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Construções de foco em português e espanhol sob a perspectiva da
Gramática Discursivo-Funcional
Sandra Denise Gasparini-Bastos1
1Departamento de Letras Modernas – IBILCE/UNESP Rua Cristóvão
Colombo, 2265 – 15054-000 – S. J. Rio Preto – SP – Brasil
[email protected]
Abstract. The purpose of this paper is to analyze how pragmatic
function of
focus can be seen under Functional Discourse Grammar, a new
approach to
Dutch Functional Grammar. This new approach is still being
developed and
understands discursive acts as basic units of analysis. Positive
and negative
polarity will be taken into account, i.e., yes and no particles,
in Portuguese and Spanish answers. The occurrence of these forms
was identified in news
interviews from Brazilian magazine Veja and Spanish magazine El
País Semanal.
Keywords. focus; Functional Discourse Grammar; positive
polarity; negative
polarity.
Resumo. Este trabalho tem por objetivo analisar como a função
pragmática
de foco pode ser tratada dentro da Gramática
Discursivo-Funcional, nova
vertente da Gramática Funcional de linha holandesa, ainda em
desenvolvimento, a qual toma atos discursivos como unidades
básicas de
análise. Meu interesse volta-se especialmente para as formas de
polaridade
positiva e negativa (sim e não) em função de resposta, em
português e em
espanhol. Para realizar a análise, identifiquei ocorrências
dessas formas em
entrevistas jornalísticas impressas retiradas da revista
brasileira Veja e da revista espanhola El País Semanal.
Palavras-chave. foco; Gramática Discursivo-Funcional; polaridade
positiva;
polaridade negativa.
1. Introdução
Em sua Teoria da Gramática Funcional, proposta para analisar a
estrutura da frase, Dik (1997a e 1997b) considerou a existência de
elementos que só poderiam ser descritos em níveis mais amplos de
análise, os chamados constituintes extrafrasais. Em trabalhos
anteriores (GASPARINI-BASTOS 2005 e 2006), observei o comportamento
dos constituintes extrafrasais em função de resposta, especialmente
as formas de polaridade positiva e as formas de polaridade
negativa, sim/sí e não/no, no português e no espanhol,
respectivamente.
Ao analisar as ocorrências dessas formas em entrevistas
jornalísticas do português e do espanhol, verifiquei que esses
elementos podem receber atribuição de foco, função pragmática
definida por Dik (1997a) como a informação relativamente mais
importante ou saliente num dado contexto comunicativo.
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Com a evolução da teoria da Gramática Funcional de linha
holandesa, atualmente chamada de Gramática Discursivo-Funcional,
meu objetivo é analisar como a noção de foco pode ser tratada
dentro do novo modelo, que considera atos discursivos como unidades
básicas de análise. Para tanto, identifiquei ocorrências de formas
sim e não no português e sí e no no espanhol, em função de
resposta, em vinte entrevistas jornalísticas impressas, sendo dez
entrevistas retiradas da revista brasileira Veja e dez entrevistas
retiradas da revista espanhola El País Semanal, selecionadas entre
os anos de 2000 e 2001, no Brasil e na Espanha,
respectivamente.
2. A Gramática Discursivo-Funcional
O modelo teórico que adoto para a presente análise consiste na
Gramática Discursivo-Funcional (doravante GDF), proposta por
Hengeveld (2004a e 2004b) e por Hengeveld e Mackenzie (2006 e 2007
no prelo). Tal teoria, ainda em desenvolvimento, compartilha
algumas das características básicas da Gramática Funcional de Dik
(1997a e 1997b), mas oferece contribuições, apresentadas a seguir,
no sentido de descrever elementos maiores ou menores do que a
frase:
a) a GDF tem uma organização top down, que parte da intenção do
falante para a articulação das formas lingüísticas. Essa proposta
sugere que o falante primeiro decide qual vai ser seu propósito
comunicativo para depois selecionar e codificar a informação
gramaticalmente;
b) a GDF toma o ato discursivo e não a frase como unidade básica
de análise, podendo tratar de unidades maiores ou menores do que a
frase;
c) a GDF consiste em uma abordagem hierárquica e modular, com
quatro níveis de análise – interpessoal (nível pragmático),
representacional (nível semântico), morfossintático e fonológico.
Os quatro níveis interagem para produzir as formas lingüísticas
apropriadas.
O modelo da GDF está em conformidade com a busca de adequação
psicológica das gramáticas funcionais, já que se baseia no processo
de produção da fala descrito por Levelt (1989), cuja análise sugere
que o falante primeiro decide qual vai ser seu propósito
comunicativo, seleciona a informação mais adequada para alcançar
esse propósito, codifica a informação gramaticalmente e
fonologicamente e, por fim, realiza o processo de articulação.
Embora o modelo busque abranger de forma mais completa o
processo de interação, não se trata um modelo de análise do
discurso, mas sim de um modelo gramatical.
