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Introduo Cidadania, sustentabilidade e crise global do ambiente:
o
estado da arte
1. Apresentao do tema da Dissertao, objectivos e estado da
arte
As implicaes globais da crise ambiental contempornea nas esferas
social e poltica
nas ltimas trs dcadas trouxeram novos desafios conceptuais s
cincias sociais e
humanas, nomeadamente filosofia e teoria poltica.
Dada a relevncia que assumem as questes ambientais nas agendas
polticas
nacionais e internacionais, uma das grandes tarefas da filosofia
do ambiente e da
filosofia poltica bem como da cincia poltica do nosso tempo, no
que diz respeito a
uma teoria da cidadania, a procura e elaborao de um territrio
conceptual que
tenha em conta a relao entre cidadania, ambiente e
sustentabilidade ou como
afirma Angel Valencia Saz, um dos autores pioneiros neste campo,
determinar a
possibilidade de encontrar um equilbrio entre a reivindicao de
direitos ambientais
e a ideia de responsabilidade colectiva1.
Apesar de a relao entre cidadania, ambiente e sustentabilidade
sensu stricto ser uma
rea de investigao relativamente recente, iniciada pela teoria
social e pela cincia
poltica anglo-saxnica na dcada de 1990 no seguimento do
ressurgir do interesse
pelo estudo das questes da cidadania em geral, podemos elencar
algumas das
contribuies para o tema em dois ngulos distintos de
teorizao:
- Uma perspectiva que, partindo do breve, mas clssico e
influente, texto do socilogo
britnico, T. H. Marshall, sobre a cidadania, Citizenship and
Social Class (1950),
centra-se na elaborao conceptual da relao entre cidadania e
ambiente
privilegiando, sobretudo, um enfoque na esfera dos direitos
cvicos, semelhana da
posio adoptada por Marshall. este o caso de autores como Bart
Van Steenbergen e
Howard Newby, como teremos oportunidade de analisar;
- Uma outra perspectiva que se demarca da elaborao histrica das
etapas da
cidadania efectuada por Marshall e apresenta a relao entre
cidadania e ambiente
1 Angel Valencia Saz, Ciudadania Ecologica: una nocin subversiva
dentro de una poltica global in M. Alcantara (ed.): Poltica en
Amrica Latina. I Congreso Americano de Ciencia Poltica, p. 281.
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dando um enfse especial esfera dos deveres ecolgicos e da
responsabilidade para
com as geraes futuras e com formas de vida no humanas, como so
os casos de
Mark Smith, Pete Christoff e John Barry.
No obstante o mrito que estas primeiras contribuies tiveram no
desbravar de um
territrio intelectual at ento no trilhado e de contriburem para
a ampliao do
debate em torno das questes ambientais, devemos, no entanto, ao
cientista poltico
britnico, Andrew Dobson, a mais original e completa teorizao no
que diz respeito
construo de um conceito cidadania ecolgica, nomeadamente em
trabalhos como o
artigo Ecological Citizenship: A Disruptive Influence (2000),
mas, sobretudo, a obra
Citizenship and the Environment (2003), espao que Dobson dedica
plenamente ao
desenvolvimento dos seus argumentos nesta matria com mais
acuidade e detalhe.
Filiando-se indubitavelmente, na perspectiva da segunda vaga de
autores que
referimos acima, o panorama que Dobson nos oferece em termos da
relao entre
cidadania, ambiente e sustentabilidade encontra-se,
infelizmente, reduzido a uma
espcie de narrativa materialista de produo consumo e troca de
recursos naturais.
Sem querermos adiantar muito neste momento, at porque a concepo
de Dobson
ser alvo de uma detalhada anlise ao longo desta Dissertao,
podemos, no entanto,
afirmar que a sua noo de cidadania ecolgica defende uma
abordagem cvica
essencialmente centrada na esfera dos deveres ou, como o prprio
afirma, em
comunidades de obrigao, sendo a cidadania ecolgica na sua ptica
construda com
base num processo no recproco entre o hemisfrio norte e o
emergente hemisfrio
sul do globo.
Nesta Dissertao pretendemos ir bem para l da perspectiva dos
autores j citados e
propomo-nos a pensar a cidadania no apenas sob o hipottico
prisma do conflito
entre direitos e deveres - at porque a noo de cidadania
ambiental que
procuraremos desenvolver postula uma relao de equilbrio entre
ambos - e dos
limites disciplinares da cincia e da teoria poltica, mas sim
abordar o tema sob um
ngulo conceptual incomparavelmente mais amplo.
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O principal objectivo desta Dissertao pensar a cidadania e a
sustentabilidade do
ponto de vista da complexidade da crise ambiental contempornea,
algo que,
estamos em crer, no foi logrados pelos autores que mencionmos e
que essencial
para compreender a relao entre cidadania e ambiente.
Assim, num primeiro momento, pretendemos argumentar que, em face
da
complexidade das questes envolvidas na crise ambiental global, a
noo de cidadania
ecolgica desenvolvida nomeadamente por Dobson, mas tambm por
outros autores,
assume um carcter extremamente redutor devido ausncia de uma
perspectiva
mais ampla dos seus argumentos no que diz respeito a
questes-chave da relao
entre cidadania, ambiente e sustentabilidade.
Num segundo momento, partimos da crise ambiental contempornea
como eixo axial
de uma profunda crise civilizacional na contemporaneidade e
pretendemos construir
as coordenadas territoriais tericas de uma noo mais ampla de
cidadania ambiental
do que at aqui tem sido feito: como possibilidade de construir
um novo
enquadramento cvico regulador da relao entre o ser humano e o
meio natural.
No pretendemos substituir uma perspectiva antropocntrica por um
enfoque
ecocntrico na relao homem/natureza, como fazem alguns autores e
correntes de
pensamento da tica ambiental, ou de formular uma viso
contratualista ecocntrica
de um hipottico contrato natural para substituir o nosso
contrato social na linha de
alguns dos argumentos sustentados, sobretudo, pela ecologia
profunda.
Trata-se de, em face da complexidade da crise ambiental
contempornea, tomar o
conceito de ambiente como categoria ontolgica fundamental no s
para a nossa
sobrevivncia no planeta, mas tambm para a sobrevivncia das
formas de vida no
humanas, e repensar as bases do contratualismo moderno atravs da
possibilidade de
ampliao do contrato social, enquanto metfora para a gnese das
relaes sociais e
polticas humanas, a um Contrato Ambio-Social que contemple as
condies do
mundo e dos recursos naturais, do equilbrio ecolgico dos
ecossistemas planetrios
ameaados pelas aces tecnocientficas antropognicas e a preocupao
para com as
geraes futuras nos limites de um realismo antropocntrico
moderado e
responsvel.
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Por outras palavras, esta Dissertao pretende levar a cabo a
tarefa de pensar uma
noo de cidadania ambiental de cariz antropocntrico, isto , na
perspectiva dos
direitos ambientais como extenso dos direitos humanos encarados
como deveres
para com as geraes futuras e para com o mundo natural, alargando
nesse sentido as
bases do contratualismo moderno realidade planetria
contempornea.
Recusando a tnica dos discursos quase apocalpticos ou de
pedagogias do temor que
muitas vezes surgem associados aos cenrios dos impactos futuros
dos problemas
ambientais (nomeadamente no que diz respeito s alteraes
climticas) e que, alm
de constiturem uma possvel parlise da aco cvica, como o
tentaremos demonstrar,
podem tornar-se ineficazes no intento de comprometer de forma
efectiva o indivduo
como uma parte activa e indispensvel na resoluo das questes
ligadas ao ambiente,
pretendemos sublinhar igualmente o momento histrico nico que
representa a crise
ambiental contempornea e os titnicos desafios que coloca
cidadania e
sustentabilidade:
- O de nos incitar a procurar uma noo de cidadania ambiental
que, tendo o ambiente
como condio ontolgica da nossa sobrevivncia, promova a reviso do
nosso
contrato social com base na reivindicao de modelos polticos
baseados na equidade
social e de paradigmas econmicos e tecnocientficos operando
dentro das fronteiras
da sustentabilidade planetria, bem como que reflicta a
responsabilidade cvica
perante a preservao do mundo natural e o cuidado com as geraes
futuras e
formas de vida no-humanas;
- A possibilidade de enriquecer o clssico tringulo conceptual da
sustentabilidade
(social, econmico e ambiental), enfocando-a numa perspectiva
mais lata como um
possvel mito de mobilizao da sociedade civil face aos desafios
ambientais
contemporneos na perspectiva de uma antropologia da esperana e
de uma utopia
concreta, cujas ferramentas de pensamento crtico aos paradigmas
estabelecidos nos
permitam o rduo, exigente e, igualmente, estimulante exerccio de
divisar futuros
modelos sociopolticos alternativos, equitativos e sustentveis.
Este argumento
constitui o terceiro momento fundamental desta Dissertao.
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2. Estrutura temtica dos captulos
Feita que est a apresentao geral das principais linhas temticas
da nossa
investigao, consideremos agora mais em detalhe o itinerrio que
vamos percorrer ao
longo dos prximos doze captulos.
Antes de nos acercarmos relao entre cidadania e sustentabilidade
luz da crise
ambiental contempornea, comeamos por fazer uma incurso histrica,
na qual
pretendemos surpreender as etapas mais marcantes do percurso
empreendido pelo
conceito de cidadania. esse o objectivo dos captulos 1 e 2, onde
pretendemos dar
conta dos momentos-chave histricos cruciais para o
desenvolvimento do conceito:
Esparta e Atenas do sculo V a.C., na Grcia Antiga, e as Revolues
Inglesa, Americana
e Francesa dos sculos XVII e XVIII.
O captulo 3 aborda a cidadania na contemporaneidade e pretende
oferecer uma viso
panormica dos seus principais problemas: desde o renascimento
acadmico
cidadania no ps-guerra atravs do clssico texto de Marshall e dos
principais autores
que tratam o tema desde a dcada de 1990 at complexidade que
representa a
interaco da cidadania com as novas ferramentas de comunicao
digital neste incio
de sculo.
Com o captulo 4 entramos propriamente nos temas de fundo desta
Dissertao, ao
analisarmos com detalhe a concepo de cidadania ecolgica de
Andrew Dobson e de
outros autores e aos expormos as suas insuficincias tericas face
representao da
complexidade da crise global do ambiente.
