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CORPO, TEMPO E ENVELHECIMENTO
DELIA CATULLO GOLDFARB
Este texto, produto da dissertao de mestrado Defendida no
programa de Psicologia Clnica da PUC-SP em 1997,
sob orientao do Prof. Dr. Renato Mezn, foi publicado pela
Editora do Psiclogo em 1998.
SUMRIO
Apresentao............................................................................
1
Introduo: O SUJEITO DO ENVELHECIMENTO......... 8
Captulo I: A QUESTO DO
CORPO...............................17
1-As fontes na filosofia....................................
19
2 -O corpo na psicanlise..................................
22
3 -O velho......esse outro....................................
33
Captulo II: O TRABALHO DO TEMPO............................
41
1- Tempo e psicanlise......................................
43
2- O tempo e a questo clnica.......................... 53
3- Envelhecimento e projeto identificatrio..... 56
4- Histria ou repetio,
reminiscncia ou depresso......................... 58
5- Sobre a morte...............................................
61
6- A Fuso Pulsional........................................
63
Captulo III: ENVELHECER.....CERTAMENTE................. 68
1- Algumas vias para o envelhecimento........... 69
2- O Velho Freud..............................................
79
Concluso....................................................................................
85
Bibliografia.................................................................................
91
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A P R E S E N T A O
_______________________________________________________________
Eros o mais belo, e apresso-me a dizer por qual motivo:
antes de mais nada, caro Fedro, por ser o mais jovem dos
deuses
e dessa qualidade ele prprio se encarrega de ministrar-nos
uma
prova evidente: a de que fugindo, evita ser alcanado pela
velhice, que inegavelmente em si mesma rpida, como se
depreende do fato de vir a ns mais depressa do que deveria.
Eros, de conformidade com sua prpria natureza, sente
verdadeiro dio velhice e no suporta sua vizinhana, nem
mesmo a grande distncia.
Discurso de Agato
O Banquete
PLATO
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As limitaes corporais e a conscincia da temporalidade so
problemticas
fundamentais no processo de envelhecimento, aparecendo de forma
reiterada no
discurso dos idosos, embora possam adquirir diferentes nuanas e
intensidades
dependendo da sua situao social e da sua prpria estrutura
psquica. Corpo e tempo se
entrecruzam no devir do envelhecimento, e das formas desse
entrecruzamento nascero
as mltiplas velhices. Mas no podemos deixar de considerar que
esta articulao ocorre
em um determinado contexto social e poltico que a influencia e
determina nosso
particular modo de abordagem.
Queremos ento salientar que ao falar de velhice percebemos que
aquilo que
supnhamos saber no suficiente para defini-la, e mais ainda,
verifica-mos que esse
saber precrio produto de uma viso parcial engendrada na prtica
de cada profissional
e de preconceitos fortemente enraizados no cultural. Ento, de
que realmente falamos
quando falamos de velhice? E quando falamos do velho? Do velho
reivindicativo que
briga com todo mundo e por tudo, ou do velho passivo que aceita
seu destino sem
reclamar? Do velho engajado, ativo e divertido, ou do outro
deprimido e solitrio?
Daquele que vive em famlia ou do que foi depositado em um asilo?
Da velha elegante
que passeia nos bairros nobres, ou da faxineira que ainda ajuda
a criar os netos? Do
velho que trabalha a nosso lado ou daquele que renunciou a
lutar? Dos que
renunciaram sexualidade ou dos que reivindicam seu direito ao
prazer ? Dos que vemos
na fila do banco ou no banco da praa? Da velha bruxa? Do velho
sbio? Do doente?
Dos poderosos ou dos marginalizados?
Falamos de todos eles, j que so personagens conhecidos na
nossa
cultura; falamos de um velho em particular e da velhice como
categoria. Mas
fundamentalmente, atravs de todos eles falamos do velho que
temos dentro de cada um
de ns, do velho de nossa famlia, daquele que entrou muito cedo
na nossa histria e que
direciona nosso olhar para todos os outros. Falando de todas as
velhices (dos outros)
sempre falamos de uma velhice (a nossa) e dos muitos velhos que
poderemos chegar a
ser. Da velhice que desejamos e da que tememos. Mas se cada
sujeito tem sua velhice
singular, as velhices so incontveis.
2
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No seria verdadeiro acreditar que s o crescimento populacional e
o
aumento das expectativas de vida provocaram o colapso social que
levou decadncia
dos sistemas previdencirios de todo o mundo nas ltimas dcadas. A
m distribuio
dos recursos financeiros e tecnolgicos submetem uma grande parte
da sociedade a
nveis de extrema pobreza, que afeta especialmente os setores
menos participantes do
processo produtivo, como o caso das crianas e dos idosos.
A populao idosa cresce dia a dia e est cada vez mais pobre. Em
meio a
esta realidade e como resposta a uma demanda social (e no s por
motivaes
subjetivas, individuais) uma prtica clnica e elaboraes tericas
comeam a aparecer no
universo da psicanlise. Temos conhecimento de numerosos
trabalhos importantes na
Frana e na Argentina, onde muitos psicanalistas trabalham h anos
sobre estas questes.
Acreditamos que isto se deva, entre outros fatores, ao fato de
nesses pases haver uma
importante tradio de atividade sindical altamente politizada. Os
aposentados
argentinos, sindicalizados em sua esmagadora maioria,
beneficiaram-se durante dcadas
das assim chamadas obras sociais dos sindicatos que foram
absorvendo ao longo dos
anos numerosos profissionais, especialmente das reas da sade e
do servio social.
Foram assim desenvolvidos muitos projetos e pesquisas de
ressonncia internacional,
embora muito deles tenham fracassado na atual conjuntura
poltico-econmica.
Quando se deseja abordar a questo do envelhecimento do ponto de
vista da
psicanlise, uma das maiores dificuldades a ser enfrentada a
falta de bibliografia
especfica sobre o tema. Seria falso dizer que o mesmo nunca
interessou aos
psicanalistas, como testemunham os trabalhos de Abraham (1920),
Ferenczi (1921),
Erikson (1970)e Eliot Jaques (1963, citado por Krassoievitch,
1993) entre outros, mas
esta rea teve pouco desenvolvimento entre os seguidores de
Freud. Poderamos pensar
que esta atitude talvez se deva ao fato do prprio Sigmund Freud
ao menos em trs
ocasies, ter-se mostrado contrrio aplicao do mtodo psicanaltico
em pacientes de
idades avanadas. Ele diz: A aplicabilidade da teoria
psicanaltica apresenta as
seguintes limitaes: exige uma determinada maturidade intelectual
dos doentes, sendo
portanto intil nas crianas e nos adultos dbeis ou incultos.
Quando se trata de pessoas
de muita idade, a durao do tratamento, correlativo quantidade de
material
acumulado,
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resultar excessivo, e talvez seu fim seja coincidente com o
comeo de um perodo da
vida em que j no se atribui grande importncia sade nervosa
(Freud 1898,T I, pg
155)
Quando tinha aproximadamente 47 anos escreve o seguinte: Em
uma
idade prxima aos 50 anos criam-se condies desfavorveis
psicanlise. A
acumulao de material psquico dificulta o trabalho, o tempo
necessrio para a
recuperao torna-se longo demais e as possibilidades dos
processos psquicos acharem
novos caminhos comeam a se paralisar (Freud 1904, T II, pg 396).
Um ano mais
tarde, ainda acrescentaria a idade dos doentes desempenha tambm
um papel
importante na sua seleo para um tratamento analtico, pois, em
primeiro lugar, as
pessoas prximas aos 50 anos frequentemente carecem da
plasticidade dos processos
anmicos necessria para se empreender uma psicoterapia. Os velhos
no so educveis.
E em segundo lugar, a acumulao de material psquico prolongaria
excessivamente a
psicoterapia (Freud 1904, T II, pg. 400):
Para compreender o fato de pessoas prximas aos 50 anos serem
consideradas velhas, devemos considerar que, nos albores do
sculo XX, alm da
expectativa de vida no ultrapassar os 50 ou 55 anos, a sociedade
tradicional da pr-
guerra reservava para estas pessoas o papel social de velhos. E
a psicanlise tinha ainda
muito caminho a percorrer.
Corrobora esta idia o fato de, em 1937, Freud reconhecer a
existncia de
rigidez, resistncia mudana e esgotamento da plasticidade
(fenmenos que
impossibilitam a psicanlise) em pessoas muito jovens, o que
demonstra que nessa poca
Freud j pensava que estes fenmenos se relacionam mais com o
quadro clnico do que
com a idade do sujeito
Dentre os seguidores de Freud que mencionvamos h pouco, foi
Karl
Abraham quem mais contribuiu a uma melhor compreenso desta
questo. Desde 1907
atuou como colaborador de Freud e foi Presidente da Sociedade
Psicanaltica de Berlim e
da Sociedade Psicanaltica Internacional. Seu trabalho se
caracterizava por um agudo
rigor terico baseado em uma rica experincia clnica. Em 1920
escreve: Podemos
esperar que no comeo da involuo, uma pessoa se sinta menos
inclinada a privar-se
de uma neurose que tenha sofrido durante quase toda sua vida. E
prossegue: Durante
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minha prtica psicanaltica tratei pessoas de mais de quarenta e
at de cinqenta anos
de idade. No comeo hesitara em tom-los em tratamento, mas vrias
vezes os prprios
pacientes insistiam, j que tinham sido tratados por outros
mtodos sem resultado
algum......Para minha surpresa, um nmero considervel deles
reagiu favoravelmente
ante o tratamento. Conto essas curas dentre alguns de meus casos
mais bem sucedidos
No mesmo texto ainda acrescenta: O prognstico mais favorvel se
a
neurose apareceu com toda sua gravidade bem aps a puberdade e se
o paciente
conseguiu desfrutar de alguns anos de atividade sexual prxima
normal e de um
perodo de atividade social til. Os casos desfavorveis so aqueles
em que ocorreu na
infncia uma neurose obsessiva etc, e como nos casos j
mencionados, aqueles que no
conseguiram uma atividade prxima do normal; e afirma: So da
mesma forma estes
os casos em que a psicanlise fracassa tambm com pacientes mais
jovens (citado por
Krassoievitch, 1993, pg 69).
