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Violncia e sadecomo um campointerdisciplinar ede ao coletiva
Violence and healthcare as an
interdisciplinary fieldand an arena forcollective action
Maria Ceclia de Souza Minayo*
Edinilsa Ramos de Souza**
* Doutora em sade pblica, professora adjunta daEscolu Nacional
de Sade Pblica (Ensp),
vice-presidente de Informao, Comunicao eMeio Ambiente da
Fiocruz
** Pesquisadora associada da Ensp/Fiocruz. Ambasparticipam do
Centro Latino-Americano de Estudos deViolncia e Sade Jorge Careli
(Claves/Ensp/Fiocruz)
Av. Brasil 4036, sala 702 Manguinhos21040-360 Rio de Janeiro RJ
Brasil
MINAYO, M. C. de S. e SOUZA, E. R. de:'Violncia e sade como um
campointerdisciplinar e de ao coletiva'. Histria,Cincias, Sade
Manguinhos,IV(3): 513-531, nov. 1997-fev. 1998.Este artigo tenciona
apresentar acomplexidade da reflexo sobre violncia esade e, ao
mesmo tempo, o campo depossibilidades que a temtica abre tanto
paraa colaborao interdisciplinar, como para aao multiprofissional.
Busca elaborar umacrtica das vises que absolutizam o sentidoda
violncia, sem, no entanto, pretenderapontar uma resposta
definitiva. Adverte parao risco epistemolgico e prtico
dereducionismo que corre o setor de sade aoquerer tratar esse
fenmeno como umaepidemia e para a necessidade decolaborao
intersetorial e com a sociedadecivil. um artigo aberto, com mais
perguntas querespostas, mas apresentando uma
propostainterdisciplinar entre as cincias sociais, aepidemiologia e
a psicologia.PALAVRAS-CHAVE: violncia e sade,interdisciplinaridade,
causas externas.
MINAYO, M. C. de S. and SOUZA, E. R. de:Violence and health care
as aninterdisciplinary field and an arena forcollective action,
Histria, Cincias,Sade Manguinhos,IV(3): 513-531 nov. 1997-feb.
1998.While the question of violence and health is acomplex one, it
opens the door forinterdisciplinary collaboration and
multiprofessional efforts. Although this article doesnot intend to
provide any definitive responses,it does endeavor to critique
viewpoints thatattribute an absolute meaning to the term'violence'.
It warns that this health-care sectorruns the epistemological and
practical risk offalling into reductionism when it
addressesviolence as if it were an epidemic.Furthermore, this
sector needs to collaboratewith other sectors and with civil
society. Morethan offering answers, the article raisesquestions
within the framework of aninterdisciplinary approach encompassing
thesocial sciences, epidemiology, and psychology.KEYWORDS: violence
and health,interdisciplinary studies, external causes.
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Introduo
E sta reflexo metodolgica sobre a violncia e seu impactona sade
decorre de estudos tericos e pesquisas empricasdesenvolvidas pelo
Centro Latino-Americano cie Estudos deViolncia e Sade (Claves),
durante os seus oito anos de existnciana Fundao Oswaldo Cruz
(Fiocruz). Neste artigo, trafegamospor uma estrada de mo dupla,
cotejando a realidade fenomnicacom reflexes conceituais e
procurando converter o produto ciosestudos em temas cie debate e
aes de proteo sade. Aopo por uma via que articula teoria, mtodo e
estratgias deaes se deve especificidade do objeto Violncia', to
difcilde ser abordado pelas formas convencionais de conhecimentoem
razo cia carga de ideologia, preconceito e senso comum
queinvariavelmente o acompanha. Por outro lado, os
sanitaristasfreqentemente manifestam estranheza ao se depararem
comum fenmeno social que causa agravos sade, mas no seenquadra com
facilidade nos esquemas habituais das disciplinasda sade coletiva
na tradio de um ofcio mais voltado para ocampo das doenas e sua
determinao social.
Como todos os que tentam construir conceitos e
relaes,apoiamo-nos nos conhecimentos desenvolvidos pela
epiclemiologiadas 'causas externas', que j tem certa tradio em
nosso pas. Comuma postura aberta e crtica, estamos tentando
desenhar um marcoterico-metodolgico que seja til s investigaes
empricas e saes estratgicas.
Violncia, um conceito polissmico e controversoQualquer reflexo
terico-metodolgica sobre a violncia
pressupe o reconhecimento da complexidade, polissemia
econtrovrsia do objeto. Por isso mesmo, gera muitas teorias,
todasparciais. Neste artigo, levando em conta o que acontece na
prtica,dizemos que a violncia consiste em aes humanas de
indivduos,grupos, classes, naes que ocasionam a morte de outros
sereshumanos ou que afetam sua integridade fsica, moral, mental
ouespiritual. Na verdade, s se pode falar de violncias, pois se
tratade uma realidade plural, diferenciada, cujas
especificidadesnecessitam ser conhecidas.
A interpretao de sua pluricausalidade , justamente, um
dosproblemas principais que o tema apresenta. Basta freqentar
aspginas dos grandes jornais que publicam debates de
especialistaspara se perceber a dificuldade que tm de alcanar
definiesconsensuais. Assim, muitas so as tentativas de explicao.
