1 COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- GOVERNAMENTAIS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO DE SÃO PAULO: PROTAGONISTAS CONSTITUTIVAS DE NOVOS MODELOS PRISIONAIS OU REPRODUTORAS DOS MODELOS TRADICIONAIS? São Paulo, 2006. {Dissertação de Mestrado em Serviço Social – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo} INTRODUÇÃO A violência dentro das prisões do Estado de São Paulo, por volta de 1990 se acentuava cada vez mais, em face da deterioração de vários determinantes: a falta de higiene, a precariedade dos serviços de saúde e jurídico, a corrupção entre presos e funcionários, a incompetência administrativa, a prática de torturas psicológica e física aliados à superlotação eram alguns dos indicadores da “questão social” em suas particularidades no cotidiano prisional do Estado de São Paulo. O descaso governamental era tanto, com relação à situação dos encarcerados que isso contribuiu para que eles se fortalecessem em sua dor, em seu ódio, em sua ira e, pouco a pouco, foram se agrupando e se organizando para exigirem do Estado melhores condições de vida prisional. Esse agrupamento social também mostrou ao Estado que seus custodiados estavam mais equipados e organizados, estrategicamente, que o próprio Estado. Essa afirmativa foi claramente demonstrada não só ao Estado, mas à sociedade brasileira no dia 18 de fevereiro do ano de 2001, quando deu início a maior rebelião já registrada historicamente no país. Era final de semana, domingo de manhã até à tarde, a maior organização criminosa do país – Primeiro Comando da Capital – PCC conseguiu mobilizar presos de várias instituições prisionais, da capital ao interior do Estado, os quais se rebelaram, fazendo seus reféns funcionários e os próprios familiares.
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COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO- … · Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.
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COSTA, GIZELDA MORATO. AS ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS NO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO DE SÃO PAULO: PROTAGONISTAS CONSTITUTIVAS DE NOVOS MODELOS PRISIONAIS OU REPRODUTORAS DOS MODELOS TRADICIONAIS? São Paulo, 2006. {Dissertação de Mestrado em Serviço Social – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo}
INTRODUÇÃO
A violência dentro das prisões do Estado de São Paulo, por volta
de 1990 se acentuava cada vez mais, em face da deterioração de vários
determinantes: a falta de higiene, a precariedade dos serviços de saúde e
jurídico, a corrupção entre presos e funcionários, a incompetência
administrativa, a prática de torturas psicológica e física aliados à
superlotação eram alguns dos indicadores da “questão social” em suas
particularidades no cotidiano prisional do Estado de São Paulo.
O descaso governamental era tanto, com relação à situação dos
encarcerados que isso contribuiu para que eles se fortalecessem em sua
dor, em seu ódio, em sua ira e, pouco a pouco, foram se agrupando e se
organizando para exigirem do Estado melhores condições de vida prisional.
Esse agrupamento social também mostrou ao Estado que seus custodiados
estavam mais equipados e organizados, estrategicamente, que o próprio
Estado.
Essa afirmativa foi claramente demonstrada não só ao Estado,
mas à sociedade brasileira no dia 18 de fevereiro do ano de 2001, quando
deu início a maior rebelião já registrada historicamente no país.
Era final de semana, domingo de manhã até à tarde, a maior
organização criminosa do país – Primeiro Comando da Capital – PCC
conseguiu mobilizar presos de várias instituições prisionais, da capital ao
interior do Estado, os quais se rebelaram, fazendo seus reféns funcionários
e os próprios familiares.
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A população brasileira acompanhava as imagens pela televisão do
movimento de rebeldia que se espalhava pelas prisões, sendo a maior parte
delas subordinadas à Secretaria de Administração Penitenciária.
O principal centro de comando da capital, denominado PCC
estava na Casa de Detenção de São Paulo, que na época abrigava 7 mil
homens.No chão do pátio da Casa de Detenção, as mensagens que o grupo
escrevia eram transmitidas ao mundo pelas redes de TV. O espetáculo era
horrível e de total descontrole do Estado em relação aos presos que
mantinha sob sua custódia.
Os presos rebelados não apresentavam, naquele momento,
denúncias de maus-tratos físicos e psicológicos. As exigências eram de
desativação do anexo da Casa de Custódia da cidade de Taubaté, onde as
regras disciplinadoras eram extremamente severas, permanecendo os
presos, 23 horas por dia isolados em celas, e o retorno dos líderes do PCC à
Casa de Detenção de São Paulo, os quais haviam sido removidos dias antes
para o anexo de Taubaté. A prioridade para os rebelados era o retorno de
suas lideranças.
Os articuladores do movimento, denominado pela imprensa de
“megarebelião”, escolheram estrategicamente a data. Era dia de visitas de
familiares e de amigos. O fato de terem como reféns inúmeras pessoas
inocentes: adultos, idosos e crianças evitariam a ação violenta das
autoridades, o que representou um desafio ao Estado para que os
problemas decorrentes das rebeliões fossem resolvidos sem mais violência.
Em algumas prisões, as rebeliões foram controladas no mesmo
dia e, em outras, a situação se arrastou até o dia seguinte, deixando no final,
um saldo de 19 presos mortos em razão de brigas entre eles.
O movimento abrangeu a adesão de 29 unidades prisionais,
envolvendo 28 mil presos, fazendo com que os representantes legais do
Estado percebessem a real capacidade organizativa das “facções
criminosas” criadas e alimentadas dentro do próprio sistema penitenciário.
Este e outros fatos, que já vinham sendo registrados na história das prisões
do Estado de São Paulo, obrigaram seus representantes legais (Governo,
Secretário de Administração Penitenciária e gestores prisionais) a melhor
observarem os indicadores sociais constitutivos para eventos de tal
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natureza, sugerindo a adoção de novos métodos de trabalho e estratégias
inovadoras a fim de amenizar a corrupção, até então reinante, entre presos e
funcionários de várias prisões e o não-cumprimento legal das normas
reguladoras dos direitos e deveres das pessoas presas.
Diante da problemática exposta das prisões, a Secretaria da
Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, pioneira no Brasil a
tratar com exclusividade do sistema prisional, tendo à frente para comandá-
la o Secretário de Estado Nagashi Furukawa, percebeu que o sistema
penitenciário apresentava inúmeros problemas, dos quais os principais eram
os “maus-tratos físicos e psicológicos” sofridos pelos indivíduos presos.
Esse secretário havia atuado, anteriormente, como juiz de
execuções criminais, e apresentava uma postura profissional voltada à
humanização das prisões, por meio de métodos mais eficientes para o
atendimento das necessidades sociais postas pelos indivíduos presos.
O secretário reconhecia, publicamente, que muito existia a ser
feito e que métodos inovadores deveriam ser testados a fim de “humanizar
as prisões”. No entanto, contraditoriamente ao seu discurso, determinou aos
diretores prisionais que identificassem os líderes das organizações
criminosas existentes nas prisões, a fim de puni-los com rigor “dentro da lei”.
Identificados os líderes, estes foram confinados em penitenciárias
de máxima segurança.
A Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São
Paulo mantém atualmente três penitenciárias desse tipo, gerando um total
de 820 vagas1.
As penitenciárias onde os indivíduos foram confinados, ao
contrário das demais, os presos permanecem 23 horas recolhidos em celas,
sem direito a ouvir rádio ou ver TV. Somente têm acesso a leituras, essas,
triadas pela administração da penitenciária. Também não têm direito à visita
conjugal, conhecida como visita íntima, tampouco contato físico com os
familiares. Entre os presos e as famílias há uma separação de vidro e uma
tela.
1 Nas cidades de Taubaté, Presidente Bernardes e Avaré.
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Esses métodos estão sendo utilizados como um castigo severo
àqueles que têm afrontado o Estado dentro das prisões.
Segundo o secretário, o castigo é severo, mas está dentro do que
a Constituição Federal de 1988 permite e também tem prazo estipulado.
Essa condição não pode exceder a seis meses, na primeira entrada do
preso, mas se ocorrer reincidência, esse prazo passa a ser de doze meses.
De acordo com ele, esse método tem desestimulado a atividade dos líderes
de facções criminosas.
Entretanto, ao contrário do pensamento do secretário, o
confinamento dos “líderes de facções” não tem se mostrado eficaz. A
realidade prisional vem mostrando que as facções criminosas se mantêm
vivas e articuladas em atividades ilícitas dentro das prisões, nas suas
inúmeras ramificações.
A atuação e a postura do secretário em relação à criação desse
tipo de prisão, na época da “megarebelião”, foi no mínimo paradoxal, haja
vista que ao mesmo tempo em que apresentava discurso “humanizador" da
pena, determinou aos diretores dessas prisões que endurecessem dentro da
lei o sistema punitivo aos líderes das facções, com a ilusão de que prisões
mais rígidas e severas seriam a “panacéia” para combater as lideranças
negativas e os ilícitos penais promovidos por elas.
O que tem ficado patente é que o severo confinamento dos líderes
de “facções” não consegue aplacar o crescimento de suas ramificações,
tampouco com relação aos crimes praticados por várias facções dentro das
prisões. Somente no ano de 2005 ocorreram 13 rebeliões, com 28 mortes e
inúmeros funcionários reféns. As mortes foram provocadas por desavenças
entre as diversas facções criminosas existentes dentro das prisões.
Criadas as prisões com a autorização do secretário, para melhor
conter os indivíduos que apresentavam lideranças “negativas”, ele, ao
mesmo tempo, perseguia seu ideal de instituir prisões com menos vagas, em
torno de 210, onde se pudessem implantar métodos inovadores, voltados à
promoção humana e social dos indivíduos que iriam cumprir pena. Nessas
prisões, em razão do número menor de presos, os indivíduos seriam
conhecidos pelo nome e respeitados em seus direitos sociais, pois, além dos
funcionários públicos designados para trabalhar nessas prisões,
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denominadas Centros de Ressocialização - CR, contar-se-ia também com a
participação da comunidade organizada em organizações sociais, sem fins
lucrativos, para prestarem serviços aos custodiados. O Estado repassaria às
Organizações Não-Governamentais –Ongs os recursos públicos necessários
à prestação dos serviços, delegados pelo Estado.
Nesta perspectiva foi com o empenho do secretário Nagashi
Furukawa que o governador à época, Mário Covas, instituiu o Decreto nº
45.403/2000, que propiciou a utilização de termos de convênio de parcerias
com entidades privadas, que primassem em sua finalidade a “reintegração
social do preso”.
A maior vantagem desse convênio, segundo o secretário, é que as
ONGs devem trazer como finalidade a melhoria das condições de vida do
homem preso e não o lucro.
Atualmente, essa proposta de gestão administrativa prisional
compartilhada, entre o Estado e a comunidade, atinge 22 Unidades
Prisionais, com projeção de expansão de propostas para outras prisões de
grande e médio porte em curto espaço de tempo.
A evolução das parcerias com as ONGs está embasada de acordo
com a Secretaria de Administração Penitenciária nos resultados atingidos
pela administração mista, entre representantes do governo e da sociedade
civil, que vêm minimizando a margem de gastos imediatos com a
manutenção de toda a estrutura carcerária e ainda propiciando ações de
caráter social, que além do intuito humanístico, traz consigo a redução de
gastos mediatos, já que todas as ações das Organizações Não-
Governamentais devem convergir para a não “reincidência” do indivíduo que
cumpre pena nos Centros de Ressocialização.
Mas, se na prática este modelo de gestão tem apresentado aos
olhos da Secretaria alguns avanços na prestação de serviços aos indivíduos
presos, tem apresentado contradições que necessitam ser investigadas, por
isso nosso interesse em estudar o tema.
Nossa intenção ao longo deste estudo é o de investigar elementos
que permitam compreender e desvelar a dinâmica dos Centros de
Ressocialização e sua parceria com o Terceiro Setor.
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Importante esclarecer que a escolha em realizar o presente
estudo provém da vivência e dos conhecimentos acumulados durante nossa
trajetória profissional no Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo
desde 1986, primeiramente na qualidade de assistente social, período de
1986 a 1989. De 1990 a 2000, como diretora de equipes interprofissionais,
estas responsáveis por elaborar e executar a política de assistência social
aos indivíduos presos. No período de novembro de 2000 a 2002, fomos
designadas pelo atual Secretário de Administração Penitenciária, Nagashi
Furukawa, para dirigir mediante metodologias específicas, o primeiro Centro
de Ressocialização, instalado na cidade de Bragança Paulista – São Paulo.
Este até hoje tem sido referência para os demais centros implantados no
Estado de São Paulo.
No período de 2002 a 2004, atuamos à frente da Direção do
Centro de Ressocialização da Cidade de Presidente Prudente – São Paulo
e, atualmente somos gestora geral da Penitenciária Feminina do Butantã,
esta localizada na cidade de São Paulo.
O desejo em realizar este estudo é um desafio, que acreditamos
poder contribuir para uma leitura crítica das discussões que se tem travado
acerca da inserção de Organizações Não-Governamentais no sistema
penitenciário do Estado de São Paulo, seus limites e possibilidades de
prestação de serviços de assistência aos indivíduos presos.
A investigação busca analisar se as ONGs inseridas nos CRs
vêm prestando serviços que elevem as condições de vida e de compreensão
dos indivíduos presos no sentido de sua humanidade e cidadania, para que
possam retornar à sociedade como sujeitos sociais detentores de direitos e
deveres.
Consideramos que a ideologia e metodologias traçadas pelo
Estado, no sentido de derrubar as grades e muros prisionais, chamando a
sociedade civil a participar da gestão do processo de trabalho prisional,
devam ser vistas com seriedade, uma vez que até então, um dos principais
fatores negativos da prisão era o isolamento do microcosmo prisional do
macrocosmo social, delimitados pelas grades e enormes muros de cor
cinzenta ladeados pela polícia armada.
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O Estado, ao simbolicamente derrubar os muros prisionais para a
sociedade transitar, conclama-a a assumir parte de sua responsabilidade
nos problemas e conflitos sociais que se encontram segregados na prisão.
Contudo, é fato comprovado que a maioria dos indivíduos presos, em
nossas prisões, são oriundos de grupos sociais excluídos e marginalizados,
por uma sociedade capitalista predatória e reprodutora de uma massa de
excluídos e desesperançados, abandonados à própria sorte, por um Estado,
deficitário e enfraquecido, que passa a existir precisamente para pagar juros
a credores externos e manter uma iníqua ordem social.
Os filhos desta sociedade passam a viver numa sociedade injusta,
onde parafraseando Eduardo Galeano, pouquíssimos vivem com sobras e
muitos vivem apenas de sobras, empurrando para a marginalidade um
número de cidadãos expressivos, principalmente os mais jovens 2.
Dados do Ministério da Justiça Federal indicam que mais de 50%
das pessoas presas apresentam faixa etária em torno de 20 a 30 anos, são
desqualificados profissionalmente e nem chegaram a concluir o ensino
fundamental.
Esse é o perfil dos presos nas prisões estatais e,
conseqüentemente, nos Centros de Ressocialização. Isto coloca em questão
a prática do Estado com sua política pública, enquanto sistema prisional e
prática tradicional, que poderá ou não estar contraposta à iniciativa da
parceria Estado/ONGs.
Nesse sentido, nossa investigação levou a privilegiar questões que
levassem em conta a responsabilidade das ONGs, frente às atribuições que
lhe foram delegadas pelo Estado por meio do convênio de parceria realizado
e, ao mesmo tempo, precisávamos saber se o Estado está preocupado em
investigar se está havendo eficiência e eficácia na prestação dos serviços
disponibilizados pelas ONGs, diante das demandas apresentadas pelos
indivíduos presos nos CRs.
Nossa hipótese era de que os serviços que vêm sendo
disponibilizados pelas ONGs não têm alcançado os objetivos propostos, no
2 Galeano, E. E. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L &PM, 1999, p.33.
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sentido de garantir o atendimento com eficiência e eficácia às
necessidades e aos direitos dos indivíduos presos
Perguntamos, quando começamos a refletir sobre este trabalho se
o Estado estaria se omitindo em suas obrigações como Estado de direito e
responsável pela garantia dos direitos de todos os presos, por igual. Isto
porque, como assistente social, defendemos as políticas públicas e a
responsabilidade do Estado, com relação às necessidades humanas e
sociais dos indivíduos presos. Entretanto, o que se vê é a descentralização
administrativa estatal e a transferência ao chamado Terceiro Setor dos
serviços de assistência essenciais à promoção humana e social do indivíduo
preso, e a precarização, ainda mais, dos serviços que deveriam elevar a
condição humana de todos aqueles que cumprem pena nas prisões
denominadas Centros de Ressocialização.
Baseadas nas considerações iniciais, e como profissional do
Serviço Social em defesa de um trabalho ético, político e social sério que
venha ao encontro das reais demandas dos usuários presos, não queremos
nos contentar com aparências e com discursos propagados pela Secretaria
de Administração Penitenciária quanto aos resultados “positivos” dos
trabalhos prestados pelas ONGs nos CRs.
Como profissional pioneira na ação prática deste modelo de
gestão prisional, temos clareza de que esse modelo é permeado de
contradições que têm dificultado a eficiência e eficácia dos serviços
prestados, contudo cremos que existem condições objetivas para superá-las,
por isso o interesse em investigá-las.
Realizamos a investigação num universo constituído de três
Centros de Ressocialização, dentro da totalidade de 22 CRs: um deles está
situado na região oeste do Estado de São Paulo e dois estão situados na
região central do Estado.
Os sujeitos investigados foram:
O Secretário de Administração Penitenciária do Estado de São
Paulo, por ser o idealizador do modelo arquitetônico CR e principal
incentivador da inserção de ONGs nas prisões;
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Três diretores gerais, por serem funcionários públicos de carreira e
representantes do Estado, no modelo de gestão CR. Todos eles já
vivenciaram profissionalmente prisões administradas somente pelo Estado.
Três agentes de segurança penitenciária, por serem funcionários
públicos e atuarem na área de segurança e disciplina dentro dos CRs.
Utilizamos também o método de escolha de agentes que já haviam atuado
em prisões administradas somente pelo Estado para que eles pudessem
mencionar com clareza as diferenças de método de trabalho em prisões
tradicionais e as administradas em parcerias com as ONGs.
Três gerentes de execução dos serviços, estes contratados em
regime de CLT pelas ONGs.
Três profissionais da área de Serviço Social, que são contratados
pelas ONGs para compor a equipe que deve elaborar e executar os serviços
de assistência aos presos. Estes assim como os gerentes não tinham
qualquer experiência de atuação em prisões administradas pelo Estado.
Três indivíduos que cumprem pena no CR, todos em regime
prisional fechado e que já vivenciaram cumprimento de pena em prisões
administradas somente pelo Estado.
Para a investigação sobre a eficiência e eficácia dos CRs foi
separado o grupo de sujeitos de cada categoria mencionada, em cada CR,
totalizando 15 sujeitos entrevistados, mais o Secretário de Administração
Penitenciária do Estado de São Paulo.
Não encontramos resistências por parte dos investigados, pois o
fato de já ter atuado nos CRs e ter sido pioneira na gestão do primeiro CR,
somos conhecida e respeitada profissionalmente, por isso a recepção foi
acolhedora por todos.
Para realizar a pesquisa, primeiramente solicitamos autorização
do Secretário de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, e
mantivemos contatos por e-mails com os presidentes das ONGs e diretores
dos CRs, e, após o agendamento das entrevistas, dirigimos-nos às três
cidades onde estão instalados os Centros de Ressocialização.
Os investigados foram de fundamental importância para o
resultado desta pesquisa, uma vez que eles retrataram suas percepções
quanto ao processo de parceria entre Estado e sociedade civil e as
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dificuldades que enfrentam no cotidiano para a prestação dos serviços aos
indivíduos presos.
No tocante às técnicas utilizadas, optamos por realizar entrevistas
abertas semi-estruturadas, seguindo apenas um roteiro de questões para
nortear as entrevistas que foram individuais. As questões que nortearam as
entrevistas permitiram o levantamento de um conjunto de informações que
possibilitaram o desenvolvimento deste trabalho.
O processo de organização e de leitura dos dados objetivando a
análise foi um momento vivido com intensidade e dificuldades. Na realidade,
tinhamos clareza quanto ao risco do viés de nosso olhar viciado pela prática
profissional no sistema prisional e isso com certeza influenciou algumas
análises desenvolvidas ao longo deste estudo, No entanto, partimos da
premissa de que todo pesquisador e todo profissional impregnam suas
ações por sua visão de mundo e postura profissional sóciopolítica e
histórica.
Nessa perspectiva, o que se buscou foi garantir o debate e os
questionamentos acerca das questões formuladas e coletadas, mantendo
sempre o relato mais fiel possível, evitando-se assim uma análise
interpretativa permeada de preconceitos e julgamentos, na medida em que
conhecemos a realidade e a dinâmica concreta do sistema de gestão
prisional CRs.
Baseadas nessas considerações iniciais apresentamos as partes
que integram este estudo. O primeiro capítulo compõe-se de um estudo
acerca da história constitutiva da pena privativa de liberdade, dos
mecanismos contensores utilizados, desde o período da vingança privada
aos dias atuais considerado o período humanitário da pena.
O estudo elaborado neste capítulo possibilita encontrar subsídios
para compreender os pressupostos evolutivos dos mecanismos utilizados
pela justiça penal e a luta dos chamados precursores dos sistemas
penitenciários, que preocupados com a situação das prisões, obrigaram o
Estado regulador a criar uma política criminal mais justa e preocupada em
atender aos anseios humanitários, no que concerne à preservação dos
direitos humanos e sociais dos indivíduos presos.
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O segundo capítulo enfoca a constituição do sistema penitenciário
do Estado de São Paulo, a diversidade dos modelos institucionais
arquitetados para o atendimento das diferentes demandas apresentadas
pelos indivíduos custodiados pelo Estado e a relação de parceria que o
Estado vem mantendo com o chamado Terceiro Setor, na busca de
estratégias que garantam a eficiência e eficácia dos serviços de assistência,
estes postulados na Lei de Execução Penal – LEP, nº7.210/84.
Nesse capítulo analisamos a desresponsabilização do Estado para
com os serviços de assistência aos indivíduos presos, delegando às
Organizações Não-Governamentais-ONGs a prestação dos serviços
previstos no art. 11 da LEP.
O eixo condutor da análise passa pela crítica no que diz respeito
às atribuições delegadas pelo Estado as ONGs, pelo processo de
transferência de obrigações originárias do Estado
O terceiro capítulo é dedicado à análise da visão dos sujeitos
sociais pesquisados, quanto ao modelo de prisão administrado por essa
parceria entre Estado e as Organizações Não-Governamentais, investigando
até que ponto as ONGs conseguem dar conta da construção de “novo
modelo de gestão prisional”, no que se refere ao processo de "reintegração
social” do indivíduo que cumpre pena.
Por último, apresentamos as considerações finais, apontando
algumas sugestões, no sentido de oferecer subsídios para que Estado e
ONGs possam mediante parceria, desenvolverem programas, projetos e
serviços que venham a contribuir com a emancipação dos sujeitos presos,
objetivando o efetivo exercício de sua cidadania, pós-cumprimento de
pena.
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CAPÍTULO I
HISTÓRIA CONSTITUTIVA DA PENA DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE, OS MECANISMOS CONTENSORES E SUA
EVOLUÇÃO
A pena, em seu contexto mais amplo, tem sua origem em tempos
remotos, sendo tão antiga quanto o surgimento do próprio homem. Surgiu
inicialmente como manifestação de simples reação natural do homem
primitivo para conservação de sua espécie, sua moral, sua integridade;
depois, como forma de retribuição e de intimidação, através dos meios mais
cruéis e sofisticados de punição, até a atualidade, quando pretende se afirmar
com uma função terapêutica e recuperadora.
Etimologicamente, a palavra pena provém do latim poena, porém,
com derivação do grego poine que significa dor, castigo, punição, expiação,
penitência, sofrimento, trabalho, fadiga, submissão, vingança e recompensa.
No que concerne à evolução histórica da pena, destacam-se no
direito penal algumas fases, como: a) período da vingança privada, b) período
da vingança divina, c) período da vingança pública, d) período humanitário da
pena. Períodos estes que não se sucederam sistematicamente, com épocas
de transição certa de um para outro. Não possuem, assim, exatas
delimitações de início e fim. Em certos tempos, as fases se mesclam pelas
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definições conceituais que confundem o direito com a moral, o crime com o
pecado, a religião com o Estado, a justiça divina com a justiça dos homens.
1.1 Período da Vingança Privada
A vingança individual é apontada por muitos autores como a forma
mais remota da manifestação da pena. Caracterizava-se como uma reação
puramente instintiva do ofendido. A satisfação do lesado contra aquele que
lhe causara um mal. Tal satisfação acabava por constituir nova ofensa que
deixava de ser punida pela inexistência de uma autoridade competente.
Mais tarde, com a organização dos grupos sociais, imbuídos de um
espírito de solidariedade e interesse comum na proteção da coletividade, esse
tipo de pena se colocou ao lado do vingador, praticando uma vingança
coletiva e singular manifestada de forma limitada, excessiva, sem nenhuma
lógica.
Com o surgimento da sociedade de estrutura familiar, a pena
passou a se expressar sob a forma de privação da paz social. O membro do
mesmo grupo que cometia o delito era expulso da tribo, ou da comunidade da
paz, sem armas nem alimentos e ninguém podia auxiliá-lo, mas persegui-lo.
Seu patrimônio também era atingido. Persistia uma reação desproporcionada,
sem correspondência com a ofensa, o que culminava em lutas acirradas entre
grupos e tribos que aos poucos iam se debilitando, enfraquecendo,
extinguindo-se.
