Cosmoviso Africana no Brasil: Elementos para uma Filosofia
Afrodescendente - Eduardo David de OliveiraJun 30, '05 11:20 AMby
Cassius for everyone
INTRODUO Quanto mais acirra-se o sistema de excluso social no
planeta, mais torna-se urgente encontrar outros caminhos para a
organizao da vida e da produo que garanta o bem viver de todos e de
cada um. O Sistema do Capital, pretensamente universal e realmente
imposto ao mundo todo, tem como fundamento uma cosmoviso
essencialista, excludente e individualista, caucada no princpio da
identidade, nos processos de legitimao formal e na poltica de
dominao. A excluso econmica e social legitimada por princpios
abstratos que, no plano do discurso, justifica ideologicamente o
estado de coisas que preserva e aumenta a injustia social em todo
planeta e no Brasil particularmente.Influenciados por uma cultura
ocidental - judaico-crist quanto aos valores, helenocentrista
quanto concepo, elitista quanto organizao social - somos levados a
pensar alternativas para o futuro, reificando o pensamento
escatolgico de encontrar o paraso no devir. Essa armadilha cultural
tem-nos privado de reconhecer nossa prpria histria e modelos
criativos que inventamos ao longo do tempo e em diversificados
territrios do planeta. Refns das dicotomias reforma-revoluo,
moderno-arcaico, progresso-tradio, no valorizamos os modelos
scio-econmicos e polticos-culturais fabricados pela complexa tradio
africana, que, no obstante, espalhou-se por todo o planeta levando
consigo uma cosmoviso includente, imanente, dinmica e
alterativa.Este livro tem como objetivo elucidar o que chamamos de
cosmoviso africana e sua atualizao no Brasil, refletindo sobre suas
consequncias polticas, sociais, econmicas e culturais na sociedade
brasileira. Pretendemos dar nfase na cosmoviso africana e nos
modelos decorrentes dela, uma vez que so modos de organizao social
realmente existentes que se erigem como manifestaes histricas e
contundentes que respeitam as diferenas e promovem a alteridade.
Aproveitando das contribuies da filosofia quanto da antropologia,
da histria quanto da sociologia, procuramos apontar paradigmas que
promovam o bem-estar social e no aqueles que lanaram nosso planeta
numa crise sem precedentes na histria da humanidade. O motivo pela
procura de novas formas de organizao social so claros e aberrantes:
ou nos damos conta do momento de crise planetria que estamos
passando e descobrimos outros modelos de organizao da vida e da
produo que sejam includentes - que respeitem a alteridade e no a
aniquile, que seja tica e no cnica, que prime pela qualidade da
vida e no pela destruio do ecossistema - ou encontraremos o fim da
nossa espcie no modelo capitalista. Estamos nos primeiros dias da
guerra dos E.U.A. contra o Iraque. Essa uma guerra assentada na
cosmoviso ocidental que prefere aniquilar o outro a dialogar com
ele. o paradigma da destruio, da vontade de potncia, do desejo de
dominao que engendra atitudes desastrosas como a do governo
americano. Estamos no limiar da histria. Ou valorizamos sistemas de
incluso e valorizao da vida como o so os africanos e indgenas - ,
ou tornamo-nos refns e cmplices da concentrao do capital e da
universalizao da misria e da violncia. O Sistema do Capital, CMI
Capitalismo Mundial Integrado, organiza-se em torno de dois plos:
produo econmica e produo subjetiva, sendo que a ltima ocupa um
papel fundamental para a acumulao do capital. Geralmente
privilegia-se a anlise econmica em detrimento da anlise subjetiva.
No entanto, o capitalismo vale-se dos agenciamentos dos desejos e
da produo de subjetividades massivas para reproduzir o sistema do
capital, introjetando nos indivduos e grupos de indivduos valores
sociais prprios do sistema, aumentando com isso sua eficcia de
reproduo e adaptao a novas realidades. Elegendo-se a si mesmo como
Universo nico de Referncia, sobrecodifica os outros regimes
valorativos e apresenta-se como nico caminho para a organizao
econmica e social o que implica um sistema poltico e cultural
condizentes. Acontece que o CMI no o nico regime de signos
existente. Muito pelo contrrio, existe uma pluralidade de regimes
semiticos tanto entre culturas diferentes, quanto no interior de um
mesmo territrio nacional. Ocorre que o CMI hegemonizou o sistema
scio-econmico e poltico-cultural. Mas hegemonia no significa
onipotncia, predomnio no significa existncia exclusiva. Com efeito,
a cosmoviso africana configura-se num outro regime semitico
agenciando desejos e promovendo valores no mnimo antagnicos aos
agenciados pelo CMI. O Capitalismo Mundial Integrado, na sua
pretensa totalidade, no consegue evitar as linhas de fuga que se
desprendem de sua malha; linhas de fuga essas que potencializam a
criao de outros regimes semiticos. As linhas de fuga so vetores de
subjetivao que no esto dominadas pelo regime dominante de signos,
e, portanto, pode criar outros regimes semiticos. A mquina
abstrata, espcie de categoria-potncia, livre de qualquer
territorializao, a base da existncia das linhas de fuga e dos
vetores de subjetivao auto-referentes, contrastando com a semitica
significante que a semitica do CMI. Os regimes subjetivos, ento,
nascidos ou gerados atravs das linhas de fuga e das mquinas
abstratas, opem-se radicalmente ao CMI, uma vez que, denuncia a
flagrante falcia da semitica significante (semitica dominante), que
sempre redunda no prprio significante, jamais alcanando o
significado, instaurando, assim, a repetio do mesmo incessantemente
e ao infinito. a absolutizao do princpio de identidade. O regime de
signos dominante que originou o CMI estruturado sob os j referidos
equivalentes gerais. Tais equivalentes se manifestam na ontologia
(SER), na lingustica (SIGNIFICANTE) e na economia (CAPITAL),
sobrecodificando os outros universos valorativos. Esta lgica cria
as categorias binrias de certo e errado, bem e mal, deus e diabo,
sagrado e profano, puro e impuro, original e mestio, etc.,
desqualificando as diferenas singularizantes, vulgarizando a
complexidade do real e atacando as subjetividades ticas
auto-referentes. O problema dos regimes de signos significantes que
se auto-elegem como os nicos possveis, mas, como dissemos, as
linhas de fuga do margem aos regimes subjetivos - que so
polivalentes e diversificados, promovendo a alteridade, respeitando
as diferenas, reconhecendo os outros universos valorativos. Segundo
esse raciocnio, se o regime de signos dominante o CMI, ou seja, a
semitica do capital como semitica significante, as linhas de fuga
permitem-nos encontrar outros modelos semiticos que, ao contrrio do
CMI, promovam a justia social e a emancipao humana, bem como a
preservao do ecossistema planetrio. As linhas de fuga, portanto, do
margem para a criao de novos modelos. Por isso fomos frica anterior
invaso europia averiguar que elementos estruturantes haviam l que
pudessem servir de modelos dinmicos para a organizao da produo e da
vida no incio do sculo XXI. Esta discusso insere-se dentro de um
contexto mais amplo, que a dimenso eminentemente poltica na qual
este livro est inserido. No queremos recair no romantismo dos
sculos passados, muito menos nas teorias naturalistas da
Modernidade. Nosso intento apontar caminhos possveis de organizao
da vida, mostrando , depois de uma crtica ao Capitalismo Mundial
Integrado, como possvel alternativas desde a cosmoviso africana.
Recuperar os elementos estruturantes dos Grandes Imprios Africanos
e verificar como na histria do Brasil eles foram atuando de maneira
a estruturar a cultura negra brasileira no tarefa das mais simples,
mas, de maneira sumria, procuraremos demonstrar como essa leitura
da histria dos africanos e seus descendentes no Brasil compatvel
com a discusso sobre a globalizao. Essa uma perspectiva crtica no
sentido de colocar em crise o sistema do Capitalismo Mundial
Integrado, e propositiva, no sentido de apontar caminhos baseados
na experincia afrodescendente. Este livro dedicar-se-, portanto, a
um desses universos de referncia que a Cosmoviso Africana construda
com sabedoria e arte pela tradio e atualizada com sagacidade e
coragem por seus herdeiros. A herana da cosmoviso africana altera a
discusso sobre a identidade brasileira. Com efeito, os
afrodescendentes foram alijados de sua terra de origem, por um
lado, e menosprezados em suas terras de ocupao, por outro. Negados
ontologicamente em qualquer parte do mundo, suas culturas foram
rotuladas como atrasadas, animistas, folclricas, brbaras,
primitivas, o que evidencia o racismo a que foram historicamente
submetidas a populao africana e seus descendentes. No Brasil, a
teoria do branqueamento, a defesa ideolgica da democracia racial, o
ocultamento da realidade desfavorvel aos afrodescendentes, denota a
falcia da convivncia harmoniosa entre as raas e a mentira da
ausncia do racismo em terras brasileiras. Seria um engano conhecer
o Brasil sem conhecer a histria dos afrodescendentes. Seria um
engodo compreender o Brasil sem antes conhecer a frica. Seria uma
lstima procurar entender a realidade social brasileira sem
compreender a realidade racial do pas. Combater a discriminao
racial no tarefa exclusiva do poder judicirio. preciso re-pensar a
histria brasileira a partir do legado africano. Sem isso,
perderamos em profundidade e qualidade o conhecimento sobre ns
mesmos. A brasilidade, em muito, tributria da africanidade. As
africanidades re-desenham e re-definem a identidade nacional e, com
isso, o projeto poltico, econmico e social brasileiro. Ainda que o
discurso acadmico e poltico tenha excludo, durante sculos, a
experincia africana no Brasil, sua influncia no deixou de exercer
papel fundamental na construo desse pas. Chegou o tempo de ouvir
quem foi calado. Chegou o tempo, no de resgatar nossos contedos
culturais, mais de fazer valer, poltica e socialmente, nossos
valores civilizatrios, nossa forma cultural, nossos bens simblicos,
to rica e criativamente reelaborados pelos afrodescendnetes. Em
momentos agudos de crise urge ressaltar outros modelos de organizao
da vida. Em momentos de rigidez diplomtica e totalitarismo
beligerante, experincias de paz ganham fora e raiam no horizonte da
humanidade. Em momentos de massificao e repetio de sistemas
autoritrios, dinmicas civilizatrias construdas sobre a diversidade
impem-se com a fora do imperativo da incluso, da alteridade ..., da
vida! A identidade est inserida no jogo poltico que, por sua vez,
est enredado pelo mundo da cultura. No h ingenuidade neste livro.
No h romantismo. Escrevemo-lo no calor das lutas sociais, no ardor
dos desejos da construo da cidadania dos negros e no-negros, na
esperana de um mundo de paz, no compromisso com a causa dos
afrodescendentes, no empenho de fabricar, dia-a-dia e
incansavelmente, um mundo governado pela tica. assim que convidamos
ao leitor para adentrar na aventura desse livro, onde as fronteiras
culturais so continuamente transpostas, onde a forma convencional
de pensar frequentemente transgredida, onde persegue-se
obstinadamente o desejo de aprender com a diversidade das
experincias humanas. Convidamos ao leitor para ser parceiro na
trajetria dos afrodescendentes que souberam, num dilogo criativo
com o sistema de dominao, responder no com dio, mas ternura, no com
guerra, mas com sistemas de incluso, no com lamentos, mas com
atitudes esttico-sociais situao desumana a que foram submetidos. O
convite est feito. No apenas humanizar-se, mas africanizar-se
quanto a valores e formas de vida.
