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vol. 12, n. 1, jun 2012, p. 101-124Sala aberta
O ator e a supermarionete (verso integral)
Edward Gordon Craig
Traduo: Almir Ribeiro1
Dedicado com todo afeto a meus bons amigos De Vos e Alexander
Hevesi.
Para salvar o Teatro, o Teatro precisa ser destrudo, os atores e
atrizesprecisam todos morrer de peste... Eles tornam a Arte
impossvel. EleonoraDuse: Studies in Seven Arts, Arthur Symons
(Constable, 1900)
Sempre foi um tema para discusses a questo se atuar uma arte ou
no
e, logo, se o ator um artista ou algo bem diferente. Muito pouco
existe que possa
indicar que esta questo tenha preocupado as mentes dos
principais pensadores ao
longo da histria, mas existem evidncias suficientes que
comprovam que se eles
tivessem decidido considerar este tema de maneira frontal,
teriam aplicado a ele o
mesmo mtodo de investigao utilizado ao se examinar as artes da
Msica e Poesia,
da Arquitetura, Escultura e Pintura.
Por outro lado, muitos debates calorosos ocorreram em certos
crculos sobre
esse mesmo tpico. Os que tomam parte neles, raramente so atores,
muito ocasional-
mente so sequer pessoas de Teatro, e todos demonstram muita
exaltao irracional e
pouco conhecimento sobre o assunto. Os argumentos contra a atuao
ser uma arte e
contra o ator ser um artista so geralmente to pouco razoveis e
to pessoais em sua
averso ao ator, que provavelmente seja esta a explicao pela qual
os atores nunca
tenham se dado ao trabalho de entrar no debate. Regularmente, a
cada nova tempo-
rada, surge um novo ataque trimestral ao ator e a essa sua
extraordinria vocao. O
ataque normalmente termina com a retirada do inimigo. Em geral,
so literatos e inte-
lectuais que compem a tropa inimiga. Sob o pretexto de terem
assistido a peas por
1Almir Ribeiro diretor teatral, pedagogo, mestre em Artes
Visuais pela UFRJ, doutorando em Artes Cnicas pela
USP e autor do livro Kathakali: uma introduo ao Teatro e ao
sagrado da ndia.
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toda a vida ou sob o pretexto de nunca terem assistido a uma pea
sequer em toda
a vida, eles criam ataques por alguma razo que talvez somente
eles possam saber.
Tenho acompanhado esses ataques regularmente, temporada aps
temporada, e eles
parecem ser movidos pela irritabilidade, por inimizades pessoais
ou por simples arro-
gncia. So irracionais do comeo ao fim. No se pode fazer tais
ataques ao ator ou
sua vocao. Minha inteno aqui no me unir a essas tentativas, mas
simplesmente
apresentar o que me parece ser a sequncia lgica dos fatos de um
caso curioso, e
acredito que tais fatos no admitem qualquer tipo de
questionamento.
Atuar no uma arte. , portanto, incorreto se falar do ator como
um artista.
Pois o acidental um inimigo do artista. A arte a anttese
absoluta do caos, e o caos
criado por um amontoamento de vrios acidentes. A arte se atinge
unicamente de
propsito. Portanto, fica claro que para se produzir qualquer
obra de arte podemos
trabalhar apenas sobre aqueles materiais que somos capazes de
controlar. O homem
no um desses materiais.
A prpria natureza do homem tende na direo da liberdade. Ele,
portanto, carrega
em si mesmo a prova de que, enquanto materialpara o Teatro, o
homem intil. No
teatro moderno, uma vez que se utiliza de corpos de homens e
mulheres como seu
material, tudo o que apresentado ali de natureza acidental. As
aes do corpo do
ator, as expresses de seu rosto, os sons de sua voz, tudo fica a
merc dos ventos
de suas emoes. Esses ventos que habitualmente sopram ao redor de
todo artista
o que os move, mas no lhes tira, no entanto, o equilbrio. Com o
ator, todavia, ele
possudopela emoo, apodera-se de seus membros, movendo-os revelia
de sua
vontade. Ele fica completamente subordinado a ela, se movendo
como algum em um
sonho frentico ou transtornado, balanando pra l e pra c. Sua
cabea, seus braos,
seus ps, quando no esto sob controle, se tornam to frgeis para
resistir contra a
torrente de suas paixes, que podem tra-lo a qualquer momento. E
intil tentar argu-
mentar consigo mesmo. As sensatas orientaes de Hamlet (alis, as
do sonhador, no
as orientaes do lgico) so jogadas ao vento. medida que as suas
emoes se
acaloram, seus membros se recusam, e se recusam de novo, a
obedecer a sua mente.
Enquanto isso, a mente est continuamente criando aquele calor
que colocar essas
emoes em chamas. O que falamos sobre os movimentos, o mesmo
vlido para as
expresses de sua face. Se por acaso, essa mente em luta,
consegue por um momento
mover os olhos, ou os msculos da face, em uma direo desejada
quando consegue
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arduamente submeter a face por um pequeno instante sob seu
comando ela subita-
mente varrida pela emoo, que se aqueceu a partir da ao da prpria
mente. Instanta-
neamente, como um relmpago, e antes que a mente tenha tempo de
gritar e reclamar, o
calor da paixo tomou conta da expresso do ator. Ela se altera e
muda, oscila e desvia,
perseguida pela emoo desde a fronte do ator, entre seus olhos,
at a sua boca.
Agora ele se encontra completamente merc da emoo e gritando para
ela: Faa de
mim o que quiser! Sua expresso fora de controle vaga desvairada
de um lugar a outro.
Enfim: Nada surge de nada. Acontece com a voz o mesmo que com os
movimentos.
A emoo quebra a voz do ator. Ela agita a voz para que se junte a
essa conspirao
contra a mente. A emoo atua sobre a voz do ator de tal forma que
ele pode acabar
produzindo a impresso de uma emoo absolutamente divergente. No h
utilidade
em afirmar que a emoo o esprito dos deuses, e que isso
precisamente o que
o artista almeja produzir. Primeiramente porque isso no verdade
e ainda que fosse
verdade, uma emoo espordica, um sentimento casual, no pode ter
valor artstico
algum. Portanto, como vemos, a mente do ator menos potente que
sua emoo, pois a
emoo capaz de subjugar a mente para ajud-la na destruio daquilo
que a mente
produziria. E como a mente se encontra escravizada pela emoo, a
consequncia
que acidentes sobre acidentes continuam ocorrendo. Logo,
chegamos a esta concluso:
que a emoo , a princpio, a causa que cria e que, em seguida,
destri. A arte, como
dissemos, no pode admitir o acaso. Por isso, o que o ator nos
oferece no uma obra
de arte, uma srie de confisses acidentais. No incio o corpo
humano no era utili-
zado como material para a Arte do Teatro. No incio as emoes de
homens e mulheres
no eram consideradas como algo adequado a ser exibido em pblico.
Um elefante e um
tigre em uma arena agradavam mais ao gosto, quando o objetivo
era excitar o pblico.
A impetuosa luta entre o elefante e o tigre nos oferece toda a
excitao que se pode ter
no Teatro moderno, e de uma forma genuna. Tal exibio, no fundo,
no brutal, sim
delicada e humana, pois no h nada mais ultrajante que aqueles
homens e mulheres
soltos sobre uma plataforma, para que possam exibir aquilo que
verdadeiros artistas
se recusariam a mostrar, exceto veladamente, sob uma forma que
suas mentes engen-
drassem. Como aconteceu que o homem tenha sido persuadido a
tomar o lugar que at
aquele momento era ocupado por animais no difcil de
conjecturar.
O homem de maior conhecimento se encontra com o homem de maior
tempera-
mento. Ele se dirige ao outro de uma maneira mais ou menos como
se segue: Voc
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possui uma compostura soberba, que modos magnficos de se
movimentar! Sua voz
como o cantar dos pssaros, e que brilho em seus olhos! Que
nobreza em suas
expresses! Voc quase se assemelha a um deus! Seguramente as
pessoas ao
v-lo devem comentar entre elas esta ntida maravilha que
transparece em voc. Eu
proponho escrever algumas palavras com as quais voc se dirigir s
pessoas. Voc
se colocar diante delas e dir essas minhas palavras, da maneira
que lhe convier, e
tenho absoluta certeza que ser perfeito.