Surge, então o período neolítico, mais exatamente na segunda
idade da pedra, o talião. Este tipo de punição representou uma grande
conquista no campo repressivo, pois a reação era proporcional à ação, ou
seja, a pena imposta era estabelecida conforme o crime cometido. Da
vingança, até então limitada, passou-se para a vingança limitada e a pena
punia o mal com o mal, a retribuição era de igual para igual, impondo ao
delinqüente o mesmo dano ou mal por ele causado, segundo a imposição do
famoso primeiro talião:
“Oculum pro oculo – detem pro dente. Olho por olho”, o
resultado era a cegueira parcial de duas pessoas; braço por
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braço, a conseqüência era a invalidez de dois homens,
enfraquecendo-se o grupo frente aos inimigos externos.
A lei de talião era bem mais racional do que as outras formas de
vingança punitiva, mas ainda não era reconhecida propriamente como um
gênero da pena, porém sua importância lhe é devida por ser a primeira
fórmula de justiça penal.
Com o decorrer dos tempos e a evolução dos povos surgiu uma
forma moderada de penas, a composição.3 Este era o preço pelo qual o
ofensor comprava a impunidade do ofendido, ou de seus parentes, com
dinheiro, armas, ou utensílios e gado, não havendo, portanto, sofrimento físico
e pessoal, mas uma reparação proporcionalmente correspondente. O
sentimento e a vingança impulsionavam a justiça e determinavam que esta
fosse realizada. Assim como o talião, o sistema de composição não é
considerado, ainda, um verdadeiro gênero da pena.
A composição, que foi largamente aceita na sua época, constituem
um dos antecedentes da moderna reparação do direito civil e das penas
pecuniárias do direito penal.
O período da vingança privada era chamado de sentimental, porque
era o sentimento que provocava e demandava a justiça. Assim, imbuídas
sempre de um espírito de vingança, suas diversas maneiras de punir
representavam uma retribuição à reparação da ordem e da paz coletiva. Estes
diferentes tipos de punição foram praticados pelos povos antigos, alcançando
até o direito romano.
1.2 Período da Vingança Divina
Esse período pelo qual passou a pena era comandado pela
religião. As normas de condutas impostas aos indivíduos, quase sempre,
eram inspiradas em preceitos oriundos, supostamente dos deuses. A reação
passa a ter caráter religioso, em conexão com o sistema do talião e o da
composição. O direito aparece envolvido por princípios religiosos: a religião
era o próprio direito, imbuído de espíritos místicos. O delito era uma ofensa à
divindade que, uma vez ofendida, atingia a sociedade inteira. Para se aplicar
pena, levava-se em conta o status social do delinqüente. Cominavam-se
penas mais leves, principalmente pecuniárias, aos nobres, enquanto aqueles
que pertenciam às classes mais baixas da sociedade eram submetidos a
penas corporais por não possuírem condições econômicas para arcar com
as multas aplicadas.
Ainda, o poder dos reis e imperadores tinha caráter divino e as leis
penais encontravam-se introduzidas e misturadas nos livros sagrados. As
sanções se justificavam pela necessidade de obediência absoluta ao poder
constituído vindo de Deus. Os sacerdotes, por delegação divina, é que deviam
aplicar o castigo e prestar contas com o Senhor, no dia do Juízo Final.
O poder da Igreja era absoluto. Sua doutrina, dogmas e hierarquia
deviam ser respeitados pelos próprios imperadores, que estavam submetidos
ao rationes peccati, sujeitos à excomunhão; os condes, os barões e demais
senhores deviam jurar respeito às autoridades eclesiásticas e ajudar à Igreja
para poder comungar.
As autoridades políticas governavam no plano temporal com a ajuda
da Igreja. Os bispos, ao lado dos reis, faziam com que o povo seguisse os
seus passos em defesa dos inimigos do império. O poder real era constituído
pelo sacerdócio. O papa era quase a divindade e exercia seu poder, tanto
temporal como espiritual. O Estado era a Igreja.3
O delito era considerado ofensa aos deuses, confundindo-se com o
pecado. O castigo era temporal e espiritual. Aplicava-se para que o ofensor
alcançasse a bem-aventurança. Através do castigo, a alma do delinqüente
tornava-se pura. A quitação do dízimo era uma espécie de perdão judicial,
absolvia o acusado em nome de Deus e do Estado. A aplicação dos castigos
e o sistema punitivo da Igreja eram cruéis e infamantes, predominando entre
as sanções: a pena de morte, as penas corporais com mutilações de partes
do corpo, marcando e ferindo os ex-condenados de maneira a marginalizar e
estigmatizar eternamente.
3 TOUCHAND, Jean. História de lãs Ideas Políticas; Madri: Editora Tecnos, 1987, p. 106-125.
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A aplicação das penas era manipulada pelo direito canônico. A
classe alta tinha suas penas corporais substituídas por pecuniárias,
conseguindo clemências por suas faltas mediante pagamento em dinheiro.
Prevalecia uma desigualdade na aplicação da pena.
Para melhor entender o direito penal oriental e seu caráter religioso,
torna-se importante o estudo dos Códigos de Hamurábi e de Mani, bem como
as Leis Mosaicas, explícitas a seguir.4
Nesse período a pena era ainda dominada por total sentimento de
vingança, mas agora se tratava de uma vingança divina. Por exemplo, no
direito era tido como uma revelação dos deuses. Matar animais sagrados
constituía crime dos mais graves e os atentados contra os faraós eram delitos
de lesa-divindade, aos quais se aplicavam terríveis penas.
Os Cinco Livros, chamados Livros Sagrados, continham as leis
penais, vigorando também o talião: à espiã, cortava-se a língua; à adultera, o
nariz; ao estuprador, os órgãos genitais; os falsos escribas tinham as mãos
cortadas. Além do enforcamento e da decapitação, adotavam a fogueira, o
suplício das cinzas e a colocação na cruz, aos tidos como bruxos. A todos
esses sofrimentos alguns acessórios extras eram exigidos ou pela natureza
do crime ou pela opinião pública.5
Na Assíria, os apenados eram jogados aos animais ferozes ou em
fornalhas ardentes, eram queimados a fogo lento num tacho de bronze ou lhe
arrancavam os olhos. Os criminosos eram lapidados, crucificados, tinham as
costas queimadas, eram amassados sob os pés de animais, jogados aos
rochedos, fechados, pendurados, mutilados e deportados.6
Na Babilônia, por volta do ano 2250 a.C. surge o Código de
Hamurabi, atribuídos, ao Deus Sol. Possuía poucas normas de caráter
religioso, a vingança era praticamente desconhecida, acolhia o instituto do
talião e da composição impondo penas extremamente cruéis e tiranas. 7
4 DONNICI, Virgílio Luiz. A Criminologia na Administração da justiça Criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976.p.9. 5 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um Paradoxo Social. Florianópolis: Editora da UFSC, Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984, p. 7 - 8. 6 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um paradoxo social. Florianoplois: Editora da UFSC, Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984, p. 9 –10. 7 6 OLIVEIRA, op. Cit. , p. 8.
17
As punições na Pérsia eram tidas como as mais cruéis da época.
Inicialmente, baseavam-se na vingança e eram reguladas pelo talião. Depois,
em uma segunda fase, acreditava-se serem inspiradas pelo Deus Ahura-
Nazda; os reis passaram a representar a vontade divina e os delitos eram
considerados ofensas contra a deidade. Os soberanos impunham penas
crudelíssimas aos crimes: lapidação, esquartejamento, decapitação, cegueira,
aleijamento, crucificação, marca a fogo, empalação, veneno, apedrejamento,
enterro do corpo até o pescoço, esmagamento da cabeça entre duas pedras,
assamento em brasa, enforcamento de cabeça para baixo - escafismo - era
uma pena típica dos persas, ou seja, suplício dos botes, criada por Mitríades,
que segundo a História teria sido vítima da pena que ele próprio inventou.8
Em Israel a pena possuía em caráter religioso mais acentuado. As normas
penais incorporavam-se na legislação de Moisés, séc. XVI a.C, principalmente
nos primeiros livros da Bíblia; Êxodo, Levítico e Deuteronômio.
A pena tinha como objetivo combater a ira da divindade, a expiação
e a exemplaridade. Na lei mosaica imperava o talião, a composição só era
proibida para os casos de morte, as flagelações eram aplicadas a um grande
número de delitos, fixadas no máximo em 40 golpes. A pena capital não
estava isenta de crueldade. Praticava-se a lapidação, o fogo, a decapitação e
o estrangulamento. A mutilação só figura uma vez no Pentateuco.9
Na Índia, era o Código de Manu, que regulava o direito punitivo.
Este código, de caráter religioso, desconhecia o talião e a composição,
pretendia a purificação do criminoso mediante penas cruéis e exemplares:
cortavam o dedo de ladrão, o pé e a mão ao reincidente, a língua a quem
insultasse um regenerador, queimavam o adúltero em cama ardente,
entregavam a adúltera aos cachorros. 10
Na Grécia inicialmente vigorou a vingança privada, alcançando não
só o culpado, mas também a sua família. Com o surgimento do Estado, as
penas eram executadas em nome das divindades, cujas leis eram
sancionadas pelos deuses e encontravam-se misturadas nos códigos dos
templos. Do séc. VIII a primeira metade do séc. IX a.C., em Esparta, aplicava- 8 7 OLIVEIRA, op. cit. p. 9 – 10. 9 8 OLIVEIRA, op. cit, p. 10. 10 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um paradoxo social. Florianópolis: Editora UFSC, Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984. p. 10.
18
se a legislação de LICURGO. Em Atenas, no séc. VII a.C., através da
legislação de Dracon, constituiu-se uma pena única, a pena de morte para
todos os delitos, não interessando a gravidade. No séc. VI a.C., com SOLON,
a legislação tornou-se mais humana. Com freqüência, usavam a chibata,
multa, anulação dos direitos de cidadania, confisco, ferro em brasa e exílio. A
traição e o sacrifício eram punidos com a pena de morte, podendo ser evitada
por um exílio voluntário. Ainda na Grécia manifestavam-se os filósofos Platão
e Aristóteles. Platão não era a favor da pena-vingança, a pena deveria ser
imbuída de um propósito utilitário, de reforma ou de cura, semelhante aos
medicamentos. A pena tinha o sentido corretivo, pois o vício e o crime eram
considerados como enfermidade da alma. Aristóteles entendia que o mal e o
crime eram produtos do querer livre e racional do homem; e a pena deveria
surgir como retribuição do mal pelo mal. 11
O direito romano também foi influenciado pela vingança privada e
divina. Os crimes capitais eram numerosos, normalmente a morte era
envolvida por agravante ou tortura acessória. Entretanto, com o Império, o
poder governamental tendeu a tornar-se absoluto e, conseqüentemente a lei
penal se agravou, foram instituídas penas mais severas. Aos patrícios era
dada a morte por decapitação simples, aos plebeus aplicavam-se meios
degradantes e cruéis e aos escravos a crucificação. Crudelíssima era a
punição dada à infanticida: era atirada na água, costurada dentro de um
saco de couro onde eram previamente colocados um macaco, um galo, um
cachorro e uma serpente.
Em síntese, esse é o panorama da pena durante o período em que
predominava a modalidade de vingança divina, quase sempre auxiliada pelo
talião e a composição. Entretanto, à medida que evoluímos na civilização, os
crimes contra a pessoa e seu patrimônio superam as formas religiosas de
criminalidade e sua penalidade vai enfraquecendo. A criminalidade religiosa
vai perdendo cada vez mais sua misticidade, mesmo que supostamente
emanada de um poder supremo, e vai sendo aos poucos assimilada para
tornar-se uma simples realidade.
11 DONNICI, Virgílio Luiz. A criminologia na administração da justiça criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1976. p. 11.
19
1.3 Período da Vingança Pública
Novos conceitos de valores com relação à penalidade foram
surgindo com a evolução das civilizações, possibilitando a delimitação
definitiva dos campos do direito e da religião. Não era mais possível aceitar as
leis como simples costumes sagrados, reveladas e sancionadas pelos deuses,
misturadas com os regulamentos litúrgicos, nos antigos códigos dos templos.
O Estado assume a parte principal da execução da sanção penal e,
em defesa do soberano, passa a aplicar as penas para cuidar da segurança
dos governantes. O Estado assume o poder-dever de manter a ordem e a
segurança social, chamando para si o exercício da pena, tirando essa
titularidade da mão do ofendido e da vítima ou de sua família. Para a garantia
da paz social, qualquer conduta suspeita era arbitrariamente considerada
delituosa. Castigos desumanos caracterizavam o absolutismo monárquico, e
ainda confundiam-se crime com pecado e direito com religião.
Ideologicamente a Igreja ainda continuava presente como instrumento de
direção governamental.
A composição, modalidade de pena que no período da vingança
privada era uma faculdade para compensar ou reparar o delito, passa a ser
obrigatória, ou seja, torna-se um dever jurídico, e a pena, nesse período,
perde seu fundamento religioso para assumir uma função eminentemente
política. Tanto as autoridades julgadoras como as que legislavam eram
subordinadas ao titular maior da administração do governo. Os príncipes,
monarcas ou também denominados soberanos dirigiam os assuntos criminais
de acordo com seus próprios interesses.
Não é possível precisar a época em que ocorreu a transição do
privado ao público. Em Roma, no fim da monarquia, nas leis compiladas por
Papirio, sob o título de Jus Civilis Papirianum, os delitos de morte eram
considerados infrações de caráter público e seus autores punidos pelo
Estado. Após a queda da monarquia, aproximadamente 500 anos a.C., com a
Lex Valeria, encerra-se o poder discricionário penal exercido pelos monarcas,
senadores, magistrados e pater-famílias. Com o advento da República, surge
20
em Roma a primeira e grande expressão do direito penal romano, a Lei das
XII Tábuas, possuindo 32 preceitos penais. 12
No ano 200 a.C inicia-se um período em que as punições são mais
brandas, os delitos privados são punidos com penas pecuniárias, e a pena de
morte deixa de ser a dominante. A pena torna-se definitivamente pública, com
o advento da Leges Juliae de César e de Augusto, que criou o Ordo
Judicorum Publicorum, segundo os quais para cada delito era cominada uma
pena fixada em lei poena legitima. Os romanos passaram também a fazer
uma distinção sistemática entre crime publico e privado. A partir do séc. II, os
tribunais especiais conduziram e julgaram os processos com inteira liberdade
e o mais desumano rigor. 13
Na Idade Média, os crimes religiosos ocorriam com freqüência e os
capitais não eram tão numerosos. Na tentativa de evitar a pena de morte a
Igreja punia o clero através da segregação, que possibilitava o
arrependimento. Os monges rebeldes ou infratores eram recolhidos em
penitenciários, ou seja, em celas numa ala dos mosteiros onde, mediante o
recolhimento e a oração pretendia-se que se reconciliassem com Deus.14 A
internação em mosteiros e reclusão em celas deu origem à pena privativa da
liberdade e ao uso da expressão celular.
A Idade Moderna foi caracterizada pelo apogeu da repressão.
Segundo Jesuan de Paula Xavier foram acolhidos pela Europa, do século XIII
ao século XVIII, os seguintes tipos de penas: morte pelo azeite fervendo,
forca, espada, execução em efígie, cegamento, marca com ferro em brasa,
dilacerações dos membros até a morte, mutilações, açoites, ferretes,
trabalhos forçados em minas, pedreiras ou outros serviços públicos, censura,
multa, confisco, retratação publica, peregrinação e banimento.15
A execução da pena era acompanhada por cerimônia destinada a
impressionar o povo. O condenado era submetido a um prolongado ritual de
terror. O público assistia ao espetáculo em que predominava o requinte e a
sofisticação dos suplícios. Por isto é que os suplícios se prolongam ainda 12 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um paradoxo social. Florianoplois: Editora da UFSC; Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984, p. 16. 13 OLIVEIRA, op. cit. P. 16. 14 LEAL, César Barros. Prisão: crepúsculo de uma era. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. 15 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um paradoxo social. Florianópolis: Editora da UFSC; Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984. p. 19.
21
depois da morte: cadáveres queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos
arrastados na grade, expostos à beira das estradas. 16 O dia do supliciamento
transcorria em clima de festa. O povo aplaudia e aclamava. Não só participava
ativamente da execução, como libertava o condenado e, às vezes, o
perseguia até a morte.
Com o passar do tempo autoridades perceberam que esses
espetáculos eram inúteis, não mais serviram à função exemplar de castigar, a
pena não podia mais objetivar uma vingança pública. Percebeu-se a
necessidade de adotar uma outra forma de punir. Foi quando teve início um
novo período na história da pena, o período humanitário.
1.4 Surgimento das Prisões Como Mecanismos Contensores
Os povos primitivos desconheceram totalmente a privação de
liberdade estritamente considerada como sanção penal. A finalidade da prisão
era ser tanto um lugar de custódia para impedir que o culpado pudesse furtar-
se ao castigo, ou o devedor ao pagamento de suas dividas, como um lugar de
tortura. Recorriam, durante esse longo período histórico, à pena de morte
como medida suprema, pura e simples, e para os crimes reputados graves e
atrozes apenavam-se os culpados com suplícios adicionais, de efeitos
amedrontadores. “A prisão foi sempre uma situação de grande perigo, um
incremento ao desamparo e, na verdade, uma antecipação da extinção
física”.17
Eram utilizados nessa época como prisões, por não haver uma
estrutura arquitetônica penitenciária definida, calabouços, construções em
ruínas, como castelos, torres, conventos abandonados e até poço d’água.18
Estas formas de prisão não constituíam penas propriamente ditas,
nem eram ligadas a crimes definidos.
16 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M.P. Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1977, p.35. 17 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas alternativas. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.5. 18 BITENCOURT, op. cit. p.7.
22
Na Grécia e em Roma existia a prisão por dívidas, da qual o
devedor só se livrava quando, por si ou por outro, saldasse a dívida. Existia,
também, a prisão dos escravos na casa de seu dono, em lugar determinado
para isso. A tarefa de castigar os escravos, quando necessário, era delegada
pelos juizes ao pater famílias, que podia determinar sua reclusão temporária
ou perpétua.
Durante muitos séculos, a prisão serviu de depósito do réu que
esperava a sua execução. Assim a pena de prisão, como sanção autônima e
principal forma de punição, percorreu ainda um longo caminho antes de se
fixar definitivamente.
Durante a Idade Média a pena privativa de liberdade se restringe
também ao caráter custodial, aplicável àqueles que seriam “submetidos aos
mais terríveis tormentos exigidos por um povo ávido de distrações bárbaras e
sangrentas. A amputação de braços, pernas, olhos, língua, mutilações
diversas, queima de carne e fogo, e a morte, em suas mais variadas formas,
constituem o espetáculo favorito das multidões desse período histórico”.19
Também nesse período as medidas repressivas estavam a cargo e arbítrio
dos governantes, impostas em função do status social do réu. 20
Surgem, ainda, na Idade Média, a prisão de Estado e a prisão
eclesiástica. A primeira apresenta duas modalidades: prisão-custódia, onde o
réu esperava a verdadeira pena aplicada, ou detenção onde ficava detido por
um determinado tempo ou perpetuamente, ou ainda até receber o perdão. A
prisão eclesiástica por sua vez era destinada a sacerdotes e religiosos
infratores das normas eclesiásticas, o interno era submetido à penitência e a
meditação em uma ala dos mosteiros, para que se arrependesse do mal
causado e obtivesse a sua própria emenda.21
A igreja instaura com a prisão canônica o sistema da solidão
e do silencio. A sua reforma tem profunda raízes espirituais.
A prisão eclesiástica é para os clérigos e se inspira nos
princípios da moral católica: o resgate do pecado pela dor, o 19 GUZMAN, Luis Garido. Manual de ciencia penitenciária. Valência: Universidad de Valência, 1976, p.77. 20 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falencia da pena: causas e alternativas. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p .9. 21 BITENCOURT, op. cit. p. 10.
23
remorso pela má ação, o arrependimento da alma manchado
pela culpa. Todos esses fins de reintegração moral se
alcançam com a solidão, a meditação e a prece. 22
Para se adequar à política do uso da fogueira, a Igreja constituiu os
chamados Penitenciários: “que eram, em geral, subterrâneos com celas
individuais, escuras, imundas e metafísicas, porque, segundo os inquisidores,
só assim elas seriam propícias à ascese, à penitência, à expiação, à
purgação. Havia uma dependência para os suplícios que eram progressivos,
desde os mais brandos até os mais violentos e, desde que o suplicado não se
arrependesse e não se convertesse, seria lançado na fogueira”. 23
Os pecadores lá aguardavam até virem a ser queimados. O direito
canônico contribuiu sobremaneira com o surgimento do isolamento celular, o
arrependimento e a correção de delinqüente, bem como com outras idéias
voltadas à procura da reabilitação do recluso.24
Nos séculos XVI e XVII, com a crescente pobreza na Europa, que
acarretou um grande aumento na delinqüência, onde pessoas subsistiam de
esmolas, roubos e de assassinatos, torna-se impossível a aplicação da pena
capital a tanta gente:
Os distúrbios religiosos, as longas guerras, as destruidoras
expedições militares do séc. XVII, a devastação do país, a
extensão dos núcleos urbanos e a crise das formas feudais
de vida e da economia agrícola haviam ocasionado um
enorme aumento da criminalidade em fins do século XVII e
início do século XVIII. Acrescente-se a isso a supressão dos
conventos, o aniquilamento dos grêmios e o endividamento
do Estado. Tinha se perdido a segurança, o mundo
espiritualmente fechado aos incrédulos, hereges e rebeldes
tinha ficado para trás. Tinha que se enfrentarem verdadeiros
exércitos de vagabundos e mendigos. Pode-se estabelecer a
sua procedência: nasciam nas aldeias incendiadas e nas
cidades saqueadas, outros eram vitimas de suas crenças, 22 FUNES, Mariano Ruiz. A Crise nas prisões. São Paulo: Saraiva, 1953, p.153. 23 FARIA JUNIOR, João. Manual de Criminologia. Curitiba: Juruá, 1993, p.288. 24 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual do direito penal. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 12.
24
vítimas atiradas nos caminhos da Europa. Era preciso
defender-se desse perigo social, mas não era possível negar-
lhe simpatia por razões sociais e religiosas, diante dos danos
que os exércitos estrangeiros tinham feitos. 25
Surgiu na segunda metade do século XVI um movimento de
grandes transformações das penas privativas de liberdade, de criação e
construção de prisões organizadas. Em Londres surgem as casas de
correção, que eram destinadas a internar vagabundos, mendigos, prostitutas e
jovens entregues a uma vida desonesta, os quais estavam sujeitos a um
regime de trabalho obrigatório. Essas casas se espalham por toda a Inglaterra
a partir do século XVII, quando atingiram o seu apogeu. Assinala Prins, “que
as primeiras casas desta classe se estabeleceram em Londres (1550),
Nuremberg (1558), Amsterdam (1595), para homens, (1597) para mulheres”.26
Mas uma das mais duras e cruéis modalidades de pena de prisão, surgida no
séc. XVI foi a pena de galés, uma espécie de prisão flutuante, onde os
condenados a penas graves e prisioneiros de guerras eram acorrentados a
um barco e ficavam, sob ameaça de um chicote, obrigados a remar. Em 1697,
surge em Bristol, Inglaterra, a primeira workhouse (casa de trabalho) que tinha
como finalidade a reforma dos delinqüentes por meio do trabalho e da rígida
disciplina. Em 1667, é fundada em Florença, pelo sacerdote Filippo Franci, o
famoso Hospício der San Felipo Néri, destinado à reforma de criança errantes
e jovens rebeldes e descaminhados. Nessa instituição, o interno era
desconhecido para seus companheiros de reclusão, por causa de um capuz
que cobria a cabeça nos atos coletivos. Esse tipo de regime celular seria
posteriormente incorporado pelo regime celular do século XIX.27
Em 1656, foi construída na França a primeira instituição para
vagabundos e mendigos, influenciada pela obra intitulada Reflexiones sur lês
prisons dês ordres religieux, do monge francês Jean Mobillon.27 A obra era um
relatório que criticava a falta de higiene, o tratamento desrespeitoso aos
25 HANS, Von Hentig. apud BITENCOURT, Cezar Roberto. 2000, p.15. 26 FUNES, Mariano Ruiz. A crise nas prisões. São Paulo: Saraiva, 1953. p. 155. 27 BITENCOURT, Cezar Roberto. A falência da pena de prisão: causas alternativas. 2. ed. Saõ Paulo: Saraiva, 2001, p.19. 27 MIOTTO, Armida Bergamini. Temas Penitenciários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p.26.
25
acusados, a não manutenção do sigilo da confissão, a ociosidade absoluta,
além de oferecer orientações para o desenvolvimento de políticas
penitenciárias.
Em 1703, em Roma, o papa Clemente XI fundou a Casa de
Correção de São Miguel. Além de jovens delinqüentes, tal instituição abrigava
menores de vinte e um anos que se mostravam teimosos e discordavam da
disciplina paterna. O ensino religioso era a base de afirmação dessa
instituição, os presos trabalhavam juntos em silêncio e, à noite, isolavam-se
em suas celas. Essa instituição serviu de modelo para um grande número de
prisões criadas, principalmente na Itália, e influenciou o que atualmente se
qualifica de tratamento institucional do delinqüente. 28
A prisão, em sua origem, não foi criada somente com o propósito de
encarcerar criminosos. A privação da liberdade, como espécie de pena
institucionalizada pelo direito penal, apareceu somente há duzentos e poucos
anos no século XVII (no apogeu da Revolução Industrial), para garantir a
segurança do funcionamento do mercado de trabalho, da produção, do
consumo de bens e proteger a propriedade das classes poderosas.