I.COSMOVISO AFRICANA: A frica antes da invaso europia. A
Cosmoviso Africana no surge fora do espao e do tempo. Pelo
contrrio, analisando a histria da frica que podemos identificar sua
dinmica civilizatria e a formao de sua Cosmoviso. A frica,
entretanto, continente grande demais e mltiplo em demasia em suas
expresses culturais. Por isso nos limitaremos a algumas regies
daquele continente, sobretudo ao Imprio do Gana, Mali e Songai que
tiveram sua existncia entre o sculo X e XV de nossa era. No possvel
aprofundar um trabalho como esse, sequer todas as nuanas destes
imprios, quanto mais da frica como um todo. Assim, quando nos
referimos frica, a uma poro do continente que nos referimos.
Consideremos, ento, os trs grandes Imprios Africanos que se
ergueram entre o sculo X e XV de nossa era. So eles: Gana (X a
XII), Mali (XIII a XIV) e Songai (XIV a XV), todos localizados
entre o Saara e o Sahel, obedecendo o deslocamento de ocidente para
oriente. Politicamente alternaram seu domnio na medida em que um
entrava em crise e o outro chegava a seu apogeu. Veremos, adiante,
como estes imprios surgiram sob o domnio de algumas etnias que
hegemonizaram a poltica e a milcia da poca. Por se tratar de um
perodo histrico muito vasto, nossa pesquisa utilizar o mtodo
macrossociolgico. Privilegiando as macro-estruturas, intentaremos
identificar os elementos estruturantes dessa sociedade,
consolidando sua histria atravs de uma perspectiva scio-estrutural.
Na medida em que perguntamos porque surgiram estes grandes imprios
na linha geogrfica ocidente-oriente, durante os sculos X e XV, sob
domnio de etnias determinadas, e, qual o contexto internacional
onde surgiram e, ainda, como funcionavam suas dinmicas polticas e
sociais, estaremos fornecendo as primeiras respostas como se formou
a Cosmoviso Africana. Uma anlise pormenorizada dos trs grandes
imprios africanos motivo para um trabalho de pesquisa que no cabe
esse livro e nem seu objetivo. A meta , como dissemos, ressaltar os
elementos estruturantes que nos permitem dizer que existia uma
unidade cultural na frica antes da invaso europia. H trs barreiras
epistemolgicas que teremos de vencer antes de entrarmos
propriamente na caracterizao dos trs grandes Imprios Negros. notrio
o fato da frica, durante sculos, ter sido excluda dos vrios saberes
desenvolvidos pela academia. Esta excluso fruto de preconceitos em
relao ao continente, e no raras vezes, tal excluso foi fruto da
mais vil discriminao racial. A inferiorizao que a frica e seu povo
vem sofrendo durante todos esses sculos constitui-se numa grande
barreira epistemolgica para se desenvolver pesquisas a respeito do
continente do Arco-ris[1]. No obstante o preconceito e a
discriminao racial que sofre este continente, seu povo e
descendentes, a frica continua sendo um continente onde a
diversidade e a multiplicidade de culturas vem sendo respeitada e
servindo, inclusive, de modelo de organizao para a vida. Para
elucidarmos alguns desses elementos, temos, portanto, que vencer
algumas barreiras epistemolgicas. A primeira barreira
epistemolgica, defendida at mesmo pelo filsofo Hegel[2], que a
frica no tem histria. Sendo um continente primitivo, onde no ocorre
mudanas, onde as estruturas sociais sempre permaneceram tribais, e
onde as inovaes jamais existiram, muitos autores, at o sculo XIX,
consideraram que a frica era um continente a-histrico, vivendo no
mais primitivo dos sistemas naturais. A segunda barreira
epistemolgica a ideolgica, que se resume, fundamentalmente, na
tentativa de mostrar que o continente africano fica fora da
histria. Ou seja, que monumentos bem como outras manifestaes
artsticas, assim como estruturas arquitetnicas que revelavam bom
nvel de desenvolvimento social e poltico em frica, foram construdos
por outros povos que no africanos, e, de preferncia, povos brancos
advindos do ocidente (fencios, persas etc.). Ou seja, segundo essa
concepo os africanos so essencialmente passivos, incapazes de, por
si mesmos, construrem a histria. A terceira barreira ainda mais
racista. o carter da miscigenao, que diz que a obra dos grandes
imprios negros e seus grandes feitos culturais e polticos foram
realizados por sujeitos no negros, ou, pelo menos, por sujeitos
miscigenados. Ou seja, mesmo reconhecendo que a frica possui e
construiu uma histria, tal histria, na viso dos defensores da tese
da miscigenao, s foi possvel porque no foram os negros ou pelo
menos no foram eles sozinhos que a construram. Este preconceito
contra os africanos foi tambm formulado da seguinte maneira: os
africanos do norte, miscigenados com os rabes, povo de tez branca,
possui histria uma histria islamizada, arabizada. J os africanos ao
sul do Saara seriam povos totalmente primitivos, vista que sua
miscigenao com povos brancos era praticamente nula. No de hoje que
o continente africano e seus habitantes sofrem com as teorias
racialistas. Seja pela negao da autonomia dos africanos, seja pela
desqualificao de sua histria, seja pela inferiorizao de sua
identidade, os africanos e seus descendentes so sistematicamente
negados em sua existncia. A mestiagem, na frica em geral e
especialmente no Brasil, tornou-se no apenas uma barreira
epistemolgica para a compreenso da dinmica civilizatria dos
afrodescendentes, mas tambm uma ideologia que embota as efetivas
relaes raciais neste pas, que, sem dvida, marcado por um racismo
exacerbado. O argumento binrio do puro/impuro, original/mestio,
branco (puro)/ negro (impuro)/ mulato (mestio) serviu como uma
poderosa arma de dominao da elite em sua maioria branca, masculina
e catlica. Nos anos 70, diz KI-ZERBO (1980), muitos historiadores
africanos quanto europeus, voltaram-se a uma pesquisa mais
cientfica da frica, o que equivale a dizer que buscaram superar os
preconceitos acima relacionados. Isso deve-se, pelo menos, a dois
motivos: 1) subjetivo: pois existe o desejo de encontrar uma
identidade africana; 2) objetivo: pois a independncia de vrios
pases africanos traz de volta ao cenrio poltico estas questes.
Estas mesmas questes so fundamentais para discutirmos a cosmoviso
de matriz africana no Brasil, pois o problema da identidade
africana e dos descendentes dos africanos bem como as questes
polticas que permeiam a histria dos negros na frica e no mundo
estaro sempre presentes no decorrer deste trabalho. Na verdade,
esse texto estar sempre em torno da questo cultural e da questo
poltica. Se privilegiamos analisar os trs grandes Imprios Africanos
foi porque eles nos do uma exemplar idia da dinmica cultural
africana antes da invaso europia. Estrategicamente os escolhemos
por se tratar de um exemplo histrico, capaz de fornecer-nos dados
suficientes para a tese da manuteno de uma cosmoviso africana que,
muito embora a distncia no tempo, atualizada nas manifestaes
culturais dos afrodescendentes, bem como em seu modo de organizar
suas instituies atualizando, no cotidiano, sua cosmoviso originria.
Aspectos Histricos Antes de falarmos dos Imprios Africanos,
especificamente, convm contextualizar a frica ao Norte e ao Sul do
Saara, a fim de termos em mente a situao geogrfica e poltica de
onde surgiram os grandes Imprios Negros. O deserto do Saara o que
divide a frica negra da chamada frica branca. O Saara est em
constante expanso, e vai obrigando os povos do Sul a recuarem.
Acima do deserto do Saara ocorreu a invaso islmica. Estes povos, de
fentipo mais claro, continuamente empurraram bolses de populao
negra para o sul da frica. por isso que divide-se o continente em
frica do Norte (frica Branca) e frica Negra (ao Sul). Esta diviso
ocorre, pelo menos, desde o sculo XVIII. Vale dizer que a relao das
duas fricas , por vezes, de confronto, e s vezes, complementrias.
Nesta regio da frica (da faixa que congrega tanto a regio desrtica
do Saara quanto a regio de Savana do Sahel) a populao, em sua
maioria, nmade e se dedica ao comrcio. a que os grandes imprios
africanos iro germinar e expandir-se. Antes da invaso islmica,
havia a escravizao dos africanos abaixo do Saara, mas a escravizao
era diminuta. Com a invaso rabe este processo se intensifica e
ganha uma justificativa ideolgica: a converso dos pagos para o
islamismo.Com efeito, havia escravido na frica antes da chegada dos
rabes e europeus. Porm, h diferenas notrias entre o que se chama de
escravido africana antes e depois da invaso islmica e europia.
Antes da formao dos grandes imprios, na regio ao sul do Saara,
tnhamos o deslocamento de populaes inteiras, que procuravam outros
territrios para ocuparem, o que provocava guerras tnicas entre os
cls, famlias-aldeia ou cidades-estado. Desses confrontos resultavam
os prisioneiros de guerra, que, dentro da viso de mundo africana,
no eram obrigados a rejeitar seus deuses, perder suas lnguas ou
alterar seu modo de produo. O escravo se integrava ao cl, famlia ou
cidade-estado. Ou seja, havia o Patriarca, o Antepassado, os
Filhos, os Empregados e os Escravos. A diferena da escravido em
frica e na Euro-sia, que na dinmica civilizatria europia o escravo
coisificado em sua existncia, passando a ser tratado como coisa
(res) - podendo ser, por isso, explorado como a um animal ou, como
foi o caso do Brasil, explorado mais que a um animal[3]. A
experincia civilizatria europia teve como propulsora uma cosmoviso
de mundo assentada em valores individualistas, burgueses e
liberais, que privilegiava o acmulo de capital e no a distribuio de
riquezas. Assim o escravo era tido como uma mercadoria a mais na
rede comercial que sustentava o processo civilizatrio ocidental. Na
frica, por outro lado, o escravo ocupa outra funo no interior do
circuito escravocrata. Geralmente sendo prisioneiro de guerra, o
escravo integrado na dinmica da etnia que dominou seu grupo de
origem. Ele incorporado dentro deste sistema. Ele no nadificado na
valorizao de sua existncia. Ele no transformado em mercadoria ou
instrumentalizado para aumentar o acmulo de capital. H, inclusive,
o caso de um escravo que chegou a Rei em uma das monarquias
africanas. Enfim, so culturas diferentes que tratam seus
subordinados de maneira diferentes, resultando num grande erro o
emprego equivalente da palavra escravo para a situao africana e
para a situao europia. Defendemos, a partir de uma leitura
macrossociolgica, que os Imprios Africanos que se ergueram na faixa
Saara, Sahel e Savana, funcionou como parapeito para inibir a
dominao do sul da frica pelos rabes. A formao dos Imprios foi uma
estratgia de defesa e uma resposta crtica islamizao imposta pelos
berberes. A populao dessa regio migrou massivamente em direo ao
sul, fugindo ao processo de homogeneizao do islo, que no af de sua
cruzada econmico-religiosa, dizimou muitas etnias. Era uma fuga da
escravizao. Tanto em Gana, como no Mali e no Songai ocorreu a
islamizao. Acontece que essa converso ao islo fora superficial,
pois apenas as elites governantes se converteram. A maior parte da
populao, sobretudo a rural, permaneceu fiel s religies tradicionais
africanas. Cronologicamente os Imprios vo surgindo no sentido
ocidente-oriente, se contrapondo s rotas de escravizao rabe. A
dominao rabe, sabido, no tinha apenas uma motivao religiosa para
invadir aquele territrio, pois quem controlasse o comrcio
asseguraria a hegemonia poltica e econmica da regio. A regio do
Sahel uma zona de intensa troca de mercadorias. De um lado, temos a
influncia da frica Negra, que conserva as matrizes africanas, de
outro, temos a influncia da frica Branca[4], predominantemente
rabe. No foi por acaso que os trs grandes Imprios Africanos
surgiram entre o Saara e a Savana. Alm dos interesses econmicos e
religiosos, h explicaes poltico-culturais. Ao sul da frica temos
outros tipos de organizao social e poltica dada a tradio de povos
como os yorubs, por exemplo, que organizavam-se politicamente em
torno de cidades-estado. Urbanizados, os yorubs detinham a arte da
metalurgia e podiam proteger-se em unidades polticas menores e
independentes. J os povos da faixa Saara-Sahel, habituados ao
nomadismo, construram os grandes imprios somente quando foi
necessrio combater a progresso rabe. Enquanto na frica do Norte a
formao dos imprios est imbuda da concepo de mundo rabe, onde existe
a imposio de uma verdade religiosa (Islo) e econmica (modo de
produo rabe), gerando uma poltica de dominao, na frica ao Sul do
Saara ocorreu outro processo - indito -, onde as etnias de
territrios circunvizinhos especializavam-se em funes produtivas
(agricultura, caa, pesca, pastoreio, metalurgia), enquanto que a
etnia autctone era apenas dona da terra, dividindo o governo
poltico e militar com as etnias que chegavam. Isso gerava uma
poltica de cooperao. Os Imprios Africanos ergueram-se como
construes poltico-sociais fundamentadas pela cosmoviso africana.