E o homem de temperamento responder: Verdade? Tenho mesmo para
voc a
aparncia de um deus? a primeira vez que eu sequer penso sobre
isso. E voc acha
que aparecendo diante das pessoas eu poderia criar uma impresso
que pudesse
agradar a eles, e causar-lhes entusiasmo? No, no, no diz o homem
inteligente
de maneira alguma somente em aparecer, mas se voc tivesse alguma
coisa para
dizer voc criaria, sem dvida, uma forte impresso.
O outro responde: Eu acho que eu teria alguma dificuldade em
falar suas pala-
vras. Seria mais fcil se eu simplesmente aparecesse e dissesse
alguma coisa instin-
tivamente, assim como Saudaes a todos! Eu sinto que talvez fosse
capaz de ser
mais eu mesmo se eu agisse dessa forma. Esta uma idia excelente,
responde o
tentador, essa sua idia: Saudaes a todos! Exatamente sobre esse
tema eu escre-
verei, digamos, umas cem ou duzentas linhas, e voc ser a pessoa
exata para falar
esse texto, j que um tema que voc mesmo sugeriu: Saudaes!. Est
combinado
ento que voc far isso? Se assim o quer, retruca o outro, com a
boa vontade vazia
de razo, e a vaidade derramando pelas bordas.
E assim a comdia do autor e do ator comea. O jovem aparece
diante da multido e
diz o seu texto, e o falar do texto se revela uma esplndida
propaganda da arte da literatura.
Depois dos aplausos o jovem rapidamente esquecido, eles at mesmo
o perdoam pela
maneira que disse o texto; mas como era uma idia inovadora e
original em seu tempo, o
autor julgou-a valiosa, e depois de um curto tempo outros
autores tambm julgaram ser
uma excelente idia utilizar homens belos e cheios de entusiasmo
como instrumentos. No
importa que esse instrumento seja um ser humano. Ainda que no
saibam exatamente
como utilizar o instrumento, eles conseguem toc-lo, ainda que de
maneira rude, e lhe
so teis. Hoje temos o estranho panorama de um homem satisfeito
em passar adiante as
idias de outro, s quais esse outro deu forma, enquanto ao mesmo
tempo ele exibe sua
pessoa para um pblico. Ele faz isso porque se sente lisonjeado,
e a vaidade destituda
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de razo. Mas a cada momento, e no importando o quanto esse mundo
possa durar, a
natureza no homem ir lutar por liberdade e se rebelar contra ser
feita escrava ou meio
para a expresso das idias de outro. A coisa toda um assunto
bastante srio, e no
bom que o coloquemos de lado, protestando que o ator no
simplesmente um meio para
o pensamento de um outro, mas que ele investe de vida as
palavras mortas de um autor.
Porque ainda que isso fosse verdade (o que no ), ainda que o
ator estivesse ali apre-
sentando suas prprias idias que ele mesmo comps, sua natureza
ainda assim estaria
servil, seu corpo teria que estar escravizado por sua mente, e
isso, como demonstrei, o
que um corpo saudvel se recusa terminantemente a ser. Portanto,
o corpo humano, pelas
razes que apresentei, por natureza terminantemente intil como
material para uma
arte. Eu estou absolutamente consciente do sentido radical desta
afirmao, e como isso
atinge a homens e mulheres de nossos dias, como tambm a uma
classe que merece ser
amada, por isso me explico melhor para que no ofenda algum de
maneira no inten-
cional. Eu sei perfeitamente bem que o que disse aqui no criar
um xodo de todos os
atores do mundo, levando-os a refugiarem-se em sombrios
monastrios onde passaro
o resto de suas vidas rindo, tendo a arte do Teatro como assunto
principal para divertidas
conversas. Como escrevi anteriormente, o Teatro continuar a
crescer e os atores conti-
nuaro por vrios anos estorvando seu desenvolvimento. Mas eu vejo
uma fresta atravs
da qual, a seu tempo, os atores podero escapar da escravido em
que se encontram:
Eles devem criar para si uma nova forma de atuar, que se
componha fundamentalmente
de gestos simblicos. Hoje eles imitame interpretam, amanh eles
devero representare
interpretar e no terceiro dia eles devero criar. Assim, o estilo
retornar. Hoje o ator imita
um certo ser. Ele grita para a audincia: Olhem-me, eu estou
agora fazendo de conta que
sou fulano ou sicrano, e estou fazendo de conta que fao isso ou
aquilo!. E ele segue em
frente imitandoo mais precisamente possvel aquilo que ele
anunciou que iria indicar. Por
exemplo, ele Romeu. Ele diz audincia que ele est amando, e ele
comea ento a
mostrar isso beijando Julieta. Isto, afirmam, uma obra de arte.
E afirmam ser esta uma
forma inteligente de sugerir uma idia. Isso como se um pintor
desenhasse em uma
parede a figura de um animal com longas orelhas e depois
escrevesse abaixo dele: isto
um burro. Qualquer um poderia pensar que as orelhas compridas do
animal j o teria
deixado suficientemente explcito, mesmo sem a inscrio, e que
qualquer criana de dez
anos faria o mesmo. A diferena entre a criana de dez anos e o
artista que o artista
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aquele que desenhando certos sinais e formas cria a impresso de
um burro. E o maior
artista aquele que cria a impresso de toda a espcie de burros, o
espritoda coisa.
O ator olha para a vida como uma mquina fotogrfica olha para a
vida, e o que
ele almeja fazer uma imagem que rivalize com a fotografia. Ele
nunca sequer sonha
com sua arte sendo uma arte como, por exemplo, a msica. Ele
tenta reproduzir a
Natureza, raramente pensa em inventar com o auxlio da natureza,
e nunca sonha em
criar. Como eu disse, o melhor que ele faz quando quer capturar
e oferecer a poesia
de um beijo, o calor de uma luta, ou a calma da morte, copiar
servilmente, fotogra-
ficamente: ele beija, ele luta, ele deita e imita morrer. Quando
se para para pensar
sobre isso, no tudo incrivelmente estpido? No uma arte pobre e
uma inteli-
gncia pobre a que no consegue oferecer o esprito e essncia de
uma idia para
uma audincia, mas somente mostrar uma cpia desprovida de arte,
um fac-smile da
coisa em si? Isto para um imitador, no um artista. Isto reclamar
parentesco com
um ventrloquo. 2
Existe uma expresso de palco usada por atores: entrar na pele do
papel. Uma
melhor ainda seria sair da pele do papel, de uma vez por todas.
O qu? grita o ator
com o sangue a ferver e os olhos faiscantes. No existir carne e
sangue nessa sua
arte do teatro? No haver vida? Isso depende o que voc chama de
vida, signor,
quando voc usa essa palavra em relao arte. O pintor quando fala
sobre vida em
sua arte se refere a algo bastante diferente, e os outros
artistas geralmente se referem
a algo essencialmente espiritual. Somente o ator, o ventrloquo,
ou o taxidermista so
os que, ao falar sobre colocar vida em seus trabalhos, querem
dizer uma reproduo
imitativa da vida, algo ostensivo em sua aparncia, e por essa
razo eu digo que seria
melhor se o ator sasse da pele do personagem de uma vez por
todas. Se existir algum
ator lendo isso, no existiria, por acaso, alguma maneira pela
qual eu poderia faz-lo
se dar conta do absurdo ridculo dessa sua iluso, dessa crena que
se deve almejar
realizar uma cpia, uma reproduo do que real? Suponhamos ento,
que tal ator
2Portanto, quando um desses homens capazes, por sua habilidade,
de imitar a qualquer coisa, vem at ns e
se prope a exibir a ele mesmo e a sua poesia, prostramo-nos
diante dele e o saudamos como um ser especial e
sagrado; mas precisamos tambm inform-lo que em nossa cidade no
permitido que existam pessoas como
ele: a lei assim o impede. Ento, depois de termos vertido mirra
sobre sua cabea e o coroado com fitas de l,
o mandaremos embora para outra cidade qualquer. Pois para ns,
para o bem estar de nossa alma, recorremos
somente aos poetas e narradores mais austeros e severos que
imite para ns o homem de bem e se adeque em
sua linguagem aos modelos estabelecidos desde o incio, quando
comeamos a educar nossos guerreiros. Plato. (A passagem completa,
sendo longa demais para ser impressa aqui, indicamos ao leitor A
Repblica,
Livro III, p. 395). (N. do A.)
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est aqui comigo enquanto falo; e convidarei um msico e um pintor
para se juntar a
ns. Deixemo-los falar. J falei o bastante at aqui para fazer
parecer que estou cons-
tantemente depreciando o trabalho do ator por motivos triviais.
