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AS ARMAS SECRETAS O leitor tem nas mos alguns dos melhores
contos de Jlio Cortzar, ou seja, alguns dos melhores contos da
literatura hispanoamericana do sculo XX, reconhecida como celeiro
de grandes mestres do gnero. Basta pensar em Jorge Luis Borges,
Juan Carlos Onetti ou Juan Rulfo, para saber o que isto significa.
So em geral relatos fantsticos, embora na maioria das vezes o
leitor tarde a se dar conta disto, tal a trivialidade do cotidiano
em que vivem as personagens, gente como a gente s voltas com a
realidade banal de todo dia. Pouco a pouco, porm, se mostra o mundo
minado de que verdadeiramente se trata, em sua completa e
desconcertante complexidade: uma realidade porosa, aberta por
estranhos interstcios, inesperadas pontes ou passagens, por onde se
transfundem espaos, seres e tempos em encontros inslitos. A prosa,
armada com ambgua naturalidade, traz a marca inconfundvel do
escritor consciente e senhor do ofcio, artista moderno que inclui
sempre no que faz a conscincia crtica. Da mais descarnada
simplicidade, pode encaminhar-se para as frases longas e de
intrincada sintaxe, flexveis como as enguias que tanto admirava.
Sugere o desalinho descuidado de quem se move vontade, com passada
larga e sem rumo, para dar de repente com o alvo certo, em sua
implacvel preciso, a que no sobram nem faltam palavras. Prosa que
imita muito os movimentos corporais, como guiada pela cegueira do
instinto, mas que traduz, na verdade, a sensualidade contorsiva do
corpo em espirais da mente, na ertica e irnica presena da
conscincia artstica que tudo supervisiona e se mostra no discurso
auto-reflexivo. Misto de espontaneidade e artificio, a arte de
Cortzar aqui comparece inteira, em seus jogos a srio de inquietante
lucidez. Duas obras-primas, 'As babas do diabo' e 'O perseguidor',
renem as caractersticas fundamentais da potica cortazariana, sua
viso da arte como busca e rebelio; seu reconhecimento do limite em
que vive o poeta em sua radicalidade, quando faz jus ao nome e
encarna a sede unitiva de um perseguidor do impossvel, desgarrado
no espao degradado e fragmentrio do mundo moderno. Com as armas da
analogia e da ironia, o poeta busca uma realidade digna do nome,
por vezes entrevista nas frestas do cotidiano como uma promessa de
passagem para outra coisa, detector que de 'intervalos
fulgurantes'. Na figura do fotgrafo que quer fixar a real imagem
das coisas e nisto joga a vida, ou na figura do msico de jazz que
persegue a verdadeira linguagem at o risco da autodestruio esto os
avatares do poeta para Cortzar, quando cumprem com a mente e o
corao seu autntico destino de artista e desafiam o mundo acomodado
em que nos tocou viver. O leitor ver como vale a pena reler
Cortzar, dez anos depois que se calou.
DAVI ARRIGUCCI JR.
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JLIO CORTZAR
AS ARMAS SECRETAS Contos Traduo e posfcio de ERIC NEPOMUCENO JOS
OLYMPIO EDITORA Jlio Cortzar, 1959, e herdeiros de Jlio Cortzar
Reservam-se os direitos desta edio LIVRARIA JOS OLYMPIO EDITORA
S.A. Rua da Glria, 344/4 andar Rio de Janeiro, RJ - Repblica
Federativa do Brasil Printed in Brazil Impresso no Brasil ISBN
85-03-00523-9 Gerncia editorial: Maria Amlia Mello Editoria: Ftima
Pires dos Santos Capa: Joatan (sobre foto de tela de Luciane
Malheiros) Produo e diagramao: Antnio Herranz Reviso de originais:
Cludio Estrella Reviso de provas: Tereza Cardoso Fabiano Antnio
Coutinho de Lacerda C854a CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte. Sindicato
Nacional dos Editores de Livros, RJ Cortzar, Jlio, 1914-1984 As
armas secretas: contos / Jlio Cortzar; traduo e posfcio de Eric
Nepomuceno. - Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1994. Traduo de: Las
armas secretas. 1. Contos argentinos. I. Nepomuceno, Eric, 1948-
94-0796 . H. Ttulo. CDD - 868.99323 CDU-860(82>3
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Cartas de mame BEM QUE PODERIA chamar-se liberdade condicional
Toda vez que a zeladora lhe entregava um envelope, Luis reconhecia
o minsculo rosto familiar de Jos de San Martin e isso era
suficiente para compreender que novamente seria preciso atravessar
a ponte. San Martin, Rivadavia, mas esses nomes eram tambm imagens
de ruas e coisas, Rivadavia n2- 6.500, o casaro de Flores, mame, o
caf de San Martin esquina com Corrientes onde s vezes os amigos
esperavam por ele, onde o marzip tinha um leve gosto de leo de
rcino Com o envelope na mo, depois do Mera bien, madame Durand,
sair a rua j no era a mesma coisa do dia anterior, de todos os dias
anteriores. Cada carta de mame (inclusive antes daquilo que acabava
de acontecer, aquele absurdo erro ridculo) mudava de repente a vida
de Luis, devolvia-o ao passado como uma bola quicando com fora.
Antes mesmo daquilo que acabava de ler - e que agora relia no
nibus, entre enfurecido e perplexo, sem terminar de se convencer de
todo -, as cartas de mame eram sempre uma alterao do tempo, um
pequeno escndalo inofensivo na ordem de coisas que Luis havia
querido e traado e conseguido, adotando essa ordem em sua vida como
havia adotado Laura em sua vida e Paris em sua vida. Cada nova
carta insinuava por um instante (porque depois ele as apagava no
exato ato de respond-las carinhosamente) que sua liberdade
conquistada a duras penas, aquela nova vida recortada com ferozes
golpes de tesoura na madeixa de l que os outros haviam chamado de
sua vida, deixava de justificar-se, perdia p. apagava-se como o
fundo das ruas enquanto o nibus corria pela rue de Richelieu. No
sobrava nada alm de uma tola liberdade condicional, a piada de se
viver como uma palavra entre parnteses, divorciada da frase
principal e da qual, no entanto, quase sempre sustentao e explicao.
E mgoa, e uma necessidade de responder imediatamente, como quem
torna a fechar uma porta. Aquela manh havia sido uma das tantas
manhs em que chegava carta de mame. Ele e Laura falavam pouco do
passado, e quase nunca do casaro de Flores. No que Luis no gostasse
de recordar Buenos Aires. Tratava-se, porm, de evitar nomes (as
pessoas, evitadas fazia j tanto tempo, mas os nomes, os verdadeiros
fantasmas que so os nomes, essa durao obstinada). Um dia, havia se
animado a dizer a Laura: "Se fosse possvel rasgar e jogar fora o
passado, como o rascunho de uma carta ou de um livro. Mas fica
sempre a, manchando a cpia passada a limpo, e eu acho que isso o
verdadeiro futuro." Na realidade, por que no haveriam de falar de
Buenos Aires, onde morava a famlia, onde os amigos de vez em quando
enfeitavam um carto postal com frases carinhosas? E a pgina
impressa de La Nacin, com os sonetos de tantas senhoras
entusiastas, aquela sensao de coisa lida, de para qu? E de vez em
quando alguma crise de ministrio, algum enfezado coronel, algum
excelente lutador de boxe. Por que no haveriam de falar de Buenos
Aires, ele e Laura? Mas ela no retornava ao tempo de antes, s por
acaso em algum dilogo, e principalmente quando chegavam cartas de
mame, deixava cair um nome ou uma imagem como moedas fora de
circulao, objetos de um mundo que se anulou na distante margem do
rio. - Eh oiti, fait lourd - disse o operrio sentado na frente
dele. "Se soubesse o que calor", pensou Luis. "Se pudesse andar
numa tarde de fevereiro pela avenida de Mayo, por alguma ruela de
Liniers."
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Tirou outra vez a carta do envelope, sem iluses, o pargrafo
estava l, bem claro. Era perfeitamente absurdo, mas estava l. Sua
primeira reao, depois da surpresa, do golpe em plena nuca, como
sempre era de defesa. Laura no devia ler a carta de mame. Por mais
ridculo que fosse o erro, a confuso de nomes (mame deve ter querido
escrever 'Vctor' e escreveu 'Nico'), de qualquer modo Laura se
afligiria, seria burrice. De vez em quando cartas se perdem; esta
deveria ter ido para o fundo do mar. Agora teria de jog-la na
privada do escritrio, e claro que depois de alguns dias Laura
estranharia: "Que esquisito, no chegou nenhuma carta de sua me."
Nunca dizia sua mame, talvez por ter perdido a sua quando ainda era
muito pequena. Ento ele responderia: "E mesmo, estranho. Vou mandar
umas linhas para ela hoje mesmo e mandaria, espantando-se com o
silncio de mame. A vida continuaria igual, o escritrio, o cinema de
noite, Laura sempre tranqila, bondosa, atenta aos seus desejos. Ao
descer do nibus na rue de Rennes, perguntou-se bruscamente (no era
uma pergunta, mas como diz-lo de outro modo?) por que no queria
mostrar para Laura a carta de mame. No por ela mas pelo que pudesse
sentir. No se importava muito com o que ela pudesse sentir, desde
que disfarasse. (No se importava muito com o que ela pudesse
sentir, desde que disfarasse?) No, no se importava muito. (No se
importava?) Mas a primeira verdade, supondo que houvesse outras por
trs, a verdade mais imediata por assim dizer, era que se importava
com a cara que Laura faria, com a atitude de Laura. E se importava
consigo mesmo, claro, pelo efeito que provocaria nele a forma como
Laura se importaria com a carta de mame. Seus olhos pousariam, num
dado momento, sobre o nome de Nico, e ele sabia que o queixo de
Laura comearia a tremer ligeiramente, e depois ela diria: "Mas que
coisa estranha... o que ser que deu na sua me?" E ele saberia o
tempo todo que Laura se continha para no gritar, para no esconder
entre as mos um rosto j desfigurado pelo pranto, pelo desenho do
nome de Nico tremendo em sua boca. Na agncia de publicidade onde
trabalhava como desenhista, releu a carta, uma das tantas cartas de
mame, sem nada de extraordinrio alm do pargrafo onde havia se
enganado de nome. Imaginou se no poderia apagar a palavra,
substituir Nico por Vctor, simplesmente substituir o erro pela
verdade, e voltar com a carta para casa, para que Laura a lesse. As
cartas de mame sempre interessavam a Laura, mesmo que de uma forma
indefinvel no fossem destinadas a ela. Mame escrevia para ele;
sempre enviava no final, s vezes no meio da carta, lembranas muito
carinhosas para Laura. No importava, lia as cartas com o mesmo
interesse, hesitando diante de alguma palavra retorcida pelo
reumatismo e pela miopia. "Tomo Saridn, e o doutor me deu um pouco
de salicilato..." As cartas ficavam dois ou trs dias sobre a mesa
de desenho; Luis gostaria de jog-las fora assim que as respondesse,
mas Laura as relia, as mulheres gostam de reler as cartas, olh-las
de um lado e de outro, parecem extrair um segundo sentido cada vez
que tornam a apanh-las e olh-las. As cartas de mame eram curtas,
com notcias de casa, uma ou outra referncia situao do pas (mas
essas coisas j eram sabidas atravs das notcias do L Monde, chegavam
sempre atrasadas pela mo de mame). Dava at para pensar que as
cartas eram sempre uma s, sucinta e medocre, sem nada de
interessante. O melhor em mame que nunca se entregou tristeza que
devia sentir pela ausncia do filho e da nora, nem mesmo dor -
tantos gritos, tantas lgrimas no comeo - pela morte de Nico. Nunca,
naqueles dois anos em que estavam em Paris, mame havia mencionado
Nico em suas cartas. Era como Laura, que tambm no o mencionava.