O repensar das bases do contratualismo moderno feito nos
captulos 5 e 6, partindo
da natureza na sociedade e na histria como premissas
fundamentais para a
possibilidade da sua ampliao a um Contrato Ambio-Social e para a
elaborao da
nossa concepo de cidadania ambiental, pensada do ponto de vista
da crise
ambiental global.
A procura de novos paradigmas econmicos e tecnocientficos
operando dentro das
fronteiras da sustentabilidade planetria como reivindicao do
Contrato Ambio-Social
e da cidadania ambiental o tema dos captulos 7, 8 e 9, nos quais
abordamos
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detalhadamente algumas propostas alternativas aos modelos
tecnocientfico e
econmicos dominantes.
O captulo 10 confronta-se com os grandes desafios presentes e
futuros que a crise do
ambiente imps nossa contemporaneidade e pretende sustentar que,
do ponto de
vista da cidadania ambiental, o temor como apresentado por Hans
Jonas em o
Princpio de Responsabilidade assim como a transio argumentativa
da sua tica
ambiental para um plano de prtica poltica, pode representar uma
parlise cvica no
que diz respeito tarefa de comprometer os indivduos nas tarefas
da
sustentabilidade.
O captulo 11 pretende pensar a sustentabilidade na ptica do
Contrato Ambio-Social e
do conceito de cidadania ambiental estabelecido nos captulos
anteriores e alargar o
seu eixo conceptual a um pilar cultural e antropolgico.
Formulamos a
sustentabilidade na acepo do que designamos como uma
antropologia da
esperana, isto , como possvel mito mobilizador da sociedade
civil neste sculo, o
qual no ser concretizvel sem algumas das ferramentas de
pensamento crtico que
nos so oferecidas pelo pensamento utpico.
O captulo 12 que encerra a nossa investigao aborda os movimentos
ambientais e
sociais na ptica da sustentabilidade como antropologia da
esperana e termina por
concluir que a primeira s poder constituir um efectivo mito
mobilizador da
sociedade civil na perspectiva da cidadania ambiental se for
recuperado para os
movimentos sociais na contemporaneidade o que designamos como o
esprito de
68, certas caractersticas que nos foram legadas pelo activismo
da dcada de 1960, ou
seja, a ideia de que um outro mundo possvel, de que existem
outras alternativas
sociopolticas e socioeconmicas capazes de se oporem aos
paradigmas dominantes e
insustentveis.
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3. A natureza interdisciplinar da Dissertao
Antes de encerrarmos esta Introduo devemos ainda tecer algumas
consideraes
sobre outro aspecto importante desta Dissertao. A tarefa a que
nos propusemos,
isto , pensar a cidadania e a sustentabilidade do ponto de vista
da complexidade da
crise ambiental, longe de constituir a derradeira palavra sobre
o tema ou de o esgotar,
pretende sublinhar a natureza especfica da cidadania ambiental
e, sobretudo, chamar
ateno para a sua complexidade.
Da, ao longo das pginas que se seguem, insistirmos com uma certa
frequncia na
falta de amplitude analtica com que os autores que nos precedem
abordaram o tema.
Contrariamente a outros domnios tericos da cidadania, uma
concepo de cidadania
que pretenda partir da crise global do ambiente para o seu
horizonte de reflexo ser,
ela prpria, igualmente complexa e ter de se haver com problemas
que nunca lhe
foram colocados anteriormente.
Mas no s. Alm de complexa, a cidadania ambiental no se pode
eximir ao dilogo
interdisciplinar, caracterstico de quem se dedica s questes
ambientais. Mais do que
qualquer outro domnio ou rea de saber, o ambiente e a
sustentabilidade,
independentemente do seu prisma de anlise, convocam a um dilogo
aberto e
riqussimo (embora nem sempre frutfero por fora da compartimentao
quase
hermtica ainda existente entre reas de saber), em que a
diversidade de perspectivas
presentes fulcral para a obteno de uma viso de conjunto.
, sobretudo, para esse aspecto interdisciplinar que pretendemos
alertar. Mais do que
uma investigao especializada e encerrada nos limites de uma dada
rea de
conhecimento, esta Dissertao, atravs do rumo temtico que
procurou empreender,
constitui uma viso de conjunto e um dilogo cruzado, por vezes
panormico, de
diversas disciplinas, de diversos autores e de diversas
leituras.
A isto no tambm alheio a prpria natureza interdisciplinar do
Programa Doutoral
de Alteraes Climticas e Polticas de Desenvolvimento Sustentvel,
cuja frequncia
da parte curricular no ano lectivo de 2010/2011 possibilitou e
influenciou, de alguma
forma, as pginas que se seguem.
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Assim, so mltiplas as Ariadnes que nos guiaram por este
labirinto e que nos
ajudaram a sair dele. Estando cientes de que uma linha de anlise
to abrangente
quanto possvel pode comportar diversos riscos, eventualmente
alguma perda de
profundidade analtica em determinados aspectos, cremos, no
entanto, que s desta
forma poderamos concluir com xito, pelo menos assim o esperamos,
a tarefa que
pretendemos levar a cabo. Caso contrrio, a no faz-lo, teramos
incorrido no erro
que apontmos a outros autores que se debruaram sobre o tema.
A este respeito, e para terminar, reclamamos como inteiramente
nossas as palavras de
Lewis Mumford em a Histria das Utopias, que resumem de forma
brilhante a
inteno, o mtodo e os objectivos que convergiram nesta
Dissertao:
Havendo renunciado s recompensas, embora no ao labor, do
especialista, tinha-me lanado
conscientemente na minha carreira de generalista, ou seja, algum
que se interessa mais por
combinar fragmentos num padro ordenado e com significado do que
por uma investigao minuciosa
dos diversos componentes ()2.
Dito isto, tempo de partirmos em busca da gnese histrica do
conceito de
cidadania.
2 Lewis Mumford, Histria das Utopias, p. 13.
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Captulo 1 Anatomia Sociopoltica de um Conceito I: cidadania
na
Grcia Antiga
1. Algumas consideraes prvias em torno da histria da
cidadania
Ao procurarmos aferir com um certo rigor a origem histrica do
exerccio da cidadania
no dever constituir motivo de admirao se afirmarmos que,
semelhana de
muitas das conquistas intelectuais logradas pelo gnero humano,
no solo da Grcia
Antiga que se testemunha pela primeira vez, tanto quanto a
tradio histrica nos
permite conhecer, a concretizao daquilo que poderemos denominar
como um dos
primeiros momentos de maturidade poltica da histria da
humanidade.
Porm, antes de indagarmos as origens histricas da cidadania,
teamos algumas
consideraes prvias no que diz respeito aos nossos objectivos
neste ponto. Alm de
fragmentria, por no podermos dar conta aqui de forma detalhada
das diversas
etapas que constituem o desenvolvimento histrico da ideia e da
prtica da cidadania3,
a nossa inteno , sobretudo, captar as suas manifestaes
essenciais no plano da
histria e que constitui um dos pressupostos da noo de cidadania
ambiental que
iremos procurar desenvolver como hiptese de trabalho em pginas
mais avanadas
da nossa investigao.
Neste esboo histrico, mais do que uma pura descrio cronolgica,
pretendemos
evidenciar uma ideia: surpreender na histria as condies sociais
e polticas em que
a cidadania representou um desbravar, obviamente no concretizado
luz de uma
marcha progressiva como a prpria histria testemunha, do caminho
para a
democracia4. Como teremos oportunidade de observar quando
abordamos a
construo terica de uma noo de cidadania ambiental, defendemos
que a
democracia um requisito indispensvel para o pleno exerccio da
condio cvica.
3 Para esse efeito recomendamos os estudos de Paul Magnette,
Citizenship, The History of an Idea (2005), de Derek Heater, A
Brief History of Citizenship (2004) e tambm de Jaime e Carla
Pinsky, Histria da Cidadania (2003). 4 O argumento que subjaz ao
longo das pginas desta tentativa de apreenso histrica do nosso
objecto de investigao de que, apenas numa estrutura poltica de
cariz democrtico no obstante as suas imensas lacunas e fragilidades
-, atravs da participao no espao pblico, o homem capaz de se
expressar plenamente como ser poltico.
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Importa-nos, por isso, esclarecer que neste regresso s origens
do conceito de
cidadania, semelhana de Aristteles,
() a nossa definio de cidado , sobretudo, a do cidado num regime
democrtico5.
J o afirmmos. naquele que considerado o bero espiritual do
pensamento
ocidental que a construo da ideia de cidadania, o seu exerccio e
a ideia de
participao poltica no s se vo forjando paulatinamente, bem como
comeam a
adquirir algumas das suas caractersticas fundamentais, algumas
das quais
permaneceram at contemporaneidade, num quadro de referncia
poltica
desenvolvido em algumas cidades-Estado da Grcia clssica, mas que
teve o seu
expoente mximo na Atenas do sculo V a.C.
Ao indagarmos as origens histricas do conceito de cidadania,
aflora-se-nos uma
questo essencial e que, obviamente, no poderia deixar de ser
colocada:
- O que contribuiu decisivamente para que a gnese da ideia de
cidadania como a
entendemos hoje, assim como o seu exerccio, se tenha
desenvolvido no mundo antigo
na Grcia e no em qualquer outro lugar?
Apesar de a resposta ser complexa e exigir um estudo aprofundado
e comparado da
histria poltica da antiguidade que aqui no podemos realizar a no
ser de forma
muito sucinta, podemos adiantar que a cidadania, entendida como
concretizao de
certas potencialidades sociais e polticas do ser humano, isto ,
como o vnculo a uma
comunidade poltica em que se detentor de direitos e deveres para
com a mesma6,
s poderia surgir numa fase j adiantada de consolidao do processo
civilizacional no
longo caminho intelectual percorrido pela humanidade desde os
seus primrdios.
Isto porque, como afirma Derek Heater:
A cidadania () exige a capacidade para uma certa abstraco e
sofisticao de pensamento. Um
cidado tem de compreender que o seu papel implica estatuto, um
sentido de lealdade, o cumprimento
5 Aristteles, Poltica, Livro III, 1275b5. 6 Diderot e DAlembert,
na Encyclopdie (1753), no verbete dedicado a cidado, definem-no
como () celui qui est membre d'une socit libre de plusieurs
familles, qui partage les droits de cette socit, et qui jouit de
ses franchises.