Analisaremos os Imprios de maneira a ressaltar apenas os aspectos
relevantes para a elucidao da cosmoviso africana, por isso no nos
deteremos em detalhes ou aprofundamentos histricos importantes.
Nosso interesse, neste livro, compreender a dinmica civilizatria
africana e sua correspondente cosmoviso, ficando para outro momento
o estudo detalhado da histria africana[5].A primeira grande
resposta dos negros ao processo de islamizao africana, iniciou no
sculo VII com a soma de vrias etnias para formar o primeiro Imprio
Africano que aflorou apenas no sculo X. Imprio do GanaO Imprio do
Gana surge num lugar privilegiado, pois situa-se no ponto principal
da travessia do Saara em direo ao Sul. A cidade principal a capital
do comrcio do Gana, Walata. No entanto, o Imprio Gans no surge
apenas por causa da privilegiada localizao geogrfica e das rotas de
comrcio, pois tais rotas existiam a pelo menos desde o sc. III de
nossa era. O surgimento do Imprio do Gana, portanto, como j
afirmamos, surge como reao ao domnio islmico. Na verdade, a criao
do Imprio uma das respostas dadas expanso rabe, pois pode se
verificar um grande movimento migratrio para o sul da frica neste
perodo. A hiptese que os povos que viviam ao sul do Sudo Ocidental
fugiam do processo de escravizao, seja migrando para outras regies,
ou se organizando em estruturas estatais como o Imprio do Gana. O
Imprio surge a partir da convergncia de elementos geopolticos. Em
termos polticos a localizao do reino do Gana bastante estratgica,
pois onde se controla importantes rotas comerciais, que definem o
comrcio entre o norte e o sul da frica. O desenvolvimento aurfero
da regio, possibilitou sua concentrao de renda e tambm o domnio e
controle sobre regies vizinhas atravs de cobrana de tributos e
demarcao de territrios na regio. Alm disso, ressalta-se a busca de
mo de obra escrava, empreendido pelos povos berberes que dominavam
a regio do Saara. Aps a islamizao pelos rabes, h uma reordenao do
Imprio do Gana que passa a servir como uma barreira protetora,
inibindo a expanso islmica para o sul da frica. Com sua localizao
privilegiada, Gana, situada na faixa do Sahel, tem as condies para
o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio, que so
dinamizadas, criando um contingente de mo de obra especializada. Na
Zona do Sahel h uma forte produo de cereais. Essa produo
especializada permitiu que ocorressem dois fenmenos: 1) o
surgimento das cidades; 2) as estratificaes sociais. claro que no
cenrio econmico existem outras rotas para o comrcio. Mas em Gana
que se hegemoniza esse processo, e, por isto, tambm o controle
poltico. Isto no impede que haja disputa poltica na regio. A oeste
encontramos Takrur que rivaliza com Gana. H tambm o imprio de
Bangug[6], onde se hegemoniza a extrao do ouro. Gana no se
preocupou em anexar Bangug ou destruir Takrur; seu objetivo
principal era controlar a rota comercial. O que a regio do Sahel
exportava para o norte da frica era mais valioso do que o que
recebia, o que d a idia exata da fartura e da fora do Imprio Gans.
Apenas que a dinmica civilizatria dos rabes privilegiava a guerra,
a destruio , o proselitismo e a universalizao, enquanto a cosmoviso
africana privilegia a diversidade, a produo (riqueza), a lgica
prpria de cada lugar e os valores culturais de cada cl. So os
mandinga (etnia majoritria), atravs dos soninke (subgrupo da
etnia), que criam o imprio do Gana. A cidade de Kumbi-Saleh,
capital poltica do Gana, chega a ter nesta poca vinte mil
habitantes. Como vivem principalmente da agricultura e do
pastoreio, numa regio prodigiosa para a produo, a populao ganense
experimenta certa fartura, no padecendo de misria e falta de
estrutura social. O povo no passa fome - mesmo os camponeses -, e
os nobres se destacam da populao por causa do controle do ouro.
Quanto organizao social, so as relaes de parentesco consangneo que
estruturam a sociedade, proporcionando uma conjuntura poltica e
ideolgica que evidencia relaes de produo e, consequentemente,
estratificaes sociais. Antes, porm, da invaso islmica, a regio do
Gana estruturava-se em torno de uma organizao mui tradicional, ou
seja, de acordo com as linhagens matriarcais principalmente - ou
patriarcais. Com a formao do Imprio do Gana a estrutura social
passa a ser mista, coabitando o modelo tradicional e a organizao
urbana do Imprio. No cenrio poltico o Imperador constitui-se na
figura central do poder administrativo e religioso. Alm do mais era
ele quem controlava a produo e a comercializao do ouro. A riqueza
do Estado provinha do comrcio e da tributao, o que permitia o
bem-estar social relativo da populao. A poltica no Imprio est
assentada numa organizao central, com o poder centralizado na
figura do Imperador. A periferia do imprio, por sua vez, ainda que
considerada vassala em relao ao Imperador, tem uma estrutura de
poder descentralizada, e mantm suas tradicionais formas de
organizao. No interior do Imprio (e dos reinos perifricos) no havia
coero quanto a prtica de religies diferenciadas. O espao imperial
permitia a convivncia de diversas matrizes religiosas, ou seja, as
etnias no precisavam subordinar-se a uma religio hegemnica.Na regio
do Sahel h o cobre, a noz e o marfim. Estes produtos interviram no
modelo tradicional da estrutura social africana. Nas estruturas
tradicionais a diviso dos bens de produo era de acordo com os cls,
que recebiam equanimamente, ainda que respeitando o princpio da
proporcionalidade, os produtos, pois o Rei precisava distribuir
igualitariamente a riqueza para manter sua autoridade e prestgio.
Com a intensificao do comrcio, a distribuio da riqueza passou a no
ser to igualitria e abalou a estrutura tradicional, pois chocou-se
com os valores tradicionais da comunidade que, outrora, pautava-se
pela lgica da abundncia e, com a chegada dos rabes e o
desenvolvimento do comrcio, passou a ser regida pela lgica do
acmulo e concentrao da riqueza. Cria-se aqui um conflito entre os
nmades do deserto (pastores) e os habitantes do Sahel (povos
sedentrios). A rota do comrcio atravs do Saara, com a utilizao do
uso do camelo, era domnio dos berberes povo africano islamizado -,
que viviam segundo os modos de vida nmades, isto , no ocupavam
territrio fixo, no criavam instituies estatais e viviam basicamente
do pastoreio. J os povos do Sahel organizavam-se de forma muito
diferente: suas principais atividades econmicas era a agricultura
principalmente de cereais -, e construram instituies estatais,
devido a sua ocupao permanente de territrio. Por vezes essa relao
complementria, e por vezes elas so conflituosas. Com a invaso
islmica, entretanto, essa relao tensiona-se cada vez mais. Os
berberes so acostumados a armar estratgias de ataque ao Sahel e
voltar para o deserto. Essas so aes de rapinagem dos berberes. O
conflito entre os povos nmades (berberes) e os povos sedentrios (da
regio do Sahel) ocasionou um conflito poltico, pois dominaria
poltica e economicamente a regio quem controlasse a rota do
comrcio. Da surgiu o Imprio do Gana, no entrecuzamento de
interesses conflitantes de etnias locais, de povos distantes e,
tambm, como uma reao expanso rabe, que tambm tinha muito interesse
na rota do comrcio e no domnio da extrao do ouro, um pouco mais ao
sul de Gana.O Gana se afirma como Imprio no sc. X d.C., no mesmo
perodo em que os rabes consolidava o seu poderio. Ou seja, quando a
poderio poltico e militar dos almorvidas ficou mais forte, mais
forte tambm ficou o Imprio dos Malikes para lhe opor resistncia. O
imprio era formado por diversas etnias, governados por um rei que
possua o ttulo de Ghana senhor do ouro. J a terra era propriedade
de todos, cabendo ao rei a administrao dos conflitos, cumprindo o
papel de mediador - cuja funo principal era a de manter as
diferenas tnicas, o que permitia a relao de troca onde interesses
comuns do reino era privilegiado, no de forma consensual, mas na
medida do possvel garantido os princpios de justia.Uma
caracterstica marcante do governo no Imprio do Gana o regicdio[7].
O rei morto se ele se desvia do que foi comunitariamente
determinado pela sociedade. Pode acontecer dele ser morto quando
atinge uma idade avanada, quando j no consegue desempenhar
eficazmente seu papel de liderana. O regicdio uma maneira de
exercer o controle poltico pela comunidade e obriga a seu
governante cumprir o que est estabelecido pelos conselhos de ancios
que apresentam os anseios da populao ao governo central. Se o
governo do Rei volta-se contra o bem-estar da populao, ento ele ser
o responsvel pelo mal estar social e dever, por isso mesmo, ser
eliminado.O Imprio Gans uma organizao poltica e culturalmente
complexa. Congrega uma grande diversidade tnica em torno de um
objetivo poltico comum: barrar o avano dos almorvidas para o sul da
frica. Apesar da elite do Imprio converter-se ao islamismo, todo o
Imprio mantm suas prticas religiosas tradicionais, o que nos faz
crer que a islamizao na regio do Gana foi superficial e atingiu
sobretudo as elites dirigentes. O que est em jogo, muito mais que
as conquistas religiosas so as conquistas econmicas. A formao de
uma brigada militar, por parte dos rabes, para dominar a explorao
do ouro, as rotas de comrcio do Saara e a produo agrcola do Sahel
sofreu uma resistncia da populao africana, que s foi possvel, graas
s suas idiossincrasias culturais de congregao de etnias, de
solidariedade continental, de fidelidade s suas religies e de
promoo do bem-estar social. Mas o grande Imprio do Gana sucumbe aos
ataques dos rabes. Eles fortalecem o poderoso exrcito almorvida e
investem massiamente contra os povos do Sahel, sobretudo a oriente
de Gana. Os berberes base do exrcito dos almorvidas - no atacam de
imediato a regio do Gana, pois ali se constitui um forte imprio.
Estrategicamente eles investem no processo de converso religiosa e
alianas militares. Eles intensificam as converses foradas ao negro.
