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FRICA/BRASIL: corpos, tempos e histrias silenciadas
Maria Antonieta Antonacci* Pontifcia Universidade Catlica/SP
Resumo Na perspectiva que histria cultura, questes abordadas
neste ensaio articulam-se reivindicao fundamental de incorporaes de
saberes e poderes de tradies orais de culturas africanas e
afro-brasileiras em nossos debates e possveis construes de
argumentaes histricas relacionadas Histria da frica, e a culturas
africanas e afro-brasileiras entre ns. Tentando acompanhar
movimentos histricos de confrontaes, negociaes e injunes entre
saberes locais e projetos globais, procuramos enfrentar armadilhas
da construo e projeo de dominncias eurocntricas. Palavras-chave:
embates culturais, tradies orais, performances corporais, ritmos,
crenas, dispora.
AFRICA/BRAZIL: bodies, time and silenced histories
Abstract Considering that history is culture, the topics
approached in this essay are connected to a fundamental claim for
the incorporation of knowledges and powers from African and
Afro-Brazilian oral traditions to our debates and historical
constructions related to History of Africa and African and Afro-
Brazilian cultures. Attempting to follow historical movements of
confrontation, negotiation and pressures between local knowledges
and global projects, we try to face the traps presented by the
construction and projection of eurocentric dominances. Keywords:
cultural disputes, oral traditions, body performances, rhythms,
beliefs, diaspora.
expanso da modernidade iluminista, com a razo cientfica e o
conhecimento
letrado sob a gide da formao do Estado Nao na Europa, marcou
profundamente
o Ocidente e suas formas de olhar outros tempos, espaos, povos,
racionalidades,
culturas. As lentes de seus filtros tcnico-culturais
condicionaram leituras e literaturas,
crenas e corpos a suas concepes de movimento, progresso,
civilizao, histria.
A
__________________________________ Dossi
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Dossi
Expressando este domnio nos modos de pensar e interagir, Hegel,
em 1830, na
publicao de sua Filosofia da Histria, considerou que a frica no
uma parte histrica
do mundo. No tem movimentos, progressos a mostrar (...) ns os
vemos hoje em dia como
sempre foram.1
Merece ateno, em documento produzido em 1823 por Thomas
Clarkson, para
denunciar Cmara dos Comuns efeitos do trfico homicida, o repdio
a notcias e
representaes semelhantes. Pesquisando em relatos de viagem de
Mungo Park mdico
escocs enviado pela Sociedade Africana de Londres, em fins do
XVIII, para estudar o rio
Nger
s fricas ao sul do Sahara foram atribudos caracteres
a-histricos, sendo
apresentadas suas regies, culturas e povos pela ausncia frente
paradigmas eurocntricos:
sem cdigos de escrita, sem arte, sem cultura, sem histria e pelo
no ser do escravo.
2 e em Livro de Evidncias, publicado pelo Parlamento Ingls com
depoimentos dos
que percorreram fricas, Clarkson investiu contra idias que
continuam sendo espalhadas
em pblico no sentido de serem os africanos criaturas doutra
espcie e que tendo a frica
sido descoberta h uns poucos de centos anos, os seus habitantes
no tem feito, como outros
povos, progressos nenhuns em civilizao3
Desumanizar povos africanos, como desmoralizar suas autoridades
e formas de poder,
costumes e tradies foram procedimentos recorrentes na Europa,
sendo construdas imagens
em torno do primitivismo e isolamento de seus grupos culturais.
A frica continuava a ser o
continente negro, enquanto o mapa do seu interior uma ampla
mancha branca sobre a
qual o gegrafo, apoiado autoridade de Leo Africanus e Idrisi,
escreve com mo trmula
nomes de rios inexplorados e povos indeterminados..., conforme
primeira ata desta
Sociedade Africana.
.
4
No limiar da independncia de pases africanos, em 1963,
Trevor-Hoper retomou, em
Londres, arbitrariedades em relao frica. Denegou o direito
histria e ao passado para
os africanos, reafirmando no haver uma histria da frica
sub-saariana, mas to-somente a
* Pesquisa financiada pelo CNPq com Bolsa PD, no trinio
2005/2008. Agradeo a Bebel Nepomuceno, Kazadi Wa Mukuna e Agenor
Sarraf por suas sugestes e leitura deste ensaio. 1 HEGEL,
Frederich. Filosofia da Histria. Braslia: Ed da UNB, 1995, p. 174.
2 Em junho de 1788, cinco anos aps a perda das colnias inglesas na
Amrica do Norte, setores interessados em acelerar o conhecimento
dos potenciais do continente africano fundaram, em Londres, a
Sociedade Africana, mais caractersticamente, Sociedade para Estmulo
do descobrimento do interior da frica. Cf. SAMHABER, Ernest.
Histria das Viagens de Descobertas. So Paulo: Edies Melhoramentos,
1955, p. 310. 3CLARKSON, Thomas. Gemidos dos africanos diante do
trfico homicida. Revista d frica, Arquivo Histrico da Cidade de
Porto, Portugal, 1823. 4Cf. SAMHABER, op. cit., p. 310/11.
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histria dos europeus no continente, porque o resto era escurido,
e a escurido no matria
da histria.5
Todavia, prticas administrativas de metrpoles europias, ainda
que tardias, como de
Portugal em relao a suas colnias, ao realizarem inquritos sobre
povos e costumes de suas
posses africanas, mapeando potenciais econmicos recolheram
narrativas de suas culturas,
formas de comunicao e celebraes. Em relao Luanda, Questionrio
acerca de usos e
costumes gentlicos da provncia de Angola, de 1906, traz
inventrios sobre comrcio,
cerimnias, crenas, vesturio, habitaes, lnguas, instrumentos
musicais e tradies orais
em relao a sua histria.
6
Na regio da Guin, em sucessivos registros de 1927, 1934 e 1946,
militares chegaram
a produzir Boletins Culturais da Guin Portuguesa, com estudos
etnogrficos e lingsticos
destacando linguagem escrita em rabe e mandinga entre os
biafadas , ainda incluindo
linguagem por sinais, mmica, tamborilamento, sopro e linguagem
falada.
7 Considerando
sinais diversos, alm da palavra, com que o homem se serve para
exprimir seus
pensamentos, Gomes Barbosa anotou complexa engenharia de
comunicao percussiva via
linguagem tamborilada entre os balantas, que tudo podem
transmitir, mesmo nomes de
pessoas, to perfeita ela. No so sinais convencionais que usam:
dos troncos de rvores,
interiormente cavados, tiram sons quase iguais aos que produzem
quando pronunciam as
palavras que querem transmitir. Alm do tambor que fala,
registrou o tabel tronco
grosso, cavado e forrado com pele de vaca que produz som forte e
susceptvel de se ouvir a
grande distncia8
Por registros escritos, iconogrficos ou sonoros como relatos de
viajantes,
missionrios e literaturas coloniais; gravuras, fotografias,
filmes ou gravaes rtmicas;
expresses artsticas e religiosas; provrbios, contos e mitos;
rituais, danas e festas ,
podemos contestar discursos e imaginrios de tempos modernos que
negaram historicidade s
fricas e suas culturas, como a reinvenes de africanismos na
dispora Atlntica.
, em evidncia de cosmologia em interaes humanas com reinos
animal,
vegetal, mineral entre povos e culturas africanas.
5 Cf. COSTA E SILVA, Alberto da. Um rio chamado Atlntico. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira e Ed. UFRJ, 2003, p. 229. 6Cf.
GARCIA Zilho, Paulo. Henrique Galvo: prtica poltica e literatura
colonial. 2006. Dissertao (Mestrado em Histria) Universidade de So
Paulo, So Paulo. 7 Cf. LEISTER, Cristina. Os Boletins Culturais da
Guin Portuguesa: 1947/1973. 2008. Trabalho de Concluso de Curso
(Graduao em Histria) Pontifcia Universidade Catlica, So Paulo. 8
Idem.
RafaelRealce
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Inmeros e impensveis documentos, a espera de estudiosos
comprometidos com
mtodos de descolonizao de saberes,9 permitem acompanhar
africanos e povos negros da
dispora para alm de primitivismos, subalternidades e alienao de
mercadorias traficadas.