Deum lado esto os que sustentam que a violncia resulta de
neces-sidades biolgicas, psicolgicas ou sociais, fundamentando-se
na
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AlanaLineNo se pode apenas falar de uma violncia, mas sim de
vrias. uma realidade plural
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Etologia social dogrego ethos: costume,carter; logos: palavra a
doutrina daconduta dos animaisem seu meio natural, ese desenvolveu
entreas dcadas cie 1940 e1950. Introduz osmtodos e o enfoquecia
biologia no estudoda conduta humana.Diversos autorestentam
demonstrar queos seres humanosdesencadeiam guerras,amotinam-se e
serebelam porque soimpulsionados peloeterno e indestrutvelinstinto
de agresso.
sociobiologia ou na etologia, teorias que subordinam a
questosocial s determinaes da natureza. De outro, esto os
queexplicam a violncia como fenmeno de causalidade apenassocial,
provocada quer pela dissoluo da ordem, quer pelaVingana' dos
oprimidos, quer ainda pela fraqueza do Estado.
O primeiro grupo de teorias entende a violncia como
fenmenoextraclassista e a-histrico, de carter universal,
constituindo meroinstrumento tcnico para a reflexo sobre as
realidades sociais.Nielburg (1959, p-15), por exemplo, absolutiza o
papel da violnciana vida social e, bem ao estilo de Hobbes, enfoca
a sociedadecomo eterno campo de luta competitiva entre indivduos,
grupos enaes. Em sua opinio, os mtodos e meios deste embate s
semodificam porque a prpria luta representa um fenmeno
natural.Seguindo a mesma linha, Lawrence (1970, pp. 35-6) critica a
buscado que chama sintomas secundrios de tais ou quais atos
deviolncia, e advoga a pesquisa de "padres cientficos
nicos"aplicveis a quaisquer fenmenos dessa natureza. O autor cr
napossibilidade de se encontrar uma definio neutra, rigorosa,
isentade moral partidria, desde que se controlem os juzos de
valor.
Essas teorias fundamentam-se na idia de que a agressividade uma
qualidade inata da natureza humana e, portanto, os conflitosda vida
social, seja qual for a etapa do desenvolvimento histrico,so de
carter "eterno e natural".
Outras teorias, igualmente fundamentadas na premissa de quea
violncia natural e inevitvel, substituem a idia de processosocial e
histrico pelo conceito de "agresso", que provm dabiologia,
etologia, gentica e medicina. Nestas disciplinas, acategoria
Agressividade' entendida como parte do instinto desobrevivncia e
forma natural de reao dos animais em certascondies e situaes,
tendo, portanto, conotao de 'neutralidade'e 'naturalidade'. Ao
transferirem para a anlise do social, de formalinear, os
conhecimentos sobre a agressividade animal, os autoresque partilham
a crena na "instintiva agressividade humana"pretendem subordinar, a
priori, os componentes da atividadehumana aos instintos biolgicos.
William Thorpe (1970, p. 40),por exemplo, escreve que "dificilmente
existe algum aspecto daconduta dos animais que no tenha referncia
nos problemas daconduta humana". Tal afirmao , no mnimo, paradoxal.
No o homem que se referencia na conduta do animal, mas sim oanimal
que se referencia no homem.
Os estudiosos que defendem tais idias se apoiam nasdescobertas
da chamada etologia social, desenvolvida por KonradLorenz.1 Para
Lorenz (1979, p. 25), em certas circunstncias, omecanismo
instintivo da agressividade dispara automaticamentenos animais, e
os leva a atacar outros da mesma espcie. Oautor considera essa
"agressividade intraespecfica" necessria
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AlanaLineA Naturalizao da violanica, a difinio universal.
Descarta o carter social, histrico e cultural dela
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preservao da espcie, to natural e irresistvel quanto,
porexemplo, a fome e o instinto sexual.
Nessa mesma linha, situa-se a biologia social, que estuda
avitalidade humana e sua ligao com a sociedade. Caracteriza-sepor
transferir as regularidades do nvel biolgico ao social, e osdados
da etologia para as relaes humanas e, ainda, por priorizaros
problemas dos indivduos em detrimento dos da sociedade; epor
reduzir as anlises sociolgicas s biopsicolgicas. Segundo abiologia
social, os genes reproduzidos de gerao em gerao, nosseres humanos,
transmitem uma informao de sentido e contedodeterminados, levando
os indivduos a reagir em condiesconcretas do ambiente de forma a
garantir a sua sobrevivncia.
Em outras palavras, a biologizao dos fenmenos e processossociais
se fundamenta na crena de que os ritmos biolgicos(muito mais
lentos) e os sociais (muito mais dinmicos) sofatalmente
incompatveis. Os indivduos seriam geneticamenteincapazes de se
adaptar aos ritmos precipitados e s mudanasqualitativas do
desenvolvimento social e tecnolgico da sociedadeindustrial, ou
ps-industrial, alterando-se, em conseqncia, osmecanismos humanos de
adaptao psquica e psicobiolgica. Oser humano seria, ento, por
natureza, anti-social, e as questesde conflito e luta resultariam
de sua tendncia irrefrevel e'biolgica' ao domnio dos outros. A
analogia com os cenriosdescritos pela teoria da seleo natural
evidente, como mostra,entre outros, Edward Wilson (1977).
Outros autores tendem a reduzir os fenmenos e processos sociais
conduta individual produzida por fatores psicolgicos. Segundo
osocilogo ingls Colin Wilson (1964-65, p. 27), a misria e
adesigualdade foram responsveis pela violncia social, mas, hoje,
obaixo nvel de conscincia, de liberdade e responsabilidade
acarretamum sentimento de insatisfao permanente, que se expressa
emconfrontao e alienao, em condutas pervertidas e violentas.
