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HISPANIA. Revista Espaola de Historia, 2007, vol. LXVII, nm.
227, septiembre-diciembre, pgs. 899-928, ISSN: 0018-2141
CRONSTICA AFONSINA MODELADA EM PORTUGUS: UM CASO DE RECEPO
ACTIVA*
ISABEL DE BARROS DIAS Universidade Aberta, Lisboa
RESUMEN: Este artculo estudia el modo en el que las crnicas
realizadas en el occidente de la
Pennsula Ibrica (la Traduccin Gallega y la primera y segunda
redaccin de la portuguesa Crnica de 1344) manipularon algunos
textos de la Estoria de Espanna alfonsina y post-alfonsina, que
usaron como fuente. La comparacin entre las diferentes crnicas
evidencia la extensin y la profundidad del trabajo llevado a cabo,
ya sea a nivel de extensos bloques textuales o de detalle. Aqu se
verifica que estas crnicas mantienen la referencia autoral de
prestigio (Afonso X,el rey Sabio) y, simultneamente, adecuan los
contenidos vehiculados a sus intereses especficos. De este modo,
frente a las narraciones elaboradas en el centro de la Pennsula,
las crnicas del extremo occidental van a vehicular puntos de vista
alternativos sobre algunos pasajes de la historia peninsular. Por
un lado, defienden el buen nombre de sus poblaciones y de sus
reyes. Por otro lado, y especialmente la segunda redaccin de la
Crnica de 1344, evidencian la voluntad de justificar y garantizar
un lugar en la historia para el reino ms reciente de la Pennsula:
Portugal.
PALABRAS CLAVE: Historiografia. Traduccin Gallega. Crnica de
1344. Estrategias retricas. Recepcin.
* So aqui usadas as seguintes siglas: PCG = Primera Crnica
General de Espaa Cr20R = Crnica de Veinte Reyes Trad.Gall =
Traduccin Gallega de la Crnica General y de la Crnica de Castilla
1344a = Crnica Geral de Espanha de 1344 (1 redaco) 1344b = Crnica
Geral de Espanha de 1344 (2 redaco) Este artigo retoma assuntos j
apresentados em artigos anteriores (que sero indicados, sempre
que tal se justifique) e, particularmente, em DIAS, I. B.,
Metamorfoses de Babel. A historiografia ibrica (scs. XIII-XIV):
Construes e estratgias textuais, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian
/ Fundao para a Cincia e Tecnologia Ministrio da Cincia e do Ensino
Superior, 2003.
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ISABEL DE BARROS DIAS
Hispania, 2007, vol. LXVII, n. 227, septiembre-diciembre,
899-928, ISSN: 0018-2141
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ABSTRACT: This article studies how the chronicles produced in
the western part of the Iberian Peninsula (the Traduccin Gallega
and the first and second versions of the Por-tuguese Crnica de
1344) manipulated some texts of the Alphonsine and Post-alphonsine
Estoria de Espanna, used by them as source. The comparison of the
different chronicles reveals the extension and the depth of the
work done, both at the level of large textual blocks, and of
detail. These chronicles keep the prestigious au-thorial reference
to Alphonso X, the Wise king and, at the same time, adapt the
contents to their own particular interests. Thanks to these
procedures, opposed to the chronicles produced in the centre of the
Iberian Peninsula, the chronicles of the ex-treme west will convey
alternative points of view on some passages of the peninsular
history. On the one hand they defend the good name of its
populations and of its kings. On the other hand, in particular the
second version of the Crnica de 1344 makes evident efforts to
justify and to guarantee a place in history for the most recent
kingdom of the Peninsula: Portugal.
KEY WORDS: Historiography. Traduccin Gallega. Crnica de 1344.
Rhetorical strategies. Reception.
A Estoria de Espanna1 afonsina foi uma das obras de maior
sucesso na Penn-
sula Ibrica, no perodo medieval2. Tem sido, tambm, uma das obras
que mais trabalho deu e continua a dar crtica textual, no quadro da
delimitao das suas partes e da respectiva datao, ao que acresce
ainda a questo da definio das suas diversas verses e
variantes3.
1 Os textos aqui usados para as duas principais verses afonsinas
da Estoria de Espanna foram os seguintes: para a verso primitiva
(cerca 1270) foi usado o testemunho parcial da verso rgia, que
integra o texto editado por MENNDEZ PIDAL, R.: Primera Crnica
General de Espaa, Madrid, Gredos, 1977, onde constitui o trecho
inicial (at ao cap. 616). O restante texto desta edio ter sido
elaborado em pocas distintas que, quando pertinente, sero
referidas. Como representante da verso crtica (cerca 1282-84), foi
usada a transcrio de um exemplar da denominada Crnica de Vinte
Reis: RUIZ ASENCIO, J. M. e HERRERO JIMNEZ, M. (transcr.): Crnica
de Veinte Reyes, Burgos, Ayuntamiento de Burgos, 1991, ramo que s
representa parcialmente a verso crtica uma vez que as crnicas
conhecidas como Cr20R s se iniciam no perodo da Reconquista.
2 Bernard Guene refere a Estoria de Espanna como um exemplo de
texto de circulao restrita Pennsula Ibrica, onde a sua influncia
foi, no entanto, marcante (inclusivamente porque o sucesso de uma
obra se mede no s pela divulgao da mesma, como tambm por outros
vestgios da sua leitura que se revelam pela existncia de
interpolaes, adies, continuaes, emprstimos, tradues, abreviaes,
adaptaes...): GUENE, B., Histoire et culture historique dans
lOccident mdival, Paris, Aubier-Montaigne, 1980, pp. 255 e
270-71.
3 Sobre as verses afonsinas e suas combinaes e reescritas, ver
CATALN, D.: De Alfonso X al conde de Barcelos, Madrid, Gredos, 1962
e, mais recentemente, idem, De la silva textual al taller
historiogrfico alfonsi. Cdices, crnicas, versiones y cuadernos de
trabajo, Madrid, Fundacin Ramn Menndez Pidal / Universidad Autnoma
de Madrid, 1997 e IDEM, La Estoria de Espaa de Alfonso X. Creacin y
evolucin, Madrid, Fundacin Ramn Menndez Pidal / Universidad Autnoma
de Madrid, 1992. Ver ainda FERNNDEZ-ORDEZ, I., Versin Crtica de la
Estoria de Espaa, Madrid, Fundacin Ramn Menndez Pidal / Universidad
Autnoma de Madrid, 1993, bem como a til sntese: IDEM, La transmisin
textual de la Estoria de Espaa y de las principales Crnicas de
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Um pouco mais circunscrito, no tempo e no espao, est o ramo mais
oci-dental desta ampla famlia textual. As tradues para o galego e,
posterior-mente, para o portugus, da Estoria de Espanna
configuram-se num universo relativamente pouco extenso de
manuscritos, distribudos por trs blocos: a Traduccin Gallega4 e a
primeira e segunda verses da Crnica de 13445.
Estes testemunhos, alm de manterem mltiplas caractersticas
prprias da famlia textual de onde derivam, caracterizam-se por
introduzir alguns desvios significativos ao modelo cronstico
cultivado no centro da Pennsula Ibrica. Uma boa parte destas
alteraes tem implicaes ideolgicas. Desde o texto da Traduccin
Gallega, at segunda redaco da Crnica de 1344, nota-se um pro-cesso
gradual que se afirma, no tanto contra os reinos de Castela e Leo
mas, sobretudo, a favor das regies mais ocidentais. Assim, temos,
por um lado, a defesa, do bom nome das populaes e dos seus
soberanos e, numa segunda fase, em crescendo, na primeira e segunda
redaces da Crnica de 1344, a von-tade de reservar um lugar na
histria para o reino mais recente da Pennsula6. Sendo o espao
fsico, geogrfico de Portugal j uma realidade, era necessrio
conquistar tambm um lugar na memria e no imaginrio. esse o combate
ideolgicoque o ramo portugus da historiografia afonsina trava, e do
qual sero seguidamente apontadas algumas caractersticas.
A Traduccin Gallega inicia-se com o reinado de Ramiro de Leo.
Comea por seguir uma verso idntica do texto editado como Primera
Crnica General que, nesse momento, j representa a verso
retoricamente amplificada7, se-
ellas derivadas, Alfonso X el Sabio y las Crnicas de Espaa,
Valladolid: Fundacin Santander Central Hispano / Centro para la
Edicin de los Clsicos Espaoles, 2000, pp. 219-260.
4 O texto usado aqui usado foi o seguinte: LORENZO, R. (ed.), La
Traduccion Gallega de la Crnica General y de la Crnica de Castilla,
Orense, Instituto de Estudios Orensanos Padre Feijoo, 1975.
5 A primeira redaco desta crnica, redigida em 1344, em portugus,
perdeu-se. S resta uma traduo em castelhano da qual o melhor
exemplar o ms. 2656 da Biblioteca Universitria de Salamanca, aqui
considerado, bem como a seguinte edio parcial: CATALN, D. e ANDRS,
M. S. (eds.), I Edicin Crtica del Texto Espaol de la Crnica de 1344
que orden el Conde de Barcelos don Pedro Alfonso, Madrid, Gredos,
1970. A minha numerao dos captulos do ms. 2656 da Biblioteca
Universitria de Salamanca segue a numerao existente na edio
parcial. Para a segunda redaco, usado o texto editado por CINTRA,
L. F. L. (ed.), Crnica Geral de Espanha de 1344, Lisboa, IN-CM,
1951-1990 (4 volumes).
6 Refira-se tambm a existncia de uma historiografia portuguesa
anterior j marcada por uma forte identidade e que contrasta com as
teses defendidas pela corrente historiogrfica asturiana. Sobre esta
questo ver DAVID, P (ed.), Annales Portugalenses Veteres, tudes
historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIIe sicle,
Lisboa / Paris, Portuglia / Les belles lettres, 1947, pp. 257-340.
Cabe ainda salientar que os textos portugueses no foram os nicos
que, na Pennsula, se tero apropriado do fundo historiogrfico
afonsino a fim de o manipular em proveito prprio. O mesmo se
verifica, por exemplo, com a Crnica dEspaya de Garca de Eugui que,
na ltima parte do sc. XIV, usa amplamente os materiais afonsinos
como fonte de uma narrativa onde se procura valorizar o estatuto
peninsular de Navarra, conforme salientado no estudo que antecede a
edio do texto: WARD, A. (ed.), Crnica dEspaya de Garca de Eugui,
Pamplona, Gobierno de Navarra, 1999, pp. 102-104.
7 O primeiro captulo da Trad. Gall editada corresponde ao cap.
628 da PCG, posterior, pois, ao fim do que seria o ms E1(orig) que
terminaria no cap. 616 da PCG.
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guindo com a cpia da denominada Crnica de Castilla. Apesar de no
inovar muito, relativamente aos textos que traduz, tambm no deixa
de introduzir algumas alteraes.
A primeira redaco da Crnica de 1344, por seu turno, distingue-se
por ter toda uma primeira parte de raiz no afonsina, sendo o
passado mais remoto a recuperado graas ao recurso a outras fontes
com as quais foram elaboradas uma srie de listagens genealgicas,
relativamente pouco desenvolvidas8. A verso afonsina da histria
mais antiga s recuperada na segunda redaco da Crnica de 1344. Este
ltimo texto apresenta-se, assim, mais uniforme, uma vez que j no se
verifica a mudana brusca de tom que a primeira redaco evidenciava
ao saltar da organizao analstica para um discurso mais descritivo e
detalhado.