Entre os casos que Abraham descreve esto um paciente obsessivo
de 53
anos, outro de 50 que sofria de depresso melanclica, uma mulher
de 41 anos com
agorafobia. Como j mencionamos, estes sujeitos, adultos jovens
para os padres atuais,
nas primeiras dcadas deste sculo j se encontravam na chamada
idade involutiva.
Observamos tambm, no sem uma certa surpresa, que estes
autores usavam o conceito de involuo sem sequer questionar sua
atribuio ao
processo de envelhecimento, quando muitos deles, e at seu prprio
mestre,
continuavam evoluindo intelectualmente, legando ao mundo
magnficas obras,
produzidas de forma criativa e original, apesar da idade
avanada. Certamente, a idade
necessria para ser reconhecido (ou acusado) como velho mudou, o
preconceito no.
No ano de 1961 so publicados os comentrios de Hanna Segal a
respeito
de um caso clnico de um homem de 74 anos. Na apresentao a autora
esclarece:
Acredito que seja interessante apresentar este caso, j que
frequentemente devemos
decidir se iniciamos ou no a anlise de um paciente determinado e
se sua idade
avanada no constitui um obstculo para o tratamento. Acho que
seria de interesse
informar sobre o tratamento de um homem de 74 anos concludo com
sucesso e at
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onde eu possa julgar, com excelentes resultados clnicos. Nas
suas concluses a autora
acrescenta: No posso dizer que a cura analtica tenha sido
completada e se meu
paciente fosse adolescente ainda precisaria de muitos anos de
anlise para ter a
garantia de um desenvolvimento futuro saudvel e frutfero. Mas s
vezes a anlise
produz pequenas mudanas que significam grandes diferenas. No
caso de meu paciente
acho que a pequena mudana foi uma virada de mecanismos
depressivos, o que lhe
permitiu enfrentar a perda da vida de uma forma mais depressiva
e menos persecutria,
e como conseqncia, sentir que podia apreciar e gozar a vida que
ainda lhe restava
(Segal, 1961)
Apesar das recentes aberturas neste campo de aplicao
da psicanlise, observamos algumas resistncias sua aceitao.
Acreditamos que tal
fenmeno seja consequncia de preconceitos que vo desde a crena de
que qualquer
interveno intil, j que os velhos no seriam modificveis e esto
perto do fim, at o
medo de que os pacientes idosos morram durante o tratamento, o
que sem dvida
mobiliza a prpria onipotncia; mas bastante plausvel que ele se
deva bem mais
negao do prprio processo pessoal de envelhecimento do que a
diferenas imanentes
s diversas teorias . Um fato inegvel: o profissional que, desde
qualquer rea do
conhecimento se dispe a ouvir um idoso, s conta com a negao como
estratgia para
evitar o confronto com seu prprio destino. Ele sabe que se tiver
sorte, e no morrer
jovem, chegar l . E este chegar l na nossa sociedade moderna, no
nada alentador.
Trabalharemos ento com uma certa representao social do velho e
da
velhice que, como construo coletiva, est enraizada no nosso
tempo histrico,
determinando atitudes e orientando estratgias. Nosso ponto de
partida ser uma idia
predominantemente presente na nossa sociedade segundo a qual se
atribui a sujeitos de
diferentes idades cronolgicas um estado de decrepitude e
inutilidade, sem esquecer que
as prprias vtimas, frequentemente, assumem este lugar e
incentivam estas atitudes.
Porm, veremos tambm como a auto-imagem dos idosos e as funes
sociais que
exercem, muitas vezes no correspondem ao que a sociedade
inevitavelmente lhes
outorga em temos de atributos negativos. Veremos como a imagem
do corpo e a
representao do tempo constituem dois possveis eixos da anlise
para se compreender
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a construo da subjetividade na velhice e os movimentos que podem
ajudar, seja o
sujeito idoso , seja quem com ele trabalha, a quebrar e
reinventar esta representao
social negativa.
Enfim, este trabalho pretende dar uma contribuio compreenso
das
questes do envelhecimento desde o ponto de vista da psicanlise,
e isso na convico de
que no pode esgotar toda a abrangncia do tema, cuja riqueza
torna qualquer
aproximao limitada e restritiva. S um movimento no sentido da
transdisciplinariedade
poder evitar que este objeto de estudo se perca nas limitaes que
uma abordagem
parcial poderia-lhe infligir, permitindo que ele mostre a
dimenso que lhe cabe no atual
universo do conhecimento .
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INTRODUO
O SUJEITO DO ENVELHECIMENTO
_____________________________________________________________________________
.................................................... Sinto que o
tempo sobre mim abate
sua mo pesada. Rugas, dentes, calva... Uma aceitao maior de
tudo, e o medo de novas descobertas. Escreverei sonetos de
madureza? Darei aos outros a iluso de calma? Serei sempre louco?
sempre mentiroso? Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo? H muito
tempo suspeitei o velho em mim. Ainda criana j me atormentava.
Hoje estou s. Nenhum menino salta de minha vida, para
restaur-la. Mas se pudesse recomear o dia! Usar de novo minha
adorao. Meu grito, minha fome...Vejo tudo impossvel e ntido, no
espao. .............................................. Que confuso
de coisas no crepsculo! Que riqueza! sem prstimos, verdade. Bom
seria capt-las e comp-las num todo sbio, posto que sensvel: uma
ordem, uma luz, uma alegria baixando sobre o peito despojado. E j
no era o furor dos vinte anos nem a renncia s coisas que elegeu,
mas a penetrao no lenho dcil, um mergulho na piscina, sem esforo,
um achado sem dor, uma fuso tal, uma inteligncia do universo.
Comprada em sal, em rugas, em cabelo.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Versos Boca da Noite
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O aumento da populao idosa em um meio social marcado pelo
progresso tecnolgico provoca uma considervel e constante mudana
de valores, com a
transcendncia simblica da existncia deixando lugar ao efmero da
imagem, e com
uma clara transformao no campo da famlia e, consequentemente,
nos processos de
filiao.
Na literatura especfica sobre o tema, uma das primeiras questes
a
chamar a ateno do leitor o uso frequente de eufemismos para
nomear a velhice e tudo
o que a ela se refere; falida tentativa de suavizar o peso que a
palavra velho causa na
nossa sociedade. Parece-me que a velhice, como alguma coisa da
ordem do diablico,
no pode ser nomeada sem provocar medo e rejeio.
Neste sculo assistimos ao quase desaparecimento do substantivo
velho, s
permanecendo no uso corrente sua funo adjetiva, quando falamos
de coisas antigas ou
usadas. O substantivo velho deu lugar a um senhor de terceira
idade ou uma senhora
de idade avanada, e a muitas outras tentativas de nomeao de
alguma coisa que no
mais nominvel no discurso do homem da modernidade. Ora, se no
tem um nome, pode
t-los todos, e ento a velhice vira uma espcie de buraco negro,
onde qualquer
interpretao pode entrar, qualquer representao ser possvel e onde
permanecemos
ignorantes sobre o que realmente contm. Queremos dizer com isto
que o fato de ser
jovem ou velho, aparentemente to simples para a conscincia
individual, passa a tornar-
se incerto quando percebemos que as noes de juventude e velhice
sofrem srias
transformaes ao longo de nossa existncia. Quando temos 5 anos o
velho tem 30,
quando atingimos os 40, o velho no pode ter menos de 70. E
quando estamos nos
80.........o velho sempre o outro, como dizia Simone de Beauvoir
(1970), que inclua a
velhice na categoria dos irrealizveis sartreanos. Irrealizvel
porque no podemos
reconhecer a velhice em ns mesmos, s podemos v-la nos outros,
embora eles tenham a
nossa idade.
A dificuldade principal para categorizar a velhice consiste em
que ela no
unicamente um estado, mas um constante e sempre inacabado
processo de
subjetivao. Assim podemos dizer que na maior parte do tempo no
existe um ser
velho, mas um ser envelhecendo . Jack Messy (1993, pg 33) diz:
Se o
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envelhecimento o tempo da idade que avana, a velhice o da idade
avanada,
entenda-se, em direo morte
Como teorizar acerca de um conceito indefinvel como tal? Embora
todos
saibamos reconhecer um velho, muito difcil defini-lo; com qual
parmetro o faramos?
Poderamos usar um referencial biolgico que desse conta da
aparncia ou das patologias
tidas como clssicas para este perodo da vida, como cabelos
brancos, rugas, osteoporose,
artrose, hipertenso, perda de memria, cardiopatias etc; mas se
de um lado estes sinais
se manifestam muitas vezes bem antes de que uma pessoa possa ser
definida como velha
ou em processo de envelhecimento, de outro a cincia atual est
colaborando para
superar a maioria deles, e ento eles nada definem .
Poderamos talvez arriscar uma definio mais psicolgica,
tomando
parmetros como enrijecimento do pensamento, certo grau de
regresso, tendncia a um
certo tipo de reminiscncia ou depresso. Mas nada disto fala de
todas as velhices,
assemelhando-se mais a um apanhado de negatividades que a uma
descrio
correspondente a uma categoria universal. Tampouco podemos
defini-la desde um ponto
de vista social; a aposentadoria, por exemplo, no faz de um
sujeito um velho, como o
direito ao voto no faz de um adolescente um adulto. Vemos assim
que, apesar de
existirem sinais mais ou menos universais, para cada cultura,
sobre o que seja a velhice,
nem individualmente nem em conjunto elas do conta de uma definio
categorizante.
Como definir ento um objeto de estudo, se falamos de algo que
parece
no existir seno como construo sempre mutante, como interpretao
individual e
cultural sobre o percurso da prpria existncia e sobre a
existncia dos outros ? Como
falar de um objeto cuja representao aparece silenciada quando
nos remete
impossibilidade da representao da prpria morte?
De que sujeito falamos, quando como psicanalistas falamos do
velho? O
sujeito velho que fala na clnica e na vida nos fala de tempo o
tempo todo. Fala-nos de
uma conscincia de finitude, fala de morte e de um corpo
imaginrio que se nega a
envelhecer e que no se reconhece no espelho. Fala de
temporalidade.