Esta justificativa religiosa legitima os ataques dos rabes, que
buscavam hegemonia poltica e econmica na regio. Todo o sc. XI o das
investidas do exrcito almorvida, que, nesta poca constitui-se de
tribos berberes mais ocidentais: os azenegues, que controlavam o
trfico de escravos para o Marrocos. Para os berberes o islamismo
representava a possibilidade de resgatarem a hegemonia perdida
sobre os Estados Africanos. Para Takrur a aliana com os almorvidas
representou a possibilidade de suplantar a hegemonia maninke e, por
isso, converteu-se ao islamismo, selando uma aliana poltica e
militar com os rabes. Em 1042 Ibn Yacine organiza um exrcito de 30
mil homens e invade o Gana, impondo a derrota ao Imperador. Em
1076, Abu Bakr invade e vence o Gana ao mesmo tempo que os
almorvidas marcham para o norte, rumo ao Magrebe, graas fora
proporcionada por largos contingentes negros do Takrur e uma
revolucionria organizao militar. Em 1086 Yussuf lidera a fora
islmica, na Espanha, contra os cristos. O exrcito almorvida formado
de rabes e de negros convertidos. Com este contingente blico
poderoso eles avanam em direo ao Sul, procurando consolidar seu
domnio no Sudo Ocidental. No incio do sc. XII o poder almorvida se
estendia por todo litoral da costa ocidental africana, abrangendo
tambm o territrio que ia desde o rio Senegal at a Espanha. Pela
primeira vez na histria os povos do deserto se unificaram sob uma
administrao permanente. A imposio do islamismo, no sc. XI, pelos
almorvidas, intensificou o deslocamento de etnias negras (os Serer,
Volfo, Saracol, Bambara) para o sul do continente. Os deslocamentos
populacionais impostos pelo islamismo e o crescimento das disputas
pela hegemonia na regio levaram ao fim o Imprio do Gana. Imprio do
MaliCom a decadncia do Imprio do Gana, apareceu, no sculo XII, o
Imprio Sosso, tambm conhecido como Imprio do Mali, onde, claro,
dominava a etnia sosso, porm, com o consentimento das outras etnias
da regio. A formao dos grandes Imprios Negros obedecem sempre o
mesmo modelo: desenvolvem-se a partir da formao de Grandes Federaes
tnicas. O sec. XII conhecido como o sculo da turbulncia. Os
almorvidas, alm de seu poderio blico, primam pela pureza religiosa
e impem a converso a todas etnias dominadas. Foram exatamente esses
fatores que levaram derrocada o Imprio de Gana, a saber: 1)formao
de um exrcito islamizado, 2) converses de populaes negras ao
islamismo. O sossos se posicionam claramente contra o islamismo.
Eles se confrontaram com os berberes, que por conhecerem a rota do
comrcio e pela convivncia com os soninkes, quizeram dominar a
poltica do ex-imprio do Gana. Se em Gana a resistncia foi
camuflada, no Mali a resistncia foi explcita. No entanto h algo em
comum na resistncia invaso rabe: ela sempre hegemonizada por uma
grande etnia - os mandingas e soninkes, no caso do Gana, e os
sossos, no caso do Mali. importante notar que a demanda de
escravizao aumenta quando aumenta-se as guerras em uma regio. No
ato da queda do Gana, que j contava com uma grande populao, a
segurana torna-se frgil e a escravizao intensifica-se. Ns temos
dois tipos de reao aos rabes. 1) contraposio radical ao islamismo
(os sossos do Mali); 2) a assimilao superficial do islamismo (os
maninkes do Gana). Ou seja, no caso da assimilao tm-se, na verdade,
a estratgia da dissimulao, pois as populaes negras se revestem de
um verniz islmico para manterem suas prticas religiosas
tradicionais. Os Maninkes, Keitas, Camars, Konats e Tracrs
uniram-se para derrubar os sossos. Alm de interesses comuns na
regio controlada por seus adversrios (sossos) eles se reconhecem
pertencentes a uma mesma linhagem, o que possibilitar relaes
inter-linhticas tendo, como consequncia, uma organizao poltica nica
o que os torna uma grande potncia na regio. Eles se compem
basicamente de comerciantes, de caadores e de exotricos. Por isso o
interesse na regio do Imprio do Mali imensa. Neste contexto, os
maninkes que foram islamizados pelos almorvidas - entram em guerra
contra os sossos para obter a hegemonia do comrcio e o domnio
poltico na regio. Na verdade, os sossos foram suplantados pelos
malinkes no intuito de aliarem-se ao islamismo como estratgia para
vencer as disputas regionais, e no para abraarem fervorosamente a
ideologia do isl. na batalha de Querino que os sossos so
suplantados pelo exrcito de Sundiata (Maninke). A estrutura poltica
do Mali est centralizada no Mansa - o rei dos reis. Como no Imprio
do Gana, existem os governos perifricos e os governos aliados. A
vida do reino se baseia principalmente na agricultura, abrangendo
tambm a pastorcia (criao de gado), as rotas comerciais do Saara e
as atividades agrcolas na Savana (Sahel). O Imprio do Mali comea a
entrar em decadncia a partir do sec. XV. Isto ocorre por causa de
fatos polticos relacionados a eventos no interior da prpria corte.
Mas h outros fatores, mais profundos, que explicam a queda do Mali.
Sem dvida, o acirramento da disputa mundial entre islamismo e
cristianismo impeliu os rabes a dominar a regio do Sudo, tornando
mais massia a presena islmica no continente africano. A disputa com
o cristianismo fez com que o Islo procurasse manter e expandir seu
domnio na regio. No entanto, como h uma disputa entre essas
culturas religiosas monotestas, tambm o cristianismo manifestar
interesse em adentrar no Sudo. O Imprio do Mali, no obstante, passa
a ter que se defender no apenas dos islmicos pelo trajeto
transarico, mas tambm a se preocupar com os portugueses, pois eles
j sobrepujam a costa ocidental africana. As brigas internas da
corte aparecem como um epifenmeno, ou seja, surgem por causa da
instabilidade regional provocada pela conjuntura mundial. O sc. XV
outro sculo de turbulncia. Os conflitos se acirram. O Imprio do
Mali resiste at o sc. XVI. Ocorrem novas brigas internas entre as
etnias na tentativa de hegemonizar o comando da regio. Novamente,
neste perodo de guerras intensas, a frica tornou-se uma grande
fornecedora de escravos para o Mediterrneo. Desgastadas pelas
brigas internas e dilaceradas pelo trfico de escravos, o Mali
sucumbi.
Imprio do Songai O imprio do Songai representa trs
deslocamentos: 1) Territorial: no Imprio do Mali a rea ocupada era
a do Sahel, na linha da rota do comrcio. Havia grandes cidades como
Walata, Tombuctu, Jao e Jenn. Na formao do Imprio do Songai, por
sua vez, houve a necessidade de avassalar os reinados do oriente.
2) Organizao do Imprio: o Imprio do Gana era muito descentralizado
e disperso. Com o Songai temos uma estrutura mais burocrtica e
organizada. O poder queda-se, por vez, centralizado. Como h uma
intensificao da islamizao da nobreza, aumenta-se as contradies
religiosas e culturais da populao do Sudo. Frente s presses
externas h a necessidade de uma estrutura burocrtica e militar para
defender-se da invaso rabe. 3) Miscigenao tnica e estratificao
social: se no Gana predominava os Soninkes e no Mali os Mandingas,
no Songai j no h predomnio de uma etnia sobre outra. J no h a
hegemonia de uma nica etnia, mas sim a estratificao da sociedade em
classes sociais.A tradio poltica, entretanto, segue a tradio
africana. Os grandes rituais que reforavam a organizao poltica
continuavam sendo os das religies tradicionais da frica. Mesmo com
a intensificao das campanhas de converso para a f islmica, as
elites convertiam-se superficialmente. Do ponto de vista
macrossociolgico, h mais uma jogo de cena poltico nestas converses,
do que propriamente adeses religiosas.A base da organizao social no
Imprio do Songai a famlia extensa ou cl. Com essa estrutura de
organizao social explica-se porque no houve grandes desigualdades
sociais entre a populao camponesa do Imprio. Se na rea urbanizada
correspondente ao Imprio propriamente dito havia a estratificao
social, no campo a propriedade segue sendo coletiva, tendo seu uso
determinado pelas regras tradicionais das famlias. O que ir
desestruturar estes ncleos familiares sero as guerras. Mais uma vez
as guerras regionais e a conjuntura internacional vai intensificar
o nmero de escravizaes na frica, desta feita no Songai. Agora a
lgica prpria da escravizao africana transforma-se, uma vez que
contaminadas pela viso euro-asitica de escravido. Os escravizados
deixam de serem tratados como agregados das famlias para se
tornarem propriedades do Estado (rei). Adaptando-se a seu contexto
e respondendo s suas necessidades o Imprio do Songai burocratizou
suas atividades e fortaleceu o Estado centralizado. Assim, a produo
agrcola controlada, em grande parte, pelo Estado. Ele est imerso em
uma rede de tributao, o que o far dono de um grande contingente de
escravos.Apesar das bases culturais (religio, transmisso do poder
poltico, estrutura social baseada no cl, etc.) permanecerem ligadas
s tradies africanas, o Songai precisou responder s exigncias do
desenvolvimento do comrcio, antiga presso rabe e recente opresso
europia. O Imprio torna-se um hbrido curioso: por um lado adapta-se
s exigncias do comrcio internacional, perdendo sua caracterstica
tradicionalista de produo; de outro mantm a forma de vida
tradicional da populao camponesa. Cria-se aqui um dilema que no se
resolveu com a queda do Imprio do Songai. At que ponto possvel
resistir s presses internacionais que impem modelos de organizao da
vida e da produo em escala mundial? Visto de outro ponto: em que
medida essa imposio destri realmente as respostas que cada cultura
d a seus problemas sociais? O hibridismo cultural, em algum
momento, pode harmonizar essa tenso contnua? Os dilemas entre
formas tradicionais e atualizaes modernas seguiro problematizando a
compreenso da histria dos africanos em seu continente e das
respostas dadas pelos afrodescendentes em seus lugares de ocupao
depois da Dispora Negra, e as categorias de puro/impuro,
original/misturado etc. seguiro armando armadilhas ideolgicas para
a compreenso da cosmoviso africana...Aspectos Filosficos Os Imprios
Africanos, no caso de Gana, se formaram em contraposio expanso
rabe, no entanto, formavam-se de uma confederao de etnias, que
representava vrias culturas africanas organizadas em torno de um
nico Imprio dominado polticamente por apenas uma etnia, que
hegemonizou o poder na regio. No momento de constituio do Imprio do
Gana a etnia dominante a Soninke, do tronco dos Mandingas, no Mali
so os sossos que comandam a formao do Imprio. interessante notar
que sob uma aparente unidade de etnia, existia uma pluralidade de
concepes religiosas. J em lugares que no houve a presena islmica no
foram Imprios que se levantaram, mas cidades-estado ou outras
formas de organizao social. Ou seja, o povo do Sudo Ocidental
respondia s condies histricas de acordo com as circunstncias que se
lhe apresentavam. As cidades-estado eram centros de poder
multidiversificados e descentralizados. Um importante elemento que
encontramos na maioria das populaes africanas a no separao entre
natureza e poltica, poder e religio, ou seja, no h uma estratificao
entre estas camadas importantes da vida da sociedade. Tudo visto de
acordo com o princpio da integrao, onde os vrios elementos se
comunicam e se complementam. Outra realidade que gostaramos de
identificar o carter da integrao social que a viso de mundo
africana possibilita. Exemplo disso que a urbanizao no
anti-ecolgica veja que os palcios centrais se situavam no meio das
florestas sagradas -; outro exemplo, que nesse tipo de organizao
social-religiosa, o sujeito no individuado como vemos por exemplo,
no ocidente, a partir do esquadrinhamento da cincia -, mas faz
parte de um todo integrado, isto , o sujeito visto como parte do
todo. Os ritos de iniciao (socializao) so coletivos, e esta uma
caracterstica fundamental nos trs Imprios Africanos pois a, a
construo do sujeito d-se fundamentalmente no processo religioso. A
iniciao forma coletivamente a pessoa para a sociedade africana. H,
nisso tudo, uma sabedoria profunda. A fora sagrada eminente
natureza. Os elementos (bioritmo) determinado por essa conjugao.