No que se refere a alteraes ideologicamente mais significativas
relativa-mente aos textos afonsinos e ps-afonsinos, verifica-se,
entre as duas redaces da crnica portuguesa, um processo de construo
e de sedimentao de uma identidade prpria. O znite desta evoluo
ocorre na segunda redaco da Crnica de 1344 que, como muito indica,
ter tido lugar nos anos 80 do sculo XIV9, momento de crise econmica
e poltica, quando a primeira dinastia via aproximar-se o seu fim e
em que o perigo de uma invaso castelhana tomava os contornos bem
definidos de um perigo real e concreto. Com efeito, num mo-mento
destes, no seria muito adequado retomar um texto que fizesse a
apolo-gia de um Imprio Ibrico e/ou da supremacia de Castela, nesses
mesmos ter-mos. Um pequeno reino que no tinha cessado de lutar para
aumentar o seu territrio (mormente a sul, contra os muulmanos) e
para manter a sua inde-pendncia relativamente a vizinhos cristos,
consideravelmente mais poderosos (Leo ou Castela-Leo, consoante os
perodos), teria forosamente que reflectir, tambm ao nvel da sua
produo textual, uma das questes fundamentais para a Pennsula
Ibrica: a afirmao da existncia (e do respectivo direito existncia)
dos diversos reinos autnomos, em oposio a correntes que defen-diam
a unio sob um Imprio.
8 Salvaguarde-se que, de acordo com os estudos levados a cabo,
nomeadamente por CATALN, D.: 1992 (cap. VIII: La expansin al
occidente de la Pennsula Ibrica del modelo historiogrfico Estoria
de Espaa nuevas precisiones, pp. 185-196) e 1997, o texto que ter
servido de base segunda parte do trabalho historiogrfico de D.
Pedro Afonso, conde de Barcelos, seria um ms. Hoje perdido,
presumivelmente tambm o mesmo que esteve na base do ms. A1 (em
Galego) que, no entanto, ter feito uma cpia mais descuidada
(CATALN, D.: 1997, pp. 292-93). Assim, o texto galego aqui
utilizado no a fonte directa da Crnica de 1344, papel que ter sido
desempenhado pelo seu arqutipo. Depreende-se, pela ausncia dos
trechos relativos histria mais antiga, na TradGall, e pelos
acrescentos levados a cabo na 1344a que este ms. Estaria tambm
truncado, no que respeita aos perodos mais remotos. Sobre as fontes
da primeira redaco da Crnica de 1344, veja-se o estudo introdutrio
sua edio parcial por CATALN e ANDRS. Ver ainda MATTOSO, J.: Sur les
sources du comte de Barcelos, em GENET, J.-Ph.: Lhistoriographie
mdivale en Europe, Paris, ditions du S.N.R.S., 1991, pp.
111-116.
9 A questo da datao da segunda redaco da Crnica de 1344
discutida em DIAS (2003), I parte, ponto 4.
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A Crnica de 1344, nas suas duas redaces, vem, no s assumir a
defesa de Portugal e dos Portugueses, nem sempre presente nos
textos anteriores10, mas ainda reflectir a efectiva ordenao
territorial da Pennsula, marcada pela par-tio, no que contraria a
teia de aluses imperiais e a apologia da unio ibrica, veiculada
pelos relatos afonsinos11.
Os processos textuais / retricos usados na redaco
historiogrfica, com vista prossecuo destas linhas, so as
ferramentas habituais da dispositio, j anteriormente postas em
prtica no scriptorium de Afonso X, quer para acen-tuar os momentos
considerados mais relevantes (graas a inseres e amplifi-caes),
quer, pelo contrrio, para silenciar os momentos menos convenientes
(por meio de supresses e de resumos). No entanto, o seu uso aqui
feito de acordo com ideais e finalidades distintos que vo minar a
construo textual que o Modelo apresentava.
Estas manipulaes textuais so visveis, quer ao nvel macro,
relativo a aces efectuadas sobre grandes blocos textuais, quer ao
nvel micro, graas a pequenas alteraes de pormenor que, por vezes,
implicam grandes ou, pelo menos, considerveis modificaes de
sentido. De seguida sero passadas em revista passagens ilustrativas
destes dois tipos de recomposio textual. O seu cotejo com o
veiculado, sobretudo, pela historiografia oriunda do scriptorium
afonsino e da decorrente revela-se bastante esclarecedor no que
toca ao teor e ao alcance ideolgico das intervenes efectuadas.
I. INTERVENES AO NVEL DE GRANDES BLOCOS TEXTUAIS As adies e
supresses de grandes blocos textuais so intervenes que sal-
tam vista de quem compara as crnicas afonsinas e ps afonsinas. A
seguir so apontadas algumas das mais notrias e significativas no
que se refere ao grupo de crnicas produzidas no ocidente
peninsular, no mbito do quadro ideolgico acima esboado. Estes
exemplos so reveladores, precisamente, do modo como estas crnicas,
com particular destaque para a segunda redaco da Crnica de 1344, se
apropriaram e desviaram ideologicamente os relatos afonsi-
10 Note-se que o texto portugus manuseou variantes com
reescritas que dificilmente seriam do agrado de um cronista
portugus. Saliente-se a este respeito a constatao de
FERNNDEZ-ORDEZ, I.: Variacin en el modelo historiogrfico alfons en
el siglo XIII. Las versiones de la Estoria de Espaa, em MARTIN, G.:
La historia alfons: el modelo y sus destinos (siglos XIII-XV),
Madrid, Casa de Velzquez, 2000, pp. 41-74 (pp. 56-58) segundo a
qual a verso crtica parece opor-se independncia portuguesa.
11 A questo da defesa de uma monarquia absoluta e do domnio
universal (na falta do qual se faz o elogio dos reinos fortes e
unidos em detrimento dos fracos e fragmentados) apontada por
FERNNDEZ-ORDEZ, I.: Evolucin del pensamiento alfons y transformacin
de las obras jurdicas e histricas del rey sabio, Cahiers de
Linguistique Hispanique Mdivale, 23 (2000), pp. 263-83 (pp. 274-78)
como uma das caractersticas que transparecem tanto na obra
historiogrfica como na legal deste soberano.
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nos e ps-afonsinos de que se serviram. Para tal, foram usados,
sobretudo, os procedimentos bsicos de composio textual salientados
pelas Artes Poticas medievais: a abbreviatio e a amplificatio. Na
verdade, o que se escolhe omitir, aquando da construo de um texto,
mormente de uma crnica que O lu-gar da preservao da memria do
passado, to significativo como o que se escolhe integrar. Com
efeito, se um cronista revela o que pretende exaltar com os relatos
que amplifica, o que abrevia ou omite revela precisamente o que lhe
convm esconder ou desvalorizar.
a) A abbreviatio da narrativa relativa Histria Antiga No que
toca ao perodo da Histria Antiga, no possvel usar nem a Tra-
duccin Gallega, nem a primeira redaco da Crnica de 1344 enquanto
termo de comparao, no que toca transformao dos materiais afonsinos.
A primeira porque s tem incio no perodo da Reconquista, a segunda
porque, para este momento, se baseia em fontes no afonsinas.
A segunda redaco da Crnica de 1344 j teve acesso tradio
afonsina, mas procede a uma abreviao flagrante da histria desse
perodo12. O alcance ideolgico deste procedimento torna-se claro
quando se constata que a fonte afonsina truncada sistematicamente
de modo a elidir mltiplas aluses impe-riais. A desculpa apresentada
refere o seguinte:
E, por que esta estoria dos que conquistaron as Spanhas ataa os
Godos, fala
de muytos que en ella veheron a conquistar, he forado, por a
hordenana da storya hir dereita, que, daqueles principes que en
ella veheron e fezeron grandes feitos, que nos os metamos na
estoria alguas vezes, tomando huas cousas pe-quenas que fazem
hordena na scriptura, ainda que non tangam muyto aos fei-tos
dEspanha, e leixando alguus outros grandes feitos que elles fezeron
que non pertene a esta estoria. (1344b: II, 76).
No entanto, a crnica portuguesa refere acontecimentos que
tiveram lugar
fora do territrio ibrico13, enquanto que diversas aluses
Hispania e aos im-peradores de origem ibrica so esquecidas14. Este
aparente paradoxo s se en-
12 O expurgar de aluses imperiais na Histria Antiga, pela
segunda redaco da Crnica de 1344, estudado, com maior detalhe, em
DIAS, I. B., Translatio Auctoritatis em FREIXAS, M., IRISO, S. e
FERNNDEZ, L.: Actas del VIII Congreso Internacional de la Asociacin
Hispnica de Literatura Medieval, Santander, Consejera de Cultura
del Gobierno de Cantabria, Ao Jubilar Lebaniego y Asociacin
Hispnica de Literatura Medieval, 2000, pp. 639-649.
13 Caso da enumerao das diversas batalhas travadas entre Anbal e
os Romanos (1344b: II, 84-86).
14 Nomeadamente Galba, que eleito Imperador (em oposio a Nero)
em Espanha (PCG: cap. 178). Os bons Imperadores Nerva e Trajano
(PCG: caps. 190-91) eram naturais da Hispania, assim como o sbio e
estudioso Adriano (PCG: caps. 196, 198).
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tende se se tiver em considerao que graas a supresses deste tipo
que a crnica portuguesa pode desconstruir (por omisso) a argumentao
e as diver-sas insinuao imperiais do discurso afonsino, que
justifica do seguinte modo a insero da histria do Imprio Romano
numa histria de Espanha: Mas por que en los fechos de los romanos
tanne mucho de los de Espanna, por esso non podemos escusar que no
fablemos dellos (PCG: I, 84b).
No perodo da histria Antiga tambm se encontra um exemplo de
desvio de sentido de uma narrativa, por amplificao: trata-se do
trecho que relata o priplo de Hrcules e a sua actuao na Pennsula
Ibrica. Quando se coteja a verso rgia afonsina com a segunda redaco
da Crnica de 1344, verifica-se que, enquanto a primeira apresenta
Hrcules como o primeiro unificador da Pennsula, a segunda dramatiza
e dilata os traos mais romanescos do relato. Neste caso, a
amplificao da narrativa feita de modo a valorizar umas
carac-tersticas em detrimento de outras, desviando assim o sentido
dominante da histria. Deste modo, a acentuao de uma imagem de
Hrcules como um exemplo de cavaleiro valoroso, de um cavaleiro
errante em busca de aventuras avant la lettre, vai implicar a
diluio da sua dimenso poltica de primeiro unificador do teritrio
peninsular, o que constituiria, certamente, um exemplo muito mais
interessante para os ideais polticos do rei Sbio15.
b) A actualizao e amplificao das histrias dos reinos mais
perifricos Na narrativa do perodo da Reconquista, voltamos a
encontrar situaes
onde a amplificao e o desenvolvimento de determinados pontos da
histria vo implicar a alterao do equilibrio relativo das partes que
a compem. Ape-sar do relato dominante se centrar nos reinos e nos
reis de Castela e de Leo, o desenvolvimento da ateno dada aos
reinos perifricos e, em particular, a Por-tugal, na Crnica de 1344,
um elemento significativo pois vem acentuar a presena destes reinos
na histria peninsular.
A histria dos reis de Portugal apresentada, de modo muito
sintctico, pela PCG (cap. 969-971) e pela Trad.Gall (cap. 472-473).
A Cr20R (cap. iiii a x do lv. XII) j integra alguns elementos
pico-lendrios acerca do primeiro rei de Portugal mas a segunda
redaco da Crnica de 1344 que, naturalmente, mais amplifica e
prolonga o assunto (cap. DCCV a DCCXXVII). No que se refere s
histrias dos reis de Navarra e de Arago, a Trad.Gall alinha com o
texto editado como PCG e com o texto da Cr20R16. Porm, as crnicas
portu-guesas vo dilatar esta narrativa. No caso da segunda redaco
da Crnica de
15 Este assunto analisado com maior detalhe em DIAS, I. B., Le
Duel des Gants em BRUSEGAN, R.: et alii, LAntichit nella Cultura
Europea del Medioevo, Greifswald, Reineke-Verlag, 1998, pp.