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de deveres e a posse de direitos primeiramente no em relao a
outro ser humano, mas em relao a
um conceito abstracto, o Estado7.
Aqui reside, quanto a ns, uma das peas essenciais que nos
permite discernir com
um pouco mais de clareza este complexo enigma8 que continua a
ser at hoje o
conceito de cidadania:
- So precisamente a capacidade de abstraco e a sofisticao de
pensamento
inerentes ao esprito cultural helnico que fecundam e desenvolvem
de um modo
intelectualmente refinado na antiguidade ideias que encontraram
nos ltimos trs
sculos solo sagrado para a sua plena expresso: a ideia de
democracia, a participao
no espao pblico, a soberania popular e a liberdade
individual.
Depois destas primeiras breves consideraes introdutrias,
foquemos a nossa
ateno mais detalhadamente nas condies sociais e polticas que
permitiram a
gnese histrica do conceito de cidadania no mundo antigo.
7 Citizenship () requires the capacity for a certain abstraction
and sophistication of thought. A citizen needs to understand that
his role entails status, a sense of loyalty, the discharge of
duties and the enjoyment of rights not primarily in relation to
another human being, but in relation to an abstract concept, the
state. Derek Heater, Citizenship The Civic Ideal in World History,
Politics and Education, p. 2. A traduo das citaes ao longo de toda
a Dissertao da nossa autoria, excepto onde indicado. 8 Apesar de
conseguirmos abarcar de forma algo clara o que representa a
cidadania para um grego clssico, convm referir que o tema se
encontra longe de estar esgotado. o que sustenta Ifigenija
Radulovic, no artigo intitulado, Citizenship in Ancient Greece
Athens and Sparta: Terms and Sources, p. 25: The notion and problem
of citizenship in ancient Greece is very complex and it continues,
in different contexts, to be the object of scientific research even
very recently ().
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2. Cidadania: anatomia sociopoltica de um conceito. A Grcia
Antiga dos sculos IX e
VIII a.C.
Apesar de a ideia de cidadania, bem como a de democracia, serem
nativas dilectas do
labor terico do horizonte intelectual grego clssico no as
podemos pensar, nem
sequer viver, na contemporaneidade como foram pensadas e vividas
pelos gregos9.
Comeamos por afirmar isto precisamente para tentar tornar mais
claro algo que ainda
subsiste profundamente enraizado quando se procuram estabelecer
analogias entre a
democracia grega e a democracia contempornea, tentando
evidenciar um certo
padro de continuidade entre ambas. O que pretendemos , como
tentaremos
demonstrar nas pginas que se seguem, o contrrio: demarcar as
caractersticas da
cidadania grega clssica e enfatizar o seu carcter de
singularidade.
Onde comea esta singularidade que cria irremediavelmente uma
barreira de
significado histrico entre ns e os nossos antepassados
gregos?
A primeira diferena, e tambm a mais significativa, est no modo
de organizao
social e poltico legitimamente adoptado pelos gregos como sendo
o que mais se
adequava s suas necessidades: a plis, isto , a cidade-Estado.
absolutamente
fundamental compreender a emergncia da mesma no contexto
histrico para
podermos surpreender com mais clareza a gnese do conceito de
cidadania, dado que
ambos esto intrinsecamente associados.
Alm de ser impossvel reproduzir de forma absolutamente fiel o
que ter sido a
cidade-Estado10 ou representar com exactido a relao de um grego
para com a
mesma11, por s conseguirmos de forma indirecta conhecer a poca
histrica a que
9 a tese que sustenta Norberto L. Guarinello, no artigo
intitulado Cidades-Estado na Antiguidade Clssica em Jaime e Carla
Pinsky (Org.), Histria da Cidadania: A cidadania nos
Estados-nacionais contemporneos um fenmeno nico na Histria. No
podemos falar de continuidade no mundo, de repetio de uma
experincia passada e nem mesmo de um desenvolvimento progressivo
que unisse o mundo contemporneo ao antigo. Cf., op. cit., p. 29. 10
() to difcil oferecer uma definio cabal da cidade-Estado como ()
definir Estado nacional. Guarinello, op. cit., p. 30. Tambm H.D.F.
Kitto, eminente historiador sobre a Grcia Antiga, sustenta o mesmo
ponto de vista: Sem uma noo clara do que era a plis, e do que ela
significa para os Gregos, impossvel compreender devidamente a
Histria Grega, o esprito grego, ou as realizaes gregas. Kitto, Os
Gregos, p. 107. 11 A este respeito recomendamos a obra citada de
H.D.F. Kitto, captulo 5 e o excelente estudo de Fustel de
Coulanges, A Cidade Antiga, Livro Terceiro.
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nos referimos, a sua dimenso territorial e densidade
populacional que nos chamam
de imediato a ateno para o abismo que se interpe entre a nossa
condio
contempornea e a Grcia clssica.
Para alm de se caracterizarem por uma predominncia mormente
rural12, a maior
parte das cidades-Estado no ultrapassava os cerca de cinco mil
habitantes, algumas
de maior dimenso tendo vinte mil habitantes, exceptuando, por
exemplo, Atenas,
grande entreposto comercial, ou Esparta, cidade-Estado de cariz
essencialmente
militar, que albergavam cem mil habitantes13.
Outra caracterstica que deve ser salientada sobre a estrutura
das cidades-Estado a
sua diversidade e fragmentao poltica, social e cultural:
() sob o termo cidade-Estado abarcamos povos distintos, culturas
diferentes, com os seus prprios
costumes, hbitos quotidianos, leis, instituies, ritmos histricos
e estruturas sociais ()14.
Localizadas, sobretudo, nas margens do Mediterrneo15, as
cidades-Estado emergem
numa poca de francas transformaes histricas16 a nvel social e
econmico em
territrio grego, caracterizada por um perodo de crescentes
migraes populacionais
e trocas comerciais17 em que o aparecimento da moeda importada
da Ldia a partir de
625 a.C.18, e o posterior estabelecimento de colnias no norte de
frica, sul de
Espanha, Mar Negro e Itlia por parte de gregos e fencios19,
permite, paulatinamente,
12 Guarinello esclarece que: O termo cidade-Estado no se refere
ao que hoje entendemos por cidade, mas a um territrio agrcola
composto por uma ou mais plancies de variada extenso, ocupado e
explorado por populaes essencialmente camponesas (). Op. cit., p.
32. Veja-se tambm a este respeito Maria Helena da Rocha Pereira,
Estudo de Histria da Cultura Clssica : Volume I Cultura Grega, p.
173 e ss. 13 Guarinello, op. cit., p. 30. 14 Guarinello, op. cit.,
p. 30. 15 A histria das cidades-Estado , em primeiro lugar,
geograficamente localizada e circunscrita. No parte da histria
universal, como a entendemos hoje, mas de uma regio especfica do
planeta: as margens do mar Mediterrneo. Guarinello, op. cit., p.
31. Cf. igualmente os artigos de A.J.Graham, The colonial expansion
of Greece e The western Greeks in Cambridge Ancient History 3.3.
The Expansion of the Greek World Eight to Sixth Centuries B.C., pp.
83-162 e 163-195. 16 Entre os sculos IX e VIII a.C. Cf. M.H. da
Rocha Pereira, op. cit., p. 174. 17 Guarniello, op. cit., p. 31.
Como afirma M.H. Rocha Pereira: A criao de colnias contribui
poderosamente para desenvolver o comrcio martimo e a indstria, qual
se abriram novos escoadouros. Op. cit., p. 176. Registe-se que o
estabelecimento de colnias se d entre cerca de 775 a.C. e 560 a.C.,
perodo que os historiadores da Grcia designam como perodo arcaico.
Cf. M.H. da Rocha Pereira, op. cit., pp. 174 e 175. 18 M.H. da
Rocha Pereira, op. cit., p. 176. 19 Guarniello, op. cit., p.
31.
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14
uma difuso do modelo grego de cidade-Estado nos territrios
colonizados, o que
provocar com o decorrer das dcadas e dos sculos uma profunda
alterao no
tecido social dos mesmos.
As metamorfoses, contudo, so lentas. A introduo da propriedade
privada prova ser
fundamental nesta transformao. As cidades-Estado comeam por ser
comunidades
agrrias, associaes de proprietrios privados de terra20. A partir
deste momento
acentua-se uma tendncia que ganhar eco nos sculos seguintes e
que constituir um
trao decisivo da vivncia cvica grega, at mesmo no esplendor do
sculo de Pricles:
a excluso.
O acesso s terras direito exclusivo dos membros da comunidade,
estando vedado
aos que no fazem parte dela21, ou seja, os estrangeiros. Vo-se
assim consolidando
progressivamente as estruturas das primeiras cidades-Estado.
A defesa comum das propriedades agrcolas contra agresses
externas, assim como a
arbitragem de disputas entre proprietrios de terras cada vez
mais agudizadas,
demandam a necessidade de criao de mecanismos pblicos e
colectivos para o
efeito. Preconiza-se o espao pblico, que se constitua nos
lugares comuns como os
templos ou os mercados, como cenrio de mediao de conflitos sob o
denominador
de uma lei comum que, segundo Guarniello
() obrigava a todos e que se imps como norma escrita, fixa,
publicizada e colectiva22.
Poder-se- afirmar, em consonncia com Moses I. Finley, que
mediante um processo
de transformaes sociais e econmicas moroso, gradual e que no
decorreu
seguramente com a fluidez cronolgica como o apresentamos nestas
pginas, que os
gregos inventaram a poltica23?
A identidade comunitria constri-se atravs da participao no espao
pblico.
atravs deste que a relao dos indivduos, muitas vezes sem
qualquer unidade tnica 20 Guarinello, op. cit., p. 32. 21
Guarinello, op. cit., p. 32. 22 Guarinello, op. cit., p. 33.
Mantemos a ortografia do portugus brasileiro do texto. 23 Finley,
em Poltics in the Ancient World, afirma que a poltica () is an
invention made separately by the Greeks and the Etruscans. Cf. op.
cit., p. 89. Na mesma ordem de ideias, a este respeito, Guarinello
considera que Aqui reside a origem mais remota da poltica, como
instrumento de tomada de decises colectivas e de resoluo de
conflitos (). Cf. op. cit., p. 33.
-
15
ou de qualquer outra ndole24, com a comunidade adquire vnculos
fortes e se solidifica
o exerccio da vivncia cvica.
