Este foi o primeiro livro que escrevi na vida. Finalizei a estória em 2005. A trama acontece na Belém de 1930, com alguns momentos focados na feira do Ver-O-Peso. Em Cuia D'Água, mesclo ficção e fatos reais acontecidos em épocas remotas, na Belém do Pará dos meados da década de 1930.
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Este foi o primeiro livro que escrevi na vida. Finalizei a estória em 2005. A trama acontece na Belém de
1930, com alguns momentos focados na feira do Ver-O-Peso. Em Cuia D'Água, mesclo ficção e fatos reais
acontecidos em épocas remotas, na Belém do Pará dos meados da década de 1930.
CAPÍTULO UM: Das Pessoas.
NEGRA BALBINA era vendedora de ervas. Mantinha uma banca na movimentada feira do Ver-
O-Peso. Esta senhora era bastante requisitada para curar problemas relacionados a paixões de toda
sorte, maus olhados e toques do malefício... mulher vivida, bastante experiente. Possuía muitos anos de
acurados estudos e aprendizagens dos cânticos e feituras de banhos de ervas, defumarias outras e
misturas cotidianas; estudos esses transmitidos oralmente pela sua bisavó – filha legitima da mãe
África. “Nhêga” Balbina, como era carinhosa (e respeitosamente) conhecida em toda região da vendaria
do Ver-O-Peso, dizia que ainda muito menina fora escolhida por sua bisavó para as aprendizagens,
“porque veio pré-destinada pelos orixás e guias deste povo”, como mencionava sua bisavó Ambrósia do
Chaco.
Até os vinte anos de idade Balbina não conseguia assegurar-se em sono noturno. Era
perseguida pelas “sombras”. Copiosas e densas aparições queriam impedir que se perpetuasse a
tradição mística deste povo negro em terras distantes de sua origem. Mas nhêga Balbina resistiu a essas
tentações escarlates de escaravelhos, pois seu destino seria passar a vida levando Luz a todos que dela
buscassem.
Certa vez sua bisavó dissera-lhe que não importava como era o candeeiro seguro pelo passante,
importava somente se a Luz que carregava, brilhava o suficiente para ajudar na difícil travessia, a noite
profunda das incertezas humanas. “Quase todas as pessoas são como pequenos barcos jogados à
correnteza, eles necessitam de um farol para guiá-los até um porto seguro: os seus próprios corações...”
– dizia a velha acorcundada Ambrósia, à sua netinha.
Os pesadelos da jovem Balbina cessaram de uma vez por todas quando em uma madrugada
frienta de um sonho, apareceu-lhe um negrão Banto. Sua pele lustrosa de um celestial negrume
continha uma luz fenomenal que enchia todos os aposentos da casa. Ele era musculosamente bem
dotado, muito atraente. Transmitia segurança e serenidade em seu olhar. Carregava nas faces delicadas
uma altivez guerreira, uma Paz e Força dignas de um rei. Seus grandes olhos eram caprichosamente
pintados de brancura sem igual, deixavam-se enegrecer nos centros pelas íris – densas pérolas
brilhantes e envolventes. Era um típico africano legítimo e sábio. Seria um rei encantado dos Bantos?
Balbina não saberia dizer... mas o conhecia.
O magnífico homem estava-lhe velando os sonhos, e a jovem nele confiava. O negro contou à
moça sonâmbula, que ele era feito da chama do fogo sagrado que Balbina carregava no coração. O
guardião de todos os ensinamentos que a velha Ambrósia do Chaco guardava para desabrochar à sua
escolhida. E o Banto também estava sempre por perto devido outro motivo, que anos depois Balbina
viria saber. O guerreiro a protegia de ANÔNIMO...
“Quem é Anônimo?” – perguntava ela inocentemente ao Banto. “É o demônio que habita em
todos nós. Anônimo nos espreita a todos. Ele reside nos descuidos dos detalhes, aguardando sempre
uma aresta para nos arremessar ao erro das escolhas”, contava o homem sobrenatural à moça que
dormitava amedrontada.
A partir dessa noite, Balbina nunca mais irrompeu madrugada adentro fugindo ao sonhos
alucinantes, embora não se lembrasse do sonho com o negro, sabia que havia algo que a protegia desde
então.
(...)
BENTINHO era o mulatinho mais bem quisto em toda feira do Ver-O-Peso. Começou a trabalhar
ali ainda molecote. Vendia sacolas aos transeuntes desprovidos; depois passou a vender limões galegos
fresquinhos. Quando rapazola, mantinha uma banca de tabaco. Ganhava bem porque a caboclada não
passava um dia sequer sem que tragasse a fumaça daquele vicio dos pulmões.
