ISSN: 2175-8875 www.enanpege.ggf.br/2017 9021 CRIAÇÃO DA LINHA RADCLIFFE: A GRANDE PARTIÇÃO DA GEOGRAFIA DA ÍNDIA RAFAEL REGIANI 1 Resumo: A fronteira entre Índia e Paquistão é conhecida como Linha Radcliffe, exceto o trecho que divide o território disputado da Caxemira. Este trabalho tem como objetivo estudar o processo de delimitação da Linha Radcliffe pelos britânicos da Comissão de Fronteiras na década de 1940, em meio às demandas de indianos e paquistaneses antes da independência. A teoria utilizada será a Teoria das Fronteiras de Lorde Curzon. O método escolhido será fazer uma análise comparativa das respectivas geoideologias dos lados em disputa, isto é, a Teoria das Duas Nações, do paquistanês Mohammad Ali Jinnah, e a visão do Akhand Hindustan, cujo indiano Jawaharlal Nehru era adepto, para saber se a Linha Radcliffe atendia, ou não, aos interesses em jogo dos dois Estados em nascimento. Palavras-chave: Índia, Partição, Fronteiras. Abstract: The boundary between India and Pakistan is known as Radcliffe Line, except the part that divides the disputed territory of Kashmir. This work has as goal to study the delimitation’s process of the Radcliffe Line by the British Boundary Commission in the 1940’ years, among the asks of Indians and Pakistanis before the independence. The utilized theory will be the Frontiers Theory of Lord Curzon. The chosen method is to do a comparative analysis of the respectives geoideologies of both sides in confront, that is, the Two Nation Theory of Pakistani Muhammad Ali Jinnah, and the Akhand Hindustan vision, which the Indian Jawaharlal Nehru was adept, to know if the Radcliffe Line served, or not, to the interests of the two born States. Keywords: India, Partition, Frontiers 1 Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo. E-mail de contato: [email protected]
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ISSN: 2175-8875 www.enanpege.ggf.br/2017
9021
CRIAÇÃO DA LINHA RADCLIFFE: A GRANDE PARTIÇÃO DA GEOGRAFIA DA ÍNDIA
RAFAEL REGIANI1
Resumo: A fronteira entre Índia e Paquistão é conhecida como Linha Radcliffe,
exceto o trecho que divide o território disputado da Caxemira. Este trabalho tem
como objetivo estudar o processo de delimitação da Linha Radcliffe pelos britânicos
da Comissão de Fronteiras na década de 1940, em meio às demandas de indianos e
paquistaneses antes da independência. A teoria utilizada será a Teoria das
Fronteiras de Lorde Curzon. O método escolhido será fazer uma análise
comparativa das respectivas geoideologias dos lados em disputa, isto é, a Teoria
das Duas Nações, do paquistanês Mohammad Ali Jinnah, e a visão do Akhand
Hindustan, cujo indiano Jawaharlal Nehru era adepto, para saber se a Linha
Radcliffe atendia, ou não, aos interesses em jogo dos dois Estados em nascimento.
Palavras-chave: Índia, Partição, Fronteiras.
Abstract: The boundary between India and Pakistan is known as Radcliffe Line,
except the part that divides the disputed territory of Kashmir. This work has as goal to
study the delimitation’s process of the Radcliffe Line by the British Boundary
Commission in the 1940’ years, among the asks of Indians and Pakistanis before the
independence. The utilized theory will be the Frontiers Theory of Lord Curzon. The
chosen method is to do a comparative analysis of the respectives geoideologies of
both sides in confront, that is, the Two Nation Theory of Pakistani Muhammad Ali
Jinnah, and the Akhand Hindustan vision, which the Indian Jawaharlal Nehru was
adept, to know if the Radcliffe Line served, or not, to the interests of the two born
States.
Keywords: India, Partition, Frontiers
1 Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo. E-mail de contato: [email protected]
Radcliffe, em uma carta, também demonstra a mesma preocupação com a
reação nativa ao traçado da fronteira:
Ninguém na Índia me amará pela concessão sobre o Punjab e Bengala e haverá aproximadamente oitenta milhões de pessoas com uma queixa que estarão me procurando. Eu não quero que elas me encontrem. Eu trabalhei e viajei e me preocupei – oh eu me preocupei o tempo todo (ROBINSON, p. 183, tradução nossa).