Tenho falado dessa
maneira por causa do meu amor ao Teatro, e de minha esperana e
crena que em
breve um desenvolvimento extraordinrio surgir e reanimar o que
se mostra falho
no Teatro, e de minha esperana e crena que o ator aportar a fora
de sua coragem
para ajudar nesse renascimento. Minha posio sobre o assunto mal
interpretada
por muitos no meio teatral. Considera-se que seja minha posio,
somente minha;
devo parecer a muitos olhos um dissidente brigo, um pessimista,
rabugento; algum
que se cansou de alguma coisa e decidiu agora destru-la.
Portanto, deixemos os
outros artistas falarem com o ator, e deixemos que o ator se
defenda o melhor que
puder, e deixemos que escute as opinies dos outros sobre a arte.
Sentemos aqui
conversando, o ator, o msico, o pintor e eu. Eu, que represento
uma arte distinta de
todas essas, permanecerei em silncio.
Ao sentarmo-nos aqui, a conversa se encaminha em direo Natureza.
Estamos
rodeados por belos e sinuosos montes e pelas rvores, enormes e
altssimas monta-
nhas ao longe, cobertas de neve e em torno de ns, inmeros e
delicados sons da
Natureza inspiradora Vida! Como belo, diz o pintor, que bela a
sensao de tudo
isso! Ele sonha com a quase impossibilidade de converter em sua
tela toda a riqueza
terrena e espiritual que est ao seu redor, mesmo assim, ele
encara isso da maneira
que os homens geralmente encaram, e que a mais perigosa. O msico
fita o cho. O
fitar do ator direcionado para dentro de si. Ele
inconscientemente desfruta a sensao
de si prprio, como se representasse o papel principal em uma
cena realmente estu-
penda. Ele caminha atravs do espao entre ns e a paisagem,
cruzando em semicr-
culo, ele admira o magnfico panorama sem enxerg-lo, consciente
apenas de si
mesmo e de sua atitude. Obviamente uma atriz estaria ali humilde
na presena da
Natureza. Ela apenas uma pequenina coisa, um pequeno e pitoresco
tomo, pois
pitoresca sabemos que ela a todo momento, atravs do suspiro com
o qual, quase
inaudvel por todos, ela transmite a sua audincia e a si mesma,
que ela est ali,
pobre de mim, na presena do Deus que fez a ela e a todo o resto
das baboseiras
sentimentais. Ento, reunidos aqui, cada um com a atitude que lhe
natural, prossi-
gamos a nos questionar uns aos outros. E vamos imaginar que,
pelo menos uma vez,
estejamos todos realmente interessados em descobrir tudo sobre o
interesse dos
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outros, e do trabalho dos outros. (Eu garanto que isso muito
incomum, pois o egosmo
intelectual, a mais alta forma de estupidez, aprisiona muitos
artistas em um cruel e
diminuto cercado). Mas, tomemos isso como certo, que existe um
interesse geral, que
o ator e o msico desejam aprender algo sobre a arte da pintura;
e que o pintor e o
msico desejam compreender do ator no que consiste o seu trabalho
e por que, e se
ele a considera uma arte. Aqui eles no devem medir consequncias
e falar o que
cada um acredita. Como esto procura da verdade, eles no tm nada
a temer; so
todos bons companheiros, todos bons amigos, e nem possuem as
peles to frgeis
que no resistam tomar alguns golpes. Diga-nos, pergunta o
pintor, verdade que
antes de voc atuar devidamente em um papel voc deve sentir as
emoes do perso-
nagem que voc est representando? Bem, sim e no, depende do que
voc quer
dizer respondeu o ator. Ns devemos primeiramente estar
disponveis para sentir e
compartilhar, mas tambm criticar as emoes do personagem. Olhamos
para ele de
uma certa distncia antes de nos aproximarmos. Coletamos o mximo
que podemos
do texto e procuramos lembrar de todas as emoes adequadas para
ser exibida por
este personagem. Depois de ter muitas vezes rearranjado e
selecionado as emoes
que consideramos importantes, ns ento treinamos reproduzi-las
diante da audincia;
e para isso precisamos sentir o mnimo possvel; de fato quanto
menos sentirmos,
mais seguro ser nosso controle sobre nossa expresso facial e
corporal. Com um
gesto de cordial impacincia, o artista se levanta e caminha indo
e vindo. Ele esperava
que seu amigo dissesse que isso no tem nada a ver de maneira
alguma com emoes,
e que ele pudesse controlar sua face, feies, voz e tudo,
exatamente como seu, se
corpo fosse um instrumento. Enquanto isso, o msico afunda ainda
mais em sua
cadeira. Mas, nunca houve um ator, pergunta o artista, que tenha
treinado seu corpo
da cabea aos ps, que pudesse responder atividade de sua mente
sem permitir
que as emoes sejam sequer despertadas? Seguramente deve existir
um ator,
digamos um em dez milhes, que tenha conseguido isso? No, diz o
ator enftico,
nunca, nunca; nunca houve um ator que tenha atingido tal estado
de perfeio mec-
nica, onde seu corpo fosse completamenteescravo de sua mente.
Edmund Kean na
Inglaterra, Salvini na Itlia, Rachel, Eleonora Duse, todos eles
me vm mente, mas
eu repito que nunca houve um ator ou atriz como voc descreveu. O
artista ento
pergunta: Logo voc admite que exista um estado de perfeio? Mas
claro! Mas
impossvel; e ser sempre impossvel, brada o ator; e ele se
levanta quase com uma
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sensao de alvio. Isto o mesmo que dizer, que nunca tenha
existido um ator
perfeito, nunca tenha havido um ator que no tenha arruinado sua
performance uma,
duas, dez vezes, quem sabe cem vezes, durante uma noite? Nunca
existiu um trecho
de uma atuao que pudesse ser definida como quase perfeita, e que
nunca existir?
Como resposta, o ator pergunta rapidamente: Mas existiu alguma
vez uma pintura, ou
pea arquitetnica, ou uma pea musical que pudesse ser definida
como perfeita?
Sem dvida, eles responderam. As leis que controlam nossas artes
fazem isto ser
possvel. Uma pintura, por exemplo, continua o artista, pode
consistir-se de quatro
linhas, ou quatrocentas linhas, dispostas em posies definidas.
Ela pode ser a mais
simples possvel e ainda assim ser perfeita. Primeiramente, eu
posso escolher com o
qu sero feitas as linhas, depois escolher onde eu colocarei as
linhas. Eu posso
ponderar sobre isso o tanto que eu achar necessrio, eu posso
alter-lo, e depois, em
um estado livre de qualquer excitao, precipitao, preocupao,
nervosismo de
fato, sob qualquer estado eu posso fazer escolhas (assim como,
obviamente, preparo,
espera e seleo) eu posso dispor todas as linhas e, ei-las agora,
todas em seus
devidos lugares. Possuindo os materiais necessrios, nada exceto
minha prpria
vontade pode mover ou alterar o trabalho e, como eu disse, minha
prpria vontade
est inteiramente sob meu controle. A linha pode ser reta ou se
curvar, e pode se arre-
dondar se eu assim desejar. No existe o temor de que quando eu
desejar fazer uma
linha reta eu venha a fazer uma curva ou quando eu queira fazer
uma linha curva, que
surjam partes de um quadrado nela. E quando a obra estiver
pronta terminada no
ficar submetida a nenhum tipo de mudana a no ser aquelas que o
Tempo, que
terminar por destru-la, determinar. Isto realmente uma coisa
extraordinria,
retruca o ator; quem dera isso fosse possvel em meu trabalho.
Sim, responde o
artista, realmente uma coisa extraordinria, e isto que acredito
que faa a dife-
rena entre um resultado inteligente e um resultado fortuito ou
casual. O resultado
mais inteligente define a obra de arte. O resultado fortuito uma
obra do acaso. Quando
o resultado inteligente atinge a forma mais alta possvel ela se
torna uma obra de arte
refinada. Por isso, eu tenho afirmado constantemente, a no ser
que esteja enganado,
que seu trabalho no de natureza artstica. como dizer (e voc
mesmo o disse)
que todo resultado em seu trabalho est sujeito a qualquer mudana
concebvel que
suas emoes possam causar. O que voc concebe em sua mente, seu
corpo no
permite, por natureza, completar. Na verdade, seu corpo,
vencendo o melhor de sua
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inteligncia, em vrias situaes no palco, expulsou sua inteligncia
por completo.