"Noquero dizer que todos os assassinos so psicticos, e sim que,
paraentend-los, deve-se captar algo da psicologia do sculo XX."
Edward Morin (1970, pp. 46-9) tambm considera que nossacivilizao
parece haver entrado numa crise que aumenta a cadadia, provocando o
reaparecimento de atavismos arcaicos e aexacerbao de solues
neurticas a curto ou longo prazos. Nasua hiptese, pois, o problema
da violncia moderna no dendole social e sim psicolgica. Da mesma
forma, o psiclogoalemo Mitscherlich (1971) cr que qualquer
modificao nasrelaes sociais s ser possvel se houver mudanas
naconstituio psquica do ser humano, tendo como ponto central
areconstruo de sentimentos e emoes.
Marx (1967, p. 303), por sua vez, chamava de "segundanatureza" s
caractersticas sociais do ser humano, cujo contedo
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estaria constitudo por um substrato biolgico-individual e
porcomponentes formadores de sua imagem psquica, a partir decertos
modelos de conduta internos, inatos e/ou adquiridos.Portanto, na
formao de tais modelos, reconhecia que a incidnciados fatores
sociais era decisiva.
Entendemos que as descobertas da biologia, psicologia, genticae
neurofisiologia so fundamentais para se obter uma
compreensoscio-filosfica do humano. Igualmente importante
conheceros mecanismos que resultam no apenas na transformao
dobiolgico pelo social como na afirmao do biolgico comodimenso
constituinte do social, sobretudo agora que correntesmodernas das
cincias naturais tm mostrado que a conscinciahumana possui
potenciais praticamente ilimitados para sedesenvolver e conhecer o
mundo. Da mesma forma, no se podenegar que as peculiaridades
individuais mediatizam as reaesdos seres humanos aos estmulos
externos. Nada disso, porm,justifica a demarche tendenciosa de se
tomar cor, raa e outrosatributos biolgicos como determinantes da
violncia.
Ao iniciar sua vida, a criana encontra um mundo de vnculos
erelaes j formados, com tradies, normas de direito e moral,concepes
ideolgicas e outros elementos configuradoshistoricamente e de
relevncia bem concreta. A ela forma suaconscincia, seu estilo de
vida e de reao individual. Como disseSartre (1980, p. 57): "Eu sou
o que consegui fazer com o quefizeram de mim."
Aqui se argumenta em favor da relao dialtica entre indivduoe
sociedade, e no da prioridade do primeiro sobre a segunda.Marx e
Engels (1971, p. 146) exprimiram bem esse ponto devista ao
afirmarem que: "O homem desenvolver sua verdadeiranatureza no seio
da sociedade e somente ali; razo pela qualdevemos medir o poder de
sua natureza no pelo poder doindivduo concreto, mas pelo poder da
sociedade."
claro que as anlises psicolgicas da violncia refletem, sua
maneira, as contradies existentes na realidade: o crescimentodas
tendncias anti-sociais, o isolamento, o medo coletivo eindividual,
o estado de intolerncia, a alienao dos indivduos ea espetacularizao
dos dramas particulares. Seria incorreto negaro mundo subjetivo em
que se baseia toda a vida social e privada. necessrio enxergar no
processo de atividade vital no asupremacia de uma esfera sobre
outra, mas a singular unidadedialtica do natural, do individual e
do social, do hereditrio e doadquirido. Existe uma
complementaridade dinmica entre obiolgico, o psicolgico, o social e
o ecolgico, como to bemcompreendeu Marcel Mauss (1974) em sua
teoria do fato socialtotal, segundo a qual toda atividade vital
humana pe em jogorelaes sociais, culturais e emoes, e afeta tanto a
constituio
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fsica, corprea e biolgica, quanto a conscincia e o
espritohumanos.
A conjuno dialtica do social e do biolgico no ser
humanoinscreve-se no seu emocional, o que significa que suas
aspiraese aes so fruto, a um s tempo, de suas condies sociais
devida e de suas particularidades biolgicas. O significado
decisivodo fator social (a includas as inter-relaes subjetivas e
ascondies estruturais da existncia) no se reduz ao papel
dedeterminante absoluto: ele condio necessria formao eao
desenvolvimento da personalidade.
Um segundo conjunto no homogneo de teorias se refere srazes
sociais da violncia. Uma delas explica o fenmeno comoresultante dos
efeitos disruptivos dos acelerados processos demudana social,
provocados, sobretudo, pela industrializao eurbanizao. Seus tericos
principalmente Merton (1968) eHuntington (1968) fundamentam-se em
anlises de transiessociais e sustentam, basicamente, a idia de que
os movimentosde industrializao provocam fortes correntes migratrias
comdestino s periferias dos grandes centros urbanos, onde
aspopulaes passam a viver sob condies de extrema
pobreza,desorganizao social, expostas a novos comportamentos e
semcondies econmicas de realizarem suas aspiraes.
Dessa forma, a violncia encontraria clima propcio para
seuincremento nas grandes metrpoles, sacudidas por essas
bruscasmudana. Variveis como o tamanho das cidades, a aglomeraode
pessoas, a perda de referncias familiares e de razes
culturaisfavoreceriam a formao de subculturas perifricas, margemdas
normas e leis sociais, produzindo-se as chamadas
"classesperigosas". As grandes cidades no seriam, ento, o foco
geradorda violncia, como cr o senso comum, e sim o locus
privilegiadoda dissociao entre aspiraes culturalmente criadas e
'possveissociais', da se originando a delinqncia e o crime.