Como pena privativa de liberdade propriamente, a prisão tem suas
origens relacionadas à época em que se necessitou de mão de obra para
realizar os trabalhos de produção e manufatura (mercantilismo, séc XVI-XVII),
e para as expedições de galeras em viagens de exploração e colonizações de
terras novas descobertas. Tudo isso associado ao fato de que a pena de
morte não tinha contido o aumento da delinqüência nem havia garantido a
segurança da classe dominante.
As prisões eram geralmente subterrâneas, insalubres, infectas e
repelentes. Não obedeciam a nenhum princípio de política penal humanitária.
Tais estabelecimentos eram verdadeiras masmorras do desespero e da fome,
onde condenados eram jogados e abandonados, sofrendo cruéis torturas. Os detidos são amontoados confusamente numa
promiscuidade intolerável, achando-se submetidos ao regime
mais duro, sofrem penas disciplinares corporais e são
obrigados a trabalhos penosos. Só recebem alimentação
mínima (pão e água)... A falta de ar, alimentos e de cuidados
higiênicos mais elementares é tal que as febres infecciosas
se propagam no interior das prisões, dizimam os reclusos e
se transmitem para fora, produzindo verdadeiros danos à
população livre. 29
1.5 Período Humanitário da Pena
Em meados do século XVIII, as leis em vigor inspiravam-se em idéias e procedimentos de excessiva crueldade, predominando os castigos corporais e a pena capital. Reinava o arbítrio judiciário impregnado de sensíveis nuanças políticas dirigidas à proteção de classes privilegiadas, em detrimento das demais que sofriam toda sorte de perseguição. É diante deste cenário que surge, então, em toda a parte, uns movimentos de filósofos, juristas, magistrados, legisladores, parlamentares e técnicos do direito, propondo a reforma do sistema punitivo, com a moderação das punições, sua proporcionalidade com o crime.
Esse movimento iluminista e humanitário, representado, entre
outros, por Voltaire, Montesquieu e Rousseau, atingiu seu apogeu com a
Revolução Francesa, influenciando uma série de pessoas com o mesmo
sentimento, entre elas, o grande expoente, Cesare Bonesana, Marques di
Beccaria, autor da obra Dei Delitti e Delle Pen, cujos princípios renovaram e
abrandaram o sistema penal, despertando a consciência pública contra as
vergonhosas atrocidades do suplício. Essa obra converteu-se na síntese da
reação liberal e humanitária ao desumano panorama penal então vigente.
A obra de Beccaria, que retratava a terrível situação da
administração da justiça criminal, em que reinava um direito penal arbitrário,
cruel e desumano, causou uma reação contra a obscuridade das leis, contra o
arbítrio judicial, contra a tortura nos interrogatórios e julgamentos. Segundo
ele, as penas não poderiam passar dos imperativos da salvação pública. Dizia
que “o critério para medir a responsabilidade penal do agente não é a sua
intenção, nem a gravidade de sua falta, mas sim o dano que resultar para a
sociedade de seu crime”. Preconizava uma curta duração dos processos, a
certeza da pena e sua mitigação. A abolição de suplícios, torturas, atrocidades
e também a abolição da pena de morte. Suas idéias eram contratuais e
29 PRINS, 1984, apud FUNES, 2000, p. 155.
27
utilitárias. A pena deveria afastar os indivíduos do propósito de cometer
delitos.
Um dos maiores freios não é a crueldade das penas, mas
sua infalibilidade e, como conseqüência, a vigilância dos
magistrados e a severidade de um juiz inexorável que, para
ser uma virtude útil deve ser acompanhada de uma
legislação branda. A certeza de um castigo moderado
sempre causará mais intensa impressão do que o temor de
outro mais severo, unido à esperança da impunidade, pois,
os males, mesmo os menores quando certos, sempre
surpreendem os espíritos humanos, enquanto a esperança,
dom celestial que freqüentemente tudo supre entre nós,
afasta a idéia de males piores, principalmente quando a
impunidade, outorgada muitas vezes pela avareza e pela
fraqueza, fortalece-lhe a força 30.
Charles de Secondat, o Barão de Montesquieu (1755), lutava por
uma reforma do direito penal vigente e pela independência do Poder
Judiciário, através da separação dos poderes do Estado. Voltaires (1768),
pregava a renovação dos costumes judiciais por uma nova prática nos
tribunais. Rousseau (1778) clamava pelos fundamentos da liberdade política e
da igualdade entre os cidadãos, conforme sua teoria contratualista; a pena
serve para vingar o dano causado à coletividade.
Os reformadores não pretendiam apenas minimizar as penas com o
desaparecimento dos castigos aflitivos e infamantes, mas atacavam a
corrupção que dominava a Justiça, que se apresentava lacunosa, irregular e
contraditória, com superabundância de instâncias que a denegriam e a
centralizavam ao superpoder monárquico. A reforma intentava pleitear não só
nova teoria à justiça da pena, mas também que a mesma fosse melhor
distribuídas, que não ficasse à mercê do soberano ou que favorecesse aos
privilegiados e que fosse exercida de forma justa e universal.
30 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. 2. ed. Revista dos Tribunais, 1999. p. 87.
28
“Um poder de julgar sobre o qual não pesasse o exercício
imediato da soberania do príncipe; que fosse diferente da
pretensão de legislar; que não tivesse ligação com relações
de propriedade; e que tendo apenas as funções de julgar,
exerceria plenamente este poder... que o poder de julgar não
dependesse mais de privilégios múltiplos, descontínuos,
contraditórios da soberania...” 31
Foi com o inglês Jonh Howard (1726-1790), pensador do século da
razão e considerado o pai da Ciência Penitenciária, com seu livro The State of
Prisionis in England and Wales, publicado em 1777, que se registrou, em seu
país, um movimento revolucionário a favor da “humanização” das regras
disciplinares de detenção penal e o regime prisional da época. Nasceu em
Hackney (Inglaterra), onde foi o principal representante de um movimento de
reforma nas prisões, entre os anos 70 e 80, quando foi nomeado para o cargo
de alcaide do condado de Bedford. Visitou grande número de prisões
européias, vendo de perto a difícil vida dos encarcerados, com quem teve
estreitos contatos, arriscando sua saúde, expondo-se ao contágio das
enfermidades carcerárias, que, finalmente causaram sua morte. Em relatos
escritos em seu livro, compara as condições carcerárias da Inglaterra e da
França e elabora algumas regras básicas para um sistema celular mais justo e
humano. Para ele a eficácia da pena, que devia ser emendativa, dependia de
fatores, tais como: higiene – ventilação, limpeza do edifício, higiene corporal e
sanitária, boa alimentação; disciplina – funcionários bem recrutados e
controlados por magistrados, separações dos presos por tipo de delitos,
uniformes para facilitar o asseio e dificultar a fuga; economia – manutenção da
prisão pelo Estado, trabalho para os presos, devendo ser por eles executados
os serviços internos, gerais, da prisão; assistência religiosa – importância do
capelão, leituras morais e exortações religiosas dotadas de sanções
(penalidades e recompensas).32 Em suma, propõe idéias penais que
fundamentam um movimento chamado Penitenciarismo.
31 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia. M. P. Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1977, p.75. 32 MIOTTO, Armida Bergamini. Temas penitenciários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 29.
29
Ele idealizava a “humanização” das prisões, não admitindo que o
sofrimento desumano fosse conseqüência implícita e inexorável da pena
privativa de liberdade. Propugnava um sistema penitenciário baseado no
recolhimento celular, visando à reflexão e ao arrependimento; a religião como
meio mais adequado para instruir e moralizar; trabalho diário como meio
reabilitador; com as necessárias condições de alimentação e higiene.
Impressionado pelo estado em que se encontravam as prisões que visitou no
seu país, tanto no que se refere às condições de salubridade e moralidade
como no que respeita ao tratamento dispensado aos presos, decidiu
empreender viagens com o propósito de conhecer a situação dos cárceres em
outros países. De volta à sua pátria reeditou sua obra, influenciado por tudo
que tinha visto e com o acréscimo dos novos dados recolhidos.
Em 1779, Howard conseguiu que fosse aprovada pelo parlamento
Inglês uma lei que estabelecia e ordenava a imediata construção de casas
penitenciárias, lei que impunha o sistema celular individual e o aproveitamento
de mão-de-obra de todos os internados.33
O esforço de Howard não foi inútil. Depois de sua morte, suas idéias
lograram continuidade por intermédio do criminalista e filosofo, seu
conterrâneo, Jeremias Bentham (1748-1832), que apresentou um modelo de
estabelecimento prisional de forma diferente, conhecido como panótico.
O panótico era um tipo de prisão celular, caracterizada pela forma
radial, em que uma só pessoa podia exercer em qualquer momento, de um
posto de observação, a vigilância dos interiores das celas. O projeto de
Bentham baseava-se no principio da segregação absoluta (individual) e da
inspeção, pela qual poucos homens faziam a vigilância de todos os reclusos.
Ao descrever o panótico, Bentham diz que é:
uma casa de Penitência. Segundo o plano que lhes
proponho, deveria ser um edifício circular, ou melhor,
dizendo, dois edifícios encaixados um no outro. Os quartos
dos presos formariam o edifício da circunferência com seis
andares, e podemos imaginar esses quartos com umas 33 MIOTTO, Armida Bergamini. Temas penitenciários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 31
30
pequenas celas abertas pela parte interna, porque uma grade
de ferro bastante larga os deixa inteiramente à vista. Uma
galeria em cada andar serve para a comunicação e cada
pequena cela tem uma porta que se abre para a galeria. Uma
torre ocupa o centro, que é o lugar dos inspetores: mas a
torre não esta dividida em mais do que três andares, porque
está disposta de forma que cada um domine plenamente dois
andares de celas. A torre de inspeção está também rodeada
de uma galeria coberta com uma gelosia transparente que
permite ao inspetor registrar todas as celas sem ser visto.
Com uma simples olhada vê um terço dos presos e
movimentando-se em pequeno espaço pode ver a todos em
um minuto. Embora ausente a sensação de sua presença é
tão eficaz como se estivesse presente. ...Todo o edifício é
como uma colméia, cujas pequenas cavidades podem ser
vistas todas de um ponto central. O inspetor invisível reina
como um espírito.34
Segundo a descrição de Foucault: O panótico de Bentham é a figura arquitetural dessa
composição. O princípio é conhecido: na periferia uma
construção em anel: no centro uma torre; esta é vazada de
largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a
construção periférica é dividida em celas, cada uma
atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas
janelas, uma para o interior correspondente às janelas da
torre, outra que dá para o exterior, permite que a luz
atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia
na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente,
um condenado, um operário, um escolar. Pelo efeito da
contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se
exatamente pela claridade, as pequenas silhuetas cativas
nas celas da periferia. Tantas janelas, tantos pequenos
teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente
individualizado e constantemente visível. O dispositivo
34 BENTHAM apud BITENCOURT, 2000, p. 51.
31
panótico organiza unidades espaciais que permitem ver
reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da
masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções: -
trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira
e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um
vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia.
A visibilidade é uma armadilha. 35
Os progressos práticos dos movimentos desses grandes
reformadores começaram somente a surtir efeito com o Código Penal francês,
de 1810, que suprimiu todas as formas de mutilações, diminuindo o número
de crimes capitais, sendo propiciados aos juizes os meios de atenuarem as
penas. 36
Segundo Foucault, a transformação da pena foi gradativa:
“Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da
punição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a
encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva. Podemos
considerar o desaparecimento dos suplícios, como um objetivo mais ou
menos alcançado, no período compreendido entre 1830 e 1848. Claro, tal
afirmação em termos globais deve ser bem entendida. Primeiro, as
transformações não se fazem em conjunto e nem de acordo com um único
processo. Houve atrasos. Paradoxalmente, a Inglaterra foi um dos paises
mais reacionários ao cancelamento dos suplícios: talvez por causa da função
do modelo que a instituição do júri, o processo publico e o respeito ao habeas
corpus haviam dado à sua justiça criminal”. 37
1.6 Teoria da Pena
a. Teoria Absoluta ou Retributiva
35 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. P. Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 18 - 19. 36 OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão um paradoxo social. Florianópolis: Editora da UFSC; Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984, p. .27. 37 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. P. Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 18 - 19.
32
A primeira teoria da pena de prisão é definida como absoluta e
tem por finalidade a retribuição do crime, sem nenhum caráter de
recuperação ou de tratamento do apenado. Mesmo que a pena alcance
outro objetivo – como o de punir com justiça o infrator, de afastar outros
membros da sociedade da idéia de delinqüir e de servir também para a
emenda do infrator – isso não é importante. O importante é pagar o mal com
outro mal.
A pena tem uma finalidade absoluta de realização da justiça. É a
concepção da Escola Clássica do direito. Delito como violação da ordem legal
e sanção para estabelecer e impor a paz social violada.
Segundo Cuello Calon, “a pena é sempre retribuição. Não importa
que, ainda sem pretender consegui-lo, produza efeitos que afastem do delito
os membros da coletividade, pelo medo ao mal que contém”.37
Essa teoria contra o fundamento da pena e sua justificativa
exclusivamente na própria natureza da sanção, não lhe buscando outro
sentido, pois ela considerada é justa em si mesma. O castigo decorre do
delito. A sanção penal é unicamente a conseqüência jurídica do delito e,
também, seu fim é a expiação do crime cometido.
Entre os defensores das teses absolutistas ou retribucionistas da
pena, destacaram-se os dois mais expressivos pensadores do idealismo
alemão: Kant, cujas idéias partem de uma fundamentação de ordem ética (a
pena existe para restabelecer ou realizar a justiça), e Hegel, que formula suas
idéias com um fundamento de ordem jurídica (a pena existe como afirmação
do direito).
b. Teorias Relativas ou Utilitárias
Segundo essas teorias, a pena possui um fim útil, que é a
prevenção do delito. A pena deve ser aplicada por ser útil e necessária à
segurança da sociedade e à defesa social. Sanção como utilidade social. O
delito deixa de ser fundamento da pena e passa a ser seu pressuposto. Não
se castiga porque delinqüiu, mas para que não volte a delinqüir.
37 CALON, E.ugênio Cuello. La Moderna Penalogia, Barcelona: Editora Bosch; 1958, p.17-19.
33
Diferente das teorias absolutas, essas teorias buscam na pena um
fim socialmente útil. A pena se justifica por sua eficácia, levando-se em
consideração seus resultados prováveis e seus efeitos político-sociais e
utilitários.
As teorias da prevenção geral, cujos destinatários são a comunidade em geral e o infrator em potencial, têm como finalidade evitar delitos futuros. As teorias da prevenção especial, orientada ao infrator determinado, têm como finalidade corrigir conseqüências danosas do ato perpetrado.
Ainda as teorias da prevenção geral podem ser divididas em negativas e positivas. A primeira baseia-se na clássica teoria da coação psicológica formulada por Feuerbach, que prega o efeito dissuasório ou intimidativo do castigo penal em relação ao infrator em potencial. A da prevenção geral positiva vê na pena a atualização da vigência e a confirmação das normas e dos valores do ordenamento jurídico; acredita que a norma penal pode motivar as pessoas a agirem conforme o direito, na medida em que depositam confiança no funcionamento do sistema penal.
A prevenção especial, derivada de Von Liszt, atua sobre o criminoso pela intimidação de sua personalidade evitando que ele cometa novos delitos. Há, ainda, as teorias da prevenção especial positiva – que confia que a pena pode servir de instrumento útil para evitar que o infrator volte a delinqüir – e também da prevenção especial negativa – que preconiza que esta finalidade se obtenha com a neutralização e intimidação do infrator.
c. Teoria mista
Essas teorias funcionam como meio termo entra as teorias da retribuição e da prevenção, conciliando de um lado o caráter retributivo da pena, acrescentando-lhe de outro, um fim político e útil e a necessidade de garantir o bem e os interesses da sociedade. Para elas, a pena tem duas razões: a retribuição manifestada através do castigo; e a prevenção, como instrumento de defesa da sociedade. Pune-se porque delinqüiu e para que não volte a delinqüir.
Para Fausto Costa, citado por Gilberto Ferreira a pena pode ser:
sucessivamente vingança, retribuição, expiação, intimidação, mas sempre com a finalidade de prevenção, ou
34
seja, repressão quanto à sua natureza objetiva, sofrimento quanto á sua natureza subjetiva, prevenção quanto ao seu fim principal. Em realidade, a pena hoje só se justifica, se tiver por objetivo evitar o cometimento de novos crimes, ressocializando o criminoso. O punir por punir em obediência cega a um dogmatismo ético não tem mais sentido O castigar porque errou, o retribuir o mal pelo mal, num disfarçado talião moderno, não passa de sentimento inato de vingança que ainda se esconde na parte mais recôndita da entranha dos homens.38
2 - A Evolução das Penas
A história do direito penal brasileiro surge no período colonial, com
as Ordenações do Reino. A partir do descobrimento do Brasil, em 1500, o
direito penal nacional passou a reger-se pela legislação lusitana, quando
vigoravam em Portugal as ordenações Afonsinas publicadas em 1446, sob o
reinado de D. Afonso V, que aparecem divididas em cinco livros. O legislador
não teve em vista tanto os fins da pena, e a sua proporção com o delito, como
conter os homens por meio do terror e do sangue. Continua a desigualdade
entre nobres e plebeus e a pena de morte é amplamente aplicada. Não
obstante, o quê representou em relação ao seu tempo notável progresso, pois
constituiu o primeiro código completo a surgir na Europa. Em 1505, D, Manoel
I mandou rever tal legislação, promulgando definitivamente em 1521 o
conjunto de leis que ficou conhecido como Ordenações Manoelinas. Continua
o sistema das Ordenações anteriores, com o acréscimo de novos provimentos
surgidos desde então, determinados, sobretudo pelo grande desenvolvimento
comercial. Este acabou provocando o aparecimento de numerosas leis,
reunidas numa Compilação, em 1569, feita por Duarte Nunes de Leão por
determinação do rei D. Sebastião, também conhecida como Código de D.
Sebastião. Passando Portugal ao domínio da Espanha, em 1580, determinou
D. Felipe I a reforma da legislação vigente, afinal promulgada por Felipe II, em
1603. São as Ordenações Filipinas que se baseiam nas anteriores. Essa
legislação vigorou quando Portugal readquiriu a independência em 1640,
38 FERREIRA, Gilberto. Prisões, presos e agentes de segurança penitenciária. São Paulo: Editora Loyola, 2002, p.29.
35
foram revalidadas por lei de D. João IV, em 1643, e vigeram por dois séculos.
A essência das Ordenações era a de infundir o temor pelo castigo
(característica própria do direito penal repressivo da idade Média). Por
exemplo: a aplicação da pena de morte em suas mais variadas espécies;
morte cruel (morte lenta por suplício); morte atroz (esquartejamento e queima
de cadáver até convertê-lo em cinzas) e morte simples (por enforcamento ou
degolamento, sem ritual). O crime era confundido com o pecado, sendo os
hereges, os feiticeiros e benzedores apenados severamente. A legislação real
brasileira só veio a lume com o Código Criminal de 1830.
2.1 Legislação Brasileira
a. Código Criminal do Império
Com a Independência e, sobretudo, com a Constituição Imperial
outorgada em 25 de março de 1824, acolhendo princípios sobre direitos e
liberdades individuais, impunha-se a substituição da arcaica legislação do
Reino. A Constituição determinava a imperiosa necessidade de elaboração de
um Código Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e da equidade.
Portanto, não haveria em caso de alguma confiscação de bens, nem a infâmia
do réu se transmitirá aos parentes em qualquer grau que seja, além de
determinar que “desde já ficam abolidos os acoites, a tortura, a marca de ferro
quente, e todo e qualquer tipo de penas cruéis”. 39
O imperador D. Pedro I, em 16 de dezembro de 1830, sancionou o
Código Criminal do Império, o primeiro Código Autônomo Latino-americano,
de índole liberal, com influências do Código penal francês de 1810 e do
Napolitano de 1819. Este ordenamento contava com um esboço de
individualização da pena e com a previsão de circunstâncias atenuantes e
agravantes. Fundou-se o novo texto nas idéias de Bentham, Beccaria e Mello
Freire.
39 Constituição Imperial de 1824, art. 179, n 18, 19, 20. in: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 58-59.
36
A pena de morte continuava existindo como sanção penal. Não
havia diferenciação entre os presos processados e definitivos. O Código de
1830 não estabelecia nenhum regime diferenciado de tratamento em relação
à pena privativa de liberdade, ou seja, quanto ao princípio da periculosidade e
da individualização da pena. O Código Criminal do Império estabelecia entre
as suas sanções: as de exílio, desterro e degredo.
O Código criminal do Império, por sua clareza, precisão e apuro
técnico exerceu particular influência na legislação espanhola.
2.2 Período republicano
a. Código Penal da República
Com o advento da república e a instalação de novo sistema político
no Brasil surgiram novas tendências no campo do Direito penal. Vários
movimentos sociais estabeleceram a necessidade de alteração da legislação
vigente.
Por decreto de 11 de outubro de 1890, foi aprovado o Código penal
da República, que recebeu duras críticas devido a rapidez com que foi
elaborado. Apresentava muitas falhas e lacunas, sendo considerado o pior
Código Penal da história do Brasil. Contudo, deu-se um grande avanço de
caráter humanitário, sendo abolida a pena de morte e criou-se o regime
penitenciário de caráter correcional. Foram construídas inúmeras prisões nas
grandes cidades do país.
O Código Penal da república foi elaborado antes do advento da
primeira Constituição Federal republicana (1891), sem considerar os notáveis
avanços doutrinários que então já se faziam sentir, em conseqüência do
movimento positivista, foi objeto daquelas severas críticas que muito
contribuíram para abalar o seu prestígio e dificultar sua aplicação. Inúmeros
foram os estudos objetivando sua substituição.
O Código Penal Republicano foi modificado por várias leis. Suas
imperfeições legislativas dificultaram sua aplicação, diziam os juristas daquela
época, surgindo a Consolidação das Leis Penais de Vicente Piragibe, Decreto
nº 22.213 de 14 de novembro de 1932.
37
b. Código Penal de 1940
As lacunas e imperfeições do Código de 1890 tornavam
embaraçosas as consultas e exigiam árduas pesquisas dos operadores do
direito, por isso ocorreu um forte movimento para a sua reforma, conforme
expresso na própria exposição de motivos do Código Penal de 1940.
Finalmente, com o golpe militar de 1937 e com os novos rumos
políticos, o então Ministro da Justiça Francisco Campos encarregou o
Professor Alcântara Machado de estudar uma nova reforma na legislação
penal brasileira. Depois de um ano, o jurista apresentou o anteprojeto do
código criminal brasileiro que, apreciado por uma comissão revisora, foi
sancionado.
A nova legislação foi colocada em prática em 1940, através do
Decreto-lei nº 2848, de caráter eclético por superar diferentes teorias entre as
escolas penais daquela época, baseada, principalmente, nos códigos suíço e
italiano (Código Rocco – 19305).
O Código Penal de 1940 incorporou o princípio da reserva legal
(inaplicável às medidas de segurança); o sistema duplo binário (penas e
medidas de segurança); a pluralidade das penas privativas de liberdade
(reclusão e detenção); a exigência do início da execução para a configuração
da tentativa (art.12); o sistema progressivo para o cumprimento das penas
privativas de liberdade; a suspensão condicional da pena e o livramento
condicional. Na parte especial, dividida em onze títulos, a matéria se inicia
pelos crimes contra a administração pública. Não há, no Código Penal
comum, pena de morte nem prisão perpétua. O máximo de cumprimento de
pena privativa de liberdade é de 30 anos. 40
A respeito do Código Penal de 1940, Mukad disse:
“ainda estabelecendo um regime semelhante ao progressivo,
faz referência à colônia penal ou estabelecimento similar para
cumprimento do terceiro grau da pena. Apesar disso, ainda
sem negar o que foi realizado, pouca coisa se modificou
40 FRAGOSO. Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1993.p.64.
38
quanto ao tratamento dos condenados, que na maioria das
vezes continuam vivendo misturados, em verdadeiros
montões humanos, o que demonstra quanto deveria ainda
ser mudado” 41
Em 31 de dezembro de 1940, foi publicado o Código Penal que
entrou em vigor em 01 de janeiro de 1942, depois de dois anos de vacacio
legis, junto com o Código de Processo Penal, que teve sua publicação em 13
de outubro de 1941, com dois meses de vacacio legis.
O Código Penal de 1940, apesar de elaborado durante um regime
ditatorial e influenciado pela orientação autoritária daquele momento político
mundial, apresentou um seu texto institutos próprios de um direito punitivo
democrático e liberal.
c. Lei nº 7.209, de 11 de Julho de 1984
O Código Penal brasileiro de 1940 vigora de 1942 até os dias
atuais, embora modificado parcialmente. Das leis que modificaram esse
código, duas merecem destaque:
- a Lei nº6.416/77, que introduziu disposições sobre a pena e sua
execução: suas inovações tinham como objetivos práticos a diminuição da
população prisional, ou seja, as tradicionais condenações à pena de prisão
poderiam ser cumpridas sob certos requisitos e controle judicial conforme o
juízo do comportamento pessoal-social do réu. Introduziu profundas reformas
na legislação penal brasileira, entre elas, o sistema progressivo de execução
da pena privativa de liberdade, implementando os regimes de cumprimento
fechado, semi-aberto e aberto, este último através da conceituada prisão-
albergue. A lei adotou modernos princípios relativos aos direitos do preso,
respeitando as regras Mínimas das Nações Unidas (ONU) para tratamento
- a Lei nº 7.209/84, que modificou toda a parte geral, humanizou as
sanções penais e adotou penas alternativas à prisão, além de reintroduzir o
sistema de dias-multa, que tinha sido abandonado pelo CP de 1940. 42
A reforma de 1984 rechaçou o sistema do duplo binário, deixando
de aplicar aos inimputáveis pena privativa de liberdade e medida de
segurança, limitando-se a interná-lo em hospital de custódia e tratamento
psiquiátrico, ou apenas submetendo-os a tratamento ambulatorial. Adotou o
sistema vicariante ou unitário: aos imputáveis, a pena; aos inimputáveis,
somente medida de segurança.43
O principal mérito da reforma penal foi o reconhecimento, de forma
definitiva, da necessidade de estabelecer estreita ligação entre a teoria do
crime e a tarefa individualizadora da pena.