Faz-se ento necessrio um recorte, considerando que as
conceitualizaes atuais sobre o envelhecimento se fundam, como
bem diz Joel Birman
...num campo de valores, implicando uma tica, uma poltica e uma
esttica da
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existncia...(Birman 1995, pg 30). Formas de ser no mundo
reguladas por escolhas e
satisfaes que orientam estratgias que podem ser de incluso ou
excluso do idoso do
campo social, fundantes da singular subjetivao do ser velho.
Consequentemente,
alm do sujeito da psicanlise, estaro sempre presentes, ao
falarmos de velhice, o sujeito
da antropologia, da filosofia, e o sujeito social.
Nas sociedades tradicionais a figura do velho representava a
sabedoria, a
pacincia, e transmitia os valores da ancestralidade: era ele
quem detinha a memria
coletiva; quem, atravs da evocao e da transmisso oral, construa
uma narrativa com a
qual se incorporava (fazia-se corpo) cada indivduo na histria do
grupo, outorgando-
lhe uma filiao bem mais abrangente do que conhecemos atualmente,
quase restrita ao
campo do familiar. O velho, ento, era um elemento na vida do
jovem que colaborava
para sua ancoragem no registro do simblico, e este era o lugar
simblico para a velhice.
Com as sucessivas transformaes que se operam no mbito social a
partir
do sc. XVIII e que culminam com a revoluo industrial, h uma
grande mudana de
valores: o grupo que vive e trabalha junto deixa de ser fundante
de tradies (e
subjetividades) e o indivduo isolado na famlia nuclear, livre
das ataduras da religio e
da tradio, passa a ter um valor quase que exclusivamente pelo
que produz. Assim, os
valores tradicionais vo se perdendo em favor de uma sociedade
individualista onde o
velho, por no ser reprodutor de vida nem produtor de riqueza,
nada vale; o valor social
da velhice passa ento a ser associado inutilidade e
decrepitude.
Chegados neste ponto, podemos sem dvida dizer que em nosso
tema
encontram-se fundamentalmente implicados aspectos de ordem
histrica, social, e
finalmente poltica. Mas, como eles podem se articular com um
referencial terico como
o da psicanlise? Para uma possvel resposta a esta questo
sugerimos a leitura de
outro artigo do mesmo autor, que nos oferece uma interessante
reflexo a este respeito.
Ele sustenta que o fato das autoridades lidarem com a coisa
pblica como se fosse a
coisa privada, e a no delimitao simblica dessas fronteiras
provoca uma certeza da
impunidade sobre a qual se constitui uma crise de valores. Assim
imperativo referir-
se a um registro tico onde ....... o que se evoca a idia e o
valor de
cidadania..... a categoria de cidadania tem a tica como sendo
seu Outro, de
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forma que pensar nas condies de possibilidade da cidadania
implica em enunciar os
fundamentos ticos da poltica e da sociabilidade (Birman, Boletim
60 pg 6)
Ao se falar de cidadania e de poltica evoca-se a idia de sujeito
do
direito, conceito este prprio modernidade, e que por sua vez
remete idia do
indivduo como valor social; mas estes conceitos que se
originaram na Grcia antiga
chegaram ao sc. XVIII deformados pelas vicissitudes do poder.
Perderam parte de sua
magnitude original e hoje referem-se primordialmente a uma idia
de valor individual,
onde cada cidado vale pelas prprias realizaes, no sendo
determinado nem
responsvel pelo fato comunitrio. o indivduo que orgulhosamente
se faz s.
Ento, como consequncia deste processo, perdem-se os referenciais
nicos e seguros de
ordenamento social tal como eram sustentados pela sociedade
tradicional, fato que
inaugura a existncia de um indivduo - outrora sustentado pelas
rgidas normas sociais
e as obrigaes do cl, e psiquicamente identificado com os campos
da razo, da
conscincia e da vontade- que se encontra agora dividido pelas
dvidas inerentes aos
novos sistemas de valores e pelas angstias das livres escolhas
prprias do liberalismo.
Um sujeito que parece existir na firme convico de nada dever a
nenhum outro.
O resgate da verdadeira cidadania o resgate da possibilidade de
existir
para o Outro. A garantia de ser olhado como algum que s se
garante como ser social
na medida que possa exercer seus direitos. Com base neste
sujeito do direito que surge
o sujeito da psicanlise, que no mais que o sujeito do desejo, ou
seja uma construo
histrica ancorada nos fundamentos da modernidade. A psicanlise
nasce
paradoxalmente como produto desta modernidade para ser sua
grande questionadora.
O sujeito da psicanlise vem dar uma resposta s angstias de
um
individuo como j dissemos dividido, descentrado , dominado por
um inconsciente que
fala por ele. Este sujeito do desejo funda-se na alteridade,
antecipa-se no desejo parental
que o determina como sujeitado ao desejo do outro.
Aqui retomamos o ponto de confluncia de vrias reas do
conhecimento:
questo da tica, a questo do outro em nossa constituio como
sujeitos, em nossa
atuao como cidados, em nossa prtica poltica que determinar os
limites entre o
pblico e o privado, o individual e o comunitrio, e o que poder
formar parte de nosso
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universo ou ficar defensivamente excludo do mesmo, j que de
alguma forma ameaa o
individualismo e a realizao narcsica mais primarizada.
Na nossa cultura no nascemos para sermos iguais, nascemos
expulsos da
comunidade que nos engendra porque somos concebidos para sermos
diferentes,
maravilhosos, nicos, para sermos melhores que os nossos
antepassados recentes e
destinados a realizar tudo que lhes foi impossvel. Mas um
sujeito continua a se
constituir por dois caminhos: por um lado, tenta coincidir com
as expectativas que os
outros, especialmente os pais, tem a seu respeito, ser a imagem
que pode satisfaz-los;
por outro identifica-se com os valores da cultura, do social.
Caso exista uma crise nesse
aspecto, a tendncia ser de correr atrs de imagens que assegurem
uma certa identidade,
e no de valores que ofeream identificaes mais ou menos
permanentes. (Calligaris,
Boletim 86)
Se os valores da tradio j no oferecem nenhuma segurana, se o
patrimnio moral herdado carece de todo valor, como operar esta
identificao
simblica? O que fazer com tudo aquilo que faz parte de um
universo simblico? A
resposta parece bvia: ocorre um processo de descategorizao, de
excluso.
Cabe ento perguntarmos sobre a particular subjetivao do ser
velho
em um momento histrico onde a velhice perdeu as atribuies
prprias da sociedade
tradicional, e onde parece ser mais uma inveno social, uma
categoria na qual
possvel depositar tudo o que remete inutilidade, dor, finitude e
morte e que
assim expulsa em direo s bordas, marginalizada.
A maioria das culturas conhecidas na atualidade contam com
uma
considervel bagagem de condutas negativas em relao s pessoas
idosas, muitas delas
operadas de forma inconsciente, e muitas outras francamente
explicitadas. Em 1973,
Butler estudou este fenmeno sob o nome de ageism, e mais tarde,
na Argentina ,
Leopoldo Salvarezza chamou-o de viejismo. Este conceito define
...um conjunto de
preconceitos, esteretipos e discriminaes que se aplicam aos
velhos simplesmente em
funo de sua idade..... Este um preconceito comparvel a outros
que se aplicam s
diversas minorias conhecidas, e inclui a chamada gerontofobia
que se refere a uma
conduta, felizmente menos frequente, caracterizada pelo medo ou
dio irracional aos
velhos. (Salvarezzza, 1993, pg 23)
13
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Retomando o que at aqui foi analisado percebemos que na
modernidade o
velho no existe sob signos positivos de incluso, no considerado
produtor de bens
nem um consumidor importante; s muito recentemente esta imgem
comeou a mudar e
assistimos ao surgimento de um mercado exclusivo para idosos que
no se restringe a
medicamentos e servios de sade. Perdendo seu valor social, perde
seu valor simblico
positivo. Passa assim a ocupar um lugar marginalizado da
existncia humana, transforma-
se numa espcie de sujeito em suspenso , sujeito sem projetos.
Sem futuro, ser ento
sujeitado pelo passado, que na forma de uma reminiscncia
repetitiva, produzir um
discurso que perder significao social se ningum o escutar. assim
lanado a uma
vida sem sentido, sem futuro, numa violenta marginalizao do
circuito do desejo. Ento
precisa ser isolado, escondido, para que os mais jovens no
tenham que ver neles seu
prprio futuro de carncia de recursos, de sade, de fora e poder.
Assim, passa a
simbolizar de maneira muito clara a impotncia e a castrao, onde
os jovens depositam
os aspectos mais denegridos e rejeitados de seu prprio Eu.
O velho, ento, impotente e incapaz de superar criticamente o
modelo
vigente que prioriza o jovem, belo, forte e poderoso, a ele se
submete tentando apagar as
diferenas, passar para o interior do crculo de poder, fazendo
tudo por se incluir, muitas
vezes de forma manaca e caricata, ou caindo no isolamento, na
renncia ao desejo.
O sujeito produto de um encontro, de uma articulao entre
interioridade e
exterioridade, e esta no apenas fundante de subjetividade, mas
tambm constitui o
campo onde se encontram os objetos de sua satisfao. A violncia
exercida atravs do
discurso de exaltao da juventude e da produtividade prope um
modelo desvalorizado
com o qual o velho se identifica, anulando sua condio desejante
e seus direitos de
cidadania. Ento, a falta de um reconhecimento social para a
velhice, a falta de um lugar
simblico, o fato de no mais ser fonte de prazer, resulta numa
desnarcisao do sujeito.
Isto , numa falta de investimento do ambiente em direo a esse
sujeito, e vice versa, o
que impede a elaborao da perda e provoca um crescente
empobrecimento da vida
afetiva. Frequentemente, a resposta a este processo a depresso
ou a demncia como
defesa do ltimo baluarte narcsico.
Se o limite da vida humana a morte, a velhice a fase da
existncia que
est mais prxima deste horizonte. Por esta razo, os velhos so
suportes ideais para a
14
-
maior parte das significaes negativas que a eles se referem.
Podemos observar como
muitas das aes supostamente destinadas a cuidar dos velhos, no
so mais que
subterfgios para mant-los isolados, assim como muitos discursos
elogiosos no so
mais que disfarces para encobrir o que de ameaador e angustiante
a velhice encerra em
nosso imaginrio social.