Como o primeiro grupo de teorias, este tem seu
componenteideolgico muito claro, quer na viso nostlgica de volta ao
passadopresente em algumas anlises sociolgicas, quer nas
propostasautoritrias que vem o urbano, a favela e a periferia como
locusda violncia. Essa corrente despreza os
componentesmicroestruturais da subjetividade na escolha dos
possveis sociais.A lgica estrutural-funcionalista, que sustenta o
modelo, supeuma sociedade homognea e estvel com normas, padres
evalores dados, eternos, esquecendo a natureza scio-histrica e
aorigem de classes das definies sociais. como se o movimentode
mudanas exercesse uma fora de atrao sobre os atoressociais,
arrastando-os para condutas criminosas e violentas.Migrao interna,
favelizao, condies precrias de vida,desemprego, acesso reduzido
escolaridade seriam geradores
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AlanaLineAssim como a ao violenta
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AlanaLineCOLOCANDO cor e raa na definio da violncia, viso
preconceituosa e descriminativa ao apreender a favela e a periferia
com locus da violncia
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de comportamentos desviantes. Ao reduzir violncia a crime
edelinqncia, e ao encarar como "criminosa potencial" a
populaoimigrante e pobre das classes trabalhadoras, os seguidores
dacorrente que enxerga a transio como portadora de violnciano levam
em conta a violncia estrutural, a violncia do Estadoe a cultural,
que quase sempre aparecem naturalizadas.
Um terceiro grupo de teorias tende a compreender os processose
as condutas violentas como estratgias de sobrevivncia dascamadas
populares vitimadas pelas contradies gritantes docapitalismo no
pas. As desigualdades sociais, o contraste brutalentre opulncia e
indigncia, as poucas oportunidades deemprego, de ascenso social e
remunerao condignas levariamos pobres a se rebelar e a tentar
recuperar o excedente de queforam expropriados. Tais idias
inspiram-se basicamente em Sorel(1970), o primeiro terico da
explicao da violncia como revoltados despossudos, e em Engels
(1974), que situa o fenmeno dadelinqncia no incio da industrializao
da Inglaterra como nvelelementar da luta de classes. Pires (1986),
Oliven (1983, 1982) eCerqueira (1987) so, entre ns, alguns dos
representantes dessacorrente. Ela retm uma viso exterior da
violncia, como forainstrumental de reposio da justia, e deixa de
lado outrosaspectos da violncia social e cultural que tm razes
estruturaisprofundas e internalizadas nos sujeitos, e que atingem a
todosns, independentemente de classe, cor, raa, sexo ou idade.
Hegel (1969, pp. 299-336) foi o primeiro filsofo a integrar
aviolncia no s racionalidade da histria das sociedades, como origem
mesma da conscincia. Na anlise da relao dialtica entresenhor e
servo, define a violncia, primeiro, como processo denegao do
"outro" pelo "eu". Mas essa negao no suficientedo ponto de vista da
realizao social. O "eu" precisa que o "outro"exista e que o
reconhea, e ento a luta pela vida se transformaem luta pelo
reconhecimento. Esse o aspecto positivo das relaessociais que Freud
(1974, p. 311), embora pessimista em relao aoser humano, constatava
na correspondncia com Einstein: "Tudoque estimula o crescimento da
civilizao trabalha simultaneamentecontra a guerra." Esse tambm o
ponto de vista adotado porHabermas (1980, p. 100) ao comentar
Hannah Arendt: "Asconfrontaes estratgicas em torno do poder poltico
nemproduziram e nem preservaram as instituies nas quais essepoder
est enraizado. As instituies polticas no vivem daviolncia mas do
reconhecimento" (reconhecer significa conhecero que j houve na
histria, atualizado nas presenas).
Em resumo, cremos que no so apenas os problemas denatureza
econmica, como a pobreza, que explicam a violnciasocial, embora
saibamos que eles so fruto, so causa e efeitoe, ainda, elemento
fundamental de uma violncia maior que o
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prprio modo organizativo-cultural de determinado povo.
Aoescolher os que "so" e os que "no so" a partir das leis
depropriedade, a sociedade revela sua violncia fundamental, comona
dialtica hegeliana do servo e do senhor.
O quarto grupo de teorias explica a violncia e o crescimentodos
ndices de criminalidade no pas, pela falta de autoridade cioEstado,
entendendo esta como poder repressivo e dissuasivo dosaparatos
jurdicos e policiais. Tal concepo tende a omitir opapel da violncia
como importante instrumento de domnioeconmico e poltico das classes
dominantes. Veicula a crenanum Estado neutro, rbitro dos conflitos
e mantenedor da ordemem benefcio de todos, margem da questo das
classes, dosinteresses econmicos e polticos, Estado meramente
funcionalem relao ao bem-estar social.
Os adeptos da fora repressiva do Estado, tergiversando sobreas
complexas causas da violncia, reduzem sua concepo dessefenmeno
delinqncia e tendem a interpret-la como fruto daconduta patolgica
dos indivduos. Ao mesmo tempo, absolutizamo papel autoritrio do
Estado no desenvolvimento scio-econmicodas sociedades. As idias
desses intelectuais combinam com osenso comum, que advoga a fora
repressiva como condio de"ordem e progresso". Entre ns, Campos
Coelho (1987) representaessa viso da delinqncia como fruto anmalo
que se desenvolve sombra da conivncia e apatia das autoridades e
dos aparelhosrepressivos.