Alguns atores parecem dizer: Que valor existe em conceber belas
idias? Com que
objetivos minha mente deveria conceber uma tima idia, uma tima
reflexo, para
que meu corpo, to fora do meu controle, acabe por estrag-la? Vou
jogar minha
mente ao mar e torcer que meu corpo resgate a mim e a pea ao
mesmo tempo.
Parece-me existir alguma sabedoria no ponto de vista de tal
ator. Ele no vacila entre
as duas coisas que esto contidas nele, uma contra a outra. Ele
no tem nem um
pouco de receio do resultado e o enfrenta como um homem, s vezes
brincando como
um centauro. Ele coloca de lado toda cincia, toda precauo, toda
razo, e o resul-
tado o entusiasmo do pblico, que para isso no hesita em pagar,
de boa vontade.
Mas, estamos falando aqui de algo alm do entusiasmo, e ainda que
se aplauda o ator
que exibe tal personalidade, ele o que se aplaude, no o que est
fazendo ou como
est fazendo; e isso no tem nada que ver, de maneira alguma, com
arte, absoluta-
mente nada que ver com a arte, com calcular ou projetar. Que
gentil e amigvel cria-
tura voc , ri o ator alegremente, dizendo a mim que minha arte
no arte! Mas eu
acredito que entendo o que est dizendo. Voc quer dizer que antes
que eu aparea
sobre o palco, e antes que meu corpo comece a entrar em questo,
eu sou um artista.
Bem, sim, voc, por acaso voc , porque voc um ator muito ruim,
voc pssimo
no palco, mas tem idias, voc possui imaginao; voc mais uma
exceo, devo
dizer. Tenho ouvido voc me contar como interpretaria Ricardo
III, o que voc faria,
que atmosfera singular voc infundiria em toda a obra. O que voc
me conta, voc
encontrou a partir do texto, e o que voc inventou e adicionou a
ele to notvel e to
consequente em sua lgica, to distinto e claro em sua forma que
se voc tivesse
transformado seu corpo em uma mquina, ou em uma pea sem vida de
algum tipo
de material como a argila, e se ele pudesse obedecer a voc a
todo e cada momento
pelo espao completo de tempo que estivesse diante da audincia, e
se pudesse
colocar de lado a poesia de Shakespeare ento voc seria capaz de
realizar uma
obra de arte daquilo que existe em voc. Nesse caso voc no teria
somente sonhado,
voc teria realizado e com perfeio, e essa realizao poderia ser
repetida inmeras
vezes sem que houvesse diferenas maiores do que as existentes
entre duas miga-
lhas. Ah, suspira o ator, voc me coloca diante de uma
perspectiva terrvel. Voc quer
provar a mim que impossvel para ns sequer pensarmos em ser
artistas. Voc nos
tira nosso maior sonho e no nos oferece nada em troca. No, no,
eu no tenho que
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dar nada a vocs. vocs quem devem encontrar. Seguramente existem
leis nas
razes da Arte do Teatro, assim como existem leis nas razes de
todas as verdadeiras
artes, as quais, se encontradas e dominadas levaro voc at onde
desejar. Sim, o
que esta busca levar os atores a encontrar um muro. Salte-o,
ento! alto
demais! Escale-o! Mas como saber aonde levar? Ora, para cima e
alm. Isso
so apenas palavras vagas, palavras ao vento. Bem, essa
exatamente a direo
que vocs colegas deveriam tomar; voar ao vento, viver ao vento.
Alguma coisa se
seguir quando algum de vocs iniciar a faz-lo. Eu suponho ele
continua, que vocs
chegaro raiz da questo a seu tempo, e ento, que esplndido futuro
se descortina
adiante! De fato, eu o invejo. Eu no tenho certeza que eu no
quisesse que a foto-
grafia tivesse sido descoberta antes da pintura, para que ns,
desta gerao, puds-
semos ter a excitante alegria em avanar, demonstrando que a
fotografia estava muito
bem em seu caminho, mas que existe uma coisa ainda melhor! Voc
est afirmando
que nosso trabalho est no mesmo nvel da fotografia? No, de modo
algum, isso
est longe de estar correto. Enquanto arte, ele est abaixo at
mesmo da fotografia. Na
verdade, voc e eu estivemos conversando este tempo todo enquanto
o msico esteve
sentado quieto, afundando lentamente em sua cadeira. Mas, nossas
artes ao lado da
sua arte, so brincadeiras, jogos, absurdidades. Neste momento, o
msico decide
estragar tudo se levantando e emitindo uma observao
absolutamente tola. O ator
imediatamente exclama, Eu no consigo ver nisso uma observao
maravilhosa de
ser feita por um representante da nica arte do mundo, ao que
todos riem o msico
de maneira constrangida e acanhada. Meu caro colega, s porque
ele um msico.
Ele no nada fora da sua msica. Ele , de certa forma, um tolo,
exceto quanto fala
atravs de notas, tons, e as outras coisas. Ele mal domina nosso
idioma, ele mal
conhece nosso mundo, e quanto maior o msico, mais isso fica
ntido; na verdade
mau sinal quando voc encontra um compositor que seja
inteligente. E o msico atual-
mente quando um intelectual, o que em si j outra coisa no
citemos nomes aqui
, ele se torna popular. Que ator ele no teria se tornado! Que
personalidade! Eu acre-
dito que por toda a sua vida ele tenha ansiado por ser ator, e
acredito que teria sido um
excelente, uma vez que se tornou um msico ou um dramaturgo? De
qualquer
maneira, se converteu em um grande sucesso um sucesso da
personalidade. Por
que no um sucesso da arte? pergunta o msico. Bem, a que arte voc
se refere? A
todas as artes combinadas, ele responde desajeitado, mas
tranquilo. Como pode ser
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isto? Como pode todas as artes combinarem e constiturem uma nica
arte? Pode-se
apenas constituir uma brincadeira um Teatro. Apenas as coisas
que, lentamente,
atravs de leis naturais, se unem, possuem o direito, no curso de
muitos anos ou
sculos, de pedir Natureza que as confiram um novo nome para suas
realizaes.
Somente dessa forma uma nova arte pode nascer. Eu no acredito
que nossa velha
me d sua aprovao a processos forados, e se ela por um instante
faz de conta que
no v, logo ela se vinga. O mesmo vale para as artes. No se pode
amalgam-las e
comear a bradar que se criou uma nova arte. Se voc puder
encontrar na Natureza
um material novo, um que nunca tenha sido utilizado pelos homens
para dar forma a
suas idias, ento voc pode dizer que est no caminho de criar uma
nova arte. Pois
ento ter encontrado aquilo com o que poder cri-la. S resta a voc
comear. O
Teatro, como voc pode ver, ainda est por encontrar este
material. E assim esta
conversa termina.
De minha parte eu concordo com a ltima afirmao do artista. Meu
prazer no
competir com o mais esforado dos fotgrafos. Eu quero sempre
almejar obter algo
inteiramente oposto vida como a vemos. Essa vida cotidiana,
adorvel assim como
para todos ns, para mim no algo que se deva pesquisar, ou
devolver para o
mundo, mesmo que sob alguma conveno. Eu penso que meu objetivo
deveria ser
acima de tudo capturar algum relance longnquo deste esprito que
chamamos Morte,
e resgatar as coisas belas do mundo imaginrio. Dizem que so
frias essas coisas
mortas. Eu no sei, elas frequentemente parecem mais clidas e
mais vivas que
essas que desfilam por a como vivas. Sombras, espritos, parecem
a mim mais belos,
e cheios de maior vitalidade que homens e mulheres. Cidades
inteiras de homens
e mulheres cheias de mesquinhez, criaturas inumanas, segredos,
friezas geladas,
humanidades embrutecidas. Pois, observando-se atentamente a
vida, pode-se logi-
camente pensar que tudo isso se trata no do que belo, nem do que
misterioso,
nem do que trgico, mas do estpido, do melodramtico e do tolo:
uma conspirao
contra a vitalidade, tanto quanto contra o entusiasmo e a paixo.
E dessas coisas que
carecem da luz da vida no possvel retirar inspirao. Mas dessa
misteriosa, feliz e
estupendamente completa vida que chamada de Morte, essa vida de
sombras e de
formas desconhecidas, onde no pode tudo ser escurido e nvoa como
se supe,
mas de uma cor vvida, uma luz vvida, de formas bem definidas; e
onde se encontram
pessoas de estranha figura, ferozes e solenes, figuras belas e
figuras calmas. E essas
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figuras impelidas para algum tipo de maravilhosa harmonia de
movimentos. Isso tudo
algo mais que uma mera questo de fato. A partir dessa idia de
Morte, que se asse-
melha a uma primavera, um florescer, desse territrio e dessa
idia, pode advir uma
inspirao to vasta que, exultante e sem hesitar, eu saltaria em
direo a ela, e eis
que, em um instante, eu encontraria meus braos repletos de
flores. Eu avano mais
um passo ou dois e novamente a abundncia me rodeia. Eu atravesso
calmamente um
mar de beleza, eu navego para onde o vento me levar. L, l no h
perigo. Isto seria o
bastante para os meus desejos subjetivos, mas o Teatro do mundo
no representado
por mim, nem por uma centena de artistas e atores, mas por algo
muitssimo diferente.