Como afirma, Guarinello,
Pertencer comunidade era participar de todo um ciclo prprio da
vida quotidiana, com os seus ritos,
costumes, regras, festividades25, crenas e relaes
pessoais26.
Nesta passagem encontramos j delineados alguns dos traos
principais daquilo que
constitui a vida numa cidade-Estado. Abordemos agora os dois
modelos clssicos de
cidades-Estado que a antiguidade nos legou: o de Esparta e o de
Atenas. Comecemos
por aquela que ficou conhecida como a Repblica da
Lacedemnia.
24 Para l da ausncia de um denominador comum, Guarinello afirma
que a identidade comunitria foi () criada e recriada, reforada e
mantida por mecanismos que produziram o cidado ao mesmo tempo que
faziam nascer cultos comuns, moeda cvica, lngua, leis, costumes
colectivos (). Op. cit., p. 34. 25 Nomeadamente, as festividades
religiosas onde os cidados prestavam culto s divindades de cada
cidade-Estado. Os cultos eram comuns e estavam, na sua larga
maioria, sob a organizao da prpria comunidade. Para uma anlise mais
profunda sobre o fenmeno religioso na antiguidade clssica veja-se a
obra de Jean Pierre Vernant, Mito e Religio na Grcia Antiga que
constitui uma excelente introduo a este tema. 26 Guarinello, op.
cit., p. 35.
-
16
3. Esparta nos sculos VII e VI a.C.: a participao pblica num
Estado oligrquico
Segundo Werner Jaeger,
A criao mais caracterstica de Esparta o seu Estado, e o Estado
representa aqui, pela primeira vez,
uma fora educadora no mais vasto sentido da palavra27.
A criao do Estado espartano, bem como a sua constituio
(conhecida como a
Grande Retra), est associada a uma figura de contornos lendrios:
Licurgo, legislador
espartano que ter vivido no sculo IX a.C. e que, segundo
Plutarco28, bigrafo e
ensasta do sculo I d.C., reformou o sistema poltico, as leis e a
forma de governo na
sua cidade-Estado semelhana das leis que vigoravam em
Creta29.
Sem podermos, contudo, aferir da sua originalidade, de acordo
com W.G. Forrest,
Licurgo adaptou tanto quanto criou e muito do que ele produziu
tinha sido alterado ou substitudo
muito antes dos estudiosos dos sculos V e IV a.C. comearem a
estudar a sua Esparta Licrgia
contempornea30.
Alm da constituio espartana, Licurgo teria estabelecido as bases
polticas e
administrativas da cidade-Estado, criando novas instituies31 e
um modelo social que
no , de todo, semelhante s caractersticas que enumermos na gnese
das cidades-
Estado. Isto porque o Estado espartano um Estado essencialmente
militar onde at
as refeies so comunitrias.
27 Werner Jaeger, Paideia A formao do homem grego, p. 109. 28
Saliente-se que no existem fontes histricas fidedignas que nos
permitam conhecer plenamente a vida de Licurgo. Um dos seus
bigrafos mais conhecidos na antiguidade Plutarco que inicia a sua
obra, Licurgo Reformador de Esparta, dizendo que Nada se pode
afirmar com segurana do legislador Licurgo. A sua origem, as suas
viagens, a sua morte, finalmente as suas prprias leis e a forma de
governo que estabeleceu so relatadas diferentemente pelos
historiadores; (). Cf. igualmente W.G. Forrest, A History of
Sparta: 950/192 BC, p. 40 Lykourgos himself is a shadowy, possibly
even a mythical figure (..). 29 Na sua obra, Plutarco afirma que
Licurgo viajou para Creta: () onde observou cuidadosamente o
governo e teve frequentes conferncias com os homens de maior
reputao. Concordou plenamente com algumas das suas leis e
coligiu-as para as aplicar quando regressasse a Esparta; outras
houve que rejeitou. Plutarco, op. cit., p. 18. 30 Lykourgos adapted
as much as he created and much of what he produced had been altered
or even superseded long before fifth-or- fourth-century scholars
began to study their contemporary Lykourgan Sparta. W.G. Forrest,
op. cit., p. 40. 31 Para uma descrio detalhada das instituies
espartanas e das funes desempenhadas por cada uma delas veja-se
W.G. Forrest, op. cit., pp. 40-50.
-
17
Numa sociedade de governo oligrquico32 fechada ao comrcio e
entrada de
estrangeiros, e cuja educao ministrada pelo Estado com o
objectivo fundamental
de dotar os seus cidados de qualidades militares33 atravs de um
rigoroso regime de
preparao fsica desde os sete anos de idade visando o
adestramento blico e a
defesa da cidade, a participao dos cidados na administrao pblica
considerada
uma homologao de virtude cvica34, imprescindvel at para a
manuteno do
exerccio de direito poltico.
aos homoioi35, cidados espartanos de pleno direito, que cabe a
administrao
pblica da cidade. Permaneciam-lhe adstritos de modo permanente
quer para o
exerccio de cargos polticos, quer para a participao na guerra,
sendo
impossibilitados por lei de se dedicarem a outro tipo de
actividade que no as
actividades blica ou poltica.
Considerados como iguais perante o Estado e possuindo todos os
cidados espartanos
parcelas de terra pblica em exacto nmero (outra das reformas que
teria sido
introduzida por Licurgo36), este princpio de igualdade que lhes
garante um vnculo
de pertena territorial bem como um estatuto social.
Segundo W.G. Forrest:
Se no a criou, Licurgo difundiu amplamente entre os espartanos a
noo de ser cidado e um
elemento essencial nesta noo era a igualdade de todos os
cidados, no como humanos, mas como
cidados. Como cidados, os espartanos possuam um lote de terra
(kleros) semelhante que significava a
vrios nveis um modo de vida padro, eram vistos como iguais
perante a lei ()37.
Apesar de ser um regime poltico de cariz oligrquico, conseguimos
j percepcionar
com mais clareza o que representa o exerccio da cidadania para
um grego da poca
32 O governo espartano era composto por dois reis e a sucesso
hereditria. 33 As trs grandes virtudes criadas por Licurgo, na
opinio de Forrest, eram: a habilidade e a eficincia militares e a
austeridade. Cf. op. cit., p. 50 34 Derek Heater, op. cit., p. 11.
35 Termo que em grego significa iguais. Cf. Forrest, op. cit., p.
50. 36 Cf. Forrest, op. cit., p. 51. 37 Lykourgos vastly enlarged,
if he did not create, for Spartans the idea of being a citizen and
an essential element in this idea was the equality of all citizens,
not as human beings but as citizens. As a citizen the Spartan had
an equal kleros form which he supported what was in many respects a
standard way of life, he had an equal standing in the eyes of the
law (). Forrester, op. cit., p. 51.
-
18
clssica: alm de constituir um modo de vida, algo que penetra
todas as esferas do
homem.
De acordo com Paul Magnette:
A cidadania definia todos os mbitos da vida dos cidados. Os
antigos no distinguiam entre o que viria
a ser denominado como esfera pblica e esfera privada38.
Mas isto no tudo. Uma outra caracterstica da vivncia cvica
espartana, e que
inerente esfera poltica de outras cidades-Estado na Grcia da
poca, o que os
gregos designavam por atimia, ou seja, o no cumprimento dos
deveres cvicos que
acarretava a perda do estatuto de cidado39. A excluso da
actividade cvica a que,
como iremos ver mais adiante, estavam sujeitos todos aqueles que
no possuam
direitos de cidadania e que representavam uma grande leque da
populao
alargava-se aos que se demitiam, voluntaria ou
involuntariamente, de tal tarefa.
Apesar de amplamente louvada na antiguidade como modelo de
cidade-Estado40, seria
em Atenas, territrio que testemunhou a primeira experincia
democrtica da histria
humana de forma sistemtica, que a vivncia cvica se associa noo
de soberania
popular.
38 Citizenship defined all aspects of citizens lives. The
ancients made no distinction between what would come to be called
public and private spheres. Paul Magnette, Citizenship, The History
of an Idea, p. 7. 39 Cf. Derek Heater, A brief history of
citizenship, p. 11. 40 Por exemplo a cidade ideal que Plato procura
construir na Repblica claramente influenciada por Esparta.
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19
4. Atenas no sculo V a.C.: A democracia
A primeira referncia palavra democracia que se conhece surge
pela primeira vez
com Herdoto41, historiador grego, cerca de 450 a.C. Neste ponto
em particular, como
afirma M.H. da Rocha Pereira, estamos perante
() uma das muitas conquistas gregas de que a cultura ocidental
continua a viver ()42.
Existiro, provavelmente, poucas passagens que resumam de forma
to brilhante o
porqu de o regime democrtico ateniense ter permanecido vivo na
memria
intelectual do Ocidente como os trs seguintes trechos da Poltica
de Aristteles e que,
em nosso entender, demarcam-no de forma crucial da estrutura
poltica de outras
cidades-Estado, precisamente no mbito mais caro nossa
investigao: o exerccio da
cidadania. Sigamos a lucidez analtica do Estagirita.
Referindo-se principalmente a Atenas, Aristteles da opinio de
que
() no h melhor critrio para definir o que o cidado em sentido
estrito, do que entender a
cidadania como capacidade de participao na administrao da justia
e no governo43,
ao passo que num outro tipo de regime poltico,
() nalgumas cidades, o povo no tem funes: no se instituem
assembleias regulares mas apenas se
convocam pontualmente conselhos, sendo as decises judiciais
atribudas a juzes especficos44.
A terceira passagem a que depe mais claramente a favor do regime
ateniense:
Chamamos cidado quele que tem o direito de participar nos cargos
deliberativos e judiciais da
cidade. Consideramos cidade, em resumo, o conjunto de cidados
suficiente para viver em autarquia45.
A palavra autarquia, que devm do grego u e que significa o
comando de si
mesmo, a pedra de toque que explica o motivo da Atenas do sculo
V a.C., tanto na
41 No Livro IX das suas Histrias. Cf. Magnette, op. cit., p. 10,
bem como M. Oswald, Nomos and the Beginnings of the Athenian
Democracy, p. 120. 42 M. H. Rocha Pereira, op. cit., p. 180. 43
Poltica, Livro III, 1275a20. 44 Poltica, Livro III, 1275b5. 45
Poltica, Livro III, 1275a20. O bold nosso. Informe-se a este
respeito que, para Plato, a cidade ideal no poderia exceder o nmero
aproximado de 5000 habitantes. Cf. Leis, 5 737e-738 e 771a-772d. No
adiantando nmeros, Aristteles, em tica a Nicmaco, afirma o
seguinte: Nem dez homens constituem uma plis, nem com cem mil
existe j plis. Cf. tica a Nicmaco, 9, 1170b 31-32.