Violncia e sade corno objeto de investigao e aoA violncia
exercida, sobretudo, enquanto processo social,
portanto, no objeto especfico da rea da sade. Mas, alm deatender
s vtimas da violncia social, a rea tem a funo deelaborar estratgias
de preveno, de modo a promover a sade.Logo, a violncia no objeto
restrito e especfico da rea dasade, mas est intrinsecamente ligado
a ela, na medida em queeste setor participa do conjunto das questes
e relaes dasociedade. Sua funo tradicional tem sido cuidar dos
agravos fsicose emocionais gerados pelos conflitos sociais, e hoje
busca ultrapassarseu papel apenas curativo, definindo medidas
preventivas destesagravos e de promoo sade, em seu conceito
ampliado debem-estar individual e coletivo.
Diz Agudelo (1990, p. 1) que "a violncia afeta a sade porqueela
representa um risco maior para a realizao do processo vitalhumano:
ameaa a vida, altera a sade, produz enfermidade eprovoca a morte
como realidade ou como possibilidade prxima".
E a Organizao Pan-Americana de Sade (OPAS), em seudocumento
sobre o tema (1995, 1993), declara que "a violncia,
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pelo nmero de vtimas e a magnitude de seqelas emocionaisque
produz, adquiriu um carter endmico e se converteu numproblema de
sade pblica em vrios pases. ... O setor de sadeconstitui a
encruzilhada para onde confluem todos os corolriosda violncia, pela
presso que exercem suas vtimas sobre osservios de urgncia, de ateno
especializada, de reabilitaofsica, psicolgica e de assistncia
social."
O Brasil um desses pases onde a violncia exerce
impactosignificativo sobre o campo da sade (Minayo, 1994). Desde
adcada de I960, o quadro de mortalidade geral revela a transiodas
doenas infecto-parasitrias para a violncia como fenmenorelevante,
acompanhando o processo de urbanizao. O pontode inflexo situa-se na
dcada de 1980, que apresentoucrescimento de cerca de 29% na proporo
de mortes violentas,passando estas a constituir a segunda causa no
obiturio geral,abaixo, apenas, das doenas cardiovasculares. Os
acidentes detrnsito e os homicdios respondem por mais da metade das
mortespor violncia, sendo baixa a incidncia de outros eventos
(suicdiose demais acidentes) que compem, com os dois primeiros,
acategoria Causas Externas segundo a Classificao Internacionalde
Doenas (CID): E-800 a E-999 na 9a reviso e V01 a Y98 na10a reviso
(Souza, 1994; Mello Jorge, 1994).
A morbidade por violncia difcil de ser mensurada, sejapela
escassez de dados, seja pela impreciso das informaesgeradas atravs
dos boletins de ocorrncias policiais, seja pelapouca visibilidade
que tm determinados tipos de agravos, ouainda pela multiplicidade
de fatores que envolvem atos violentos.Muitos exemplos poderiam ser
citados para se estimar a ampliaoenorme da morbidade em relao
mortalidade. Mello Jorge(1988) cita estudos de Wheatley: para cada
morte atribuvel aacidente, duzentos a quatrocentos casos de leses
no-mortaisgeram seqelas e incapacidades prematuras.
Porm, o problema no se reduz s leses fsicas e alcananvel
incomensurvel quando se pensa nas relaes e conexescriadas como
efeito-causa e causa-efeito. O medo apenas umadas manifestaes da
vivncia da violncia, sobretudo hoje, nasgrandes regies
metropolitanas, onde se concentram 75% de todasas mortes por essa
causa (Minayo e Souza, 1993, p. 75).
Se o fenmeno da violncia, como diz Engels (1972, p. 27), produto
da histria esta " como a mais cruel das deusas quearrasta sua
carroa triunfal sobre montes de cadveres" , nose pode deixar de
reconhecer que os processos violentos inibem,modificam e
enfraquecem tanto a qualidade como a capacidadede vida. Vrios
estudiosos da atualidade observam que se tornacada vez mais
necessria uma epidemiologia da violncia, inclusiveuma epidemiologia
dos problemas psiquitricos gerados por ela.
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no mbito dessas questes que trabalhamos o objeto Violnciae seu
impacto na sade', articulando saberes de vrias
disciplinas,contribuies de vrios campos profissionais, com a
certeza deque apenas uma abordagem intersetorial e interdisciplinar
consegueabranger a problemtica em questo.
Examinaremos trs campos que podem fornecer essa colaborao sade
pblica.
Das cincias sociais retiramos os seguintes balizamentos.A
violncia um fenmeno histrico, quantitativa e qualita-
tivamente, seja qual for o ngulo pelo qual o examinemos
(contedo,estrutura, tipos e formas de manifestao). S pode ser
entendidanos marcos de relaes scio-econmicas, polticas e
culturaisespecficas, cabendo diferenci-la, no tempo e no espao, e
portipos de autor, vtima, local e tecnologia, como fazem Burke
(1995),Pinheiro (1982) e Farjado (1988) em seus trabalhos.
Toda violncia social tem, at certo ponto, carter reveladorde
estruturas de dominao (de classes, grupos, indivduos, etnias,faixas
etrias, gnero, naes), e surge como expresso decontradies entre os
que querem manter privilgios e os que serebelam contra a opresso.