Portanto, a natureza de meus anseios pessoais tem muito pouca
importncia. O obje-
tivo do Teatro como um todo a restaurao de sua arte e ela deve
comear por banir
a idia de imitao, esta idia de reproduzir a natureza, pois
enquanto a imitao existir
no Teatro, o Teatro jamais ser livre. Os atores devem ser
treinados sob a influncia de
preceitos antigos (se os princpios mais ancestrais e refinados
se mostrarem dema-
siadamente severos para se comear), e devero evitar o desejo
frentico de colocar
vidaem seus trabalhos, pois em apenas uma em cada mil
oportunidades isso no
significar a utilizao de gestos excessivos, uma mmica acelerada,
falas gritadas e
cenrios suntuosos sobre o palco, na precipitada e v crena de
que, atravs desses
meios, a qualidade vida poder ser invocada ali. Mas em algumas
ocasies, para
confirmar a regra, isso por vezes, parcialmente acontece. E
acontece, parcialmente
apoiado na efervescncia das personalidades do palco. um caso de
inegvel triunfo
apesardas regras, com desprezo pelas regras, e ns que
assistimos, jogamos nossos
chapus para o alto e aplaudimos freneticamente. Somos obrigados
a isso, sem ques-
tionar ou refletir; seguimos a correnteza entre admirados e
sugestionados. O fato de
estarmos hipnotizados pouco nos importa: ficamos encantados por
estarmos emocio-
nados, e literalmente pulamos de alegria por isso. A grande
personalidade triunfou
sobre ns e sobre a arte. Mas personalidades como tal, so
extremamente raras, e se
queremos ver uma personalidade perseverar no Teatro e triunfar
completamente como
ator precisamos ser, ao mesmo tempo, indiferentes sobre a pea e
sobre os outros
atores, sobre a beleza e sobre a arte.
Aqueles que no concordam comigo nesse assunto so os veneradores,
ou admi-
radores respeitosos das personalidades do palco. intolervel a
eles que eu diga que
o Palco devesse ser limpo de todos seus atores e atrizes, para
que possa novamente
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renascer. Como poderiam concordar comigo? Isso incluiria ter que
remover os seus
favoritos os dois ou trs seres que transformam o palco, segundo
eles, de uma brinca-
deira em um pas ideal. Mas o que, afinal, eles temem? No existe
perigo que ameace
seus favoritos pois se fosse possvel instituir, fora, uma lei
que proibisse a homens
e mulheres de subirem ao palco de um teatro, isto no afetaria em
nada os seus favo-
ritos esses homens e mulheres de personalidade a quem os
frequentadores de teatro
coroaram. Consideremos que algumas dessas personalidades
tivessem nascido em um
perodo em que o Palco no existisse; isso teria, de alguma
maneira, diminudo seus
prestgios, dificultado sua expressividade? Nem um pouco.
Personalidades inventam
seus meios e maneiras de se expressar; e atuar apenas um no
mnimo dos meios
para as grandes personalidades, e esses homens e mulheres teriam
sido famosos em
qualquer tempo e em qualquer atividade. Mas, se verdade que
existam muitos para
quem intolervel que eu proponha que se limpe o Palco de TODOS os
atores e atrizes
para que a Arte do Teatro renasa, existem outros que concordam
comigo.
O artista, disse Flaubert, deve se dedicar ao seu trabalho como
Deus em sua
criao, invisvel e todo poderoso; ele deve ser pressentido em
todos os lugares e visto
em lugar nenhum. A Arte deve se erguer acima dos afetos pessoais
e suscetibilidades
excitveis. Est na hora de dar a ela a perfeio das cincias
fsicas, atravs de um
mtodo que seja impiedoso. E mais adiante, Eu sempre busquei no
diminuir a Arte
para satisfazer alguma personalidade isolada. Ele estava se
referindo principalmente
a arte da literatura; mas se ele sente isso de maneira to forte
sobre o escritor, uma
pessoa que nunca vista e apenas se mostra parcialmente por trs
de sua arte, como
se colocaria totalmente em oposio atual figura do ator
personalidade ou no
personalidade.
Charles Lamb disse: Quando se v uma representao de Lear, um
velho
trpego com um basto, colocado porta afora numa noite chuvosa
pelas duas filhas,
esta cena no remete a nada que no seja doloroso e repugnante.
Desejamos lev-lo
a algum abrigo, este o sentimento que a representao de Lear
sempre causou em
mim. A desprezvel maquinaria com que imitam a tempestade na qual
ele adentra
to inadequada em representar o horror dos elementos naturais
quanto qualquer ator
em representar o prprio Lear. Seria mais fcil propor encarnar o
Sat de Milton sobre
o palco, ou uma das terrveis figuras de Michelangelo. O rei Lear
, em sua essncia,
impossvel de ser representado sobre o palco.
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O prprio Hamlet parece quase impossvel de ser representado,
disse William Hazlitt.
Dante em La Vita Nuovanos conta que, em sonho, o Amor, na figura
de um jovem,
apareceu a ele. Conversando sobre Beatrice, o Amor diz a Dante
para compor alguma
coisa em versos, nos quais deixe claro o quo forte o domnio que,
por causa dela, eu
obtive sobre vs. Escreva essas coisas de tal forma que paream
mais apropriadas se
ditas por uma terceira pessoa, e no diretamente por vs a ela, o
que no seria muito
adequado. E ainda: Se surge em mim um enorme desejo de dizer
algo em versos,
quando eu comeo a pensar em como deveria faz-lo, me parece que
falar sobre ela no
seria prprio, a menos que eu falasse a outras mulheres na
segunda pessoa. Vemos
ento que para estes homens no certo que uma pessoa se coloque em
uma moldura
e exponha a si mesma em sua prpria tela. Eles julgam imprprio e
inadequado.
Temos aqui testemunhas contra toda essa empresa chamada teatro
moderno. Coleti-
vamente, eles do a seguinte sentena: arte de m qualidade ser to
pessoal, to emotivo,
em um apelo para que o espectador esquea-se da coisa em si e
seja afogado pela perso-
nalidade, pela emoo, daquele que atua. E agora, um testemunho de
uma atriz.
Eleonora Duse disse: Para salvar o Teatro, o teatro precisa ser
destrudo, os atores e
atrizes devem todos morrer de peste. Eles envenenam o ar, eles
fazem a arte impossvel.3
Podemos acreditar em suas palavras. Ela quer dizer o mesmo que
Flaubert e
Dante, ainda que as palavras sejam diferentes. E existiriam
ainda muitos mais teste-
munhos a meu favor se, por acaso, estas evidncias no fossem
suficientes. Algumas
pessoas nunca vo ao teatro, so milhes de homens contra apenas
algumas milhares
dos que realmente vo. Alm disso, temos o apoio da maioria dos
diretores das peas
de hoje. Os diretores de peas modernos pensam que uma pea sobre
o palco deve
ser sempre decorada de forma exuberante. Ele afirma que no devem
ser medidos
esforos na criao da circunstncia onde o pblico possa ser iludido
com uma
sensao de realidade. Ele nunca cessa de nos afirmar como toda
essa decorao
importante. Ele insiste nisso por vrias razes, a principal delas
a seguinte: ele sente
um grande perigo em um trabalho que seja simples e bom. Ele
percebe que existe
um grupo de pessoas que se opem a essas excessivas decoraes e
que existe
um movimento ntido na Europa contra esse tipo de ostentao, que
afirma que as
grandes peas crescem quando representadas sobre um fundo limpo.
Este movimento
comprovadamente forte, se espalhou de Cracvia a Moscou, de Paris
a Roma, de
3Studies in Seven Arts. Arthur Symons (Constable, 1900). (N. do
A.)