3. O foco na GDF
Enquanto função pragmática, a atribuição de foco ocorre no nível
interpessoal da Gramática Discursivo-Funcional, cujas unidades
relevantes são organizadas hierarquicamente. No nível mais alto
está o move, que consiste de um ou mais atos discursivos. Cada ato
compreende uma ilocução (ILL), os participantes da comunicação (P1
e P2) e um conteúdo comunicado (C). Dentro do conteúdo comunicado
pode haver um ou mais subatos.
O move é a maior unidade de interação relevante para a análise
gramatical e está formado por um ou mais atos. Os atos são
definidos como as menores unidades de comportamento comunicativo.
Dentro do ato, o conteúdo comunicado contém tudo o
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que o falante deseja evocar em sua comunicação. Cada conteúdo
comunicado pode conter um ou mais subatos e pelo menos um deles
oferecerá a informação comunicativamente mais “saliente” e receberá
a atribuição da função pragmática de foco.
Conforme explicitado em Keiser e van Staden (no prelo), dentro
do novo modelo a noção de foco restringe-se a três tipos:
a) foco novo: assinala a seleção estratégica do falante da
informação nova;
b) foco enfático: assinala o desejo do falante de que o ouvinte
dê atenção especial a um subato;
c) foco contrastivo: assinala o desejo do falante de destacar
diferenças e similaridades particulares entre um conteúdo
comunicado e uma informação contextualmente disponível.
Foco novo e foco enfático são atribuídos a um subato dentro do
conteúdo comunicado, enquanto a noção de contraste pode envolver
mais que um subato.
4. Análise dos dados
A análise das ocorrências das formas de polaridade positiva (sim
no português e sí no espanhol) e das formas de polaridade negativa
(não no português e no no espanhol), em função de resposta, mostra
que os casos mais freqüentes são de foco novo, típico de pares
adjacentes (pergunta-resposta), comuns em entrevistas
jornalísticas, como nos exemplos:
(01) (Veja) A separação assusta os homens? (Cuschnir) Sim.
Separação e desemprego, nesta ordem, são os grandes cataclismos na
vida de um homem. (Veja, ano 33, nº 15, 12 de abril de 2000, p.
15)
(02) (Veja) Vocês se casaram com separação de bens. Foi difícil
a negociação? (Ronaldo) Não. Hoje em dia todo mundo toma esses
cuidados. (Veja, ano 33, nº 1, 5 de janeiro de 2000, p. 14)
(03) (El País Semanal) ¿Era usted más artista de niña que
Lolita? (Rosario Flores) Sí, yo era la más artista de los tres
hermanos. (El País Semanal, nº 1313, 25 de novembro de 2001, p.
17)
(04) (El País Semanal) Se advierte cierto toque de desesperanza
en sus manifestaciones. ¿Es una persona pesimista? (Pepa Flores)
No. A pesar de todo lo que estoy diciendo, yo tengo mucha esperanza
y creo en los seres humanos por encima de todo. (El País Semanal,
nº 1235, 28 de maio de 2000, p. 22)
Nos exemplos de (01) a (04), tem-se um move de ação do
entrevistador (a pergunta) e um move de reação do entrevistado (a
resposta). Nos quatro casos, o move de resposta está composto por
um único ato discursivo, formado cada qual por dois subatos. As
ocorrências de sim/sí e de não/no, nesses casos, que constituem o
primeiro subato de
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cada ato, recebem atribuição de foco novo, pois compreendem a
informação que completa o que foi perguntado pelo entrevistador. Os
subatos subseqüentes trazem, em seus conteúdos comunicados,
informações que complementam a resposta.
Nos exemplos (01) e (03), o move de pergunta do entrevistador
compreende um único ato interrogativo. Nesse caso, move e ato
coincidem. Já nos exemplos (02) e (04), o move do entrevistador é
composto por dois atos discursivos, com estatutos ilocucionários
diferentes, sendo o primeiro deles declarativo e o outro
interrogativo. Conforme Hengeveld e Mackenzie (no prelo), a relação
estabelecida entre esses dois atos é de dependência, já que o
primeiro ato prepara a pergunta contida no segundo.
Além das seqüências típicas pergunta-resposta, são identificadas
também, tanto nos dados do português como nos dados do espanhol,
algumas ocorrências das chamadas “perguntas retóricas”, feitas pelo
entrevistado a ele mesmo, conforme os exemplos (05) e (06):
(05) (Scolari) Pioramos tanto num espaço tão curto de tempo?
Não. Mas, por motivos que não me cabe comentar, meus antecessores,
Wanderley Luxemburgo e Leão, deixaram de lado a base daquele time
de 1998. (Veja, ano 34, nº 44, 7 de novembro de 2001, p. 11)
(06) (Héctor Cúper) Ahora, ¿un premio Nobel tiene por eso menos
capacidad de influencia que un jugador? No. Si lo medimos con la
vara económica, un jugador gana más que un premio Nobel. (El País
Semanal, nº 1249, 3 de setembro de 2000, p. 12)
Embora os enunciados pertençam ao mesmo falante, há dois moves
diferentes, sendo um de ação e outro de reação. Os moves de
resposta estão constituídos, ambos, por um ato discursivo, com dois
subatos cada. O processo de focalização funciona de maneira
semelhante aos exemplos discutidos anteriormente, sendo as
ocorrências de não e de no tratadas como casos de foco novo.