Nestas sociedades no existe a dualidade homem/natureza. Tudo est
interligado, por isso tudo interage. O uno o todo e o todo uno. O
profano tem sua dimenso sagrada como o sagrado manifesta-se no
profano. No h escatologia. O tempo dos ancestrais o tempo passado e
o tempo do agora.As cidades formadas nesse perodo segue o padro
poltico do Isl mesclado cosmoviso africana: 1) urbanizao, 2)culto
religioso, 3) um bosque (floresta) sagrado (O palcio central
instala-se na floresta). Esse modelo de organizao poltica no
continente africano demonstra que: 1) h um hibridismo cultural
entre povos de matrizes culturais diferentes; 2) que a lgica
africana, dada a situao de dominao, sobrecodificou as instituies
polticas islmicas, revestindo com a religiosidade nativa as
instituies estrangeiras; 3) o princpio ecolgico fora preservado;
4)a resposta africana criativa e includente, pois utillizou-se das
instituies alheias para manter sua cultura de base e promover o
bem-estar de seu povo; 5) que a criao das cidades-estado no podem
ser vistas como uma evoluo da civilizao, e sim como uma forma
diferenciada de organizao como resposta a uma determinada
circunstncia.Quanto educao, p.e., o rei do Gana adotava os filhos
de outros reis para prepar-los para o governo e serem seus
conselheiros. Na tica de pensadores ocidentais isso tratar-se-ia de
um sequestro. Acontece que o filho de tal rei no era refm do
soberano de Gana. Ele era um pupilo a ser preparado para as funes
de mando e poder. Na tica africana, os inimigos no so estaticamente
definidos. Em tempos de guerra pode-se educar o filho do adversrio.
Isto realmente extraordinrio, pois a lgica, aqui, no a da aniquilao
do outro, mas a da valorizao de suas potencialidades. Um elemento
de carter mais geral, que refere-se a estrutura de organizao
poltica da frica que existem diversos modelos de organizao poltica.
Existem as cidades-estado, os cls (yps) e ainda outras maneiras de
organizao como a da confederao das etnias no caso do Imprio do
Gana, mas tambm do Mali e em certa medida no Imprio do Songai.
Gostaramos, nesse sentido, de elencar alguns elementos que
permitiro, posteriormente, a afirmao de uma identidade negra
trans-histrica: Nas cidades yorubs h uma referncia constante a uma
ancestralidade para explicar a origem de suas sociedades. A
organizao dessa regio marcada por uma forte autonomia. Ser,
portanto, no sul do Sahel, que encontraremos a maior parte dos
elementos estruturais com os quais deveremos montar nossa
identidade tnica. Os chefes so escolhidos de acordo com as
linhagens. Essa a estrutura de poder nesta regio. Na maioria das
vezes essas linhagens organizam-se em sociedades matrilineares. O
exerccio do poder administrativo do Rei ou Imperador controlado
socialmente pela comunidade, atravs de seus conselhos e sociedades
secretas (como as Geledes, por exemplo). O comrcio desenvolveu-se
nesta regio, criando estruturas estatais (cidades-estado). Mas as
cidades-estado no foram as nicas respostas polticas realidade
africana. Como a realidade diversificada, diferentes foram as
respostas sociais. Com isso queremos dizer que as comunidades
africanas responderam contextualmente s necessidades e
caractersticas de cada regio, tecendo uma variedade muito grande de
organizao poltica, jamais impondo um modelo de organizao
econmico-social, mas admitindo vrias expresses organizativas no
continente. A cosmoviso africana, com efeito, prima pela
diversidade e no pela imposio de modelos nicos. O exerccio do poder
simbolicamente centralizado, no caso das monarquias, no Ob (Rei) e
nos chefes das aldeias de sua etnia. No entanto, pragmaticamente, h
uma certa descentralizao do poder. Na realidade ele dividido entre
etnias variadas que se submetem politicamente etnia preponderante,
no intuito de exercer o poder poltico com maior eficcia. Ora, j
dissemos que a finalidade do exerccio do poder a promoo do
bem-estar da comunidade, havendo inclusive o regicdio como
mecanismo de controle social. Sendo assim, a organizao tradicional
da poltica africana preserva a autoridade do Rei, criando uma
unidade simblica entre a populao, muito embora o exerccio pragmtico
do poder esteja descentralizado entre as etnias que compem o reino.
Aqui no h dominao por eliminao, mas hegemonia por competncia. No h
uma poltica de destruio do outro. O que h a promoo da alteridade. A
diversidade de formas de organizao poltica realmente diversificada.
Os Ibs, por exemplo, organizam-se em torno das aldeias,
constituindo-se, portanto, em uma poltica de povoao - onde a aldeia
absolutamente autnoma, uma vez que no existe poder centralizado,
isto , no h Estado. Nesta regio h uma grande complexidade de
organizaes polticas. Quando, no sc. XV, os portugueses chegaram s
cidades do Benin, tiveram de reconhecer a superioridade da
urbanizao das cidades africanas. Porm, trs sculos de comrcio de
escravos desmantelaram parte significativa de sua estrutura poltica
e de seu desenvolvimento econmico. interessante notar que no foram
as sociedades estatais aquelas que mais resistiram colonizao. Foram
as organizaes nmades que resistiram com afinco dominao europia.
Isto um bom exemplo para no valorizarmos apenas um modelo de
organizao poltica, como a estatal, prestando ateno na
potencialidade de outras formas de estrutura de poder. Combatemos o
pensamento evolucionista que enxerga um desenvolvimento linear que
vai das sociedades nmades consideradas primitivas , s sociedades
estatais consideradas avanadas. Destacamos a conivncia de modelos
polticos diferentes na perspectiva de demonstrar como a cosmoviso
africana prima pela diversidade e singularidade das experincias do
real, sem reificar o evolucionismo, valorizando o modo prprio de
cada organizao poltica no contexto da lgica cultural de cada grupo.
Elementos estruturantes das sociedades africanas Feito um breve
levantamento histrico dos Imprios Africanos, interessa-nos, agora,
destacar os elementos que, em nosso entender estruturam aquelas
sociedades africanas, que antes da invaso europia tinha condies de
vivenciar sua cultura de maneira autnoma, apesar das muitas
influncias extrangeiras e das frices internas. A identificao desses
elementos um dos eixos centrais deste livro, pois so eles que nos
permitem a afirmao de que, em frica, h uma estrutura comum que
sedimenta a organizao social, poltica e cultural. Esses elementos
compem a cosmoviso africana, e, apesar das modificaes e rupturas,
seguem estruturando as concepes de vida dos africanos e seus
descendentes espalhados pelo mundo depois da Dispora Negra.
Universo Para o africano o visvel constitui manifestao do invisvel.
Para alm das aparncias encontra-se a realidade, o sentido, o ser
que atravs das aparncias se manifesta (RIBEIRO, 1996, p. 39). O
universo est prenhe do sagrado. O segredo faz parte do universo
tanto quanto o revelado. Tudo que se manifesta ou oculta-se,
segundo a cosmoviso africana, compe o universo. Para estes povos o
universo no pode ser entendido sem um mltiplo de correspondncias,
analogias e interaes com o Homem e com todos os seres que compem
essa totalidade. Para explicar a interdependncia de todos os seres,
Ribeiro recorre tradio bambara do Komo, no Mali, de onde extrai uma
narrativa mitolgica que conta a origem do homem e do Cosmos pelo
grande Deus Maa Ngala. No havia nada, seno um Ser. Este Ser era um
vazio vivoa incubar potencialmentetodas as existncias possveis.O
Tempo Infinito era a morada desse Ser-Um.O Ser-Um chamou a si mesmo
Maa-Ngala.Ento, ele criou Fan,Um ovo maravilhoso com nove divisesno
qual introduziu os nove estados fundamentais da existncia.Quando o
Ovo Primordial chocoudele nasceram vinte seres fabulososque
constituram a totalidade do universo,a soma total das formas
existentesde conhecimento possvel.Mas, ai!Nenhuma dessas vinte
primeiras criaturas reve-lou-se apta a ser o interlocutor que
Maa-Ngalahavia desejado para si.Ento, tomando uma parcela de cada
uma dessasvinte criaturas misturou-as.E, insuflando na mistura uma
centelha de seu hlitogneo, criou um novo ser o Homem a quemdeu
parte de seu prprio nome: Maa.Assim, esse novo ser, por seu nome e
pela cente-lha divina nele introduzida, continha algo doprprio
Maa-Ngala. (RIBEIRO, 1996, p. 40-41) Esse mito ilustra como o Homem
dependente e interligado a todas as coisas existentes; ele o
resultado da interao de todos os elementos vegetais, minerais e
animais. Alm disso, ele participa da natureza divina, pois nele
fora insuflado o hlito divino, ou seja, o Homem est intimamente
ligado a todos os elementos da natureza e ao seu criador. Essa
relao simbitica com a natureza (mundo natural) e com o prprio Deus
(mundo sobrenatural) compe a prpria essncia do Homem, que por sua
vez divide sua essncia particular com a totalidade do universo.
Dito de outra forma: o Homem a micro-sntese de todos os elementos
que compem o universo. Ele um micro-cosmos. Ronilda Ribeiro,
citando Erny[8], refere-se ao universo africano como uma imensa
teia de aranha: no se pode tocar o menor de seus elementos sem
fazer vibrar o conjunto. Tudo est ligado a tudo, solidria cada
parte com o todo. Tudo contribui para formar uma unidade (RIBEIRO,
1996, p. 41). Essa unidade fundamental do universo reala o cuidado
com a ecologia e com o bem-estar das pessoas. Tanto o mundo natural
(ecologia) quanto o mundo social (bem-estar das pessoas) esto em
harmonia no que tange a uma viso unificada do universo. Sem o
respeito e a preservao aos elementos naturais no possvel ter uma
vida social saudvel e, inversamente, a vida social s impossvel sem
uma natureza salutar. Tudo est em tudo. Tudo participa de tudo.