A lei das contravenções penais (1941) e algumas outras leis penais
extravagantes completam a legislação penal brasileira. Porém, a Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe grandes avanços em
matéria penal. Expressa o respeito à dignidade da pessoa humana, pela
prevalência dos direitos humanos, proibindo qualquer submissão à tortura ou
tratamento desumano e degradante. Consigna os princípios fundamentais,
entre eles: legalidade reserva legal, individualização da pena e sua execução,
respeito ao princípio a inocência e não culpabilidade.
c. Lei nº 7.210/84 – Lei de Execução Penal
Uma comissão instituída pelo Ministro da Justiça Ibrain Abi-Akel apresentou o Anteprojeto da Lei de Execução Penal, publicado no DOU de 22 de julho de 1981, pelo Decreto nº 429, o qual foi entregue a uma nova comissão para revisão. Em 29 de junho de 1983 foi encaminhada ao Congresso Nacional. A lei foi promulgada em julho de 1984 com o nº 7210/84, entrando em vigor na mesma data do Código Penal (Parte Geral), janeiro de 1985 depois de seis meses de vacacio legis. Esta é a primeira norma específica que contempla por inteiro a matéria de execução penal no País, introduzindo importantes referências sobre direitos do preso, adotadas 42 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p.275 -276. 43 COSTA JR, Paulo José da. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, v. 1. 1991, p. 216.
40
nos tratados, convenções e códigos internacionais que consagram os direitos humanos de reconhecimento universal.
A Lei nº 7.210/84, segundo estudiosos do direito penal, se devidamente executada e implementada, seria o instrumento mais eficaz no efetivo cumprimento da pena, objetivando a reabilitação do indivíduo que cumpre pena nas prisões brasileiras
3. As Prisões Constituindo o Sistema Penitenciário: Avanços Nos Mecanismos Repressores
Foi nos Estados Unidos da América que surgiram os primeiros
sistemas penais. Esses sistemas tiveram antecedentes importantíssimos na
Europa, como os Bridwells ingleses, as casas de correção – masculinas e
femininas – de Amsterdã, e outras experiências similares na Alemanha e na
Suíça. 44
Os diferentes sistemas penais que surgiram com o propósito de
assegurar aos presos tratamento mais “humano” serão examinados a seguir:
os sistemas pensilvânico, auburniano e progressivo.
a. O sistema pensilvânico (celular ou da Filadélfia)
A primeira prisão norte-americana foi constituída por volta de 1776,
pelos quaqueiros, a Walneet Street Jail, na Filadélfia, Estado da Pensilvânia,
Estados Unidos, sendo adotada posteriormente na Bélgica. O sistema tinha
características de ordem ética religiosa, “haciendoles a los delincuentes leer o
explicar la Sagrada Escritura u otras obras religiosas y Morales: los culpables
debían reconciliar-se con Dios, con la Sociedad y consigo mismo, regresando
así al buen camino”. 45
Esse sistema caracterizava-se pelo completo isolamento do mundo
exterior. Os sentenciados viviam isolados em suas celas individuais, em
silencio absoluto durante todo o tempo (dia e noite). Não era permitida visita
44 BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2000, p.91. 45 THOT, Ladislao. Ciência penitenciária. La Plata: Taller de Impresiones Oficiales, 1937, p. 33 - 34.
41
ou qualquer contato do preso com seus familiares. Apenas o sacerdote era
autorizado para transmitir educação religiosa, e funcionários do presídio para
levar comida à cela uma vez por dia. A única leitura permitida era a Bíblia,
pois acreditavam que a combinação, solidão e leitura da Bíblia estimularia o
arrependimento.
Como ressalta Foucault, “sozinho em sua cela o detento está
entregue a si mesmo; no silêncio de suas paixões e do mundo que o cerca,
ele desce à sua consciência, interroga-a e sente despertar em si o sentimento
moral que nunca perece inteiramente no coração do homem”.46
Segundo João Farias Júnior, o sistema pensilvânico obedecia aos
seguintes princípios: O condenado chegava na prisão, tomava banho, era
examinado pelo médico, após vendados os seus olhos,
vestiam-lhe uniforme; b) encaminhado à presença do Diretor
onde recebia as instruções sobre a disciplina da prisão; c) em
seguida era levado à cela, desvendados os olhos,
permanecendo na mais absoluta solidão, dia e noite, sem
cama, banco ou assento, com direito ao estritamente
necessário para suportar a vida. Muitos se suicidavam.
Outros ficavam loucos ou adoeciam; d) o nome era
substituído por número, aposto no alto da porta e no
uniforme; e) a comida era fornecida uma vez por dia, só pela
manhã; f) era proibido ver, ouvir ou falar com alguém; g) a
ociosidade era completa; h) o estabelecimento penitenciário
de forma radial, com muros altos e torres distribuídas em seu
contorno, tinha regime celular. 47
O sistema filadélfico foi influenciado também pelas idéias de Beccaria, Howard, Betham e pelos conceitos religiosos aplicados pelo direito canônico.
Essas experiências, nas quais já começaram a surgir características
do regime celular, sofreram em alguns anos graves estragos e tornou-se um
46 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Tradução Lígia Ponde. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1983. 47 FARIA JÚNIOR, João. A Ineficácia da pena de prisão e o sistema ideal de recuperação do delinqüente. Curitiba: Editora Juruá, 1997. p. 35 - 36.
42
grande fracasso. A principal critica feita a esse regime foi a de que isolamento
total significava uma tortura refinada.
Esses tipos de isolamento levavam presos à loucura, causavam
grandes alterações mentais e produziam o aumento real da taxa de suicídio.
Na solidão de sua cela individual, sem nenhuma ajuda material ou psicológica,
vivendo nas mais indignas condições, os detentos vinham a ter despertado o
desejo de vingança e até mesmo a aspiração à própria morte.
Para Enrico Ferri, o sistema celular é desumano, estúpido e
inutilmente dispendioso, tendo afirmado em sua obra sociologia criminal que:
A prisão celular é desumana porque elimina ou atrofia o
instinto social, já fortemente atrofiado nos criminosos, e
porque torna inevitável entre os presos a loucura ou a
extenuação por onanismo, por insuficiência de movimento, de
ar, etc. A psiquiatria tem notado igualmente, uma forma
especial de alienação chamada de loucura penitenciária,
assim como a clínica médica conhece a tuberculose das
prisões. O sistema celular não pode servir à reparação dos
condenados corrigíveis (nos casos de prisões temporárias),
precisamente porque debilita em vez de fortalecer o sentido
moral e social do condenado e, também, porque se não se
corrige o meio social é inútil prodigalizar cuidados aos presos
que, assim que saem da prisão, devem encontrar novamente
as mesmas condições que determinaram seu delito e que
uma previsão social eficaz não eliminou. O sistema celular é,
além disso, ineficaz porque aquele isolamento moral,
propriamente, que é um dos seus fins principais, não pode
ser alcançado. Os reclusos encontram mil formas de
comunicar-se entre si, seja nas horas de passeio, seja
escrevendo sobre os livros que lhe são dados para ler, seja
escrevendo sobre a areia dos pátios que atravessam,
fazendo sons nos muros das celas, golpes que
correspondem a um alfabeto convencional (...). Por último, o
sistema celular é muito caro para ser mantido. 48
48 FERRI, 1908, p. 312 – 318 apud BITENCOURT, 2001, p. 65
43
As críticas a esse sistema fizeram com que o isolamento total fosse
suavizado, sendo permitido o trabalho dos presos, inicialmente nas próprias
celas e, depois, em grupos, dando nascimento ao sistema de Auburn
conhecido como silent system.49
b. O Sistema Auburniano
Em oposição ao sistema anterior, e com a necessidade e o desejo
de superar suas limitações e os seus grandes defeitos, surge o sistema
auburniano, que foi considerado como sinônimo da administração
penitenciária norte-americana. Criado inicialmente em Nova Iorque em 1816,
na cidade de Auburn, caracterizava-se também pelo silêncio absoluto, mas
em regime de comunidade durante o dia e isolamento noturno. Havia uma
divisão de internos, de acordo com a idade e o estado de periculosidade.
Segundo Foucault, tal regime: prescreve a cela individual durante a noite, o trabalho e as
refeições em comum, mas sob a regra do silêncio absoluto,
os detentos só podem falar com os guardas, com a
permissão destes e em voz baixa... mais que manter os
condenados a sete chaves como fera em sua jaula, deve-se
associá-los aos outros, fazê-los participar em comum de
exercícios úteis, obrigá-los em comum a bons hábitos,
prevenindo o contagio moral por uma vigilância ativa e
mantendo o recolhimento pela regra do silencio. Esta regra
habitua o detento a considerar a lei como um preceito
sagrado cuja infração acarreta um mal justo e legitimo.
Assim, esse jogo de isolamento, de reunião sem
comunicação e da lei garantida por um controle ininterrupto,
deve requalificar o criminosos como individuo social: ele o
49 PIMENTEL, Manoel Pedro. Sistemas penitenciários, jan/89. Revista dos Tribunais 639:3266.
44
treina para uma atividade útil e resignada, devolvendo-lhe
hábitos de sociabilidade. 50
Conforme evidencia João Farias Júnior o sistema Auburniano
obedecia aos seguintes procedimentos fundamentais:
o condenado ingressava no estabelecimento, tomava banho,
recebia uniforme, e após o corte da barba e do cabelo era
conduzido à cela, com isolamento durante a noite; b)
acordava às 5h 30 min, ao som da alvorada; c) o condenado
limpava a cela e fazia sua higiene; alimentava-se e ia para as
oficinas, onde trabalhava até tarde, podendo permanecer até
às 20 horas, no mais absoluto silêncio, só se ouvia o barulho
das ferramentas e dos movimentos dos condenados; e)
regime de total silêncio de dia e de noite; f) após o jantar o
condenado era recolhido; g) as refeições eram feitas no mais
completo mutismo, em salões comuns; h) a quebra do
silêncio era motivo de castigo corporal. O chicote era o
instrumento usado para quem rompia com o mesmo; i) aos
domingos e feriados o condenado podia passear em lugar
apropriado, com obrigações de se conservar incomunicável
“51
O sistema auburniano, inspirado em motivações econômicas tinha
como objetivo a “ressocialização” do condenado por meio do trabalho,
disciplina e mutismo. Entretanto, o trabalho, no projeto auburniano, fugia de
certa forma tanto de sua original dimensão ideológica (atividade capaz de
satisfazer a necessidade do “não proprietário”) como pedagógica (modelo
educativo). Sua regra desumana do silêncio desenvolveu o costume nos
presos de se comunicarem através de sinais, formando um alfabeto prático,
que existe até os dias atuais, nas prisões onde a disciplina é mais rígida.
Esse sistema foi largamente criticado. Os críticos argumentavam
que o silencio absoluto é contrário à natureza humana, a qual se expressa na
50 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão . Tradução de Lígia M. P. Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 212 - 213. 51 FARIAS Júnior, João. Manual de criminologia. Curitiba: Editora Juruá, 1993, p. 38 - 39.
45
comunhão entre os seus semelhantes na sociedade; conseqüentemente, o
silêncio absoluto não contribui para a recuperação dos presos. Criticavam
também a disciplina extremamente rígida e a aplicação de castigos cruéis e
excessivos.
O sistema auburniano predomina nos Estados Unidos e, afastada
sua rigorosa disciplina e a regra do silêncio absoluto, é aplicado em muitos
países, como no Brasil.
c. Os Sistemas Penais Progressivos
O progressivo abandono da pena de morte impõe definitivamente o
predomínio da pena privativa de liberdade, no decurso do século XIX. O
apogeu dessa pena de privação de liberdade coincide com o abandono dos
regimes celulares e auburniano e a adoção do modelo progressivo. Este
sistema toma por base o princípio da vontade sincera do sujeito no desejo de
reintegração social, sendo mais humano e racional. A essência desse regime
consiste na distribuição do tempo da condenação em períodos, aumentando
em cada período os privilégios de que o recluso pode desfrutar com base na
sua boa conduta e no aproveitamento demonstrado no tratamento reformador.
Fundamental é o fato de possibilitar a reincorporarão do recluso à sociedade
antes do término da condenação. Esse regime, ao tempo em que deu
importância à própria vontade do recluso e diminuiu significativamente o
rigorismo na aplicação da pena de prisão, significa, inegavelmente, expressivo
avanço penitenciário. 52
Inicialmente foi adotado na Inglaterra os sistemas de John Howard,
que priorizava melhores condições de tratamento para os presos e de
Jeremias Bentham, com o sistema panótico.
d. Sistema progressivo inglês mark system
52 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: causas e alternativas. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 98.
46
Surge na Inglaterra, no séc. XIX, mais precisamente em 1846, o
sistema progressivo, atribuído a um Capitão da Marinha Real Inglesa,
Alexander Maconochie. O capitão impressionou-se com as péssimas
condições em que viviam os presos degredados para Austrália e se dispôs a
mudar o tratamento penal que lhe era ministrado.
Assim foram definidos os princípios desse sistema: “Apaguemos a
escravidão de entre os nossos castigos; apoiemo-nos mais na influência e
menos na força; erijamos mais estímulos e menos muralhas e poderemos
curar, como hoje sabemos piorar, o tratamento deve ser preventivo, mais que
curativo, olhar para o futuro, não para o passado”. 53
A grande inovação introduzida neste sistema progressivo inglês foi
o mark system, (sistema de vales). De acordo com esse sistema, a duração
da pena não era determinada apenas pela sentença condenatória, mas
dependia da boa conduta dos presos, do aproveitamento do trabalho
cumprido e da gravidade do delito. O condenado recebia marcas ou vales se
seu comportamento fosse “positivo” e os perdia quando seu comportamento
fosse negativo.
Esse sistema foi aceito e aplicado em muitas prisões da Inglaterra,
razão pela qual ficou conhecido como sistema progressivo Inglês. O tempo de
cumprimento da pena era dividido em três períodos: a) período da prova, com
isolamento celular diurno e noturno do tipo pensilvânico; b) período com
isolamento celular noturno e trabalho comum durante o dia com a regra do
silêncio absoluto do tipo auburniano; c) período, no qual, pela correção
demonstrada, o prisioneiro obtinha o ticket of leave, ou seja, o benefício da
liberdade condicional.54
e. Sistema Progressivo Irlandês
Criado por Walter Crozton, em 1853, o sistema progressivo
irlandês, aperfeiçoa o sistema de vales, inserindo um estágio intermediário
que consistia em transferir o recluso para prisões especiais com disciplina
mais suave, sem uniforme, com permissão para conversar, trabalhar ao ar
53 FUNES, Mariano Ruiz. A Crise nas prisões. São Paulo: Saraiva, 1953, p.159. 54 PIMENTEL, Manoel Pedro. Op. Cit; RT 639:267-268.
47
livre no exterior do estabelecimento, preferencialmente no campo, tendo por
finalidade o preparo do condenado para o retorno à vida livre em sociedade.
O regime irlandês ficou dividido em quatro períodos: a) período da
prova, com isolamento celular diurno e noturno, como sistema inglês; b)
período com isolamento celular noturno e trabalho comum durante o dia com
a obrigação de manter silencio absoluto; c) período intermediário ocorrido
entre a prisão comum em local fechado e a liberdade condicional
caracterizada pelo fato de presos vestirem roupas civis e exercerem trabalho
externo, igual aos trabalhadores comuns; d) o período da liberdade
condicional.
f. O Sistema de Montesino
O sistema de Montesinos foi criado pelo Coronel Manuel
Montesinos y Molina. Com um espírito humanitário e capacidade de liderança
para corrigir os condenados, imprimiu eficaz autoridade moral e sentimentos
de autoconfiança entre eles. Concretizou suas idéias a partir de 1834, quando
foi nomeado diretor do Presídio de San Agustín, em Valencia, onde ordenou
que fosse escrito no frontispício daquela prisão: “Aqui penetra e hombre, el
delito queda a la puerta’. Esta frase significa que a vingança pública se exerce
mediante a sentença condenatória, mas que desde esta começa a executar-
se, o delito e se reveste no passado.55
O sistema espanhol de montesianos estabelecia o respeito e a
dignidade do preso. Enfatizava o sentido regenerador da pena, acreditava que
a função do presídio era devolver à sociedade homens honrados e cidadãos
trabalhadores.56 Sustentava que o trabalho penitenciário era o melhor meio
era conseguir o propósito reabilitador da pena e que deveria ser remunerado.
Na Espanha, num dos presídios de Valência, onde tinha sido
aplicado, o sistema apresentava-se dividido em três períodos: a) os presos
grilhados a correntes faziam serviços gerais no interior do estabelecimento; b)
55 PIMENTEL, Manoel Pedro. O Crime e a Pena na Atualidade. São Paulo: Revista dos tribunais, 1983, p. 138 - 139. 56 Mensagem de Montesinos Sr. Diego de La Rosa, da Direção Geral dos Presídios, publicado na Revista especial penitenciária, 1962, p. 284, apud. Cezar Roberto BITENCOURT. Falência da pena de Prisão: causas e alternativas, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 91.
48
podiam manifestar as suas preferências nas oficinas de trabalho, de acordo
com a sua capacitação profissionais; c) tinham o direito de visitar os seus
familiares e executar trabalhos externos.
g. Sistema Progressivo no Brasil
O sistema progressivo foi adotado na legislação penal brasileira
contemporânea, na qual se pretende que a pena privativa de liberdade seja
executada de forma progressiva, do regime mais rigoroso para o menos,
levando em consideração o comportamento do apenado e sua personalidade
postdelictum.Assim, estão obrigatoriamente sujeitos ao regime fechado, no
início do cumprimento da pena, os reincidentes ou aqueles cuja pena seja
superior a oito anos (CP, art.33, 2. º, a), e, por expressa disposição legal, a
pena será integralmente cumprida em regime fechado quando se tratar da
prática de quaisquer dos crimes definidos como hediondos (Lei n.º 8.072/90);
podem iniciar o cumprimento em regime semi-aberto os não reincidentes com
pena de reclusão superior a quatro anos, não excedentes a oito (CP, art.33, 2.
º, b); devem iniciar o cumprimento em regime semi-aberto os condenados à
pena de detenção, qualquer que seja a quantidade (CP, art. 33, caput,
segunda parte); só podem iniciar o cumprimento da pena em regime aberto os
não reincidentes com pena igual ou inferior a quatro anos (CP, art. 33, 2. º, c),
observados os requisitos da LEP, art. 114.
No regime fechado, a pena é cumprida em penitenciária (LEP, art.
87), o condenado será submetido a exame de classificação para
individualização da execução, no início do cumprimento da pena, ficando
sujeito ao trabalho no período diurno dentro do estabelecimento, observadas
as suas aptidões, desde que compatíveis com a execução da pena, e a
isolamento durante o repouso noturno (CP, art. 34). Contudo, em face da
superlotação nas prisões, onde celas que deveriam ser ocupadas por no
máximo 05 presos ocupam até 10 ou mais presos.
No regime semi-aberto, a pena deve ser cumprida em colônia
agrícola, industrial ou similar (LEP, art. 90), e o condenado será submetido à
avaliação inicial para sua classificação, com vistas a propor a
individualização da execução da pena. A avaliação deve ser realizada no
49
início do cumprimento da pena. Admite-se o trabalho externo, bem como a
sua freqüência a cursos profissionalizantes, de instrução de segundo grau
ou superior (CP, art. 35). A superlotação também vem ocorrendo nesse tipo
de prisão. O regime aberto é fundado na autodisciplina e no senso de
responsabilidade. O condenado deverá, fora do
estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, freqüentar
cursos profissionalizantes e formais ou exercer outra
atividade autorizada, permanecendo recolhido na casa do
albergado durante o repouso noturno e nos dias de folga
(CP, art. 36 e LEP art. 93).
O regime aberto, nos últimos anos, não tem se efetivado no Brasil,
em razão da ausência de casas do albergado, adotando alguns juízes a
postura de transformar o regime aberto em benefício de livramento
condicional, desta forma o indivíduo cumprirá as obrigações impostas pela
justiça em sua residência.
50
CAPÍTULO II A INSERÇÃO DO TERCEIRO SETOR NAS PRISÕES DENOMINADAS CENTROS DE RESSOCIALIZAÇÃO
As instituições prisionais no Estado de São Paulo sempre se
mantiveram em crise, uma vez que, por mais que as autoridades
constituídas se esforcem para administrarem as prisões tornando-as mais
humanizadas, enfrentam contradições, tendo em vista que a questão
prisional não se resolve nela mesma, isto é, suas determinações são mais
amplas e se inserem na questão social e nas contradições do sistema
capitalista.
Analisando historicamente o desenvolvimento dos sistemas
punitivos no mundo e no Brasil, fica evidenciado que somente a partir de
1988 é que os governos de cada Estado passaram a implementar, através
de leis complementares, decretos e resoluções, melhores condições de
cumprimento de pena aos indivíduos condenados.
O Estado de São Paulo, através de sua Constituição estatal,
ampliou os direitos dos presos, instituindo na legislação o respeito às Regras
Mínimas da Organização das Nações Unidas – ONU para o tratamento dos
indivíduos presos.57
57 As regras mínimas da ONU estabelecem um conjunto de princípios que objetivam a proteção à dignidade física e moral do indivíduo preso.
51
Instituíram-se, também, às mulheres presas condições para
amamentar seus filhos durante o período de 04 meses em prisão dotada de
capacidade de oferecer atendimento de suas necessidades e de seus filhos.
Mas, embora no Brasil a cobrança dos legisladores penais e dos
organismos de luta e combate às práticas prisionais desumanas começasse
a operar com maior rigor a partir de 1988, por conta da reformulação da
Constituição Federal de 1988, que só foi remodelada, em face do atual
momento político, que vinha buscando a construção de um país mais “justo
e democrático” socialmente, após anos de ditadura militar. Portanto, já em
1984, foi reformulada a Lei de Execução Penal -LEP nº 7.210/84, tendo sido
regulamentado juridicamente o sistema penitenciário brasileiro apresentando
em seu art. 1º o objetivo de “efetivar as disposições da sentença ou decisão
criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do
condenado”.
No art. 10 é determinado que “a assistência social ao preso e ao
internado é dever do Estado com vistas a prevenir o crime, orientando-o
para harmônica convivência em sociedade após liberdade”.
A assistência social deve compor-se de: material, à saúde,
jurídica, educacional, psicológica, social e religiosa. (Art.11 da LEP).
A LEP, ao determinar o elenco de medidas relativas à assistência
social ao preso, contempla o caráter social e humano da pena e espera que
o Estado através de seus funcionários gestores e executores efetivem nas
prisões metodologias que materializem o processo de “reintegração social” 58, o qual leve os indivíduos presos a elaborar novos projetos de vida, fora
58 Utilizamos o termo “reintegração social” em substituição ao termo “ressocialização”. O conceito reintegração social é utilizado por Alessandro Baratta, criminólogo e penalista italiano, que defende o direito penal mínimo. Baratta, sustenta a necessidade do estabelecimento de uma legislação penal de conteúdo mínimo destinada à preservação dos direitos humanos e liberdade individuais para garantir a defesa dos mais fracos e evitar reações injustas e indesejáveis, não só por parte do Estado, mas também de qualquer órgão de natureza pública ou privada até mesmo da vítima. O conceito “reintegração social” é utilizado por Baratta, em oposição à:“readaptação”, “reeducação”, “reabilitação” e “ressocialização”. Baratta defende que os profissionais das áreas técnicas que atuam nas prisões devem desenvolver estratégias para a “reintegração social” dos indivíduos presos. Essa estratégias não devem ter a intenção de internalizar no indivíduo normas de readaptação de sua conduta no social. Não deve tentar conscientizar no indivíduo de que ele errou e, portanto, deve adequar-se às normas institucionais para cumprir sua pena. Baratta adverte que os profissionais devem promover programas dentro das prisões que conscientizem o indivíduo daquilo que ele pode vir a realizar, daquilo que ele pode vir a ser. Conscientiza-lo de suas
52
da criminalidade. Mas, a realidade que se apresenta é que desde a invenção
da pena privativa de liberdade, esta vem sendo questionada em razão dos
inúmeros problemas de caráter violento que afloram dentro das prisões.
É comum no Brasil, as prisões ganharem espaços na mídia escrita
e falada, somente em situações onde ocorrem motins, fugas, rebeliões e
corrupção de funcionários. À luta de organizações sociais, inclusive de
autoridades e funcionários estatais para a constituição de prisões mais
humanizadas e democratizadas no sentido de garantir os direitos humanos e
sociais dos presos, não se têm prestado a atenção e dado a ela o enfoque
necessário pela mídia e os ditos estudiosos das comunidades encarceradas.
No entanto, o Estado de São Paulo tem demonstrado estar à
frente de outros estados no que concerne à preocupação com a
humanização de suas prisões, fato é que, já em 1993, criou a primeira
Secretaria de Administração Penitenciária para tratar exclusivamente da
questão penitenciária.
Historicamente, a criação da Secretaria remonta a 01/03/1982,
quando o governo, através do decreto estatal de nº 28/92, instituiu a
Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo.