Nenhuma das duas o mencionava, e fazia mais de dois anos que Nico
havia morrido. A repentina meno de seu nome no meio da carta era
quase um escndalo. Simplesmente pelo fato do nome de Nico aparecer
de repente numa frase com o N longo e trmulo, o O com a perninha
torcida; mas era pior, porque o nome estava colocado
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numa frase incompreensvel e absurda, em algo que no podia ser
outra coisa alm de um anncio de senilidade. De repente mame perdia
a noo do tempo, imaginava que... O pargrafo vinha depois de uma
breve confirmao da chegada de uma carta de Laura. Um ponto,
levemente marcado com uma tinta azul fraca comprada no armazm do
bairro, e queima-roupa: "Hoje de manh Nico perguntou por vocs." O
resto continuava como sempre: a sade, a prima Matilde levou um
tombo e deslocou a clavicula, os cachorros esto bem. Mas Nico havia
perguntado por eles. Na verdade teria sido fcil trocar Nico por
Vctor, que era sem dvida quem havia perguntado por eles. O primo
Vctor, sempre to atencioso. Vctor tinha duas letras a mais que
Nico, mas com uma borracha e alguma habilidade dava para mudar os
nomes. Hoje de manh Vctor perguntou por vocs. To natural que Vctor
passasse para visitar mame e perguntasse pelos ausentes. Quando
voltou para almoar, trazia a carta intacta no bolso. Continuava
disposto a no dizer nada a Laura, que o esperava com seu sorriso
amigvel, o rosto que parecia ter-se desvanecido um pouco desde os
tempos de Buenos Aires, como se o ar cinzento de Paris tirasse sua
cor e seu relevo. Estavam h mais de dois anos em Paris, haviam sado
de Buenos Aires dois meses depois da morte de Nico, mas na verdade
Luis se considerava ausente desde o prprio dia de seu casamento com
Laura. Uma tarde, depois de falar com Nico, que j estava doente,
prometeu a si mesmo fugir da Argentina, do casaro de Flores, de
mame e dos cachorros e de seu irmo (que j estava doente). Naqueles
meses tudo havia girado em torno dele como as figuras de uma dana:
Nico, Laura, mame, os cachorros, o jardim. Seu juramento tinha sido
o gesto brutal de quem estilhaa uma garrafa na pista, interrompe o
baile com o chicotear de vidros quebrados. Tudo havia sido brutal
naqueles dias: seu casamento, a partida sem delicadezas ou
consideraes com mame, o esquecimento de todos os deveres sociais,
dos amigos um tanto surpreendidos e desencantados. No se importava
nem um pouco, nem mesmo com a ameaa de protesto de Laura. Mame
ficava sozinha no casaro, com os ces e os vidros de remdios, com a
roupa de Nico ainda pendurada no guarda-roupa. Que ficasse, que
fossem todos para o inferno. Mame parecia compreender, j no chorava
por Nico e andava como antes pela casa, com a fria e decidida
recuperao dos velhos diante da morte. Mas Luis no queria se lembrar
do que havia sido a tarde da despedida, as malas, o txi na porta, a
casa ali, com a infncia inteira, o jardim onde Nico e ele brincavam
de guerra, os dois ces indiferentes e estpidos. Agora, quase era
capaz de esquecer tudo isso. Ia at a agncia, desenhava cartazes,
voltava para comer, bebia a xcara de caf que Laura servia sorrindo.
Iam muito ao cinema, muito aos bosques, conheciam Paris cada vez
mais. Tiveram sorte, a vida era surpreendentemente fcil, o trabalho
aceitvel, o apartamento bonito, os filmes excelentes. E a, chegava
carta de mame. No as detestava; se faltassem, ele sentiria a
liberdade cair sobre si como um peso insuportvel. As cartas de mame
traziam-lhe o tcito perdo (mas no havia nada por que perdo-lo),
estendiam a ponte por onde era possvel continuar passando. Cada uma
o tranqilizava ou o inquietava sobre a sade de mame, recordava a
economia familiar, a permanncia de uma ordem. E ao mesmo tempo
odiava aquela ordem e a odiava por causa de Laura porque Laura
estava em Paris, mas toda carta de mame a definia como indiferente,
como cmplice daquela ordem que ele havia repudiado certa noite no
jardim, depois de ouvir uma vez mais a tosse apagada, quase humilde
de Nico.
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No, no mostraria a carta a Laura. No era nada generoso
substituir um nome por outro, no permitiria que Laura lesse a frase
de mame. Seu erro grotesco, sua tola falta de tato por um instante
- era capaz de v-la lutando com uma caneta velha, com um papel que
escorregava para os lados com sua vista fraca -, cresceria em Laura
como uma semente fcil. Melhor jogar a carta fora (jogou-a naquela
mesma tarde) e de noite ir ao cinema com Laura, esquecer o quanto
antes que Vctor havia perguntado por eles. Mesmo que fosse Vctor, o
primo to bem-educado, esquecer que Vctor havia perguntado por eles.
Diablico, encolhido, lambendo-se todo, Tom esperava que Jerry casse
na armadilha. Jerry no caiu, e choveram sobre Tom incontveis
catstrofes. Depois Luis comprou sorvetes, que os dois tomaram
enquanto olhavam distraidamente os anncios coloridos. Quando o
filme comeou, Laura afundou-se um pouco mais em sua poltrona e
retirou a mo do brao de Luis. Ele a sentia distante outra vez, quem
sabe se o que olhavam juntos j no era a mesma coisa para os dois,
mesmo que mais tarde comentassem o filme na rua ou na cama. Se
perguntou (no era uma pergunta, mas como diz-lo de outro modo9) se
Nico e Laura haviam estado assim distantes nos cinemas, quando Nico
a cortejava e saam juntos. Provavelmente conheceram todos os
cinemas de Flores, a passarela estpida da rue Lavalle, o leo, o
atleta que golpeia o gongo, os subttulos em castelhano por Carmen
de Pinillos, os personagens deste filme so fictcios, e qualquer
semelhana... Ento, depois que Jerry tinha escapado de Tom e comeava
a hora de Barbara Stanvvyck ou de Tyrone Power, a mo de Nico se
encostaria devagar sobre a coxa de Laura (o pobre Nico, to tmido,
to namorado) e os dois se sentiriam culpados sabe-se l de qu. Bem
que ele contava a Luis que no tinham sido culpados de nada
definitivo; e embora no houvesse tido a mais deliciosa das provas,
o veloz desapego de Laura por Nico fora suficiente para ver naquele
namoro um mero simulacro inventado pelo bairro, os vizinhos, os
crculos culturais e recreativos que so a essncia de Flores.
Bastaria o capricho de ter ido uma noite ao mesmo salo de baile
freqentado por Nico, o acaso de uma presena fraternal. Talvez por
isso, pela facilidade do comeo, todo o resto havia sido
inesperadamente difcil e amargo. Mas no queria recordar agora, a
comdia havia terminado com a derrota branda de Nico, seu melanclico
refugio numa morte de tsico. Era estranho que Laura no o
mencionasse nunca, e por isso tampouco ele prprio o citasse, que
Nico no fosse nem mesmo o defunto, nem mesmo o cunhado morto, o
filho de mame. No comeo, isso fora um alvio, depois do confuso
intercmbio de recriminaes, do pranto e dos gritos de mame, da
estpida interveno do tio Emilio e do primo Vctor (hoje de manh
Vctor perguntou por vocs), o casamento apressado e sem outra
cerimnia alm de um txi chamado por telefone e trs minutos diante de
um funcionrio com caspa nas lapelas. Refugiados num hotel de
Adrogu, longe de mame e de toda a parentada desunida, Luis havia
agradecido a Laura por jamais ter feito referncia ao pobre fantoche
que to vagamente havia passado de noivo a cunhado. Mas agora, com
um mar no meio, com a morte e dois anos no meio, Laura continuava
sem mencion-lo, e ele se atinha ao seu silncio por covardia,
sabendo que no fundo esse silncio o ofendia pelo que continha de
recriminao, de arrependimento, de algo que comeava a se parecer com
traio. Mais de uma vez havia mencionado Nico explicitamente, mas
compreendia que isso no contava, que a resposta de Laura tendia
unicamente a desviar a conversa. Um lento territrio proibido fora
se formando pouco a pouco em sua linguagem, isolando-os de Nico,
envolvendo seu nome e sua memria num algodo sujo e pegajoso. E do
outro lado mame fazia a mesma coisa, confabulava inexplicavelmente
no silncio. Cada carta falava dos cachorros, de Matilde, de Vctor,
do salicilato, da penso de aposentada. Luis esperava que alguma vez
mame fizesse aluso a seu filho para aliar-se com ela diante de
Laura, obrigar Laura carinhosamente a
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aceitar a existncia pstuma de Nico. No porque fosse necessrio,
quem se importava se Nico estava vivo ou morto?, mas a tolerncia de
sua lembrana no panteo do passado teria sido a prova obscura e
irreverente de que Laura o havia esquecido de verdade e para
sempre. Chamado plena luz de seu nome, o incubo teria se
desvanecido, to fraco e intil como quando pisava a terra. Mas Laura
continuava calando o nome de Nico, e toda vez que o calava, no
momento exato em que teria sido natural que o dissesse, e
exatamente calava, Luis sentia novamente a presena de Nico no
jardim de Flores, escutava sua tosse discreta preparando o mais
perfeito presente de casamento imaginvel, sua morte em plena
lua-de-mel daquela que havia sido sua noiva, daquele que havia sido
seu irmo. Uma semana mais tarde Laura surpreendeu-se de que no
houvesse chegado nenhuma carta de mame. Calcularam as hipteses
usuais, e Luis escreveu naquele mesmo dia. A resposta no o
inquietava tanto, mas teria preferido (sentia isso ao descer as
escadas pelas manhs) que a zeladora lhe desse a carta, em vez de
lev-la ao terceiro andar. Quinze dias depois reconheceu o envelope
familiar, o rosto do almirante Brown e uma vista das cataratas do
Iguau. Guardou o envelope antes de sair rua e responder ao
cumprimento de Laura na janela. Achou ridculo ter que dobrar a
esquina antes de abrir a carta. Boby havia fugido para a rua e
alguns dias depois comeou a se coar, contgio de algum co sarnento.
Mame ia consultar um veterinrio amigo do tio Emlio, porque nem
pensar se Boby contagiasse Negro de alguma peste. O tio Emlio
achava que deveria banh-los com creolina, mas ela no estava mais
disposta a esse tipo de confuso, seria melhor o veterinrio receitar
algum p inseticida ou alguma coisa para misturar na comida. A
vizinha do lado tinha um gato sarnento, sabe-se l se os gatos no
eram capazes de contagiar os ces, nem que fosse atravs da cerca.
Mas ser que essa conversa de velha iria interessar a eles?, embora
Luis tenha sido sempre carinhoso com os ces e quando menino at
dormia com um deles aos ps da cama, o avesso de Nico, que no
gostava muito de cachorro. A vizinha do lado aconselhava espalhar p
de dedet neles, porque se no for sarna, ser outra coisa, os
cachorros apanham qualquer peste pela rua; na esquina de Bacacay
estava um circo de animais estranhos, vai ver havia micrbios pelo
ar, essas coisas. Mame no agentava mais sustos do garoto da
costureira que havia queimado o brao com leite fervendo e Boby
sarnento. Depois havia uma espcie de estrelinha azul (a
caneta-tinteiro que grudava no papel, a exclamao de fastio de mame)
e ento algumas reflexes melanclicas sobre o quanto ela ficaria
sozinha se Nico tambm fosse para a Europa como parecia, mas esse
era o destino dos velhos, os filhos so como andorinhas que um belo
dia vo embora, h que se ter resignao enquanto o corpo agentar. A
vizinha do lado... Algum esbarrou em Luis, soltou-lhe uma rpida
declarao de direitos e obrigaes com sotaque de Marselha.
Compreendeu vagamente que estava atrapalhando a passagem das
pessoas que entravam pelo estreito corredor do metr. O resto do dia
foi igualmente vago, telefonou a Laura para dizer que no iria
almoar, passou duas horas num banco de jardim relendo a carta de
mame, perguntando-se o que deveria fazer diante da insanidade.