Em relao ao continente africano, estudos locais tm permitido,
tanto rever o aparente
imobilismo histrico a que foram destinados, quanto ultrapassar
imperativos no sentido de
que A frica seria um continente sem Histria10
Em recente publicao de PHARE, revista do Departamento de Histria
da
Universidade Cheikh Anta Diop (Dakar), recorte de entrevista com
o arquelogo Augustin
Holl (Universidade de Michigan), ganhou destaque editorial:
Seria presunoso pretender que
se conhece 2% do passado da frica. No se sabe nada, mas
verdadeiramente nada.
.
11
Indagado sobre estudos da dispora, Holl articulou histria da
frica da dispora,
comentando: Na Jamaica h uma srie de pesquisas nos stios da
dispora que mostram
competncias de ferreiros, de produtores de ferro da frica, que
so l reencontradas....
Perspectivas no sentido que pesquisas da dispora contribuem para
estudos histricos sobre o
continente africano, tambm foram levantadas pelo historiador
Boubacar Barry (Universidade
Cheikh Anta Diop), em Colquio Internacional na UFAC, ao
manifestar-se convencido que
formas e expresses relacionadas reinveno das fricas na dispora
ampliam reflexes
sobre Histria da frica. 12
Caminhos e desafios que a Lei 10.639 trouxe para nossos
horizontes, no limiar do
sculo XXI, focando, sob outros ngulos, a premncia de estudos que
enfrentem a
colonialidade de saberes, derrubando muros que compartimentam
nossos campos de
conhecimento. Estudos africanos rompem recortes geogrficos,
lingsticos, culturais do
continente africano, reforando processos ensino/pesquisa
assumidos em dilogos entre
profissionais de histria, antropologia, sociologia, arqueologia,
religio, educao, lnguas e
9 Discusses e pesquisas relacionadas decolonialidade de saberes,
cf. BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
1998; LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber:
eurocentrismo e cincias sociais. Buenos Aires/So Paulo: CLACSO,
2005; MINGNOLO, Walter. Histrias locais/Projetos Globais:
colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar, Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2003 e El giro gnoseolgico decolonial: la
contribucin de Aime Csaire a la geopoltica y la corpo-poltica del
conocimiento, In: CSAIRE, Aim. Discurso sobre el colonialismo,
Cultura y colonizacin. Madrid: Ediciones Akal, 2006; PRATT, Mary
Louise. Os olhos do imprio: relatos de viagem e transculturao.
Bauru: EDUSC, 1999. 10 Expresso de COQUERY-VIDROVITCH, (Paris VII),
em conferncia Histoire, colonisation & dbats mmoriels dans la
France contemporaine, PHARE (2), Dakar, outubro/2008, p.31 11
Entretien avec Augustin Holl. PHARE, op. cit., pp. 16/21. Il serait
prsomptueux de prtendre quon connat 2% du passe de lAfrique. On en
sait rien mais vraiment rien. 12 Boubacar Barry, Reflexes sobre os
discursos histricos das tradies orais africanas, palestra
apresentada no I Colquio Internacional As Amaznias, as fricas e as
fricas na Pan-Amaznia, Rio Branco, Universidade Federal do Acre,
13/17 de outubro de 2008.
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literaturas, arte, teatro, cinema e outros estudiosos
comprometidos com saberes e viveres
locais enquanto instncias de resistncia a projetos globais.
E formas de ser, resistir e sobreviver de africanos escravizados
nas fricas, Amricas
e no Brasil, preservando relaes, tempos e espaos de diferena
colonial, relampejam se
concentrarmos atenes no que ficou isolado e silenciado. Ouvindo
e sentindo latncias que
ficaram nas dobras da expanso europia, esquecidas ou
consideradas perdidas por no
apresentarem seqncias documentais ou continuidades histricas, ns
podemos produzir
leituras na contra mo de pressupostos colonizadores.
Reflexes de Benjamin, no sentido de constituirmos constelaes com
fragmentos
culturais dispersos13; ou de Glissant, atento diversidade desde
entrelaamentos de rastros
que irrompem da presena africana nas Amricas, permitem perceber
com um s impulso a
platitude vertical e o acmulo rugoso do real. Ancorados em
pensares crticos a sistemas
fechados e imperiais, podemos vislumbrar o que preciso deixar
atrs de si e o que preciso
dispor-se a conhecer. 14
No Brasil, resistncias dispora e dimenses da conflituosa
escravizao de africanos
vm evidenciando longas e minuciosas transgresses. No universo da
literatura oral produzida
no Nordeste brasileiro, alm de epopias de fugas e lutas
15
Ao montar, em 1967, painel sob o corpo-a-corpo letra, voz,
imagem constituinte de
literaturas e culturas populares nordestinas
, xilogravuras narram rebeldias
condio escrava, como a gravada por Lnio Braga, em mural da Estao
Rodoviria de Feira
de Santana, na boca dos sertes da Bahia.
16
13 Crticas aos alicerces da racionalidade cientfica provem de
discusses primordiais, como de BENJAMIN, Walter. Cf. principalmente
Sobre conceito de histria, In: Obras Escolhidas, Vol. 1, So Paulo,
Editora Brasiliense, 1987.
, Lnio Braga evocou Lucas Evangelista, africano
fugido da Fazenda Saco de Limo, em Feira de Santana, em 1824.
Enquanto figura
controversa cangaceiro salteador ou um negro que se recusava a
viver como escravo ,
14 GLISSANT, douard. Introduo a uma potica da diversidade: Juiz
de Fora: Ed. UFRF, 2005, pp. 14/15. 15 O folheto O Rabicho da
Geralda, cantoria de tradio oral que percorreu o nordeste e
centro-oeste do Brasil, narra epopia de 11 anos de Rabicho, boi da
senhora Geralda, que fugiu do cativeiro e escapou de vaqueiros que
o perseguiram at grande seca no serto. Cf. a verso cearense, de
1792, guardada por Antonio Bezerra de Menezes e publicada por
CARVALHO, Rodrigues. Cancioneiro do norte. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Livro, 1903 e a verso de ALENCAR, Jos de. O
nosso cancioneiro popular. Rio de Janeiro, O Globo, 1874. Agradeo a
Admilson Prates pela indicao da verso de 1792. 16Sobre injunes
letra/voz/imagem em literatura oral ver ANTONACCI, M. A. Tradies de
oralidade, escritura e iconografia na literatura de folhetos:
Nordeste do Brasil, 1890/1940. Projeto Histria, 22, SP, EDUC, 2001;
FERREIRA, Jerusa Pires. Fausto no horizonte. So Paulo:
EDUC/Hucitec, 1996; ZUNTHOR, Paul. Introduo poesia oral. So Paulo:
Hucitec, 1997.
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juntou-se a grupos fugitivos para roubar e distribuir cabras,
cabritos, galinhas.17 Preso e
enforcado em 1849, aps delao de outro africano foragido, que
assim obteve perdo de seus
crimes, memrias de Lucas foram narradas no ABC de Lucas de
Feira. A imagtica de seu
corpo sensibiliza pelo que abre ao nosso olhar, conforme figurao
deste Drago da
Maldade.
Em posio humana, com instrumentos de seu ofcio de ferreiro nas
mos, em jogo
revela/esconde de imagens, Lucas de Feira foi representado em
corpo hbrido: rabo de
escorpio, animal da terra que espreita e ataca de tocaia; corpo
de serpente, animal que
interliga terra e gua; cabea, provavelmente de papagaio falador,
ave cinzenta dos ares de
Angola, Guin, Cabo Verde, onde fora mercadoria comum no trfico
d`frica ocidental para
o nordeste do Brasil18
Alm de seu porte fsico, possvel reter simbologias transmitidas
por esta
representao de corpo negro rebelado. Acompanhando zonas claras e
escuras de sua
performance corporal, na contraposio do corpo hbrido ganham
destaque sombreados
esfumaados de quem, tomando a palavra, forjou o fogo da
inconformidade lutando pela
manuteno de transparentes asas de liberdade. Articulando os
elementos-me terra, gua, ar e
fogo, o corpo de Lucas transfigurou-se em drago Drago da Maldade
contra o Santo
Guerreiro , conforme alegorias do pico de Glauber Rocha (1969),
que retomou lutas e
cantorias em sertes baianos nos anos de chumbo do regime
militar.
.