Até 1979, as instituições destinadas ao cumprimento de penas
privativas de liberdade, no Estado de São Paulo, estavam subordinadas ao
DIPE (Departamento dos Institutos Penais do Estado), órgão pertencente à
Secretaria de Justiça. Entretanto, em 13 de março de 1979, foi editado o
Decreto nº 13.412, transformando o DIPE em Coordenadoria dos
Estabelecimentos Penitenciários do Estado – COESPE, compondo-se à
época de 15 unidades prisionais.59
A partir de março de 1991, a COESPE ficou subordinada à
Secretaria da Justiça, em seguida, passou para a Secretaria de Segurança
Pública, tendo permanecido até dezembro de 1992. De 1990 até 1998, a
COESPE, de um universo de 15 unidades prisionais, passou a administrar
63 unidades, e várias, já em sua gênese, foram construídas com modelos
qualidades e de seus deveres para consigo e para com a sociedade, enquanto cidadão de direito. 59 Fonte: Secretaria de Administração Penitenciária – Cadernos anais I- p.07 – 1985.
53
arquitetônicos diferenciados, implicando a necessidade de ações e
metodologias diferenciadas.
Em razão da preocupação governamental em instituir políticas
voltadas ao atendimento das necessidades sociais do indivíduo preso, é que
o governador, à época Mário Covas, criou a Lei nº 8.209 (04/01/1993) e, em
seguida, o Decreto nº 36.463 (26/01/1993), ambos instituindo e
normatizando a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São
Paulo, como já mencionado, a primeira no Brasil a tratar com exclusividade
da questão penitenciária.
Para se ter noção do avanço das instituições prisionais,
atualmente coordenadas por essa Secretaria, até o dia 24 de fevereiro de
2006, contava com 143 unidades prisionais, de variados modelos
arquitetônicos e características diferenciadas para custódia dos condenados.
As 143 unidades mantinham sob sua custódia, 117.846 indivíduos
homens e 4.323 mulheres, totalizando uma população carcerária de
122.169.60
2.1. Missão e Atribuições da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo – SAP
“A SAP é um órgão que tem como missão a aplicação da Lei de
Execução Penal, de acordo com a sentença judicial, visando à
ressocialização dos sentenciados”
2.2. Atribuições
- “Execução da política estadual de assuntos penitenciários”,
- Organização, administração, coordenação, inspeção e
fiscalização dos estabelecimentos que a integram;
- Classificação dos condenados,
- Acompanhamento e fiscalização do cumprimento de penas
privativas de liberdade em regime de prisão albergue,
60 Dados colhidos no site da Secretaria de Administração Penitenciária. Disponível em: www.admpenitenciaria.sp.gov.br. Acesso em 24 de fevereiro de 2006.
54
- Formação profissional dos sentenciados e o oferecimento de
trabalho remunerado;
- Supervisão dos patronatos e a assistência aos egressos;
- Emissão de pareceres sobre livramento condicional, indulto e
comutação de penas.61 - Realização de pesquisas criminológicas;
-Assistência às famílias dos sentenciado
2.3. As Unidades Prisionais do Estado de São Paulo: Capacidade Populacional e Características de Funcionamento
O sistema penitenciário, conforme mencionado é composto
atualmente de 143 unidades prisionais, sendo: Quadro 1: Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo. Extraído do site da SAP.
Disponível: www.admpenitenciaria.sp.gov.br. Acesso em 06/03/2006
Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento
Oferece segurança para a população e
dignidade para o preso;
Atendimento médico / odontológico;
Parlatório e sala de audiência;
Celas reforçadas com chapas de aço;
Detector de metais e sistema de alarme e
TV;
Geração de empregos diretos: 293;
Construído para abrigar a população dos
DPs e cadeias;
Presos provisórios (regime fechado);
32 +
01 anexo
CDP – Centro de Detenção Provisória
Capacidade 768 presos
Estabelecimentos para presos que
aguardam julgamento.
Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento
61 No dia 01/12/003 foi publicada no DOE a Lei n 10.792, alterando a Lei de Execução Penal e o Código de Processo Penal, ocorrendo um grande retrocesso na prática dos profissionais das áreas de Serviço Social e Psicologia penitenciários, em razão de ter sido eliminado o exame criminológico, que era elaborado por esses profissionais, cujos pareceres auxiliavam os juízes e promotores públicos a se manifestarem sobre a progressão de pena dos indivíduos presos ou o julgamento dos benefícios de livramento condicional e, outros.
55
Regime semi-aberto;
Mais facilidade de ressocialização;
Oficinas de trabalho;
Salas de aula;
O preso trabalha dentro e fora do CPP;
07
CPP – Centro de Progressão
Penitenciária 672 presos
Geração de empregos diretos: 233
Nº de Unidades Modelos CapacidadeDescrição
do funcionamento
Celas individuais (segurança máxima);
Segurança: sistema interno de TV,
detectores de metais, equipamento de
alarme e bloqueador de celular;
RDD - Regime Disciplinar Diferenciado;
Número de tentativas/fugas: ZERO;
03
CRP – Centro de Readaptação Penitenciária
160 presos
Geração de empregos diretos: 207.
Nº de Unidades
Modelos
Capacidade
Descrição do funcionamento
56
Unidade mista (regimes fechado, semi-
aberto e provisório);
Administrado em parceria com ONG;
Participação efetiva da comunidade;
Serviços assistenciais, saúde,
odontológico, psicológico, jurídico,
social, educativo, religioso, laborterápico
etc. ;
Manutenção do reeducando: custo
reduzido;
Baixo índice de reincidência;
22
Centro de Ressocialização
CR
210 presos
Geração de empregos diretos: 61
cargos.
Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento
Regime semi-aberto;
19
APP – Ala de Progressão Penitenciária (anexos de Penitenciarias)
108 presos
Unidades construídas junto a
estabelecimento de regime fechado.
Destina-se à população presa em
regime semi-aberto
Nº de Unidades
Modelos
Capacidade
Descrição do funcionamento
Regime fechado;
Oferece mais condições de recuperação;
Possui oficinas, salas de aula;
Parlatório;
Cozinha, ambulatório médico;
Local adequado para banho de sol;
16
PC – Penitenciária
Compacta 768 presos
Geração de empregos diretos: 367.
Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento
57
Regime Fechado;
Possui oficinas de trabalho, salas de
aulas;
Atendimentos médico, psicológico,
social, religioso e pedagógico;
Locais adequadas para visitas familiares;
Locais adequados para visitas conjugais;
Geração de empregos diretos: 450.
56 Penitenciária 350 a 1500
presos
Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento
02 IPA – Instítuto Penal Agrícola
500 a 1200 presos
Atendimento à população presa em
regime semi-aberto, sendo os trabalhos
em sua maioria oferecidos em empresas
externas.
Nº de Unidades Modelos Capacidade Descrição do funcionamento
05 Hospitais
Penitenciários variável
Atende população presa com problemas
psíquicos e doenças infecto-contagiosas
e demais moléstias.
2.4 Distribuição de Unidades Prisionais por Coordenadorias Regionais
Para coordenar as unidades prisionais a Secretaria instituiu 06
coordenadorias regionais, a fim de melhorar a gestão, quanto às unidades
que ficam sob a responsabilidade de cada Coordenadoria, são elas:
Coordenadoria da Capital e Grande São Paulo; Coordenadoria da Região
Central do Estado; Coordenadoria do Vale do Paraíba e Litoral do Estado;
Coordenadoria da Região Noroeste do Estado; Coordenadoria de Região
Oeste do Estado e Coordenadoria de Saúde.
58
Os diversos modelos prisionais instituídos no Estado vão ao
encontro da necessidade imposta pela reformulação da Lei de Execução
Penal (1984). O governo federal e governos estaduais referem que o Brasil é
signatário de uma das melhores políticas criminais de tratamento dos
indivíduos presos, portanto necessita de prisões que atendam os estatutos
impostos em lei. Mas, segundo o pensamento dominante de estudiosos das
prisões, tais estatutos não têm passado de "letras mortas", visto que política
pública prisional, para governos e para muitos gestores de prisões, só é
eficiente quando consegue baixar os índices de fugas, motins e rebeliões e
isto o Estado de São Paulo conseguiu demonstrar com eficiência durante o
período de 2002 a 2004, feito que não ocorreu no ano de 2005, como pode
observar no gráfico nº1.
59
Gráfico nº1: Rebeliões 62.
A autonomia e independência com que gozam os Estados
brasileiros ao estabelecer a política de prestação de serviços sociais aos
presos refletem a variedade de modelos prisionais, que variam em
capacidade de acolhimento e custos mensais.
O sistema penitenciário do Estado de São Paulo nos últimos
cinco anos, segundo o Secretário de Administração Penitenciária, 63 passou
de um sistema penitenciário falido e arcaico como prática para um sistema
penitenciário inovador e dinâmico. Os dados quantitativos quanto a
rebeliões, fugas, motins e causas de mortes de presos, são mostrados de
forma transparente nas páginas do site 64 da Secretaria. São mostrados
ainda os “avanços“ em termos de ações sociais voltadas aos presos, as
dificuldades que ainda persistem e as propostas para superação e
humanização do sistema penitenciário.
62 Fonte: Dados extraídos do site da Secretaria de Administração Penitenciaria. Disponível:
www.admpenitenciaria.sp.gov.br. Acesso em 31/12/2005. Total da população carcerária em 31/12/2005 – 121.076 indivíduos presos.
63 Discurso proferido durante reunião com diretores gerais de unidades prisionais 64 www.admpenitenciaria.sp.gov.br
60
E é na busca de caminhos alternativos que o governo do Estado
permitiu que fosse inserido um novo protagonista social nas prisões, este
denominado Terceiro Setor.
O Terceiro Setor desde o ano 2000, segundo ainda o Secretário,
passou a ter fundamental importância na prestação de serviços de
assistência à população prisional.
O Estado, mediante parcerias com organizações não
governamentais, legitimou ao Terceiro Setor o repasse de
responsabilidades, até então essencialmente estatais, dentro das prisões, na
tentativa de redesenhar novas formas de gestão e viabilização de serviços
que venham a atender com qualidade, eficiência e eficácia as necessidades
dos indivíduos que mantém sob sua custódia.
2.5- O Terceiro Setor e sua Relação com o Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo
Antes de prosseguirmos a discussão da inserção do chamado
Terceiro Setor nas prisões do Estado de São Paulo, faz-se necessário
esclarecer o entendimento que se vem tendo quanto ao termo Terceiro
Setor, muito embora a definição para o ramo de atividades usualmente
chamado de Terceiro Setor ainda é confuso e impreciso e não há consenso
entre os intelectuais, estudiosos e agentes sociais sobre ele
Observa Montaño que o termo Terceiro Setor foi cunhado por
intelectuais orgânicos do capital, e isso assinala claramente ligação com
interesses de classe, nas transformações necessárias à alta burguesia e que
o termo é construído a partir de um recorte do social em esferas: O Estado
(Primeiro Setor), o mercado (Segundo Setor) e a sociedade civil (Terceiro
Setor). Ainda, em Montanõ, assinala Landim que o “Terceiro Setor não é um
termo neutro”, sua nacionalidade é clara. É de procedência norte-americana,
contexto onde associativismo e voluntariado fazem parte de uma cultura
política e cívica baseada no individualismo liberal (MONTAÑO, 2004, p.53).
61
Os teóricos têm classificado as três esferas mencionadas por
Montaño, como: PRIMEIRO SETOR - o Estado entendendo este como o ente com
personalidade jurídica de direito público, encarregado de funções públicas
essenciais e indelegáveis ao particular (justiça, segurança, fiscalização,
políticas públicas, etc.).
O SEGUNDO SETOR é compreendido como as organizações do
mercado: pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, encarregadas da
produção e comercialização de bens e serviços, tendo como escopo o lucro
e o enriquecimento do empreendedor.
E o TERCEIRO SETOR é aquele que congrega as organizações
que, embora prestem serviços públicos, produzam e comercializem bens e
serviços, não são estatais, nem visam ao lucro financeiro com os
empreendimentos efetivados, estando incluídas aqui, portanto, as
associações, sociedades sem fins lucrativos e fundações.
Apesar de o sentido ser o mesmo para os termos Terceiro Setor
ou ONGs, a última denominação tem sido mais vinculada às organizações
que tenham suas finalidades direcionadas a questões que atingem mais
genericamente à coletividade (meio ambiente, doenças infecto-contagiosas,
etc.).
Investigando mais amiúde alguns estudos sobre o Terceiro Setor,
fica claro que não há até o momento consenso quanto a sua
conceitualização, entretanto uma das definições mais freqüentes diz que o
Terceiro Setor: Constitui o conjunto de atividades das organizações da
Sociedade Civil, portanto são organizações criadas por
iniciativas de cidadãos, que tem como objetivo a prestação
de serviços ao público em áreas como saúde, educação,
cultura, direitos civis, moradia, proteção ao meio ambiente e
desenvolvimento do ser humano 65.
65 SALOMON, APUD Fernandes, 1994, P.19.
62
Nesse sentido, ao nos referirmos ao termo Terceiro Setor ao
longo deste estudo, estaremos trabalhando com esta perspectiva conceitual,
ou seja, Terceiro Setor são as ONGs.
Segundo pesquisa realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística) e pelo IPEA (Instituto de pesquisa Econômica
Aplicada), publicada em 2004, com dados de 2002, sobre as fundações e
associações sem fins lucrativos, constatou-se que existem no Brasil pelo
menos 275 mil organizações, mais da metade criada nos últimos 13 anos, e
o Terceiro Setor emprega 1,5 milhão de pessoas.
“A imensa maioria (212 mil) é tocada por trabalho voluntário, mas
o resto, que é um número expressivo, é trabalho assalariado”, afirma um
professor da Fundação Getúlio Vargas, que também atua no Centro de
Estudos do Terceiro Setor da Fundação, Mário Aquino Alves.
Segundo esse professor, o Terceiro Setor ganhou nos últimos
anos visibilidade nacional e internacional como campo profissional e sua
tendência é a profissionalização.
No âmbito internacional, contam-se atualmente mais de 32 mil
ONGs, segundo informação da Union For International Organization –
estando espalhadas por todo o mundo, grandes e pequenas, prosperando
particularmente nos países ricos.
As propostas das grandes ONGs transnacionais, nos países
desenvolvidos do mundo democrático, muitas vezes têm conseguido o apoio
dos governantes, que precisam de seus votos para se reeleger ou para
elegerem seus candidatos partidários.
O articulista Guy Sormam, do jornal francês Le Monde,
preocupado com os desvios das ONGs, comentou:
atrás das siglas ( humanitárias), prosperam pequenas e
grandes associações ricas e pobres, generosas e cínicas.
Ninguém fiscaliza suas fontes de recursos de financiamento,
ninguém verifica a autenticidade da boa causa a que se
propõem e ninguém controla as suas despesas. Na sua
quase totalidade, elas não estão subordinadas senão as
assembléias fantasmas (de personalidades honradas), mas
63
são administradas efetivamente por minorias vinculadas a
outros interesses.
Ainda, segundo esse articulista “as ONGs mais poderosas são
transnacionais e projetam a imagem de empresas transnacionais que as
financiam, tornando utópica a idéia de que são organizações
autogerenciadas, sujeitas que estão a uma irresponsabilidade ilimitada
ligada a causas boas ou más” 66.
No Brasil, analisando o processo histórico de inserção das ONGs,
denota-se que elas surgiram no país durante os anos de 1970 a 1980 como
estratégias de apoio aos movimentos sociais e populares, fruto de um
processo marcado por um longo período de ditadura militar e de um recente
período de abertura democrática, o qual impulsionou uma nova consciência
cidadã e conseqüentemente uma nova sociedade civil que se organizou e
conduziu lutas de classes, determinadas por interesses entre o capital e o
trabalho, multiplicando princípios, tais como participação, descentralização e
universalização de direitos.
As ONGs permaneciam por detrás dos movimentos populares na
luta contra o regime militar e pela democratização do país. As ONGs, sem
dúvida, ajudaram a construir um campo democrático, haja vista que no Brasil
durante os anos 70, em face da ditadura militar, os cidadãos eram proibidos
de se expressarem publicamente sobre assuntos de interesse público. A
imprensa era censurada, os sindicatos eram amordaçados, manifestações
públicas eram proibidas, os partidos políticos de esquerda foram postos na
clandestinidade, havia perseguição, prisão, tortura e morte de opositores do
regime. A resistência à ditadura se fazia organizando movimentos sociais,
manifestações de massa, passeatas, greves, etc. Houve até organizações
políticas que, na clandestinidade, optaram pela via da luta armada para
enfrentar a ditadura.
Nessa época foram criadas inúmeras entidades para defesa dos
direitos humanos, civis e políticos. As ONGs se preocupavam em fortalecer
66 O Perigo da proliferação indiscriminada. Folha de S. Paulo, São Paulo, 21 de julho de
2001.
64
a representatividade dos movimentos populares e a maioria atuava numa
linha de conscientização dos grupos organizados. Não se tratava de um tipo
qualquer de ONG, mas das ONGs cidadãs, movimentalistas e militantes.
Por meio de suas práticas, as ONGs eram identificadas pela
opinião pública como entidades engajadas em projetos de transformação
social, para democratizar nossa sociedade, combater a desigualdade e a
justiça social.
Em quase todos os países da América latina ocorreu o mesmo processo.
Quase todos viviam sob ditaduras e aí também a resistência democrática
associou-se à perspectiva socialista e deu origem a um grande movimento
de entidades civis, que constituíram a base organizativa dos movimentos
sociais.
As ditaduras foram sendo, pouco a pouco, substituídas por
democracias conservadoras que, combatendo os movimentos, aceitaram a
imposição das políticas neoliberais, reduziram substancialmente a cobertura
e a qualidade das políticas sociais e as responsabilidades do Estado para
com o bem-estar dos cidadãos.
Nos anos 1980, a imposição desse modelo do Estado Mínimo teve
como complemento a política de terceirização na execução de serviços
públicos, estimulando o surgimento de uma grande quantidade de
organizações da sociedade civil, sem fins lucrativos, criadas para
estabelecerem contratos com o poder público e prestarem serviços nas
áreas sociais. Entretanto, para combater essa ameaça de cunho socialista,
descaracterizar o sentido político das entidades que se criaram nesse
período anterior, confundir as identidades: o Banco Mundial, em meados dos
anos 80, criou o termo Organização Não-Governamental-ONG. As Ongs se
definiram pelo que não são, não pelo que faziam. Desta forma debaixo
desse novo véu além dos grupos de cidadãos que se organizaram para a
defesa de direitos, vieram muitas outras entidades, por exemplo, aquelas
que tradicionalmente fazem assistencialismo, ou novas entidades
prestadoras de serviços, orientadas por interesses de mercado, sem
qualquer preocupação maior com a questão social.
Outros fatores explicam, ainda, o rápido crescimento desse setor,
como as crises percebidas no contexto internacional, que influenciaram na
65
redução do campo de atuação do Estado, ao mesmo tempo em que abriram
caminho para a proliferação de Organizações Não-Governamentais. São
estes os fatores:
a- Crise do Welfare-State Estado de bem-estar-social, a partir dos
anos 70, quando o Estado passou a diminuir e até mesmo abandonar
serviços essenciais ( saúde, educação, saneamento, etc.), conforme teoria
dos que defendem o Estado Mínimo.
b- Crise do desenvolvimento, que supõe, equivocadamente, que o
Estado é incapaz de promover atividades de desenvolvimento de base.
c- Crise do socialismo, a partir dos anos 90, que favoreceu uma
visão de descrédito para com o Estado, provocando a proliferação de
serviços sociais fora da esfera ou até do alcance deste.
d- Crise do meio ambiente, que, na ausência de ação dos
governos para controlar a degradação ambiental, provoca iniciativas sociais
que atuam no sentido de “correr atrás do que já foi perdido”.
e- Em paralelo a essas crises, a revolução tecnológica e das
comunicações, bem como crescimento e difusão dos trabalhos em rede e de
eventos como o Fórum Social Mundial inserem o Terceiro Setor na atual
agenda política de todos os países.
Em meio a tantas discussões quanto ao melhor conceito para
definir o Terceiro Setor, bem como os diversos fatores contributivos para a
proliferação das entidades que o compõem, o fato é que desde os anos 80
vem se discutindo e estudando o que vem a ser o Terceiro Setor, o seu real
significado e qual deve ser o seu efetivo papel diante do Estado e da
sociedade. Dessa forma, passam a existir ONGs e ONGs, assim como
existem sindicatos e sindicatos, partidos e partidos. A forma de organização
não garante os compromissos da entidade. Para que possamos reconhecer
o que de fato são, é preciso analisar suas práticas, sua missão, seus
objetivos, para separar o joio do trigo.
Contudo, para os atuais governos, as ONGs têm sido vistas como
uma forte aliada no combate às mazelas sociais que assolam o país e aos
olhos da sociedade em geral passaram a ter fundamental importância no
cenário brasileiro.
66
O chamado Terceiro Setor vem evoluindo, principalmente no
aspecto legitimação, pois o governo brasileiro encarregou-se de criar um
marco legal, a chamada Lei das Oscips 67 – o que culminou num aumento do
interesse das pessoas pela atividade social e maior reconhecimento público
das ações desenvolvidas pelas Organizações Não-Governamentais, e, com
isso, criou-se uma extensa rede desse tipo de organizações, mas a grande
questão que os críticos em relação à atuação das ONGs, em razão da
omissão do Estado apontam é se deve esse Terceiro Setor agir substituindo
o papel do Estado ou pressioná-lo a assumir suas responsabilidades, com
relação às desigualdades sociais, econômicas e culturais que assolam o
país. Haja vista que vários estudos já realizados acerca da atuação das
ONGs, as quais sobrevivem exclusivamente com recursos públicos, dão conta de que a maior parte das ONGs existentes no país se prende ao
atendimento meramente assistencial e paternalista, que não promove a
ascensão social do indivíduo desfavorecido.
A maioria das ONGs atuantes no país não tem consciência de
sua força política e tampouco do poder de persuasão e pressão que o
Terceiro Setor pode ter na formulação de políticas públicas. Muitas ONGs
se transformaram em empresas baratas, de execução assistencialista de
obras dos governos, e atuam como simples agentes que reproduzem as
mesmas ações estatais deficientes e não buscam a perspectiva e a
dimensão de transformação ou mudança do modo e forma com que até
então o Estado vem agindo. Forma esta em que a política social estatal para
os pobres e municípios tem sido focalizadas e precarizadas, operando-se
perdas ao direito do cidadão no acesso às respostas para suas
necessidades básicas.
O Estado, cada vez mais sob o pretexto de chamar a sociedade
civil a colaborar com ele na solução ou amenização da questão social que
assola o país, vem efetivando parcerias e repassando recursos públicos a
67 São entendidas como OSCIPS as entidades que, em atendendo diretamente ao público, possuam uma ou mais das seguintes finalidades: promoção da assistente social, promoção da cultura, promoção da educação, promoção da saúde, segurança alimentar e nutricional, promoção do voluntário, promoção do desenvolvimento, promoção do econômico e social e combate a pobreza, apoio à geração de emprego e renda, promoção da ética, promoção da paz, promoção da cidadania, promoção dos direitos humanos, promoção da democracia e de outros direitos universais. – Lei 9.790/99.
67
organizações sociais no intuito de que estas desenvolvam programas,
projetos e serviços aos homens, mulheres, velhos e crianças, os quais
enfrentam as mazelas do capitalismo neoliberal dos últimos anos.
No entanto, muitas dessas organizações passam à população um
rótulo de bem intencionadas e de objetivos humanitários e sociais, quando
por detrás dos véus que as encobrem, as boas intenções não são tão boas
assim. Seus objetivos não são tão idealistas e suas ações não têm
conseguido atuar para procurar organizar meios de resolver o problema da
miséria em todas as mais nefastas formas de exclusão social vivida pelo ser
humano nos dias atuais. Suas ações, conforme assinala Montaño, se dá
justamente ao contrário, o que as organizações do chamado Terceiro Setor
vem fazendo é agudizar e reforçar a indigência da população a que dizem
assistir socialmente.
Segundo Montaño, as Organizações Não-Governamentais, vêm
contribuindo para solapar direitos sociais, provocando prejuízos econômicos
a enormes parcelas da população até recentemente reconhecidas pelo
Estado como portadoras de direitos à informação, educação, saúde,
previdência social, trabalho, etc.
Diante do exposto e como já dito, o Estado de São Paulo, sob o
pretexto de chamar a sociedade civil a “cooperar” na solução dos problemas
sociais que afetam a comunidade prisional, vem repassando recursos
públicos a essas ONGs para que elas se responsabilizem pela elaboração e
gestão de políticas sociais que dêem respostas às necessidades e
demandas postas pelos indivíduos encarcerados.
No entanto, o Estado, ao se desresponsabilizar de funções
pertinentes a si, tem delegado a essas organizações uma espécie de
assistencialismo messiânico, os quais não têm contribuído no avanço de
políticas sociais que realmente auxiliem os indivíduos presos a darem um
salto compreensivo na questão de que são sujeitos sociais e como sujeitos
são detentores de direitos e deveres com vistas ao exercício de sua
cidadania.
Essa afirmativa será melhor fundamentada no terceiro capítulo
deste estudo, onde faremos a análise da pesquisa realizada junto aos
68
sujeitos que gestam, executam e vivenciam o processo de gestão instituído
nas prisões CRs pelo Estado e ONGs.
2.6. A Gênese das Ongs Nas Prisões Do Estado De São Paulo
A origem da parceria entre Estado e ONGs evidencia elementos
que revelam uma iniciativa assistencialista por parte do Estado e ONGs na
busca de alternativas voltadas à humanização da pena. Ao mesmo tempo a
proposta do secretário se insere na política pública criminal68 do Estado de
São Paulo.