Tudo influencia tudo. O todo cada uma das partes, cada parte
participa do todo; o todo. O todo a unidade de todas as partes. As
diferenas, no esquema da autora, so respeitadas. O africano tem
sempre em vista o conjunto, o Universo do qual faz parte e do qual
dependente/interdependente. Ele o Universo na medida em que faz
parte de seu todo, e o Universo no existiria sem que o Homem
participasse dele. O universo, segundo Yakemi[9], sincrnico e no
linear. Contrapondo ocidentais a africanos, atesta que os primeiros
so lineares, pois separam o subjetivo do objetivo, acreditam em
linhas evolutivas e baseiam-se no princpio da causalidade. Os
africanos, ao contrrio, so portadores do pensamento sincronstico
que guarda uma peculiar interdependncia de eventos objetivos entre
si, assim como dos estados subjetivos (psquicos) do observador ou
observadores (JUNG[10], 1970 citado por RIBEIRO, 1996, p. 42). O
pensamento sincrnico dos africanos constri o universo, ento, como
uma teia de aranha, onde eventos objetivos e subjetivos esto
interligados. totalidade desses eventos corresponde a concepo de
universo na tradio africana, de acordo com a antroploga. Me referi,
a pouco, que o sagrado e o profano sempre de acordo com Ronilda
Ribeiro no formam uma dicotomia, antes, uma unidade. O sagrado, na
verdade, permeia todos os espaos do universo africano. Ele impregna
com sua fora vital qualquer esfera da vida comunitria dos negros,
tanto em frica como nos outros continentes para onde tenham ido os
negros da Dispora. Esse sagrado, porm, no caso da frica, emana da
ancestralidade. A ancestralidade, ento, est no cerne da concepo de
universo. O universo interliga todas as coisas. Logo, a
ancestralidade permeia todos os seres que compem esse universo. Se
a ancestralidade a expresso do sagrado, este sagrado manifesta-se
atravs da fora vital, como demonstramos a seguir. Fora Vital A Fora
Vital sempre foi associada aos bantos[11]. A importncia dessa
categoria, porm, no se restringe a eles, podendo ser encontrada
entre os povos da frica Ocidental e Setentrional. Fbio Leite, por
exemplo, pesquisou sobre a Fora Vital entre os Agni - grupo Akan -
e Senufos, civilizaes agrrias da frica Ocidental, na regio habitada
pelos iorubs. Segundo LEITE (1984, p. 34), Fora Vital refere-se
quela energia inerente aos seres que faz configurar o ser-fora ou
fora-ser, no havendo separao possvel entre as duas instncias, que,
dessa forma, constituem uma nica realidade. A Fora Vital como
vitalidade universal capaz de individualizar-se nas relaes entre o
homem e a natureza. A profunda relao daquele com esta est nela
sedimentada, uma vez que ela a fora capaz de gerir tal relao. Essas
relaes no se restringem apenas relao homem-natureza, mas tambm
incide sobre a realidade social bem como sobre a relao do Homem com
o sobrenatural. Enfim, como vimos, o universo como uma teia de
aranha, onde todos os elementos esto interligados. Assim tambm a
Fora Vital. Ela o suporte comum para que todas as coisas se
conectem e formem um elo universal, que, sem ela, jamais poderiam
manter sua unidade - fundamental na concepo de mundo africana. Ela
, portanto, uma das categorias mais importantes que estruturam a
cosmoviso africana, pois ela tomada como fonte primordial da
energia que engendra a ordem natural do universo e atua de maneira
especfica em cada sociedade deste continente. A origem divina da
fora vital e a conscincia da possibilidade de sua participao nas
prticas histricas explicam a notvel importncia que lhe atribuda e,
no raro, a sacralizao de vrias esferas em que se manifesta (LEITE,
1984, p. 34). A Fora Vital no abrange apenas a relao do Homem com a
natureza. Ela abarca todos os seres, sejam eles minerais, animais
ou vegetais e estabelece individualizaes que se hierarquizam
segundo as espcies e faz a natureza povoar-se de foras ligadas aos
seus mais variados domnios (LEITE, 1984, p. 35). Segundo Fbio Leite
deve-se ressaltar o fato de que o preexistente quem cria o mundo.
Ao cri-lo, injeta nele sua sacralidade que a Fora Vital. Assim,
cada ser criado passa a possuir a Fora Vital e deve mant-la no
transcurso de sua vida individualizada. Tais desdobramentos, de
certa forma, multiplicam a Fora Vital inicial e do vitalidade a
todos os seres do universo. Ela constitui-se, ento, como a parte
mais ntima da materialidade dos seres criados pelo preexistente.
Dessa forma, a elaborao contnua do mundo tambm tarefa do homem
nesse intercmbio privilegiado entre natureza e sociedade, exercendo
aes transformadoras ao criar o ser humano no mbito de sua
competncia, assim como aqueles elementos ligados organizao da
sociedade (LEITE, 1984, p. 35). A Fora Vital no atua apenas no
abstrato; no uma generalizao. Ela tambm age no plano imediato,
cotidiano[12], pois, segundo Fbio LEITE (1984, p. 36), tal noo no
se limita s instncias das formulaes abstratas, situando-se
materialmente no interior das prticas histricas e da explicao da
realidade. Retornando concepo de universo podemos dizer que ele
forma uma nica rede de relaes sustentada pela Fora Vital. Nesta
acepo, no h lugar para a dicotomia entre esprito e matria, entre
profano e sagrado. O sagrado permeia todos os espaos da vida dos
africanos. O valor supremo a vida, a fora, viver forte ou fora
vital (TEMPELS[13], citado por RIBEIRO,1996, p. 39). Explica
RIBEIRO (1996, p. 39) que essa fora no exclusivamente fsica ou
corporal e sim uma fora do ser total, sendo que sua expresso inclui
os progressos de ordem material e o prestgio social. A Fora Vital,
como se viu, a prpria manifestao do sagrado que sustenta o universo
e permeia a relao entre os homens e entre eles e a natureza.
Presente na esfera da produo, da socializao e da famlia, na palavra
que a Fora Vital manifesta-se com toda sua vitalidade.PalavraA
palavra aparece visceralmente ligada Fora Vital. O detentor
primordial da palavra o preexistente, assim como ele o detentor
daquela. A palavra, com efeito, muitas vezes aparece nas
cosmogonias africanas como um subsdio fundamental para a criao do
mundo e, neste caso, ela portadora da fora que anima e vitaliza o
mundo. O Homem, por sua vez, ao ser criado, recebe a Fora Vital e o
poder da palavra, que so equivalentes, visto que a palavra
concebida como uma energia capaz de gerar coisas.Dessa forma, o
conjunto fora vital / palavra / respirao elemento constitutivo da
personalidade, emergindo plenamente quando o homem estrutura de
maneira a criar a linguagem e o exterioriza atravs da voz (LEITE,
1984, p. 36-37). A respirao tida como uma espcie de manifestao da
palavra, sobretudo quando estamos atados aos fatores primordiais da
criao, e, conseqentemente, da viabilizao e multiplicao da vida.
Portanto: Sendo a palavra dotada de uma parcela da vitalidade do
preexistente, necessariamente uma fora inerente personalidade
total, da que sua utilizao deve ser cuidadosamente orientada, pois
que uma vez emitida algumas de suas pores desprendem-se do homem e
reintegram-se na natureza (LEITE, 1984, p. 37). Deve-se lembrar,
entretanto, que a palavra, uma vez proferida, uma energia nem
sempre controlvel e interfere na existncia. Da a necessidade de
quem as pronuncia deter os conhecimentos necessrios para que faa
bom uso da energia-palavra, posto que ela capaz de engendrar
coisas, tanto construtivas quanto destrutivas. Tal seu poder que se
for mal utilizada, pode, inclusive, voltar-se contra seu
proferidor.Alm de ser expresso do prexistente, a palavra est
intimamente ligada a uma dimenso histrica. aqui que ela se liga ao
conhecimento e sua transmisso. o caso, por exemplo, dos
especialistas das transformaes (ferreiros e teceles); das
manifestaes da vida espiritual (culto aos ancestrais e s
divindades); do domnio especfico da prpria palavra (historiadores
tradicionalistas); e das explicaes de realidades determinadas
(conhecimento esotrico, jogos divinatrios). Existe, no obstante,
uma outra rea de aplicao da palavra, onde ela joga um papel
definitivo: a poltica. a palavra que tem a funo de fazer cumprir a
jurisprudncia dos ancestrais nos conselhos de famlia ou nas
assemblias comunitrias lugares privilegiados da prtica poltica nas
sociedades negro-africanas. A palavra - diz Fbio LEITE (1984, p.
38) - dotada de origem divina, mas encontra-se significativamente
relacionada com as atividades humanas e no deve ser considerada
somente como fonte de conhecimento. Para ele, no h dvida que a
palavra um instrumento do saber, porm sua condio vital lhe garante
o estatuto de manifestao do poder criador como um todo,
transmitindo vitalidade e desvendando interdependncias (LEITE,
1984, p. 38). A palavra atua como criadora do universo, expresso da
Fora Vital, organizadora da esfera poltica, tanto em relao
comunidade quanto em relao s famlias. Ela gera e movimenta a
energia, o que demonstra seu poder de transformao. constituinte de
quaisquer atividades no tempo, seja ele sagrado ou profano. a
energia primordial para o transcorrer da vida. A vida no
transcorre, no entanto, apenas no mundo visvel (ay) dos homens. O
universo africano correlaciona o sagrado e o profano. Sagrado e
profano so interdependentes, como tudo o mais. H, portanto, uma
correlao entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. O mundo dos
homens e o mundo dos antepassados. Cada qual possui o seu tempo,
que, no obstante, se relacionam. Tempo Se nas sociedades modernas o
tempo orientado para o futuro, nas sociedades tradicionais o tempo
orientado para o passado. esse precisamente o caso das sociedades
africanas. Segundo Ronilda RIBEIRO (1996, p. 50): Tudo o que
certamente ocorrer ou tudo que compe a ordem dos fenmenos naturais,
como o ritmo da natureza, por exemplo, pertence categoria de tempo
potencial ou inevitvel. Esta concepo do tempo bidimensional, isto ,
ele constitudo pelo presente, um longo passado e uma virtual
ausncia de futuro (RIBEIRO, 1996, p. 50). D-se mais nfase ao
passado que ao futuro quando se trata da concepo de tempo na
cosmoviso africana. A referncia mor o passado. nele que residem as
respostas para os mistrios do tempo presente. no passado que est
toda a sabedoria dos ancestrais. Somente no passado o africano
encontra sua identidade. A idade de ouro dos africanos
diametralmente oposta dos ocidentais, uma vez que para os ltimos os
melhores tempos ainda esto por vir (no futuro), enquanto para os
africanos os melhores tempos encontram-se muito vivos no passado. O
passado como referncia primordial da concepo de tempo africana no d
margem imobilidade das sociedades deste continente. Muito pelo
contrrio! A concepo de tempo africana dinmica e sujeita a
reformulaes e mudanas. Vive-se no tempo atual. A tradio
continuamente retomada e atualizada. A voz do passado ouvida e
merece muita ateno, mas sempre na inteno de orientar e organizar o
presente. Vive-se o agora, o hoje. O futuro tem alguma importncia,
claro. Mas o tempo atual a base do tempo vindouro. Por sua vez o
tempo presente tem sua base no passado, assento comum de toda a
concepo de tempo africana (RIBEIRO, 1996). Segundo Ribeiro, o tempo
atual a combinao do tempo passado com o tempo presente. Percebe-se,
ento, que para o africano, a esteira do tempo move-se para trs mais
do que para a frente (RIBEIRO, 1996, p. 50). baseada nos estudos de
Mbiti[14] que Ronilda Ribeiro define o tempo na cosmoviso africana.
Com efeito, Mbiti utiliza dois conceitos do vocbulo swahili para
explicar a concepo de tempo. So elas: Sasa e Zamani. Sasa o tempo
vivido, tanto pelo indivduo como pela comunidade. o perodo mais
significativo para a pessoa; o tempo do agora e principalmente o
tempo j percorrido pelo indivduo. o tempo atual; o tempo vivido.
Sasa constitui em si, uma dimenso completa do tempo, incluindo
futuro breve, presente dinmico e passado j experienciado (RIBEIRO,
1996, p. 52). Depois que a pessoa morre seu sasa continua se a
lembrana dessa pessoa permanecer entre seus familiares ou em sua
comunidade. Sasa somente interrompe-se quando a pessoa, nas geraes
subseqentes, completamente esquecida. Neste momento ela entra para
outra dimenso do tempo, a Zamani. Sasa pode ser descrito como o
micro tempo, essencial para o indivduo e sua projeo, enquanto que
zamani pode ser considerado como o macro tempo, no qual mesmo sasa
est contido. Zamani o tempo dos mitos. Nesta dimenso do tempo esto
contidos o presente e o futuro. Os mitos cosmognicos pertencem ao
tempo Zamani. Enganam-se os que pensam que zamani um tempo morto.