O emblemtico corpo de Lucas de Feira encarna embates em
desiguais e
criminalizados conflitos. Lembra insurgncias a relaes
escravistas e reitera lutas por
17 Jornal Correio da Bahia, 17/11/2002 e PEREIRA, Rubens. Painel
do vasto serto. Lgua & Meia, Feira de Santana, julho/2002. 18
CMARA CASCUDO, Luis. Made in frica. So Paulo: Global Editora, 2001,
p. 44.
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cidadania, retomadas por trabalhadores de todos os credos e
cores, desde meados do sculo
XX, contra prepotncias de poderes colonizadores do passado e do
presente ento vivido nas
Amricas e fricas19
Importa reter, a partir do corpo de Lucas, cosmologia de
culturas africanas que, em
concepo de unidade csmica, no fatiaram o mundo em reino humano,
animal, vegetal e
mineral, conforme reflexes de Hampt B
.
20. Na assumida representao de drago, entre
terra, gua, ar e fogo, a fumaa enuncia o ancestral empoderamento
da palavra entre povos e
culturas que constituram sua humanidade e suas memrias
enraizados em tradies orais.21
Expressivas possibilidades de apreenso de corpos negros e
tradies orais africanas,
em circuitos frica/Brasil/frica, permeiam textos de Cmara
Cascudo. Por suas pesquisas,
comentrios e consideraes relacionadas presena africana na vida e
no patrimnio
histrico-cultural brasileiro, sua erudita obra contm importantes
referncias para
aproximaes a tempos, gestos, danas, narrativas e performances
desprezadas pela avalanche
da civilizao euroocidental.
No exerccio da palavra cantada e ritmada por seus corpos e
instrumentos musicais, africanos
em dispora no Brasil produziram o tom de suas revoltas,
espalhando rastros de liberdade.
Seu livro Made in frica, resultado de viagem frica em 1963, para
estudar hbitos
alimentares de povos bantu, contem argumentos que refutam
postulados de Hegel e demais
construes ideolgicas da modernidade colonial. Na contra mo de
tempos marcados pela
mecnica do progresso e vazios de experincias histricas, Cascudo
perseguiu seculares rotas
comerciais e culturais que das ndias atravessaram as fricas e
estabeleceram conexes com
os Brasis, demonstrando influncias recprocas, prolongamentos,
interdependncias,
contemporaneidade motivadora nos dois lados do Atlntico e do
ndico.22
Em forma peculiar de cronista, que anota sem desprezar coisas
midas e
aparentemente irrelevantes, textos de Cascudo guardam potencial
para descobertas de fricas
19Sobre a rearticulao da colonialidade do poder no novo
colonialismo global, que ocidentalizou o Atlntico Norte e
restringiu espaos da diferena colonial ver MIGNOLO, W. A
colonialidade de cabo a rabo: o hemisfrio ocidental no horizonte
conceitual da modernidade. In: LANDER, op. cit. Sobre a emergncia
do Atlntico Negro como paradigma para sustentar lutas e memrias
soterradas pelo Atlntico Norte, ver GILROY, Paul. O Atlntico Negro.
Modernidade e dupla conscincia. So Paulo, Ed. 34, 1998. 20HAMPT B,
Amadou. A tradio viva, in KI-ZERBO (org.) Histria Geral da frica.
Vol. 1, So Paulo. Ed. tica/UNESCO, 1982. Contrariamente ao que
alguns possam pensar, a tradio oral africana no se limita a
histrias e lendas, ou mesmo a relatos mitolgicos ou histricos, e os
griots esto longe de ser seus nicos guardies e transmissores
qualificados. Cf. pp 182/183. 21 Em sociedades orais, a prpria
coeso da sociedade repousa no valor e respeito pela palavra,
devendo haver precaues contra o homem de boca rasgada, cujas duas
lnguas podem arruinar negcios e reputaes. Idem, p. 206. 22CMARA
CASCUDO, Luiz da, op. cit., p. 9.
RafaelRealce
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em Brasis impregnado por patrimnios orais africanos. Escrito
para evidenciar a unidade
Brasil nfrica e frica no Brasil, este livro contm abordagens e
observaes de grande
atualidade, adensando e diversificando enfoques sobre rotas e
razes23
Centrado na banana, o mais popular dos vocbulos africanos no
Brasil, acompanhou
seu itinerrio como expedicionrio em misso de descoberta de
continentes velados. E, a
contrapelo de isolamentos e imobilismos hegelianos em relao a
povos e culturas africanas,
revelou: A banana no nativa do continente africano sendo
recebida da ndia atravs da
frica Oriental ou pelo Sudo, descida do Egito e vinda pelos
caminhos do Nger e do Zaire
para as demais regies do poente, do Camerum Unio Africana. E
passando da Contra-
Costa do Atlntico, pelas Rodsias para Angola, quando a Guin a
teria pelas vias das
populaes ao longo dos grandes rios do oeste negro.
de culturas negras no
Atlntico sul. Nas pegadas de alimentos de povos bantu nas
fricas, Cascudo mapeou trilhas,
danas e corpos que cruzaram as fricas e fizeram parte da dispora
de povos negros no
Brasil.
No rumo da banana ao Brasil, acrescentou que o grande entreposto
entre Congo e
Portugal era a ilha de So Tom, de onde este alimento,
aclimatado, chegou ao Brasil, tendo
localizado registro de 1569 sobre bananeiras de So Tom na Bahia,
competindo com as
pacovas nativas. Enquanto base alimentar de africanos no Brasil,
que preferiam as bananas
de sua terra, estas receberam tal denominao a partir da Guin, j
que eram conhecidas por
nomes locais em outras regies africanas. Da Guin, de onde
chegaram as primeiras ondas de
africanos escravizados ao Brasil, Cascudo concluiu que veio a
denominao desta fruta, que
ficou sendo banana, essencialmente no Brasil. Daqui que o nome
se espalhou e no da
frica do sculo XVI. Perseguindo cultivos da banana entre ndia,
frica, Brasil, ultrapassou
formulaes a-histricas sobre o continente africano, articulando
tempos de caravanas
traados ao compasso de interaes comerciais e culturais de muitas
pocas e espaos, sem
comprometer singularidades de povos e culturas das fricas.
Em termos de heranas da frica Centro Ocidental no Brasil,
Cascudo concentrou
atenes em vozes infalveis pelo norte, centro e sul, captando
hbitos de dana em
folguedos, desafios em versejadas pelejas orais e em
performances corporais. Ingredientes
para alimentar com crenas e costumes corpos negros que
reinventaram prticas culturais
e memrias corporais em todo Brasil, representando dramas da
dispora, em diferentes ritos e
23 Expresso de Paul GILROY. Atlntico Negro:modernidade e dupla
conscincia. So Paulo, Editora 34, 2001.
RafaelRealce
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a vozes variadas, sob cadncia de artefatos sonoros. Mas
silenciou sobre danas e corpos em
transe entre mundo visvel e invisvel em cosmologia bantu.
Rastreando formas de migrao e traduo de culturas africanas em
dispora, chegou a
mencionar autorizao de administradores da metrpole e da colnia
para o exerccio de
danas africanas proibidas em Portugal e em suas colnias
africanas. Registrou, assim, o
translado e a chegada de tradies orais ao Brasil, trazendo
indcios de mediaes entre
portugueses e africanos, no Atlntico sul. Provavelmente porque,
em paisagem brasileira,
onde as tenses agravaram-se pelo trfico em massa, longa
distncia, e posterior regime de
plantation, o poder portugus ficou na contingncia de,
inicialmente, ser tolerante para os
escravos consentindo-lhes as trovejantes noites de batuque, os
bailos, formalmente proibidos
pelas Ordenaes do Reino.
Ao inventariar matrizes de tradies orais africanas em nosso
patrimnio cultural,
Cascudo focou atenes nas danas ginsticas do bambel,
coco-de-roda, zamb, no jogo de
capoeira vinda de Angola e ampliada no Brasil, nos cantos e,
para o serto, no desafio que
se nacionalizou, profunda e medularmente, sem nenhuma referncia
a rituais e danas
iniciticas, dana de mortos e danas de cura entre povos do Congo
e Angola.