Na velhice, perodo de perdas de objetos significativos e de
lugares de
reconhecimento simblico, falha frequentemente a funo reguladora
do Ideal do Eu:
ento, no confronto entre o Eu Ideal e a realidade corporal,
presentifica-se a
incompletude, que como uma avalancha arrasta todas as imagens
narcsicas que foram
constituintes do Eu. Abrem-se assim buracos por onde se filtram
as fantasias
inconscientes de castrao e aniquilamento ligadas a um Eu
fortemente desvalorizado.
Perde-se a beleza fsica padronizada pelos modelos atuais, a sade
plena, o
trabalho, os colegas de tantos anos, os amigos, a famlia, o bem
estar econmico, e
fundamentalmente, a extenso infinita do futuro, e embora a
qualidade de vida seja
preservada, no pode ser evitado o sentimento de finitude que
inexoravelmente se instala.
A conscincia da prpria deteriorao pe fim onipotncia. Despojado
da
beleza e da sade da juventude, de sua capacidade de produtor de
bens e de reprodutor de
vida, o corpo, em declnio, acaba com a fantasia de imutabilidade
e imortalidade.
Ser velho pode muitas vezes significar a perda da iluso da
prpria
potncia, aceitar o domnio inelutvel da pulso de morte e apesar
disso, continuar
lutando. Luta difcil, porque o luto que deve ser elaborado o da
prpria vida, um luto
que age por antecipao, luto por um objeto ainda conservado, porm
condenado: e a
ameaa de aniquilao pela morte no um sentimento ao qual algum se
adapte. O Eu,
antes de qualquer outra coisa, exige continuidade.
A morte este pano de fundo sempre fugidio, irrepresentvel,
que
constitui a violncia prpria do ser temporal, ser para a morte. O
sujeito se configura nas
trs dimenses do tempo: ante os obstculos do presente, evoca o
passado em busca do
sentido necessrio e joga para o futuro as possibilidades de
reparao; porm, se o futuro
no mais existe, o sujeito se afunda em um futuro de no-ser que o
arranca
violentamente do campo do desejo.
15
-
Atualmente observamos que, com a diminuio da taxa de natalidade
e o
aumento das expectativas de vida, as famlias ficam cada vez
menores e seus membros
cada vez mais velhos; estes fatos, somados exaltao das
liberdades individuais, faz
com que exista uma maior visibilidade social da velhice, que
colabora para um
reinvestimento nesta faixa etria , no sentido de outorgar-lhe um
novo reconhecimento
simblico.
Em alguns pases existe em nossos dias um grande investimento
social na
velhice, que garante alm de um merecido bem-estar, o exerccio de
uma elementar
cidadania. Lamentavelmente no este hoje o caso de Amrica Latina,
onde qualquer
iniciativa depende quase que exclusivamente da esfera privada e
beneficia pequenos
grupos privilegiados com a sorte de ter acesso a servios
diferenciados.
A mdia , com seu enorme poder de reagir e gerar mudanas,
colabora para
este novo reconhecimento. Verificamos a presena cada vez mais
macia de campanhas
publicitrias dirigidas a pessoas com mais de 60 anos, programas
tursticos e de lazer,
planos de sade especiais, cursos universitrios exclusivos,
escolas de ginstica, danas
e mil formas imaginveis de agrupamentos para esta faixa etria.
Porm, preciso
pensar muito seriamente sobre o ponto de vista tico que oriente
este reconhecimento, e
que determinar se as aes em relao aos velhos sero de incluso,
excluso ou
indiferena; pois segundo as palavras de Foucault : ...as ticas
no s refletem
diferenas no modo de subjetivao, mas participam da constituio de
subjetividades;
em outras palavras, podemos ver as ticas como dispositivos
ensinantes de subjetivao,
elas efetivamente sujeitam os indivduos, ou seja, ensinam,
orientam, modelam e exigem
a converso dos homens em sujeitos morais historicamente
determinados (citado por
Figueiredo, 1995, pg 43)
16
-
CAPTULO I
A QUESTO DO CORPO
________________________________________________________________________
Eu no tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos to vazios,
nem o lbio amargo.
Eu no tinha estas mos sem fora,
To paradas, e frias e mortas;
eu no tinha este corao
que nem se mostra.
Eu no dei por conta desta mudana
to simples, to certa, to fcil
__ Em que espelho ficou perdida
a minha face?
CECILIA MEIRELLES Retrato
17
-
Estou aprisionado num velho corpo BERTRAND RUSSELL
desse corpo priso, ao qual se refere Russell, que queremos
falar, desse
corpo que ferramenta, mediador organizado entre a psique e o
mundo, atravs do qual o
sujeito reconhecido e com o qual se identifica. Corpo, como
genialmente descreve
Ceclia Meirelles, capaz de tais mudanas que at pode chegar a ser
sentido como
estranho, a se separar do sujeito ou de aprision-lo por no
acompanhar seus desejos.
Mas antes de entrar na especificidade que liga a questo do corpo
com o envelhecimento,
vejamos algumas das interpretaes que diferentes reas do
conhecimento do a este
conceito.
Atravs da histria da civilizao, diferentes discursos cientficos,
poticos
ou religiosos tentaram dar conta da questo do corpo, do mistrio
de seu funcionamento,
tom-lo como seu objeto. Cada um com suas prprias concluses,
criando controvrsias,
provocando indagaes, falando enfim, de corpos diferentes. Ento,
do ponto de vista
conceitual, no h um corpo nico, comum a todas as reas do
conhecimento ou das
artes, mas sim diferentes discursos que tentam capturar esta
problemtica
Especialmente para o paradigma religioso-cristo, predominante at
a
modernidade, o corpo habita a representao fantasmtica da
ressurreio, barro
modelado por Deus, ato pelo qual sempre se enlaar a um desejo
divino, corpo
submetido e no desejante, cujo interior, invisvel e misterioso,
guarda os segredos da
criao divina. Este corpo unificado em uma imagem do visvel, de
interior
desconhecido e inexplicvel, preservava o enigma de seu
funcionamento. J para a
cincia, no existe nada da ordem do desejo como causa do
funcionamento somtico,
nem como explicao para seu destino de dor, prazer e morte.
O olhar da cincia concebe o corpo humano como uma somatria
de
rgos e funes e confronta o sujeito com um interior feito de
pedaos sobre o qual ele
nada sabe. Assim, um sujeito leigo no pode habitar a causalidade
divina da doena
que aflige seu corpo e seu esprito. Para o paradigma cientfico
tudo deve ser explicado
pelos eruditos que detm o saber. Os destinos do corpo se situam
fora do desejo. O
sujeito profano no pode mais apelar a suas construes
fantasmticas para explicar o
prprio corpo, devendo dar crdito a um saber que diz sobre ele
mas que lhe estranho,
contrariando frequentemente a certeza da prpria experincia
sensorial. A cultura
18
-
outorgar os meios para que cada um se aproprie de diferentes
formas desse saber, para
a construo cultural de um modelo do corpo, que embora diferente
do discurso cientfico
dele derivado. A eleio dos enunciados depender de quanto estes
sejam aptos para
dar conta de um corpo investido pela psique. Mas, qual a
proposta da psicanlise para a
questo do corpo? Com que conceitos herdados de outras reas
trabalhou Freud este tema
alm, claro est, da influncia biologizante exercida por sua
formao mdica? Como foi
a evoluo desta problemtica?
1- AS FONTES NA FILOSOFIA
Em relao questo do corpo, as fontes na filosofia, assim como
na
religio na cincia ou na mitologia, so remotas. Escolhemos ento
dois filsofos
contemporneos a Freud, representantes do pensamento de sua poca
e que tiveram
notada influncia sobre sua produo terica.
Para Nietzsche, que tentava eliminar o dualismo alma-corpo,
o
pensamento no est desligado do corpo, e isso a tal ponto que as
idias constituiriam
sintomas de sade ou doena, vitalidade ou morbidez. Assim, o
corpo seria um revelador
das foras que o dominam ou lutam para domin-lo, e a alma
designaria simplesmente
algo no corpo. Designando-a, outorga-lhe existncia e assim sua
tentativa fracassa, ao
menos no sentido de poder se omitir do uso de um conceito que se
refere a esse algo
que fica fora da ordem do natural.
O corpo chamado de Grande Razo, e o esprito que nele habita,
a
Pequena Razo, seu brinquedo e instrumento. Esta Grande Razo que
no diz EU, seno
que faz EU, nos remete ao conceito de identificao tal como foi
elaborado por Lacan no
estdio do espelho, conceito ao qual voltaremos mais tarde.
Na nova dualidade, corpo natural- corpo da psicanlise,
inaugurada por
Freud, e seguida por Lacan, parece haver uma ruptura com os
conceitos de Nietzsche,
declaradamente contrrio aceitao de qualquer dualidade; porm no
deixa de ser
interessante notar que ele no desiste de falar de alma ou de
esprito, especialmente em
seus escritos pstumos, talvez afetado pela conscincia de
finitude que s a
proximidade da morte pode outorgar. Ele diz tambm que a pulso
matria e
demiurgo de toda concreo do mundo orgnico e cultural. Ora, sendo
demiurgo,
ligao entre o humano e o divino, e s podem se ligar duas coisas
que esto separadas,
19
-
mesmo que por uma simples diferena, duas coisas que no sejam uma
s. Novamente
Nietzsche parece aqui estar se referindo a um conceito
limtrofe.
Para este autor, a pulso uma energia que transita entre a Grande
e a
Pequena razo, originando-se no corpo. Podemos descobrir nesta
idia algumas
coincidncias com os postulados freudianos sobre a pulso como
conceito limtrofe e a
noo de apoio. As pulses enunciam urgncias, exigncias, comandos,
representaes; a
exigncia pode at mesmo ser enunciada naquilo que contraria
radicalmente sua
meta , (transformao no contrrio como destino possvel); toda
pulso habitada por
uma natureza artstica, instituidora de formas realizando seu
objeto com bela
aparncia (a sublimao como destino). (Giacoia, 1995)
Nietzsche no faz uma diferenciao clara entre Instinkt e Trieb,
porm
nos fala de uma Fora (Triebkrafte) sem fundo, misteriosa, com
carga energtica
impalpvel, invisvel, plurvoca. Devemos compreender esta fora
como quantidades de
energia dinmica, cuja essncia seria seu prprio efetivar-se,
produzir efeitos sobre os
outros quantas, instituir uma verdadeira relao de poder. ento
uma intensidade que
se constitui em seu efetivar-se. Toda pulso uma nsia de domnio e
cada uma tm
sua prpria perspectiva e rea de influncia. (pulso parcial).