Em sua banca podiam-se encontrar cigarros de todas as marcas, cigarretes para as “madamas”, charutos
para os comerciantes bem-sucedidos das cercanias, e ervas soltas para que o próprio freguês montasse
à vontade o seu cigarrinho de palha. Vendia também a retalho e pendurava contas no seu livrinho de
notas. Talvez por isso que todos gostavam de Bentinho.
Morava longe dali, tinha um modesto casebre, caprichosamente decorado e arrumado por sua
mãe, orgulhosa do filho sustentar a casa por força de seu próprio trabalho, suor digno adquirido no
esforço diário na maior feira a céu aberto da America Latina.
Bentinho era moço alto; esguio; de olhos vivos, amêndoas atentas e joviais. Bastante sério,
quase não arreganhava os dentes para calcular sorrisos. Falava pouco, somente o necessário que seu
trabalho como vendedor exigia. Não gesticulava muito, sempre econômico e eficaz no comunicar.
Aprendera com sua mãe a arte de escutar e observar contrapondo-se à tagarelice, fazendo disso seu
forte escudo contra intrigas e fofocas...
Não era vaidoso, porém, cuidava de sua aparência com estimo, zelo e asseio. Vivia metido
numas calças de linho, religiosamente passadas e engomadas por sua mãe. As camisas em botão sempre
para dentro das calças, combinando com as finas meias enfiadas nuns sapatos mimosamente
envernizados.
Gostava dos cabelos bem aparados, ensopados de vaselina. Mantinha um bigodinho ralo no
rosto oval, o que deixava as moçoilas irrequietas. Devido aos pelos do buço, Bentinho carregava uma
face algo misto de menino e homem feito, que as fascinava. Entretanto, o rapaz nunca se agradara de
nenhuma das adolescentes do bairro onde morava, e nem de lugar nenhum!
Não lhe atraiam as moças de porcelana, com rostos congelados em cachos loiros; nem gostava
de mulatinhas ou negrinhas de sensual balanço nas ancas, de olhares provocantes nas faces com
sorrisos molhados e carnudos; muito menos as moças que trabalhavam na feira do Ver-O-Peso. Parecia
que o coração do bonito rapaz estava imune aos cânticos do amor.
Certa vez uma moça de dezoito anos deslumbrara-se do jovem feirante, indo declarar-se a ele,
e Bentinho, meio sem jeito, não sabia o quê dizer. Pediu desculpas à senhorita, pois não poderia
namorar-lhe, nada sentia a não ser admiração e respeito pelo ato corajoso da declaração amorosa. E
diante disso não é que a moça apelou para feitiçaria! Encomendou um trabalho para “amarrar” o jovem
junto a ela. Não deu em nada. Após o dinheiro gasto, a mandinga apresentou-se tortuosa, pois Bentinho
era pré-destinado à outra. Mas a rapariga cega de capricho, não queria saber das mãos silenciosas do
destino fiando o tecido tênue aos olhos mortais...
O feitiço não deu certo para ela, e o “espírito” executor veio-lhe cobrar o favor. Dizem que essa
senhorita ficou casada com o dito “espírito” que a tinha ajudado nessa empreitada. Ficou velha e
solteirona até o dia de sua morte, aos setenta e oito anos de idade, em meados de 1990. A solteirice
funesta e solitária fora o seu castigo por querer interferir no destino de outras pessoas.
(...)
CESÁRIO era descuidista. Ziguezaveava por entre a feira, sempre em busca de fregueses
distraídos com o troco da compra – momento quando a mão-leve do homem entrava em ação. Sua (má)
fama já era conhecida pelos feirantes que sempre o olhavam com raivosa desaprovação. Não era bem-
vindo nas cercanias das bancas e barracas, porque sua cara branquela e mal apessoada afastava os
fregueses de posses e mais atentos, que vinham fazer suas compras na tradicional feira do Ver-O-Peso.
Cesário era larápio por natureza, contam que desde pequeno já tinha essa má índole de
enganar e cobiçar o alheio. Seu primeiro furto foi aos oito anos de idade quando da visita de uma tia.
Cesário deparou-se com o camafeu que sua parenta usava no colarinho. O garoto a um canto da sala,
retorcia suas mãos, estalando vagarosamente seus compridos e ágeis dedos, meditando como
executaria o furto. Sua maior qualidade psíquica era observar...
Desde muito criança cultivava uma atenção a tudo, nada lhe escapava aos olhos profundos e
nervosamente discretos. Na ocasião, quando sua mãe Olívia servia café à tia do menino, derramou-lhe
sem querer o líquido na blusa da visita. Cesário – contemplando a cena – sorriu malignamente...
Aguardou a ida das duas ao toalete, momento em que abandonaram o camafeu à mercê. Em cima da
mesinha da sala, jazia a jóia que nunca mais fora vista pela família. Apenas Cesário sabia onde
“empenhar” o fruto do roubo. Peça de ouro 18, era valioso pelas delicadas ornamentações.