At a delinqncia, ou principalmentea delinqncia, pode ser
interpretada luz dessas relaes sociaisconflituosas. As
desigualdades sociais, a expropriao econmico-social e cultural so
ingredientes que importa compreender comobase da criminalidade,
como mostram os estudos de Adorno (1989)e Vethencourt (1990). A
desvalorizao da vida e das normasconvencionais, das instituies, dos
valores morais e religiosos, oculto fora e ao machismo, a busca do
prazer e do consumoimediato esto hoje na base dos cdigos paralelos
das gangues e'falanges' que amedrontam nossos centros urbanos.
As cincias sociais nos estimulam a complexificar os processose
eventos a serem compreendidos e, ao mesmo tempo, nosaproximam
empiricamente deles. preciso obedecer a algumasorientaes
normativas, como distinguir a violncia das classes egrupos
dominantes daquela exercida pelos que resistem. Por outrolado,
entender o carter relacionai sempre presente nos eventosviolentos,
que faz de todos ns, em algum momento ou situao,ora vtimas ora
algozes. Investigar tanto as formas mais atrozes econdenveis para a
opinio pblica como situaes no menosescandalosas, mas que so
naturalizadas pela cultura, protegidaspor ideologias e/ou
instituies aparentemente respeitveis, comoa famlia, a escola, as
empresas e o Estado. Prescrevem ainda ascincias sociais a tarefa de
relacionar a violncia dos indivduose pequenos grupos com a do
Estado e da ordem estabelecida,buscando sempre estabelecer redes,
como propem da Matta(1982), Domenach (1981) e Boulding (1981).
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As cincias sociais nos chamam ainda a ateno para os
aspectosculturais concernentes tanto modelagem da conscincia, dos
usose costumes atualizados no cotidiano como 'naturalizao'
daviolncia e criao da ideologia que repele ou justifica o limiteda
tolerncia social. Tais aspectos so analisados por Burke (1995);Cruz
Neto e Minayo (1995); Oliven (1983) e Chesnais (1981).
Em ltimo lugar, as cincias sociais nos indicam
diretrizesmetodolgicas. Se os objetos da violncia e sade so
sujeitos emrelaes scio-histricas, necessrio fugir das explicaes
a-histricas, metafsicas e fatalistas, fora das situaes onde
acontecem. fundamental desvendar e explicitar o carter de dominao
dasinstituies coercitivas ou de persuaso, apresentadas
comoinstrumentos tcnicos, acima da realidade social. preciso,
ainda,compreender a violncia em sua especificidade, no sentido
deque o 'caso' complexo e contm, dialeticamente, a possibilidadede
articular a forma abstrata com a realidade concreta, quantitativaou
qualitativamente, individual e coletivamente. Tais caminhos domtodo
tm sido apresentados por Denisov (1986), Domenach(1981) e Minayo
(1990).
Do campo prprio da sade coletiva, a epidemiologia quemais
contribuies tem oferecido aos estudos da violncia.
Conforme assinala Weisberg (1995), foi a partir da dcada de1970
(ps-guerra do Vietn) que um grupo de sanitaristas comeoua se
introduzir nos estudos sobre a violncia ao estudar os
anospotenciais de vida perdidos por vrias causas, inclusive
'causasexternas', observando, ento, a alta proporo de jovens
ceifadosprecocemente. Nos Estados Unidos assim como no Canad
edepois em vrios pases da Amrica Latina, os
epidemiologistaspassaram a se preocupar com a preveno, atravs da
descriodos grupos e fatores de risco e da busca de intervenes
sociais.Weisberg observa que a abordagem da sade contrasta com a
dapolcia e justia criminal porque, enquanto para a primeira,
oimpacto incide sobre a vtima, para a justia, o alvo o agressor.Na
sade busca-se o bem-estar; na justia, o castigo; a
perspectivacriminal reativa, enquanto a da sade propositiva; e, por
fim,os agentes da justia so policiais, juizes e promotores,
enquantodo outro lado est a equipe de sade.
Ao trabalhar com sries histricas, a epidemiologia tempermitido
relativizar a magnitude dos dados e a tendncia dosmesmos,
desfazendo crenas da opinio pblica, como a de quea violncia tem
maior impacto na atualidade e de que se trata deum fenmeno sempre
crescente e sem soluo. Ao atuar comvariveis de sexo, faixa etria,
cor, espao geogrfico, condiessociais e econmicas, os estudos
epidemiolgicos buscam alcanarmaior sensibilidade, preciso e
especificidade na deteco eno diagnstico dos casos (formas de
incidncia e prevalncia).
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2 Maria Helena cie
Mello Jorge tem maisde vinte anos deestudos sobre o tema evrios
artigospublicados, algunscitados aqui. Prestouassessoria ao
Ministrioda Sade, a secretariase a movimentos civis ecie cidados.
EclinilsaRamos cie Souzatambm trabalha hclez anos emepiclemiologia,
tendodesenvolvido estudossobre a mortalidadepor violncia
eatividades de reflexoe ao no mbito ciosservios cie sacle.
Ver,sobretudo, sua tese dedoutorado (1995).Simone Gonalves deAssis
outra autoraengajada no esforo ciearticular epiclemiologiae outras
reas cioconhecimento,especialmente nosestudos sobremorbiclade.
Vertambm sua tese dedoutorado (1995).