Em seu elenco de gneros de linguagens orais, ampliou percepes de
prticas
culturais de comunicao inerentes a corpos e memrias de
africanos, que transportaram suas
heranas para o Brasil. E, ainda tornou possvel, antever
significados polticos e estticos de
festas, danas, ritmos que, tica e liminarmente, vm configurando
corpos e ritos africanos
como comunitrios monumentos histricos24
Suas narrativas gestuais e rtmicas de corpos negros constituem
bases para pensar acervos
de cultura material africana no Brasil, evidenciando que corpo,
msica e memria articulam-
se, indissociavelmente, entre povos africanos organizados em
vivncias de unidade csmica.
Sua escrita sugere que memorizadas e repassadas, de gerao a
gerao, em presena de
corpos ritmados em danas de roda, com volume e densidade ,
tradies orais em dispora
materializaram-se em diferentes gneros no-verbais de comunicao e
expresso no Brasil.
na guarda e transmisso de culturas sob regime
de oralidade.
24 Os nossos monumentos, aqueles que nos so prprios, so as
tradies orais (...), entrevista de Alioune Diop, publicada em
ICAM-Information (2), Paris, 1976, Apud SOW, Alpha. Prolegomenos,
onde argumenta os mitos, contos, adivinhaes, provrbios e enigmas,
etc., ainda mal estudados e mal conhecidos, nem sempre constituem
simples expresses de valores folclricos. Eles representam, muitas
vezes, tcnicas de memorizao e de difuso de um saber ou de uma
mensagem. In: BALOGUN, AGUESSY, DIAGNE, SOW. Introduo cultura
africana. Lisboa: Edies 70, 1977.
RafaelRealce
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Perenizadas em corpos cultivados como arquivos vivos, emitindo
vozes do corpo25
Questes que fazem lembrar De Certeau, ao abordar histrias de
corpos considerando
o Trabalho alqumico da histria: ela transforma o fsico em
social; (...) ela produz imagens
de sociedade com pedaos de corpos.
prolongadas em artefatos sonoros engendrados com timbres
lingsticos de suas culturas,
corpo, ritmo e instrumentos musicais constituem chaves mestras
para sentir e tatear culturas
africanas em dispora.
26
A msica, entre culturas africanas, tambm est integralmente
relacionada com a
viso de mundo de sociedades africanas, constituindo-se como um
smbolo de
sobrevivncia, permeando todos os aspectos da vida. Sondando a
existncia dos w, de
Gana, Amoaku sustenta que o mundo invisvel do esprito, o mundo
do homem, e o mundo
visvel, o mundo da natureza, formam uma unidade, audvel pela
msica tradicional em seus
traos psicolgicos e simblicos. Simblica por ser potente fonte
vital do mundo natural e
psicolgica, por estar intrinsecamente ligada psique, com padres
relacionados, no mais
ntimo, com uma forma de ver o mundo e as experincias de vida que
a sociedade considera
como um todo homogneo.
No jogo revela/esconde de documentos histricos, as
crnicas de Cascudo no fogem a regra. Iluminando rotas
alimentares e pedaos de corpos
negros, projetou sombras sobre sentidos e significados destes e
de outros corpos e danas,
como tentamos acompanhar, articulando msica, danas e corpos em
cosmologia de povos
africanos.
27
Enraizadas em confluncias palavra/som/ritmo, culturas de tradies
orais africanas
acumulam memrias em timbres da voz
28, deixando ecos em sons e rastros em caracteres
rtmicos e artefatos musicais produzidos com tcnicas e formas de
emisso sonoras
apropriados a rituais e outros meios de transmisso e comunicao.
Pesquisas de Wa Mukuna,
marcando a presena de culturas tradicionais bantu na msica
popular no Brasil29
25A enunciao do corpo enquanto arquivo vivo advm de George
VIGARELLO, enquanto a expresso vozes do corpo provm de Michel DE
CERTEAU. Cf. Projeto Histria (25), So Paulo, EDUC, 2002.
, evidenciam
nesta direo, apontando para confluncias entre tons lingsticos,
sons e instrumentos
26DE CERTEAU. Histrias de corpos. Projeto Histria, op. cit. 27
AMOAKU, W. Komba. Toward a definition of tradicional african music:
a look at the Ewe of Ghana. In: JACKSON, Irene. More than drumming,
Londres, Greenwood Press, 1985, pp. 31/40. 28 O timbre da voz
depende do comprimento e trabalho cultural com cordas vocais,
qualificando a voz em termos de amplido, riqueza sonora, senso de
oportunidade quanto altura, intensidade e durao de tons. Cf.
HOUAISS, Antonio. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, Rio de
Janeiro, Editora Objetiva, 2001. Interessa cf. ZUMTHOR, Paul.
Introduo poesia oral, op cit., p. 28, com argumentos no sentido de
oralidade ganhar significado no termo vocalidade. 29 WA MUKUNA,
Kazadi. Contribuio bantu na msica popular brasileira. So Paulo,
Terceira Margem, 3 ed., 2006.
RafaelRealce
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musicais entre povos africanos. Enfatiza que esta influncia
lingstica - o acento tonal e a
fora do timbre vocal - subjazem a todos os grupos culturais e
lingsticos africanos,
constituindo ponto de referncia para tonalidade de seus
instrumentos musicais.
Este etnomusiclogo congols ainda argumenta: Os tons lingsticos
so
considerados pelo grupo tnico no processo de seleo dos
instrumentos musicais com que o
grupo vai ser associado. Tal determinao est baseada sobre a
capacidade do instrumento
reproduzir os tons da lngua (Bantu ou Sudanesa). Da concluir que
os aspectos sintticos
da linguagem, afeitos organizao rtmica da msica, enquanto
semnticas da linguagem
influenciam o nvel snico da msica. 30
Perspectiva retomada pelo pesquisador de semitica Mbarga, ao
estudar o Nkl
tambor de chamada , entre os Beti, grupo lingstico dos Camares,
que o utilizam como
ferramenta de comunicao e sinal de teatralizao na vida, pois
seus diversos tons
constituem frases musicais que correspondem a frases da lngua.
Seu cdigo parece traduzir
o idioma em forma de linguagem tamborilada (...) reproduzindo a
frase meldica falada no
Nkl por alternncia dos tons. Esta predominncia dos instrumentos
musicais, verdadeiros
objetos de culto, conforme Hampt B, no perde de vista
performances e interferncias de
seus instrumentistas, narradores ou danarinos, pois a estruturao
do texto do Nkl
semelhante arte oratria dos Beti.
31
A equivalncia entre variaes tonais de lnguas africanas e a
tonalidade rtmica de
seus instrumentos musicais, permite entender surpresas de
colonizadores com a capacidade de
comunicao de povos da Guin. Mas, se tivermos presente que a
sncopa de ritmos africanos
traz cena gestos e vozes do corpo, em intensas reverberaes,
tornam-se perceptveis
complexas imbricaes entre cultural material e sensvel em
processos de transmisso e
renovao de crenas e mensagens entre povos e culturas de matrizes
orais, em fricas de
ontem e de hoje. Jogando com corpos e seus prolongamentos, em
termos de habilidades
vocais, rtmicas e instrumentais, conjugaes de dana, canto, msica
carregadas de
subjetividades, pois susceptveis a nimos, oratria e
sensibilidades
32
30 Questes tratadas no curso Msica africana: teoria, cultura
material, arte, comunicao, ministrado pelo Prof. Dr. Kazadi Wa
Mukuna, no CECAFRO/PUC-SP, em abril/agosto 2008, com apoio
FAPESP.
-, emergem na
31 Cf. MBARGA, Jean-Claude. Sociossemitica do Nkl na cultura
tradicional Beti (Camares). Projeto Histria (28), So Paulo, EDUC,
2004, pp. 23/36. No sentido da flexibilidade de culturais orais
africanas a capacidades de expresso esttica de seus artistas, tanto
na confeco e uso de mscaras, estaturia, como coreografias, cf.
BALOGUN, Ola. Formas e expresso nas artes africanas. In: Introduo
cultura africana, op. cit. pp. 37/94. 32 Sobre gestuais e
habilidades sensoriais em rituais de vida e morte, festas e arte
africana, misturando msica e dana a cnticos poticos, constituindo
espcie de teatro entre presente e passado, visvel e invisvel,
sendo
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centralidade de cosmogonias africanas, sustentando encontros de
mundos visvel e invisvel
de ancestrais e energias csmicas, sob a mediao de seus mortos.