A seqüência pergunta-resposta é típica das entrevistas do
português, diferentemente do que ocorre nas entrevistas do espanhol
que analisei. Embora existam pares típicos de pergunta e resposta
nos dados do espanhol, na maioria dos casos as perguntas explícitas
são substituídas por solicitações implícitas, como ocorre no
exemplo (07):
(07) (El País Semanal) El lío de los recuentos volvió a aportar
una mala imagen de Florida. (Mel Martínez) Sí, y no fue justo. (El
País Semanal, nº 1293, 8 de julho de 2001, p. 14)
Apesar da ausência da ilocução interrogativa, comum nas
entrevistas, o move de resposta do entrevistado constitui uma
reação ao move do entrevistador e está constituído por um ato
discursivo, composto por dois subatos. A forma sí do exemplo (07)
representa igualmente um caso de atribuição de foco novo.
Embora a posição de início de move seja a prototípica para as
formas sim/sí e não/no, tanto no português como no espanhol, são
encontradas no córpus algumas ocorrências de dupla negação, com a
forma de polaridade aparecendo como o segundo subato. Exemplos:
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(08) (Veja) Na Itália, apedrejaram seu carro depois da derrota
para a Udinese. Você chegou a ameaçar deixar a Inter... (Ronaldo)
Não é só na Itália, não. (Veja, ano 33, nº 1, 5 de janeiro de 2000,
p. 14)
(09) (El País Semanal) ¿Pero qué quiere decir, que los chicos
deben estar con usted, que deben estar en el juego? (Camacho) No
significa que deben estar conmigo…, no. (El País Semanal, nº 1236,
4 de junho de 2000, p. 24)
Nesses exemplos, a informação nova está contida no conteúdo
comunicado do primeiro subato (“não é só na Itália” no exemplo (08)
e “não significa que devem estar comigo” no exemplo (09)), que
recebe atribuição de foco novo. Os subatos representados pelas
formas de polaridade negativa constituem um reforço da informação.
Tem-se, nesse caso, a ocorrência de foco enfático.
Identifiquei, ainda, casos em que as formas sim e não no
português e sí e no no espanhol não seguem uma pergunta explícita
nem uma solicitação implícita, aparecendo como subatos que ocupam
uma posição intermediária dentro do move do falante, conforme
exemplos (10) e (11):
(10) (João Ubaldo) Não há explicação para esse tipo de coisa, de
forma que eu não tenho nenhuma prescrição, nenhuma receita a dar a
ninguém. Tenho, sim, uma experiência de vida. (Veja, ano 33, nº 7,
16 de fevereiro de 2000, p. 15)
(11) (Vilhena) Os alunos que conseguiram entrar para dividir
espaço com a pequena elite que dominava o acesso à universidade
chegaram a fazer mestrado ou doutorado no exterior. Foi uma
revolução. Não baixou a qualidade, não. Ao contrário. (Veja, ano
34, nº 41, 17 de outubro de 2001, p. 12)
No exemplo (10), observa-se um caso de contraste marcado por
dois subatos (“eu não tenho nenhuma prescrição” e “tenho uma
experiência de vida”). O entrevistado destaca as diferenças entre
os dois conteúdos comunicados, sendo a forma sim uma marca de foco
contrastivo. Conforme aponta Martínez Caro (1998), ao analisar
dados do espanhol em contextos semelhantes ao do exemplo (10) em
português, o contraste estabelecido pela forma sim (sí) pode estar
explícito ou implícito. O exemplo (10) mostra uma ocorrência de
contraste explícito.
Já a ocorrência da dupla negativa em (11) não é motivada por uma
pergunta do entrevistador, mas sim por uma suposta dúvida existente
na situação de interação. Ao discorrer sobre a abertura de vagas na
universidade em que trabalha, o entrevistado antecipa-se a uma
possível pergunta do entrevistador, informando que a expansão do
número de vagas na universidade não baixou a qualidade do ensino. A
forma não, nesse tipo de ocorrência, marca um caso de foco
contrastivo, por meio do qual o falante destaca sua posição
contrária em relação a um conteúdo disponível no contexto.
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5. Considerações finais
Este trabalho procurou avaliar as ocorrências de foco nas
construções de resposta constituídas pelas formas de polaridade
positiva (sim e sí) e pelas formas de polaridade negativa (não e
no), em entrevistas jornalísticas impressas do português e do
espanhol.
Os dados mostram que essas formas, enquanto componentes de atos
discursivos no interior do move, podem receber atribuição dos três
tipos de foco previstos pela Gramática Discursivo-Funcional, nova
vertente da Gramática Funcional, ainda em desenvolvimento. Os casos
mais comuns são de foco novo, seguidos das ocorrências de foco
enfático e de foco contrastivo, sendo que os últimos podem
contrastar conteúdos comunicados explícitos ou apenas presentes
contextualmente.
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