Assim compreendida, esta
fora pode-se resumir a uma nica forma fundamental de vontade: a
Vontade de
Potncia. Assim sendo, a dinmica pulsional s pode ser entendida
como uma verdadeira
guerra onde h composio, ajustamentos, alianas entre potncias
rivais; o que implica
necessariamente na existncia de resistncias. A Vontade de
Potncia s pode existir no
confronto.
A Fora no para Nietzsche vontade de vida, como para
Schopenhauer,
porque aquilo que j existe no pode querer existir, e o que no
existe tampouco; a vida
s pode querer mais vida, ou seja Vontade de Poder ou
Potncia.
Se como faz Nietzsche, a Vontade de Potncia for identificada com
a
prpria vida, esta ser ento uma vontade orgnica, prpria no
somente do homem,
seno de todo ser vivo; vemos aqui uma clara diferena com Freud,
para quem essencial
a diferenciao entre instinto como comportamento biologicamente
determinado, sempre
igual, e com objeto especfico e pulso como conceito limtrofe,
lbil, que suporta
diferentes destinos e objetos, originadas num corpo sim, porm
erogeneizado,
20
-
atravessado pelo desejo parental, corpo que j muito pouco tem a
ver com a biologia. Em
Nietzsche o movimento , ora de unio, ora de diferenciao. Em seu
afinco por negar os
dualismos, no pode aceitar as especificidades no naturais da
Triebkrafte, que ele
mesmo define como impalpvel e misteriosa. Coerente com seu
esforo, atribui
conscincia uma origem biolgica, como ltimo e mais tardio efeito
da evoluo
orgnica; assim entendida, a conscincia seria o rgo responsvel
pela sobrevivncia, j
que surgiria pela relao do indivduo com o mundo exterior, e
obteria atravs da
linguagem um meio de comunicabilidade. Neste processo haveria
sempre presente um
carter falsificador pois no todo pensamento que se torna
linguagem, que vira
consciente, mas s alguns podem atingir esta forma. Haveria ento
um resto indizvel,
que constituiria o inconsciente, embora Nietzsche no use esta
denominao, no
conseguindo portanto um lugar terico para o no-
representvel.
Schopenhauer, predecessor de Nietzsche, aborda uma
problemtica
semelhante inspirado em Kant. Para este h uma diferena entre a
coisa-em-si
(noumenon) que existe em si mesma, e o mundo que aparece; este
universo dos
fenmenos o objetivo do conhecimento cientfico e se rege pelas
formas a priori da
sensibilidade (espao e tempo), o mundo do representvel que
inclui o sujeito. A coisa-
em-si, pelo contrrio tudo aquilo que fica fora da representao
por no ser acessvel
atravs do conhecimento cientfico. Esta coisa-em-si, raiz
metafsica de toda realidade,
a Vontade que Schopenhauer coloca como eixo de seu pensamento; e
justamente a crtica
que faz a Kant refere-se ao fato dele ter conferido Razo o papel
mais importante em
seu sistema. (Cacciola, 1991)
A Vontade uma, com diversos modos de manifestaes que norteiam
e
geram o mundo das representaes, como acontece com a vontade de
conhecimento.
Embora o conhecer seja da ordem do sujeito da representao, e o
querer
corresponda ao sujeito da vontade, para conhecer o sujeito tem
que querer. Temos ento
uma Vontade cega, puro mpeto, irracional, essncia humana, que
direciona as escolhas
dos atos dos homens, e uma vontade racional, poderosa,
intelectual, que se submete
primeira, definida como o impensado, o desconhecido, o
inconsciente, (embora
Schopenhauer, tampouco use este conceito), e que tem absoluta
primazia em seu sistema.
O Eu aquele elo temporal entre estas duas manifestaes, o sujeito
do querer e o sujeito
21
-
do conhecer. Colocado desta forma, o dualismo no se coloca entre
instinto e pulso,
mas entre a vontade entendida como pulso e o intelecto.
Tanto a Vontade em Schopenhauer, quanto a Fora em Nietzsche,
manifestam-se no corpo, e s em suas manifestaes corporais que
podemos
limitadamente conhec-las. No possvel conhecermos a Vontade, mas
apenas a
manifestao de sua atividade; s temos acesso a ela mediatizada
atravs de suas
representaes. Sua sede so os rgos genitais, ou seja, sua mais
importante
manifestao a sexualidade, e seu objetivo a perpetuao da espcie.
O querer viver,
um querer viver como espcie. Vemos ento a bvia relao entre o
conceito de
Vontade em Schopenhauer e os postulados freudianos sobre a
pulso, assim como a
influncia que este filsofo exerceu sobre Nietzsche , e seu papel
de precursor ao atribuir
sexualidade um status constitutivo da vida do indivduo, alm de
sua funo como
atividade procriadora: com Schopenhauer surge o homem como ser
sexual. Pulso de
vida e de morte no s se anunciam em Schopenhauer como formam
parte de seu
sistema, e daro a Freud base suficiente para continuar sua
elaborao e recolocao no
sistema da Psicanlise que, claro, no deve ser confundida com uma
simples
transposio.
Nosso interesse em seguir estas elaboraes foi o de balizar
nosso
trabalho para melhor compreender o estatuto do corpo na
psicanlise, especialmente no
que se refere ao conceito de pulso, ao que iremos frequentemnete
nos referir no
decorrer deste texto. Mas vejamos quais foram, no pensamento
freudiano, as
consequncias desta influncia exercida pelos filsofos de sua
poca.
2- O CORPO NA PSICANLISE
A questo do corpo na psicanlise parece exigir um retorno ao
caminho
traado por Freud desde o Projeto (1895) e consolidado com o
longo desenvolvimento da
teoria das pulses. No texto de 1923 O Eu e o Id, ele reafirma a
dimenso corprea do
Eu com as seguintes palavras: Na gnese do Eu e em sua
diferenciao do Id, parece ter
atuado ainda outro fator diferente da influncia do sistema P
(perceptivo) . O prprio
corpo e especialmente a superfcie do mesmo, um lugar do qual
podem partir
simultaneamente percepes, externas e internas. Ele objeto da
viso como outro
22
-
corpo qualquer, porm produz ao tato duas sensaes, uma das quais
pode-se equiparar
a uma percepo interna. A psicofisiologia se ocupou j
suficientemente da forma em
que o prprio corpo se destaca do mundo das percepes. Tambm a dor
parece
desempenhar um papel importante nesta questo, e a forma em que
adquirimos um novo
conhecimento de nossos rgos quando padecemos uma dolorosa doena
constitui
qui o prottipo daquela pela qual chegamos representao de nosso
prprio corpo.
O Eu um ser corpreo, e no s um ser superficial, ele tambm a
projeo de uma
superfcie. (Freud, 1923, T.II, pag 15)
na conscincia, camada mais superficial do aparelho psquico,
que
reside o sistema perceptivo, que absorve tanto os estmulos
provenientes do mundo
exterior quanto os emergentes do interior do organismo. Sendo a
conscincia a receptora
dos estmulos externos, como exigncias de motilidade, dela que
partem a maioria das
aes necessariamente organizadas que visam modificar o mundo
exterior: Conscincia
e acesso motilidade pertencem ao eu, que assim se define de sada
como a parte do
psiquismo voltada para o exterior e dotada por isto mesmo de uma
coerncia prpria .
(Mezan, 1982. pag 270)
No ps-freudismo, em certa medida se esqueceu esta dimenso
corprea do
sujeito, restando psicanlise um campo restrito pura
interioridade do mundo do
pensamento. Mas o conceito de corpo, longe de ser alheio
psicanlise, uma das mais
fundamentais questes, j que se articula com a formao da instncia
que conhecemos
como Eu.
Cabe aqui tecer alguns comentrios sobre as teorizaes do Dr.
Garcia
Roza. Ele nos fala de um corpo natural, dotado de uma organizao
e de um modo
dearticulao com o mundo independente da linguagem; e de um corpo
ergeno,
submetido linguagem e ordenado por ela. O corpo natural campo de
pesquisa da
biologia, e no da psicanlise. Esta dualidade no interessa
psicanlise, embora o corpo
ergeno seja objeto de seu estudo. Porm existe uma outra
dualidade, que sim do
domnio da psicanlise, constituda pelo que ordenado, quer dizer
submetido
linguagem, representado e que inclui tanto a linguagem como a
representao do corpo,
e por aquilo que exterior ordem, que catico: as pulses em estado
bruto, o corpo
real situado alm da representao, o corpo pulsional. Corpo de uma
pulso que no
23
-
fora natural, porm tem potncia corporal, representando as
exigncias que o corpo
faz mente, e que no so de origem biolgica. No sendo nem energia
fsica nem
psquica, energia pulsional
Temos ento um corpo simblico atravessado pela linguagem, o
corpo
da representao, com representao no psiquismo, onde a pulso est
representada, sem
entretanto aparecer em forma direta. Ora, se algo se encontra
representado em algum
lugar, em outro lugar tem que existir o original; esse outro
registro, no representvel, o
corpo pulsional, o corpo da pulso em estado bruto . Da articulao
destes dois registros,
surge o terceiro que chamamos corpo imaginrio j que de uma
imagem que se trata.
Neste corpo criado como um efeito de superfcie que se
constituiro os sintomas
como expresso de um sentido, sentido que este corpo ergeno
sempre manifesta
como articulao do pulsional (real) com a linguagem (simblico). E
esclarece : No
estou tentando afirmar o corpo da psicanlise como anttese do
biolgico, mas
simplesmente afirm-lo como diferena (Garcia Roza, 1990, pag 63)
Para este autor,
toda a confuso em relao questo do corpo na psicanlise reside no
fato de se pensar
em termos de gnese e no de estrutura. Estruturalmente no h uma
instncia anterior
nem primordial. No existe um corpo biolgico sobre o qual a
palavra vem impor uma
ordem, existe um corpo que vem a se encontrar com um destino j
desejado.