Danas, expresses
rtmicas e artsticas enquanto meios de comunicao assumiram
relevncia nas formas de
compreenso e manifestao de como foram vividos tempos da dispora
e cotidianos de
escravido e de colonialismo.
J na travessia atlntica, trazidos ao convs de tumbeiros para, na
tica de marinheiros
e traficantes, respirarem, exercitarem msculos e diminurem
ndices de mortalidade nas
sofridas condies das viagens, africanos escravizados danaram33.
Intercambiaram prticas
culturais, reconhecimentos mtuos, urdindo formas prprias de
compreenso da captura, das
guerras e trocas, disperses e daquelas temidas viagens. Em
regime de oralidade,
mundividncias africanas [foram transportadas] at aos vrios
destinos do mundo colonial,
conforme consideraes de Sweet,34 valendo acrescentar que danas,
ritmos, corpos e vozes
africanas, refeitas nas Amricas, trouxeram sensibilidades e
sociabilidades em irreconciliveis
descompassos em relao a princpios, normas e valores da civilizao
ocidental crist.35
Em relao a memrias corporais e seu potencial em articular
crenas, interaes e
solidariedades frente infortnios das viagens e desventuras do
sistema escravista, relatos de
danas que marcaram circuitos frica/Brasil, s vezes passando por
Portugal, foram anotados
nas crnicas de Cmara Cascudo. Ressalvando seus silncios e
reticncias, interessa
acompanhar a trajetria do lundu e a proibio de seu danar na
Corte da Metrpole: to
insistentemente bailado, que o rei D. Manoel o proibiu, ao lado
do Batuque da Charanga.
Lamentando no ser possvel apurar quando esta ddiva coreogrfica e
meldica de
Angola apareceu no Brasil, Cascudo registra aspectos inerentes a
esta onda de africanos da
frica Centro-Ocidental ao Brasil, sinalizando acomodaes de
gestos e movimentos que o
lundu sofreu em sua travessia pelo Atlntico.
veculo de comunicao e um fator de coeso, cf. BALOGUN, Ola;
tratando da msica na experincia de povos w, AMOAKU tambm traz
reflexes nesta direo. 33 Referncia de inmeros estudiosos do trfico,
valendo cf. VASSA, Gustavus. Los viajes de Equiano. La Havana:
Editorial Arte y Literatura, 2002, p. 13. 34 Cf. SWEET, James.
Recriar frica: cultura, parentesco e religio no mundo afro-portugus
(1441-1770). Lisboa, Edies 70, 2007, p. 16. O impacto africano na
dispora ultrapassa em muito as sobrevivncias culturalmente
dispersas; a frica foi transportada at aos vrios destinos do mundo
colonial em toda a sua plenitude cultural e social, moldando
instituies criadas pelos africanos e fornecendo-lhes uma lente
interpretativa, atravs da qual puderam compreender a sua condio
enquanto escravos e enquanto libertos. 35 Para Amoaku, sociedades
tradicionais africanas enfatizam a importncia da energia psquica e
do desenvolvimento intuitivo, enquanto no Ocidente so criadas
barreiras que interferem com o vigor da vida ou energia psquica,
com nfase no indivduo intelectual e no intuitivamente criado. Op.
cit., pp. 31/40.
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Derramou-se o Lundu pelo Brasil e a memria bailarina
nacionalizara-o sem recordar os bamboleios iniciais em Luanda e,
com variantes e acrscimos no dinamismo das ancas, do Zaire ao
Cunene, no exilando Cabinda na prtica do saracoteio.36
Esta etnografia de corpos e rumores na viagem do lundu por
circuitos das fricas ao
Brasil, acompanhando o trfico interno e a dispora, esbarra nos
silncios e na rigidez da
modernidade europia em relao ao continente negro e s vibraes de
seus
incompreensveis habitantes. Descrevendo o que fora o ritmo
lundu, a escrita de Cascudo
ainda permite sentir sua ironia e avaliar policiamentos frente
costumes africanos e vozes de
corpos negros no moderno mundo do trabalho escravo. Restries e
mesmo a proibio de
danas, como a queima, em praa pblica, de instrumentos musicais e
de som de africanos,
que ocorreu de norte a sul no Brasil37
Enquanto no Brasil, at incios do XIX, revelando o potencial de
reinveno de
culturas orais em dispora, o lundu era danado at em festas de
bodas e batizados, com
braos tipicamente erguidos, em espcie de convulso inebriante
conforme Rugendas,
Spix e Martius e Ribeyrolles , no final do sculo sofrera
alteraes. Danado ao som de
zabumba e rabeca, pelo XIX o Lundu possui melodias
caractersticas quando anteriormente
era s ritmo. Laconicamente, Cascudo escreveu Desapareceu em
Angola. Vive como uma
cano no Brasil.
, sem ser um pormenor no sentido de bons costumes,
no estaria trazendo a tona o medo de perda de controle diante da
ocorrncia de provveis
incorporaes de espritos de antepassados, em corpos de africanos
escravizados, em espaos
pblicos?
38
O que ficou do lundu, em meio a interdies de ordens eclesisticas
e civis, estava
despido das umbigadas patuscas que davam sal e pimenta para a
patulia devota; volta de
1880, j no era bailado muito conhecido e sim cano, notada por
Silvio Romero. Foi essa a
forma sobrevivente.
39 A referncia ateno cautelar de Romero frente danas, cantos
e
contos40
36 Cf. CAMARA CASCUDO, op. cit., pp 57 e seguintes.
, como seu subentendido alvio ao que Cascudo considerou lundu
cantado, a cano
37 Paralela represso policial a instrumentos de som africanos,
autoridades religiosas, peregrinando por regies do Brasil,
promoviam queima pblica de bales, biqueiras, 48 violas, 45
guitarras, 5 maxinhos, 4 rabecas, 3 bandolins, 2 violes e 1
tamborim, conforme Jornal O Cearense (1862). Cf. Antonacci, M. A.
Artimanhas da Histria, in Projeto histria (24), So Paulo, EDUC,
2002, p. 219. 38 CMARA CASCUDO, op. cit., p. 59 39 Idem, pp.59/60.
40 Nos anos 1880, Silvio Romero recolheu expresses populares no
Brasil, distribuindo cantos e contos entre as trs raas: de origem
europia, indgena, africana e mestia, em inventrios publicados em
Lisboa. Cf. ROMERO, Silvio. Cantos populares no Brasil (1882),
Contos populares no Brasil (1885). Lisboa: Nova
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do lundu, que ganhou popularidade no plano da simpatia, sinaliza
rearranjos a intervenes
que tambm foram alvo, nesta margem do Atlntico, corpos, ritmos,
linguagens e modos de
ser africanos.
O ritmo41 do lundu, marcado por dois tempos fortes e um lento a
sncopa, que
provoca e projeta movimentos de marcao com o corpo em sons da
dispora , parecia estar
sob controle..., em sales de danas.42
Se o lundu, proibido do lado de l, aqui ficou reduzido cano, que
ainda dizem
vitalizou o fado portugus, para onde migraram danas de roda e
seus singulares significados
em culturas negras? Quais suas impensveis persistncias para
grupos e povos africanos que,
em regime de oralidade, trouxeram em seus corpos e memrias
movimentos de danares
comunitrios, impregnados de relevo e textura para transitarem em
seus universos
cosmolgicos? Como surpreender e articular ressonncias deste
ritmo e de corpos negros
ondulantes que chegaram a conquistar, em textos de Cascudo, o
reconhecimento de memria
bailarina?
A patulia devota do lundu encontrou como manter
suas tradies; sua coreografia resiste na umbigada em samba de
roda baiano, samba de
terreiro carioca, dana do jongo, onde, atravs deste gesto,
participantes de danas de roda
chamam quem vem ao centro, danar e pr-se em contato com os
presentes e os ausentes.
Este recuo do lundu, anotado por literatos e folcloristas,
enuncia litgios e expectativas
de civilizar fazeres africanos entre ns, e mais expressa vontade
de sobrevivncia de elites
intelectuais e polticas em seus temores e constrangimentos
diante de prticas culturais negras
no Brasil. Este registro exige atenes e abre caminho a algumas
consideraes. Mesmo
porque, estratgias de moralizao, com conotaes de racismo,
empurrando thos e
reverberaes africanas para clandestinidade, marcaram o reordenar
de poderes e relaes no
advento da abolio e instaurao da Repblica das Letras.