195-205.
16 A histria dos reis de Navarra e de Arago, na PCG, termina no
cap. 801. Na Cr.20R, termina no cap. xviii [17] do lv. VII da III
Parte. Na Trad.Gall, termina no cap. 176.
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1344, o prolongamento vai do captulo CDXXXVII at ao captulo
CDXLIII, que corresponde aos captulos 321-326 da primeira redaco,
sendo que nesta a continuao ainda se estende pelos captulos 327 a
331. Este aumento pode justificar-se, meramente pelo acesso a
fontes mais detalhadas das histrias da-queles reinos. No entanto,
tambm h que notar que o aumento da extenso textual dedicada aos
reinos perifricos altera o peso relativo dos vrios reinos,
sobretudo, quando tambm se abrevia, mesmo se discretamente, as
narrativas sobre os reis de Castela e de Leo.
A Crnica de 1344 , pois, mais frugal do que os textos
castelhano-leoneses no que se refere aos elogios aos reis que
conseguiram unificar reinos. Muitas das narrativas mais ou menos
elogiosas relativas aos soberanos mais recentes de Castela e de Leo
so frequentemente abreviadas. Concomitantemente, no esquecido
nenhum dos episdios mais nublosos ou humilhantes dos reinados dos
soberanos castelhanos e leoneses. Esta atitude tanto pode ser
entendida como fruto de uma postura anti-imperial como decorrente
de uma ideologia pr-senhorial, consoante os contextos ideolgicos
dominantes que tero rodea-do a redaco das duas verses17. Porm,
tanto num caso como no outro, trata-se de alteraes que no podemos
qualificar como inocentes.
c) A amplificatio de narrativas picas e romanescas Ainda na
narrativa do perodo da Reconquista crist, a cpia do modelo
afonsino est pautada, sobretudo na Crnica de 1344, pela insero
de excertos picos ou romanescos mais extensos ou em verses
diferentes. Estas narrativas pem frequentemente em cena os feitos
de vassalos poderosos e, muitas vezes, tambm rebeldes, o que nem
sempre ia ao encontro da valorizao da posio central e dominante do
soberano. Por conseguinte, os textos afonsinos tero tratado estas
narrativas com particular cuidado, tendo-as devalorizado com
frequncia.
17 Considerando que a primeira redaco da Crnica de 1344 ter sido
elaborada pelo conde Pedro Afonso de Barcelos, tido como porta-voz
da classe aristocrata, que, semelhana de outras personagens como D.
Juan Manuel, no deixaram de marcar ideologicamente a sua obra
intelectual; tendo ainda em conta como algumas das reelaboraes mais
tardias do corpus afonsino j se encontram igualmente marcadas por
uma postura pr-aristocrata, possvel, neste contexto, entender as
manipulaes em causa como fruto e/ou desenvolvimento dessa mesma
corrente ideolgica. No entanto, para a segunda redaco, e partindo
do princpio que esta reelaborao ter ocorrido nos anos 80 do sc.
XIV, quando a ameaa de hegemonia castelhana se colocava com
bastante premncia, os referidos excertos podem facilmente
coadunar-se para servir uma ideologia anti-imperial, contrria unio
ibrica. Sobre a questo do antagonismo entre a classe senhorial e as
tendncias centralizadoras da realeza, ver, para o contexto
portugus, KRUS, L.: A concepo nobilirquica do espao ibrico
(1280-1380), Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian / J.N.I.C.T., 1994
e MATTOSO, J.: Ricos-Homens, Infanes e Cavaleiros. A nobreza
medieval portuguesa nos scs. XI-XII, Lisboa, Guimares editores,
1998.
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Tratado e desenvolvido de modo muito diferente, em distintas
crnicas, , por exemplo, a narrativa dos ltimos dias de Fernando I,
quando este rei decide distribuir o seu territrio pelos filhos. A
partio da Espanha por Fernando I en-contra-se muito abreviada na
Primera Crnica General, um pouco mais desen-volvida na Crnica de
Veinte Reyes, e atinge uma expresso particularmente longa nos
textos portugueses. Paralelamente, as crnicas do centro peninsular
insistem na negatividade da diviso e no mal que a fraqueza do rei
provoca ao reino. Con-soante o ponto de vista adoptado (a favor de
uma maior ou menor centralizao rgia) esta passagem pode ser
interpretada, seja como um exemplo negativo de diviso dos reinos
(pois d origem a sangrentas guerras fratricidas), seja como uma
situao que retrata um rei influencivel e indeciso que necessita, em
abso-luto, da presena e do conselho do seu vassalo mais fiel, o Cid
(como se verifica no texto que surge nas duas redaces da Crnica de
1344).
Por outro lado, para galegos e portugueses, o excerto tem
particular relevn-cia pois Garcia, o filho mais novo de Fernando I,
contemplado com um reino constitudo pela Galiza e pela parte j
conquistada de Portugal. Assim, esta hist-ria constitui um
precedente importantssimo, no s para a ideia da diviso penin-sular,
como tambm para justificar a existncia e reclamar um pouco mais de
antiguidade para o reino mais recente da Pennsula. No entanto, ao
confrontar-se com a histria da partio dos reinos por Fernando, o
Magno, a Crnica de 1344 encontrou srias dificuldades. Garcia ,
efectivamente, rei do Ocidente peninsular. Porm, as crnicas
anteriores veiculavam uma tradio negativa sobre a qual, tanto a
crnica galega, como as portuguesas tiveram de agir, graas a
procedi-mentos que sero adiante apresentados em maior detalhe.
Outro trecho que retrata alguma fraqueza por parte da realeza
face a uma classe nobre valorosa, quando no, ameaadora, o da
histria das Mocedades de Rodrigo. Na sequncia de uma interpolao
efectuada na denominada Cr-nica de Castilla, o ramo das crnicas
produzidas no ocidente peninsular tambm veicula esta narrativa onde
a capacidade de aco e deciso do heri contrasta com o carcter
temeroso e indeciso do rei Fernando I, que s se torna Par de
Emperador graas interveno do fiel vassalo, que o agracia com a
vitria sobre as foras papais e imperiais 18.
No juramento de Santa Gdea, ainda o Cid que pe em dvida os meios
mais ou menos lcitos pelos quais o futuro Afonso VI teria chegado
ao trono castelhano19. Verifica-se um caso semelhante quando o
mesmo rei se v obriga-
18 O texto deste poema encontra-se perdido sob a forma primeira
de cantar de gesta mas subsiste numa verso potica tardia: Rodrigo y
el Rey Fernando, MENNDEZ PIDAL, R. (ed.) e CATALN, D. (reed.):
Relquias de la Poesia pica Espaola, Madrid, Gredos, 1980, pp.
257-289. A narrativa das faanhas da juventude do Cid foi acolhida
pela Crnica de Castilla, passando da para o ramo ocidental destas
crnicas. A PCG e a Cr20R omitem este relato, que foi interpolado
entre os caps. 803-4, 804-5, 809-10 e 810-11 da PCG.
19 Cf. cap.ii do lv. X da Cr20R; cap. 845 da PCG; cap. 251-253
da Trad.Gall; cap. 416-18 da 1344a, e cap. 508-10 da 1344b.
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do a ceder face ao Cid devido ao medo que lhe inspirava o poder
blico do vas-salo e a possibilidade de poder ter que vir a
defront-lo20.
Este tipo de situao foi acentuado em algumas remodelaes
ps-afonsinas da Estoria de Espanna onde se nota um ponto de vista
mais pro-nobilirquico. No entanto, os mesmo trechos podem,
igualmente, servir os interesses identificados, particularmente,
para a segunda redaco da Crnica de 1344, na medida em que, de
alguma forma, diminuem a imagem de determinados soberanos que, na
realidade, unificaram e reinaram sobre grande parte do territrio
ibrico.
Ainda no quadro da desvalorizao do poder e da prpria
personalidade de alguns soberanos, verifica-se que a Crnica de 1344
recolhe as tradies mais longas dos episdios que relatam as
rebeldias de alguns cavaleiros, realados em detrimento da imagem e
do valor dos reis que serviam. Um exemplo deste procedimento a
verso mais violenta da histria de Fernn Gonzlez, onde o heri
castelhano afronta o seu suserano, o rei de Leo, no processo que
conduzi-r independncia de Castela21.
Finalmente, a histria do primeiro rei de Portugal, Afonso
Henriques22, tambm uma narrativa de cariz pico-romanesco que
apresenta o Imperador das Espanhas, Afonso VII, sob um ponto de
vista muito desfavorvel, sobretu-do no que se refere ao seu pouco
discernimento e incompetncia estratgica e militar. Com a insero
destes relatos, a crnica portuguesa est a fazer o mes-mo que antes
fora realizado com Fernn Gonzlez, cuja tradio pica foi apro-veitada
para a construo de um passado glorioso para Castela. Do mesmo modo,
e apresentando traos que posteriormente mais se iro assemelhar ao
prottipo castelhano23, as lendas relativas a Afonso Henriques
construiro o suporte e a justificao do direito de Portugal sua
independncia.
20 Esta narrativa foi interpolada entre os caps. 895 e 896 da
PCG. Est ausente tambm da Trad.Gall. A Cr20R refere os conflitos
entre o Cid e Afonso VI mas no os completa com qualquer cedncia por
parte do rei (cf. Cr20R: X, cap. XLVII at bis-LIII). A narrativa
mais extensa encontra-se assim na 1344a: caps. 490-97 e 1344b:
caps. DLXXXIII DLXXXIX.
21 Como o prova o seguinte excerto: Callade, rey Sancho
Ordonhez! N digades pallavras t vas, ca, ~e no que dizedes,
dariades pouco recado quando comprisse! Ca digo a Deus verdade que,
se n fosse por essas tregoas que dizedes que antre nos meteu esse
abbade de Sam Fagundo c os outros homees bos, assi como vos
dizedes, que vos cortaria a cabea e que do sangue do vosso corpo
yria esta auga tynta. E tiinhao muy bem guisado pera ho fazer, se
ha tregoa n fosse. Ca eu estou e cima deste cavallo e tenho esta
spada cinta; e vos andades em hua mulla e tragedes esse aor ena mao
(1344b: III, 99).
22 A histria mais desenvolvida dos reis de Portugal interpolada
entre os caps. 979 e 980 da PCG e corresponde aos caps.
DCCV-DCCXXVII da 1344b (a histria da vida e feitos de Afonso
Henriques ocupa os cap. DCCV-DCCXV).
23 Sobre os desenvolvimentos posteriores das lendas sobre Afonso
Henriques ver CINTRA, L. F. L.: A Lenda de Afonso I, Rei de
Portugal (origens e evoluo), ICALP Revista, 16-17, 1989, pp. 64-78
ou SARAIVA, A. J.: O Crepsculo da Idade Mdia em Portugal, Lisboa,
Gradiva, 1998, nomeadamente A primeira narrativa do milagre de
Ourique (pp. 163-166).