Buscam tambm identificar fatores de risco e grupos
vulnerveis.Possibilitam, ainda, a desmistificao de anlises
acadmicas emitos da opinio pblica sobre o que se costuma chamar
'classesperigosas' ou 'criminosos preferenciais'. Hoje, no Brasil,
os vriosestudos de Mello Jorge; Souza (1995), e Assis (1995) so
excelentesexemplos de trabalhos de cunho epidemiolgico com
inequvocacontribuio social.2
indispensvel observar, porm, que, apesar do muito que jse fez no
mbito da sade coletiva, a epidemiologia no podeser considerada
substituta de outras formas de abordagem tericae prtica, como
argumenta Weisberg (1995). Eleg-la como cinciasuficiente para
explicar a violncia significaria desconhecer ascausas de ordem
estrutural, cultural e conjuntural que agregamcomplexos fatores e
elementos e que no podem ser erradicadoscomo uma doena. Em vrios
pases, inclusive no Brasil, a violnciano pode ser considerada uma
epidemia passvel de ser tratadapelos mtodos tradicionais da
epidemiologia geral e de servios.Como j analisamos, a complexidade
do fenmeno exige abordagemao mesmo tempo social, psicolgica e
epidemiolgica, levandoem conta, inclusive, os aspectos biolgicos. E
quanto mais ofenmeno se agrava, mais imperiosa a necessidade de se
trabalharcom vrias disciplinas cientficas e vrios campos
profissionaisrelevantes.
Os tempos estruturais, os entranhamentos culturais,
asdiscriminaes, as desigualdades extremas, a falta deoportunidade
de trabalho, a escassa cidadania so questes muitoprofundas que
transcendem as prticas especficas da rea desade, ainda que tenha de
lev-las em conta em sua ao. Apesardesses questionamentos,
fundamental valorizar a contribuioda epidemiologia e aprofundar a
proposta de vigilncia e atenoque a rea pode exercer no processo de
preveno e promooda sade. Na vigilncia violncia deve prevalecer
umaorientao mais tica, voltada para a preveno do que podeser
evitado e no apenas para a interveno no que tolerado(Souza, Assis e
Silva, 1997). A adoo de um arcabouo terico-metodolgico deste tipo
permite pensar tanto a assistncia integralaos casos endemicamente
esperados de agravos violentos comoa sua preveno, com parmetros
explicativos mais amplos queenglobam, alm da ocorrncia isolada e do
risco associado aocomportamento individual, fatores de risco
relacionados aoprprio ambiente, com as especificidades inerentes
aos processosviolentos particulares.
Mesmo que a epidemiologia fosse equivocadamente assumidacomo
nica abordagem para o entendimento da violncia, certasquestes
permaneceriam no resolvidas por ela. Por exemplo, adificuldade de
identificar os casos nos quais a violncia no imprime
-
marcas fsicas, como na negligncia, no abandono e na
violnciapsicolgica e em outras formas de maus-tratos
historicamentedependentes do saber da clnica mdica. A identificao
dos fatoresde risco envolvidos na rede dos processos outra questo
quedesnuda a dificuldade da epidemiologia de lidar com a
violncia.Os modelos tericos propostos para explicar as causas dela
precisamidentificar a hierarquia, a fora e a forma como atuam os
diferentesfatores da rede causai, o que constitui um desafio ainda
no superado.
A terceira disciplina relevante para o tema a psicologia,
pois,em ltima instncia, no indivduo, em sua complexa totalidade,que
a violncia se concretiza enquanto agresso e/ou vitimao.Como j
dissemos, ela est relacionada no apenas com os bensdas pessoas e
com seu corpo, mas com o psiquismo. Afeta o egocorpreo e o eu
psquico. Por isso, necessrio integrar s anlisesda violncia a
psicologia social, disciplina que trabalha com conceitosimportantes
como processo de identificao, grupos de referncias,caractersticas
de personalidade, relao entre frustrao-agressoe diferenciao entre
agressividade e violncia. No obstante,autores como Jurandir Freire
Costa (1986) constatam a dificuldadeque a rea psi tem de se
aproximar teoricamente do fenmeno daviolncia. Ao refletir sobre o
tema, Jurandir utiliza mais a sociologiae, sobretudo, a
antropologia, do que as teorias psicanalticas.
O trabalho de Vethencourt (1990) um marco para se entendera
contribuio da psicologia. Contrapondo-se s explicaespsicogenticas
propostas para o comportamento dos jovens pobrese delinqentes da
Amrica Latina, o autor desmistifica as razesindividuais da violncia
e utiliza os conceitos de violncia vingativa,expansiva e egocntrica
para analisar a situao dos rapazespobres da Venezuela que
ingressaram na delinqncia. Enxergaa um fenmeno de regresso de
conduta delitiva tendendo paraa violncia egocntrica. Vethencourt
observa que esses indivduosjamais, ou muito dificilmente, teriam se
tornado delinqentes seno fossem as condies de pobreza inclusive
psquica eviolncia extremas nas quais estruturam suas
personalidades, coma conseqente ausncia de expectativas de realizao
de suasvidas dentro das normas vigentes. Situa como numa gradao:
a)o estado de desestruturao sutil da personalidade; b)
adesorganizao do comportamento em relao aos valoressocialmente
aceitos; c) a reativao dos ncleos de violnciasdica e ira vingativa;
d) a ecloso de impulsos agressivos comoreao para no cair no
adoecimento; e) a perda do autocontrolepela estigmatizao; e (O o
recrudescimento da raiva que seorienta contra os outros e contra o
prprio grupo.
Percebendo no comportamento dos jovens delinqentes aregresso da
violncia poltica para a violncia delinqencialindividual,
Vethencourt considera essa involuo o pior de todos
-
os males que podem ocorrer a uma nao, j que se cria umamaneira
de viver na violncia crnica, sem sada aparente, porefeito do
apodrecimento das energias polticas do povo, refletindo-se, tal
estado de coisas, nos comportamento individuais.