-
20
antiguidade como no decurso da histria posterior, ter sido
considerada um modelo de
governo exercido pelos prprios cidados de forma autnoma.
Esse trabalho de aperfeioamento do sistema poltico ateniense ,
sobretudo, obra de
um homem: Pricles (495 429 a.C.). Mas isto no tudo. Antes de nos
determos na
sua figura convm recuar um pouco no desenrolar da histria
sociopoltica de Atenas
para compreendermos melhor a aco deste fulgurante estadista.
A democracia ateniense no emerge por pura gestao espontnea no
sculo V,
ancorando antes as suas razes nas reformas de dois legisladores
anteriores a Pricles,
de seu nome, respectivamente, Slon (638 - 558 a.C.) e Clstenes
(570 507 a.C.).
O sculo VI, de um modo geral, marcado por um declnio da
hegemonia da
aristocracia que, excepo de Esparta46, baseava a sua forma de
governo
primordialmente em regimes tirnicos predominantes em muitas das
cidades-Estado
gregas face a novos modelos de organizao poltica e social. A
perda de privilgios
por parte da aristocracia permitiu uma ampliao do espao pblico a
outras classes
sociais, o que permitiu um fortalecimento da coeso das prprias
comunidades47.
Em consonncia com o declnio da aristocracia, surgem as primeiras
figuras
importantes na construo da democracia ateniense. A primeira
delas Slon, a partir
de 594 a.C., atravs das suas reformas a nvel econmico e social -
a abolio da
escravatura por dvidas, a criao de medidas de proteco
agricultura, indstria e
ao comrcio, bem como a criao de um sistema monetrio prprio48 -,
abre espao
para reformas de teor poltico a criao de quatro classes de
cidados, a instituio
do tribunal de Helieia, ao qual todos os cidados podiam apelar
face s sentenas dos
magistrados49.
Clstenes, na senda de Slon, ainda em pleno sculo VI, altera a
distribuio do poder,
criando as dez tribos de Atenas, as quais dota de administrao
prpria passando
46 M. H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 178. 47 Guarinello, op.
cit., p. 39. 48 M. H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 189. 49 M. H.
da Rocha Pereira, op. cit., p. 189.
-
21
assim o poder a estar equilibrado entre a esfera local e a
esfera da cidade-Estado e,
mais do que tudo, instaura definitivamente a liberdade de falar
em pblico50.
At que chegamos a Pricles e ao apogeu da ideia de democracia na
antiguidade.
4.1. Pricles: o elogio da democracia
Alm de o perodo temporal em que decorreu a existncia de Pricles
(495 429)
representar o apogeu da cultura grega clssica51, o estadista
ateniense edificou, pelo
menos em teoria, as bases do que representa a democracia (no do
que ela , mas do
que ela devia ser) e a sua defesa face a regimes tirnicos.
No tendo legado qualquer obra escrita, a sua apologia da
democracia encontra-se
exposta no Discurso de homenagem aos mortos da Guerra do
Peloponeso, reproduzido
integralmente pelo historiador grego Tucdides52. Por limitaes
inerentes ao espao
de que dispomos, deixamos em esboo apenas os pontos fundamentais
do Discurso
em que Pricles se revela importante para a histria da
democracia.
Pricles comea por elogiar a Constituio ateniense53 face a outros
regimes e, pelo
facto de ela ser democrtica, garante um princpio essencial para
o exerccio da
cidadania: a soberania popular. Por esse facto, a administrao do
Estado feita com
base no interesse do povo e no de uma minoria54.
Alm de administrado de acordo com os interesses soberanos da
maioria, o governo
rege-se pelo primado das liberdades: da liberdade de expresso e
de pensamento de
todos os cidados (isegoria)55.
50 M. H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 190. 51 Cf. M.H. da
Rocha Pereira, op. cit., pp. 386-388 para uma descrio sumria, mas
elucidativa, do que representou a figura de Pricles na Histria da
Grcia. 52 Em Histria da Guerra do Peloponeso, Livro II, 37 a 42. 53
Tenemos um rgimen de gobierno que no envidia las leyes de otras
ciudades, sino mas que somos ejemplo para otros que imitadores de
los dems. Tucdides, Histria de la Guerra del Peloponeso, II, 37, p.
90. 54 () por no depender el gobierno de pocos, sino de numero
mayor (...).Tucdides, op. cit., p. 90. 55 Y nos regimos libremente
no solo en lo relativo a los negocios pblicos, sino tambin en lo
que se refiere a las sospechas recprocas sobre la vida diria, no
tomando a mal al prjimo que obre segn su gusto, ni poniendo rostros
llenos de reproche, que no son un castigo, pero s penosos de ver.
Tucdides, op. cit., p. 90.
-
22
Pricles estabelece o princpio de igualdade entre todos os
cidados
independentemente da sua classe social56, a igual submisso de
todos s leis do
Estado (isonomia que para os gregos assume um significado
semelhante ao de
democracia), bem como a possibilidade de participao em cargos
pblicos mediante o
mrito e no a classe social a que se pertence. Face s
caractersticas que acabmos de
deixar patentes, Pricles no tem pejo em afirmar que Atenas a
escola da Grcia57.
Alm de delineados de forma magistral por Pricles os princpios
fundamentais para o
exerccio da cidadania numa sociedade aberta e democrtica,
possvel constatar
pelas suas palavras o percurso percorrido pelo esprito grego ao
longo de cerca dos
quatro a cinco sculos de que aqui tentmos apreender os pontos
fundamentais.
No obstante no conseguirmos compreender na totalidade a forma
como um grego
vive a plenitude da sua condio cvica dentro da cidade-Estado, a
importncia que
decorre do Discurso tambm a sua profunda actualidade. impossvel
no
reconhecer contemporaneamente o modo como Pricles caracteriza os
princpios da
democracia que continuam a ser ainda, para ns, marcos de
referncia incontornveis.
Como afirma Diogo Freitas do Amaral em relao ao legado do
estadista ateniense:
Este discurso de Pricles () marcou para sempre a histria da
civilizao ocidental: democracia,
liberdade, igualdade, participao cvica, dignidade de todos ()
eis o grande programa poltico que,
h quase 25 sculos, Pricles apontou a toda a humanidade58.
Mais do que a verdadeira aplicao prtica, o que ressoa, em
Pricles, uma ideia de
democracia na sua forma ideal. Que no se reflecte inteiramente
no quotidiano da
Atenas do sculo V a.C.
56De acuerdo com nuestras leyes, cada cual est en situacin de
igualdad de derechos en las disensiones privadas (); y no tanto por
la clase social a que pertence como por su mrito, ni tampoco, en
caso de pobreza, si uno puede hacer cualquier beneficio a la
ciudad, se le impide por la oscuridad de su fama. Tucdides, op.
cit., p. 90. O que, como j iremos ver, na Grcia no significa um
princpio de igualdade natural. 57 En resumen, afirmo que la ciudad
entera es la escuela de Grcia. Tucdides, op.cit., II, 41, p. 92. 58
Diogo Freitas do Amaral, Histria do Pensamento Poltico Ocidental,
p. 30.
-
23
4.2. Algumas vicissitudes da democracia grega
Apesar dos princpios defendidos por Pricles, a democracia grega
prima pela
singularidade em determinados aspectos que a demarcam
profundamente do sistema
democrtico actual, alm de se encontrar enredada em algumas
contradies sob o
prisma do nosso olhar contemporneo.
Comecemos por abordar a sua principal caracterstica: o governo
directo. Os gregos
desconhecem em absoluto a noo de representatividade que a base
das
democracias actuais. luz do modo de pensar grego da poca, tanto
quanto nos
possvel aproximarmo-nos dele a uma distncia temporal de 2500
anos, o conceito de
representatividade choca profundamente com um dos conceitos
fundamentais da
cultura helnica: o conceito de autonomia.
Como afirma Jos Ribeiro Ferreira em a Grcia Antiga,
() os gregos no concebiam tal tipo de governo [representativo]
que se lhes afigurava coartactador da
liberdade e da autonomia59.
A autonomia, bem como a liberdade, so inerentes ao ADN social,
poltico e cultural
grego:
Para o grego ser livre era exercer ele prprio, pessoalmente, os
seus direitos civis, sem os delegar a
outros60.
Convm aqui recordar a clebre definio de Aristteles como animal
poltico (Zoon
Politikon). E isso que define essencialmente o homem grego: para
ele no existe
outro modo de vida que no o de participar directamente na
administrao dos
assuntos do Estado.
Estado esse que, contrariamente ao entendimento moderno do
conceito, no detm
qualquer personalidade jurdica na poca clssica. Para os gregos,
o Estado, ou a Plis,
59 Jos Ribeiro Ferreira, A Polis Grega Sistema de Vida e Mestra
do Homem in A Grcia Antiga, p. 32. 60 Jos Ribeiro Ferreira, op.
cit., p. 34.
-
24
o conjunto total de cidados61, delimitador de todas as esferas
da sua vida. Escapou
ao pensamento poltico helnico a distino entre esfera pblica e
esfera privada62.
Evidentemente que a democracia directa dos gregos resultou por
duas razes de
ndole diferente. A primeira de ordem demogrfica. Apesar de no
podermos
apresentar nmeros que garantam exactido, o nmero de habitantes
de Atenas na
poca Pricles deveria rondar os cerca de 300 000 habitantes63,
dos quais apenas 10%,
isto , cerca de 30 000 detinham o estatuto de cidadania64, o que
nos remete para a
segunda razo do xito da democracia grega, mas que permite tambm
questionar at
que ponto poderemos falar dela como sendo efectivamente
democrtica65: o seu
carcter de excluso.
Alm de ser hereditria66, o exerccio da cidadania em Atenas
estava absolutamente
vedado a mulheres e crianas, escravos, estrangeiros e habitantes
das zonas rurais67.