Nehru sugeriu de se adotar a contiguidade religiosa da população para
delimitar a fronteira. Distritos contíguos de maioria muçulmana ficariam do lado
paquistanês, enquanto que distritos contíguos de maioria não-muçulmana ficariam
do lado indiano. Mountbatten aceitou a proposta e ainda acrescentou que o
presidente da Comissão, no caso Radcliffe, poderia fazer ajustes de ganhos e
perdas entre as duas fronteiras. (SINGH, 2009, p. 439-43).
Observando-se o mapa da Figura 1, se pode notar que na divisão do Punjab a
Linha Radcliffe, quando comparada com o traçado fronteiriço reivindicado pelo CNI
ou pela LM, é o menor dos traçados. Radcliffe, talvez preocupado com o impacto
negativo da divisão – e o trecho da carta mencionada mostra um estado de
preocupação de Radcliffe –, tenha tentado minimizar seus efeitos, e a parcela de
responsabilidade dele mesmo no que aconteceria.
Também é possível perceber que Radcliffe buscou aproveitar os limites
administrativos dos distritos e preservar suas integridades territoriais, a fim de talvez
novamente minimizar os efeitos da divisão e facilitar a identificação dos novos limites
fronteiriços pelos oficiais e autoridades. Apenas um distrito se viu cortado
territorialmente pela Linha Radcliffe.
Por fim também se pode ver que a Linha Radcliffe procurou aproveitar
também o curso dos rios, quiçá pela facilidade que estes oferecem para a
demarcação fronteiriça, já que são conhecidos e referências fáceis de visualizar na
Tem de se reconhecer que os sikhs foram expulsos de suas casas contra todas suas esperanças e expectativas; que eles foram privados de suas terras e propriedades, seus templos e lugares sagrados; que suas perdas em homens e propriedades foram comparativamente maior que aquelas de qualquer outra comunidade afetada pela convulsão comunal; que quase 40% da comunidade sikh inteira foram reduzidas a penúria e tornaram-se refugiados com a necessidade de ter que começar a vida novamente. (SINGH, 2000, p. 194, tradução nossa)
Já defendemos que a Índia tinha três fronteiras possíveis dependendo da
geoideologia que se adotasse. A Linha Durand seria uma fronteira política a separar
as zonas de influência de Cabul e Nova Delhi; o rio Indus, a fronteira étnica que
distingue os povos irânicos dos povos índicos; e a Linha Radcliffe, uma fronteira
religiosa que delimita o Mundo Islâmico do Mundo Védico (REGIANI, p. 929-30).
Na realidade, a ideia da Linha Radcliffe como uma fronteira religiosa
procederia se adotássemos o ponto de vista paquistanês da TDN. É o que faz o
paquistanês Aitzaz Ahsan, advogado e político membro do Partido Popular do
Paquistão (PPP), no livro The Indus Saga and the Making of Pakistan ao dizer que:
“ao longo de toda a história do subcontinente, o ‘limite fundamental’ foi a ‘linha Gurdaspur-Kathiawar’ ‘ que, ligando Gurdaspur, a Sudoeste, no Leste do Punjab, a Kathiawar, no Gujerate, junto ao Mar da Arábia, aproxima-se da atual fronteira indo-paquistanesa”. (KAPLAN, p. 249)
Mas KAPLAN questiona esse ‘limite fundamental’ alegando que
historicamente os grandes impérios que dominaram o norte da Índia foram capazes
de controlar, sem problemas, ao mesmo tempo Delhi e Lahore, a bacia do Ganges e
do Indus (2013, loc. cit.). K. M. PANIKKAR, por sua vez, afirma que, devido à
diferença climática, a divisão geográfica historicamente mais forte do subcontinente
foi entre o norte e o sul, entre o Vale do Ganges e o Planalto do Decã, do que uma
divisão no sentido leste-oeste (1955, pp. 31-2). Muitos impérios foram capazes de
unificar o norte da Índia. Apenas três conseguiram unificar o subcontinente todo:
A consequência mais drástica e imediata foi a migração forçada de milhares
de hindus, sikhs e muçulmanos. Em meio a surtos de violência entre migrantes de
diferentes comunidades que se cruzavam, ladrões, saqueadores, aproveitadores,
bandos de extermínio aproveitavam o caos pós-Partição. Estatísticas mais citadas
indicam 1 milhão de mortos, porém outras falam até o dobro. As mulheres também
sofriam um drama à parte, sendo alvos de estupros, raptos, e forçadas a se casarem
com seus sequestradores. Quando não preferiam se matar, eram mortas por seus
cônjuges ou pais para evitar a desonra. Acredita-se que entre 80 e 150 mil mulheres
tenham desaparecido (COSTA, p. 194-5).