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Londres a Berlim e Viena. Os diretores veem este perigo a sua
frente; eles imaginam
que uma vez que o pblico se d conta deste fato, que a audincia
prove do encanto
que uma pea sem cenrios pode trazer, eles iro em seguida mais
adiante e pedir
uma pea sem atores, e finalmente podem ir ainda mais longe, e
cada vez mais, at
que, por fim, os espectadores, e no os diretores, realizem a
devida reforma da arte.
Napoleo supostamente teria dito: Na vida h muito de coisas
indignas que as
artes devem por bem omitir, muito de dvida e hesitao, e tudo
isso deveria desa-
parecer na representao de um heri. Devemos v-lo como uma esttua
na qual
toda fraqueza e os tremores da carne no sejam mais perceptveis.
E no s Napo-
leo, mas Ben Jonson, Lessing, Edmund Coleridge, Anatole France,
Ruskin, Pater4, e
suponho todos os homens e mulheres inteligentes da Europa no
falemos da sia,
pois mesmo aquele que inculto na sia no consegue admitir a
fotografia, ao mesmo
tempo que compreende a arte como uma manifestao simples e clara
tem protes-
tado contra essa reproduoda natureza e com ela a realidade
fotogrfica e frgil.
Eles tm protestado contra tudo isto, e os diretores teatrais
retrucam energicamente.
Esperemos ento que a verdade aparea no devido tempo. uma
concluso razovel.
Excluam a rvore real, excluam a realidade da expresso, excluam a
realidade da ao,
e se caminhar para a excluso do ator. Isto o que ir acontecer
algum dia, e gosto
de ver alguns diretores apoiando desde j esta idia. Excluam o
ator e excluiro os
meios pelos quais esse aviltante realismo de palco produzido e
floresce. No mais se
ter a figura humana para nos confundir conectando a realidade e
a arte. No mais a
figura viva, na qual as fraquezas e tremores da carne so to
perceptveis. O ator deve
sair e em seu lugar surgir a figura inanimada, a Supermarionete,
podemos cham-la
assim, at que tenha conquistado para si um nome melhor. Muito se
tem escrito sobre
bonecos, ou marionetes, e alguns excelentes livros foram
escritos sobre eles. Vrias
obras de arte foram inspiradas por eles. Atualmente, nesses
tempos menos felizes,
muitas pessoas acabam por olh-los mais como uma boneca de status
superior, e
pensam que ele se originou a partir de uma boneca, um brinquedo.
Isso incorreto.
4Sobre escultura, Pater escreve: Sua luz branca, purificada das
raivosas e sangrentas manchas da ao e da
paixo, revela, no o acidental, mas o divino no homem, se opondo
incessante agitao humana. E ainda:
A base para toda criao artstica o poder de conceber a humanidade
de uma maneira nova, admirvel e
feliz, substituindo o mundo mesquinho do cotidiano por um mundo
cheio de jbilo, feito pela mo do artista;
fazendo surgir em torno a si uma atmosfera com um novo poder de
refrao, selecionando, transformando e
recombinando as imagens que transmite, de acordo com a escolha
do intelecto imaginativo. E mais adiante:Tudo o que acidental, tudo
o que perturba o efeito mais simples sobre ns dos elevados tipos de
humanidade,
todos os traos de vulgaridade do mundo, lentamente eliminado.
(N. do A.)
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A marionete uma descendente das imagens de pedra de antigos
templos. Hoje ela
a forma degenerada de um deus. Sempre amigo ntimo de crianas,
ela ainda sabe
muito bem como selecionar e atrair seus devotos.
Quando algum desenha uma marionete em um papel, ele rabisca uma
coisa rija
e desengonada. Esta pessoa nem sequer percebe o que est contido
nesta idia que
hoje chamamos de marionete. Ele no se d conta da gravidade das
feies e a calma
do corpo, e julga se tratar de simples deformidades angulosas e
estupidez. Mesmo
as marionetes modernas so extraordinrias. Podem chover aplausos,
ou somente
gotejar: seus coraes no disparam, nem ralentam, seus gestos no
se exasperam
ou desordenam; ou ainda se coberta de flores e elogios, a
protagonista mantm seu
rosto solene, belo e distante como sempre. Existe algo alm de um
lampejo genial na
marionete, algo mais nela que um simples brilho de uma
personalidade em exposio.
A marionete me parece o ltimo eco de alguma arte nobre e bela de
uma civilizao
antiga. Mas, como todas as artes, acabou caindo em mos
grosseiras ou incultas e
o boneco, a marionete, se tornou uma vergonha. Todos os bonecos
atualmente no
passam de comediantes vulgares.
Eles imitam a pior e mais genuna raa de atores do teatro. Entram
em cena apenas
para cair de traseiro no cho. Bebem apenas para cambalear e
fazem amor somente
para arrancar risadas. Esqueceram-se completamente dos conselhos
de sua me, a
esfinge. Seus corpos perderam a graa e se tornaram rijos. Seus
olhos perderam aquela
sutileza infinita de parecer realmente enxergar. Agora, apenas
olham fixamente o vazio.
Eles exibem e balanam seus fios e se movem arrogantes em sua
sabedoria de madeira.
Erram ao se esquecerem que sua arte deve trazer em si o selo da
discrio que vemos
por vezes no trabalho de outros artistas, e que a arte mais
elevada aquela que oculta o
ofcio e faz esquecer o artfice. Um antigo viajante, no ano de
800 a.C., ao descrever sua
visita ao Templo-teatro de Tebas nos conta que foi conquistado
pelas belezas de suas
nobres artificialidades. Entrando na Casa de Vises, eu vi ao
longe uma bela Rainha
morena sentada em seu trono, ou sua tumba poderia ser uma coisa
ou outra. Eu
recostei em meu div e me pus a admirar seus movimentos
simblicos. Com que suavi-
dade os ritmos se alteravam enquanto seus movimentos alternavam
entre um membro
e outro. Com que demonstrao de tranqilidade ela revelou a ns os
pensamentos
que lhe iam por dentro. A gravidade e a beleza com que ela se
deixava estar em seu
sentimento de tristeza, parecia nos dizer que nenhuma dor jamais
poderia mago-la.
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Nenhuma alterao em seu corpo ou feies permitia que pudssemos
sequer sonhar
que estivesse sendo subjugada. A paixo e a dor, ela as tomava em
suas mos, uma
aps a outra, ela as retinha gentilmente e as observava com
calma. Seus braos e mos
pareceram a um momento como uma fina e tpida fonte de gua que
surge e depois se
dobra e escorre com todos os seus longos e plidos dedos como
espuma em direo
a seu colo. Teria sido como uma revelao da arte para ns, no
tivesse eu j visto o
mesmo esprito abrigado em outros exemplos de arte dos egpcios.
Esta Arte de Velar e
Revelar, como eles a chamam, uma fora espiritual to grande nesta
terra que ocupa
uma parte preponderante de sua religio. Podemos aprender algo
sobre o poder e a
graa da coragem, pois impossvel assistir tal performance sem uma
sensao de
repouso fsico e espiritual. Isto aconteceu em 800 a.C. Quem sabe
talvez o boneco, a
marionete, possa voltar a ser o agente fidedigno para os
propsitos de beleza do artista?
Poderamos ento olhar em frente com a esperana do dia em que se
trar de volta a
figura, ou criatura simblica, construda tambm pela habilidade do
artista, para que
tenhamos uma vez mais a nobre artificialidade da qual falavam os
antigos escritores.
E que assim no mais nos submetamos cruel influncia de emotivas
confisses de
fraqueza que todas as noites so testemunhadas pelo pblico e que,
por sua vez, criam
naqueles que assistem a mesma fraqueza que exibida no palco.
Para isso precisamos
estudar para refazer estas imagens, no mais simplesmente
bonecos, precisamos criar
uma Supermarionete. A Supermarionete no competir com a vida, ela
ir alm dela.
Seu ideal no ser o carne e osso, mas o corpo em xtase. Ele
buscar se vestir com
uma beleza morturia e ao mesmo tempo exalar um esprito vivo.
Muitas vezes durante
esse ensaio, uma palavra ou duas sobre a Morte surgiu no papel,
convocada ali pelo
incessante clamor de Vida! Vida! Vida! que os realistas mantm. E
isto poderia ser
facilmente entendido como presuno, especialmente por aqueles que
no possuem
simpatia ou prazer no poder e na misteriosa alegria presente em
toda e qualquer obra
de arte realizada livre da emoo. Se o renomado Rubens e o clebre
Rafael realizaram
apenas obras exuberantes e apaixonadas, por outro lado existiram
vrios outros artistas
antes e depois destes a quem, ao contrrio, o comedimento era o
mais precioso de
todos os seus objetivos, e estes, mais do que todos os outros,
exibiram uma qualidade
verdadeiramente viril. Os outros, extravagantes ou lnguidos, so
artistas cujos nomes
e obras, luz de nossos tempos, no nos falam devidamente como
homens, apenas
berram como animais ou ceceiam como mulheres.