Quando Freud, em 1895, escreve o Projeto de uma psicologia
para
neurlogos, est preocupado com a dualidade corpo-alma e com a
necessidade de
outorgar a sua teoria a cientificidade que ento lhe era negada.
Mas ainda no mesmo
artigo reconhecer, com as seguintes palavras, o fracasso do
enfoque
biologizante: .......A comprovao da diferente importncia que tm
as diversas partes
do crebro, e suas particulares relaes com determinadas partes do
corpo e com as
atividades psquicas leva-nos um passo mais adiante, embora no
possamos dizer que
esse passo seja grande. Todos os esforos realizados para deduzir
desses fatos uma
localizao dos processos psquicos, ou seja, todas as tentativas
de entender as idias
como armazenadas nas clulas nervosas e as excitaes como seguindo
o curso das
fibras nervosas fracassaram por completo (Freud, 1895, T III,
pag 883) Dever
empreender ainda a tentativa de transpor estas conceitualizaes
para o plano do
psquico em A interpretao dos sonhos de 1900 para, j em 1905, nos
Trs ensaios
24
-
para uma Teoria Sexual, postular o conceito de pulso com sua
fonte no processo
somtico de excitao, seu objeto varivel, a finalidade da
satisfao, e as zonas
ergenas como o apoio necessrio de onde emanam as pulses sexuais
.
Em 1910, em As Perturbaes Psicognicas da Viso Freud
diferencia
as pulses sexuais e as pulses de conservao tambm chamadas de
pulses do Eu,
incompatveis entre si, dado que seus objetivos so opostos. Este
verdadeiro conflito
entre suas foras engendraria um Eu capaz de se defender das
representaes intolerveis
atravs da represso. Teramos ento, pulses do Eu, ligadas
conscincia e regidas pelo
Princpio de Realidade que aparece como imposto a partir do
exterior do sujeito e pulses
sexuais ligadas a uma atividade fantasmtica e regida pelo
Princpio do Prazer. Neste
ponto vemos claramente colocado um dualismo, ou melhor, um
confronto ente cultura e
sexualidade.
O passo seguinte de Freud ser a elaborao do conceito de
Narcisismo
em Introduo ao Narcisismo de 1914. Aqui a teoria das pulses se
complica, porque o
Eu tambm sexualizado, parecendo ento no haver mais espao para as
pulses no
sexuais, o que representaria o fim do dualismo pulsional. Faz-se
necessrio prosseguir
at o texto de 1915 A pulso e suas Vicissitudes onde o autor
recapitula seu trajeto
conceitual e define a pulso dizendo: Se consideramos a vida
anmica do ponto de vista
do biolgico, a pulso mostra-se como um conceito limtrofe entre o
anmico e o
somtico, como um representante psquico dos estmulos provenientes
do interior do
corpo que chegam alma e como uma magnitude da exigncia de
trabalho imposta
ao anmico em conseqncia de sua ligao com o somtico (Freud, 1915,
T I, pag
1037) Ou seja, um impulso que tem sua fonte no corpo porm no
biolgico,
representado no psiquismo, porm no psquico, tem como nica
finalidade a
satisfao, que pode ser proporcionada atravs dos mais variados
objetos. Isto vale para
todas as pulses sem se distinguir entre sexuais e de
auto-conservao. Porm, antes de se
referir aos quatro destinos possveis para as pulses (transformao
no contrrio-
orientao contra a prpria pessoa- represso- sublimao) esclarece:
Como avanamos
mais no conhecimento das pulses sexuais, limitaremos a elas
nossa investigao dos
destinos pelos quais passam as pulses no curso de seu
desenvolvimento e da vida
(Freud, 1915, T I, pg. 1039)
25
-
Ainda no mesmo artigo Freud estabelece o carter conservador
e
ambivalente da pulso e reconhece a presena, nas tendncias
erticas, de componentes
agressivos e destrutivos.Enquanto as pulses sexuais passam por
um complicado
desenvolvimento, aparecem fases preliminares do amor como fins
sexuais...a primeira
destas fases a incorporao e a ingesto, modalidade do amor que
resulta compatvel
com a supresso do objeto e que pode ento ser qualificada de
ambivalncia. E
continua: Na fase superior de organizao pre-genital sdico-anal,
surge a aspirao
ao objeto na forma de pulso de domnio, impulso para o qual
indiferente o dano
infringido ou a destruio do objeto. ( Freud, 1915, T I, pg.
1044)
Estas elaboraes e outras (1) que datam do comeo da primeira
Grande Guerra, so sem dvida o ponto de partida para que Freud,
em 1920, vivendo
seus lutos pessoais e os lutos pela humanidade produza a grande
virada de 1920 em
Alm do Principio do Prazer onde conceitualiza a Pulso de Vida e
a Pulso de Morte.
Neste percurso dos textos sobre a Pulso podemos verificar como
Freud vai tomando
distncia de uma formulao biologizante do psiquismo e outorgando
questo do corpo
(erogeneizado) um estatuto fundamental no edifcio terico da
psicanlise. Por
consider-lo tematicamente mais adequado, deixaremos este tema
para ser discutido no
prximo captulo (ponto 5) detendo-nos agora nas teorizaes de
alguns seguidores de
Freud que, pela originalidade de pensamento e rigor conceitual,
muito tm contribudo
ao enriquecimento desta questo.
Para Piera Aulagnier (1991, cap 2) o corpo faz-se visvel,
manifesta-se
atravs de inmeros sinais, corpo manifesto falando de um corpo
latente que permanece
oculto . Entre todos os signos possveis do corpo visvel, toma
especialmente dois:
emoo e sofrimento somtico, que considera os mensageiros por
excelncia do
psiquismo para suas manifestaes no plano somtico. Emoo diferente
de afeto,
emoo uma vivncia da qual o eu tem conscincia: sabe o que aquilo
que a
provocou e guarda relao com algo sensorial; algo visto, ouvido,
tocado, que modifica
o estado somtico de quem a experimenta e estimula uma
identificao com quem a
compartilha.
________________________________________________________________________
1- a este respeito recomendo a leitura dos textos de S. Freud:
Consideraciones de actualidad sobre la Guerra e la Muerte (1915) e
Lo Perecedero ( 1916)
26
-
O sofrimento, causado por exemplo por uma doena, vem informar
que
algo que acreditvamos invulnervel pode ser afetado, que algo que
permanecia oculto
pode aparecer, provocando tambm uma reao em quem o testemunha;
dizemos ento
que dor e emoo so relacionais, pois realizam uma conexo entre o
corpo sensorial e
um corpo relacional. Mensageiros, porque alm de falar das
prprias manifestaes
somticas, possibilitam diferentes leituras das reaes dos
outros.
Quando um acontecimento ligado dor ou emoo irrompe em uma
histria singular, a construo que o sujeito far dessa ocorrncia
depender no s da
conexo particular entre seu corpo e sua psique, mas tambm da
resposta que sua dor ou
emoo gerem no outro. Emoo e dor, (2) vo formando sucessivas
representaes do
corpo , que se articularo com as motivaes inconscientes , e
juntas estas decidiro sobre
a eleio da causa qual o sujeito vai atribuir o sentido histrico
dos acontecimentos de
sua vida. A identidade de um sujeito ser ento esta historia que
ele mesmo escreve, na
qual fala de seu corpo. A histria do sujeito a histria das
marcas relacionais de dor e
emoo em seu corpo; esta sua identidade, e a histria que ele
escreve atribuindo
sentidos a estas marcas uma histria que jamais se completa. Tal
identidade corporal
que parece sempre definitiva, deve permanecer sempre em aberto,
ser uma verso sempre
inacabada, para que o sujeito possa aceitar as mudanas que o
tempo impe, sem perder
o sentido de permanncia.
A certeza de habitar um nico corpo, sempre o mesmo, quaisquer
que
sejam suas modificaes, a garantia de uma identidade e de uma
permanncia na
relao com o outro. Para consegu-lo, o sujeito dever dar o mesmo
sentido relacional a
uma srie de experincias, embora tenham acontecido em tempos
diferentes, ou seja,
devero ter tambm um sentido temporal.
Seguindo o pensamento de Piera Aulagnier vemos que o
reconhecimento
de um outro separado de si, de um espao fora do eu acompanhado
de um saber
sobre a autonomia desse outro; sua possibilidade de estar
presente ou ausente, de infligir
________________________________________________________________________
2- Piera Aulagnier esclarece que no toma o prazer como mensageiro
porque: enquanto o sofrimento apela ao poder de quem supostamente
capaz de modificar a realidade somtica e o meio que envolve o
sofredor, o prazer (como depois o gozo) vai acompanhado da mensagem
contrria: O que poderia vir a se modificar no corpo ou no exterior
vivido como ameaa. (Aulagnier, cap2, pg 131)
27
-
prazer ou dor, ou seja, a capacidade do outro de ser sempre
mutvel submete o eu a uma
situao de ser, ele tambm, sempre auto-modificvel, j que se forja
na relao com o
objeto investido. Porm, para sustentar a diferena, necessrio que
o eu se auto-
represente como o plo estvel dessa relao de investimento. A
continuidade desta
relao depender da possibilidade de negociao do eu entre as
demandas do prprio id
e as do outro. Por isso Piera Aulagnier no vacilar em dizer que:
O eu o redator de
um compromisso identificatrio; o contedo de uma parte de suas
clusulas no dever
mudar; enquanto de outras dever ser sempre modificvel e assim
garantir o devir desta
instncia (Aulagnier, 1991, cap 5, pag 224)
O corpo mediador entre a psique e o mundo, ou entre duas
psiques,
constri-se nessa relao e constri suas causalidades; se o eco do
prprio corpo no
mundo no encontra respostas adequadas, se o outro for surdo e
cego dor (ou no tiver
a resposta esperada) ir se operar uma desconexo relativa com
toda a histria do
sujeito. S a ttulo de comentrio podemos dizer que a compreenso
deste ponto ajuda na
explicao de certos fenmenos freqentes na velhice, como o fato de
muitos idosos se
demenciarem ao sofrer hospitalizaes rigorosas ou doenas
prolongadas. Os modernos
Centros de Terapia Intensiva e sua alta tecnologia isolam o
paciente em prol da
preservao de um corpo biolgico sem se considerar as suas
necessidades emocionais,
especialmente as de contato com os outros significativos e com
um meio social e
cultural. Visitas mais frequentes e prolongadas, uma msica
adequada, a presena de
objetos estimados e uma reao mais emocionada por parte da equipe
tcnica evitam
um corte radical com o entorno habitual e a consequente retrao
da libido.