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II. ALTERAES DE PORMENOR Em alternativa insero ou omisso de
grandes blocos textuais, bem
como respectiva ampliao ou abreviao, o desvio do sentido de um
texto tambm pode realizar-se ao nvel de pequenas alteraes de
pormenor. Como ocorrem neste nvel do detalhe, podem passar
despercebidas a uma leitura mais apressada. No entanto, so
retoricamente to ou mais eficientes do que as grandes alteraes
porque, sendo mais subtis, mais facilmente podero ser
inte-riorizadas, podendo ainda no s contribuir para veicular ideias
e noes, mas ainda minar ideologicamente a narrativa em que
ocorrem.
a) A conquista de um espao na histria A vontade de conquistar um
espao para Portugal, no imaginrio e na
memria, graas historiografia, para justificar o espao fsico j
adquirido, pode ser vista em mltiplos pormenores textuais. Logo no
Prlogo, a segunda redaco da Crnica de 1344 procede a duas alteraes
do texto que d incio verso rgia: uma omisso e um acrescento, muito
significativos. A omisso revela o interesse em fazer esquecer a
extenso do reino de Afonso X e, certa-mente, em particular as
referncias a territrios, no momento, definitivamente sob alada
portuguesa (sublinhados nossos):
PCG (verso rgia) Crnica de 1344 (2a red.)
E por end Nos don Alfonsso, por la gracia de Dios rey de
Castiella, de Toledo, de Leon, de Gallizia, de Seui-lla, de
Cordoua, de Mrcia, de Jahen et dell Algarue, ffijo del muy noble
rey don Ffernando et de la reyna don-na Beatriz, mandamos ayuntar
quan-tos libros pudimos auer de istorias en que alguna cosa
contassen de los fe-chos dEspanna (Prlogo vol. I, p. 4a)
Porende el rey dom Affonso de Cas-tella, que foy filho del rey d
Fer-nando e da raynha dona Beatriz, mandou ajuntar qutos livros
pode aver das estorias antigas em que al-guas cousas fossen
escriptas dos feytos dEspanha. (cap. I vol. II, p. 6)
A adio, que ocorre no fim do resumo que feito da matria que
ser
abordada na obra, revela a vontade de chamar as atenes para este
espao geogrfico, o desejo de inserir tambm a zona mais ocidental
sob o foco da his-tria (sublinhados nossos):
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PCG (verso rgia) Crnica de 1344 (2a red.)
Et como fueron los cristianos des-pues cobrando la tierra; et
del danno que uino en ella por partir los reg-nos, por que se non
pudo cobrar tan ayna; et despues cuemo la ayunto Dios, et por
quales maneras et en qual tiempo, et quales reyes ganaron la tierra
fasta en el mar Meditarre-neo; et que obras fizo cada uno, assi
cuemo uinieron unos empos otros fastal nuestro tiempo. (Prlogo vol.
I, p. 4b)
e como outrossi foro os cristaos de-pois cobrando a terra e do
dampno que receberon por se n poder cobrar t aginha; e, despois,
como a Deus ajuntou e per quaaes maneiras e em qual tempo; e
quantos e quaaes reys guaanhar a terra da parte do mar Mediterreano
e quaaes da parte do mar Ouciano e que obras fezerom cada huus e
seus tempos assi co-mo veer huus empos os outros ataa o tepo deste
rey dom Affonso. (cap. I vol. II, p. 7)
De assinalar, tambm, a supresso da referncia vantagem da unio
terri-
torial em detrimento da sua partio, presente no texto afonsino,
mas significa-tivamente retirada na cpia portuguesa, que altera o
significado da frase. En-quanto que no texto portugus os cristos so
prejudicados pela lentido da reconquista, o texto afonsino assume
que o dano foi causado pela diviso terri-torial, razo pela qual a
reconquista foi dificultada.
De teor equivalente a forma como as duas redaces da Crnica de
1344 apresentam a contagem dos reis ibricos e que no deixa dvidas
quanto von-tade de insero de Portugal na linha dos reinos mais
antigos e mais poderosos da Pennsula:
Crnica de 1344 (1 red.) Crnica de 1344 (2 red.)
fueron rreyes de Leon e de Castilla que fueron treynta e siete.
E los rre-yes godos fueron treynta e seys, ansi que son por todos
setenta e tres. E con el rrei don Garia e con otros siete que
fueron rreyes de Portugal, que fueron por toda cuenta ochenta e
vno, fasta en la era de mill e tre-zientos e ochenta e dos aos que
este libro fue hecho, en miercoles, veynte e vn dias del mes de
Henero de la dicha hera. (1344a: p. 199 ed. CATALN & ANDRS)
foron reis de Castella e de Leom trin-ta e sete. E, c os reis
godos, que foron trinta e seis, fazem sateenta e tres. E, com el
rey don Garcia e com outros sete que forom reis de Portu-gal, foron
per toda conta oyteta e huu, ataa a era de myl e trezentos e
oyteenta e dous annos que este livro foy feito, feria quarta,
viinte e huu dias de Janeiro da dita era (1344b: II, 380).
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No trecho em apreo, ntido o intuito de valorizar Portugal e os
seus reis e de enxertar este ramo na rvore da historiografia
anterior, um procedimento idntico ao da construo de linhagens
familiares. No fundo, Portugal, sendo o reino mais recente da
Pennsula, est aqui a pr em prtica o mesmo procedi-mento
anteriormente levado a cabo relativamente a Castela. Inicialmente
mar-cada por um estado de vassalagem, como Portugal, Castela
conseguiu prestigiar o seu passado igualmente graas ao labor
historiogrfico, seja pelo recurso s tradies picas, que absorve, em
particular as do ciclo de Fernn Gonzlez, seja por tambm se associar
anterior linha sucessiva que procurava ligar, quase sem perturbaes,
os reis godos aos asturianos, leoneses e, finalmente
castelhanos24.
Na sequncia destes antecedentes, a melhor maneira como Portugal
podia impor ideologicamente a sua presena no espao Ibrico era
tomando posse de um lugar nesse passado, enxertando a sua histria
numa tradio que a historio-grafia afonsina j tinha consagrado como
predominante na Pennsula Ibrica.
Verifica-se, pois, como o trabalho levado a cabo pelos cronistas
portugueses no difere muito do anteriormente realizado nos seus
modelos textuais. Porm,
24 O filo neo-gtico foi cultivado primeiro pela historiografia
astur-leonesa e posteriormente adoptado pela castelhana, em
vernculo, com Afonso X e ainda pelos textos ps-afonsinos, apesar de
j se verificar aqui alguma desconstruo do tema. de reparar, em
particular, como, na PCG se verifica a preocupao em introduzir os
reinados dos diversos soberanos com uma referncia sua sucesso
relativamente a Pelaio (ex: El regnado del rey don Ramiro el II, et
XVII despues del rey don Pelayo, se comiena. PCG: II, 389b), o
primeiro rei da Reconquista, obviamente um nobre godo escolhido por
Deus para comandar as foras crists de resistncia invaso muulmana,
reatando assim a ligao privilegiada que unia Deus ao povo godo
(que, de certa forma, vai espelhar o povo eleito bblico) e associar
os soberanos da Reconquista a estes antecessores, baseando assim o
argumento que justifica a Reconquista como recuperao de uma herana
usurpada. Quando Castela passa de condado a reino e adquire
importncia associada a esta linha. Acresce ainda, depois de Afonso
VII, a significativa acentuao da relao dos diversos reis com o
Imperador (ex: Del regnado del rey don Alffonsso, fijo deste rey
don Sancho et nieto dell emperador, que regno treynteno despues del
rey don Pelayo PCG: II, 668a). Ainda sobre a questo do
neo-goticismo ver as consideraes de CATALN, D. (1997): acerca da
mentalidade subjacente elaborao do ms. E1(orig). Ver ainda o artigo
de GONZLEZ-CASANOVAS, R. J.: Alfonso Xs Concept of Hispania:
Cultural Politics in the Histories, em FORDE, S., JOHNSON, L. e
MURRAY, A. V.: Concepts of National Identity in the Middle Ages,
Leeds, Leeds Texts and Monographs, 1995, pp. 155-170. Sobre a
continuao do esprito neo-gtico concomitante com a diviso da histria
peninsular nos dois grandes perodos de pr e ps invaso muulmana ver
KRUS; L.: Passado, Memria e Poder na Sociedade Medieval Portuguesa,
Redondo, Patrimonia Historica, 1994, nomeadamente Tempo de godos e
tempo de mouros as memrias da Reconquista (pp. 103-127) e Os heris
da Reconquista e a realeza sagrada medieval peninsular: Afonso X e
a Primeira Crnica Geral de Espanha (pp. 129-142). Sobre estas
questes ver ainda as observaes dos editores das diversas crnicas
asturianas, bem como os respectivos textos: BONNAZ, Y. (ed.),
Chroniques Asturiennes (fin IXe sicle), Paris, CNRS, 1987 e GIL
FERNANDEZ, J., MORALEJO, J. L. e RUIZ DE LA PEA, J. I. (eds.):
Cronicas Asturianas, Oviedo, Universidad de Oviedo, 1985 ou ainda
MARTIN, G.: Histoires de lEspagne mdivale. Historiographie, geste,
romancero, Paris, Publication du Sminaire dtudes mdivales
hispaniques de lUniversit de Paris XIII / Klincksieck, 1997 (Un
rcit (la chute du royaume wisigothique dEspagne dans
lhistoriographie chrtienne des VIIIe et IXe sicles), pp.
11-42.).
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ao contrrio do que sucedeu com Castela, no se pretende aqui
absorver a tra-dio anterior para assumir o seu comando, mas sim
aproveitar o que dela pos-sa convir aos interesses coevos, se
possvel, em detrimento do prestgio de vi-zinhos mais fortes e
ameaadores.
b) A limpeza do bom-nome O bom-nome daqueles a quem um dado
texto se destina ponto funda-
mental e bsico a ter em ateno por quem elabora esse mesmo texto.
Deste modo, so naturais as diversas manipulaes de pormenor que
encontramos nas crnicas do ocidente peninsular e que procuram ou
reabilitar, ou desculpar ou, simplesmente, extirpar algumas
observaes menos favorveis existentes nas suas fontes. Exemplos bem
ilustrativos destes procedimentos podem ser encon-trados no trecho
que narra a histria de Garcia, rei da Galiza e de Portugal, filho
de Fernando, o Magno25. O caso interessante porque se constata, nas
crnicas do ocidente peninsular, alguma hesitao. As referncias
negativas no so eliminadas liminarmente, certamente, por respeito
autoridade da fonte. Porm, so inmeras as atenuantes apresentadas ou
insinuadas, assim como efectuados pequenos mas significativos
desvios de sentido.
- o bom-nome do rei Garcia O rei Garcia e a salvaguarda do seu
bom-nome interessam a galegos e a
portugueses. Para os galegos, Garcia pode representar a memria
de um tempo em que aquela regio foi um reino independente. Para os
portugueses, Garcia, como indica a contagem dos reis presente na
Crnica de 1344, acima transcrita, constitui um precedente da
independncia de Portugal. No entanto, nestas crnicas, Garcia tambm
o primeiro dos trs irmos que quebra o juramento feito a Fernando o
Magno, aquando da partio dos reinos, ao atacar o territ-rio da sua
irm Urraca. Na sequncia desta diviso de interesses, notria a
alterao de partido que se pode encontrar entre os textos do centro
peninsular e os do extremo ocidente. Um testemunho desta alterao o
modo como so apresentados os lamentos de D. Urraca. Na verso crtica
e na verso am-plificada de 1289 patente a revolta da infanta,
espelhada na violncia da maldio que dirige ao irmo:
25 Para este trecho, a Crnica de Veinte Reyes testemunho da
verso crtica (seco 4, que relata a histria dos reis de Castela e de
Leo, de Fernando I at ao fim do reinado de Fernando II, de acordo
com FERNNDEZ-ORDEZ, I.: 2000, p. 233) e a Primera Crnica General,
entre as pp. 429 e 565 transcreve o ms. do sc. 13 que integra o
cdice E2 e testemunha da verso amplificada de 1289 (cf.