Qualquer destes extractos da populao grega no tinha qualquer
possibilidade de
participar activamente na vida poltica de Atenas, nem
beneficiava do to proclamado
princpio de igualdade introduzido por Pricles como vimos
anteriormente.
O princpio de igualdade natural entre todos os seres humanos
desconhecido na
Grcia do sculo V68. A igualdade apenas de natureza social e
poltica entre cidados.
Teremos que aguardar at ao sculo XVIII para que todos os homens
nasam livres e
iguais em direitos e isso seja um direito consagrado em
constituio.
61 M.H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 181. 62 Paul Magnette,
op. cit., p. 7. 63M.H. da Rocha Pereira, op. cit., p. 182. Os
nmeros que a so apresentados so meramente conjecturais. 64 M.H. da
Rocha Pereira, op. cit., p. 182. 65 Alguns autores contestam a
atribuio do termo democracia ao regime poltico grego pelo facto de
apenas uma pequena percentagem da populao dispor de facto dos
direitos de cidadania. Entre eles, encontra-se o historiador Victor
Ehrenberg, autor da obra The Greek State. Cf. op. cit., p. 50. 66
Data de 451 a.C, aprovada por Pricles, uma lei que restringe a
concesso da cidadania ateniense, acentuando o seu carcter
hereditrio. Contradies de um grande homem de Estado. Cf. Heater,
op. cit., p. 4. 67 Heater, op. cit., p. 4. 68 Refira-se que ele foi
proposto pela primeira vez no sculo IV a.C. por um sofista, de seu
nome Alcidamante, antecipando em vinte e um sculos a essncia dos
princpios das revolues francesa e americana. Cf. M.H. da Rocha
Pereira, op. cit., p. 185.
-
25
Captulo 2 Anatomia Sociopoltica de um Conceito II: A Era das
Revolues - Da Gloriosa Revoluo Revoluo Francesa
1. Para uma gnese histrica da(s) revoluo(es): os alvores da
modernidade
Consagrada na histria como um evento mpar quando comparada com
outros
regimes polticos posteriores69, a democracia ateniense do sculo
V a. C. e os direitos
de cidadania que ela fecundou, no encontraram paralelo na
histria poltica do
Ocidente no milnio seguinte. Apesar dos desenvolvimentos
registados,
nomeadamente, na poca romana70 e no Renascimento, em Florena e
Salamanca71,
seria preciso aguardar at ao sculo XVII para que a histria da
cidadania registasse um
novo impulso profcuo.
A Gloriosa Revoluo de 1688, ocorrida em Inglaterra, prenuncia j
alguns ventos de
mudana, mas uma profunda renovao do impulso cvico e democrtico s
ocorreria
no sculo XVIII em que o conceito de revoluo, vivenciado nos EUA
(1776) e em
Frana (1789), anuncia uma aurora de transformao radical da
condio humana.
Antes de nos acercarmos mais de perto das trs revolues Inglesa,
Americana e
Francesa -, necessrio apreender em traos essenciais as grandes
coordenadas que
norteiam o clima intelectual e histrico do incio da modernidade,
pois foi nele que se
comearam a desenhar as condies para as revolues do sculo
XVIII.
O advento da Idade Moderna representa, na sua formulao mais
radical, uma ruptura
com a viso tradicionalista e teolgica pela qual se pautou a
medievalidade. De forma
progressiva, Deus, conceito central das indagaes filosficas da
Idade Mdia, cede o
lugar ao Homem, como paradigma essencial. O humano passa a ser o
centro do
universo em detrimento do plano divino.
69 Pedro Paulo Funari, no artigo Cidadania Moderna e o Legado
Romano, afirma: Para muitos estudiosos do sculo XX, a Repblica
romana foi encarada como uma oligarquia corrupta, uma aristocracia
endinheirada, comparada negativamente com a Atenas democrtica do
sculo V a.C.. Cf. Jaime e Carla Pinsky (Orgs.), Histria da
Cidadania, p. 76. 70 Cf. o artigo de Funari citado na nota
anterior, Cidadania Moderna e o Legado Romano, em Jaime e Carla
Pinksy (Orgs.), op. cit., pp. 49-81, para uma melhor compreenso da
cidadania na poca romana, bem como as seguintes obras: Moses I.
Finley, Poltica no Mundo Antigo e Jane Fisher Gardner, Being a
Roman Citizen. 71 Cf. o artigo de Carlos Zeron, A cidadania em
Florena e Salamanca em Jaime e Carla Pinksy (Orgs.), op. cit., pp.
97-113.
-
26
A liberdade renascentista e moderna permite a emancipao humana
do jugo
teolgico/medieval. Sem querermos incorrer numa simplificao
redutora, o homem
seculariza-se, individualiza-se, racionaliza-se e autonomiza-se
dos paradigmas
fundamentais da Idade Mdia.
Como afirma Marco Mondaini:
O homem passou no apenas a traar o seu destino mas tambm a ter a
total capacidade para explic-
lo72.
Outros factores fundamentais que contriburam para a emancipao
humana registada
no incio da modernidade so os seguintes:
- O advento da cincia moderna de Galileu (1564-1642), Kepler
(1571-1630) e Newton
(1643-1727). J em 1543, o astrnomo polaco, Nicolau Coprnico
(1473-1583) em De
revolutionibus orbium coelestium73, sustentava a teoria
heliocntrica que punha em
causa a teoria geocntrica de origem ptolemaica;
- Os descobrimentos martimos iniciados por Portugal e Espanha,
no sculo XV, e que,
alm de representarem o primeiro processo de globalizao,
ampliaram o
conhecimento geogrfico e os horizontes do mundo at ento
conhecido;
- A crtica interna religiosa exercida pela Reforma protestante
iniciada por Lutero em
1517 que conduziu a Europa nos dois sculos seguintes a um clima
de intolerncia
religiosa e a sua importncia para as reivindicaes cvicas
posteriores74.
O processo de secularizao introduz igualmente transformaes
significativas no
campo social, conduzindo lenta, mas paulatina, dissoluo das
estruturas assentes na
hierarquia da servido do regime feudal que era legitimada por
direitos de nascena.
Os acontecimentos de 1789, em Frana, ditariam o definitivo dobre
a finados do
72 Marco Mondaini, Revoluo Inglesa O Respeito aos Direitos dos
Indivduos in Jaime e Carla Pinsky (Org.), Histria da Cidadania, p.
115. 73 A palavra revoluo, antes penetrar no mbito poltico, estava
confinada astronomia. 74 No que concerne a este tema, V.
Soromenho-Marques, no artigo Religio e Cidadania Da luta pela
tolerncia religiosa afirmao dos direitos humanos na obra A Era da
Cidadania, afirma que: Os actuais direitos fundamentais do homem e
do cidado () foram o desenvolvimento e o esclarecimento de um
direito fundamental que funcionou como um autntico embrio de todos
os outros: o direito liberdade religiosa, ao livre e pblico
exerccio do culto de profisses de f minoritrias, sem a perda de
quaisquer direitos civis (). Cf. op. cit., p. 78. O bold do
autor.
-
27
feudalismo na Europa. Tornar-se-ia uma das peties de princpio do
iderio da
revoluo. Porm, as estruturas feudalistas sofreram o seu primeiro
revs, ainda no
sculo XVII. A Inglaterra foi o primeiro palco de algumas dessas
transformaes.
-
28
2. A Gloriosa Revoluo Inglesa de 1688: a soluo conciliadora
A Revoluo Inglesa, alm de ser marcada pela slida implementao de
uma nova
classe social, a burguesia75, segundo Marco Mondaini,
() um modelo de transio ao capitalismo industrial76.
Para esse efeito o mesmo autor enumera trs transformaes
fundamentais levadas a
cabo na estrutura da economia inglesa, a saber:
1) A produo industrial toma o lugar da agricultura como
principal meio de produo;
2) A construo de uma fivel rede de transportes;
3) A superproduo e a baixa de preos substituem-se a crises de
subsistncia durante
a poca feudalista77.
A ascenso da burguesia seria preponderante para o processo de
transformao da
sociedade inglesa da poca e tambm para o papel incontornvel que
a Revoluo de
1688 desempenhou na histria da cidadania. Vejamos porqu.
Alm de romper com os ditames do feudalismo, a burguesia inglesa
prope uma nova
tica, de pendor protestante78, assente no trabalho que se
contrape ao cio
praticado pela aristocracia latifundiria79, classe que, ademais
de se caracterizar por
um certo parasitismo, detm a maior percentagem de riqueza e de
direitos80.
O que est em causa a nvel econmico e social, e dois sculos antes
do pensamento
de Karl Marx sobre o tema, a oposio de classes sociais com vises
diametralmente
75 Principalmente da gentry, a baixa nobreza agrria constituda
por agricultores capitalistas, como explica um dos mais eminentes
estudiosos da Revoluo Inglesa, o historiador Christopher Hill.
Veja-se a sua obra, O Mundo de Ponta-Cabea (The World turned upside
down), nota da p. 29 para uma definio mais ampla de gentry. 76
Marco Mondaini, op. cit., p. 120. 77 Marco Mondaini, op. cit., p.
119. 78 A relao entre a tica protestante e o capitalismo seria
explorada pelo socilogo alemo, Max Weber, em a tica Protestante e o
Esprito do Capitalismo. 79 Marco Mondaini, op. cit., p. 120. 80 O
reinado de Carlos I (1600-1649) primou pelo cenrio que descrevemos
acima. Proclamado rei em 1626, governaria autocraticamente entre
1629 e 1640, seguindo-se depois um perodo de guerra civil at que a
Cmara dos Comuns, em 1649, o deps e o condenou morte por decapitao
no mesmo ano. Seria o primeiro monarca na Histria da Inglaterra a
ser condenado pena capital. Cf. Christopher Hill, A Revoluo Inglesa
de 1640 in Fundo Poltico da Revoluo Inglesa, pp. 49-77.
-
29
antagnicas: monarquia e aristocracia, classes sociais
proprietrias de terras e
ancoradas herana secular de uma tradio feudal que no pretendiam
abrir mo
dos seus privilgios e fazer concesses a um novo sujeito social
pujante e dinmico, a
burguesia mercantil e comercial, agrria e urbana, tendo em vista
a criao de um
sistema econmico de mercado livre.
Como afirma Modaini:
Um sistema que pressupunha um mercado local e esttico () no
poderia mais ser tolerado tendo em
vista a fora implacvel de uma concepo de mercado sem limites de
toda e qualquer ordem81.