Presses e interferncias, minando africanismos transmitidos dana
e ritmo do lundu,
desataram laos de seus sentidos. Perdera o focus enquanto
expresso de africanos em exlio,
meio de dilogos entre vivos e mortos e articulador de novas
identidades. Desestruturado, sem Livraria Internacional de Lisboa.
Em 1897 os textos foram publicados no Rio de Janeiro, pela Livraria
Francisco Alves. 41 Enquanto maneira de pensar a durao, o ritmo
musical implica uma forma de inteligibilidade do mundo, capaz de
levar o indivduo a sentir, constituindo o tempo, como se constitui
a conscincia. SODR, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2 ed. Rio de
Janeiro: Mauad, 1998, p.19. Conforme Amoaku, para africanos no
suficiente dizer que a msica a cincia ou a ordenao de tons e sons
em sucesso, pois traduz harmonia com os deuses e espritos de
parentes que partiram. Op, cit. 42 Cf. TINHORO, Jos. Os sons dos
negros no Brasil. So Paulo: Editora 34, 2008, que rejeitando
consideraes de Gregrio Mattos: calundus como sinnimo de lundus,
diferencia lundus-calundus (que) tm em comum a origem religiosa,
enquanto o futuro lundu (...) refere-se dana profana destinada a
entrar nas salas das famlias brancas ao despontar o sculo XIX no
Brasil.. Cf. pp. 33/53.
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poder celebrar tradies em dispora, nem representar o lan de
muitos encontros, como
vitalidades e energias de grupos e povos africanos, o lundu
tambm vivenciou deslocamentos
entre grupos e povos africanos.
Assumido como cano, com letra e melodia, por elites letradas nas
margens
atlnticas, o lundu j no era dnamo de culturas bantu no Brasil.
Quando grupos dominantes
apropriam-se de expresses populares, revertendo seus sinais,
emergem indcios que estas no
mais contem foras primordiais e grupos populares lhes deram as
costas, como argumenta
Stuart Hall, podendo advir mudanas qualitativas, mas tambm
fratura muito forte43
Tradies culturais bantu, mais permeveis a rearranjos por seu
histrico de
migraes
nas
relaes culturais.
44
E possibilidades de surpreender rastros de interaes de povos
africanos no Brasil
emergem a partir do continuum de combinaes de matrizes de suas
tradies, enredando-os
em outras configuraes, em contextos histricos especficos onde
renovaram suas
perspectivas cosmolgicas
, sem desaparecerem, desde tempos mais recuados refaziam formas
e roupagens
em injunes de suas crenas e valores com as de outros povos
africanos no Brasil. Seus
ritmos e corpos, envolvidos em comunicaes entre si e com seus
pares deste e do outro
mundo, danando, curando, celebrando a vida e a morte, ecoam
desde tempos vividos em
recncavos familiares que a pena de Cascudo no alcanou.
45
Desde primrdios do registro de cantorias (XVIII) e de literatura
oral no Nordeste do
Brasil (XIX), luz da noite e som de suas tradies, contando e
vivendo histrias e lutas de
Quando os animais falavam/ na remota antiguidade
.
46
43 Cf. HALL, Stuart. Notas sobre a desconstruo do popular. In:
Da Dispora. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, pp.248/250.
, corpos negros transitaram entre
frica, Europa e Brasil, refazendo seus modos de ser em situaes
limtrofes. Sem
renunciarem a seus valores vitais, mantiveram formas de
rememorao, transmisso e curas
frente perdas sofridas, marcando territrios e articulando
imprevisveis redes identitrias. Em
diferentes espaos e formas que vem abrigando suas crenas e
dramticas tcnicas de
narrativas mticas, apreendem-se edificaes de cultos, encontros e
rituais, em trabalhos de
44 Em migraes pelas fricas, provavelmente a partir do sculo VII,
do Camerum povos bantu dispersaram-se para o sul, em confrontos e
convivncias com outros grupos e povos africanos. 45 Articulamos
argumentos de GLISSANT, em seu pensamento atravs de rastros de
presenas africanas na dispora, a reflexes de Stuart HALL e Raymond
WILLIAMS, ao pensarem mediaes de elementos emergentes, residuais e
incorporados em contnuas lutas culturais. HALL. Da Dispora, op. cit
p. 255 e WILLIAMS. Marxismo e literatura, Rio de Janeiro, Zahar,
1979, pp. 111/129. 46 Cf. versos de literatura oral do Nordeste
brasileiro em ANTONACCI, M. A. Corpos sem fronteiras. Projeto
Histria (25), op. cit., pp. 147/150.
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memria flor da pele, que tem revigorado capacidades de ao,
comunicao e vivncias de
suas culturas em terras brasileiras.
Desafiando o no ser do escravo, expresses de oralidades negras
no perodo
colonial, registradas por pesquisadores de formao e perfis
acadmicos47, sinalizam outros
horizontes de afirmao de prticas africanas, em encontros com
seus antepassados e em
rituais de curas culturais, que pontificaram suas trajetrias e
histrias enquanto feitiarias,
curandeirismos e demonologias. Mas foi Cascudo, em suas
reticncias, que chegou a
concluso decepcionante: No h Demnio preto seno como presena
catlica do
Branco. 48
Estudando ritos africanos nas Minas Gerais e apreendendo, para
alm da Bahia,
indcios do que conhecemos como religies afro-brasileiras, Laura
de Mello e Souza revisitou
terreiros de calundus em debate com Joo Reis e Luiz Mott, Yeda
Castro e Cmara Cascudo.
Propondo, ainda de forma embrionria um procedimento analtico,
tomou calunds antes
como constelao de prticas variadas do que como rito acabado ou
bem definido ou,
quando muito, constelao do mundo banto, agregando prticas, ritos
e rituais que ora se
aproximam de um modelo, ora se afastam dele mas sempre
envolvendo negros,
freqentemente referidas a danas, batuques, ajuntamentos
49
Enquanto expresses pontuais registradas nos sculos XVII e XVIII,
suas pesquisas,
partindo do processo inquisitorial sobre o calundu-angola de
Luzia Pinta, em 1739, em
Sabar (MG), indicam a polissemia da palavra e das prticas do
calundu, mas apontam um
, a autora pontuou a
emergncia de palavras e prticas bantu como: calundu, lundu,
calundu-angola, candombl-
angola, umbanda, macumba.
47 Sobre injunes culturais de povos africanos entre si no
Brasil, no campo religioso, cf. PARS, Luis Nicolau. A formao do
candombl: histria e ritual da nao jeje na Bahia. Campinas: Ed.
UNICAMP, 2006; REIS, Joo. Magia jeje na Bahia: a invaso do calundu
do Pasto de Cachoeira, 1785. Revista Brasileira de Histria, So
Paulo, vol. 8, 1988; SWEET, James. Recriar frica: cultura,
parentesco e religio no mundo afro-portugus, op. cit. Sobre injunes
de prticas culturais africanas com matrizes indgenas e europias, no
campo das religiosidades, cf. BASTIDE, Roger. As religies africanas
no Brasil. So Paulo, Pioneira, 1971; BANDEIRA, Luiz Cludio.
Entidades africanas em troca de guas: disporas religiosas desde o
Cear. 2009. Dissertao (Mestrado em Histria) Pontifcia Universidade
Catlica, So Paulo; MAUS, Raymundo. Padres, pajs, santos e festas:
catolicismo popular e controle eclesistico. Belm: CEJUP, 1995;
MELLO E SOUZA, Laura. O diabo e a Terra de Santa Cruz. So Paulo:
Cia das Letras, 1986 e Revisitando o calundu, in GORENSTEIN e
CARNEIRO (orgs.). Ensaios sobre a intolerncia, inquisio, marranismo
e anti-semetismo. So Paulo: Humanitas, 2002 e site do Dep. de
Histria/Ps-Grad/USP, 2002; MELLO E SOUZA, Marina. Reis Negros no
Brasil escravista. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002; MALANDRINO,
Brgida. Um toque bantu na brasilidade: expresses e ressignificaes
da religiosidade bantu. 2008. Qualificao de tese (Doutorado em
Histria) Pontifcia Universidade Catlica, So Paulo. 48 CMARA
CASCUDO, op. cit, pp. 106/107. 49 MELLO E SOUZA, Laura. Revisitando
o calundu. Disponvel em
http://www.fflch.usp.br/dh/posgraduacao/social/pagProfs/LauraSouza/CALUNDU.pdf.