Era o ano de 1993, a cadeia pública da cidade de Bragança
Paulista do Estado de São Paulo encontrava-se em situação precária: eram
07 celas para 120 presos, entre os quais 20 eram mulheres. Mortes, motins,
rebeliões faziam parte do cotidiano daquele lugar, assustando a população
da pacata cidade interiorana.
Em 27 de abril daquele ano, a convite da vereadora Juliana
Sociloto (PTB), Moisés Cavalcante, preso na cadeia, participou da Tribuna
Livre da Câmara Municipal, tendo declarado: “uma rebelião poderá ocorrer
na cadeia de Bragança Paulista com conseqüências graves”. E continuou:
“os presidiários estão sobrevivendo em condições
subumanas. A cadeia, além de não ter camas, colchões e
lâmpadas, existem problemas com goteiras e limpeza e os
presos com AIDS não recebem atendimento médico,
convivendo com os demais presidiários”.
E concluiu: “se existe a intenção de reabilitação dos presos, é
necessário atenção especial das autoridades”.69
68 Política pública criminal é “o conjunto de procedimentos repressivos por meio dos quais o Estado reage contra o crime” . As diretrizes de uma política criminal e penitenciária enunciam uma série de princípios básicos e propósitos a serem perseguidos, objetivando o aprimoramento da reação ao fenômeno crime, bem como da execução penal no país em consonância com a Constituição Federal, a legislação pertinente e o programa nacional de direitos humanos, tudo isto em harmônia com as regras mínimas estabelecidas pela ONU, para o tratamento do preso, além das regras de Tóquio e as do Conselho Nacional de Política Criminal Penitenciária. – Ministério da Justiça – CNPCP. 69 Jornal Diário, Bragança Paulista, 29 de abril de 1993
69
Também participou da Tribuna Livre, entre outras autoridades, o
delegado Marcos Vinícius Camilo Linhares, na época diretor da cadeia e
titular do 3º Distrito Bragantino, que endossou a manifestação de Moisés
Cavalcante, alertou a população dos problemas enfrentados pela Cadeia e
solicitou ajuda de todos.
Nossa preocupação é reeducá-los, prepará-los para a
ressocialização ao saírem do presídio, se tivermos condições
de dar-lhes dignidade humana, isso vai ser um passo
importante, a partir do qual poderemos, com certeza, trazer
cada preso para a sociedade e agregá-lo à sociedade
novamente, sem delinqüir. O trabalho é longo, mas frutífero e
poderemos, se não erradicar, pelo menos minimizar,
sensivelmente, a criminalidade local 70.
Em 16 de junho de 1993 o esperado ocorreu. Os presos da cadeia
pública de Bragança Paulista se amotinaram, sendo necessário o emprego
de força da polícia militar para controlar a situação. Entretanto, após o
motim, o Conselho Comunitário, órgão de execução penal previsto no art.
61, inciso VIII, da LEP - criado em 1991 com a finalidade de visitar
periodicamente a cadeia pública de Bragança Paulista e promover
entrevistas com os presos, anotando suas reivindicações e apresentando
relatórios, em debate promovido na Câmara Municipal local, em 05 de
agosto de 1993, observou que o trabalho de assistência que vinha sendo
desenvolvido para os presos não estava apresentando os resultados
esperados em virtude das péssimas condições da estrutura física da cadeia
e, principalmente, pela completa ociosidade em que os presos permaneciam
encarcerados.
Cansados de esperar as providências oficiais para diminuir o
sofrimento dos presos reformando a cadeia e dotando-a de condições
adequadas, a sociedade bragantina decidiu assumir esse encargo sem
onerar os cofres públicos. Por iniciativa do Poder Legislativo e com a
participação do Poder Judiciário e do Poder Executivo, contando com o
70 68 Jornal Diário, Bragança Paulista, 29 de abril de 1993
70
apoio do Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, inicia-
se uma campanha para arrecadação de recursos para a reforma e
construção de outro prédio que seria anexo à cadeia, para possibilitar aos
detentos trabalho remunerado, assistência médica, odontológica e jurídica.
Paralelo à movimentação para a reforma da cadeia, cidadãos
bragantinos de ideais humanitários, objetivando a melhoria das condições de
vida dos presos reativaram a ONG - APAC (Associação de Proteção e
Assistência Carcerária) que já havia sido criada em 15 de maio de 1978,
tendo atuado somente por três anos na assistência aos presos.
No dia 16 de maio de 1994, no edifício do Fórum de Bragança
Paulista, no Salão do Júri, foi realizada a primeira reunião para reativação da
APAC, contando com a presença de 27 pessoas lideradas pelo então juiz
das execuções penais, Nagashi Furukawa, que reforçou a idéia de que o
problema carcerário de Bragança deveria ser assumido pela comunidade,
conseguindo que a maioria dos presentes manifestasse favoravelmente às
propostas de melhorias físicas e sociais dos presos que se encontravam na
cadeia pública. Ao mesmo tempo, conseguiu que o padre da cidade
agendasse a celebração de uma missa no pátio da cadeia, lugar onde há
muitos anos, salvo os presos, ninguém entrava.
No dia 27 de maio de 1994, iniciam-se as obras da construção do
prédio que seria anexo à cadeia, vindo a ser inaugurado em 04 de março de
1995. No dia 28 de maio foi celebrada a missa no pátio da cadeia com a
presença do juiz Nagashi Furukawa, autoridades, membros de vários
segmentos da comunidade e todos os presos. O ato foi considerado o marco
inicial para ocorrência das mudanças na cadeia pública de Bragança
Paulista.
Por ocasião da inauguração, em que se fizeram presentes
autoridades e membros colaboradores da comunidade bragantina, o juiz
Nagashi Furukawa proferiu o seguinte discurso:
Não se trata da inauguração de uma obra pública como
tantas outras. É o resultado do esforço conjunto de nossa
comunidade que sentiu a eminente necessidade de fazer algo
em prol dos nossos presos, cujas condições de vida fariam
71
arrepiar a consciência do mais insensível dos homens. A obra
que hoje se inaugura, modesta no tamanho, é grande em seu
significado social. Não custou um centavo sequer para os
cofres do Governo Estadual. Do Governo de São Paulo que
saiu, deixando melancólico, saldo de dívidas e
irresponsabilidades, só recebemos a indiferença.
Não obstante este descaso, e a falta de respeito, a sociedade
bragantina não esmoreceu. Terminamos a construção do
anexo e com o trabalho dos próprios presos reformamos
totalmente o prédio da cadeia que não apresentava as
mínimas condições de higiene e hospitalidade. 71
E, assim, iniciaram-se os trabalhos na cadeia pública, coordenado
pela APAC, delegado, carcereiros e o juiz de execuções penais. Segundo
membros da APAC, aos poucos os trabalhos foram se consolidando e
diminuindo o tráfico de drogas, brigas e desavenças entre os presos. Os
membros da APAC foram conquistando a confiança dos líderes presos, que
antes tinham influência negativa sobre os outros, passaram a trabalhar de
modo positivo, contribuindo para a solidificação das ações sociais.
De 1994 a 1996, a APAC sobreviveu de doações e da contribuição
dos seus associados. Contudo, ainda em 1996, celebrou convênio com o
Governo do Estado após participar de uma licitação para o fornecimento de
alimentação para os presos da cadeia. A APAC saiu vitoriosa e o convênio
foi firmado, tendo como objetivo a prestação de assistência material,
assistência à saúde, jurídica, educacional, social, religiosa, psicológica e ao
trabalho para os presos da cadeia.
O convênio foi considerado inédito no Estado de São Paulo e criou
muitas expectativas para humanizar o cumprimento de pena dos presos que
se encontravam na cadeia.
71 Jornal Diário, Bragança Paulista, 23 de janeiro de 1996.
72
2.6.1 A Parceria do Estado com Organizações Não-Governamentais, sob o Ponto de Vista da Mídia da Cidade de Bragança Paulista.
Retratamos algumas notas de jornais da cidade e região de
Bragança Paulista, que deram destaque à importância do convênio.
Convênio com a Secretaria de Segurança Pública, uma
associação de moradores de Bragança Paulista propõe-se
a gerir durante um ano a cadeia do município, recebendo
do Governo do Estado a quantia que seria paga à empresa
privada que fornece apenas refeições aos presos. Segundo
os munícipes, a alimentação absorveria somente a metade
da verba, e o restante seria aplicado a programas de
recuperação de detentos e ampliação das instalações do
presídio.
Este convênio é inédito em todo o país, transformando
Bragança em modelo a ser seguido por outros municípios.
Com a nova medida já foi possível diminuir os gastos com
alimentação, passando dos R$ 10,00 iniciais tido como
base pelo Governo Estadual para R$ 5,20 por preso. Com
este saldo positivo de R$ 4,80 por detento por dia, a APAC
terá superávit de cerca de R$ 22.000,00, que serão
revertidos para a própria cadeia, nas diversas formas de
assistência prestadas e numa eventual reforma das
instalações dos carcereiros, por exemplo. Com a
construção de uma cozinha própria, os custos cairão mais
ainda, aumentando o superávit da APAC 72.
Desde 1996, o convênio com a APAC vem sendo renovado a cada
ano, e, em dezembro de 2000, foi renovado novamente, mas não mais por
intermédio da Secretaria de Segurança Pública, e sim da Secretaria de
Administração Penitenciária, órgão que se tornou responsável pelo 1º Centro
72 Jornal Diário, Bragança Paulista, 24 de fevereiro de 1996.
73
de Ressocialização de Bragança Paulista tendo sido transformada a antiga
cadeia pública, através do Decreto nº 45.403, de 16 de novembro de 2000.
Segundo a Secretaria, a APAC vem demonstrando resultados
eficientes na gestão dos serviços de assistência direcionados aos presos do
CR de Bragança. Essa parceria como estratégia tem sido considerada
vantajosa para a comunidade, que já não convive mais com os motins,
rebeliões e fugas e para o Estado que se desresponsabilizou dos serviços
de assistência, transferindo-os para as ONGs.
A partir da experiência de Bragança Paulista, o sistema
penitenciário conta atualmente com 22 Centros de Ressocialiação,
funcionando em parceria com ONGs, com a perspectiva de expandir essa
forma de gestão para penitenciárias de médio e grande porte em curto
espaço de tempo.
No quadro nº3 abaixo são apresentadas as cidades onde já se
encontram instalados os Centros de Ressocialização
2.7 Centros de Ressocialização em funcionamento no Estado de São
Paulo Quadro nº3: Unidades , cidades e data da inauguração
Unidades - Cidades Data da Inauguração
Bragança Paulista 73* 3 de novembro de 2000.
Araçatuba 4 de setembro de 2001
Lins 4 de setembro de 2001
Avaré 11 de setembro de 2001
Marília 11 de setembro de 2001
Sumaré 14 de setembro de 2001
Limeira 16 de outubro de 2001
Itapetininga 5 de novembro 2001
Araraquara 18 de dezembro de 2001
Mococa 21 de dezembro de 2001
Presidente Prudente 22 de fevereiro de 2002
São José dos Campos (feminino)* 23 de julho de 2002
Rio Claro (feminino)* 26 de julho de 2002
73 * Unidades Adaptadas: eram cadeias públicas e foram transformadas em Centros de Ressocialização. Fonte: Disponível em: www.admpenitenciaria.gov.br. Acesso em 06 de março de 2005.
74
Piracicaba* 26 de julho de 2002
Birigui 26 de abril de 2003
Jaú 15 de novembro de 2003
Araraquara (feminino)* 15 de março de 2004
São José do Rio Preto (feminino) 6 de agosto de 2004
Mogi Mirim 21 de agosto de 2004
Rio Claro 24 de setembro de 2004
Atibaia* 1 de fevereiro de 2005
Ourinhos 21 de novembro de 2005
Segundo o secretário Nagashi Furukawa, tal iniciativa tem sido
inédita na administração pública e os resultados do modelo de administração
compartilhada são imediatos: “custos de manutenção da estrutura física,
inclusive do preso, é menor do que nas unidades tradicionais”.
Numa unidade tradicional, o custo médio mensal do preso é de
R$ 671,00. Nos CRs cai para cerca de dois terços desse valor, ou seja, R$
447,00. Multiplicando essa economia pelo número de 210 vagas nos CRs, o
Estado deixa de gastar cerca de R$ 560.000,00 (quinhentos e sessenta mil
reais) por unidade conveniada a cada ano. Observe o quadro, abaixo:
Quadro nº4: Comparativo orçamentário entre Unidade Tradicional e Centro de Ressocialização.
Unidades Custo médio
Preso / mês x 210 vagas
Custo médio preso / Ano x 210
vagas
Unidade Tradicional R$ 140.910,00 R$ 1.1690.920,00
Centro de Ressocialização R$ 93.870 R$ 1.126.440,00
Economia R$ 47.040,00 R$ 564.480,00
Afirma o secretário que a parceria alterou de forma positiva os
dados do sistema prisional do Estado: “nos CRs o índice de reincidência é
baixíssimo e são mínimas as ocorrências de fugas, sem contar a economia
Feminino
Masculino
75
aos cofres públicos na manutenção do reeducando se comparada ao custo
de um preso que habita uma unidade comum ” 74.
O modelo de administração nos CRs é diferenciado: a
comunidade participa das questões prisionais, pois contam as ONGs com
membros do Ministério Público, Poder Judiciário, Ordem dos Advogados e
outros. Na administração compartilhada cabe às ONGs proporcionar aos
reeducandos todas as formas de assistência social, cabendo ao Estado a
administração da segurança e disciplina da unidade prisional.
O secretário Nagashi Furukawa, além de idealizador da proposta
de gestão compartilhada nos Centros de Ressocialização, é entusiasta da
idéia, por isso cada vez mais vem conclamando segmentos da comunidade,
onde se pretende instalar CRs para organizarem-se e constituírem ONGs,
com a promessa de repassar recursos públicos mensais, a fim destas
proverem serviços de assistência aos indivíduos presos.
2.8 Estrutura Organizacional Do Centro De Ressocialização
O Centro de Ressocialização é uma Unidade Prisional com
capacidade máxima ao atendimento de 210 presos. Face à população
prisional de 210 presos, a Secretaria entende que a gestão administrativa se
torna mais eficaz e eficiente, melhorando a qualidade de todo o processo de
trabalho.
O regime prisional é voltado ao atendimento de presos provisórios,
regime fechado e regime semi-aberto. A proposta da Secretaria em atender
aos três regimes fundamenta-se na possibilidade de individualizar e elaborar
programas sócio-educativos aos homens presos durante todo o período de
cumprimento de pena.
A inclusão de homens e ou mulheres nos CRs só poderá ocorrer
se provenientes da Comarca Jurisdicional, ou seja, se os delitos forem
cometidos na Comarca, portanto a execução se formará na Vara de
Execução Criminal Regional.
74 Considera-se unidade tradicional, as que são administradas totalmente pelos funcionários públicos, cujos diretores gerais são nomeados pelo Secretário de Administração Penitenciária.
76
A administração do CR deverá ser compartilhada com
Organizações Não-Governamentais. A Secretaria entende que a
participação ativa da comunidade local contribuirá para a humanização da
prisão, efetivando ações sócio-educativas que atendam às reais
necessidades e demandas dos indivíduos presos.
A estrutura organizacional estatal foi enxugada, reduzindo cerca
de 40% dos funcionários, em comparação com as unidades tradicionais.
Foram reduzidos diversos departamentos e cargos administrativos.
Com a redução da mão-de-obra de funcionários públicos e
principalmente do agente de segurança penitenciária, a população presa é
chamada a participar do processo de trabalho intraprisional, passando
também a auxiliar nos serviços voltados para a segurança e disciplina, com
a finalidade de manter a ordem e a estabilidade prisional.
Foto do Centro de Ressocialização
2.9. Características 75 arquitetônicas do Centro de Ressocialização
- Área construída de 3.200 metros quadrados;
- Custo da obra: 3 milhões de reais;
75 Descrição na planta arquitetônica original do projeto CR
77
- As paredes são construídas de forma circular, sem canto, o que
“além de manter a noção de horizonte e de infinito, provoca sensação de
continuidade no caminhar. As cores usadas nas paredes são o branco e o
azul, objetivando o bem-estar visual, além do efeito tranqüilizador
provocando pelas cores” (Mário Espelta - arquiteto que elaborou o projeto e
supervisionou as primeiras obras);
- As muralhas foram abolidas e substituídas por muros de
apenas 3 metros de altura;
- Ausência de vigilância externa da Polícia Militar;
- As celas foram substituídas por alojamentos, onde residem
apenas 12 reeducandos, cada qual possuindo seus armários e camas,
preservando seus objetos pessoais;
- Os banheiros são coletivos e externos aos alojamentos,
possuindo chuveiros com água quente e vasos sanitários;
- Salas para atendimentos: social, psicológico, pedagógico,
reuniões e palestras;
- Salões para oficinas de trabalho;
- Salas para visitas familiares, áreas para o lazer, barbearia,
salão para cultos religiosos, cozinha industrial, lavanderia;
- Armazéns para o atendimento de necessidades de higiene
pessoal e alimentação, estes devendo ser administrados pelas
Organizações Não-Governamentais.76
76 A concepção arquitetônica do CR foi desenvolvida pelo arquiteto Umberto Spelta e a concepção ideológica pelo atual Secretário de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, Nagashi Furukawa
78
2.9.1. Quadro nº 5: Objetivos, metas e responsabilidades das ONGs
Convênio de Parceria
Objetivos Metas Responsabilidades Proporcionar, por meio das
assistências sociais pleno
cumprimento das exigências da lei
de Execução Penal, criando
condições para a harmônica
integração social do condenado ou
preso provisório, nos termos do
artigo 1º da Lei de Execuções
Penais – nº7.210/84.
As ONGs são as únicas
responsáveis pela execução
ntegral dos fins colimados dos
convênios, ficando, portanto,
responsáveis pelo
ornecimento ou contratação
de todo o serviço e materiais
necessários ao cumprimento,
visando garantir a execução da
Lei de Execução Penal, bem
como da manutenção da
unidade prisional.
Proporcionar a participação da
comunidade nas atividades de
execução penal devendo priorizar
parcerias que envolvam a
coletividade e que resultem com isso
no trabalho voluntário, na doação,
em dinheiro ou bens, expressando
assim, a consonância com o objeto
do convênio de parceria.
Diminuir o nível de
analfabetismo e aumentar a
formação de presos no nível
fundamental e médio; diminuir
o número de presos infectados
com doenças infecto-
contagiosas; aumentar os
postos de trabalho seja através
de terceiros ou laborterapia
interna e reduzir a reincidência
criminal do homem
encarcerado.
.
Os representantes legais das
ONGs não receberam
qualquer remuneração pela
gestão administrativa,
somente os funcionários
contratados para a execução
dos serviços. São eles:
cozinheiros, médicos,
psicólogos, advogados,
assistentes sociais,
nutricionista, enfermeiro e
técnicos em enfermagem,
gerente administrativo e
auxiliar de gerência. As
ONGs são responsáveis
pelos encargos trabalhistas e
previdenciários relativos aos
recursos humanos
contratados.
79
2.10. O convênio de parceria da Secretaria de Administração Penitenciara e as responsabilidades delegadas às ONGs
Em razão das responsabilidades que o Estado vem repassando
às ONGs, fazem-se necessárias reflexões quanto à constituição e a
capacidade operativa de organizações compostas por membros da
comunidade prestarem serviços de assistência aos indivíduos presos, haja
vista que a Constituição Federal de 1988, ao arrolar os direitos e garantias
fundamentais do Estado para com o cidadão, alude expressamente que “é
assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, no Art. 5º,
inciso XLIX.
Sem discrepar, a Constituição do Estado de São Paulo cuida
do tema em momentos específicos. Primeiro, ao dispor sobre a política
penitenciária, em clara analogia às diretrizes da ONU no que se refere à
“dignidade” da pessoa humana, incluindo a garantia de defesa técnica.
Vejamos:
Art. 143 - A legislação penitenciária estadual assegurará o
respeito às regras mínimas da Organização das Nações
Unidas para o tratamento de reclusos, a defesa técnica nas
infrações disciplinares e definirá a composição e competência
do Conselho Estadual de Política Penitenciária.
E, ainda, na esteira da garantia de defesa aos indivíduos presos,
prossegue a Constituição Estadual, prevendo textualmente que: “O Poder
Executivo manterá, no sistema prisional e nos distritos policiais, instalações
destinadas ao contato privado do advogado com o cliente preso”, nos termos
do art. 105.
Observando a legislação federal, temos que a Lei nº 7.210, de 11
de setembro de 1984, conhecida como “Lei de Execução Penal”, estatui de
forma categórica em seu art. 10, que “a assistência ao preso e ao internado
é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à
convivência em sociedade” e o art. 11 da mesma lei dispõe que a
80
assistência referida no artigo anterior desdobra-se em assistência material, à
saúde, jurídica, educacional, social e religiosa.
Por sua vez, o Poder Executivo do Estado de São Paulo editou o
Decreto nº 47.849, de 29.05.2003, que autoriza a Secretaria de
Administração Penitenciária representando o Estado, celebrar convênios
com entidades privadas, sem fins econômicos, mediante transferência de
recursos financeiros, para cooperar na prestação de serviços inerentes à
proteção e assistência dos condenados, internados e egressos, em especial
os previstos no art. 11 da Lei de Execução Penal e por da Resolução SAP
59, de 13 de junho de 2003, onde foi definido o Plano de Trabalho para
viabilização do objeto dos convênios autorizados pelo Decreto nº
47.849/2003.
O panorama legal traçado nos dá a devida dimensão de que o
objeto do convênio em apreço é uma obrigação originária do Estado,
devendo, por tal razão, ser por ele cumprida naturalmente.
Assim, muito embora exista autorização legislativa para a
celebração dos aludidos convênios, não podemos perder de vista que se
trata de transferência artificial de um encargo próprio do Estado, o que pode
trazer como conseqüência para o particular diversas responsabilidades que
naturalmente não lhe pesavam.
E, considerando que o objeto do Convênio em questão se
desenvolve em ambiente carcerário, entendemos que os problemas
inerentes às relações mantidas com o Estado poderão ser potencializados.
No propósito da transferência de encargo, observamos que tanto o
decreto quanto a resolução referidos estabelecem uma cadeia de obrigações
às Organizações Não-Governamentais, em patente extrapolação à mera
“cooperação” referida na Cláusula Primeira do Termo de Convênio 77, que
assim define seu objeto:
CLÁUSULA PRIMEIRA: Do objeto: Constitui objeto do
presente Convênio a cooperação da ENTIDADE na prestação
de assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social,
religiosa, psicológica e ao trabalho aos presos do
77 Resolução SAP nº 59 de 13 de junho/2003 –Decreto n 47.849/2003
81
estabelecimento prisional, na forma prevista no artigo 11 da
Lei de Execução Penal, e especificada no Plano de Trabalho
Anual de e integrante deste Convênio.
Ocorre que, muito além da singela “cooperação”, o Plano de
Trabalho fixado para operacionalizar o Convênio desce a detalhes a respeito
da forma como as diversas modalidades de assistência deverão ser
prestadas, sempre de acordo com regras preestabelecidas pela Secretaria
de Administração Penitenciária.
Ou seja, a pretexto de apenas cooperar com o
desenvolvimento de encargo natural do Estado, a realidade é que as ONGs
estão assumindo obrigações complexas, as quais são apresentadas em
formato fechado, cuja alteração somente é possível mediante a aceitação da
Secretaria, consoante disposto na Cláusula Segunda, inciso II, do Termo de
Convênio. Além disso, as ONGs não têm autonomia para gerir seus
serviços, ficando totalmente comprometidas com o Estado, mesmo porque
só conseguirão sobreviver com o patrocínio cem por cento do Estado,
havendo de se questionar, inclusive a sua denominação: Organização Não-
Governamental.
E, muito embora a segurança das unidades prisionais não integre
o objeto do convênio, permanecendo, portanto, sob monopólio do Estado,
não podemos nos esquecer de que intercorrências relacionadas à
assistência a ser prestada pelas ONGs (material, à saúde, educacional,
jurídica, etc.) tem aptidão de produzir problemas de várias naturezas, com
reflexo principalmente na segurança e disciplina, o que nos leva a estudar
este modelo de gestão prisional com maior acuidade, no terceiro capítulo
deste estudo, uma vez que a análise terá como ponto de partida a fala do
idealizador, de gestores, executores e indivíduos que vivenciam a dinâmica
da administração compartilhada: Estado/ONGs, dentro dos Centros de
Ressocialização
82
CAPÍTULO III CENTROS DE RESSOCIALIZAÇÃO: UM NOVO MODELO DE GESTÃO PRISIONAL OU A REPRODUÇÃO DOS MODELOS
TRADICIONAIS? 3.1. A visão do Idealizador, dos Gestores, Executores e Reeducandos quanto ao Modelo Prisional Instituído.
Neste capítulo apresentaremos a visão dos sujeitos sociais
pesquisados quanto ao modelo de prisão administrado em parceira Estado e
Organização Não-Governamental-ONG
A leitura cuidadosa do material coletado nos possibilitou perceber
com melhor clareza a visão do secretário de Administração Penitenciária do
Estado de São Paulo, idealizador do modelo CR, gestores (mais conhecidos
como diretores gerais), executores e indivíduos presos quanto à gestão dos
serviços executados pelas ONGs e as diferenças das ações em relação às
prisões estatais. Foi possível perceber, ainda, a maneira como os indivíduos
presos estabelecem a partir de suas percepções os nexos entre os serviços
prestados pelas ONGs e a importância que eles vêm atribuindo a esse
modelo prisional, vista por seu idealizador, gestores e custodiados como
“novo modelo de gestão prisional”.