Tambm para Franoise Dolto (1986) o corpo ferramenta,
mediador
organizado entre o sujeito e o mundo, mas ela ir diferenciar
esquema corporal de
imagem inconsciente do corpo. O esquema corporal uma realidade
de fato, mais ou
menos comum a todos os indivduos de uma cultura, poca e regio
determinadas.
Estrutura-se mediante o aprendizado e a experincia, e
consciente, pr-consciente e
inconsciente. A imagem do corpo, pelo contrrio, prpria a cada
sujeito e est ligada a
sua historia. relacional, depende especialmente da histria
libidinal , se presenta como
sntese das experincias relacionais do sujeito desejante e pode
ser considerada como sua
encarnao simblica. eminentemente inconsciente; memria da vivncia
relacional
28
-
sempre dinmica pois estrutura-se atravs da relao entre sujeitos
e nela que se
inscrevem as experincias relacionais (valorizantes ou no,
narcisisantes ou no), que no
so da mera ordem da necessidade mas fundamentalmente do desejo.
Quando uma
criana pede um doce, isto se articula com o prazer do contato da
boca com o peito;
porm, desprendido do nutricional (mera necessidade), o doce age
como prova de amor e
reconhecimento como sujeito desejante. Nesse caso, o doce pode
ser substitudo, ele j
no importa. Como as necessidades devem ser satisfeitas de
imediato para preservar a
vida, essa satisfao ou essa falta, ligadas ao esquema corporal,
no produzem uma carga
narcsica como acontece com as manifestaes do desejo ligadas
imagem corporal.
A fonte das pulses, seu lugar, o esquema corporal, mas onde elas
se
representam na imagem inconsciente do corpo.Tem que haver um
corpo que represente
as pulses, e no importa quo lesionado este esteja. Um sujeito
pode no ter pernas e ter
simbolizado o andar, graas relao afetiva com seus pais, que
devem ser capazes de
suportar a prpria frustrao e projetar sobre a criana uma imagem
saudvel do corpo
simbolizada em palavras. Assim, uma imagem inconsciente do corpo
integrado e potente
pode conviver com um esquema corporal deficitrio, o contrrio
sendo tambm
possvel..
Como a realidade de fato do esquema corporal depende de nosso
contato
carnal com o mundo fsico, ento as experincias de realidade
dependero do tipo de
contato do organismo com este mundo, e a qualidade deste contato
depender da
integridade do organismo, de suas leses permanentes ou
transitrias, das suas sensaes
possveis. Como vemos, h aqui uma semelhana do pensamento de F.
Dolto com o
da P. Aulagnier: ambas ligam as primeiras sensaes corporais , os
primeiros contatos
com o mundo fsico, s experincias de realidade e ao processo
identificatrio.
Contrariando Lacan para quem a experincia do espelho inaugural
e
primeira, Dolto afirma que a imagem especular no mais que uma
estimulao
sensvelentre tantas outras no processo da produo da imagem
inconsciente do corpo .
Para esta psicanalista o corpo da criana que sofre o impacto do
espelho no um corpo
fragmentado, disperso; um corpo coeso e contnuo, dotado de um
esquema corporal
fruto de seu contato com a realidade fsica e de uma imagem
inconsciente do corpo,
produto da vida relacional, do contato afetivo, das experincias
amorosas, ambos sempre
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em evoluo, sempre mutantes. O confronto de experincia do espelho
ser ento entre
duas imagens: por um lado a imagem inconsciente do corpo, e por
outro, a imagem
especular, que contribui para modelar e individualizar a
primeira. O que para Lacan o
comeo jubilatrio, para Dolto uma experincia de castrao, que
provoca na criana a
constatao dolorosa da diferena que a separa da imagem
inconsciente. Imagem
tambm alienante (como para Lacan), porm em outro sentido.
Pensamos que o
sentido da experincia especular vai depender da experincia prvia
de contato com a
realidade, que determinar o modo singular do impacto afetivo com
o espelho. A imagem
especular pode tanto abolir quanto integrar a imagem
inconsciente do corpo
Outro fator fundamental nesta experincia a presena do outro,
do
adulto presente nesse espao para nomear o que acontece, e para
compartilhar este
campo concreto do espelho; a presena do adulto que marcar a
diferena entre a
criana e o outro, que lhe ensinar a distinguir as diferentes
qualidades da relao com
um outro e com a prpria imagem. Esta experincia de nada valer se
o sujeito enfrenta a
falta de um espelho de seu ser no outro.
Quando um beb nasce, ele tem um corpo, mas ainda no tem um Eu
nem
um Outro. Ento, como j dizamos, o adulto fala, nomeia,
diferencia, deseja. Assim, o
recm-nascido investido de tal maneira que nele so projetadas
todas as idias de
perfeio e principalmente todos os sonhos aos quais os pais
tiveram que renunciar;
assim, sua majestade o beb representar a reproduo do narcisismo
dos pais. Neste
campo de mtua potenciao, o narcisismo do beb nasce e o dos pais
renasce.
O Eu do beb no existe ento desde o comeo da vida como
instncia
do aparelho psquico, ele deve se constituir. A constituio do Eu
e a consequente
possibilidade de sua separao dos objetos o novo ato psquico que
permitir o
surgimento do Narcisismo Secundrio e a procura de satisfao nos
objetos externos e
separados dele. Mas tambm este um processo doloroso. Quando a
criana, em suas
limitaes, v-se confrontada com os ideais impostos pelos desejos
parentais, quando a
me falha porque olha para outros objetos que no ela, quando deve
esperar pela
satisfao, percebe que j no mais sua majestade o beb, profunda
ferida no
narcisismo primrio marcado pela segurana do amor incondicional e
imediato. A partir
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deste momento, todo o esforo residir em se fazer amar pelos
outros tentando reproduzir
a situao de onipotncia originria, sem jamais consegu-lo.
O Eu Ideal do rei da casa cede espao para outra imagem
idealizada, um
Ideal do Eu, desta vez baseado nos imperativos sociais e
culturais, transmitidos pelos
pais. A libido assim regida ir se dirigir a muitos outros
objetos, sempre falhos e
incompletos, e que sero amados e abandonados, resgatando de cada
um deles algum
trao idealizado e incorporado a este difcil caminho de se
constituir em um sujeito
psquico. Ideal do Eu, eterno mediador da esperana de alguma vez,
nem que seja
apenas por um instante, voltar l.
A partir de Lacan sabemos que, quando uma criana entre os 12 e
18
meses de vida se olha no espelho e finalmente se reconhece,
invadida por uma sensao
de jbilo e pensa: Esse sou eu. Mas devido imaturidade neurolgica
haver uma
discordncia entre esta imagem virtual, total, que o espelho lhe
oferece, e seu corpo
sentido como descoordenado, impotente. A criana se reconhece em
uma espcie de
invlucro que lhe traz a iluso de totalidade. Ir se identificar
em relao a um outro a
quem anunciar sua descoberta, diferenciar a imagem de seu prprio
corpo da imagem
do corpo do outro. Por isso dizemos que o eu imaginrio um eu
corporal, j que se trata
da conscincia do prprio corpo operada por uma imagem.
Esta imagem no espelho fascina-a, porm tambm aliena-a, engana-a,
j
que no corresponde a seu corpo sentido como fragmentado. E
justamente a esse eu
corporal , imagem idealizada de si mesma, a esse eu ideal que a
criana ficar presa, e
embora nunca se una a ela, estar sempre a persegu-la.
Lacan diz exatamente o seguinte: suficiente compreender o
estdio
do espelho como uma identificao no sentido pleno que a anlise d
a esse termo: a
saber, a transformao produzida no sujeito quando ele assume uma
imagem cuja
predestinao a esse efeito de fase est suficientemente indicada
pelo uso, na teoria do
termo imago. A assuno jubilatria de sua imagem especular pelo
ser ainda
mergulhado na sua impotncia motora e na dependncia da nutrio que
o pequeno
homem, nesse estdio infans, parecer-nos- portanto manifestar,
numa situao
exemplar, a matriz simblica onde o eu se precipita em forma
primordial, antes que se
31
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objetive na dialtica da identificao ao outro e que a linguagem
lhe restitua no
universal sua funo de sujeito (Lacan, Boletin 26, pag 16)
Quando trabalhamos com esta noo do estdio do espelho devemos
levar
em considerao que esta foi uma das primeiras formulaes de Lacan,
anterior questo
do simblico, sendo uma noo elaborada visando entender melhor a
questo do
narcisismo em Freud. Quando ele fala do infans mergulhado na
impotncia motora ou na
imaturidade neurolgica, ainda no contava com outros conceitos
fundamentais em sua
teoria. Desde a perspectiva das elaboraes posteriores vemos que
no se trata de um
corpo que vai madurando no sentido biolgico; o corpo no algo que
surge por
maturao neurolgica, no este o corpo do qual a psicanlise quer
falar. A idia
fundamental de Lacan que o corpo algo que deve ser constitudo,
construdo, e que
esta construo no da ordem do organismo biolgico. O organismo
biolgico no est
disperso nem fragmentado, muito pelo contrrio, tem uma coerncia
funcional que o
mantm vivo. S podemos falar de corpo fragmentado, reino das
pulses parciais do
auto-erotismo, a partir da existncia de um corpo unificado pela
libido narcisista.
A criana do espelho no constri essa imagem do corpo a partir
de
sensaes internas de ordem biolgica mas a partir de dados que lhe
chegam do exterior
atravs de um processo psquico de identificao com um outro que
est fora,
identificao com uma imagem que do outro. Este processo se
antecipa maturao
neurolgica. Constri-se essa superfcie-corpo por identificao com
uma imagem
exterior antes de poder se contar com a maturidade biolgica,
antes de se ter um
domnio sobre o organismo e poder manej-lo de forma coordenada. A
imagem do corpo
anterior maturidade orgnica, por isso se diz que o corpo
completo se constri por
antecipao, mas isto graas a um processo psquico e no orgnico.