Acesso em dezembro/2008.
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denominador comum: na sua maioria, referiram-se a danas, quase
sempre embaladas por
instrumentos musicais. Ainda articlou aluso a danas, batuques,
sujeio de vontades,
recurso a espritos mortos50. Mesmo com variaes, caland ou
calanduzes nos alcanam
associados a cantos, curas, danas de roda, som percussivo tocado
por cerca de duas horas,
ou at mesmo calundus ao som de violas o que sugere parentesco
com lundu... 51. A
rpida sugesto: calundu assemelha-se a lundu52
Na direo de corpos negros que danam, revisitando calunds Mello e
Souza
menciona pesquisa de Luiz Mott que registrou a dana de tunda, ou
acotunda, no arraial de
Paracatu (MG), em 1747, trazendo tradies dos Orixs da Costa da
Mina
, refora o sentido de corpos em danas
conjuntas, com cnticos, ritmos e artefatos musicais enquanto
fontes de vibrao de culturas
negras que atingem xtases em encontros com espritos de seus
antepassados.
53
Talvez nos calunds prticas culturais noturnas em que danavam,
cantavam e
tocavam instrumentos musicais com a potncia do verbo que
cria
, e pesquisa de
Joo Reis sobre calundu jeje, do Pasto de Cachoeira (BA), em
1785. Mais que seqncia de
prticas culturais de diferentes naes africanas no Brasil,
importa reter semelhanas entre
seus universos cosmolgicos; sentidos comunitrios em torno de
danas, cantos, cerimnias
de interao com seus mortos para celebraes e curas; objetos de
culto e substncias de
reinos humano, animal, vegetal e mineral. Para alm destas
questes, fica a persistncia com
que africanos escravizados vivenciaram suas prticas culturais,
instaurando fricas em Brasis
ou vivendo reiteradas viagens a suas terras, onde deixaram
parentes vivos e mortos.
54
50 Idem, pp. 14/15.
; reuniam elementos de
seu universo csmico, equilibrando foras fsico-espirituais de
seus mundos visvel e
invisvel; invocavam e incorporavam energias de seus mortos e
ancestrais, socializando
saberes e poderes na cura de males mentais e desesperos do
cativeiro , grupos de africanos
conseguissem trabalhar, em seus horizontes de vida, as
desestabilizadoras experincias do
51 Idem, p 14. 52 Interessa trazer registro recolhido por SWEET,
em relao a padres que, em 1715, na Baia, estavam queixando-se da
proliferao de Lundus, onde a feitiaria e o folguedo que os escravos
trazem, a que eles chamam Lundus ou Calundus, so escandalosas e
supersticiosas, sem que seja fcil evit-lo, uma vez que muitos
brancos podem ser encontrados neles. Op. cit., p.173. 53 MOTT,
Luiz. Acotunda: razes setecentistas do sincretismo religioso
afro-brasileiro. Anais do Museu Paulista, vol. XXXI, So Paulo,
1986, p. 138. Apud MELLO E SOUZA, Laura, op. cit., p. 5. 54
Instrumentos musicais africanos tem uma potncia do verbo que cria,
promovendo danas iniciticas, danas de mortos, danas de cura. Cf.
MBARGA, op. cit., p.31.
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trfico e do escravismo, alcanando formas prprias de compreenso
daqueles violentos
processos em seus universos cognitivos55
Conforme Sweet, o calund era um sinal que a religio africana
estava bem ativa,
sem tratar-se meramente de superstio diablica ou feitiaria,
sendo que a adeso de
brancos, desacreditando seus mdicos e seus padres, fez do
calundu e outras manifestaes
religiosas centro africanas, desafios diretos hegemonia
portuguesa, branca e catlica.
.
56
Este estudioso de culturas da frica Centro-Ocidental e de suas
recriaes no Brasil, faz
ressalvas ao trabalho de Thornton, em torno da idia de uma verso
profundamente africana
de Cristianismo, surgida no Congo durante o sculo XVI, pois ao
privilegiar a revelao
sobre a cosmologia em sentido lado, minimiza a essncia do
pensamento religioso centro-
africano57. Nesta ordem de reflexes, ainda considera que o
calund no era uma prtica
sincrtica no Brasil, pelos menos at meados do sculo XVIII 58
Na contra mo de controles colonizadores e em precrias condies,
encontros e
convvios liminares, entre grupos de africanos, emergem das
descries inquisitoriais dos
calundus. Se danas, batuques, usos de fervedouros com ervas,
oferendas de comida a
dolos, confeco de embrulhos com ossos, cabelos, unhas
, quando emergiram
injunes com outros povos e culturas no mundo afro-portugus.
59 ganhassem sentidos e coerncia
enquanto ritos para restabelecer coeses, conforme cosmologia de
povos africanos; se
sujeio de vontades traduzisse encontro onde todos geram ritmo e
movimentos para
reatarem laos com seus pares da dispora e das fricas, leituras
em torno de tradies orais
africanos tornam-se viveis para adensar compreenses relacionadas
a confrontos em zonas
de contato heteroculturais60
Vale lembrar que Hampt B considerou como magia africana o manejo
equilibrado
de foras da natureza, conjugada em termos de terra, gua, ar e
fogo, nos reinos humano,
animal, vegetal e mineral. Perspectivas presentes at mesmo em
instrumentos musicais, que
por serem de corda, sopro ou percusso, encontram-se em conexo
com os elementos terra,
.
55 Conforme HAMPT B, diferena da retrica discursiva que define e
comprova conhecimentos no mundo ocidental cristo, o universo de
culturas africanas vivenciado em processos de cognio experimental,
transmitindo, entre gerao, observaes e experincias que atualizam a
tradio viva. Op. cit., pp. 189/191. 56 Cf. SWEET, James. Recriar
frica, op. cit., pp. 180/181. 57 Idem, pp. 134/138. Sobre leituras
de John Thornton e de catolicismo negro no Brasil, cf. MELLO E
SOUZA, Marina. Reis negros no Brasil escravista, op. cit. e
significativas referncias trazidas em Catolicismo negro no Brasil:
santos e minkisi, uma reflexo sobre miscigenao cultural. Afro-sia
(28), UFBA/CEAO, 2002, pp. 125/146. 58 Idem, p. 173. 59 MELLO E
SOUZA, Laura. Op. cit., p.2. 60 Expresso trabalhada por PRATT, Mary
Louise. Os olhos do imprio, Bauru, EDUSC, 1999.
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ar e gua.61 Este filsofo do Mali, tambm considerou que em
tradies bambara, peul e
mandinga, a relao entre o mundo dos vivos e dos mortos explica
tanto o simbolismo do
corpo como a complexidade de seu psiquismo, sintetizando a
cosmologia destes povos na
expresso proverbial As pessoas da pessoa so numerosas no
interior da pessoa. 62
Se enfim, recurso a espritos mortos ganhasse sentido enquanto
invocao a
antepassados, que como guardies da tradio e mediadores de
divindades, guardam saberes,
poderes e alvios a sofrimentos, restabelecendo sintonias e
vnculos com a terra natal e todos
que foram coagidos a deixar para trs, poderamos nos aproximar da
tradio viva dos que
construram o cho que pisamos e olhar, para alm da Inquisio, seus
processos rituais.
63
Fora de universos culturais de povos africanos em dispora, de
seus modos de pensar e
estar no mundo; de suas tradies, crenas e valores; de seus
imaginrios proverbiais e formas
de relacionarem-se em seus imaginrios de unidade csmica, o que
so perspectivas de
segredo/sagrado para eles, configuram-se como feitio/quilombo e
magia negra para ns.
64
Retomando leitura de Reis a partir de informaes contidas no
processo de invaso do
calundu jeje, do Pasto de Cachoeira, sob liderana do vodun
Sebastio de Guerra: Insisto
que seu calundu tinha aquela funo mais ampla de um templo onde
as relaes dos homens e
mulheres com o mundo, o cosmos, as poderosas foras da tradio
espiritual africana, os
ancestrais e vodus renovavam-se periodicamente no drama ritual.