O menino havia vendido o artefato para comprar bilhetes a fim de brincar no arraial de Nazaré,
à época das festividades. Numa noite nazarena divertiu-se tanto... além da mesada entregue por sua
mãe, havia também o dinheiro da venda do furto. O moleque comeu tantos doces, maçãs do amor,
balas e algodão doce; participou das brincadeiras de pescaria, arremessos, e outros mimos do parque.
Torrou toda grana sem o menor remorso.
Seu corpo adulto tinha a maleabilidade de uma serpente. Magro e esguio, sustentado por
fortes e longas pernas. Sua cabeça e ombros pendiam um pouco para o lado esquerdo para observar as
coisas, tratava-se mais de um cacoete antigo.
Enterrados no rosto magro, seus grandes olhos acompanhavam toda movimentação da feira, não perdia
uma chance sequer para roubar. Era rápido nas corridas. Conhecia buracos e esconderijos em toda
região do comércio. E seus convivas eram da mais alta malandragem jamais vista.
Possuidor de uma anatomia que muito o ajudava na sua qualidade de punguista. As mãos de
Cesário nasciam de dedos longos, fortes, finos, e leves, coreograficamente precisos na ação de roubar!
Um sucesso inigualável na natureza, as suas mãos! Entretanto, o que assustava mesmo os transeuntes,
era seu sorriso... além de sua boca abrigar dentes disformes e amarelados por conta do vício do fumo, o
riso de Cesário era de fatal pisica!
(...)
NATIVIDADE era rendeira do Ceará. Diziam que viera com os pais para Belém, ainda mocinha.
Que era de família pobre e nordestina, e que aprendeu o oficio na infância, a arte da rendaria e
bordado.
A velha ganhava a vida com a venda das delicadas fazendas que tecia pacientemente. Ela
mantinha uma banquinha bem no centro da feira do Ver-O-Peso. Todas as tradicionais damas da
sociedade paraense da década de 30, do século passado, mantinham em suas casas as famosas
rendinhas de dona Natividade. Eram realmente lindas toalhinhas de estantes; belas rendas para as
meninas em primeira comunhão; anáguas; véus de noiva; além de outras delicadezas.
A artesã já estava próxima dos arredondados setenta anos de idade. Era solitária. Morava em
companhia de Rogério – seu gato de estimação. Ela preferiu a reclusão após a morte de seus pais,
porque sabia que ninguém poderia dividir a vida a dois com ela... muito religiosa, era devota de São
Benedito da Praia. Natividade juntamente com dona “Beloca”, (como era mais conhecida dona Isabel),
encarregavam-se da organização da festa em homenagem ao santo negro. Abraçaram esta causa no
inicio dos anos 20.
Tudo começou porque tia “Beloca” resolvera fazer uma promessa ao santo. Seu filho recém
nascido fora desenganado pelos médicos, entretanto, por intermédio milagroso de São Benedito, o
menino cresceu forte e sadio. Natividade conheceu tia “Beloca” logo que chegara a Belém, tornaram-se
comadres e irmãs em devoção pelo santo praieiro.
A velha rendeira, era simpática com os feirantes, fregueses e transeuntes em geral, e esses a
tratavam como uma avó bondosa e acolhedora. Natividade sempre dava conselhos e conversava com os
mais jovens que a procuravam em sua casa ou mesmo na feira. Nunca se intrometera na vida alheia, a
menos que pedissem... E no meio dessa rotina, as pessoas comuns nunca perceberam que Natividade
sustentava um olhar longe, melancólico e misterioso. A verdade era que esta senhora carregava consigo
um enorme segredo, e arrastava seus dias tentando escondê-lo, às vezes, de si própria...
(...)
STÉLIO era de boa alma, mas sofria de idiotice crônica. A família muito dolorosamente
contrariada, após inúmeras tentativas de segurá-lo em casa, o abandonara de vez, porque Stélio no
auge de seus ataques enfrentava ferozmente seus parentes, objetivando morar ao léu. Vivia como
andarilho pelas ruas de Belém. A força de sua loucura o obrigava andar rigorosamente a pé dias e dias
sem eira nem beira, numa interminável procissão solitária. A natureza do moço, porém, não era
violenta.
Stélio descendia de uma abastada família, tradicional estirpe belenense. Entretanto, nenhum
dinheiro foi capaz de curar sua moléstia. Quando menino, queixava-se cotidianamente à mãe sobre
umas dores de cabeça. O médico da família receitava-lhe leves analgésicos. O rapaz já vinha agindo
estranho, desde então... Até que um dia – um extremo colapso! Stélio acordara completamente
transtornado. Não reconhecia onde estava, não reconhecia sua família e irmãos... correu pela casa,
“tenho que ir”, gritava ao atravessar a porta da rua.