Falar com Laura, antes de qualquer outra coisa. Por que (no era uma
pergunta, mas como diz-lo de outro modo?) continuar ocultando de
Laura o que aconteceu? No podia mais fingir que esta carta tinha se
extraviado como a outra, no podia mais acreditar que mame havia se
enganado e escrito Nico em vez de Vctor, e que era to penoso que
estivesse ficando gag. Definitivamente, essas cartas eram
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Laura, eram o que ia acabar acontecendo com Laura. Nem mesmo
isso: o que havia acontecido desde o dia de seu casamento, a
lua-de-mel em Adrogu, as noites em que haviam se desejado
desesperadamente no navio que os levava para a Frana. Tudo era
Laura, tudo ia ser Laura, agora que Nico queria vir para a Europa
no delrio de mame. Cmplices como sempre, mame estava falando de
Nico para Laura, estava anunciando para Laura que Nico viria para a
Europa, e dizia desse jeito, Europa e ponto, sabendo muito bem que
Laura compreenderia que Nico ia desembarcar na Frana, em Paris,
numa casa na qual se fingia delicadamente t-lo esquecido,
coitadinho. Fez duas coisas; escreveu ao tio Emlio indicando os
sintomas que o inquietavam e pedindo que visitasse mame
imediatamente, para certificar-se e tomar as medidas que o caso
pedia. Bebeu um conhaque atrs do outro e andou a p at a casa para
pensar no caminho no que deveria dizer a Laura, porque afinal de
contas tinha que falar com ela e informar o que estava acontecendo.
De rua em rua foi sentindo o quanto lhe custava situar-se no
presente, no que teria que ocorrer meia hora mais tarde. A carta de
mame o enfiava, o afogava na realidade daqueles dois anos de vida
em Paris, a mentira de uma paz fraudulenta, de uma felicidade da
porta para fora, sustentada por diverses e espetculos, de um pacto
involuntrio de silncio no qual os dois se desuniam pouco a pouco,
como em todos os pactos negativos. Sim, mame, sim, pobre Boby
sarnento, mame. Pobre Boby, pobre Luis, quanta sarna, mame. Um
baile do clube de Flores, mame, fui porque ele insistia, imagino
que queria cortejar a sua conquista Coitado do Nico, mame, com
aquela tosse seca na qual ningum ainda acreditava, com aquele terno
de xadrez, aquele penteado de brilhantina, aquelas gravatas de
rayon to cafoninhas E eu conversava um pouco, simptico, e como no
vou danar essa msica com a noiva do meu irmo, oh, dizer noiva
exagerar, Luis, suponho que posso chamar voc de Luis, no ? Mas sim,
acho estranho que Nico ainda no tenha levado voc l em casa, mame
vai gostar muito Esse Nico to desajeitado, aposto que ainda nem
falou com seu pai Tmido, sim, sempre foi desse jeito. Como eu. Do
que est rindo, no acredita? que no sou o que pareo. Est um calor,
no est? Srio mesmo, voc tem que ir l em casa, mame vai adorar. Ns
trs moramos sozinhos, com os cachorros. Mas, Nico, uma vergonha,
voc escondeu essa moa, malandro. Com a gente assim, Laura A gente
diz cada coisa um para o outro... Agora, com licena, vou danar esse
tango com essa senhorita. To pouca coisa, to fcil, to
verdadeiramente brilhantina e gravata de rayon. Ela tinha rompido
com Nico por engano, por cegueira, porque o irmo rato tinha sido
capaz de vencer num arrebatamento e virar sua cabea. Nico no joga
tnis, qual o que, ningum o arranca do xadrez e da filatelia, faa-me
o favor. Calado, o coitado um pouca-coisa, Nico estava ficando para
trs, perdido num canto do jardim, consolando-se com o xarope
expectorante e o chimarro amargo Quando caiu de cama e ordenaram
repouso absoluto, coincidiu justamente com um baile no Gimnasio
Esgrima de Villa del Parque Eu no perderia uma coisa dessas, ainda
mais que Edgardo Donato ia tocar e a coisa prometia. Mame achava
que estava tudo bem que ele levasse Laura para passear, gostava
dela como uma filha desde a tarde em que aparecera na sua casa pela
primeira vez. Veja l, mame, o garoto est meio fraco e capaz de
ficar imaginando bobagens, se for pensar nisso Quem est doente como
ele imagina cada coisa, na certa vai achar que estou me engraando
com Laura. E melhor ele no saber que ns vamos ao Gimnasia Mas no
disse isso a mame, ningum l em casa nunca ficou sabendo que Laura e
eu estvamos saindo juntos At que o doente melhorasse, claro E assim
passou o tempo, os bailes, dois ou trs bailes, as radiografias de
Nico, depois o automvel de
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Ramos, o tampinha, a noite de farra na casa da Beba, as bebidas,
o passeio de carro at a ponte do arroio, uma lua, essa luta como
uma janela de hotel l no alto, e Laura no carro dizendo que no, um
pouco de pilequinho, as mos hbeis, os beijos, os gritos afogados, a
manta de vicunha, a volta em silncio, o sorriso de perdo. O sorriso
era quase o mesmo quando Laura abriu a porta para ele. Havia carne
assada, salada, um pudim s dez vieram os vizinhos que eram seus
companheiros de canastra. Tarde da noite, enquanto se preparavam
para dormir, Lus tirou a carta do bolso e colocou-a no criado-mudo.
- No falei nada antes, porque no queria deixar voc aflita Mas
parece que mame... Deitado, de costas para ela, esperou. Laura
guardou a carta no envelope, apagou o abajur. Sentiu-a contra ele,
no exatamente contra, mas a ouvia respirar perto de sua orelha. -
Voc est vendo? - disse Lus, falando com cuidado. - Estou. Voc no
acha que ela se enganou de nome? Tinha de ser. Peo quatro rei; peo
quatro rei. Perfeito. - Vai ver, quis dizer Vctor - disse,
enterrando lentamente as unhas na palma da mo. - Ah, claro. Deve
ser isso - disse Laura. Cavalo rei trs bispo. Comearam a fingir que
dormiam. Laura aprovara a idia de que tio Emlio fosse o nico a
ficar sabendo, e os dias passaram sem que tornassem a falar no
assunto. Sempre que voltava para casa, Luis esperava uma frase ou
um gesto inslito de Laura, um claro naquela guarda perfeita de
calma e de silncio. Iam ao cinema como sempre, faziam amor como
sempre. Para Luis j no existia em Laura outro mistrio alm de sua
resignada adeso a essa vida na qual nada havia chegado a ser o que
poderiam esperar dois anos antes. Agora a conhecia bem, na hora das
confrontaes definitivas tinha de admitir que Laura era como havia
sido Nico, das que ficam para trs e s atuam por inrcia, embora
empregasse s vezes uma vontade enorme em no fazer nada, em no viver
de verdade para nada. Teria se entendido muito melhor com Nico do
que com ele, e os dois sabiam disso desde o dia de seu casamento,
desde as primeiras posies assumidas que se seguem morna aquiescncia
da lua-de-mel e do desejo. Agora Laura voltava a ter o pesadelo.
Sonhava muito, mas o pesadelo era diferente, Luis o reconhecia
entre os muitos movimentos de seu corpo, palavras confusas ou
breves gritos de animal que se afoga. Tinha comeado a bordo, quando
ainda falavam de Nico porque Nico tinha acabado de morrer e eles
haviam embarcado poucas semanas depois. Certa noite, depois de
recordar Nico, e quando se insinuava o tcito silncio que logo se
instalaria entre eles, Laura tivera o pesadelo. Se repetia de
tempos em tempos e era sempre o mesmo, Laura despertava com um
gemido rouco, um sacudir convulso das pernas, e de repente o grito
que era uma negao total, uma rejeio com as duas mos e todo o corpo
e toda a voz, de algo horrvel que caa sobre seu sono como um enorme
pedao de matria pegajosa. Ele a sacudia, a acalmava, trazia gua que
ela bebia soluando, acossada ainda pelo outro lado de sua vida.
Dizia no lembrar de nada, era algo horrvel que no conseguia
explicar, e acabava adormecendo levando seu segredo, porque Luis
sabia que ela sabia, que acabava de se
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enfrentar com aquele que entrava em seu sonho, sabe-se l debaixo
de que mscara horrenda, e cujos joelhos Laura abraaria numa
vertigem de espanto, talvez de amor intil. Era sempre a mesma
coisa, oferecia a ela um copo dgua, esperando em silncio que Laura
tornasse a apoiar a cabea no travesseiro. Talvez um dia o espanto
fosse mais forte que o orgulho, se que aquilo era orgulho. Talvez
ento ele pudesse lutar ao seu lado. Talvez nem tudo estivesse
perdido, talvez a nova vida chegasse a ser realmente outra coisa
alm daquele simulacro de sorrisos e cinema francs. Diante da mesa
de desenho, rodeado de pessoas indiferentes, Luis recobrava o
sentido da simetria e do mtodo que gostava de aplicar vida. J que
Laura no tocava no assunto, esperando com aparente indiferena a
resposta de tio Emlio, cabia a ele entender-se com mame. Respondeu
sua carta limitando-se s notcias insignificantes das ltimas
semanas, e deixou para o post-scriptum uma frase de correo: "Ento,
Vctor fala em vir para a Europa. Todo mundo acaba viajando, deve
ser por causa da propaganda das agncias de viagens. Diga a ele que
escreva, podemos mandar informaes teis. Diga tambm que pode contar
com a nossa casa." Tio Emlio respondeu depressa, secamente como era
prprio de um parente to prximo e to ressentido pelo que no velrio
de Nico havia qualificado de inqualificvel. Sem ter-se aborrecido
pessoalmente com Luis, havia demonstrado seus sentimentos com a
sutileza habitual em casos parecidos, esquecendo por dois anos
seguidos o dia de seu aniversrio. Agora se limitava a cumprir com
seu dever de cunhado de mame, e mandava secamente os resultados.
Mame estava muito bem mas quase no falava, coisa compreensvel
levando-se em conta os muitos desgostos dos ltimos tempos. Dava
para se notar que estava muito solitria na casa de Flores, o que
era lgico uma vez que nenhuma me que viveu a vida toda com seus
dois filhos pode sentir-se vontade numa casa enorme e cheia de
recordaes. Quanto s frases em questo, tio Emlio havia procedido com
o tato que a delicadeza do assunto requeria, mas lamentava informar
que no conseguira descobrir grande coisa porque mame no estava
disposta a muita conversa e inclusive o havia recebido na sala de
visitas, coisa que nunca fazia com o cunhado. A uma insinuao de
carter teraputico, havia respondido que tirando o reumatismo
sentia-se perfeitamente bem, embora naqueles dias estivesse cansada
por ter de passar tantas camisas. Tio Emlio tentara saber de que
camisas se tratava, mas ela se limitara a uma inclinao de cabea e a
um oferecimento de xerez e bolachinhas Bagley. Mame no lhes deu
tempo suficiente para discutir a carta de tio Emilio e sua
manifesta ineficincia. Quatro dias mais tarde chegou uma carta
registrada, embora mame soubesse de sobra que no h necessidade de
mandar cartas registradas a Paris. Laura telefonou para Lus e
pediu-lhe que fosse o mais rpido possvel. Meia hora mais tarde
encontrou-a respirando pesado, perdida na contemplao de umas flores
amarelas sobre a mesa. A carta estava na lareira, e Lus tornou a
deix-la onde estava depois da leitura. Foi sentar-se ao lado de
Laura, esperou. Ela sacudiu os ombros. - Ficou louca - disse. Lus
acendeu um cigarro A fumaa fez com que ele chorasse. Compreendeu
que o jogo continuava, que era a sua vez de mover as peas. Mas esse
jogo estava sendo disputado por trs jogadores, talvez quatro Agora
tinha a certeza de que mame tambm estava na frente do tabuleiro.