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Os sbios, os moderados mestres, slidos por causa das leis s
quais juraram
permanecer fiis uma dinastia admirvel, ainda que seus nomes
sejam desconhe-
cidos para a maioria , os criadores de grandes e minsculos
deuses do Oriente e do
Ocidente, guardies de tempos memorveis, todos eles dirigem seus
pensamentos
para frente, em direo ao desconhecido, procurando por vises e
sons naquele pas
tranqilo e feliz, onde eles erguero uma figura de pedra ou
entoaro um verso, inves-
tidos daquela mesma paz e alegria vislumbrada de longe,
contrabalanando todas as
tristezas e perturbaes encontradas aqui.
Na Amrica podemos imaginar estes irmos dessa famlia de mestres,
vivendo
em suas soberbas cidades antigas, cidades colossais, que eu
sempre pensei ser
possvel mov-las em um nico dia, cidades feitas de enormes tendas
de seda e
dourados dossis sob os quais moram seus deuses, moradas que
possuem tudo o
que preciso para agradar aos mais exigentes. Estas cidades
nmades ao se deslo-
carem de montanhas a plancies, do alto dos rios ou ao longo de
seus vales, parece-
riam um vasto exrcito de paz, em marcha. E em cada uma destas
cidades no se teria
apenas um ou dois homens chamados artistas a quem todo o resto
da cidade rotula
como vagabundos irresponsveis, mas muitos homens escolhidos pela
comunidade
justamente por causa de sua elevada capacidade de percepo:
artistas. Pois isso
o que o ttulo de artista quer dizer: aquele que percebe mais que
seus colegas, e que
registra mais do que aquilo que pode ser visto. E no em menor
nvel entre os artistas
se encontra aquele artista cerimonial, o criador de vises, o
sacerdote cujo dever
celebrar seu esprito orientador, o esprito do Movimento.
Na sia tambm os mestres esquecidos dos templos, e tudo o que
aqueles
templos contm, permearam cada pensamento, cada sinal presentes
em suas obras
com esse sentido de tranquila movimentao assemelhada morte,
glorificando-a e
celebrando-a. Na frica (que alguns de ns pensam que estamos
ainda por civilizar)
este esprito vive, a essncia da civilizao perfeita. L tambm,
moram os grandes
mestres, sem obsesses individuais com a idia de afirmar sua
personalidade como
se fosse uma coisa poderosa e de muito valor, mas contentes por
um tipo de pacincia
sagrada em mover seus crebros e seus dedos somente naquela direo
permitida
pelas leis a servio das verdades simples.
Ao se observar qualquer exemplo da arte egpcia, pode-se
identificar quo rgida
era esta lei e como to pouco os artistas daquele tempo se
permitiam exibir seus
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sentimentos pessoais. Olhe para cada membro esculpido pelos
egpcios, procure em
todos aqueles olhos esculpidos e eles se negaro a voc at o final
dos tempos. Sua
atitude to silenciosa que se assemelha morte. Ainda assim, a
ternura est ali,
assim como o encanto. A beleza tambm est, lado a lado com a
fora. E o amor,
banhando a cada trabalho. Mas arroubo, emoo, afirmao arrogante
de personali-
dade do autor? Nem um trao sequer. Dvidas ferozes sobre o
futuro? Nem um pouco.
Determinao obstinada? Nem um sinal esse artista deixa escapar.
Nenhuma dessas
confisses, estupidezes. Nem orgulho, nem temor, nem o cmico, nem
nenhuma indi-
cao de que a mente do artista ou suas mos estejam nem a milsima
parte de
um momento fora do controle das leis que comandam suas aes. Quo
soberbo!
Isto o que um grande artista, e a quantidade de emoes efusivas
de hoje e de
ontem no so sinais de inteligncia em alto grau, o que vale
dizer, que no so sinais
tampouco de arte em alto grau. Europa veio este esprito, pairou
sobre a Grcia, foi
expulsa com dificuldade da Itlia, at finalmente desaparecer,
deixando um pequeno
rastro de lgrimas, prolas, diante de ns. E ns, tendo esmagado a
maioria delas,
mastigando-as entre nosso bolo de comida, fomos mais longe e
pior, e nos prostramos
diante dos chamados grandes mestres, e temos adorado essas
personalidades peri-
gosas e extravagantes. Em um dia infeliz, pensamos, em nossa
ignorncia, que eles
haviam sido enviados para nos desenhar, que haviam sido enviados
para expressar
os nossos pensamentos, que tinham algo a ver conosco, a
arquitetura e a msica que
nos apresentavam. Foi assim que passamos a pedir que fossemos
capazes de nos
reconhecer em tudo o que mostravam, ou seja, em sua arquitetura,
em sua escultura,
em sua msica, em sua pintura, e na poesia feita para representar
e ainda hoje os
lembramos de nos convidar com as palavras usuais: Venham, assim
como so.
Depois de muitos sculos, os artistas cederam e o que pedimos a
eles, eles nos
deram. E aconteceu que quando nossa ignorncia expulsou o esprito
justo que um dia
havia controlado a mente e a mo do artista, um esprito tenebroso
tomou seu lugar. Um
vndalo despreocupado no lugar da lei, ou seja, um esprito
estpido no lugar do rei. E todos
comeam a gritar por Renascimento! Enquanto isso, pintores,
msicos, escultores, arqui-
tetos, competem entre si para suprir a demanda, para que todos
esses produtos possam ser
feitos de tal maneira que todas as pessoas consigam reconhecer
nelas algo de si mesmas.
Brotaram estes retratos com faces ruborizadas, olhos
protuberantes, bocas contor-
cidas, dedos ansiosos em fugir da moldura, pulsos expondo suas
pulsaes, todas as
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cores em desordem total, todas as linhas em tumulto, como os
desvarios da insanidade.
As formas se contorcem em pnico, o sopro calmo e fresco da vida
em transe que um
dia insuflou uma esperana indescritvel, se enfureceu, queimou em
uma labareda e
foi destrudo. Em seu lugar: realismo, esta obtusa afirmao de
vida, esse grande mal-
-entendido, no qual todos se reconhecem. Absolutamente afastado
do objetivo da Arte,
seu propsito no refletir a realidade dos fatos dessa vida, uma
vez que no do
comportamento do artista andar atrs das coisas, pois conquistou
o privilgio de cami-
nhar frente delas, de liderar. A vida deveria, antes, refletir a
semelhana com o esprito,
pois foi o esprito quem a princpio escolheu o artista para
narrar suas belezas5. E nesta
imagem, se as formas acompanham aquelas dos seres vivos, por sua
beleza e ternura,
suas cores precisam ser buscadas no desconhecido territrio da
imaginao; e o que
seria isso seno o territrio onde mora aquilo que chamamos de
Morte? Portanto no
leviano ou petulante que eu fale sobre bonecos, marionetes, e
sua capacidade de
preservar as belas e distantes expresses na forma e na face
mesmo quando submetidas
aos louvores de uma torrente de aplausos. Algumas pessoas zombam
desses bonecos.
Boneco um termo utilizado atualmente com desdm, mas existem
aqueles que ainda
encontram beleza nessas pequenas figuras, degeneradas assim como
se tornaram.
Falar sobre bonecos, marionetes, com a maioria dos homens e
mulheres motivo
para risadas. Pensam imediatamente em fios, pensam em mos rgidas
e movimentos
desengonados, e me dizem: apenas um brinquedinho engraado. Mas
permitam-
5Todas as formas so perfeitas na mente do poeta: mas no as
extrai nem as compem a partir da Natureza;
elas vm da Imaginao. William Blake (N. do A.)
Notas de traduo:
1. Estas, acima, so as nicas notas de autor presentes na edio de
janeiro de 1912 de On the Art of the Theatre,
de Edward Gordon Craig.