65
Entrando nestes debates rastreando culturas da voz em circuitos
frica/Brasil/frica,
em projeto sobre tradies orais africanas no Atlntico sul, ontem
e hoje, consideramos
primordial que Mello e Souza, apoiada nas pesquisas de Reis,
Reconhece a necessidade de
utilizar a tradio oral como estratgia de investigao da histria
mais remota das religies
afro-brasileiras e as vantagens de ler informaes para trs
66
61 Cf. HAMPT B. A tradio viva, op. cit. p. 208.
.
62 HAMPT B. A tradio viva, op. cit. p. 194, que destaca: os
provrbios so as missivas legadas posteridade pelos ancestrais. Cabe
ter presente aproximaes entre as reflexes de Hampt B, em relao a
povos bambara, peul e mandinga, do Mali, com as de Amoaku, em torno
dos w, de Gana. 63 Pesquisando rituais na frica Central e Ocidental
inglesa, no final dos anos 1960, TURNER, Victor. O processo ritual.
Petrpolis: Vozes, 1974, trouxe dois termos para pensar situaes
sociais, familiares e psquicas limtrofes, como as vividas em frica:
liminares (pessoas em passagem) no esto aqui nem l, so um grau
intermedirio, podendo ser muito criativas em sua libertao dos
controles estruturais, ou podem ser consideradas perigosas do ponto
de vista da manuteno da lei e da ordem. A communitas um
relacionamento no-estruturado que muitas vezes se desenvolve entre
liminares. 64 Aluso utilizao destes termos por Gregrio Mattos, em
Stiras, que se referiu a calundus desde fins do sculo XVI, em
expresso retomada por Roger Bastide no sentido de forma de luta
africana. Apud MELLO E SOUZA, Laura, op. cit,p.7. 65 REIS, Joo. Op.
cit., p. 75. 66 MELLO E SOUZA, op. cit., pp. 4/5.
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Ciente que tradies orais nos alcanam para alm de relatos ou
depoimentos orais de
quem se dispe a narrar suas memrias em torno de processos
vividos, importa distinguir
histria oral de tradio oral. Recurso metodolgico para apreender
representaes com que
foram vividos fatos e acontecimentos; de formas de ser, pensar e
memorizar de povos que
vivem suas crenas e cosmogonias sem dissociar o espiritual e o
material67
Sem fatiarem cartesianamente o mundo, distintas expresses de
culturas africanas
entre povos e regies da frica atual, mantm vises de mundo e
viveres alheios a
segmentaes da vida social. So filmes como Ngwenya, o
crocodilo
, em narrativas
mticas, rituais e performticas, transmitindo e atualizando
tradies e singularidades
culturais. Ainda vale ter presente a urgncia de articulaes entre
leituras para trs com
leituras para frente, no sentido do tempo presente, tentando
sondar o desconhecido em nossos
horizontes: a alteridade de povos e culturas negras,
reinventadas na dispora e no
colonialismo nas fricas para alm do mundo religioso,
pluralizando a condio humana e
potencializando interaes culturais.
68, sobre a trajetria do
grande artista moambicano Malangatana, que pensa desenhando e
pintando; ou A rvore dos
Antepassados e A guerra da gua69
Estas narrativas cinematogrficas trazem crenas e costumes,
gestos e ritos, relaes
entre vivos e antepassados, homens e mulheres, velhos e crianas,
como interaes com
rvores, animais, gua, sem apartar momentos, espaos ou instncias
da vida. Religio,
poltica, trabalho e subsistncia; magia e justia, famlia e
educao; disputas e desafios
vividos, como lembranas do passado e questes do presente
perfazem traos culturais em
laos de contigidade entre aldeias, comunidades e agitados
centros urbanos. Filmados sem
atores, quase como documentrios sobre a difcil vida de famlias
populares em fricas de
hoje, os diretores trazem expresses da tradio viva abraando
pessoas comuns, vivendo
seus problemas e relembrando experincias do colonialismo, das
guerras de libertao e do
, sobre o retorno de refugiados da guerra de independncia
de Moambique e o enfrentamento da escassez de recursos
ps-guerras de libertao , que
traduzem lutas e modos de ser africanos constitudos e
reconstitudos em perspectivas de
universo csmico, h muito atravessados por dinmicas interaes
tradio versus
modernidade.
67 Dentro da tradio oral, espiritual e material no esto
dissociados. Ela ao mesmo tempo religio, conhecimento, cincia
natural, iniciao arte, histria, divertimento e recreao, uma vez que
todo pormenor sempre nos permite remontar Unidade primordial. HAMPT
B, op. cit, p.183. 68 Filme dirigido por Isabel de Noronha, Maputo,
bano Multimdia, 2008. 69 Filmes dirigidos por Licnio Azevedo.
Maputo, bano Multimdia,1994 e 1996.
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difcil retomar de cotidianos aps anos de lutas por independncia,
contendas internas e
guerra civil.
A cinematografia, como a literatura, arte, msica, dana e teatro,
das fricas
independentes, explicitam questes e disposies culturais, da
ordem das coisas e dos seres
em seus universos, expondo profundas clivagens em relao famlia,
grupos, povos e
culturas marcadas pela civilizao ocidental crist. No Brasil,
esta incompatibilidade de
heranas e herdeiros de culturas negras, nativas e europias,
ampliadas pelos milhares de
imigrantes que desde a abolio e a Repblica vem configurando
nossas relaes em
direo mtica de democracia racial, tem marcado tenses e conflitos
sob o signo de
intolerncias.
Traos e sintomas das irreconciliveis divergncias culturais que
marcam o Brasil e o
mundo da expanso global, habitam retricas como imaginrios de
muitos tempos. E uma
declarao, de 1907, do mesmo Silvio Romero, revela e sintetiza
este contencioso campo:
impossvel falar a homens que danam. 70
As memrias de Equiano, aprisionado aos 11 anos por traficantes
de escravos em sua
aldeia Ibo (Nigria), guardam outra expresso sntese destas
clivagens. Descrevendo dias de
festa e jbilo em sua terra, quando danavam homens, mulheres,
crianas, registrou: Somos
quase uma nao de danarinos, msicos e poetas.
71 Significativamente, no abriu mo do
somos e do quase, mantendo seu sentido de comunitas e expondo
seu viver entre lugares72
.
Entre civilizao ocidental e culturas africanas, entre Estado Nao
e comunidades africanas,
entre estar escravo e liderar lutas contra o trfico, ser
herdeiro de tradies orais e um dos
nove africanos letrados na Londres a meio caminho entre
colonialismo escravista e
imperialista, em 1789, quando foi publicada sua auto
biografia.
Somos quase uma nao de danarinos, msicos e poetas. impossvel
falar a homens que danam.
Frente a estes ritmos de intolerncias, onde o conhecimento e a
identidade de um forja
a negao do outro, reflexes de douard Glissant permitem repensar
alternativas. Intelectual
da dispora, nascido na Martinica e formado na Paris dos tempos
de lutas por independncia
70 Cf. ROMERO, Silvio. Realidades e iluses no Brasil (1907).
Apud SALIBA, Elias. Razes do riso. So Paulo: Companhia das Letras,
2002, p. 35. 71 VASSA, Gustavus. Los Viajes de Equiano, op. cit.,
p.7. 72 A expresso de BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo
Horizonte: EDUFMG, 1998, p. 20, que traduz abordagem advinda de
necessidades histricas de focalizar aqueles momentos ou processos
que so produzidos na articulao de diferenas culturais.
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de pases africanos, ao fazer restries ao novo liberalismo e
colonialismo dos anos 1990,
advogou negociaes entre culturas e suas linguagens: Chegamos a
um momento histrico
em que constatamos que o imaginrio do homem necessita de todas
as lnguas do mundo.
Da, sua veemente e criativa defesa de uma poltica e esttica da
Relao entre todas as
lnguas e identidades, em debate pela diversidade, em Montreal,
em 1955.
(...) a potica da Relao no uma potica domagma, do
indiferenciado, do neutro. Para que haja relao preciso que haja
duas ou vrias identidades ou entidades donas de si e que aceitem
transformar-se ao permutar com o outro.73
73 GLISSANT, douard. Introduo a uma potica da diversidade, op.
cit. p 50/52.