Pouco a pouco deslizou pelo sof, e deixou que seu rosto vestisse
a
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intil mscara das mos unidas. Ouvia Laura chorar, e l embaixo os
meninos da zeladora corriam aos gritos. A noite a melhor
conselheira, etctera. E trouxe a eles um sono pesado e silencioso,
depois que os corpos se encontraram numa batalha montona que, no
fundo, no haviam desejado. Uma vez mais fechava-se o acordo tcito:
pela manh falariam do tempo, do crime de Saint-Cloud, de James
Dean. A carta continuava sobre a lareira e enquanto bebiam ch no
puderam deixar de v-la, mas Luis sabia que ao voltar do trabalho j
no a encontraria. Laura apagava as pegadas com sua fria e eficaz
diligncia. Um dia, outro dia, outro dia mais. Uma noite riram muito
com as histrias dos vizinhos, com um programa de Femandel. Falou-se
de ir ver uma pea de teatro, de passar um fim de semana em
Fontainebleau. Sobre a mesa de desenho acumulavam-se dados
desnecessrios, tudo coincidia com a carta de mame. O navio chegava
efetivamente a Le Havre na sexta-feira, dia 17, pela manh, e o trem
especial entrava em Saint-Lazare s 11:45h. Na quinta-feira viram a
pea de teatro e se divertiram muito. Duas noites antes, Laura havia
tido outro pesadelo, mas ele nem se incomodou de trazer-lhe gua, e
deixou que ela se tranquilizasse sozinha, dando-lhe as costas.
Depois Laura dormiu em paz, de dia andava ocupada cortando e
costurando um vestido de vero. Falaram de comprar uma mquina de
costura eltrica quando terminassem de pagar a geladeira. Luis
encontrou a carta de mame na gaveta do criado-mudo e levou-a para o
escritrio. Telefonou para a companhia de navegao, embora tivesse
certeza de que mame dava as datas corretas. Era sua nica segurana,
porque no resto no dava nem para pensar. E aquele imbecil do tio
Emilio. O melhor seria escrever a Matilde, por mais afastados que
estivessem, Matilde compreenderia a urgncia de intervir, de
proteger mame. Mas realmente (no era uma pergunta, mas como diz-lo
de outro modo?) era necessrio proteger mame, justamente mame? Por
um momento pensou em pedir uma ligao internacional e falar com ela.
Lembrou-se do xerez e das bolachinhas Bagley, deu de ombros.
Tampouco havia tempo de escrever para Matilde, e embora na verdade
houvesse tempo, talvez fosse prefervel esperar pela sexta-feira,
dia 17, antes de... O conhaque no ajudava mais nem mesmo a no
pensar, ou pelo menos a pensar sem sentir medo. Lembrava-se cada
vez com mais clareza da cara de mame nas ltimas semanas de Buenos
Aires, depois do enterro de Nico. O que ele havia entendido como
sendo dor surgia agora como outra coisa, algo em que havia uma
desconfiana rancorosa, uma expresso de animal que sente que vai ser
abandonado num terreno baldio longe da casa, para se desfazer dele.
Agora comeava a ver de verdade a cara de mame. S agora a via de
verdade naqueles dias em que toda a famlia fazia rodzio para
visit-la, dar os psames por Nico, acompanh-la de tarde, e tambm
Laura e ele vinham de Adrogu para fazer companhia, estar com mame.
Ficavam apenas um pouco porque depois aparecia tio Emilio, ou
Vctor, ou Matilde, e todos eram uma mesma repulsa fria, a famlia
indignada pelo que tinha acontecido, por Adrogu, porque eram
felizes enquanto Nico, coitadinho, enquanto Nico. Jamais
suspeitariam at que ponto haviam colaborado para embarc-los no
primeiro navio que estava mo; como se houvessem se associado para
pagar-lhes as passagens, lev-los carinhosamente a bordo com
presentes e lenos de adeus. Claro que seu dever de filho obrigava-o
a escrever em seguida para Matilde. Ainda era capaz de pensar
coisas assim antes do quarto conhaque. No quinto pensava de novo e
ria (atravessava Paris a p para estar mais sozinho e desanuviar a
cabea), ria de seu dever de filho, como se os filhos tivessem
deveres, como se fossem deveres da quarta
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srie, os sagrados deveres para a sagrada professora do imundo
quarto ano. Porque seu dever de filho no era escrever a Matilde.
Para que fingir (no era uma pergunta, mas como diz-lo de outro
modo?) que mame estava louca? A'nica coisa que podia ser feita era
no fazer nada, deixar que se passassem os dias, menos a
sexta-feira. Quando se despediu como sempre de Laura dizendo-lhe
que no viria almoar porque tinha de terminar uns cartazes com
urgncia, sentia tanta certeza do resto que poderia ter
acrescentado: "Se voc quiser, vamos juntos." Refugiou-se no caf da
estao, menos para disfarar que para poder ter a pobre vantagem de
ver sem ser visto. As 11:35h descobriu Laura por sua saia azul,
seguiu-a distncia, viu-a olhar o quadro de horrios e consultar um
funcionrio, comprar um passe para a plataforma, entrar e juntar-se
s pessoas com o ar dos que esperam. Atrs de uma empilhadeira
carregada de caixas de frutas olhava Laura que parecia duvidar
entre ficar perto da sada da plataforma ou continuar por ela.
Olhava-a sem surpresa, como se fosse um inseto cujo comportamento
pudesse ser interessante. O trem chegou quase em seguida e Laura
misturou-se com as pessoas que se aproximavam das janelas dos vages
buscando cada uma o seu, entre gritos e mos que apareciam como se
dentro do trem todos estivessem se afogando. Deu a volta na
empilhadeira e entrou na plataforma no meio de mais caixas de
frutas e manchas de leo. De onde estava veria os passageiros
saindo, veria Laura passar outra vez, seu rosto cheio de alvio
porque o rosto de Laura, no estaria cheio de alvio? (No era uma
pergunta, mas como diz-lo de outro modo?) E depois, dando-se ao
luxo de ser o ltimo uma vez que passassem os ltimos viajantes e os
ltimos carregadores, ento seria sua vez de sair, desceria praa
cheia de sol para beber um conhaque no caf da esquina. E naquela
mesma tarde escreveria a mame sem a menor referncia ao ridculo
episdio (mas no era ridculo) e depois teria coragem e falaria com
Laura (mas no teria coragem e no falaria com Laura). De qualquer
maneira, conhaque, sem a menor dvida, e que tudo mais fosse para o
inferno. V-los passar assim em cachos, abraando-se com gritos e
lgrimas, a parentada desunida, um'erotismo barato como um carrossel
de parque de diverses varrendo a plataforma, entre malas e pacotes
e finalmente, finalmente, quanto tempo, como voc est queimada,
Ivette, mas sim, havia um tremendo sol, filha. Decidido a buscar
semelhanas, por prazer ou para se aliar imbecilidade, dois dos
homens que passavam perto deviam ser argentinos pelo corte de
cabelo, pelos palets, pelo ar de segurana disfarando o atordoamento
de entrar em Paris. Um, principalmente, se parecia com Nico, para
buscar semelhanas. O outro no, e na realidade nem aquele, bastava
ver seu pescoo muito mais grosso e a cintura muito mais larga. Para
buscar semelhanas por puro prazer, esse outro que j havia passado e
avanava na direo da sada, com uma s maleta na mo esquerda, Nico era
canhoto como ele, tinha as costas um pouco largas, essa forma de
ombros. E Laura devia ter pensado a mesma coisa porque vinha atrs
olhando para ele, no rosto uma expresso que ele conhecia bem, o
rosto de Laura quando despertava do pesadelo e erguia-se na cama
olhando fixamente o ar, olhando, agora sabia, olhando aquele que se
afastava dando-lhe as costas, consumada a indescritvel vingana que
a fazia gritar e debater-se nos sonhos. Buscando semelhanas,
naturalmente o homem era um desconhecido, viram-no de frente quando
ps a maleta no cho para pegar a passagem e entreg-la na sada. Laura
saiu primeiro da estao, deixou que ela tomasse distncia e se
perdesse na parada do nibus. Entrou no caf da esquina e se jogou em
cima de um banquinho no balco. Mais tarde no lembrava se havia
pedido alguma coisa para beber, se isso que queimava sua boca era o
gosto do conhaque barato. Trabalhou a tarde toda nos cartazes, sem
nenhum descanso. A cada momento pensava que teria de escrever a
mame, mas foi deixando
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passar at a hora da sada. Atravessou Paris a p, ao chegar em
casa encontrou a zeladora no saguo e ficou um tempinho conversando
com ela Gostaria de poder ficar conversando com a zeladora ou com
os vizinhos, mas todos iam entrando nos apartamentos e a hora do
jantar estava chegando. Subiu devagar (na verdade sempre subia
devagar para no cansar os pulmes e no tossir) e ao chegar ao
terceiro andar apoiou-se na porta antes de tocar a campainha,
descansando um momento na atitude de quem escuta o que acontece no
interior de uma casa. Depois chamou com os dois toques curtos de
sempre. - Ah, voc - disse Laura, oferecendo-lhe uma face fria. J
comeava a me perguntar se voc ia ficar at mais tarde. A carne deve
estar mais do que cozida. No estava mais do que cozida, porm no
tinha gosto de nada. Se naquele momento tivesse sido capaz de
perguntar a Laura por que havia ido estao, talvez o caf tivesse
recobrado o sabor, ou o cigarro. Mas Laura no saiu de casa o dia
inteiro, disse isso como se necessitasse mentir ou esperasse que
ele fizesse um comentrio irnico sobre a data, as manias lamentveis
de mame. Mexendo o caf, com os cotovelos sobre a toalha, deixou
passar o momento outra vez. A mentira de Laura j no importava, era
mais uma entre tantos beijos indiferentes, tantos silncios onde
tudo era Nico, onde no havia nada nela ou nele que no fosse Nico.
Por que (no era uma pergunta, mas como diz-lo de outro modo?) no
servir a mesa para trs? Por que no ir embora, por que no fechar a
mo e explodi-la contra esse rosto triste e sofrido que a fumaa do
cigarro deformava, fazia ir e vir como entre duas guas, parecia
encher pouco a pouco de dio como se fosse o prprio rosto de mame?
Talvez estivesse no outro cmodo, ou talvez esperasse apoiado na
porta como ele havia esperado, ou j se havia instalado onde sempre
havia sido o amo, no territrio branco e morno dos lenis onde tantas
vezes havia acudido nos sonhos de Laura. Ali esperaria, deitado de
costas, fumando tambm um cigarro, tossindo um pouco, rindo com uma
cara de palhao como a cara dos ltimos dias, quando j no lhe sobrava
nenhuma gota de sangue sadio nas veias. Passou para o outro quarto,
foi at a mesa de trabalho, acendeu o abajur. No precisava reler a
carta de mame para responder como devia. Comeou a escrever, querida
mame. Escreveu: querida mame. Jogou o papel fora, escreveu: querida
mame. Sentia a casa como uma mo que estivesse se fechando sobre
ele. Tudo era mais estreito, mais sufocante. O apartamento era
suficiente para dois, estava planejado exatamente para dois. Quando
levantou os olhos (acabara de escrever: mame), Laura estava na
porta, olhando para ele. Luis soltou a caneta. - Voc no achou que
ele est muito mais magro? - perguntou. Laura fez um gesto. Um
brilho paralelo descia por suas faces. - Um pouco - disse ela. - A
gente vai mudando...
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As armas secretas curioso as pessoas acharem que arrumar uma
cama exatamente a mesma coisa que arrumar uma cama, que estender a
mo sempre a mesma coisa que estender a mo, que abrir uma lata de
sardinhas abrir at o infinito a mesma lata de sardinhas. "Tudo
excepcional", pensa Pierre alisando de modo desajeitado o cobertor
azul gasto. "Ontem chovia, hoje teve sol, ontem eu estava triste,
hoje Michle vir. A nica coisa invarivel que jamais conseguirei que
esta cama tenha um aspecto apresentvel." No faz mal, as mulheres
gostam da desordem do seu quarto de solteiro, podem sorrir (a me
aparece em todos os dentes) e arrumar as cortinas, mudar de lugar
um vaso ou uma cadeira, dizer s mesmo voc poderia ter a idia de
botar esta mesa onde no h luz. Michle dir provavelmente coisas
assim, andar tocando e movendo livros e abajures, e ele a deixar
olhando-a o tempo todo, esticado na cama ou afundado no velho sof,
olhando-a atravs da fumaa de um Gauloise e desejando-a. "Seis da
tarde, a hora grave", pensa Pierre. A hora dourada em que o bairro
inteiro de Saint-Sulpice comea a mudar, a preparar-se para a noite.