2. Nesta traduo esto includos alguns trechos omitidos na edio
portuguesa, com traduo de Redondo Junior,
realizada na dcada de 1960. Alm disso, alguns outros trechos
sofreram recortes e snteses que desconfiguram,
seno o sentido central, seguramente a forma o que acaba
alterando tambm, de alguma maneira, o primeiro. A
lacuna principal um grande trecho onde Craig fala sobre a relao
entre a Morte e a inspirao do artista. Vrias
outras pequenas lacunas se repetem na traduo portuguesa, entre
elas as que Craig se refere, de maneira
qualificativa, relao entre as mulheres e a arte. Foi evitado,
nesta traduo, qualquer tipo de resumo para que
se mantivesse, o mais possvel, a forma original, com suas
repeties propositais de palavras e trechos, bem
como sua verve por vezes em espiral. Recursos formais que
embebem o texto de Gordon Craig de qualidades
indissociveis de seu contedo, como o carter essencialmente
didtico, um sentimento profundamente potico
e as nuancesde um humor fino e particular.
3. O termo puppet (literalmente boneco, que em ingls abrange
todo tipo de bonecos: fantoches, marionetes,bonecos de vara, formas
animadas, etc.) utilizado por Craig em todo o texto e props uma
dificuldade para a
preciso na traduo. Buscou-se, caso a caso, uma converso que
melhor se adequasse a cada situao especfica.
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me falar-lhes algumas coisas sobre esses bonecos. Permitam-me
repetir uma vez mais
que eles so descendentes de uma grande e nobre famlia de
imagens, imagens feitas,
de fato, semelhana de Deus. E que muitos sculos atrs essas
figuras tinham um
movimento rtmico e no desengonado, no havia necessidade de fios
para sustent-
los, nem falavam com a voz nasalada de um manipulador oculto.
[Pobre Punch, no
pretendo menosprez-lo! Voc est sozinho, dignificado em seu
desespero, enquanto
olha para sculos passados com seus olhos pintados ainda molhados
pelas lgrimas
em seu rosto to antigo, e voc parece gritar suplicante por seu
co: Irm Anne, irm
Anne, no vem ningum? Depois com aquela sua bravata excelente,
voc direcionou
nossos risos (e minhas lgrimas) sobre si mesmo com seus gritos
pungentes: Oh,
meu nariz! Oh, meu nariz! Oh, meu nariz!] Vocs creem, senhoras e
senhores, que
esses bonecos foram sempre pequenas coisas de 30 centmetros de
altura?
De fato, no! Os bonecos j foram um dia uma figura mais nobre do
que vocs mesmos.
Pensam que ele esteve sempre a saltitar perambulando sobre uma
pequena
plataforma de cerca de dois metros quadrados, construda para
lembrar um pequeno
teatro antigo, onde sua cabea quase toca o teto do proscnio?
Acreditam que ele
sempre viveu em uma pequena casa onde a porta e as janelas so
pequenas como
as de uma casa de bonecas, pintadas e abertas de par em par,
onde as flores de sua
jardineira exibem ptalas do tamanho de sua cabea? Tentem
abandonar essas idias
de uma vez por todas e deixem-me dizer uma coisa sobre sua
verdadeira casa.
A sia foi seu primeiro reino. s margens do Ganges eles
construram sua casa,
um imenso palcio que se erguia de uma coluna a outra em direo
aos cus e vertiam
de coluna em coluna novamente para dentro das guas. Cercado de
imensos jardins,
quentes e abundantes em flores e refrescados por fontes, jardins
nos quais som algum
penetrava e no qual raramente algo se agitava. Apenas no
interior dos frescos e reser-
vados aposentos de seu palcio, as mentes aguadas de seus
seguidores moviam-se
incessantemente. Preparavam algo que fizesse jus a ele, algo que
homenageasse o
esprito que lhes havia trazido vida. E ento, um dia, a
cerimnia.
Nesta cerimnia, ele tomou parte, uma celebrao novamente em
homenagem
Criao; a antiga Ao de Graas, o viva existncia, e com um viva
mais vigoroso
ao privilgio da existncia porvir, que velada pela palavra Morte.
E durante esta
cerimnia surgiam diante dos olhos de seus devotos morenos os
smbolos de todas
as coisas na terra e no Nirvana. O smbolo da rvore bela, o
smbolo das montanhas,
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os smbolos de todos os ricos minrios que as montanhas abrigam,
os smbolos da
nuvem, do vento, e de todas as coisas geis, o smbolo do mais
rpido dentre tudo o
que se move, do pensamento, da recordao; o smbolo do animal, o
smbolo de Buda
e do Homem, e eis que ela surge, a figura, a marionete, o
boneco, do qual todos tanto
riram. Riem dele hoje, pois nada lhe restou a no ser, as suas
fraquezas. As fraquezas
que so, em verdade, apenas nosso reflexo. Mas, no teriam rido se
o tivessem visto
em seu auge, na poca em que ele era convocado a ser o smbolo do
ser humano
em uma grande cerimnia e, ainda mais, era em si a imagem do
encanto que tomava
conta de nosso prprio corao. Se rimos e insultamos a memria
desses bonecos,
deveramos antes, rir da runa que causamos a ns mesmos, rir de
todas as crenas
e das imagens que quebramos em ns. Alguns sculos mais tarde
encontramos a sua
casa deteriorada. De um templo, ela se tornou, no diria um
teatro, mas algo entre um
teatro e um templo, onde ele perde sua vitalidade. Algo paira no
ar e os seus mdicos
lhe recomendam ser cuidadoso. E a qu eu deveria mais temer? ele
lhes pergunta.
Eles lhe respondem: Tema acima de tudo a vaidade dos homens. Ele
pensa: Mas
exatamente isto o que eu tenho ensinado ao longo de todo o
tempo: que ns, que
celebramos com alegria esta existncia, devemos cultivar, mais
que tudo, esse grande
temor. possvel que logo eu, aquele que sempre revelou a verdade,
deve ser aquele
que perde isto de vista e que seja o primeiro a decair? Est
claro que algum ataque
sutil se abate sobre mim. Manterei meus olhos nos cus. Ele
despede seus mdicos
e se pe a meditar sobre o assunto.
Agora permitam que eu conte quem foi o responsvel por perturbar
a atmosfera
serena que circundava esse ser curiosamente perfeito. Os
registros relatam que, algum
tempo mais tarde, ele resolveu estabelecer sua morada na costa
do Extremo Oriente e
vieram duas mulheres contempl-lo. E nesta cerimnia que
presenciaram, ele brilhou
com tal esplendor terreno e tal sobrenatural simplicidade, que
causou uma profunda
inspirao a mil novecentas e noventa e oito pessoas que
participavam do festival, uma
inspirao que clareou a mente de todos ao mesmo tempo em que as
intoxicava. Apenas
duas mulheres, entre todas, experimentaram somente a intoxicao.
Ele no as viu, seus
olhos estavam fixos nos cus. Assim mesmo, as encheu de um desejo
grande demais
para ser sufocado, o desejo de se tornar o smbolo direto da
divindade nos homens. E
sem muita demora vestiram-se o melhor que puderam (dessa
maneira, pensaram),
movendo-se com gestos (dessa maneira, disseram) e capazes de
causar um encanta-
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mento nas mentes dos devotos (da maneira que ele faz,
exclamaram), construram para
si um templo (dessa maneira, dessa maneira!), e satisfizeram as
demandas do povo,
tornando a coisa inteira uma pardia pobre e lamentvel.
Assim est registrado. o primeiro registro no Oriente sobre o
ator. O ator surgiu
da tola vaidade de duas mulheres que no foram fortes o
suficiente para contemplar o
smbolo da divindade sem desejar falsific-lo, e a pardia se
mostrou bastante lucra-
tiva. Em cinqenta ou cem anos, lugares para tais pardias podiam
ser encontrados
por toda a regio.
Ervas daninhas, dizem, crescem rapidamente, e essa selva de
ervas dani-
nhas chamada teatro moderno, rapidamente se espalhou. A figura
do boneco, da
marionete divina, atraa cada vez menos adoradores, e as mulheres
se tornaram a
grande novidade. Com o desaparecimento gradual do boneco e o
crescimento das
mulheres que se exibiam em um palco em seu lugar, veio aquele
esprito obscuro ao
qual chamamos de Caos, e em seu despertar o triunfo da
personalidade degradada.
Voc entende, ento, o que me fez amar e aprender o valor do que
chamamos hoje de
marionete e detestar o que chamamos vida na arte? Eu rezo
fervorosamente pelo
retorno da imagem, da Supermarionete, ao Teatro. E quando ela
surgir e for vista, ela
ser adorada tanto que uma vez mais ser possvel para as pessoas
recuperarem a
antiga alegria das cerimnias. Uma vez mais a Criao ser
celebrada, homenagens
rendidas existncia e intercesses divinas e felizes sero feitas
Morte.
Florena, Maro 1907
Trad. Almir Ribeiro