A nvel poltico, aquele que mais interessa nossa investigao, o
regime
predominante na Inglaterra do sculo XVII, apesar de ter sido o
primeiro pas europeu
a frear as tendncias despticas da monarquia de poder absoluto
atravs da Magna
Carta82, uma monarquia absolutista de direito divino83, na senda
do que pensadores
como Jean Bodin ou Jacques Bossuet teorizaram respectivamente em
Os Seis Livros da
Repblica (1576) e A Poltica tirada da Sagrada Escritura
(1709).
Face a este estado de coisas a concepo do direito divino dos
monarcas era um
conceito obsoleto face s aspiraes da burguesia emergente. A
Petio de Direitos de
1628 tentava j obstaculizar a natureza absolutista do regime de
Carlos I. Mas isto no
tudo.
A modernidade trouxera consigo uma aura de renovao ao pensamento
poltico
atravs de uma das suas figuras mais proeminentes, Thomas Hobbes
(1588-1679), com
a publicao da sua obra principal, o Leviathan (1651).
Sendo um defensor acrrimo do absolutismo, Hobbes introduz porm
uma novidade
essencial: o Estado absoluto no deriva j de um monarca institudo
pelo poder divino,
mas sim do consentimento dos indivduos que, ao renunciarem a
certos aspectos da
81 Marco Mondaini, op. cit., p. 124. 82 Documento assinado em
1215 por Joo, o Papa, que limitou o exerccio de poder dos monarcas
ingleses. Segundo a Magna Carta, o rei devia renunciar a certos
direitos e respeitar certos procedimentos legais. 83 Teoria que
defende que o poder dos reis vinha de Deus. Os monarcas ingleses do
sculo XVII Carlos I, Carlos II e Jaime II eram todos partidrios da
monarquia absolutista. A excepo foi o Protectorado de Oliver e
Richard Cromwell, entre 1649 e 1660, que se caracterizou por um
cariz republicano e depois por uma ditadura, devido instabilidade
civil dos primeiros anos do seu governo.
-
30
sua liberdade pessoal, passam do estado de natureza,
caracterizada pela guerra de
todos contra todos e dirigida pelas pulses egostas do ser
humano, ao estado de
sociedade, onde predomina o bem comum84. No sculo seguinte,
Rousseau
denominar este consentimento de contrato social.
Segundo Mondaini,
Estavam abertas as portas para a ofensiva de uma tradio que se
pautasse pela defesa da liberdade do
indivduo, limitando politicamente os poderes estatais85.
A autoria do desbravar intelectual desse caminho que conduzia
defesa do liberalismo
e dos direitos civis esteve a cargo de John Locke (1632-1704).
No Segundo Tratado
sobre o Governo Civil (1689), o filsofo ingls defende veemente
que o homem possui
naturalmente direitos fundamentais o direito vida, liberdade e
propriedade -,
conferindo ao povo o direito de revolta contra qualquer governo
que no respeitasse
esses direitos86.
Se em Hobbes, a relao entre Estado absolutista e indivduos era
um acto de
submisso, Locke nega por completo esta tese e, com isso,
desvenda a clareira das
revolues do sculo seguinte.
Para ele o poltico
() tem a sua origem unicamente num pacto ou conveno, e no
consentimento mtuo daqueles que
constituem a sociedade87.
Eis um dos trechos fundamentais para a histria da cidadania
moderna.
A Gloriosa Revoluo iria, em parte, realizar o que Locke
defendeu. A destituio de
Jaime II, em 1688, representou o fim do absolutismo e a criao da
primeira
monarquia constitucional da histria. Baseada numa soluo de
compromisso, depois
das tumultuosas dcadas anteriores, a Inglaterra conheceria
doravante
84 Cf. Leviathan, I, 13 e 14 e II, 17 e 18 para uma leitura das
teses fundamentais do pensamento hobbesiano nesta matria. 85 Marco
Mondaini, op. cit., p. 129. 86 Cf. Segundo Tratado sobre o Governo
Civil, II, 6 e 8. 87 Locke, op. cit., XV, 171. O bold nosso.
-
31
() a estabilidade poltica sob a nova direco de uma classe
burguesa que toma para si o poder estatal
(...)"88.
Os 13 pontos da Bill of Rights de 168989 expressam a soluo de
consenso encontrada
pelos ingleses para limitar o poder absoluto do monarca assente
na () soberania
parlamentar, monarquia limitada ()90.
Trata-se do corolrio dos acontecimentos de quase cinco dcadas
tumultuosas e,
acima de tudo, representa uma certa continuidade em relao a
outros documentos
polticos elaborados anteriormente, como os j citados Magna
Carta, Petio de
Direitos de 1628 ou o Habeas Corpus Act (1679)91.
Mais do que uma revoluo propriamente dita, uma vez que no
conduziu alterao
radical de uma forma de governo por outra92, a Revoluo Inglesa,
nas palavras de
Viriato Soromenho-Marques
() trata-se antes do termo do contrato entre o povo e o seu
monarca ()93.
Contudo, despertou uma centelha emancipatria e o seu rastilho
propagou-se s
colnias britnicas nos EUA que, no sculo seguinte, iriam
acrescentar uma outra
dimenso - nova, indita e absolutamente radical - palavra
revoluo.
88 Marco Mondaini, op. cit., p. 120. 89 Pode ser lida na traduo
que V. Soromenho-Marques efectuou da mesma na obra Direitos e
Revoluo. Cf. pp. 90-92 da mesma. 90 Christopher Hill, O Mundo de
Ponta-Cabea, p. 31. 91 V. Soromenho-Marques, op. cit., p. 89. 92 A
este respeito evocaremos Hannah Arendt quando abordarmos a revoluo
francesa. 93 V. Soromenho-Marques, op. cit., p. 89.
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32
3. A Revoluo Americana de 1776: a emergncia de um cvico admirvel
mundo
novo
Momento laminar na histria do sculo XVIII, a Revoluo Americana,
que culminou na
separao das treze colnias dos EUA da coroa inglesa, abre um novo
captulo no
domnio da democracia e da luta pela liberdade.
Uma revoluo que inicialmente no era para o ser94 e que
autonomizaria territrios
povoados apenas 150 anos antes95 por indivduos que aportavam ao
Novo Mundo
buscando sobretudo tolerncia religiosa para a sua profisso de f
e a melhoria das
suas condies materiais de vida.
A questo fundamental que se deve colocar a seguinte: como que no
espao de
cerca de 150 anos, um territrio para onde foram enviados
elementos indesejveis em
solo britnico96 produziu homens da estatura intelectual de um
Thomas Jefferson, de
um George Washington ou de um Benjamin Franklin, apenas para
citar alguns dos
Founding Fathers, e se constituiu numa experincia nica no
contexto poltico da
histria da humanidade?
A resposta mesma deve-se a uma variao de comportamento da coroa
britnica
face s suas possesses coloniais em matria de direitos e de
liberdade. No sculo XVII,
e tambm na primeira metade do sculo XVIII, com a Inglaterra
envolvida nas disputas
internas que levariam deposio e exlio de Jaime II em 1689, as
colnias americanas
vivem sob um clima de quase total liberdade.
94 Num panfleto intitulado A Summary View of the Rights of
British America, Thomas Jefferson apela justia do monarca britnico
para com os seus sbditos nas colnias americanas. O hiato que medeia
entre esta petio, escrita em Julho de 1774, e a Declarao da
Independncia, adoptada a 4 de Julho de 1776, de apenas dois anos. A
gestao revolucionria em solo americano, personificada em Jefferson,
consumou-se de forma breve. Cf. V. Soromenho-Marques, Cidadania no
Novo Mundo Thomas Jefferson e a Revoluo Americana in A Era da
Cidadania, p. 168. 95 Os primeiros colonos desembarcaram
definitivamente em solo americano apenas em 1620. At ento a coroa
inglesa nunca tivera um plano bem definido para a colonizao do
territrio norte-americano. Para uma anteviso do processo de formao
do territrio americano, veja-se o breve, mas excelente ensaio, de
Leandro Karnal, Estados Unidos A Formao da Nao e tambm a obra de
Daniel J. Boorstin, Os Americanos A Experincia Colonial. 96 Leandro
Karnal, op. cit., pp. 35-36.
-
33
Como afirma Leandro Karnal:
Tanto para os colonos do Massachusetts como para os colonos da
Virgnia, a tradio de liberdade foi
reforada ao longo de todo o sculo XVII pela quase ausncia total
da Inglaterra97.
Sem a superviso e a tutoria das autoridades britnicas, o
processo de crescimento
da identidade das colnias foi feito quase de forma autnoma.
Ainda antes da
independncia, as colnias americanas edificaram a concretizao da
liberdade em
vrios domnios: do religioso98 liberdade de comrcio99.
Porm, a partir da segunda metade do sculo XVIII, registou-se uma
mudana de
atitude da coroa britnica face s possesses americanas. Fruto
principalmente de dois
motivos:
1) Dos encargos gerados para a Inglaterra pela sua participao na
French and Indian
War100;
2) Das exigncias econmicas suscitadas pela Revoluo Industrial
que estava a dar os
seus primeiros passos em solo britnico101.
A alterao de comportamento traduz-se num conjunto de medidas
polticas,
inicialmente de carcter econmico102, que limitam a soberania
econmica das
colnias americanas suscitando uma onda de descontentamento cada
vez maior dos
sbditos contra a coroa britnica e a afirmao de um sentimento de
identidade
nacional que culminaria na independncia.
No perodo crtico de 1763 a 1776, a insurgncia dos colonos e o
completo autismo da
Inglaterra face aos interesses e direitos norte-americanos
culminaria em diversas
peties e na ecloso de conflitos armados no incio da dcada de
1770.
97 Leandro Karnal, Revoluo Americana Estados Unidos, Liberdade e
Democracia in Jaime e Carla Pinsky (Org.), Histria da Cidadania, p.
138. 98 A este respeito leia-se a primeira parte da obra citada de
Boorstin. 99 Leandro Karnal, op. cit., p. 138. 100 Conflito que ops
britnicos e franceses entre 1754 e 1763 em solo norte-americano.