Inicialmente faremos algumas considerações para a construção de
um sistema penitenciário eficaz, segundo a visão de Alvino Augusto de Sá 78 De acordo com Sá, um sistema penitenciário para ter eficácia deve
preencher alguns requisitos: constituir-se numa rede de instituições que
tenha comandos e ações coerentemente, articulados em sua estrutura e
dinâmica vertical, num recorte de tempo horizontal ao longo do tempo.
Para Sá, essa rede deve ter diretrizes fundamentais, previamente
definidas, dentro de uma estrita coerência teórica e metodológica, que
perpasse todas as ações e seus respectivos protagonistas, assinalando,
78Alvino Augusto de Sá, doutor em psicologia clínica, autor de diversos artigos sobre o sistema penitenciário brasileiro. É professor de criminologia crítica na Escola de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo.
83
ainda, que toda base conceitual de um sistema, especialmente o
penitenciário, terá que ter um viés ideológico, mas ele mesmo já conclui que
todo viés ideológico é discutível e polêmico, haja vista que toda ideologia
parte da visão de mundo e da postura que cada sujeito social assume
perante este mundo, mundo este permeado por vivências pessoais e
profissionais.
No que tange ao viés ideológico, toda nova ideologia trazida para
o universo do mundo do trabalho e no específico universo prisional será
recebida com desconfiança e até com certo descrédito por parte dos
funcionários e reeducandos79 principalmente por aquele grupo que se
encontra há muito tempo no exercício profissional ou cumprindo pena, uma
vez que as instituições prisionais, sejam estatais ou administradas em
parceria com a sociedade civil, são sempre prisões e, por sua vez, sujeitas
a eventos que no cotidiano demandam ações que sistematicamente fogem à
rotina.
Essas decisões são sempre tomadas em nome da preservação da
ordem e disciplina: primeiro, a ordem e disciplina; depois, se forem viáveis
as ações que poderão promover o sujeito enquanto ser social em seus
aspectos: morais, políticos, intelectuais e culturais.
As instituições prisionais, para a ideologia social dominante, são
construídas e moldadas com o objetivo primeiro de ser um local privilegiado
de aplicação da pena. É um espaço circundado por grades e muros, para a
privação de liberdade do individuo, constituindo-se com finalidade de
castigo.
A prisão é vista pela sociedade como espaço que “prende”, que
tira a liberdade, como forma de castigo pelo ato cometido à sociedade. Esta
é a lógica que perpassa pelo imaginário social dentro e fora da prisão.
Por sua vez, os gestores e executores dos serviços prisionais ao
custodiá-los, ideologicamente, definem que a meta primeira da prisão deve
ser a ordem e a disciplina, a fim de serem evitados fugas, motins e
desavenças entre os indivíduos presos. Quanto aos serviços sócio-
79 Termo utilizado para chamar o indivíduo preso dentro do sistema penitenciário, principalmente se estiver cumprindo pena nos CRs.
84
educativo-culturais80 estes deverão seguir a esteira da disciplina. Ou seja, se
houver ordem e disciplina, poderão ser executados os programas sociais.
Essa é a realidade dada e constatada em toda e qualquer prisão.
A supervalorização da segurança e disciplina não deixa de se
fazer presente também nos Centros de Ressocialização, pois os CRs
também são prisões, onde se exige a disciplina, esta permeada por rotinas
previamente planejadas, sob o estrito controle do Estado, o qual tem a
atribuição de garantir a disciplina e impedir a instabilidade e a
movimentação dos indivíduos aleatoriamente.
Busca-se nos CRs aplicar a disciplina com maior rigidez, pois é
mínimo o corpo funcional de agentes de segurança penitenciária e os muros,
além de serem baixos, não são ladeados por vigilância externa. O controle é
quase total das atividades, dos indivíduos e das situações cotidianas, por
causa do baixo número de presos, normalmente até 210, reproduzindo,
assim, as mesmas rotinas das prisões tradicionais.
Entretanto, nos CRs estão inculcadas diferentes ideologias por
parte do Estado para explicar aos funcionários contratados pelas ONGs,
porque as regras impostas em regimentos internos devem prevalecer,
alienando assim muitos profissionais do real processo intraprisional. Nesse
sentido observamos que, após mais de 05 anos de funcionamento de alguns
CRs, até o momento não foi criado regimento interno específico para os
Centros de Ressocialização, sendo utilizado o regimento interno padrão do
sistema penitenciário do Estado de São Paulo.
Apresenta-se com isso, uma contradição crucial: busca-se
ideologicamente mediante processos técnicos operativos construir um “novo
modelo de gestão prisional”, contudo, usam-se os mesmos métodos de
regras disciplinadoras das prisões tradicionais, haja vista que no momento
de punir o indivíduo por qualquer ato infracional dentro do CR, utiliza-se o
80 Entende-se por programas sócio-educativo-culturais, as atividades realizadas dentro das prisões, que tenham base teórica pedagógica sujeitas a constantes avaliações. A pedagogia aplicada deve buscar o desenvolvimento de investimentos que possibilitem a construção, orientação e encaminhamento de alternativas que alterem positivamente as condições de vida do indivíduo preso.
85
instrumento disciplinador do regimento interno padrão dos estabelecimentos
prisionais do Estado de São Paulo.
Salientamos, ainda, que no CR, assim como nas demais prisões,
tem-se constituído um tipo de direito penal em que as sentenças
condenatórias são convertidas num cotidiano de normas explícitas e
construídas na correlação de forças entre gestores, executores e presos.
Os que detêm o poder administrativo dentro das prisões possuem
certa autonomia para constituir novos poderes. No entanto, os próprios
profissionais da área de Serviço Social que atuam nos CRs ou demais
prisões, no geral, não percebem essa arquitetura de poder.
Senão vejamos este exemplo:
Conforme já descrito, no CR a imposição a ordem e disciplina são
mais rígidas, em face dos elementos já citados, por isso caso o indivíduo
venha a cometer infração, considerada falta disciplinar de natureza grave (
tentativa de fuga, tráfico e uso de substâncias entorpecentes, agressão física
a outro preso ou desrespeito a funcionários), normalmente o indivíduo é
transferido para prisões tradicionais durante o procedimento investigativo, ou
antes mesmo de iniciá-lo. Com isso inicialmente o indivíduo não terá direito a
qualquer defesa. Primeiro o preso é transferido, e depois o caso é analisado.
Entretanto, se, após a investigação e análise final, o sujeito for considerado
inocente, este já foi transferido para outra prisão, tornando-se inviável seu
retorno ao CR.
Analisando todo o procedimento, entende-se que está ocorrendo
total desrespeito ao direito de defesa do indivíduo. O sujeito é excluído do
CR, sem ao menos ter tido tempo hábil para se defender. Tal ocorrência é
rotina nos CRs, uma vez que não se previu na estrutura física celas
adequadas ao cumprimento de sanções disciplinares, ao contrário das
prisões comuns, onde há pavilhão específico para o cumprimento de
sanções disciplinares.
Nas demais prisões as celas para as sanções disciplinares são
individuais a fim de permitir que a solidão do indivíduo possibilite o encontro
consigo mesmo e a revisão de suas atitudes, segundo executores prisionais.
Espera-se que o indivíduo ao se ver duplamente encarcerado e sozinho vá
refletir e o “remorso” virá como forma de autopunição. O isolamento e o
86
remorso contribuirão para a “mudança de atitudes e posturas” durante o seu
tempo de encarceramento.
Este é o pensamento dominante entre gestores prisionais,
inclusive entre alguns gestores de CRs, lembrando que eles são
funcionários públicos.
O pensamento existente é contraditório ao discurso dos próprios
gestores e executores dos CRs, no que se refere ao conceito de
“ressocialização", haja vista que o discurso é por uma metodologia
pedagógica que eleve a capacidade dos indivíduos presos em rever suas
atitudes com relação ao mundo em que vivem, entretanto, caso o indivíduo
cometa algum ato que desabone sua conduta, os profissionais da área de
Serviço Social ficam impossibilitados de executarem quaisquer ações junto
ao indivíduo, pois este é transferido sumariamente para outra prisão, esta,
por sua vez sob o domínio puramente estatal.
As necessidades mais subjetivas do indivíduo nesse momento são
ignoradas; durante esse processo só interessa ao Estado ter o total controle
sobre o indivíduo.
Diante desse processo de transferência para outra prisão, qual o
significado e o sentimento do indivíduo que até então cumpria pena no CR,
sendo submetido a uma terapêutica-penal diferenciada, e de repente em
razão do descontrole emocional ou uma ação individual que foge às regras
disciplinares impostas, é transferido sem o direito de defesa, onde por conta
do excessivo número de presos, os indivíduos não são conhecidos pelo
nome, tornando-se apenas mais um número dentro do imenso sistema
penitenciário?
Esse problema de transferência de indivíduos dos CRs para outras
prisões, poderá ser tema de estudo para os profissionais de Serviço Social
que desempenham atividades nos CRs, com vistas a provocarem
mudanças para a garantia do direito do indivíduo, ao invés de serem
submetidos às imposições postas pelo Estado, que mantém o monopólio de
controlar, mediante procedimentos e normas, a disciplina interna e o efeito
da medida disciplinadora.
Em razão da complexidade do sistema prisional, no qual estão
inseridas as prisões denominadas CRs, para os estudiosos das prisões e
87
para aqueles operadores do sistema prisional tradicional, o CR ainda é visto
somente como mais um lugar de confinamento, reclusão, privação de
liberdade e só se sustentará enquanto a disciplina estiver acima das
propostas “ressocializadoras”.
A “ressocialização” , como perceptiva de “reintegração social”,
constitui-se em uma contradição a todo e qualquer desejo sócio-pedagógico.
No entanto, a visão explicitada pelos sujeitos sociais entrevistados
permitirá uma compreensão mais detalhada do sistema CR que escapam à
análise superficial dos que vêem o modelo CR com desconfiança, sejam
estes operadores do próprio modelo, sejam operadores dos modelos
tradicionais ou operadores do sistema judiciário e outros.
Iniciaremos a análise das falas de alguns sujeitos investigados
(secretário, assistentes sociais e indivíduos presos), focando a visão deles
quanto ao termo “ressocialização”, muito utilizado no sistema penitenciário e
que também foi utilizado para denominar as prisões no formato
administração compartilhada Estado/ONG.
Elaboramos a seguinte pergunta aos sujeitos mencionados
anteriormente: - Para o pensamento dominante no meio jurídico, as prisões
não só têm por finalidade privar o indivíduo de sua liberdade,
mas também devem proporcionar meios para a sua
ressocialização. Eu gostaria de saber o que o senhor entende
por ressocialização. E quando podemos dizer que um preso
está ressocializado? O que ele precisa alcançar para estar
ressocializado e qual é o papel do Estado nesse sentido?
A fala do Secretário de Administração Penitenciaria do Estado de São Paulo.
“A expressão ressocialização tem sofrido muitas críticas,
porque alguns a entendem preconceituosa, pois parte do
princípio de que os presos não foram socializados e precisam
de ressocialização, quando sabemos que nem sempre isso é
verdade. Pessoas totalmente socializadas também cometem
crimes. Porém, independentemente da correção da
88
expressão, o que se pretende com a ressocialização é criar
condições favoráveis para que o criminoso mude seus
valores e passe a acreditar que a obediência a regras sociais
é o único caminho para se viver em paz e em harmonia com
outras pessoas que compõem essa sociedade. Obtido esse
resultado de mudança de valores, o segundo passo será
apontar caminhos para que a pessoa possa sobreviver
dignamente em obediência a essas regras sociais.
Penso que o papel do Estado se esgota nesses pontos. Tudo
o mais deve ser tarefa da sociedade”.
Analisando a resposta do secretário, interessante destacar o seu
conceito de “ressocialização” que é: “criar condições favoráveis para que o
criminoso mude seus valores e passe a acreditar que a obediência às
regras sociais é o único caminho para se viver em paz e em harmonia com
outras pessoas que compõem essa sociedade”. O “apontar caminhos”,
segundo o secretário será necessário para que o preso venha a ter
obediência às regras sociais”.
O entrevistado concebe a sociedade como célula harmônica, cujo
equilíbrio é mantido pelos indivíduos que cumprem seus papéis e normas
sociais. Com isso transfere a responsabilidade de enfrentamento da questão
do preso para o indivíduo e para a sua mudança de “valores morais”. Assim,
entende que o sujeito preso por si só pode alterar a visão de mundo e a sua
postura neste mundo e que o Estado teria a função educativa durante o
cumprimento de pena do condenado.
Nesse sentido, há diversos estudos publicados, nos quais se
reconhece que a prisão é ineficaz no quesito “ressocialização”. Entende-se
que, quando o sujeito é inserido na prisão, este não a vê como uma
oportunidade de “rever seus valores” morais ou sociais. O indivíduo a vê
como um sofrimento que lhe é imposto, um castigo, um lugar onde sentirá
dores morais e angustias espirituais.
Tais estudos são elaborados por intelectuais que absolutizam a
realidade, acreditando que na prisão é impossível criarem-se condições para
o indivíduo alterar positivamente seus valores morais ou sociais, pois partem
89
da premissa de que a instituição prisão sempre imporá regras rígidas,
condicionamento por meios dessas regras, e isso propiciará condições
negativas ao objetivo ressocializador da pena.
Eis porque, segundo o secretário, a expressão “ressocialização” é
entendida por muitos de forma preconceituosa e tem sofrido críticas ao longo
de sua trajetória dentro das prisões.
No entanto, para outros estudiosos e profissionais que atuam no
sistema prisional, entende-se que o indivíduo, mesmo submetido a normas e
regulamentos prisionais continua senhor de suas vontades e de seus atos e
que por meio de programas, projetos e ações socio-educativo-culturais é
possível o indivíduo alterar sua trajetória de vida no mundo. Uma vez que a
questão central a ser refletida e discutida não é “moral”, é mais ampla, é
uma questão de direitos e desenvolvimento de ações que propiciem ao
indivíduo o exercício de sua cidadania, durante o encarceramento e pós-
liberdade.
No que tange ao conceito de ressocialização do indivíduo preso,
diferentemente da visão do Secretário as assistentes sociais que atuam nos
CRs já apresentam uma visão emancipatória quanto à ressocialização do
indivíduo preso:
As falas das assistentes sociais
“Não se pode afirmar, penso que para se alcançar a
“ressocialização” o preso precisaria ser capacitado para
enfrentar o mercado de trabalho, ainda durante o seu
cumprimento de pena, em minha visão, se o indivíduo tivesse
condições de desenvolver-se profissionalmente dentro do
CR, e se ao sair em liberdade conseguisse inserir-se no
mercado produtivo, a chance de não retornar à prisão seria
maior e, dessa forma o processo ressocializador poderá se
efetivar”.
“A ressocialização estará em processo quando o indivíduo
for capaz de refletir sobre suas escolhas e opções e para
tanto, se faz necessário a viabilização de acesso aos
90
recursos comunitários e institucionais, garantindo-se a efetiva
participação do indivíduo e da sociedade nos serviços e
programas sociais dentro da prisão”.
As profissionais partem da premissa de que os indivíduos devem
ter oportunidades de fazer escolhas. Escolhas, inclusive dentro do próprio
cárcere, e que a prisão deve buscar oportunizar essas escolhas, viabilizando
durante seu processo de encarceramento mediações entre a prisão e a
comunidade, no que se refere a ações que os profissionalizem e os
valorizem e que lhe dêem condições de inseri-lo no mundo do trabalho, pós-
liberdade.
Em outras palavras, entendem que, por meio da profissionalização
e do envolvimento da sociedade em programas sócio-educativo-culturais o
indivíduo poderá dar um salto qualitativo e se transformar em um novo ser
social.
No entanto, os indivíduos que vivenciam através do
encarceramento a prisão CR, traz internalizado em seu discurso a mesma
visão do secretário em relação ao processo de ressocialização, como
podemos constatar nas respostas dos reeducandos:
As falas dos reeducandos
“O preso está ressocializado quando houver de fato uma
mudança na sua atitude mental. Para que haja essa
mudança, o preso precisa recuperar sua auto-estima, precisa
acreditar que é um cidadão capaz de, pelos seus valores, dar
sua contribuição para que haja uma sociedade melhor,
precisa sentir-se responsável por si e por aqueles que
dependem dele, por acreditar que, apesar das inúmeras
dificuldades, será capaz de atingir de forma justa, os seus
objetivos através do seu próprio esforço”.
“Só sei que privar uma pessoa de sua liberdade jamais irá
ressocializá-lo como a sociedade deseja. A gente é preso,
cumpre a pena imposta, mas o Judiciário é lento e deixa a
91
gente revoltado, pois passamos do direito de receber
benefícios, e muitas vezes cumprimos a pena integralmente.
Mas, se o preso recebe durante o cumprimento dessa pena
total apoio da família, não só durante a prisão, mas também
quando em liberdade, isto dará ao preso vontade de lutar e
mudar de atitude. A família e os verdadeiros amigos são
fundamentais para ajudar a gente a se modificar”
“Difícil dizer quando um preso estará ressocializado, mas se
quando o preso chegasse na prisão a instituição investisse
em cursos profissionalizantes, para que, quando em
liberdade, tivéssemos uma oportunidade de trabalho, isto
ajudaria muito. Vejo a família também como um fator
importante para alcançar a reabilitação social do preso. Se a
família se faz presente, a ressocialização poderá ocorrer”.
Uma leitura atenta das respostas dos indivíduos presos mostra
que está internalizado no discurso do indivíduo o que sempre foi passado a
ele dentro da prisão. Ou seja, o erro foi ele quem cometeu, portanto deve
pagá-lo à Justiça. O errado é o indivíduo, “a sociedade é harmônica”, por
isso, o sujeito deve rever seus “valores morais e sociais” e assumir outra atitude mental, para que assim possa adequar-se às regras do
cárcere e, conseqüentemente, às regras e normas da sociedade. No
entanto, sabemos que a sociedade capitalista é desigual e que,
principalmente no Brasil, o Estado de Bem-Estar Social, praticamente
inexiste, e que o desmonte das poucas políticas sociais que tínhamos foi
devastador nos últimos anos. As reformas de cunho neoliberal operadas no
país nos últimos anos terminaram por eliminar direitos sociais duramente
conquistados no passado. E já são raras as possibilidades, atualmente, para
o jovem adentrar ao mercado de trabalho que dirá ao ex-condenado que
cumpriu pena nas prisões brasileiras.
O discurso do indivíduo é que depende de seu esforço conseguir o
exercício de sua cidadania, e entendemos que realmente muito depende
dele, no entanto, com o desemprego e a precarização do trabalho, a massa
de “excluídos” socialmente está aumentando dia a dia, e que não dependerá
92
apenas de uma simples profissionalização e seu esforço pessoal, a sua
“reintegração social”, e sim do cumprimento do Estado na garantia de
direitos sociais e da geração de oportunidades para todos. Dependerá
também em a sociedade estar revendo sua postura, sua cultura e valores
em relação aos ex-sentenciados para que se possam gerar oportunidades
de trabalho, de estudo, cultura, militância política, etc.
As falas dos indivíduos não deixam dúvidas de que também nos
CRs o modelo tradicional de prisão se perpetua, embora nos CRs os
indivíduos tenham um pouco mais de possibilidade de expressão e
consigam chegar mais facilmente aos gestores estatais, a fim de dialogar e
negociar melhores condições para o cumprimento da pena, conforme poderá
ser observado nas falas dos próprios indivíduos, mais adiante.
Isto posto, muito embora as assistentes sociais tenham
disposição e olhar voltados à emancipação dos indivíduos presos, não
conseguem colocar em prática suas ideologias, em decorrência das
dificuldades que enfrentam para o desenvolvimento do projeto ético-político
e social que comungam.
Indagamos aos profissionais de Serviço Social quais as
dificuldades que encontram dentro dos CRs para desenvolverem suas
atribuições:
As falas dos assistentes sociais
“Espaço físico limitado;
-Priorização da força produtiva frente aos serviços sócio-
educativos-culturais oferecidos, ou seja, se priorizam-se as
atividades laborterápicas ou produtivas aqui dentro, e se for
possível o reeducando virá ao atendimento do Serviço Social;
-Desconhecimento por parte dos gestores estatais e ONGs
das atribuições específicas do Serviço Social;
-Imposição de regras administrativas estatais limitando os
serviços técnicos;
-Excesso de atendimentos priorizando quantidade em
detrimento à qualidade dos serviços;
93
-Dificuldades em desenvolver ações junto aos familiares do
indivíduo preso, face ao pouco tempo que os mesmos já
disponibilizam para visitá-los aos finais de semana;
-Dificuldade em desenvolver serviços de acompanhamento
ao egresso, pois, embora a maioria dos indivíduos que são
excluídos do CR possuam domicílio na cidade ou região, não
costumam buscam os serviços oferecidos aos egressos, e o
serviço social tampouco dispõe de veículo para realizar
visitas domiciliares e, conseqüentemente, não dispõe de
tempo para realizá-las, em razão da demanda de serviços
internos”.
Observamos nas respostas das entrevistadas que o cotidiano
prisional instituído nos CRs reproduz exatamente o cotidiano instituído nas
prisões estatais.
Os profissionais de Serviço Social pontuam com clareza as
dificuldades de realizar um trabalho comprometido com o projeto ético-
político e social da categoria. Tudo conspira contra os assistentes sociais: o
ordenamento arquitetônico; a disposição organizada dos indivíduos dentro
dos alojamentos; a distribuição do tempo em horários determinados e
rigorosos; a distribuição de tarefas e de todo o conjunto de regulamentos e
normas preestabelecidas determina a ordem hierárquica a ser seguida. O
império da ordem e disciplina, e cumprimento dos horários estabelecidos
pelo Estado prevalecem em detrimento dos programas sociais. Estes, se
efetivados, poderiam elevar a capacidade de os indivíduos compreenderem
que são cidadãos de direitos e, portanto, podem buscar seu próprio
desenvolvimento, mesmo presos, para que possam retornar à sociedade
como sujeitos sociais detentores de direitos e deveres, podendo então fazer
suas “opções e escolhas”.
No entanto, o que se entende é que os métodos de opressão
contraditoriamente não contribuirão para a libertação dos valores morais ou
sociais negativos já socializados pelos indivíduos ao longo de sua existência.
Fato que, aplicado a construção de novos modelos prisionais, significa que
todos os funcionários operadores no CR deverão ter clareza quanto à
realidade concreta e construir metodologias e estratégias que venham a
94
questionar o pensamento dominante e demonstre ao longo do tempo de
existência dos CRs que há caminhos alternativos para se desenvolverem
serviços que elevem a capacidade cognitiva dos sujeitos presos, serviços
que desenvolvam nos indivíduos o exercício de cidadania, mesmo que
estejam submetidos às normas institucionais. Acreditamos que o maior
desafio dos gestores e executores de serviços nos CRs é enxergar as
contradições da realidade ali postas e que trazem traços das contradições
da realidade social mais ampla.
Importante, ainda, observar a queixa dos profissionais quanto à
limitação dos espaços reservados para a execução dos serviços da equipe
técnica. Embora o CR seja diferenciado em sua arquitetura, não previu
espaços para o atendimento individualizado por parte dos profissionais, haja
vista que um dos objetivos da construção dos Crs é também a diminuição de
custos, daí o enxugamento não só dos funcionários públicos, mas também
dos espaços funcionais.
Pontuadas as dificuldades para a efetivação e eficácia das ações
desenvolvidas pelos profissionais de Serviço Social, ilustramos as
dificuldades enfrentadas pelos gestores, ou mais conhecidos como diretores
gerais e também trazemos à luz para discussão as falas dos gerentes das
ONGs e dos agentes de segurança penitenciária.
As falas dos diretores gerais, quanto às dificuldades enfrentadas.
“Dificuldades em definir os trabalhos a serem
executados pelos funcionários do Estado e ONG. Muitos
funcionários vêem a divisão dos serviços como disputa
de poderes, principalmente os mais antigos dentro do
sistema penitenciário”
“Intromissão dos funcionários da ONG em questões
administrativas delegáveis ao Estado, exemplo:
transferência de presos para outras prisões, sanções
impostas disciplinarmente ao preso, designações de
95
presos para o trabalho externo e até na transferência de
funcionários estatais para outras prisões”.
“Os funcionários do Estado sabem quais são suas funções, mas
os funcionários da ONG, freqüentemente invadem o espaço do estado,
principalmente da área de segurança e disciplina”.
“Quadro de funcionários públicos muito reduzido, dificultando
a vigilância e disciplina, em face da imensidão de afazeres,
tais como: apresentação de presos ao Judiciário, inclusive de
outras comarcas, internações de presos em hospitais onde se
faz necessário a vigilância, e movimentos de presos dentro
da unidade para diversos tipos de atendimentos”.
As falas dos diretores gerais nos remetem a uma análise de que
as atribuições tanto do Estado quanto das ONGs, mal definidas, contribuem
para a “disputa de poderes” e conseqüentemente para a fragmentação dos
serviços a serem prestados aos indivíduos presos. No entanto, a proposta
do Secretário de Administração Penitenciária, idealizada e matizada em
decreto governamental é de parceria entre os dois protagonistas e não de
“disputas de poderes”.
A fala de que, freqüentemente, os funcionários da ONG invadem o
espaço de atuação do Estado, principalmente, da área de segurança e
disciplina, deixa claro a não disposição dos funcionários estatais, em permitir
que os funcionários da ONG façam mediações ou interlocuções para a boa
parceria. A postura dos profissionais do Estado perante os da ONG, implica,
certamente, a não eficiência e eficácia dos serviços de assistência a serem
prestados pelas ONGs.
As falas dos gerentes das ONGs
“Enfrentamos dificuldades em fazermos uma seleção por perfil
social e criminoso e após designá-los em alas adequadas a seu perfil, face
ao excesso de presos inclusos no CR”.