Logo as moas estaro saindo no cartrio do tabelio, o marido de
madame Lentre arrastar sua perna pela escada, se ouviro as vozes
das irms do sexto andar, inseparveis na hora de comprar o po e o
jornal. Michle no pode demorar mais, a no ser que se perca ou se
atrase pela rua, com sua especial aptido para deter-se em qualquer
lugar e comear a viajar pelos pequenos mundos particulares das
vitrines. Depois, contar: um urso de corda, um disco de Couperin,
uma corrente de bronze com uma pedra azul, as obras completas de
Stendhal, a moda de vero. Razes to compreensveis para chegar um
pouco tarde. Outro Gauloise, outro gole de conhaque. Sente vontade
de escutar algumas canes de MacOrlan, busca sem muito esforo entre
montes de papis e cadernos. Na certa Roland ou Babette levaram o
disco; bem que podiam avisar, quando levassem alguma das suas
coisas. E por que Michle no chega? Senta-se na beira da cama,
amassando o cobertor. Pronto, agora vai ter de esticar de um lado e
do outro, reaparecer a maldita ponta do travesseiro. H um terrvel
cheiro de cigarro, Michle franzir o nariz e dir que h um terrvel
cheiro de cigarro. Centenas e centenas de Gauloises fumados em
centenas e centenas de dias: uma tese, algumas amigas, duas crises
hepticas, livros, aborrecimento. Centenas e centenas de Gauloises?
Sempre o surpreende descobrir-se propenso ao nmio, dando importncia
a detalhes. Lembra-se de velhas gravatas jogadas no lixo h dez
anos, da cor de um selo do Congo Belga, orgulho de sua infncia
filatlica. Como se no fundo da memria soubesse exatamente quantos
cigarros fumou na vida, qual o gosto de cada um, em que momento o
acendeu, onde jogou o toco fumado. Vai ver, as cifras absurdas que
s vezes aparecem em seus sonhos so mostras dessa implacvel
contabilidade. "Mas ento, Deus existe", pensa Pierre. O espelho do
armrio devolve-lhe o sorriso, obrigando-o como sempre a recompor o
rosto, jogar para trs a mecha de cabelo negro que Michle ameaa
cortar. Por que Michle no chega? "Porque no quer entrar no meu
quarto", pensa Pierre. Mas para poder um dia cortar a mecha da
fronte ela ter que entrar em seu quarto e se deitar em sua cama.
Alto preo paga Dalila, no se chega assim toa ao cabelo de um homem.
Pierre diz a si mesmo que um idiota por haver pensado que Michle no
quer subir ao seu quarto. Pensou-o em silncio, como que de longe. s
vezes o pensamento parece ter que abrir caminho por incontveis
barreiras, at se anunciar e ser ouvido. estpido pensar que Michle
no quer subir ao seu quarto. Se no chega porque est absorta diante
de uma vitrine de uma loja de ferragens ou de qualquer coisa,
encantada com a viso de uma pequena foca de porcelana ou uma
litografia de Zao-Wu-Ki. Parece v-la, e ao mesmo tempo percebe
que
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est imaginando uma carabina de cano duplo, justamente quando
traga a fumaa do cigarro e sente-se perdoado por sua bobagem. Uma
carabina de cano duplo no tem nada de mais, mas o que pode fazer a
esta hora e no seu quarto a idia de uma carabina de cano duplo, e
essa sensao de saudade? No gosta dessa hora em que tudo se vira
para o lils, para o cinza. Estira indolentemente o brao para
acender o abajur da mesa. Por que Michle no vem? No vir mais, intil
continuar esperando. Ser- preciso pensar que realmente no quer vir
ao seu quarto. Enfim, enfim. Nada de olhar pelo lado trgico; outro
conhaque, o livro comeado, descer para comer alguma coisa no bistr
de Len. As mulheres so sempre as mesmas, em Enghien ou em Paris,
jovens ou maduras. Sua teoria dos casos excepcionais comea a
desmoronar, a ratinha retrocede antes de entrar na ratoeira. Mas
qual ratoeira? Um dia ou outro, antes ou depois... Est esperando
por ela desde as cinco, embora sua chegada fosse prevista para as
seis; alisou, especialmente para ela, o cobertor azul, subiu como
um idiota numa poltrona, espanador na mo, para soltar uma
insignificante teia de aranha que no fazia mal a ningum. E seria to
natural que naquele mesmo momento ela descesse do nibus em
Saint-Sulpice e se aproximasse da sua casa, parando diante das
vitrines ou olhando as pombas na praa. No h nenhuma razo para que
no queira subir at o seu quarto. Claro que tampouco no h nenhuma
razo para pensar numa carabina de cano duplo, ou decidir que neste
momento Michaux, seria melhor leitura que Graham Greene. A escolha
instantnea sempre deixa Pierre preocupado. No pode ser que tudo
seja gratuito, que um mero acaso decida Greene contra Michaux,
Michaux contra Enghien, ou seja, contra Greene. Inclusive confundir
uma localidade como Enghien com um escritor como Greene... "No pode
ser que tudo seja to absurdo", pensa Pierre jogando o cigarro
longe. "E se no vem porque aconteceu alguma coisa; no tem nada a
ver com ns dois." Desce at a rua, espera na porta. V as luzes na
praa se acenderem. No bistr de Len no h quase ningum quando se
senta numa mesa da rua e pede uma cerveja. De onde est pode ver a
entrada da casa, portanto... Len fala da Volta da Frana; chegam
Nicole e sua amiga, a florista de voz rouca. A cerveja est gelada,
o caso de pedir algumas salsichas. Na entrada de sua casa o garoto
da zeladora brinca saltando sobre uma perna s. Quando se cansa
comea a saltar sobre a outra, sem se mover da porta. - Que bobagem
- diz Michle. - Por que no iria querer ir sua casa, se havamos
combinado? Edmond traz o caf das onze da manh. No h quase ningum a
essa hora, e Edmond demora ao lado da mesa para comentar a Volta da
Frana. Depois Michle explica o presumvel, o que Pierre deveria ter
pensado. Os freqentes desvanecimentos de sua me, papai que se
assusta e telefona para o escritrio, correr atrs de um txi para que
no final no seja nada, uma tontura insignificante. No a primeira
vez que tudo isso acontece, s mesmo Pierre para... - Fico feliz de
saber que ela j est bem - diz Pierre tolamente. Pe uma mo sobre a
mo de Michle. Michle pe sua outra mo sobre a de Pierre. Pierre pe
sua outra mo sobre a de Michle. Michle tira a mo de baixo e a
coloca em cima. Pierre tira a mo de baixo e a coloca em cima.
Michle tira a mo de baixo e apoia a palma contra o nariz de
Pierre.
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- Frio como o de um cachorrinho. Pierre admite que a temperatura
de seu nariz um enigma insondvel. - Bobo - diz Michle, resumindo a
situao. Pierre beija sua testa, por cima do cabelo. Como ela baixa
a cabea, pega seu queixo e a obriga a olh-lo antes de beij-la na
boca. Beija uma, duas vezes. H o cheiro de alguma coisa fresca, de
sombra debaixo das rvores. "Im wunderschonen Monat Mai", ouve
claramente a melodia. Admira-se vagamente de recordar to bem a
letra, que s quando traduzida tem sentido para ele. Mas gosta da
melodia, as palavras soam to bem contra o cabelo de Michle, contra
sua boca mida, "Im wunderschonen Monat Mai, ais...'" A mo de Michle
afunda em seu ombro, crava as unhas. - Voc me machuca - diz Michle
rejeitando-o, passando os dedos pelos lbios. Pierre v a marca de
seus dentes na beira dos lbios. Acaricia a face de Michle e beija-a
outra vez, levemente. Michle est zangada. No, no est. Quando,
quando, quando vo se encontrar a ss? Para ele, difcil compreender,
as explicaes de Michle parecem se referir a outra coisa. Obstinado
com a idia de v-la chegar algum dia sua casa, de que vai subir os
cinco andares e entrar em seu quarto, no entende que tudo se
clareia de repente, que os pais de Michle vo para o stio por 15
dias. Deixa eles, melhor, porque ento Michle... De repente percebe,
fica olhando para ela. Michle ri. - Voc vai ficar sozinha em casa
esses quinze dias? - Como voc bobo - diz Michle. Estende um dedo e
desenha invisveis estrelas, rombos, suaves espirais. Claro que sua
me conta com que a fiel Babette a acompanhe essas duas semanas,
houve tantos roubos e assaltos nos subrbios. Mas Babette ficar em
Paris o tempo que eles quiserem. Pierre no conhece a casa, embora a
tenha imaginado tantas vezes que como se j estivesse nela, entra
com Michle num salozinho atopetado de mveis vetustos, sobe uma
escada depois de roar com os dedos a bola de vidro onde nasce o
corrimo. No sabe por que a casa o desagrada, tem vontade de sair
para o jardim embora custe a acreditar que uma casa to pequena
possa ter um jardim. Solta-se da imagem com esforo, descobre que
feliz, que est no caf com Michle, que a casa ser diferente disso
que imagina e o sufoca um pouco com seus mveis e seus tapetes
desbotados. "Tenho de pedir a motocicleta ao Xavier", pensa Pierre.
Vir esperar Michle e em meia hora estaro em Clamart, tero dois fins
de semana para fazer excurses, ser preciso conseguir uma garrafa
trmica e comprar nescaf. - Existe uma bola de vidro na escada da
sua casa? - No - diz Michle. - Voc est confundindo com... Cala-se,
como se alguma coisa incomodasse sua garganta. Afundado no
banquinho, a cabea apoiada no alto espelho com o qual Edmond
pretende multiplicar as mesas do caf, Pierre admite vagamente que
Michle como uma gata ou um retrato annimo. Faz to pouco tempo que a
conhece, talvez para ela tambm seja difcil entend-lo. Claro que
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amar no nunca uma explicao, como no nenhuma explicao ter amigos
em comum ou compartilhar opinies polticas. Comea-se sempre por
acreditar que no existe mistrio em ningum, to fcil acumular
informaes: Michle Duvernois, 24 anos, cabelo castanho, olhos cinza,
funcionria em um escritrio. E ela tambm sabe que Pierre Jovilet, 23
anos, cabelo louro... Mas amanh ir com ela casa dela, em meia hora
de viagem estaro em Enghien. "Chega de Enghien", pensa Pierre,
espantando o nome como se fosse uma mosca. Tero 15 dias para
estarem juntos, e na casa existe um jardim, provavelmente to
diferente do que ele imagina, mas Michle est chamando Edmond, so
mais de onze e meia e o gerente franzir o nariz se a vir atrasada.
- Fica um pouco mais - diz Pierre. - Roland e Babette esto vindo a.
incrvel como nunca podemos ficar sozinhos neste caf. - Sozinhos? -
diz Michle. - Mas se viemos para encontrlos... - Eu sei, mas d no
mesmo. Michle sacode os ombros, e Pierre sabe que o compreende e
que no fundo tambm lamenta que os amigos apaream to pontualmente.
Babette e Roland trazem seu ar habitual de plcida felicidade que
dessa vez o irrita e o impacienta. Esto do outro lado, protegidos
pelo quebra-mar do tempo; suas cleras e insatisfaes pertencem ao
mundo, poltica ou arte, nunca a eles mesmos, a sua relao mais
profunda. Salvos pelo costume, pelos gestos mecnicos. Tudo isolado,
passado a ferro, guardado, numerado. Porquinhos satisfeitos, pobres
coitados to bons amigos. Est a ponto de apertar a mo que Roland
estende, engole saliva, olha-o nos olhos, depois aperta-lhe os
dedos como se quisesse quebr-los. Roland ri e senta-se na frente
deles; traz notcias de um cineclube, preciso ir segunda-feira sem
falta. "Porquinhos satisfeitos", mastiga Pierre. idiota, injusto.