FERNNDEZ-ORDEZ, I.: 2000, p. 243)
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Cr20R (verso crtica) PCG (verso amplificada de 1289)
El rrey don Garca, que es hermano menor, me desered primero e
pas el mandamiento e la jura que fizo a su padre. Deseredado sea l
en este mundo e en el otro! (Cr20R: 182)
El rey don Garia, que es mio her-mano menor, me deseredo primero
que los otros que son mayores, et passo la yura que fizo a su padre
et lo quel mando et le prometio que gelo ternie. Ruego a Dios que
dese-redado sea el en este mundo et en ell otro (PCG: II, 497a)
As verses mais ocidentais pem em jogo um elemento novo: o maior
temor
que D. Urraca teria do irmo mais velho, Sancho II, e do que ele
lhe poderia fazer, diluindo assim a questo pelos dois
transgressores, o do momento e o que tambm errar a seguir. Por
outro lado, a maldio atenuada e a sua colocao aps a referncia a D.
Sancho cria alguma ambiguidade relativamente ao seu referente:
Traduccin Gallega Crnica de 1344 (1 red.) Crnica de 1344 (2
red.)
el rrey d Garia, que este yrmano menor, me deserda, et passou a
jura que fezo al rrey meu padre, el rrey d Sancho, que este o mayor
et que fezo a jura per fora et con-tradiziendo(a) sempre a parti,
mays querra y fazer. Et por ende rrogo a Deus que edo seya
deserdado. (Trad.Gall: 354)
pues que el rrey don gar-ia que es el hermao meor me deshereda e
pasa la jura que fizo a el rrey my padre e el rrey don sancho que
es el ma[y]or e le fizieron agravio e [...] particin la qual el
con[tra]dixo ssienpre la particin mas qujera dios hy fazer lo suyo
e porende le rruego que el sea desheredado (1344a: f. 218rb)
Ca, pois que el rei dom Garcia, que he o irmao meor, me
deshereda e passou a jura que fez a meu padre, que fara el rei dom
Sancho, que he o mayor e que fez a jura foradamete, contradi-zendo
sempre a partion? Mas Deus queira em ello mostrar o seu direito e
peolhe mercee que assi seja elle deserdado! (1344b: III,
352-353)
O mesmo tipo de procedimento visvel quando o rei Garcia, uma vez
desa-
fiado pelo seu irmo, Sancho II, se lamenta da sua sorte e admite
as suas culpas:
Cr20R (verso crtica) PCG (verso amplificada de 1289)
El rrey don Garca, quando esto oy, pesle muy de coran e fue
muy
Quando esto oyo el rey don Garia, pesol muy de coraon et fue en
muy
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cuytado e dixo: Seor Ihesu Christo, minbrate el pleito e la jura
que fezi-mos al rrey don Ferrando, nuestro padre, quel que pasase
su manda-miento e fuese contra su hermano que fuese traydor por
ello e que fuese traydor por ello (sic) e que oviese la yra de Dios
e la suya, e, malos mis pecados, yo fuy el primero que lo pa-s, ca
tom a mi hermana doa Urra-ca su heredamiento. (Cr20R: 183a)
grand cueyta, et dixo querellandosse a Dios: Sennor Ihesu
Cristo, miembrete del pleyto et de la yura que fiziemos al rey don
Fernando, nuestro padre, que quien passasse su mandamiento et
fuesse contra su hermano que fuesse traydor por ello et que ouiesse
la yra de Dios et la suya. Et malos mios pecados, yo fu el primero
que lo passe et tolli a mi hermana donna Vrraca su hereda-miento
quel el diera. (PCG: II, 498b).
A violncia dos termos presentes nas crnicas do centro peninsular
, mais
uma vez, substancialmente atenuada nas verses mais
ocidentais:
Traduccin Gallega Crnica de 1344 (1 red.) Crnica de 1344 (2
red.)
Et desto pesou muy-to al rrey d Garia. Et dise: Senor Ihesu
Cristo, nebrete o preito que fezemos al rrey, noso padre; pero mal
pe-cado eu fuy o primey-ro [que quebrantey] a jura que fezemos a el
rrey, meu padre, et tolly per fora a mjna irmaa dna Orraca seu
herdamento. (Trad. Gall: 357)
[...] don garia [...] dixo seor Ihesu Christo ne [bre]te del
pleyto e de la jura que fezimos a mio padre pero mal pecado yo fue
el [...] qebrte ca tome por fuera a my hermaa dona U[...]os
heredamentos (1344a: f. 219rb)
E, quando dom Garcia esto ouvyo, disse: Senhor Jhesu Cristo,
nembrete o preyto e ju-rameto que fezemos a nosso padre, como quer
que eu fuy per minha maldade o primeiro que o britey, por que tomey
per fora a mynha irm os seus herdamentos (1344b: III, 355)
Finalmente, bastante ilustrativo deste processo ainda a evoluo
da frase
que retrata o rei Garcia e que comea por ser, na verso crtica,
uma obser-vao que d entrada questo do mau relacionamento que Garcia
manteria com os seus vassalos26: E el rrey don Garca era omne muy
fuerte e muy bravo
26 O mau relacionamento de Garcia com os seus vassalos um tema
recorrente nos diferentes testemunhos desta histria que se
repercute, por exemplo, no facto curioso de Garcia, antes de entrar
em combate, fazer um discurso a portugueses e outro a galegos,
separadamente, o que poder ser um indicador da existncia de faces e
de interesses distintos. O problema , no entanto, desculpado graas
ao argumento da ingerncia de um conselheiro demasiado influente.
Sobre o topos
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contra los suyos, (Cr20R: 202b). Porm, na verso retoricamente
amplifica-da passa a ilustrar uma caracterstica fsica de Garcia o
que, certamente, re-verteria na maior glria de quem o vencesse:
Este don Garia como quier que era el hermano menor, era muy fuerte
segund dize la estoria, (PCG: II, 499a). Finalmente, nas crnicas do
ocidente peninsular, a mera fora fsica transfor-mada em coragem,
para glria de quem a possui: El rrey d Garia era ome de gr cura.
(Trad.Gall: 358), Dize la estoria que el rrey don gar[ia] era honme
de gran cora[on] (1344a: f. 219va) e ca elle era home de grande
cora e pera grandes feitos. (1344b: III, 356).
- o bom-nome de galegos e de portugueses A par da defesa do
bom-nome do rei Garcia, parece situar-se a defesa do
bom-nome das populaes em causa. Menos atacados, os galegos so,
no en-tanto, diminudos num conselho que o Cid d ao rei Sancho II.
Curiosamente, este trecho mantido, tambm na Trad.Gall, se bem que
numa verso um pouco mais diluda27. J no que toca aos portugueses,
uma grave crtica surge na boca do rei Fernando, o Magno aquando da
partio e que consta no texto da verso crtica:
Dio a don Garca, el menor, toda Gallizia con aquello mesmo qul
ganara en
Portugal, alabando mucho a los gallegos e a los portogaleses,
dizindoles que eran loanos, rricos e nobles, francos e leales e
caualleros mucho esfforados en armas, e que nunca ovieron seor de
que fuesen abondados nin nunca el seor que ovieran de guardar fuera
arrancado. Pero dizen que dixo all a los portogaleses vna escatima,
que nunca fizieran buen seor que entre las manos les cayese;
(Cr20R: 173b)
do mau conselheiro e da sua utilidade para a desculpabilizao,
nomeadamente, do mau governo de um soberano, ver DIAS, I. B.: On
royal Infallibility, Portuguese Studies, 15, 1999, pp. 42-51.
27 A Cr20R / verso crtica apresenta o texto mais incisivo contra
os galegos: Seor, los gallegos estn agora con el rrey don Alfonso,
vuestro hermano, seguros de sus posadas, e non se catan de vos. E
vos fazet tornar los que fuyen e acogeldos todos a vos, e cras,
quando el alua, ferit en la hueste del rrey don Alfonso a desora,
ca los gallegos han por costunbre de se alabar mucho quando son
bienandantes, e de chufar e fazer grandes nueuas, e de escarneer de
los otros, e cansarn fablando en ello toda la noche e escontra la
maana adormeerse han (Cr20R: 185b). As restantes crnicas matizam a
questo, referindo-se tambm aos leoneses e, no caso da PCG, ainda
aos asturianos (PCG: II, 502b). O excerto que aparece na Trad.Gall
mantm as aluses negativas aos galegos: Et, senor, fazede agora
[acoller] a gente que vem fogindo et falade c elles et esforadeos.
Et, senor, cras a la madrugada dade cna signa no canpo; ca elles
estam como seguros, porque teem que am venudo pola ba anda que am
avida. Et demays que os galegos et os leoneses som muy chufadores
et de gr parauoa, et est c el rrey seu senor gabdose da (da) ba
andenaa que ouuer, que dize mays ca deue. Et, se(u) Deus quiser, o
gr plazer que elles ouuer tornarselles a en pesar (Trad.Gall:
365-366). Na Crnica de 1344 o trecho ocorre no cap. 385 da 1344a e
no cap. CDLXXXIV da 1344b.
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O excerto no se encontra, nem na PCG (cf. cap. 213), nem na
Trad.Gall (cf. cap. 204) que apresentam este momento de forma muito
sintetizada. As duas verses da Crnica de 1344 amplificam o relato
da morte de Fernando I, a partio dos reinos a que o rei procede e
as situaes mais tensas e confusas a que essa diviso d origem. Porm,
significativamente, o excerto liminarmen-te esquecido28.
No entanto, o eco deste defeito vai reaparecer, de forma
explcita, nos discursos que Garcia faz aos portugueses,
separadamente, antes de combater Sancho II, tanto na verso crtica,
como na verso amplificada de 1289:
Cr20R (verso crtica) PCG (verso amplificada de 1289) Des y dixo
luego a los portogaleses: Amigos, vos sodes nobres caualle-ros e
loanos, e a menester que todo el mal pres que avedes que lo
perda-des agora aqu e que finque en vos el bueno el bueno (sic); ca
vos avedes pres que fazedes pocos seeros bue-nos, pues fazed oy
bueno de my e ser la vuestra onrra muy grande, e sy yo bien saliere
de aqu galardona-ruos lo he muy bien. E ellos le dixe-ron que lo
faran muy de grado e que lo ayudaran quanto pudiesen e que non
fincara por ellos. (Cr20R: 184a)
et dixo luego a los portogaleses: amigos, uos sodes nobles
caualleros et loanos, et a mester que tod el mal prez que auedes
que lo perdades oy aqui, et que finquedes con buen prez; et departo
uos lo: vos avedes prez de fazer pocos sennores buenos entre uos;
pues fazet uos oy bueno de mi, ca sera uuestra onrra; et si yo bien
salir daqui, gualardonaruos lo e muy bien, de guisa que entendredes
que a coraon e de uos fazer grand algo. Et ellos dixieronle que lo
farien muy de coraon, et quel ayudarien quanto mas pudiessen, que
non fincarie por ellos. (PCG: II, 500a)
Neste caso, a Traduccin Gallega ainda no se afasta muito do
modelo afonsino:
Desi apartou os portugeeses et disollis: Uos sodes nobles
caualeyros et louaos, et a mester que todo o mal prez se
perca oge aqui et que fique sempre o boo, ca uos auedes preo de
fazer poucos se-nores boos. Et ontre uos conue que faades oge boo
de mj, et seera uosa onrra et uosa prol; et, se eu ende sayr,
galardoaruolo ey muy be, en guisa que enten-deredes que ey sabor de
uos fazer algo.