Pelo contrrio! Ele contm a explicao para as coisas que esto
acontecendo. Zamani est presente, interferindo diretamente nas aes
dos povos tradicionais africanos. Segundo Ronilda RIBEIRO(1996, p.
53) zamani o tempo do mito, que propicia firmeza e confere
segurana. Todas as coisas criadas, vinculadas umas s outras,
encontram-se envolvidas pelo macro-tempo. De acordo com a
antroploga no h relatos de mitos que narrem o fim do mundo dentre
os povos tradicionalistas da frica. O final do mundo para o
africano impensvel porque impensvel o final do tempo. A viso de
futuro geralmente restrita para os dias subseqentes ao dia atual,
no mximo aos meses seguintes. Uma concepo de final da histria
absurda para o pensamento tradicionalista africano. Esta afirmativa
pode ser confirmada pelo fato de que os Griots[15], segundo
Obenga[16], dificilmente trabalham com uma trama cronolgica,
interessando-se mais pelo homem apreendido em sua existncia,
condutor de valores e agindo na natureza de modo intemporal (apud
RIBEIRO, 1996, p. 56-57). Os griots, personagens sociais que tm
papel destacado nas sociedades africanas, narram as histrias menos
atentos periodicidade e linearidade do tempo que incluso de eventos
vividos pela comunidade[17]. Os griots no trabalham com o tempo
linear dos ocidentais, tampouco considera a noo de final da histria
to repetida entre os europeus - que disseminaram essa teoria para
todo o mundo colonizado. Os griots inserem-se dentro da dinmica
prpria do tempo africano, procurando apreender o significado de
cada acontecimento para a pessoa ou populao nele envolvido. Essa
concepo de tempo dinmica e funciona como uma esteira que se move,
como j dissemos, da frente para trs - no sentido inverso atribudos
pelos ocidentais. O tempo mtico reatualizado nos rituais, onde os
personagens hericos dos mitos indica os comportamentos e atitudes
que os indivduos devem tomar frente a uma determinada situao. Os
indivduos encontram nos mitos o sentido da vida e descobrem como
atuar frente aos mistrios que se lhes vo aparecendo. o tempo do
sagrado iluminando o tempo profano. O que diferencia o espao
sagrado do espao profano justamente os rituais e os acontecimentos
iniciticos que transmutam o tempo profano em tempo sagrado. Mas
note-se que o mesmo espao, e no outro. Diferentemente, por exemplo,
das igrejas crists, que separam da vida profana o espao sagrado a
igreja = Casa de Deus. Nas comunidades tradicionais africanas o
mesmo espao serve tanto ao tempo profano quanto ao tempo sagrado.
E, como disse Ribeiro, no existe distino definitiva entre os dois
tempos. Alis, como vimos, o universo concebido como uma teia de
aranha, onde tudo est interligado; onde a parte e o todo esto
profundamente conectados, o que se d com o universo tambm ocorre
com o tempo: o tempo um s, porm guarda em sua unidade suas
diferentes manifestaes (sasa e zamani). Caracterstica importante da
contagem do tempo africano o fato dele ser demarcado atravs dos
fenmenos naturais. A noite separada do dia e este dividido em
partes, relacionando-se as atividades altura do sol (RIBEIRO, 1996,
p. 60). As horas do dia so definidas por atos concretos. Em
Burundi, por exemplo, amakana a hora da ordenha (sete horas);
maturuka a hora de sada dos rebanhos (oito horas); kuasase, hora em
que o sol se alastra (9 horas); kumusase, hora em que o sol se
espalha sobre as colinas (10 horas)... (RIBEIRO, 1996, p. 60).
Nesta regio, as formas de cumprimentos esto baseadas - no
transcorrer do dia - na luminosidade e na posio das sombras. noite,
quando no se pode contar com a luminosidade do sol, como bvio, o
tempo marcado atravs das vozes dos animais. O trabalho, por sua
vez, definido a partir de tarefas e no por unidades de tempo. O
relgio diz RIBEIRO (1996, p. 60) - tem lugar [apenas] como objeto
de adorno. Ao insistir que o tempo africano no um tempo linear e
refletir que essa concepo nada tem a ver com a projeo do futuro dos
ocidentais, a autora no quer dar razo s barreiras epistemolgicas
que sustentam que as sociedades africanas so apticas, estticas e
que no possuem histria ou dinmica social. Ela defende a tese de que
a concepo de tempo dos africanos dinmica e relacionada com mudanas
que ocorrem em seu mundo atual. Para o africano o tempo dinmico e o
homem no prisioneiro de um mecnico retorno cclico, podendo lutar
sempre pelo desenvolvimento de sua energia vital (RIBEIRO, 1996, p.
63). Ronilda Ribeiro cita um poema do Songai para ilustrar tal
concepo: No da minha boca. da boca de A, que o deu a B, que o deu a
C,que o deu a D, que o deu a E,que o deu a F, que o deu a mim.Que
esteja melhor na minha boca do que na dosAncestrais (RIBEIRO, 1996,
p. 63). A relao privilegiada com o passado tem sua razo de ser: ela
permite uma relao especial com os ancestrais. A preservao da memria
dos antepassados no causa de estagnao para os africanos; ao
contrrio, so essas as causas para o dinamismo caracterstico de sua
cultura, uma vez que a atualizao deve estar sempre assentada na
sabedoria dos ancestrais. Os ancestrais, no entanto, no so os
atores do mundo atual. Os protagonistas do tempo vivido so seus
descendentes que, ouvindo-os, respeitando e cultuando-os, devem
abrir caminhos para novos tempos. A tradio, neste caso, o
fundamento da atualizao e da novidade. O tempo africano impregnado
de Fora Vital. um tempo sagrado (zamani) que envolve o tempo vivido
(sasa). O passado privilegiado, pois esse o tempo dos antepassados.
O passado, no entanto, no fossilizado. Ele potencialmente
transformador, tal como a tradio acmulo de tempo transcorrido. O
tempo africano, tal como o universo africano, est prenhe de
ancestralidade. A mesma ancestralidade que permeia todos os seres
do planeta (universo africano) habita o tempo mitolgico e atual.
Assim como o visvel no se separa do invisvel na concepo de universo
iorub, assim tambm o tempo dos mortos no se encontra separado do
tempo dos vivos. Os antepassados regulam a vida de seus
descendentes. A eles distribuem sua fora, e o conhecimento
preservado pela tradio transmitido atravs da palavra. Esse universo
e esse tempo no so vazios. Alm de habitados pela Fora Vital
(atributo do sagrado) e pela harmonizadora presena dos antepassados
(que vivem numa dimenso transcendente), o universo e o tempo
acolhem em suas entranhas a pessoa. A noo de pessoa, ento, - de
acordo com nossos autores - tem uma importncia singular no desenho
da cosmoviso africana. Pessoa Ronilda Ribeiro est interessada em
demonstrar, apesar de admitir que cada cl ou grupo africano tem sua
prpria noo de pessoa, que existe uma estrutura comum entre os povos
africanos. A noo de pessoa - assim como a de universo, fora vital,
palavra e tempo - no uma exceo, e pode ser compreendida como mais
um elemento estruturante da cosmoviso africana. Segundo Ronilda
RIBEIRO (1996, p. 44): A pessoa tida como resultante da articulao
de elementos estritamente individuais herdados e simblicos. Os
elementos herdados a situam na linhagem familiar e clnica enquanto
os simblicos a posicionam no ambiente csmico, mtico e social. O
estudo da noo de pessoa no pode estar dissociado do estudo das
instituies e dos modos de organizao social que propiciam a vida
para os indivduos. Ou seja, impossvel dicotomizar indivduo e
sociedade, ou pessoalidade e coletividade. Na verdade, o indivduo
uno, singular, porm, mesmo essa singularidade que o caracteriza
forjada no coletivo, no social. Ronilda Ribeiro, baseando-se em
Mauss e Leenhardt, afirma que "o pessoal indissocivel do grupal,
estudar a concepo de pessoa constitui um recurso para compreender
as instituies e as representaes a ela associadas (RIBEIRO, 1996, p.
45). Segundo a autora, ao eu transcendental, intangvel e invisvel
associam-se componentes de ordem material formando um corpo tangvel
e visvel e outros componentes de ordem imaterial, intangvel e
invisvel (RIBEIRO, 1996, p. 109). Segundo ela e de acordo com a
tradio iorub, o ser humano constitudo dos seguintes elementos: ara,
ojiji, okan, emi e ori (RIBEIRO, 1996, p. 109). Ara o corpo fsico,
corpreo. Ojiji a representao visvel da essncia espiritual e
acompanha o homem durante toda sua vida (RIBEIRO, 1996, p. 109). O
Ojiji pode ser traduzido como sombra. Okan o rgo intimamente
relacionado com o sangue o corao. Ele representa no apenas o corao
fsico, mas tambm o okan imaterial, que representa a inteligncia, o
pensamento e a ao. J o Emi o princpio vital a respirao. No apenas a
respirao corprea, mas tambm o sopro divino, o hlito de Deus. O Ori
a essncia real do ser. O sentido literal de ori cabea fsica, smbolo
da cabea interior ori inu (RIBEIRO, 1996, p. 110). Da a necessidade
dos homens escolherem bem o seu ori e cuidar para que ele se
conserve bom, pois o ori est sujeito a aes dos feiticeiros que
podem danificar a natureza da cabea fsica e espiritual. Marco
Aurlio LUZ (1995) ao falar da concepo de pessoa na filosofia nag
prefere referir-se ao orix da morte Iku. A tradio nag narra que
Obatal pediu a todos os orixs que procurassem por uma matria prima
que constitusse o ara-ayi (ser vivo). Depois de muita procura todos
concordaram que a melhor matria prima fora a lama, encontrada por
Iku. Porm, ao entregar a lama para Obatal, Iku lembrou-se de lhe
dizer que a lama havia chorado e se lamentado muito de sua perda.