Mas um filme de Pudovkin, tenha a santa pacincia, j hora de
procurar alguma coisa nova. - A coisa nova - debocha Babette. - O
novo. Como voc est velho, Pierre. Nenhuma razo para no querer
apertar a mo de Roland. - E tinha vestido uma blusa cor de laranja,
que ficava to bem - conta Michle. Roland oferece Gauloises e pede
caf. Nenhuma razo para no querer apertar a mo de Roland. - Sim, uma
menina inteligente - diz Babette. Roland olha para Pierre e pisca
um olho. Tranqilo, sem problemas. Absolutamente sem problemas,
porquinho tranqilo. Essa tranqilidade d nojo em Pierre, essa coisa
de Michle estar falando de uma blusa cor de laranja, to longe dele
como sempre. No tem nada a ver com eles, entrou no grupo por ltimo,
mal e mal o toleram. Enquanto fala (agora questo de uns sapatos),
Michle passa um dedo pela beira do prprio lbio. Nem ao menos capaz
de beij-la bem, machucou-a e Michle se lembra. E todo mundo o
machuca, piscam para ele, sorriem, gostam muito dele. como um
peso
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no peito, uma necessidade de ir embora e estar sozinho em seu
quarto perguntando-se por que Michle no veio, por que Babette e
Roland levaram um disco sem avisar a ele. Michle olha o relgio e se
sobressalta. Combinam o cineclube, Pierre paga o caf. Sente-se
melhor, gostaria de conversar um pouco mais com Roland e Babette,
cumprimenta-os com afeto. Porquinhos bons, to amigos de Michle.
Roland v os dois se afastarem, sarem rua sob o sol. Bebe seu caf
devagar. - Eu me pergunto - diz Roland. - Eu tambm - diz Babette. -
Afinal de contas, por que no? - Por que no, claro. Mas seria a
primeira vez desde aquela. - J hora de Michle fazer alguma coisa da
sua vida - diz Roland. - E se voc quiser saber minha opinio, est
muito apaixonada. - Os dois esto muito apaixonados. Roland fica
pensando. Marcou encontro com Xavier num caf da praa SaintMichel,
mas chega cedo demais. Pede cerveja e d uma olhada no jornal; no se
lembra bem do que fez desde que se separou de Michle na porta do
escritrio. Os ltimos meses so to confusos como a manh que ainda no
transcorreu e j uma mistura de falsas lembranas, de equvocos. Nessa
vida distante que leva, a nica certeza haver estado o mais perto
possvel de Michle, esperando e entendendo que no basta, isso s, no,
que tudo vagamente assustador, que no sabe nada de Michle, na
verdade absolutamente nada (tem olhos cinza, tem cinco dedos em
cada mo, solteira, penteia-se como uma menininha), na verdade
absolutamente nada. Ento, se ele no sabe nada de Michle, basta
deixar de v-la um momento para que o vazio se faa um emaranhado
espesso e amargo; ela tem medo de voc, tem nojo, s vezes rejeita
voc no mais profundo de um beijo, no quer ir para a cama com voc,
tem horror de alguma coisa, hoje mesmo, de manh, rejeitou voc com
violncia (e como estava linda, e como se grudou em voc no momento
de se despedir, e como preparou tudo para se reunir com voc amanh
para irem juntos sua casa de Enghien?), e voc deixou a marca de
seus dentes em sua boca, estava beijando-a e mordeu-a e ela se
queixou, passou os dedos pela boca e queixou-se sem raiva, um pouco
assustada e s, "a/5 alie Knospen sprangen"', voc cantava Schumann
por dentro, pedao de animal, cantava enquanto a mordia na boca e
agora se lembra, alm disso subia a escada, sim, voc subia, roava
com a mo a bola de vidro onde nasce o corrimo, mas depois Michle
disse que em sua casa no h nenhuma bola de vidro. Pierre desliza no
banquinho, procura os cigarros. Afinal, Michle tambm no sabe muito
a seu respeito, no nada curiosa embora tenha essa maneira atenta e
sria de escutar as confidencias, essa aptido para compartilhar um
momento de vida, qualquer coisa, um gato que sai da porta da
garagem, uma tormenta na Cite, uma folha de trevo, um disco de
Gerry Mulligan. Atenciosa, entusiasta e sria ao mesmo tempo, to
igual para escutar e para fazer-se escutar. assim como de encontro
em encontro, de conversa em conversa,
-
19
caram na solido do casal na multido, um pouco de poltica,
livros, ir ao cinema, beijar-se cada vez mais profundamente,
permitir que sua mo desa pela garganta, roce os seios, repita a
interminvel pergunta sem resposta. Chove, preciso se refugiar numa
marquise; o sol cai sobre a cabea, entraremos nessa livraria, amanh
vou apresentar voc a Babette, uma velha amiga, voc vai gostar dela.
E depois suceder que o amigo de Babette um antigo camarada de
Xavier, que o melhor amigo de Pierre, e o crculo ir se fechando, s
vezes em casa de Babette e Roland. s vezes no consultrio de Xavier
ou nos cafs do bairro latino, de noite. Pierre agradecer, sem se
explicar a causa de sua gratido, que Babette e Roland sejam to
amigos de Michle e que dem a impresso de proteg-la discretamente,
sem que Michle necessite ser protegida. Ningum fala muito dos
outros nesse grupo; preferem os grandes temas, a poltica ou os
processos, e principalmente olhar-se satisfeitos, trocar cigarros,
sentar nos cafs e viver sentindo-se rodeados de amigos. Teve a
sorte de ser aceito e que o deixem entrar; no so fceis, conhecem os
mtodos mais seguros para desanimar os recm-chegados. "Gosto deles",
se diz Pierre, bebendo o resto da cerveja. Talvez achem que j o
amante de Michle, pelo menos Xavier acreditar nisso; no lhe
entraria na cabea que Michle tenha conseguido se negar todo esse
tempo, sem razes precisas, simplesmente negar-se e continuar se
encontrando com ele, saindo juntos, deixando-o falar ou falando
ela. At estranheza possvel se acostumar, crer que o mistrio se
explica por si s e que a gente acaba vivendo dentro, aceitando o
inaceitvel, despedindo-se nas esquinas ou nos cafs quando tudo
seria to simples, uma escada com uma bola de vidro na ponta do
corrimo que leva ao encontro, ao verdadeiro. Mas Michle disse que
no h nenhuma bola de vidro. Alto e magro, Xavier traz sua cara dos
dias de trabalho. Fala de umas experincias, da biologia como uma
incitao ao ceticismo. Olha um dedo, manchado de amarelo. Pierre
pergunta a ele: - J aconteceu de voc pensar de repente em coisas
completamente alheias s que estava pensando? - Completamente
alheias uma hiptese de trabalho e nada mais - diz Xavier. - Eu me
sinto muito esquisito ultimamente. Voc devia me dar alguma coisa,
uma espcie de objetivador. - Objetivador? - diz Xavier. - Isso no
existe, meu velho. - Penso demais em mim mesmo - diz Pierre. - E
idiota. - E Michle, no objetiva voc? - Pois justamente, ontem mesmo
me aconteceu que... Ouve-se falar, v Xavier que o est vendo, v a
imagem de Xavier no espelho, a nuca de Xavier, v a si mesmo falando
para Xavier (mas por que tive de ter essa idia de que h uma bola de
vidro na ponta do corrimo?), e de vez em quando assiste ao
movimento de cabea de Xavier, o gesto profissional to ridculo
quando no est no consultrio e o mdico no est vestindo o avental
branco que o situa em outro plano e concede a ele outras
potestades.
-
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- Enghien - diz Xavier. - No se preocupe com isso, eu confundo
sempre L Mans com Menton. A culpa deve ser de' alguma professora, l
na infncia distante. "Im wunderschoren Monat Mo/", cantarola a
memria de Pierre. - Se voc no dormir bem me avise, que darei alguma
coisa diz Xavier. - Seja como for, esses quinze dias no paraso sero
suficientes, tenho certeza. No h nada melhor que dividir um
travesseiro, isso aclara completamente as idias; s vezes at acaba
com elas, o que j uma tranqilidade. Talvez se trabalhasse mais, se
se cansasse mais, se pintasse seu quarto ou fizesse a p o trajeto
at a faculdade em vez de tomar o nibus. Se tivesse que ganhar os
setenta mil francos que seus pais mandam. Apoiado no parapeito da
Pont Neuf olha as barcaas passarem e sente o sol de vero no pescoo
e nos ombros. Um grupo de moas ri e brinca, ouve-se o trote de um
cavalo; um ciclista ruivo assovia longamente ao passar pelas moas,
e como se as folhas secas se levantassem e comessem seu rosto numa
nica e horrvel mordida negra. Pierre esfrega os olhos, lentamente
endireita o corpo. No foram palavras, tampouco uma viso: algo entre
as duas, uma imagem desordenada em tantas palavras como folhas
secas no cho (que se levantou de encontro ao seu rosto). V que sua
mo direita est tremendo contra o parapeito. Aperta os dedos
fechados, luta at dominar o tremor. Xavier j estar longe, seria
intil correr atrs dele, acrescentar uma nova histria ao mostrurio
insensato. "Folhas secas", dir Xavier. "Mas no h folhas secas na
Pont Neuf." Como se ele no soubesse que no h folhas secas na Pont
Neuf, que as folhas secas esto em Enghien. Agora vou pensar em voc,
querida, somente em voc, a noite toda. Vou pensar somente em voc, a
nica maneira de me sentir, ter voc no centro de mim como uma rvore,
soltar-me pouco a pouco do tronco que me mantm e me guia, flutuar
ao seu redor cautelosamente, tateando o ar com cada folha (verdes,
verdes, eu mesmo e voc mesma, tronco de seiva e folhas verdes:
verdes, verdes), sem me afastar de voc, sem deixar que o resto
penetre entre voc e eu, me distraia de voc, me prive por um nico
segundo de saber que esta noite est girando para o amanhecer e que
l do outro lado, onde voc mora e est dormindo, ser outra vez de
noite quando chegarmos juntos e entrarmos na sua casa, subirmos os
degraus do prtico, acendermos as luzes, acariciarmos o seu co,
bebermos caf, nos olharmos tanto antes que eu abrace voc (ter voc
no centro de mim como uma rvore) e leve voc at a escada (mas no h
nenhuma bola de vidro) e comearmos a subir, a subir, a porta est
fechada, mas tenho a chave no bolso... Pierre salta da cama, mete a
cabea debaixo da torneira da pia. Pensar somente em voc, mas como
pode ser que o que est pensando seja um desejo escuro e surdo onde
Michle no mais Michle (ter voc dentro de mim como uma rvore), onde
no consegue senti-la em seus braos enquanto sobe a escada, porque
assim que pisou num degrau viu a bola de vidro e est sozinho, est
subindo sozinho a escada e Michle est l em cima, trancada, est atrs
da porta sem saber que ele tem outra chave no bolso e que est
subindo.
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Seca o rosto, abre as janelas para a fresca da madrugada. Um
bbado monologa amistosamente na rua, balanando-se como se flutuasse
numa gua pegajosa. Cantarola, vai e vem cumprindo uma espcie de
dana suspensa e cerimoniosa no cinza que pouco a pouco morde as
pedras do pavimento, os portais fechados. "Ais alie Knospen
sprangen", as palavras se desenham nos lbios ressecados de Pierre,
grudam-se no cantarolar l de baixo no tem nada a ver com a melodia,
mas tampouco as palavras tm a ver com nada, vm como todo o resto,
grudam-se vida por um momento e depois h como uma ansiedade
rancorosa, buracos revirando-se para mostrar fiapos que se
engancham em qualquer outra coisa, uma carabina de dois canos, um
colcho de folhas secas, o bbado que dana compassadamente uma espcie
de pavana, com reverncias que se abrem em farrapos e tropees e
vagas palavras mastigadas. A moto ronroneia ao logo da rue d'Alsia.
Pierre sente os dedos de Michle que apertam um pouco mais sua
cintura toda vez que passam grudados a um nibus ou viram em uma
esquina. Quando os sinais vermelhos os detm, ele inclina a cabea
para trs e espera uma carcia, um beijo nos cabelos. - No tenho mais
medo - diz Michle. - Voc dirige isto muito bem. Agora, temos de
virar direita. A casa est perdida entre dzias de casas parecidas,
numa colina um pouco alm de Clamart. Para Pierre a casa de Clamart
soa como um refgio, a certeza de que tudo ser tranqilo e isolado,
de que haver um jardim com cadeiras de palha e talvez, de noite,
algum vaga-lume. - O seu jardim tem vaga-lumes? - Acho que no - diz
Michle. - Voc tem cada idia... difcil falar na moto, o trfego
obriga a se concentrar e Pierre est cansado, dormiu poucas horas
pela manh. Ter que se lembrar de tomar os comprimidos que Xavier
lhe deu, mas naturalmente no se lembrar de tom-los e, alm do mais,
no vai precisar. Inclina a cabea para trs e resmunga porque Michle
demora para beij-lo, Michle ri e passa a mo pelos cabelos dele.