96
“As contradições do sistema prisional em geral também se
faz presente no CR: punir em detrimento da conscientização,
massificação X cooperação, autocracia x iniciativa; rigor x
disciplina; submissão x consciência; ociosidade x trabalho”.
“Considerando que o objetivo maior do CR é o melhor
desempenho das ações de assistência ao indivíduo preso, e
humanização da pena, a maioria dos procedimentos
estabelecidos pela equipe técnica, como um cronograma que
consiste em etapas de trabalho, muitas vezes este trabalho é
interrompido face a brusca transferência do preso para outra
prisão, ficando o trabalho iniciado inacabado, prejudicando
dessa forma a efetivação do objetivo maior”.
“Outra questão relevante é o fato de tratar-se de uma
proposta nova de trabalho, não existindo números científicos
e estudos acadêmicos que proporcionem uma diretriz sólida
para a execução dos trabalhos nos CRs”.
As afirmações dos gerentes das ONGs retratam o dilema
enfrentado quanto à estrutura de “poder” montada pelo Estado no âmbito
dos CRs.
O rigor disciplinar, a transferência brusca de presos para outras
prisões, inviabilizando o término dos trabalhos iniciados pelos profissionais
contratados pelas ONGs, tolhem as possibilidades de que possam atuar com
eficiência com relação às necessidades apresentadas pelos presos.
A lógica de dominação estatal durante as rotinas estabelecidas,
com vistas à preservação da “ordem e disciplina”, demonstra o desgaste das
relações de possíveis parcerias positivas, entre o Estado e a sociedade civil.
As ambigüidades e contradições geradas entre a proposta
idealizada e a prática que vem sendo instituída pelos gestores e executores
dentro dos CRs, certamente têm gerado incertezas por parte de gerentes e
diretores gerais quanto aos resultados positivos a serem alcançados junto
aos sujeitos demandatários dos serviços.
97
As falas dos agentes de segurança penitenciária
“É necessário que haja interação de todo o potencial
funcional. Estado/ONG, para que os objetivos de melhorar a
condição do trabalho prisional sejam efetivados. Agentes e técnicos deveriam trabalhar em conjunto e não separados, pois isso dificulta nossos serviços.”
“Penso que o próprio governo discrimina os egressos81 não
dando a eles condições favoráveis pós-liberdade. Eles já
cumprem a pena sem esperança, por isso têm muita
dificuldade para assimilar os serviços de assistência
oferecidos, ficando apenas condicionados às normas e regras
institucionais. Sabemos que nosso esforço quanto ao
sucesso de sua reabilitação é em vão, o mesmo é condicionado e não conscientizado.”
As falas dos agentes entrevistados reforçam a observação,
anteriormente colocada sobre as ações desenvolvidas de modo fragmentado
pelos profissionais.
Quando o agente de segurança penitenciária afirma que “os
técnicos deveriam trabalhar em conjunto e não separados”, ele está se
referindo aos assistentes sociais e psicólogos. Evidencia-se na fala desse
agente que, embora o discurso ideológico quanto ao modelo CR seja pela
construção de prisão humanizada e que com a participação ativa da
comunidade os direitos do sujeito preso será preservado, permanece nesse
universo uma questão crucial: “disputa de poderes” e onde há disputa de
poderes, não há justaposição de ações, e toda e qualquer tentativa em se
construir uma política social que promova o desenvolvimento social e
humano do sujeito preso será infrutífera.
81 Considera-se egresso o indivíduo que cumpriu pena em prisões e foi colocado em liberdade por meio de benefícios processuais, tais como livramento condicional e regime aberto.
98
As considerações do agente denotam a fragmentação dos
serviços prestados, seja pelo Estado, seja pela ONG, fazendo com que os
profissionais em geral mantenham uma atitude pragmática, ou seja, uma
atitude voltada somente para o atendimento das demandas imediatas, sem
provocar reflexões e discussões quanto às conseqüências históricas das
ações imediatas.
Pontuamos, ainda, a opinião interessante de um dos agentes de
segurança penitenciária, quando diz que no CR o preso não é
“conscientizado e sim condicionado”, isto também nos chama a atenção
para com os resultados dos serviços de assistência desenvolvidos.
A fala do agente nesse caso nos traz a certeza da inexistência
dentro dos CRs de um projeto unificador de objetivos, métodos e
procedimentos, para a efetivação de uma política social que objetive a
emancipação dos sujeitos encarcerados, com vistas ao exercício de sua
cidadania.
É notório que após 05 anos de efetivo trabalho dentro dos CRs,
Estado e ONGs ainda não conseguiram formar uma composição de equipe,
a qual venha a ter posturas e atitudes interdisciplinares frente aos serviços
que devem ser executados. É possível observar que os profissionais vêm se
esforçando para o cumprimento de suas atribuições, contudo a atuação é de
apenas um grupo de trabalho: compartilham informações e definem
propostas e metas a serem atingidas, entretanto não conseguem operar
coletivamente as propostas, em face da demasiada preocupação em se
preservar o poder do Estado, e as atribuições delegadas a ele.
Mediante o explicitado até aqui, é necessário se fazer registrar a
visão dos indivíduos presos no CR em relação ao modelo de gestão prisional
que vem sendo instituído e os serviços de assistência a eles
disponibilizados.
As falas dos indivíduos presos sobre o modelo prisional CR são
fundamentais como elementos de análise. No entanto, nosso interesse ao
analisar as suas falas, não tem como foco enquadrá-las como crítica,
ingênua, alienada ou consciente, em relação ao processo de gestão prisional
instituído no CR, tampouco temos a pretensão de absolutizar suas falas,
99
mas sim apresentá-las sem o discurso “tecnicista” dos gestores e
executores desse sistema prisional.
Nosso interesse, ainda, é dar voz aos indivíduos presos e
sistematizá-las a partir do conjunto de questões indagadas aos
entrevistados.
Tendo como referência a visão dos entrevistados,
desenvolveremos a análise identificando as contribuições que o modelo CR
vem operando na vida dos entrevistados.
É importante retomar o esclarecimento de que entrevistamos
apenas um sujeito de cada CR visitado, totalizando três, os quais
apresentavam o seguinte perfil:
- Idades entre 28 a 35 anos,
- Escolaridade em nível de segundo grau incompleto, tendo um
deles cursado até o segundo ano de administração de empresas,
- Estado civil: amasiados
- Reincidentes em prisões
Todos já haviam cumprido penas em outras prisões, consideradas,
essencialmente estatais. Os sujeitos entrevistados gozavam de amplo acesso à
administração dos CRs por desenvolverem atividades laborterápicas em
setores administrativos ou serviços de manutenção e limpeza. Este fator é
significativo na medida em que, por circularem em todo o espaço
institucional apresentavam uma percepção mais ampliada do espaço
prisional e da dinâmica intraprisional.
Selecionamos algumas respostas do conjunto de questões
elaboradas aos entrevistados, para retratarmos a sua fala, pois entendemos
que essas falas reproduzem as suas visões quanto ao processo prisional
que vivenciam e os serviços de assistência que lhes são oferecidos.
Primeiramente, indagamos aos entrevistados: Como o senhor vê o
trabalho que o Serviço Social vem desenvolvendo junto aos indivíduos
presos?
100
As falas dos reeducandos:
“Não acho bom, vejo pouco esforço dos assistentes sociais,
no sentido de atender e resolver os casos que a elas são
encaminhados. Não é feito trabalho em grupo e também as
famílias não são atendidas, ficando fora do nosso contexto.
Acho impossível falar em Serviço Social junto ao encarcerado
sem fazer visitas às famílias daqueles que mais necessitam
de serviços”.
“Aqui o Serviço Social dá uma atenção especial ao preso e a
nossa família. Os assistentes sociais estão sempre
perguntando a nos se estamos bem, e, quando temos
problemas estes tentam nos apoiar para que possamos
solucioná-los, mostram a nós que temos sempre
possibilidades. Este apoio nos deixa tranqüilo e com
esperanças para cumprir nossa pena”.
“Tenho acompanhado de perto o trabalho realizado pelo
Serviço Social, junto aos presos e nossos familiares. É
admirável o empenho dos assistentes sociais em procurar
tornar mais humana a pena do reeducando e fazer com que
este tenha um projeto de vida, visando à liberdade futura.
As expressões trazidas deixam claro a necessidade de os
profissionais de Serviço Social desenvolverem ações voltadas às famílias,
à comunidade e aos próprios indivíduos. A crítica e os elogios em relação
aos serviços não deixam dúvidas quanto à demanda viva a ser trabalhada
no universo prisional dos CRs.
Note-se que o efetivo trabalho social a ser desenvolvido pelos
assistentes sociais é visto como de fundamental importância, haja vista que
tais profissionais têm a competência técnica para desenvolver serviços
101
propiciadores de reflexão, discussão e elevação da capacidade crítica dos
sujeitos demandatários dos serviços.
Promover junto aos sujeitos presos ações que elevem sua
capacidade de compreender sobre seus direitos, abrir espaços dentro da
instituição para que os sujeitos possam manifestar sua opinião deve ser o
ponto de partida para o Serviço Social prisional.
Os programas desenvolvidos dentro dos CRs devem focar o
indivíduo e suas relações sociais, político e culturais, objetivando não sua “ressocialização”, mas sim o desenvolvimento de sua capacidade em se autopromover como sujeito detentor de direitos e deveres. Conforme já mencionado, vários estudos apontam que todos os
programas que adotem como meta a "ressocialização" do indivíduo já “nasce
morto”, ou seja, sem possibilidade de germinar as sementes lançadas.
Toda expressão criada dentro do sistema prisional com o prefixo
“re” gera a idéia de retorno a uma situação anterior de normalidade:
recolocação social, recolocação familiar, reeducação, readaptação, reajuste de conduta, e outros tipos de expressões que passam a idéia de voltar a ser.
Conforme referimos anteriormente, Alessandro Baratta propõe a
substituição do termo "ressocialização" por "reintegração social", objetivando
perseguir o efetivo trabalho de assistência aos presos. Este trabalho deve
promover seu reingresso na sociedade.
Assinala Baratta que o termo “reintegração social” pressupõe o
processo de abertura do cárcere para a sociedade e de abertura da
sociedade para o cárcere. Por meio desse processo, o cárcere será cada
vez menos cárcere, haja vista que com a derrubada dos muros prisionais
entre a sociedade e os presos, a inter-relação ocorrerá e isso fará com se
altere a visão da sociedade sobre o indivíduo chamado por essa mesma
sociedade de criminoso.
Nesse sentido, entendemos que nas considerações de Baratta
está a chave para a eficiência e eficácia dos serviços de assistência aos
indivíduos que cumprem pena nos CRs. É possível buscar alcançar o real
processo de promoção humana e social dos indivíduos, contudo todos os
membros envolvidos: Estado/sociedade e usuários carecem de novas
102
posturas e atitudes para a construção de pedagogia sócio-educativo-político-
cultural a ser desenvolvida, na qual sem dúvida alguma a família do sujeito
preso deve ser pilar fundamental para o sucesso da reintegração social dos
indivíduos.
Note-se que em todas as expressões trazidas pelos indivíduos
presos entrevistados, a família aparece como o apoio fundamental durante o
encarceramento. A família aparece como esperança de vida. É através da
família que os indivíduos encarcerados encontram forças para sobreviver na
prisão.
Os entrevistados apontam a necessidade de se manterem e se
sentirem fazendo parte de suas famílias. Não querem simplesmente as
visitas de seus familiares aos finais de semana, querem também o apoio, o
amor, o sentimento vivo de que continuam membros efetivos dessa família.
Sentir o amor da família é essencial para a “reintegração social”
do indivíduo que cumpriu pena. A família representa para ele fonte de afeto
e apoio. É através da presença da família durante o encarceramento que o
indivíduo mantém a segurança emocional e procura preservar seus
sentimentos e valores positivos, além de elaborar projetos de vida positivos
para pós-liberdade.
Nesse sentido, é de suma importância que os profissionais da
área de Serviço Social foquem o olhar para a família do preso, propondo
ações que estimulem a participação da família durante o processo de
encarceramento. A família é para o preso o elo mais concreto entre o mundo
prisional e o mundo social.
No entanto, infelizmente, podemos garantir em razão dos 20 anos
de experiência profissional dentro do sistema prisional que os profissionais
que atuam nas áreas de Serviço Social dão pouca ênfase a participação da
família no processo de “reintegração social” do indivíduo, uma vez que para
desenvolver ações junto à família é necessário que se instituam plantões
sociais aos finais de semana, único momento em que teremos condições de
abordar a família: conhecer suas necessidades, suas histórias e envolvê-las
nas ações que têm como objetivo a “reintegração social” do indivíduo.
Entretanto, se formos fazer uma pesquisa nas unidades prisionais
entre os profissionais de Serviço Social para saber se estão dispostos a
103
realizar plantões sociais aos finais de semana, dificilmente encontraremos
quem se disponha ou possa trabalhar aos sábados e domingos
Outra preocupação nossa durante a pesquisa foi indagar os
entrevistados se o CRs, em razão da parceria Estado e ONGs, poderiam
ser pensados como “novos modelos de gestão prisional” e em quais
aspectos este modelo poderia estar superando as prisões, essencialmente
estatais.
Mediante as expressões trazidas pelos sujeitos entrevistados,
não será necessário desconstruir o discurso deles para entender os seus
sentimentos quanto ao modelo de prisão CR.
As expressões dos sujeitos da pesquisa revelam seus sentimentos
sobre a instituição prisão essencialmente estatal e a prisão CR de forma que
nenhum outro entrevistado consegue expressar. Nesse sentido, os
entrevistados valorizam o “estar cumprindo pena no CR” e a importância em
lá permanecerem durante todo o cumprimento de pena, afirmando que esta
prisão é para eles “um oásis no caótico sistema prisional” e que os serviços
oferecidos pelas ONGs lhes proporcionam oportunidades de cumprirem
suas penas, próximos à família e com dignidade.
É interessante a relação que um dos entrevistados faz entre o
sistema CR e o sistema tradicional, quando diz que:
“O sistema penitenciário tradicional é falido, antigo. As
penitenciarias tradicionais nada mais são que fábricas e ou
faculdades de criminosos. Bandidos perigosos ficam
misturados com presos que cometeram delitos leves. O preso
que só sabia furtar residências, sai da prisão conhecendo
todas as formas de assaltar bancos, seqüestrar pessoas.
Vejo, no CR que tem recursos financeiros e profissionais
qualificados para o nosso atendimento, está superando os
modelos tradicionais, nas áreas de trabalho, alimentação,
atendimento jurídico e social.”
Esse mesmo entrevistado afirma “com toda a certeza, os Centros
de Ressocialização devem ser os novos modelos para o sistema
penitenciário.”
104
O entrevistado faz esta afirmativa com ênfase, isto porque até
pouco tempo dentro do sistema prisional era inconcebível a idéia de que o
sujeito preso pudesse colaborar nos serviços de segurança e disciplina, sob
a supervisão dos poucos agentes de segurança e disciplina que atuam nos
CRs.
Nos CRs os reeducandos colaboram em todas as atividades,
desde a área de vigilância, ao plantio de hortaliças, preparo das refeições,
limpeza e conservação das instalações e inclusive em serviços burocráticos
que envolvem cálculos de penas para elaboração de benefícios processuais,
informática, etc.
É natural nos CRs quase todos os reeducandos, assim chamados,
entre si, desenvolverem serviços considerados “importantes”, o que contribui
para a elevação e fortalecimento da sua auto-estima, principalmente perante
seus familiares.
O fato de os reeducandos contribuírem de boa vontade em todas
as atividades dentro dos CRs demonstra tanto ao Estado quanto as ONGs
que o indivíduo preso está disposto a ser também protagonista na gestão da execução de sua pena e não um simples espectador.
Segundo os reeducandos entrevistados, a possibilidade oferecida
pelos CRs de serem protagonistas do seu processo de cumprimento de
pena desenvolve neles o senso de responsabilidade e autodisciplina,
gerando o respeito pela "família prisional e a família de origem”.
O tratamento que eles vêm recebendo nos CRs, no que diz
respeito à dignidade e preservação dos seus direitos humanos, faz brotar no
preso a sua capacidade de respeitar as leis e normas sociais, viabilizando,
assim, a assimilação dos valores morais e sociais positivos.
E, por último, perguntamos aos entrevistados qual era o seu sonho
idealizado para o pós-cumprimento de pena e novamente a figura da família
aparece como o pilar principal e necessário ao seu retorno à comunidade.
“Meu sonho é poder ver novamente a minha família unida e ter a
oportunidade de recomeçar minha vida junto a eles, sem cometer os
mesmos erros que cometi no passado”
“Meu sonho é conseguir ir embora logo, coisa que não acredito.
Ter de volta aquilo que tive no passado: dignidade, vontade de trabalhar e
105
ter oportunidade profissional e ter de volta minha família, a qual tem me
dado muita força aqui dentro”
“Meu sonho é poder voltar ao seio de minha família e retomar a
criação e educação de meus filhos. Voltar a trabalhar na minha profissão,
coisa que fiz a vida inteira”.
Todos enfatizaram novamente a importância da família como
esteio imprescindível ao seu recomeço em liberdade. Depositam na família a
esperança de viver um amanhã melhor, fazem projetos positivos e contam
com o apoio dos filhos e da esposa para a concretização do seu sonho.
Por outro lado, um dos entrevistados parece esmorecer na
esperança de sair logo da prisão, pois, como já discutido anteriormente, a
prisão por mais humanizada que seja é prisão, sempre irá tolher o direito de
ir e vir dos indivíduos, privando-os de sua liberdade.
Refere o entrevistado que seu sonho é “conseguir ir embora logo,
mas não acredita que isso ocorrerá”, ao mesmo tempo quer conseguir ter de
volta o que tinha no passado “dignidade, vontade de trabalhar, a família”
A fala do reeducando reflete o desejo em retomar o que não foi
permitido adentrar a prisão. Sua fala é extremamente significativa,
reforçando a necessidade de os profissionais que atuam nas ONGs,
juntamente com o Estado desenvolverem ações que envolvam a família,
principalmente ações que estimulem no sujeito o desejo de continuar lutando
e acreditando que, apesar das dificuldades que enfrenta na prisão e que
deverá enfrentar quando em liberdade, pode, com sua autodeterminação,
vencer as barreiras muitas vezes interpostas pela própria família e
sociedade. Nesse sentido, o Serviço Social, tem papel importantíssimo a ser
desenvolvido junto aos indivíduos que cumprem pena nos Centros de
Ressocialização.
106
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do exposto não se deve depreender que o modelo prisional CR,
dado a sua natureza de parceria entre Estado e sociedade civil, vem sendo
dentro do sistema penitenciário do Estado de São Paulo uma instituição que
tem garantido os direitos humanos e sociais do homem preso, uma vez que
por este estudo elaborado, foi possível perceber relações ambíguas e
contraditórias que envolvem essa parceria, denotando a necessidade de os
executores desse sistema, repensarem os mecanismos operacionais que
vêm sendo utilizados na gestão da dinâmica intraprisional. Esses
mecanismos precisam ser repensados, à luz de uma clara concepção dos
objetivos que se esperam alcançar, quanto ao atendimento das demandas
apresentadas pelos sujeitos que cumprem pena nos Centros de
Ressocialização.
Contudo, denota-se que os protagonistas sociais que atuam e
vivenciam o modelo CR estão construindo uma política de humanização da
pena própria e muito peculiar a esse sistema, tendo em vista o baixo número
de presos que são custodiados. No entanto, a reflexão sobre a gestão dessa
política, nesse nosso estudo revelou uma dinâmica complexa e contraditória
aos discursos idealizados, haja vista a permissibilidade quanto à reprodução
dos mesmos mecanismos repressores e alienantes desenvolvidos nas
prisões puramente estatais.
A reprodução nos CRs dos mecanismos utilizados nas prisões
estatais implica, como resultado, concepções fatalistas e predeterministas
de que ordem e disciplina e ações sócio-educativo-culturais não podem
caminhar juntas, legitimando o poder repressor em detrimento das ações
emancipadoras.
É preciso que os protagonistas desse sistema CR que, como
vimos, é bem diferenciado do sistema prisional tradicional, percebam o jogo
heterogêneo e complexo dessa parceria e juntos encontrem caminhos
alternativos para a superação de concepções conservadoras e
disciplinadoras que vêm se sobrepondo às concepções humanistas desde a
gênese dos institutos prisionais.
107
É necessário, ainda, que os gestores e executores do sistema CR
construam e reconstruam estratégias mediadoras que permitam ao sujeito
preso se autodesenvolver em busca do exercício de sua cidadania. Nessa
mesma perspectiva, entendemos que deve ser este o projeto ético-político e
social a ser perseguido pelos profissionais da área de Serviço Social que
atuam nos CRs. No entanto, suas falas durante a investigação
demonstraram que a dinâmica intraprisional dos CRs é permeada pela
ordem e disciplina e certamente o indivíduo preso não está tendo o direito de
“fazer opções e escolhas”, no sentido de se reconstruir e construir novos
projetos de vida, objetivando o exercício de sua cidadania.
Com esse novo propósito ético-político e social, entendemos ser
fundamental que os funcionários do Estado e os das ONGs se
compreendam e se reconheçam como protagonistas de um “novo modelo
prisional”, e não como reprodutores dos modelos prisionais estatais. O
modelo CR a ser construído tem que ser melhor que as prisões que temos.
De fato, sabemos que as prisões estatais estão falidas pela sua ineficácia
quanto à humanização da pena e ações que promovam socialmente os
indivíduos custodiados.
É essencial que todos os profissionais envolvidos se reconheçam
como sujeitos capazes de provocar mudanças significativas no malfadado
sistema penitenciário brasileiro. Mas para que isso ocorra é preciso a
alteração de posturas profissionais. É necessário que todos os envolvidos se
comprometam um como o outro, no que diz respeito à missão, aos objetivos
e às metas. É importante que a abordagem de trabalho de cada um seja
clara a todos e bem definida metodologicamente. Para que isso ocorra, cada
membro deve adotar atitudes de confiabilidade ético-profissional e todos
devem assumir plena responsabilidade pelas propostas que tenham como
meta atingir as atribuições postas no Decreto nº47.849/2003, atribuições
estas que definem claramente a política social a ser adotada dentro das
unidades CRs.
108
No tocante aos profissionais de Serviço Social, entendemos que
as ações que vêm sendo desenvolvidas pelos assistentes sociais devem ser
repensadas, e adotadas algumas ações que abordem as famílias, uma vez
que a família, em vários momentos das falas dos entrevistados presos, se
fez presente, denotando a necessidade de o Serviço Social mediar as
relações: família/preso, objetivando o sucesso de sua “reintegração social”.
Registro aqui algumas indagações aos profissionais de Serviço
social: Como desenvolver programas sociais dentro das prisões CRs, sem
abordagem familiar? Como conhecer os indivíduos presos nos CRs, sem
conhecer suas histórias familiares?
Entendemos que os plantões sociais aos finais de semana devem
fazer parte das propostas de trabalho. Aos finais de semana é que as
famílias visitam as prisões, por isso, para os assistentes sociais, o sábado
ou o domingo é o melhor dia para conhecer a realidade da família e
perceber a relação que esta mantém com o indivíduo durante seu
aprisionamento daí a importância de envolvê-la nas propostas que visem à
reinserção do indivíduo na comunidade.
Finalizando, pontuamos que, muito embora as expressões trazidas
pelos sujeitos que cumprem pena nos CRs sejam de que estes estão sendo
para eles um oásis no imenso sistema penitenciário brasileiro, sistema
este falido e permeado por mecanismos legitimados pela lógica repressora e
não conscientizadora, é factível a ineficiência e ineficácia dos serviços
oferecidos pelas ONGs dentro dos CRs, no quesito: promover para o
exercício da cidadania,.
Compreendemos que a falta de conhecimentos técnicos e muitas
vezes teóricos dos membros que compõem a cúpula das ONGs, e dos
próprios funcionários gestores, impedem o avanço de propostas
emancipadoras, visto que se permitem vivenciar uma relação de parceria
contraditória entre o discurso ideológico dos gestores, executores, da
Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo e o poder
dominante estatal .
109
No entanto, conforme discutido ao longo deste estudo, gestores e
executores desse modelo prisional, embora, ainda, não tenham conseguido
encontrar os caminhos alternativos para trabalhar os indivíduos na
perspectiva de prepará-los para o exercício da cidadania, conseguindo, por
ora, somente doutriná-los no sentido de se adequarem às regras
disciplinares, integrando-os e adequando-os a padrões que são desejados
institucionalmente. Na realidade, o tratamento humanitário e respeitoso
disponibilizado nos CRs tem sido fundamental para a valorização e
dignidade dos indivíduos.
As condições de vida social dos indivíduos durante o cumprimento
de pena no CR, face à participação da comunidade, sem dúvida são
melhores do que as condições de vida daqueles que estão reclusos nas
prisões superlotadas, sem lugar para todos, onde muitos dormem no chão
ou sobre colchões imundos. O espaço no chão não é suficiente para todos, o
meio ambiente é insalubre, os doentes na maioria das vezes são misturados
com os sadios, os serviços de saúde, jurídico, assistência social e
psicológico são precários e acima de tudo a falta de consideração pela
dignidade humana dos presos é visível a qualquer olhar.
Ao concluir este estudo não tivemos a pretensão de esgotar o
tema, pois o sistema prisional CR é novo no debate acadêmico e se revela
por demais complexo e carente de conhecimentos acumulados. Deixamos
aqui inúmeras questões que merecem respostas a partir de novas
investigações, para, quem sabe, outros profissionais buscarem encontrar
essas respostas no universo heterogêneo e complexo que são as
instituições prisionais.
110
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