Assim, Obatal ordenou a Iku a restituio da lama do orun tomada para
fazer o ara-ayi. Da por diante, Morte possui essa misso. De levar
de volta matria dos ara-ayi para o orun (LUZ, 1995, p. 52). Segundo
o autor, a matria com que so moldados os seres humanos chama-se
ipori ou oke ipori (LUZ, 1995, p. 52). A qualidade do ipori dar as
primeiras caractersticas ao indivduo dela constitudo. Porm, h um
outro elemento que marcar a pessoa constituda que o egun ipori, ou
seja, as matrias massas restitudas de seus antepassados, e agora
renascido no novo ser (LUZ, 1995, p. 53). O Oke ipori a matria da
qual feita a cabea fsica e interna, o ori (LUZ, 1995, p. 53). De
acordo com a tradio nag cada elemento que constitui o ara-ayi
encontrado no orun. Logo, lcido deduzir que existe um duplo do
ara-ayi no orun. Os rituais estabelecidos no ay para fortalecer o
destino do ori no ara- ayi, chama-se ori-orun e ajuda a fortalecer
o fluxo do destino pessoal. A cabea (ori) o centro das atenes dos
povos nags. Segundo a tradio so os prprios Homens que escolhem sua
cabea no orun antes de descerem para o ayi. Em terra devem sempre
fazer oferendas para seus orixs para que mantenham uma cabea forte,
boa e restituam para ela a fora atravs das oferendas, que, por sua
vez, aumenta o ax dos oris. A cabea, em verdade, o conjunto de
partes complexas[18] deste que o membro principal da pessoa segundo
a tradio nag. A cabea, apesar de ser a parte mais importante da
pessoa, no auto-suficiente. Ela necessita do bom funcionamento de
todas as outras partes do corpo para seu bem-estar. O ori depende
muito do orix responsvel pelo interior do corpo, que exatamente Exu
Bara, que significa o Rei do Corpo. Ele o princpio de movimento e
circulao das vias internas (LUZ, 1995, p. 56). Exu Bara quem
encarna no indivduo e proporciona a este o nascimento. Por isso
mesmo, Exu Bara tambm responsvel pelo bom fluxo do destino pessoal
da pessoa. Presente nas cavidades do ser humano, Exu Bara conhece
nossas entranhas e conhece nosso destino, juntamente com If, o Orix
das adivinhaes e da sabedoria. Para Marco Aurlio LUZ (1995, p. 57):
os seres humanos so resultado dos despreendimentos de matria massas
dos orix e de seus ancestrais msticos e familiares falecidos, de
onde retirado o egun-ipori e que constituir a pessoa no ayi. A
pessoa o resultado de foras divinas como naturais. Sua essncia est
indissociavelmente ligada s divindades como aos elementos da
natureza. Ela a sntese de todos os seres que compem o universo,
como vimos no mito de Maa Ngala. Ela a expresso da vontade de
Obatal e fruto da empreita de Iku. A pessoa, no entanto, no pode
ser compreendida como um ente individual. Com efeito, a pessoa o
resultado de uma ao coletiva. No se separa, segundo Ribeiro,
pessoalidade de coletividade. A identidade do indivduo forjada no
interior das tramas sociais. Se a pessoa resultado da interao entre
o sagrado e a natureza, no meio-ambiente social que ela encontra
sua identidade. A formao da pessoa d-se atravs de processos de
socializao, como veremos a seguir. SocializaoA socializao dentre os
africanos o processo de formao dos indivduos e suas personalidades
de acordo com as normas tradicionalmente estabelecidas em suas
sociedades. Esse processo de formao d-se, geralmente, com ritos
iniciticos, que so coletivos e abrangem a totalidade dos indivduos
viventes em cada comunidade. A formao da personalidade nas
civilizaes negro-africanas encargo atribudo sociedade como um todo.
Esse humanismo, como afirma Leite, revela que a sociedade prope a
superao, pela conscincia da realidade existencial, das limitaes
materiais e instrumentais, harmonizando o homem com as prticas
sociais suficientes (LEITE, 1984, p. 42).As crianas, assim que tm
idade, sujeitam-se aos ritos iniciticos, o que faz com que o grupo
de pessoas chegue maturidade ao mesmo tempo e criem vnculos de
solidariedade entre si, ocupando agora seu novo papel social e,
claro, cumprindo rigorosamente suas novas funes diante da sociedade
a que pertencem. Esses ritos so to importantes que no caso de algum
se negar a passar por eles sofrer uma srie de restries e
provavelmente ficar fora da distribuio dos dotes de terra, da
possibilidade de exercer algum cargo de comando etc. Ou seja,
somente so excludos nestas sociedades aqueles que se excluem do
processo de socializao sempre coletivo e sempre garantindo o
bem-estar social de seus membros. A formao da pessoa africana,
ento, um processo coletivo; uma responsabilidade social. Os ritos
iniciticos irmanam todos os membros de uma comunidade. A preparao
da pessoa para viver no meio social uma tarefa assumida
coletivamente, obedecendo as normas dos ancestrais. Com efeito, os
ritos iniciticos responsveis pela socializao da pessoa so baseados
na tradio dos ancestrais e obedecem as regras determinadas pelos
antepassados. Ou seja, a lgica que empreende a socializao dos
indivduos, em frica, a da ancestralidade. Esses ritos iniciticos
pautados no princpio da ancestralidade introduzem os indivduos
vivos no seio de suas comunidades ou famlias-aldeias. H,
entretanto, um outro rito, que ocorre entre os viventes, mas
dirige-se aos falecidos. So os rituais da morte ou, como so
comumentos chamados, os ritos funerrios. A morte um evento de
fundamental importncia para os africanos, e, para o que me
interessa mais de perto, a ancestralidade, pois ela o mecanismo
comunitrio que cria os ancestrais e, como rito de passagem, tem a
funo de harmonizar as tenses do grupo. Morte A crena na
imortalidade do homem explica, em grande parte, a grande importncia
que a morte e os ritos funerrios tm na cosmoviso de mundo africana.
Com efeito, a morte apresenta-se como fator de desequilbrio por
excelncia, pois promove a dissoluo da unio vital em que se
encontram os elementos constitutivos do ser humano, estado esse que
faz configurar a existncia visvel (LEITE, 1984, p. 43). A morte
abrange as esferas mais importantes da vida africana, pois abarca a
concepo de homem, a necessidade das restituies dos papis sociais
mais importantes, como chefes de famlia ou governantes polticos.
Isto porque, uma vez ocorrido o evento da morte o equilbrio da
comunidade est posto em questo, pois as personagens que morreram
sintetizam as aes histricas do grupo. neste momento que os ritos
funerrios ganham grande importncia, pois eles so capazes de
reorganizar rapidamente as comunidades restabelecendo o equilbrio
social. Os ritos funerrios fazem ver aos africanos os elementos que
extrapolam a prpria morte, ou seja, a participao do indivduo morto
no plano do sagrado - no seio dos ancestrais. Alm do mais, toda a
sociedade participa e testemunha da distribuio da energia vital da
pessoa que morreu para os elementos naturais, como a terra que
abrigar seu corpo. A vitalidade da pessoa morta transferida para os
elementos naturais que vo contribuir para a vida da comunidade. De
certa forma, a morte de um indivduo o aumento da fora da comunidade
j que sua energia volta-se para ela fortalecendo os elementos
naturais essenciais para a vida do grupo. Quanto ao indivduo que
morreu ele passa, por causa da imortalidade, a fazer parte de um
outro plano onde esto os ancestrais a no ser que ele volte para a
comunidade -, onde sua energia vital far parte agora do zamani.
Segundo Fbio LEITE (1984, p. 44): Esses fatores explicam a notvel
importncia conferida s cerimnias funerrias que, se em parte podem
ser consideradas como ritos de passagem, de outra se constituem em
ritos de permanncia, pois delas nascem os ancestrais. Os ritos
funerrios tm importncia fundamental no restabelecimento do
equilbrio social. Eles no atuam somente no plano psicolgico; mas
revelam tambm a capacidade de a sociedade dominar a desordem
provocada pela morte e dar continuidade vida ao elaborar o
ancestral, fazendo com que a imortalidade do homem se configure de
maneira precisa e em relao vital com o grupo social (LEITE, 1984,
p. 44). Para Marco Aurlio LUZ (1995) e BASTIDE (1989) os ritos
funerrios do candombl so os responsveis pela gerao dos ancestrais -
primeiro como ancestral individualizado, depois como ancestre
coletivo. Julio Braga, por sua vez, descreve a criao do ancestral
atravs do culto dos bab eguns, dando nfase, tambm ele, aos ritos
funerrios e como esses se tornaram a matriz referencial para o
nascimento dos ancestrais. o ritual funerrio que dignifica o morto
enquanto elemento indissocivel da estrutura religiosa e do prprio
sentido da permanncia e elaborao do sistema de transferncia do
poder para a nova liderana que se instala na direo do grupo
religioso (BRAGA,1992, p. 99). o ritual funerrio, ainda, que
permite a elaborao social do ancestral coletivo. Isto porque, de
acordo com Fbio Leite, citado por BRAGA (1992, p. 99), nesse ritual
que a sociedade manipula a imortalidade do homem com o pressuposto
de inser-lo no pas dos ancestrais. Podemos ver que os ritos
funerrios so ao mesmo tempo de passagem e de permanncia. De
passagem, pois direcionam o destino de seus mortos para a
imortalidade entre os ancestrais. Tm a funo, portanto, de
harmonizar o desequilbrio causado pela morte de um membro da
comunidade. O ritual funerrio transforma o morto num ancestral -
aqui estamos diante de um ritual de permanncia. Sua vida fora
desfeita, mas sua fora vital, no. Ela volta para a comunidade,
alimentando-a. Sua morte sinal menos de perda que de ganho. A
comunidade, com efeito, perde um membro, mas ganha sua energia
vitalizante. O indivduo desaparece; a comunidade cresce. A fora
vital que dantes o habitava, reside agora na sua famlia, entre os
membros de sua linhagem. A famlia , sem embargo, o ncleo comum onde
o africano pode vivenciar seu universo, alimentar sua fora vital,
interagir no tempo com as pessoas e as divindades, aprimorar seu
sistema de socializao, dominar a palavra e preparar seus ritos,
tanto iniciticos como de passagem ou permanncia. Famlia De acordo
com Fbio LEITE (1984, p. 45): A famlia negro-africana tpica,
conhecida pela denominao de famlia extensa, constituda por um
grande nmero de pessoas ligadas pelo parentesco. As famlias se
organizam ou por linhagem matrilinear, ou por linhagem patrilinear.
No caso das linhagens matrilineares, que na frica so maioria, comum
encontrar no seio das famlias-aldeia as ancestrais-mulheres que
lhes deram origem. Para ele, devido a essa configurao do parentesco
que os direitos e os deveres so institucionalmente transmitidos de
me a filha, de irm a irm, de tia a sobrinha e, quanto aos homens,
de irmo a irmo e de tio a sobrinho (LEITE, 1984, p. 45). Esse
modelo organizativo dos grupos est baseado nos laos sanguneos e
conferem grande autoridade s mulheres. A me o piv da organizao
familiar, e atravs de sua linhagem que os postos de poder e
responsabilidade so transmitidos. Esse modelo igualmente aplicado
sociedade. Assim, as funes do governo, da administrao geral dos
interesses dos membros da comunidade - interesses tanto materiais
quanto espirituais - passaro necessariamente pela linhagem
matrilinear. Sob o prisma de sua formulao sangunea, a famlia
extensa de organizao matrilinear transcende, portanto, o espao
fsico, abrangendo todos os indivduos ligados pelo parentesco
uterino a ancestrais mulheres comuns (LEITE,1984, p. 45). Em relao
estrutura fsica, a famlia africana famlia extensa - compreende a
famlia do patriarca-chefe e as famlias conjugais a ela ligadas
(LEITE, 1984, p. 45). A famlia do patriarca-chefe formada por ele,
sua esposa(s), filhos, irmos e mulheres dos irmos com sua prole e
parentesco, enquanto as famlias conjugais comportam esposo, esposa
e filhos. O conjunto dessas relaes familiares forma a
famlia-aldeia, unidade produtiva que se ocupa da sobrevivncia da
comunidade. Essa famlia-aldeia a unidade familiar que garante a
existncia do grupo. Ela est organizada sob o modelo da
matrilinearidade e tem sua estrutura baseada nas
mulheres-ancestrais que lhes conferem origem e sentido. Segundo
LEITE, a famlia o locus privilegiado do africano vivenciar sua
cultura. Dela nascem suas divindades, bem como sua subsistncia. A
famlia o ncleo primevo da sociedade. sua unidade mais importante. A
estrutura social africana formada pelos cls ou famlias-aldeia e sua
importncia tal que at os deuses obedecem s linhagens! Os ritos, por
sua vez, refletem a organizao singular de cada grupo; as etnias, ao
que lhes tocam, definem suas identidades no tero da sociedade (a
famlia). tero que gesta tanto sua vida, digamos, espiritual, como
sua vida material, atra