Sinal aberto. "Deixa de besteira", disse Xavier, evidentemente
desconcertado. Claro que passar, dois comprimidos antes de dormir,
um gole dgua. Como dormir Michle? - Michle, como que voc dorme? -
Muito bem - diz Michle. - s vezes tenho pesadelos, como todo mundo.
Claro como todo mundo, somente ao se despertar sabe que o sonho
ficou para trs, sem se misturar com os rudos da rua, com as caras
dos amigos, isso que se infiltra nas ocupaes mais inocentes (mas
Xavier disse que com dois comprimidos estar tudo bem), dormir com o
rosto afundado no travesseiro, as pernas um pouco encolhidas,
respirando levemente, e ir v-la assim agora, vai t-la contra seu
corpo, adormecida assim, ouvindo-a respirar, indefesa e nua quando
ele acariciar seu cabelo com a mo, e o sinal amarelo, sinal
vermelho, stop.
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Freia com tanta violncia que Michle grita e depois fica muito
quieta, como se tivesse vergonha de seu grito. Com um p apoiado no
cho, Pierre gira a cabea, sorri para alguma coisa que no Michle e
fica como que perdido no ar, sempre sorrindo. Sabe que o sinal vai
passar para o verde, atrs da moto h um caminho e um automvel, sinal
verde, algum toca a buzina, duas, trs vezes. - O que est
acontecendo? - pergunta Michle. O sujeito do automvel xinga ao
passar, e Pierre arranca lentamente. Estvamos no ponto em que ia
v-la tal como ela , indefesa e nua. Dissemos isso, havamos chegado
exatamente ao momento em que a vamos indefesa e nua, ou seja, que
no h nenhuma razo para supor nem por um instante que ser
necessrio... Sim, j ouvi, primeiro esquerda e depois outra vez
esquerda. L, naquele teto de telhas escuras? H pinheiros, que
bonito, mas que bonita a casa, um jardim com pinheiros e seus pais
que foram para o stio, quase no d para acreditar, Michle, uma coisa
assim no d para acreditar. Bobby, que os recebeu com um festival de
latidos, salva as aparncias cheirando minuciosamente as calas de
Pierre, que empurra a motocicleta at a varanda. Michle j entrou na
casa, abre as persianas, torna a receber Pierre que olha as paredes
e descobre que nada daquilo parece com o que ele imaginou. - Aqui
deveria haver trs degraus - diz Pierre. - E este salo, claro,
claro... No liga pra mim, a gente sempre imagina outra coisa. At os
mveis, cada detalhe. Voc tambm tem dessas coisas? - s vezes tenho -
diz Michle. - Pierre, estou com fome. No, Pierre, escuta, seja
bonzinho e me ajude; temos de cozinhar alguma coisa. - Querida -
diz Pierre. - Abra essa janela, para o sol entrar. E fique quieto,
Bobby vai achar que... - Michle - diz Pierre. -No, espere, deixa eu
subir para mudar de roupa. Tire o palet, se quiser, nesse armrio
deve ter bebida, no entendo dessas coisas. Ele a v correr, subir
pela escada, perder-se l em cima. No armrio h bebidas, ela no
entende disso. O salo profundo e escuro, a mo de Pierre acaricia a
ponta do corrimo. Michle j havia dito, mas como um desencanto em
silncio, ento no existe uma bola de vidro. Michle volta com umas
calas velhas e uma blusa inacreditvel. - Voc parece um cogumelo -
diz Pierre com a ternura de todo homem para a mulher que veste
roupas grandes demais. No vai me mostrar a casa? - Se voc quiser -
diz Michle. - No achou as bebidas? Espere, voc no sabe fazer
nada...
-
23
Levam os copos para o salo e sentam-se no sof na frente da
janela aberta. Bobby faz festa para os dois, deita-se no tapete e
fica o olhando para eles. - Ele aceitou voc logo de sada - diz
Michle lambendo a beirada do copo. - Gostou da casa? - No -
responde Pierre. - sombria, burguesa at morrer, cheia de mveis
abominveis. Mas voc est aqui, com essas calas horrveis. Acaricia
sua garganta, a atrai contra seu corpo, beija sua boca. Os dois se
beijam-se na boca, em Pierre desenha-se o calor da mo de Michle,
beijam-se na boca, deslizam um pouco, mas Michle geme e tenta se
safar, murmura alguma coisa que ele no entende. Pensa confusamente
que a coisa mais difcil tapar sua boca, no quer que desmaie. Solta
a moa bruscamente, olha as prprias mos como se no fossem dele,
ouvindo a respirao precipitada de Michle, o grunhido surdo de Bobby
no tapete. - Voc vai me deixar louco - diz Pierre, e o ridculo da
frase menos penoso que o que acaba de acontecer. Como uma ordem, um
desejo irrefrevel, tapar-lhe a boca para que no desmaie. Estica a
mo, acaricia de longe a face de Michle, est de acordo com tudo,
concorda em comer alguma coisa improvisada, em que dever escolher o
vinho, em que faz muitssimo calor ao lado da janela. Michle come
sua maneira, misturando o queijo com as anchovas no azeite, a
salada e os pedaos de caranguejo. Pierre bebe vinho branco, olha
para ela, sorri para ela. Se se casasse com ela beberia todos os
dias seu vinho branco nesta mesa, e olharia para ela e sorriria. -
engraado - diz Pierre. - Nunca falamos dos anos da guerra. - Quanto
menos se falar... - diz Michle, passando o po pelo prato. - Eu sei,
mas as lembranas s vezes voltam. Para mim no foi to ruim, afinal de
contas ramos crianas na poca. Como umas frias interminveis, um
absurdo total e quase divertido. - Para mim no houve frias - diz
Michle. - Chovia o tempo todo. - Chovia? - Aqui - diz ela, tocando
a fronte. - Na frente de meus olhos, atrs dos meus olhos. Estava
tudo mido, tudo parecia suado e mido. - Voc morava nesta casa? - No
comeo, sim. Depois, quando veio a ocupao, me levaram para a casa de
uns tios, em Enghien. Pierre no nota que o fsforo queima entre seus
dedos, abre a boca, sacode a mo e xinga. Michle sorri, contente por
poder falar de outra coisa. Quando se levanta para trazer a fruta,
Pierre acende o cigarro e traga a fumaa como se estivesse se
afogando,
-
24
mas j passou, tudo tem uma explicao quando a gente a busca,
quantas vezes Michle ter mencionado Enghien nas conversas do caf,
essas frases que parecem insignificantes e dignas de esquecimento,
at que acabam sendo o tema central de um sonho ou uma fantasia. Um
pssego, sim, mas descascado. Ah, ele sente muito, mas as mulheres
sempre descascaram os pssegos e Michle no tem por que ser uma
exceo. - As mulheres. Se descascavam os pssegos para voc eram umas
bobas como eu. Seria melhor voc moer o caf. - Ento, voc morou em
Enghien - diz Pierre, olhando as mos de Michle com o leve nojo que
sempre sente ao ver algum descascar uma fruta. - E o que seu pai
fazia durante a guerra? - Oh, no fazia grande coisa. Vivamos,
esperando que tudo acabasse de uma vez. - Os alemes nunca
incomodaram? - No - diz Michle, dando voltas no pssego entre os
dedos midos. - a primeira vez que voc me diz que moraram em
Enghien. - No gosto de falar daqueles tempos - diz Michle. - Mas
alguma vez voc deve ter falado - diz contraditoriamente Pierre. -
No sei como, mas eu sabia que voc tinha morado em Enghien. O pssego
cai no prato e os pedaos de casca tornam a grudar na polpa. Michle
limpa o pssego com a faca e Pierre sente nojo de novo, gira o
moedor de caf com todas as suas foras. Por que ela no lhe diz nada?
Parece estar sofrendo, dedicada limpeza do horrvel pssego mido. Por
que no fala nada? Est cheia de palavras, no precisa mais que olhar
suas mos, o piscar nervoso que s vezes termina numa espcie de
tique, um lado inteiro de seu rosto ergue-se levemente e volta ao
lugar, na outra vez, num banco de jardim de Luxemburgo, j tinha
notado esse tique, que sempre coincide com um incmodo ou um
silncio. Michle prepara o caf de costas para Pierre, que acende um
cigarro no outro. Voltam ao salo levando as xcaras de porcelana com
pintas azuis. O cheiro do caf lhes faz bem, olham-se como se no
entendessem essa trgua e tudo que a precedeu; trocam palavras
soltas, olhando-se e sorrindo, tomam o caf, distrados, como se toma
os filtros que atam para sempre. Michle mexeu nas persianas e do
jardim entra uma luz esverdeada e quente que os envolve como a
fumaa dos cigarros e o conhaque que Pierre saboreia perdido num
abandono macio. Bobby dorme no tapete, estremecendo-se e
suspirando. - Sonha o tempo todo - diz Michle. - s vezes chora e
acorda de repente, olha para todo mundo como se acabasse de passar
por uma dor imensa. E quase um filhote... A delcia de estar ali, de
sentir-se to bem naquele instante, de fechar os olhos, de suspirar
como Bobby, de passar a mo nos prprios cabelos, uma vez, duas,
sentindo que a mo que anda pelos cabelos quase no a dele, a leve
ccega ao chegar nuca,
-
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o repouso. Quando abre os olhos v o rosto de Michle, sua boca
entreaberta, a expresso como se de repente tivesse ficado sem uma
gota de sangue. Olha para ela sem entender, um copo de conhaque
roda pelo tapete. Pierre est de p na frente do espelho; quase acha
engraado ver que tem os cabelos repartidos no meio, como os gals do
cinema mudo. Por que Michle tem de chorar? No est chorando, mas um
rosto entre as mos sempre algum que chora. Afasta as mos dela
bruscamente, beija seu pescoo, procura sua boca. Nascem as
palavras, as suas, as dela, como pequenas feras que se procuram, um
encontro que se atrasa em carcias, um cheiro de sesta, a casa
sozinha, a escada esperando com a bola de vidro na ponta do
corrimo. Pierre gostaria de erguer Michle nos braos, subir
correndo, tem a chave no bolso, entrar no dormitrio, se estender
contra ela, a sentir estremecer, comear desajeitadamente a buscar
cintas, botes, mas no h uma bola de vidro na ponta do corrimo, tudo
distante e horrvel, Michle ali ao seu lado est to longe e chorando,
seu rosto chorando entre os dedos molhados, seu corpo que respira e
sente medo e o rejeita. Ajoelhando-se, apoia a cabea no regao de
Michle. Passam-se as horas, passa um minuto ou dois, o tempo algo
cheio de aoites e baba. Os dedos de Michle acariciam os cabelos de
Pierre e ele v outra vez o rosto dela, um comeo de sorriso, Michle
o penteia com os dedos, quase o machuca fazendo fora para esticar
seus cabelos para trs, e ento se inclina e o beija e sorri. - Voc
me deu medo, de repente achei... Como sou boba, mas que voc estava
diferente. - Quem voc viu? - Ningum - diz Michle. Pierre encolhe-se
esperando, agora existe alguma coisa como uma porta que oscila e
vai se abrir. Michle respira pesadamente, tem algo do nadador
espera do tiro de largada. - Eu me assustei porque... No sei, voc
me fez pensar que... Oscila, a porta oscila, a nadadora espera o
tiro para mergulhar. O tempo se estica como um pedao de elstico,
ento Pierre estende os braos e prende Michle, ergue-se at ela e
beija-a profundamente, busca seus seios debaixo da blusa, ouve-a
gemer e tambm geme enquanto a beija, vem, vem agora, tentando
ergula nos braos (so 15 degraus e uma porta direita), ouvindo a
queixa de Michle, seu protesto intil, ergue-se com ela nos braos,
incapaz de esperar mais, agora, neste exato momento, no adiantar
nada querer agarrar-se na bola de vidro, o corrimo (mas no h
nenhuma bola de vidro no corrimo), ir lev-la para cima e ento como
uma cadela, todo ele um n de msculos, como a cadela que , para
aprender, oh Michle, oh meu amor, no chore desse jeito, no fique
triste, meu amor, no me deixe cair de novo nesse poo negro, como
pude pensar isso, no chore, Michle. - Me solta - diz Michle em voz
baixa, lutando para se soltar. Acaba de rejeit-lo, olha-o um
instante como se no fosse ele e corre para fora do salo, fecha a
porta da cozinha, ouve-se girar uma chave, Bobby late no
jardim.