Et elles diser que o ajudaria et o seruiri de grado quanto
podese, et que n ficaria per elles. (Trad. Gall: 360)
No entanto, e como seria de esperar, o mesmo j no sucede nas
duas verses
da Crnica de 1344. Em que consiste o mau prez aludido, no s no
indica-
28 Cf. cap. 364-369 da 1344a e CDLXVIII-CDLXXII da 1344b.
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do, como ainda a expresso adquire, na segunda redaco, um tom
geral e inde-finido que, como tal, perde o seu anterior valor, ento
bem concretizado e expli-cado. A especificao que feita do valor dos
portugueses , agora, de tom bas-tante positivo e a anterior
insinuao de maus vassalos aqui transformada numa defesa da
liberdade e da independncia: os portugueses so apresentados como
nobres, ousados e que no aceitam jugos, um tom bem distante do dos
restantes textos.
Crnica de 1344 (1 red.) Crnica de 1344 (2 red.)
E desi apartose con los portogaleses e dixoles amigos vos ssodes
nobles honbres e a menester que todo el mayor pres que el dia que
[...] sse gane aq? e finque en vos sienpre todo bien ca vos avedes
pres de ardidos e que non queredes entre vos muchos sseores e
conviene que hagades hoy bueno de my e sera vuestra honrra e
vuestra pro e si dende yo ssaliere bibo yo vos lo galardonare muy
bien en guissa que entendades el talante de vos fazer bien end e
ellos dixeron que lo servirian e lo ayudarian de grado quanto
podiesen e que non fincaria por ellos (1344a: f. 220ra-b)
Desi apartousse c os Portugueses e disselhes: - Amigos, vos
sodes nobres homees; faz mester que todo maao prez se perca oje
aqui e fique e vos bondade pera sempre, ca vos avedes prez dardidos
e n queredes antre vos muitos senhores. Pore vos cvem que faaaes
oje de my boo e seera grande vossa honrra e muita vossa prol, ca,
se eu ende vivo sayr, eu vollo gallardoarey mui bem, de tal guisa
que entendades que eu hey tallante de vos fazer mercee. E elles
diseron que o serviri e ajudari de grado e que n ficaria per elles.
(1344b: III, 358)
Graas a estas estratgias, a Crnica de 1344 consegue
inclusivamente mitigar a
derrota com que termina o reinado de Garcia. Nos diversos
textos, o defeito dos portugueses referido e reiterado at sua
exemplificao prtica na fuga inglria que contribui para a derrota do
rei Garcia: mas al cabo venironse los portogale-ses e desanpararon
su rey e fuxeron, (Cr20R: 185a), mas al cabo desanpararon los
portogaleses al rey don Garcia, et fuxieron; (PCG: II, 502a) e Mays
desem-parar en cabo os portugueeses al rrey d Garia et fogir.
(Trad.Gall: 364). Po-rm, as duas redaces da Crnica de 1344, no
eliminando o facto dos portugueses terem desamparado o rei Garcia,
suprimem o pormenor da fuga (e da respectiva vergonha que tal acto
acarretava...) e do a entender, pela expresso a cima (cf acima de
tudo) que foi esta perda de suporte a principal razo da derrota de
Garcia que, sem tal ajuda, no poderia seno perder a batalha: mas a
la cima de-sanparar los portogaleses al rrey don garia (1344a: f.
221va) e Mas aa cima desemparar os Portugueses el rei dom Garcia.
(1344b: III, 362).
Levando ainda mais longe este exerccio de defesa dos
portugueses, o texto refundido do Livro de Linhagens do conde D.
Pedro no parece apresentar qual-
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quer prurido em manipular ainda mais profundamente estas tradies
em prol dos seus interesses. O relato centra-se aqui no heri
Rodrigo Foiaz, apresentado como um lder autonmico que remonta aos
tempos do rei Garcia29. Rodrigo Froiaz o campeo daqueles a quem o
texto chama obstinada e repetidamente de mui boos fidalgos
portugueses, para que ningum se esquea30.
Neste texto, o tom pr-portugus levado consideravelmente mais
longe. Garcia apresentado como um rei que, apesar de, por vezes, se
deixar influenciar mal, no , por isso, pior servido pelos seus
vassalos, fiis e dedicados at s lti-mas consequncias. E se o seu
fim se revela trgico, esse facto no foi causado por falta de esforo
mas pela confluncia de uma srie de sucessos infelizes31.
- o bom-nome dos povoadores do Porto Outra situao onde se
encontra patente a vontade de sanar aluses menos
abonatrias que remetam para o reino portugus e para as suas
gentes a que se verifica a propsito dos primeiros povoadores do
Porto e na consequente explicao da origem do nome Portugal.
A explicao do nome do reino surge, pela primeira vez, quando se
fala dos primrdios da povoao do Mundo, na sequncia da disperso dos
gigantes de Babel. Neste ponto, talvez por causa do peso da
Autoridade bblica subjacente, no houve coragem para alterar ou
cortar o texto afonsino que se traduzia:
PCG (verso rgia) Crnica de 1344 (2 red.) e los otros que
llamaron galaicos po-blaron Galizia, que antiguamientre solie seer
desdell agua de Cea fastal puerto de Gaya. Despues uinieron
E outros que chamar Gallicios po-brar Galliza, a qual
antigamente soya de seer des augua de Cea ataa o porto de Gaya.
29 Sobre este assunto, ver KRUS, L.: A concepo nobilirquica do
espao ibrico (1280-1380), Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian /
JNICT, 1994, pp. 281-286.
30 Ver MATTOSO, J. (ed.): Pedro Afonso, conde de Barcelos, Livro
de Linhagens do Conde D. Pedro, Portugaliae Monumenta Historica
Nova Srie, Lisboa, Academia das Cincias, 1980, 2 vols. A expresso
boos fidalgos de Portugal reiterada quatro vezes entre as pp. 226 e
228 (1 vol.), encontrando-se ainda a sua expanso como estes boos
fidalgos de Portugal, que sempre forom boos aos senhores e amarom
verdade (p. 228).
31 Note-se que o tema da infelicidade / m sorte j surge nas
crnicas do ocidente, nomeadamente quando Garcia prende o seu irmo
Sancho e o d a guardar a uns cavaleiros que no sero capazes de o
manter em priso: Et foy en ello de mao acordo et de maa ventura
(Trad.Gall: 362), E fue porende de mal rrecabdo e de mala ventura
(1344a: f. 221ra) e E por esto foy home de maao recado e de fraca
ventuira (1344b: 361). Na verso crtica diz-se: mas fue en ello
engagaado e omne de mala ventura. (Cr20R: 184b) e na verso
amplificada de 1289 diz-se et dize la estoria que fue en ello de
mal acuerdo (PCG: ii, 501a), acentuando-se a desvalorizao da
capacidade de discernimento e a opo tomada pelo rei Garcia.
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galeses por mar, que eran echados de su tierra, e arribaron a un
logar que agora llaman Puerto, e poblaron una grand partida de
Galizia que era yer-ma entre los dos rios que llaman Due-ro e
Minno, e pusieron le nombre Portugal. (PCG, I: 6b)
E despois per tempo arrybaron onde agora cham o Porto huas
gentes e naves que eram degradados de sua terra, os quaaes eram
chamados Galases. E estes pobrarom hua grande parte de Galliza que
era herma, e esta era antre doous ryos que chamam a huu Doiro e
outro Mynho. E composerom estes dous nomes e entom poserom nome aa
terra Portugalases mas depois o ecurtaron e poseronlhe nome
Por-tugal. (1344b: II, 14-15)
A explicao inicial refere que os primeiros povoadores do Porto
vieram de-
gredados, o que no poderia agradar. Por isso, com a desculpa de
que o leitor poderia no ter entendido a explicao que surge no incio
do livro, inserido um novo trecho explicativo que vai contrariar o
anterior, apesar de remeter para ele. Esta verso da histria no
aparece no texto editado como PCG, nem na Cr20R, nem na Trad.Gall.
S se encontra uma verso bastante mais sinttica, no ms. da traduo da
primeira redaco da Crnica de 1344 (cap. 452), e na sua 2 redaco,
onde integra um captulo intitulado, precisamente, como e por qual
raz cha-mar o cdado de Portugal (cap. DXLI). Aqui, a referncia
menos abonatria liminarmente erradicada, verificando-se uma ntida
evoluo da primeira para a segunda redaco da Crnica de 1344, pois
onde na primeira se faz uma aluso breve, a segunda redaco amplifica
consideravelmente:
Crnica de 1344 (1a red.) Crnica de 1344 (2a red.)
Dize el cuento q[ue] por la foz de duero arriba entravan barcas
se-gun la menera que agora entran e venjan ally aportar do agora
esta el puerto allj a so gaya q[ue] era muy bue castillo como agora
el e apor-tavan hy cotrossi e porq[ue] aporta-va hy pussieron ala
villa nonbre el puerto de portogall e poresso quan-do el rrey don
alfon[so] dio esta tie-rra del condado del conde don an-rriq[ue]
mando q[ue] llamasen el condado portogal. (f.250vb)
Contado avemos ja e os primei-ros cadernos deste livro, onde
falla das pobraoes das terras, como e por que raz foy chamado
Portugal. Mas, por que os que leessem e este logar e n em aquelle
outro ficariam dovidosos, pore queremos aqui di-zer algua cousa
como foy achado este nome. E devedes de saber, que, quando se as
terras comear de po-brar, em as partes de Galiza foy logo pobrado
acerca Doyro o castello de Gaya. E, por esto, os pescadores de
Galliza e das outras partes darredor
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etravam per o Doiro em suas barcas e viinh a Gaya vender o seu
pesca-do. E despois passavansse da outra parte, per que era bo
logar e de boa area pera estender as redes e folgar. E por esto
poserom nome, aaquele lo-gar em que assi aportav, Porto. E, despois
per tempo, foy ally pobrada hua villa e chamaronlhe o Porto. E,
despois que hy aportar os Gallases em suas naves, foy posto nome aa
terra Portugal. (1344b: IV, 5)
c) A supremacia no jogo com as palavras Para a formao do quadro
ideolgico que indicmos para a Crnica de
1344, em particular, na sua segunda redaco, o trecho mais
importante , sem dvida, o que relata a histria dos reis de Portugal
e, em particular, a narrativa do complexo lendrio, que se formou em
torno de Afonso Henriques, o rei Fundador32.
A narrativa que surge no texto editado como PCG lacnica e, alm
de in-formaes genealgicas, centra-se na indicao de que este rei
ousou atacar o rei Fernando II de Leo, tendo sido por ele derrotado
(PCG: II, 650-52). O assunto ainda retomado adiante, quando se fala
do reinado de Fernando II (PCG: II, 675-676). A Traduccin Gallega
segue, nos seus traos gerais, o modelo da PCG. No entanto, j altera
um pouco o relato, no que se refere derrota de Afonso Henriques,
como veremos adiante (Trad.Gall: 689-91 e 720-22).
A Crnica de Veinte Reyes, por seu turno, apresenta um texto mais
desenvol-vido, inserindo alguns episdios pico-lendrios, em
particular no que se refere posio de fora que Afonso Henriques toma
relativamente ao clero. No en-tanto, so minorados ou mesmo
completamente omitidos os relatos onde Afonso Henriques se impe
face ao primo, o Imperador Afonso VII. Apesar de ser mantida a
referncia batalha de Arcos de Valdevez, onde o poder de Cas-tela,
Leo, Arago e Galiza vencido pelo rei portugus, omitida a narrativa
da subsequente tentativa de vingana por parte do Imperador que vem
cercar
32 Sobre estas lendas ver CINTRA, L. F. L. (ed. Cr. 1344), op.
cit., vol I (Introd.), SARAIVA, A. J.: A pica Medieval Portuguesa,
Lisboa, ICALP, 1979 e MATTOSO, J.: Portugal Medieval Novas
interpretaes, Lisboa, IN-CM, 1985, pp. 509-435 (Joo Soares Coelho e
a Gesta de Egas Moniz) e idem, As Trs Faces de Afonso Henriques,
Penlope, 8, (1992), pp. 25-42. Sobre as tradies subjacentes a
Afonso Henriques, ver ainda DIAS, I. B.: Ares, Marte, Odin... em
WARD, A.: Teora y prctica de la historiografa hispnica medieval,
Birmingham, The University of Birmingham Press, 2000, pp.