Um clássico literário que retrata esse evento traumático é o livro Trem para o
Paquistão, de Khushwant Singh. Baseada em estórias que o autor ouviu no caminho
entre Lahore e Nova Delhi às vésperas da independência, a novela pode ser
considerada um retrato fiel dos acontecimentos do período. Nela o articulista sikh
descreve o seguinte cenário para o início da estória:
Tumultos precipitados por notícias da proposta de dividir o país em uma Índia hindu e um Paquistão muçulmano haviam estourado em Calcutá, e em poucos meses o número de mortos havia chegado a milhares. Muçulmanos diziam que os hindus tinham planejado e começado a matança. De acordo com os hindus, os muçulmanos eram os culpados. O fato é que ambos os lados matavam. Ambos atiravam e esfaqueavam e davam golpes de lança e porrete. Ambos torturavam. Ambos estupravam. [...] Centenas de milhares de hindus e sikhs que tinham vivido por séculos na fronteira noroeste abandonaram suas casas e fugiram em direção à proteção das comunidades predominantemente sikh e hindus do leste. [...] Ao longo do caminho [...] colidiam com enxames de muçulmanos em pânico fugindo para o oeste. Os tumultos haviam se tornado um motim. [...] Quando a monção chegou, quase um milhão deles estavam mortos e todo o norte da Índia estava armado, aterrorizado ou escondido. (SINGH, 2012, p. 9-10)
Em decorrência dessa migração forçada, mudanças demográficas
significativas aconteceram. Enquanto a Índia manteve uma grande quantidade de
muçulmanos em seu território, a porcentagem de hindus, sikhs e cristãos no
a Índia recebeu distritos muçulmanos para que se mantivesse a navegabilidade pelo
rio Ganges até o porto de Calcutá. Em compensação distritos hindus foram dado ao
Paquistão Oriental.
Também não foi democrático o processo adotado, pois os habitantes dos
territórios britânicos não tiveram a chance de se manifestarem sobre que país
gostariam de viver. E isto por causa do curtíssimo tempo que a Comissão Fronteiriça
dispunha para a elaboração da divisão. Um plebiscito sobre a separação
demandaria muito tempo para ser organizado. E a pressa que Nehru e Jinnah
tinham para a transferência do poder, e a que os britânicos tinham para sair da Índia,
fizeram todos preferirem um processo de divisão simples e rápido.
Em um ponto de vista nehruviano, a Linha Radcliffe seria uma fronteira
econômica a separar o Estado feudal paquistanês do Estado industrial indiano. O
Mundo Islâmico não acaba na Linha Radcliffe. Ele continua pelo norte da Índia,
representado pelas minorias islâmicas e pela herança arquitetônica deixada por
dinastias muçulmanas, miscigenado com o Mundo Védico até o Bangladesh, e
atingindo o Sudeste Asiático.
Bibliografia
COSTA, Florência. Os Indianos. São Paulo: Contexto, 2012. KAPLAN, Robert D. A Vingança da Geografia: a construção do mundo geopolítico a partir da perspective geográfica. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. METCALF, Barbara D.; METCALF, Thomas R. História Concisa da Índia Moderna. São Paulo: Edipro, 2013. NEHRU, Jawaharlal. El Descubrimiento de La India. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1949. PANIKKAR, K. M. Geographical Factors in Indian History. Bombay: Bharatiya Vidya Bhavan, 1955. REGIANI, Rafael. A Fronteira Terrestre de um Império Marítimo. Revista Geonorte, Edição Especial 3, v.7, p.914-932, 2013. ROBINSON, Andrew. India: a short history. London: Thames & Hudson, 2014. SINGH, Jaswant. Jinnah: India, partition, independence. New Delhi: Rupa, 2009. SINGH, Khushwant. Trem para o Paquistão. São Paulo: Grua, 2012. SINGH, Patwant. The Sikhs. New York: Alfred A. Knopf, 2000.