101 Leandro Karnal, op. cit., p. 138. 102 Entre elas encontram-se
os Navigation Acts, Writs of Assistance ou o Stamp Act. Todas elas
limitavam a liberdade dos colonos americanos face colonizao
britnica. Com o decorrer da dcada de 1760 e incio da de 1770, as
imposies britnicas fizeram recrudescer a tolerncia dos colonos
americanos face metrpole. Para uma descrio mais detalhada destas
medidas, cf. V. Soromenho-Marques, op. cit., p. 167.
-
34
Que direitos reivindicavam os sbditos americanos a Jorge III,
monarca ingls?
Em primeiro lugar, o mesmo grau de igualdade que possuam todos
os outros sbditos
da coroa britnica. Os colonos insurgem-se contra a prepotncia
manifestada pela
metrpole na sucesso das medidas adoptadas entre 1763 e 1774 e a
ausncia de
representantes no Parlamento de Londres103. Segundo o que foi
expresso no Segundo
Congresso Continental de Filadlfia, em 1774, o que estava em
causa era nada mais
nada menos que a violao dos direitos bsicos da liberdade104.
atravs desta mesma liberdade, gravemente usurpada pela
intolerncia britnica,
que as treze colnias iro forjar o sentimento de identidade para
a construo de uma
nova nao. Ela ir ser o denominador que agregar as colnias
americanas na
constituio dos independentes Estados Unidos da Amrica.
Segundo Karnal,
S a construo de um determinado conceito de liberdade poderia
unir fazendeiros escravocratas da
Virgnia, comerciantes e manufactureiros da Nova Inglaterra,
puritanos de Boston, catlicos do
Maryland, quacres da Pensilvnia, moradores de cidades como Nova
York e muitos alemes das colnias
centrais. A liberdade passou a ser constituda como factor de
integrao nacional e de inveno de um
novo Estado105.
ela que vai inspirar a luta de homens como Jefferson, Washington
e Franklin ou as
ardentes elocues de Thomas Paine nos seus escritos panfletrios e
que conduzir,
por exemplo, George Mason, poltico da Virgnia, a exultar em
1776, na Declarao de
Direitos da Virgnia106
Que todos os homens so por natureza igualmente livres e
independentes, e tm certos direitos que
lhe so inerentes ()107.
No entanto, o que a posteridade histrica registaria no seria
este, mas sim um outro
documento ratificado semanas mais tarde pelo Congresso. A
Declarao da
103 V. Soromenho-Marques, op. cit., p. 166. 104 Leandro Karnal,
op. cit., p. 138 105 Leandro Karnal, op. cit., p. 141. 106 Adoptada
a 12 de Junho de 1776 e precede a Declarao de Independncia. 107
Ponto 1 da Declarao de Direitos da Virgnia (1776). Traduo de
Viriato Soromenho-Marques em Direitos Humanos e Revoluo, p. 93.
-
35
Independncia dos Estados Unidos da Amrica, fruto do gnio
literrio e filosfico
mpar de Thomas Jefferson, consagra, a 4 de Julho de 1776, uma
janela descerrando
um novo mundo na luta pelos direitos de cidadania e da conquista
da liberdade:
Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que
todos os homens so criados iguais,
dotados pelo Criador de certos direitos inalienveis, que entre
estes esto a vida, a liberdade e a
procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos,
governos so institudos entre os homens,
derivando seus justos poderes do consentimento dos governados;
que, sempre que qualquer forma de
governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito
de alter-la ou aboli-la e instituir novo
governo []108.
Para os Founding Fathers, em 1776, no se tratava j apenas da
separao da coroa
inglesa.
Como afirma Leandro Karnal,
No havia apenas uma luta para enfrentar, havia uma memria e uma
identidade a construir109.
Os ditames intelectuais dessa identidade expressa no texto da
Declarao assentam no
contedo da Bill of Rights inglesa de 1688, mas ecoam, sobretudo,
fiel e
profundamente, a herana de John Locke110, exaustivamente lido
nas universidades
norte-americanas e os princpios fundamentais do Segundo Tratado
sobre o Governo
Civil: o governo como um acto de consentimento pela vontade do
povo, os direitos
naturais inalienveis, um governo criado para preservar os
direitos naturais dos
indivduos e o direito a depor um governo que atentasse contra os
direitos
fundamentais.
108We hold these truths to be self-evident, that all men are
created equal, that they are endowed by their Creator with certain
unalienable Rights that among these are Life, Liberty and the
pursuit of Happiness. That to secure these rights, Governments are
instituted among Men, deriving their just powers from the consent
of the governed, That whenever any Form of Government becomes
destructive of these ends, it is the Right of the People to alter
or to abolish it (). Declaration of Independence. 109 Leandro
Karnal, op. cit., p. 138. 110 No sendo a nica influncia, , pelo
menos, a mais notria e directa. Herbert Aptheker, autor de American
Revolution 1763-1783, identifica, entre outros, Beccaria,
Burlamaqui, Puffendorf, Voltaire e Diderot. Cf. Karnal, op. cit.,
nota 17, p. 154.
-
36
Subscrevemos inteiramente esta afirmao de Karnal:
Raras vezes na histria um autor teve uma influncia to clara em
um texto elaborado em outro
pas111.
A constituio da identidade norte-americana na ps-independncia
tem, quanto a
ns, o seu marco de referncia no modo como se procedeu construo
da
arquitectnica institucional da democracia nos Estados Unidos nos
anos subsequentes
revoluo. Reconhecida a independncia por parte da Inglaterra, em
1783 atravs do
Tratado de Paris, urgia agora criar e consolidar a
sustentabilidade das estruturas
polticas americanas de forma a harmonizar a convivncia entre os
treze Estados.
Envolto na atmosfera e no esprito das ideias iluministas, melhor
dizendo,
concretizando o desgnio das Luzes, o debate poltico que se gerou
nesses anos e que
levou ratificao da Constituio na Conveno de Filadlfia, em 1787,
dos quais os
Federalist Papers de Alexander Hamilton, James Madison e John
Jay nos do conta,
constitui um edificante exemplo de maturidade cvica e poltica
dos norte-americanos,
raras vezes ao alcance na histria dos povos.
Os vestgios coloniais haviam sido removidos na sua totalidade: a
Constituio
Americana de 1787 inicia-se com We, the People of United States.
Ainda que quando
elaborou o pequeno opusculo Resposta pergunta: Que o iluminismo?
(1784), Kant
no tivesse como destinatrios directos os norte-americanos pode
no ser de todo
injustificado afirmar que os debates em torno da aprovao da
Constituio norte-
americana representam uma conquista e um amadurecimento do homem
no sentido
da sua emergncia da menoridade poltica.
Mas a arquitectnica democrtica no se quedou por aqui. Como forma
de preservar a
garantia das liberdades individuais, e em adenda Constituio, os
Estados aprovaram,
em Dezembro de 1791, os dez aditamentos constitucionais da
Declarao de Direitos e
Garantias da Constituio Federal Norte-Americana que, entre
outros, consagrava a
liberdade de petio, a liberdade de expresso, a necessidade de
julgamentos com jri
e a proibio de torturas e penas cruis.
111 Leandro Karnal, op. cit., p. 141.
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37
Para alm de aniquilar qualquer precedncia da experincia colonial
inglesa, tratava-se
de garantir a proeminncia do indivduo sobre o Estado, contra o
qual j autores
como Thomas Paine, em Common Sense, haviam manifestado a sua
inteira
desconfiana.
De forma loquaz, Paine, o publicista por natureza da Revoluo
Americana e que ainda
antes da Declarao da Independncia j se mostrava a favor de uma
ruptura com o
jugo britnico, declara em relao ao Estado, distinguindo-o da
sociedade:
A sociedade produzida pelas nossas necessidades e o Governo pela
nossa maldade; a primeira
promove a nossa felicidade positivamente unificando os nossos
afectos, o ltimo negativamente
restringindo os nossos vcios. Uma encoraja as relaes, o outro
cria distines112.
De vocao universal e emancipatria da humanidade113,
() os Estados Unidos da Amrica tinham criado a mais ampla
possibilidade democrtica do planeta na
poca da sua independncia. Poderes equilibrados como desejava
Montesquieu, presidentes eleitos
regularmente, uma Constituio escrita com princpios de liberdade
muito slidos e reforada pelas
emendas da Bill of Rights114.
Motivo de admirao e curiosidade por parte de europeus como o
francs Alexis de
Tocqueville (1809-1854), autor do monumental Da Democracia na
Amrica (1835-40) e
partidrio do liberalismo ingls que verificou de perto o sistema
democrtico
americano em 1831 e 1832, referia-se nestes termos realidade dos
EUA:
A Amrica apresenta, em suma, na sua situao actual, o mais
estranho fenmeno: os homens surgem
nela mais iguais pela sua fortuna pela sua inteligncia (), do
que em qualquer outro pas do mundo, ou
em qualquer sculo da histria que nos seja conhecida115.
112 Traduo de V. Soromenho-Marques em Cidadania no Novo Mundo
Thomas Jefferson e a Revoluo Americana in A Era da Cidadania, p.
176. 113 John Adams, segundo Presidente dos EUA, ao falar sobre a
experincia norte-americana, considera-a nestes termos: Eu sempre
considerei a colonizao da Amrica com grande reverncia e admirao,
como a abertura de uma grande vista e desgnio da Providncia para o
esclarecimento e emancipao da parte ignorante e escravizada da
humanidade em toda a Terra. Cf. V. Soromenho-Marques, A Revoluo
Federal Filosofia poltica e debate constitucional na fundao dos
E.U.A., p. 12. Traduo do autor. 114 Leandro Karnal, op. cit., p.
143. 115 Alexis de Tocqueville, Da Democracia na Amrica, p. 92.
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38
Apesar de que nos EUA, seguindo Tocqueville
() todos amam, com um amor eterno, a igualdade ()116,
no contexto de uma cidadania de matriz liberal117 como a que
inspirou a democracia
americana, essa igualdade no foi efectivamente extensvel a
todos.
Alm de pactuar com uma realidade que, sob o olhar retrospectivo
de um observador
do sculo XXI, prima pela repugnncia moral como o caso da
escravatura118, a
democracia americana no conferia, poca, o direito de voto s
mulheres e aos
indivduos pobres de raa branca119.
Os direitos de cidadania e de liberdade tambm no seriam
aplicados s populaes
indgenas, eles sim os nativos originais do territrio
norte-americano. Com o decorrer
da