80-98.
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o primo em Guimares, onde enganado por Egas Moniz, trechos que s
vamos encontrar na historiografia portuguesa.
Os testemunhos portugueses que, neste perodo, veiculam, com
diferentes graus de desenvolvimento, as narrativas pico-lendrias
sobre Afonso Henri-ques so o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro,
as III e IV Crnicas Breves de Santa Cruz de Coimbra33 e a segunda
redaco da Crnica de 1344. Infelizmente, o ms. mais completo da
primeira redaco desta crnica termina truncado imediatamente antes
de se dar incio histria dos reis de Portugal, razo pela qual, sobre
este testemunho, s podemos tecer conjecturas34.
Em todo o caso, para exemplificar o trabalho de manipulao que os
dife-rentes cronistas tero feito neste passo da histria, vamos
centrar-nos no epis-dio do desastre de Badajoz.
A sequncia dos acontecimentos ocorridos em Badajoz sensivelmente
a mesma: apesar de esta cidade ser conquista atribuda a Leo, Afonso
Henriques toma-a aos mouros. Ao ter conhecimento do facto, Fernando
II move para a o seu exrcito para combater o rei portugus. Este, ao
passar pela porta da cida-de, embate contra o ferrolho e parte uma
perna, sendo preso pelo rei leons que, posteriormente, o liberta em
condies especficas. Porm, as diversas cr-nicas vo conseguir contar
este mesmo episdio de forma bastante distinta35.
A verso onde os portugueses e o seu rei so mais maltratados ,
indiscuti-velmente, a que se encontra na PCG. A derrota adquire um
peso considervel, no s porque se trata de um episdio que contado
duas vezes, mas tambm porque a restante matria sobre o primeiro rei
de Portugal menos extensa e menos gloriosa. A primeira aluso ao
episdio encontra-se na narrativa dos reis de Portugal e estabelece,
desde logo, a imagem dos dois intervenientes: atrevi-do um, piedoso
o outro:
Este rey don Alffonsso otrossi se atrouo a lidiar con el rey don
Fernando de
Leon, et fue uenudo este rey don Alffonsso et preso; mas el rey
don Fernando era piedoso et soltole luego de la prision et diole a
los suyos. (PCG: II, 652a-b)
33 As quatro Chrnicas Breves e memrias avulsas de S. Cruz de
Coimbra foram editadas nos Portugaliae Monumenta Historica.
Scriptores, Lisboa, Academia das Cincias, 1856, pp. 23-32.
34 O penltimo cap. do ms. 2656 da B.U.S. anuncia, imagem da
Trad. Gall, que vai contar a histria dos reis de Portugal mas deixa
ento de seguir a Trad.Gall que, efectivamente, faz a um resumo da
linhagem dos reis de Portugal e das batalhas de Afonso Henriques
(semelhante PCG). O texto do ms. 2656 salta esses dois caps. e a
partir do incio do seu ltimo cap. retoma o texto, idntico ao cap.
474 da Trad.Gall e ao cap. 702 da 1344b, terminando de seguida.
Torna-se assim muito difcil saber se a histria narrada em 1344b
tambm se encontraria em 1344a (nos mesmos moldes ou em moldes
diferentes). Por um lado, a omisso dos dois caps., anunciados
semelhana da Trad.Gall, pode fazer pensar que sim, por outro lado,
a grande colagem do texto de 1344a a uma narrativa semelhante
veiculada pela Trad.Gall pode fazer suspeitar que no.
35 Esta cena e suas implicaes textuais e ideolgicas j foram
estudadas por CINTRA, L. F. L.: (ed. Cr. 1344), op. cit., vol I
(Introd), pp. XC, CCCLXI-XII e CCXXXVIII-CCXL, e por CATALN, D.:
(1962).
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Seguidamente, j na histria de Fernando II, h notcia de um
primeiro confronto com portugueses, em Ciudad Rodrigo, onde estes
fogem ingloria-mente ou se rendem e relativamente aos quais
Fernando II procede com a sua j habitual piedade:
Et lidiaron alli, et uenio la fazienda ell rey don Fernando de
Leon, et fuxie-
ron los portogaleses et fincaron dellos muchos muertos alli, et
los otros fueron sa-gudados; los que fincauan aun en el campo
echaronse a mesura del rey don Fer-nando, et el reibiolos et non
les fizo como quen los venie en batalla mas como piadoso prinep, et
dexolos yr (PCG: II, 675a)
Finalmente, o desastre de Badajoz contado de forma absolutamente
des-
favorvel dignidade do rei portugus. Afonso Henriques surge-nos
como um homem amedrontado que, na nsia da fuga, cai numa situao
miservel, de meter d. Uma vez preso, no hesita em prometer tudo o
que tem para se sal-var. Fernando II, pelo contrrio, limita-se a
demonstrar a sua magnanimidade:
Et llego mandado desto a esse rey don Fernando de Leon; et el
rey don Fer-
nando, ayuntada su hueste, ueno et lidio con don Alffonsso, rey
de Portugal, et ueniol. Et alli fue desbaratada la hueste de los
portogaleses, et don Alffonsso su rey fuxo et metiosse en Badaio,
ca ya auie tomado fascas las dos partes dessa ipdad de Badaio, et
tenie los moros encerrados en una torre. Mas nin aun alli non se
tenien-do por seguro, pues que fuye, ueno a la puerta de la ipdad
que se cerraua con pes-tiello de fierro, et puxo ell al pestiello
por abrir la puerta et salir, mas non se abrio bien la puerta, pero
salio et rey, mas tanta fue ell angostura de la puerta que crebo
alli la pierna al rey, et el apenas pudo salir en el cauallo que
nun cayesse del a tierra. Et fue preso luego, et assaz mal parado,
et en guisa de auer meret del todo omne bueno que atal le uiesse;
et fue atal empresentado al rey don Fernando et el rey don Fernando
reibiol bien et con piedad et assentol consigo en el su estrado
real. Et don Alffonsso, rey de Portugal, mesurando alli estones ell
su estado et el pe-ligro en que era, conffesso et dixo que uuscara
corroto, non deuiendo nin auiendo derecta razon por que contral rey
don Fernando de Leon fuesse; et por ende por fazierle emienda
offreiol alli el regno et la su persona, et dauagelo todo. Mas el
rey don Fernando mansso et con la piedad que solie, touosse por
abondado de lo suyo quel su padre le dexara et de lo que el auie
ganado, et de lo desse rey don Alffonsso de Portogal non quiso
retener ninguna cosa. Estones alli otrossi este rey don Alffonsso
de Portugal solto a don Fernando, rey de Leon, tierra de Limia et
Turon et otros lugares que deuuien seer del sennorio de don
Fernando, rey de Leon, maguer que esse don Alffonsso, rey de
Portugal, estones de nueuo lo ga-nara de moros, et dexogelo alli
libre et quito sin toda otra contienda el rey don Alffonso al rey
don Fernando. Ffecha esta abenenia, et delindados sus terminos e
puestos sus amores entre los reyes, finco suelto don Alffonso, rey
de Portugal, et tornosse por su tierra. Et dalli adelant este rey
don Alffonsso de Portugal non pude usar de fecho de caualleria por
razon de la pierna quel crebara en la sallida de la puerta de
Badaio como dixiemos. (PCG: II, 675a-b)
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A Crnica de Veinte Reyes j no se revela to desfavorvel. Alm de
omitir a primeira referncia, na histria do rei de Portugal (cf.
cap. X do lv. XII), cer-tamente fruto do cuidado tido para no
repetir acontecimentos, atenua o por-menor da fuga na batalha de
Ciudad Rodrigo36 e a presena de Afonso Henri-ques em Badajoz
apresentada de modo consideravelmente mais digno, provavelmente por
influncia dos testemunhos lendrios que a verso crtica ter
conhecido. O rei portugus um cavaleiro valoroso que tem um
infort-nio, consequncia da questo havida com a sua me. O encontro
entre os dois soberanos est marcado por uma certa cortesia
mtua:
El rrey don Ferrando luego que lo supo, sac su hueste e fue
sobre el rrey de
Portugal e pos a vna legua de la villa. Los caualleros del rrey
don Alfonso dixeron: Seor, hevos aqu el rrey don Ferrando do viene
sobre vos con gran hueste. El rrey don Alfonso les dixo: Pues
armmosnos e vayamos a l al campo. El rrey don Alfonso seyendo ya
armado, firi al cauallo de las espuelas e fue por salir por la
puerta, e el portero quando avri la puerta non enpux el berrojo
adentro. El rrey saliendo muy rrezio por la puerta, fue a dar de la
pierna en el berrojo e quebrle la pierna. Esto fue por el pecado
qul fiziera cont[r]a su madre, e cay luego fuera de la villa en vn
centeno que y ave. Don Ferrand Rruys el Castellano, que lo vio, fue
para el rrey don Ferrando e dxole: Seor, aqu yaz el rrey don
Alfonso con su pierna quebrada, e prendelde. E fue logo preso e
leuado al rrey don Ferrando. El rrey don Ferrando rreibilo muy bien
e asentle cabo sy. El rrey de Portugal te-nindose por muy
quebrantado e que errara mucho contra el rrey don Ferrando, e por
fazerle gran emienda duale el rreyno e su cuerpo, que l fiziese
ende a su pla-zer. Mas el rrey don Ferrando, commo era manso e muy
piadoso, non quiso nada de lo suyo, mas dxole quel diese todo lo
suyo. Des y fizole el rrey de Portugal pleito e omenage que tanto
que caualgase que fuese a l o que quier qul mandase. Des y otorg al
rrey don Ferrando de Lunia (sic) e de Toroo e de todo lo l que
fuera su-yo, e asy le dex yr el rrey don Ferrando en paz. El rrey
don Alfonso de Portogal fuese entones para Coynbria e por achaque
de la pierna nunca quiso caualgar en todos sus das nin sali de
Coynbria fasta que muri. (Cr20R: 276a-b)
A Traduccin Gallega vai alinhar com o texto da PCG mas j no
apresenta
uma narrativa to demolidora quanto a desta verso, seja no que se
refere a Ciu-dad Rodrigo, onde no refere que os portugueses
fugiram37, seja no que toca a Badajoz, onde o rei portugus no
apresentado de forma to miservel, apesar de quebrar a perna quando
tenta fugir38, ou seja, no mesmo sentido que nos apa-
36 e all lidiaron, e veni el rrey don Ferrando a los
portogaleses, e mat muchos e sigui los otros e prendi muchos. Mas
el rrey don Ferrando, commo era omne piadoso, soltlos luego e
dexlos yr sua va. (Cr20R: 276a).
37 et for os de Portugal venudos; et matou et prendeu moytos
delles et seg[u]do[u] os outros, en tal maneyra que foy muy gr seu
dno. Et como el rrey era muy piadoso soltou os presos et mandoos yr
sua vya. (Trad Gall: 721).