Na ocasião tentaram de tudo. Internaram Stélio na Santa Casa de Misericórdia, cercaram-no de
todo conforto e remédios revolucionários da época. E nada...
O pai do rapaz, o dr. Francisco Ferreira da Costa Prado não queria transferir o menino para a
Capela do Hospício, também conhecido como Hospital Juliano Moreira. O capelão de lá, nos anos de
1930, era o padre Leandro Pinheiro; o religioso sabia deste caso na família Costa Prado, já tinha ofertado
leito a Stélio, porém a família não queria admitir um “Costa Prado” num hospital para loucos da cidade.
Seria demais vergonhoso... Então, dr. Francisco decidiu transferir o garoto da Santa Casa para a capital
do País. Lá haveria médico que salvasse o primogênito da linhagem Costa Prado.
No dia da mudança, Stélio aproveitou-se de uma aresta, breve instante de descuido. Escapou!
Passos frenéticos, braços abertos ao ar, sorriso no peito. Ganhou a rua tão rapidamente que ninguém
conseguiu alcançá-lo. Ficando apenas nas paredes da Santa Casa a figura de d. Regina, a chorar e
lamentar-se pelo destino do filho.
Rostos estranhos foram testemunhas da difícil decisão que o patriarca Costa Prado tomara. Em
meio ao desespero perante a fuga de Stélio, o pai dele ainda pôde ver seus olhos sorrindo, como nunca
vira antes. Dr. Francisco compreendeu que seu primogênito seria mais feliz caso seguisse a liberdade de
sua insanidade, do que enclausurado numa suposta cura que ninguém sabia se um dia alcançaria a alma
do amado filho do dr. Francisco e dona Regina.
Então, o jovem Stélio vagaria a vida inteira por todas as ruas e vielas da cidade de Belém do
Grão Pará. Seu lugar favorito era a feira do Ver-O-Peso. Stélio era seduzido pelas cores, pelos cheiros e
balburdia que ali se via todos os dias. Os feirantes já o conheciam e o tratavam com amabilidade.
Stélio dependia da bondade deles para alimentar-se e conversar diariamente. O “rapaz
doidinho”, como o chamavam, era prestativo levando recados e pequenas coisas de troca entre os
trabalhadores da feira e comerciantes do local. Todos tinham uma convivência pacifica e fraterna com o
jovem.
Dizem que até os últimos dias de sua vidas, os pais de Stélio iam escondidos ao Ver-O-Peso
entregar dinheiro e agasalhos para a velha Natividade, que era responsável por repassá-los a Stélio.
Natividade fazia esse favor com o maior zelo e sigilo possível.
(...)
POTIGUAR era mestre em capoeira e também pai de santo. Mantinha o mais respeitado
terreiro de Candomblé que havia em Belém, na década de 30. Potiguar era conhecido por fazer
(somente) o bem sobre o solo sagrado de seu terreiro. Sua fama de pai de santo conseguiu atravessar o
gueto dessa religião afro-brasileira. As noites de cânticos e danças seduziam muita “gente de outra cor”,
que vez por outra estacionava nos domínios de mestre Potiguar em busca de “reza”. Como explicar esse
chamado musical dentro dos brancos? Seria o som do batuque requebrado ou os pés ululantes em
rodopios dos negros e mestiços que enfeitiçavam de beleza e encanto àqueles olhos azuis-ingleses ou
verdes-patrícios?
Ou seria o animo místico e indecifrável que há certas horas baixava nos corpos buliçosos e
suados dos filhos de santo, materializando-se em quadris frenéticos e sensuais bailados
enlouquecidamente felizes, terreiro adentro?
Tal espetáculo fabuloso dos espíritos guerreiros dos Bantos, dos batuques de Mina, das
tradições Afro, assombravam de prazer testemunhal os olhos dos arianos, que empalideciam as faces
frente ao maravilhoso milagre corpóreo.
Ninguém sabe ao certo dizer o motivo de tal fascínio. O que importa é saber que muitos
brancos católicos freqüentavam àqueles batuques buliçosos promovidos no terreiro de mestre Potiguar,
e todos buscavam benza, desfeitos para quebrantos, febres de mal-querenças, maus olhados, proteção
espiritual, conselhos dos Pretos velhos, enfim... pois como dizia velha Ambrosina à sua neta Balbina,
“não importa o candeeiro, e sim sua Luz a iluminar as Noites profundas da Alma...”
E por esse motivo mestre Potiguar recebia com igual atenção todos que ali acompanhassem as
rodas de batuques, incorporações e defumações acharutadas.
Potiguar freqüentava constantemente a Feira do Ver-O-Peso para comprar ervas, matos verdes,