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26
O espelho mostra a Pierre um rosto liso, inexpressivo, uns braos
que pendem como trapos, a camisa para fora das calas. Mecanicamente
arruma as roupas, sempre olhando-se em seu reflexo. Tem a garganta
to fechada que o conhaque queima sua boca, negando-se a passar, at
que insiste e continua bebendo da garrafa, um gole interminvel.
Bobby parou de latir, h um silncio de sesta, a luz na casa cada vez
mais esverdeada. Com um cigarro entre os lbios ressecados sai
varanda, desce ao jardim, passa ao lado da moto e vai at os fundos.
Sente o cheiro de zumbido de abelhas, de colcho de felpas de
pinheiro, e agora Bobby comeou a latir entre as rvores, late para
ele, de repente comeou a grunhir e a latir sem se aproximar dele,
cada vez mais perto e para ele. A pedrada o alcana no meio do
lombo; Bobby uiva e escapa, de longe torna a latir. Pierre aponta
devagar e acerta sua pata traseira. Bobby se esconde entre os
arbustos. "Tenho de encontrar um lugar onde possa pensar", diz
Pierre a si mesmo. "Agora tenho que encontrar um lugar e me
esconder e pensar." Suas costas deslizam no tronco de um pinheiro,
deixa-se cair pouco a pouco. Michle est olhando-o da janela da
cozinha. Ter visto quando apedrejava o cachorro, olha para mim como
se no me visse, est me olhando e no chora, no diz nada, est to
sozinha na janela, tenho que me aproximar e ser bom com ela, eu
quero ser bom, quero pegar sua mo e beijar seus dedos, cada dedo,
sua pele to suave. - Estamos brincando de qu, Michle? - Espero que
voc no tenha machucado o cachorro. - Joguei uma pedra para
assust-lo Parece que ele no me reconheceu, como voc. - No diga
bobagem. - E voc, no tranque a porta. Michle o deixa entrar, aceita
sem resistncia o brao que rodeia sua cintura. O salo est mais
escuro, quase no se v o lugar onde comea a escada. - Perdo - diz
Pierre. - No sei explicar, muito insensato. Michle levanta o copo
cado e tampa a garrafa de conhaque. Faz cada vez mais calor, como
se a casa respirasse pesadamente por suas bocas. Um leno que cheira
a musgo limpa o suor da testa de Pierre. Oh Michle, como continuar
assim, sem nos falarmos, sem querer entender isto que est nos
despedaando no exato momento em que...? Sim, querida, me sentarei
ao seu lado e no serei tolo, beijarei voc, me perderei em seus
cabelos, em seu pescoo, e voc vai compreender que no existe
motivo... sim, compreender que quando quero pegar voc em meus braos
e lev-la comigo, subir para o seu quarto sem lhe fazer mal,
apoiando sua cabea em meu ombro... - No, Pierre, no. Hoje no,
querido, por favor. - Michle, Michle...
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- Por favor. - Por qu? Diz, por qu? - No sei, me desculpe... No
se culpe por nada, a culpa toda minha. Mas temos tempo, tanto
tempo... - No vamos esperar mais, Michle. Agora. - No, Pierre, hoje
no. - Mas voc prometeu - diz estupidamente Pierre. - A gente
veio... Depois de tanto tempo, de tanto esperar que voc gostasse um
pouco de mim... No sei o que estou dizendo, tudo se suja quando
digo... - Se voc conseguisse me perdoar, se eu... - Como posso
perdoar se voc no fala, se mal conheo voc? O que devo perdoar?
Bobby grunhe na varanda. O calor gruda as roupas em seus corpos,
gruda neles o tique-taque do relgio, o cabelo na testa de Michle
afundada no sof olhando para Pierre. - Eu tambm no conheo muito
voc, mas no isso... Voc vai achar que estou louca. Bobby grunhe de
novo. -Faz muitos anos... - diz Michle e fecha os olhos. Morvamos
em Enghien, j contei isso. Acho que contei que morvamos em Enghien.
No me olhe desse jeito. - No estou olhando - diz Pierre. - Sim, e
me faz mal. Mas no verdade, no pode ser que faa mal a ela por
esperar pelas suas palavras, imvel esperando que continue, vendo
seus lbios moverem-se levemente, e agora vai acontecer, vai juntar
as mos e suplicar, uma flor de delcia que se abre enquanto ela
implora, debatendo-se e chorando entre seus braos, uma flor mida
que se abre, o prazer de senti-la se debater em vo... Bobby entra
se arrastando, vai se estender num canto. "No me olhe desse jeito",
disse Michle, e Pierre respondeu: "No estou olhando", e ento ela
disse que sim, que faz mal para ela sentir-se olhada desse jeito,
mas no pode continuar, falando porque agora Pierre se levanta
olhando Bobby, olhando-se no espelho, passa a mo pelo rosto,
respira com um queixume longo, um assovio que no acaba, e de
repente cai de joelhos contra o sof e enterra o rosto entre os
dedos, convulso e arfante, lutando para arrancar de si as imagens
como uma teia de aranha que grudou em cheio sobre seu rosto, como
folhas secas que grudam em sua cara em papada. - Oh, Pierre - diz
Michle com um fiapo de voz. O pranto passa atravs dos dedos que no
podem ret-lo, enche o ar de uma matria pesada, obstinadamente
renasce e continua.
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28
- Pierre, Pierre - diz Michle. - Por qu, querido, por qu?
Lentamente acaricia seu cabelo, estende para ele o leno com seu
cheiro de musgo. - Sou um pobre imbecil, me perdoe. Para mim ...
voc estava me di... Ergue-se, deixa-se cair no outro extremo do
sof. No nota que Michle retraiu-se bruscamente, que outra vez olha
para ele como antes de escapar. Repete: "Para mim ... voc estava me
dizendo", com um esforo, est com a garganta fechada, e o que isso,
Bobby rosna outra vez, Michle de p, recuando passo a passo sem se
virar, olhando-o e recuando, o que isso, por que isso agora, por
que voc vai embora, por qu? A batida da porta deixa-o indiferente.
Sorri, v seu sorriso no espelho, sorri outra vez, "ais alie Knospen
sprangen ", cantarola com os lbios apertados, h um silncio, o
clique do telefone que algum tira do gancho, o zumbido do disco,
uma letra, outra letra, a primeira cifra, a segunda. Pierre
cambaleia, vagamente se diz que deveria ir se explicar com Michle,
mas j est l fora, ao lado da moto. Bobby rosna na varanda, a casa
devolve com violncia o rudo do motor de arranque, primeira, rua
acima, segunda, sob o sol. - Era a mesma voz, Babette. E ento
entendi que... - Bobagem - responde Babette. - Se eu estivesse l,
acho que daria uma surra em voc. - Pierre foi embora - diz Michle.
- quase o melhor que podia fazer. - Babette, se voc pudesse vir. -
Para qu? Claro que irei, mas bobagem. Uma idiotice. - Cantarolava,
Babette, juro... No uma alucinao, eu j disse que antes... Foi como
se outra vez... Venha logo, assim por telefone no posso explicar...
E agora acabo de ouvir a moto, ele foi embora e me d um d terrvel,
como pode compreender o que me acontece?, coitadinho, mas ele tambm
est feito louco, Babette, to estranho. - Eu imaginava que voc
estava curada daquilo tudo - diz Babette com uma voz bastante
desinteressada. - Enfim, Pierre no bobo e compreender. Eu achava
que ele estava sabendo faz tempo. - Eu ia dizer, queria dizer,
ento... Babette, juro que falou comigo cantarolando, e antes,
antes... - Voc j disse, mas est exagerando. Roland tambm se penteia
s vezes do jeito que quer, e no por causa disso voc o confunde, que
diabo. - Agora ele foi embora - repete monotonamente Michle. - J j
ele volta - diz Babette. - Bem, prepare alguma coisa gostosa para
Roland, que est mais faminto a cada dia. - Voc est me difamando -
diz Roland da porta. - O que est acontecendo com Michle?
-
29
- Vamos - diz Babette. - Estamos indo agora mesmo. O mundo
conduzido como um cilindro de borracha que cabe na mo; girando
levemente direita, todas as rvores so uma s rvore estendida beira
do caminho; ento, gira-se um nada esquerda, o gigante verde se
desfaz em centenas de lamos que correm para trs, as torres de
alta-tenso avanam pausadamente, uma a uma, a marcha uma cadncia
feliz na qual j podem entrar palavras, fiapos de imagens que no so
as de uma estrada, o cilindro de borracha gira direita, o som sobe
e sobe, uma corda de som se estende insuportavelmente, mas j no se
pensa mais, tudo mquina, corpo pegado mquina, e vento na cara como
um esquecimento, Corbeil, Arpajon, Linas-Montlhry, outra vez os
lamos, a guarita do guarda de trnsito, a luz cada vez mais violeta,
um ar fresco que enche a boca entreaberta, mais devagar, mais
devagar, nessa encruzilhada tomar direita, Paris a 18 quilmetros,
Cinzano, Paris a 17 quilmetros. "No me matei", pensa Pierre
entrando lentamente no caminho da esquerda. " incrvel que eu no
tenha me matado." O cansao pesa como um passageiro s suas costas,
algo cada vez mais doce e necessrio. "Eu acredito que ela me
perdoar", pensa Pierre. "Ns dois fomos to absurdos, necessrio que
ela compreenda, que compreenda, que compreenda, no se sabe nada de
verdade at no termos amado, quero seu cabelo entre as minhas mos,
seu corpo, eu quero ela, ela, ela..." O bosque nasce ao lado do
caminho, as folhas secas invadem a estrada, trazidas pelo vento.
Pierre olha as folhas que a moto vai engolindo e agitando; o
cilindro de borracha comea a girar outra vez direita, mais e mais.
E de repente a bola de vidro que brilha debilmente na ponta do
corrimo. No h nenhuma necessidade de deixar a moto longe da casa,
mas Bobby vai latir e por isso escondo a moto entre as rvores e
chego a p com as ltimas luzes, entro no salo procurando Michle que
estar a, h somente a garrafa de conhaque e copos usados, a porta
que leva cozinha ficou aberta e por ali entra uma luz avermelhada,
o sol se pe no fundo do jardim, e somente silncio, de maneira que o
melhor ir at a escada orientando-se pela bola de vidro que brilha,
ou so os olhos de Bobby estendido no primeiro degrau com o plo
arrepiado, rosnando de leve, no difcil passar por cima de Bobby,
subir lentamente os degraus para que no ranjam e Michle no se
assuste, a porta aberta, no pode ser que a porta esteja aberta e
que ele no tenha a chave no bolso, mas se a porta est aberta j no h
necessidade da chave, um prazer passar as mos pelos cabelos
enquanto se avana at a porta, entra-se apoiando levemente o p
direito, empurrando de leve a porta que se abre sem rudo, e Michle
sentada na beira da cama levanta os olhos e olha para ele, leva as
mos boca, pareceria que vai gritar (mas por que tem os cabelos
soltos, por que no vestiu a camisola azul-celeste, agora est
vestindo calas e parece mais velha?), e ento Michle sorri, suspira,
ergue-se estendendo os braos, diz: "Pierre, Pierre", em vez de
juntar as mos e suplicar e resistir, diz seu nome e est esperando
por ele, olha para ele e treme de felicidade ou de vergonha, como a
cadela delatora que , como se a estivesse vendo apesar do colcho de
folhas secas que outra vez cobre seu rosto e que arranca com as
duas mos enquanto Michle recua, tropea na beira da cama, olha
desesperadamente para trs, grita, grita, todo o prazer que sobe e o
banha, grita, os cabelos entre os de