesário havia morrido, pois como o próprio Anônimo dizia ao

bandido: “o mal nunca morre, ele fica escondido, sempre a espreita...”. Ninguém sabia que corpo do

ladrão jazia no fundo da baia do Guajará, e que sua alma chora sempre à meia-noite, sentado à beira do

cais.

No dia seguinte ao enterro, a rotina dominava outra vez aquela gente colorida, os vendedores

da maior feira da América Latina continuavam seus afazeres. Naquele frenesi cotidiano, uma criança

derrotada pelo tédio de acompanhar a mãe às compras matinais, fora arrebatada para um pedacinho de

jornal vencido, que escapava de baixo de frutas e legumes de uma barraca qualquer. Estava escrito:

“Belém, 04 de outubro de 1930.

Notas Fúnebres:

A Passagem Frederico, nº 801 – Jandiara Kaiapó, paraense, índia, 15 anos, solteira, dona de casa. Causa

da morte: ataque cardíaco.

A Avenida Roberto Camelier, nº 125 – Bento Rodrigues das Chagas, paraense, mulato, 20 anos, solteiro,

feirante. Causa da morte: ataque cardíaco”.

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A correnteza da vida é indomável, leva tudo rapidamente ao esquecimento, permanecendo

apenas flashes de momentos felizes e festivos que a memória humana teima em reter nas mãos. O

reconhecimento do que é verdadeiramente belo em nossas vidas, é o que fica com o passar dos anos,

por isso orai e vigiai...

Aquela última renda tecida por Natividade hoje em dia encontra-se serena num salão,

repousando sobre uma belíssima mobilha protegida pelas paredes do suntuoso Museu do Estado do

Pará, que é aberto à visitação.

~FIM~

Hellen Katiuscia de Sá

Belém/Pará. 2005.