Assim, quando a
maturidade orgnica se produzir, s ter como caminho a seguir
aquele j marcado por
essa outra experincia que a antecedeu. S para citar um exemplo,
podemos
lembrar que a identidade sexual humana est estabelecida antes da
maturidade
sexual do sujeito. Esta idia nos ajuda tambm a entender melhor a
diferena entre
esquema corporal e imagem inconsciente do corpo elaboradas por
Franoise Dolto,
qual nos referimos em pginas anteriores.
32
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Este espelho, ento, no mais que o olhar da me, ou seja, certa
imago
pre-existente no desejo materno com relao a esse filho. O olhar
da me que, ao v-lo,
outorga-lhe determinados atributos com os quais a criana de
identifica. Este corpo
unificado e reconhecido na experincia do espelho ir sofrer
depois duas grandes crises,
dois momentos especiais em que ser sentido como estranho. O
primeiro ser a
adolescncia, em que o corpo cresce meio desproporcionado, e o
sistema endcrino traz
muitas novidades, mas onde fundamentalmente h a promessa de um
futuro pleno de
realizaes. Mas quando um idoso se olha no espelho, o que este
lhe devolve uma
imagem ligada a uma deteriorao, uma imagem com a qual ele no se
identifica. No h
jbilo nem alegria, h apenas estranheza e ele pensa : esse no sou
eu. Novamente uma
discrepncia entre a imagem inconsciente do corpo e a imagem que
o espelho lhe
devolve.
3- O VELHO, ESSE OUTRO
Como j apontamos em nossa introduo, a velhice para Simone de
Beauvoir um dos irrealizveis sartreanos. Ela afirma que o
sujeito no pode ter uma
experincia plena do ser velho, esta sera uma experincia
irrealizvel em si prpria, e a
velhice, a decadncia e a finitude so mais aspectos percebidos
pelos outros, do que pelo
prprio sujeito que envelhece. o olhar do outro que aponta nosso
envelhecimento.
Assim, o velho ser sempre o outro e tratamos de representar o
que somos atravs da
viso que os outros tm de nos.
Lembremos do episdio acontecido com Freud quando tinha
aproximadamente 63 anos, com o qual exemplifica o sentimento do
estranho inquietante.
Ele nos conta : Posso contar uma aventura semelhante que ocorreu
comigo. Estava eu
sentado sozinho no meu compartimento do carro-leito quando,
devido a um violento
solavanco do trem, a porta que dava para o banheiro anexo se
abriu e um homem de
uma certa idade, de roupo e bon de viagem entrou na minha
cabine. Imaginei que ao
sair do banheiro que ficava entre os dois, ele tivesse se
enganado de direo e tivesse
entrado por engano no meu compartimento. Precipitei-me para
inform-lo do equvoco,
mas percebi, completamente perplexo, que o intruso nada mais era
do que minha
33
-
prpria imagem refletida no espelho da porta de comunicao.
Recordo-me ainda que
esta apario me desagradou profundamente ( Freud 1919, pag
57)
O conto A Outra, de Mariana Frenk Westheim, escritora mexicana
,
tambm ilustra muito bem o tema que aqui nos ocupa:
Um dia a senhora NTS se viu no espelho e se assustou. A mulher
do
espelho no era ela. Era outra mulher. Por um instante pensou que
fosse uma
brincadeira do espelho, porm descartou esta idia e correu a se
olhar no grande
espelho da sala. Nada. A mesma senhora. Foi no banheiro, no
corredor, nos pequenos
espelhinhos que carregava na sua bolsa, e nada. Aquela mesma
senhora desconhecida
estava l.
Decidiu sentar e fechar os olhos. Sentia vontade de fugir para
um lugar
bem longe onde no pudesse se encontrar com aquela pessoa. Porm
era mais prudente
ficar por perto, no deix-la sozinha. Observ-la.
Parou para refletir: quem poderia ser essa senhora? Talvez a que
morou
antes de mim neste apartamento?. Talvez a que morar aqui quando
eu sair? Ou quem
sabe, a mulher que eu mesma seria se minha me se tivesse casado
com seu primeiro
namorado? Ou quem sabe, a mulher que eu mesma teria gostado de
ser?
Lancei uma rpida olhada no espelho e decidi que no. De jeito
nenhum
eu teria gostado de ser essa senhora. Depois de pensar muito
tempo, a senhora NTS
chegou concluso de que todos os espelhos da casa tinham
enlouquecido, agiam como
atacados por uma doena misteriosa.
Tentei aceitar a situao, no me preocupar mais, e simplesmente
parar
de me olhar no espelho. A gente pode viver muito bem sem se
olhar no espelho. Guardei
os pequenos espelhos de bolsa para tempos melhores, e cobri com
panos os maiores. Um
belo dia, quando por fora do hbito estava me penteando frente ao
espelho do armrio,
o pano caiu, e ali estava a outra me olhando, aquela
desconhecida. Desconhecida?
parece-me que j no tanto assim. Contemplo-a durante longos
minutos. Comeo a
achar que tem um certo ar de famlia. Talvez esta dama compreenda
minha situao e
por pura bondade tente se adaptar a mim, a minha imagem que por
tanto tempo habitou
meus espelhos.
34
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Desde ento , olho-me ao espelho todos os dias, a toda hora. A
outra,
no tenho dvidas, se parece cada vez mais comigo. Ou eu com ela?
(Frenk Wenstein,
1995)
O velho sempre o outro em que no nos reconhecemos. A imagem
da
velhice parece sempre estar fora, do outro lado, e embora
saibamos que aquela a
nossa imagem, nos produz uma impresso de inquietante estranheza,
o apavorante ligado
ao familiar. Apavorante porque a imagem do espelho no
corresponde mais imagem da
memria; a imagem do espelho antecipa ou confirma a velhice,
enquanto a imagem da
memria quer ser uma imagem idealizada que remeta familiaridade
do Eu especular.
Quando o sujeito que envelhece diz: esse no sou eu,
evidentemente nos
diz que o rosto no qual ele poderia se reconhecer tranquilamente
no aquele. Como
dissemos no pargrafo anterior, o reconhecimento de que falamos
no se refere a uma
ignorncia do sujeito como tal, pois tanto o adolescente quanto o
sujeito que envelhece
sabem perfeitamente que aquela imagem lhes pertence, mas
experimentam ante ela uma
certa estranheza, um susto, como se a imagem fosse de outro: h
uma falta de
reconhecimento como imagem, no como sujeito. No o rosto que lhes
corresponde.
Aquele ali, o velho do espelho outro, no a representao conhecida
por ele como
seu prprio rosto; a representao conhecida de sua face ficou
perdida, e em alguns
casos, como na demncia, para sempre.
Dona Fanny uma bela senhora de 75 anos. De inteligncia vivaz,
gosta
de conversar e se mantm ocupada em atividades prazeirosas;
conserva sua autonomia e
independnia graas a seu trabalho e desenvolve um vnculo saudvel
com seus filhos e
netos .Ela est satisfeita com sua imagem, no acha nada de errado
com seu corpo, cuida
da sua sade e doaspeto esttico, mas a estranheza se presentifica
quando olha as
fotografias da juventude, al percebe a diferena, como ela diz:
ento era linda, era
linda quando era o caroo, o centro da famlia, quando tinha
filhos pequenos para
criar; agora ela se sente amada, cuidada, mas no sou mais
necessria, .... ela acredita.
O rosto procurado ante o espelho (ou nas fotografias) coincide
com aquele das fases de
maior satisfao narcsica, fases que de um ou outro modo
remeteriam iluso de
completude do Eu Ideal, de s-lo todo. Quando o ideal fracassa,
revela-se desde o
simples descontentamento com a prpria imagem at o pior dos
horrores, como acontece
35
-
com Dorian Gray quando enfrenta seu retrato envelhecido e
decrpito, como reverso de
um ideal para sempre perdido (Wilde, 1989). Podemos ento pensar
que, enquanto a
criana se rejubila ante o espelho antecipando sua unidade
corporal, o sujeito que
envelhece se deprime, antecipando a decrepitude da velhice e a
finitude da morte. Mas
um sujeito bem harmonizado nas suas instncias psquicas encontra
sempre como se
defender das surpresas do espelho. Muitas vezes parece bastar um
pequeno truque. Dona
Maria outra de nossas entrevistadas de mais de 70 anos resolve a
questo muito
graciosamente: no usa os culos de olhar de perto.
Este momento singular de estranheza ante a prpria imagem,
que
chamamos espelho negativo, acontece na maioria dos casos antes
da velhice se instalar,
entre os 50 e 60 anos; um fenmeno que anuncia a velhice em
termos de esttica, e que
vem acompanhado de outros, relacionados com a funcionalidade do
corpo e com o
significado social que cada cultura outorga a esta fase da vida.
A sensao que a
transformao acontece de repente, como se um relgio que marcava
sempre a mesma
hora comeasse a funcionar bruscamente. Observamos que geralmente
existe um fator
desencadeante como uma doena, uma perda, ou at um fato
proveniente do social,
algo que venha de fora e localiza ao sujeito em um novo tempo.
sempre o outro que
repentinamente nos nomeia velhos.
Dona Elzie de 76 anos uma pessoa muito ativa, e de vida
social
intensa. Quando fala do corpo ela diz: Estava pensando nessa
questo do corpo que
muda. Como eu j disse para voc, eu sempre me olhei. No sei se
curiosidade ou o
que , mas nunca tive vergonha de me olhar, muitas mulheres tm
vergonha de se olhar
ento, quando se olham levam um choque. Eu no, eu acompanhei meu
corpo, eu
percebi as mudanas quando tive filhos, quando
envelheci............. Eu tento passar isso
para minhas filhas, vocs devem estar sempre se olhando que para
no tomar choque,
para no se deprimir e para se cuidar, no tem que se deixar
decair. Olhar-se sempre,
criticamente, fazer com que o espelho seja um aliado e no um
inimigo, driblar os efeitos
do espelho enganoso e alienante, uma soluo, mas no a nica para
Dona Elzie, que
na sua entrevista prope: verdade isso de pessoas que no se
reconhecem. Acho que
deveria haver nos centros de sade onde funcionam grupos de
terceira idade,
profissionais que desenvolvessem um trabalho com as pessoas de
40 a 50 anos, para
36
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orientar sobre como elas vo envelhecer, de que