38 et, quando o soube, pesoullj muyto, et sacou logo sua oste,
et foysse para ala. Et lidar erca da villa. Et foy venudo el rrey
de Portugal et foy fugindo contra a vila, et a gente del rrey d
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rece na PCG e em sentido contrrio ao da verso da Cr20R. No
entanto, a prin-cipal alterao surge na questo do acordo que feito
entre os dois reis e que a Trad.Gall conta por duas vezes, tal como
sucedia na PCG (sublinhado nosso):
Traduccin Gallega (hist. de Af. H.) Traduccin Gallega (hist. de
Fern. II)
Et este rey lidou en batala c el rey d Ferndo de Leom et foy
venudo et preso. Et, quando o prender, tijna a perna britada. Et
troixe preyto c el rey d Fernando, que o soltase et, tal ora como
fosse so, que caualgasse en besta, que sse ueria a sua priiom. Et
el rey d Fernando coube seu rrogo; et el fezo menagem de o conprir;
et lei-xoo yr pera seu rreynado a Portugal. Et so [u] muy bem [et]
nuca ia mais quiso caualgar en besta, por n uijr aa menagem que
fezera, que, tal ora como caualgasse en besta, que sse ueria a sua
priiom. Et por esta raz sempre andou en andas et en colo dos omes
ata que morreu. (Trad.Gall: 691)
Et el rrey de Portugal teuesse por culpado, et arrepenti[u]sse
muyto [por que se mouera] contra el rrey d Fernando, et pediulli
por meree que lle perdasse. Et el rrey d Fernando era ome de boo
talente et piadoso et n quiso nehua cousa de seu sen-horio; mays
ouue avijna c elle, que llj desse o que tijna tomado en Galiza, et
que o soltasse, et que o leixasse yr a sua terra guareer da perna;
et logo como fosse so, tal ora como caual-gasse, que sse verria a
su[a] priiom. Et el rrey d Fernando soltoo. Et el fezo-lle tal
menage et foysse a seu rreyno, et mandoullj entregar o que llj
tomara en Galiza. Et el punou de guareer, quanto mays pode; et,
desque foy so, nca ia mays quiso caualgar en besta por n vijr aa
menagem que fezera, que tal ora como caualgasse en bes-ta, que sse
verria a sua priiom del rrey. Et daly adeante sempre andou en
an-das en colos de omes ata que finou. (Trad.Gall: 721-722)
A Traduccion Gallega acrescenta um novo dado ao afirmar que
Afonso Hen-
riques no volta a montar para no ter que cumprir o juramento que
fizera, enganando assim Fernando II, uma vez que se explica que se
tratou de uma promessa equivoca. Este simples pormenor altera
completamente o tom do episdio. Instaura a dvida, no que respeita
pretensa piedade de Fernando II, e reverte a postura de submisso de
Afonso Henriques que, nesta verso, se limita
Fernando enpos elles ferindo et matando. Et t rrigeos entrarom
pela porta da villa que quebrou a perna al rrey de Portugal, eno
ferrollo da porta da vila. Et os del rrey dom Fernando entrar ala c
elles de volta, et foy preso el rrey de Portugal. Et troixerno
preso ante el rrey d Fernando. Et el rreebeuo muy bem, et asentoo
erca de sy, et fezollj moyta onrra. (Trad.Gall: 721).
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A CRONSTICA AFONSINA MODELADA EM PORTUGUS: UM CASO DE RECEPO
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a pedir perdo sem oferecer qualquer reparao exorbitante. Revela
ainda esperte-za e habilidade no manejo das palavras, usando-as de
modo a obter e a manter a sua liberdade uma vez que, de acordo com
este testemunho, no volta a montar, no por achaques da fractura,
mas para no ter que cumprir a promessa feita.
precisamente neste sentido que vai a segunda redaco da Crnica de
1344, ao que acresce ainda a salvaguardada do valor do rei que,
neste testemunho, parte a perna quando passa a porta, novamente no
sentido que j vimos na Cr20R, no a fugir mas com a pressa de ir
ajudar os seus, dada a sua valentia:
E, quando el rey dom Ferndo chegou a Badalhouce, el rey d
Affonso man-
dou armar toda sua companha e sayu fora da villa. E indo elle
polla villa assy ar-mado e cima de seu cavallo, disseronlhe e como
ja suas gentes se embaratavam c d Diago e com d Fern Roiz que
tragiam a dianteira. E, quando esto ouvyo, ferio o cavallo das
esporas tam rijamente por sayr da villa e chegar aos seus que era
maravilha. Mas o que abrira a porta n colhera bem o ferrolho. E el
rey levava o cavallo afficado das esporas, como aquelle que era o
mais vallente e esforado cavalleiro que se podia saber. Qudo chegou
aa porta, n se guardando daquelle ferrolho, topou o cavallo en elle
de tam grande fora que se britou a perna a el rey. E o cavallo
steve pera cayr em terra, pero foy fora e chegou aos seus. Mas, des
que comear a lidar, n o pode soffrer o cavallo, ca era chegado aa
morte do grande golpe que dera no ferrolho, e leixousse cayr com
elle. E cayulhe sobre aquella perna e britoulha toda. E os seus
quyserno levtar e poer e outro cava-llo e non poderom, ca era a
perna britada pela coixa. E entom chegou el rey d Fernando e
prendeuoho e muytos dos seus c elle.
E, despois que el rey d Affonso foy preso e os seus venidos,
foisse el rey d Fernando pera a villa e levou csigo el rey d
Affonso preso e fezelhe muy bem pensar da perna e fezlhe muyta
honrra e preytejou c elle que lhe desse termho des o Minho ataa o
castello de Lobeira que era seu e que lhe fezesse menage que, tanto
que cavalgasse e besta, que tornasse a sua prisom. E elle fezeo
assy como lhe foy demdado, ca lhe n cviinha de fazer outra cousa. E
entom foy comprida a maldi que lhe lanou sua madre quando lhe disse
que ferros lhe quebrassem as pernas e preso fosse como ella
era.
E el rey dom Fernando, despois que teve as fortalezas e recebeo
delle a me-nagem, soltouo. E el rey dom Affonso tornousse pera sua
terra e, despois, nunca cavalgou en besta por non aver raz de
tornar aa menagem. E sempre se des ally e diante fez trager e andas
e e collos dhomes. E assy dou toda sua vida. (1344b: IV,
235-236)
A Crnica de 1344 j se vai diferenciar da Cr20R ao repetir a
histria, no
reinado de Fernando II. No entanto, f-lo nos termos que lhe so
caros39. A
39 E, logo que o soube, sacou sua hoste e foysse la. E el rey de
Portugal quando soube que viinha, fez armar a sua gente e abrir as
portas e sair a elles. E, quando elle foy armado e cavalgou en seu
cavallo, disseronlhe que se elles embaratavam com dom Diago e com
dom Fernam Rodriguez, ca estes eram entom vassallos del rey dom
Fernando e tragiam a deanteira. E, quando el rey de Portugal
aquello ouvyo, feriu o cavallo das esporas por chegar aos seus. Mas
o porteiro que abrira a
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crnica portuguesa ainda coincide com a Cr20R ao atribuir o
sucedido con-cretizao da maldio materna, um pormenor que s ocorre
nas duas crnicas que veiculam, de modo mais desenvolvido, elementos
das lendas picas sobre a vida e feitos de Afonso Henriques. A
maldio teria sido proferida por D. Tere-sa contra o seu filho
quando este a derrotou e prendeu, anulando assim as aspi-raes desta
ao governo do reino, mas, como se apressa a esclarecer Egas Mo-niz,
o aio de Afonso Henriques, a Afonso VII:
E, quanto he por o fecto da reya sua madre, n o devees culpar,
ca elle fez o
que devya, ca ella o quisera matar ou desherdar da terra que seu
padre gaanhou aos mouros e que el rey dom Affomso, vosso avoo e
seu, lhe leixou. (1344b: IV, 219-220)
III. EM JEITO DE CONCLUSO Face aos relatos que se concentram na
promoo de uma nica linha suces-
sria que ligaria, quase sem divises ou problemas, os reis godos
aos reis astu-rianos, leoneses e, finalmente, castelhanos,
encontramos, no extremo ocidental da Pennsula Ibrica, no s mais um
ramo textual de uma extensa famlia cro-nstica, mas tambm um ponto
de vista alternativo sobre alguns passos da his-tria peninsular,
onde o reino mais recente, Portugal, tem o seu lugar e a sua
justificao enquanto reino independente.
A narrativa historiogrfica torna-se, assim, reflexo de algumas
tenses e das relaes polticas e de fora que, de facto, existiam na
Pennsula. A enorme difuso desta famlia textual na Pennsula Ibrica
ter decorrido, em grande parte, da sua capacidade de adaptao defesa
de diferentes interesses. Con-soante as necessidades sentidas em
diferentes locais e pocas, o texto actuali-zado cronologicamente e,
ao mesmo tempo, influenciado pelos diversos con-textos que o
rodeiam, o que leva manipulao de contedos anteriores de forma a
legitimar e a dar sentido a cada presente graas a cpias que nada tm
de servil relativamente aos seus Modelos.
porta nom colhera bem o ferrolho e el rey, como levava o cavallo
aficado das esporas, topou no ferrolho e britoulhe a perna pella
coixa, pero por esto non leixou de chegar aos seus em um centenal.
E alli se ajuntarom as aazes ferindosse fortemente. Mas o cavallo
del rey de Portugal non o pode sosteer por que era mal ferido do
golpe do ferrolho e outrossy das feridas que lhe deram na batalha,
cayo morto em terra e cayolhe sobre aquella perna e britoulha ainda
mais que era do ferrolho; e entom foy preso com pea dos seus que o
queriam defender. E os outros fugirom pera a villa e os del rey dom
Fernando entrarom com elles de volta pella porta e cobrarom a
villa. E el rey de Leon foysse entom com el rey de Portugal pera a
villa e fezlhe muyta honrra e fezlhe pensar da perna e preytejou
com elle que lhe desse a terra que lhe tomara e que lhe fezesse
menagem que, tanto que elle fosse guarido e que cavalgasse, que
logo tornasse a sua prison. E elle fezlhe menagem ca lhe non
conviinha al fazer. Mas depois nunca jamais cavalgou por non seer
teudo aa menagem (1344b: IV, 287-289).
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A CRONSTICA AFONSINA MODELADA EM PORTUGUS: UM CASO DE RECEPO
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No caso da criao de um espao na memria e no imaginrio, para o
reino portugus, nada melhor do que o uso da consagrada
historiografia preexisten-te. Quer absorva textos produzidos no
scriptorium do rei sbio, ou posteriores e ideologicamente marcados
de modo diferente, trata-se de um corpus textual que remete para
uma Autoridade. Assim, em Portugal fez-se o que j tinha sido feito
anteriormente em Castela-Leo, aquando da reelaborao dos textos
afon-sinos: desvia-se, modela-se o Modelo, em consonncia com novas
ideias e ideais distintos mantendo, no entanto, a referncia
prestigiante Auctoritas do rei Sbio.
Por conseguinte, a segunda redaco da Crnica de 1344 assume-se
como cpia da Estoria de Espanna afonsina. E -o, de facto, em grande
medida. Mas, independentemente da recuperao da j consagrada
historiografia afonsina, a segunda redaco da Crnica de 1344
prossegue e acentua o tom pr-portugus que j se verificava no texto
de D. Pedro Afonso. Desta forma, a Auctoritas do prestigioso filo
afonsino aproveitada e integrada embora, simultaneamente, desviada.
Assim, podemos dizer que a translatio a que a historiografia
portu-guesa procede cobre os diversos sentidos deste termo, uma vez
que se verifica, no s um processo de traduo, como igualmente uma
deslocao do acento ideolgico40. Com efeito, esta segunda redaco do
texto portugus, mais do que traduo, ou que transcrio, , igualmente,
interpretao, comentrio, dilogo e, sobretudo, recriao do corpus
afonsino.
40 Sobre o papel que a inventio pode ter no processo de traduo,
ver COPELAND, R., Rhetoric, Hermeneutics, and Translation in the
Middle Ages, Cambridge, Cambridge University Press, 1991.