Aos argumentos de Vethencourt podemos acrescentar que oato de
delinqir no privilgio do jovem das camadas pobresda sociedade. Cada
vez mais observamos o crescimento daparticipao de jovens das
classes mdia e alta na prtica ciecrimes e atividades ilcitas.
Por outro lado, seria o caso de nos perguntarmos se adequadoo
argumento de que os jovens das classes populares desprezamos
valores vigentes na sociedade. Ora, se vivem num estado deviolncia
crnica, como afirma Vethencourt, a divergnciadetectada nos valores
e normas de conduta falsa. Na verdade,os valores destes jovens so
perfeitamente condizentes com asexperincias que vivem. Divergem
apenas cios valores inculcadospelo status quo. Talvez por esta via
possamos explicar a marcaregistrada, aquela espcie de 'carimbo' que
se encontra nascondies sociais e psquicas dos jovens infratores que
lotam asinstituies de recluso do sistema judicirio.
Em seus estudos empricos, Vethencourt mostra que a produode
subjetividades to homogeneamente crimingenas explicadamenos por
mecanismos intrapsquicos, como opo e necessidadeindividual, do que
por causas que levam uma sociedade a produzirdelinqentes em
srie.
Estudos realizados com criminosos apontam como
caractersticaspsquicas destes a predominncia de um ego frgil,
poucointegrado, com estruturas que no se desenvolveram plenamentee
que permanecem regidas por pulses parciais e arcaicas(Guerra,
1990). So tambm egos que se desenvolveram emmeios familiares,
marcados, com freqncia, por ausncia ourepetidas substituies da
figura masculina, e submetidos a todasorte de necessidades
materiais e/ou afetivas.
V-se, assim, como importante identificar e compreender, atravsda
psicologia da criminalidade, quais os mecanismos psquicosenvolvidos
os gerais e os especficos aos sujeitos nos diferentescontextos
social e familiar e nos diferentes tipos de delito.
Como unidade dialtica, o ser humano sintetiza em seuscomponentes
psquicos e emocionais as representaes que elaborado mundo, das
relaes nele estabelecidas e de si mesmo, enquantoser corpreo e
sujeito social. S considerando a subjetividade,podemos compreender
por que em uma mesma famlia um membroopta por comportamentos
violentos e outro no. desse ponto cievista subjetivo que Gilligan
(1996) busca tambm compreender ocomportamento de pessoas que
preferem ser reconhecidas poratos violentos a no terem
reconhecimento algum.
-
No final da dcada de I960, o francs Guy Debord (1997)denominou
de "sociedade do espetculo" e, na dcada seguinte,o norte-americano
Lasch (1987) chamou de "cultura do narcisismo"os novos tipos de
sociabilidade que vinham sendo tecidos nassociedades
ps-modernas.
Entre ns, Costa (1986) defende o pensamento de Lasch,articulando
a violncia s vivncias narcsicas e conseqenteconstituio de miragens
do ego. Segundo este autor, para a cultura(social) da violncia h um
correlato individual, a cultura narcsica.Nesta, a formao da imagem
egica, submetida aos efeitos deuma violncia externa, provoca uma
recluso narcsica, levandoao desenvolvimento de condutas
dissolventes do convvio e dasociabilidade. A ausncia de ideais
contribui para fazer emergirmiragens do ego, prprias da dinmica do
narcisismo, destinadas,sobretudo, a assegurar a autopreservao, a
qualquer preo.
Inseridos numa cultura de violncia, os jovens estruturam umeu
que permanece fixado em etapas anteriores do desen-volvimento
psquico, cujo funcionamento regido pelo princpiodo prazer.
Trata-se, segundo Bush (1992), de um eu narcisista,investido de
pulses parciais, que, para lidar com a angstia e aameaa internas,
precisa projet-las no outro o externo, o queest fora , invertendo
os papis e transformando o agredidoem agressor.
Birman (1997) tenta costurar os conceitos de "sociedade
cioespetculo" e "cultura do narcisismo". Nas sociedades
atuais,afirma, a sociabilidade resulta da exaltao do eu e da
estetizaoda existncia realizadas pelos indivduos. O sujeito passa a
serdominado pela preocupao com a performance, e seus
gestospermancem voltados para a seduo do outro, que apenasobjeto
predatrio para o gozo e enaltecimento do eu. No universodo
espetculo realiza-se, ento, a captura narcsica do outro. Sere
parecer se identificam no discurso narcsico, subvertendo
overdadeiro e o falso, o original e o simulacro. A sociabilidade
antiplatnica, pois o sujeito perde a interioridade medida queganha
exterioridade, numa cultura em que se exalta desme-suradamente o
eu.
Estas reflexes so apenas fragmentos de teorias psicolgicasque
demonstram a necessidade de serem aprofundadas. Ou seja,entre o eu
corpreo da biologia e da cultura e o eu social ciouniverso
sociolgico existe a mediao dos desejos, das emoese das pulses. A
contribuio das disciplinas psi urgente efundamental.
-
Concluso: urgncia de
interdisciplinaridade,multiprofissionalidade e ao pblica
Procuramos fazer uma leitura crtica dos termos que orbitamem
nosso campo de estudo: os conceitos de violncia e sadeenquanto
processos, a classificao de causas externas, o conceitobiopsquico
de agressividade e outros foram examinados luz dapreocupao de se
obter complementaridade, transitividade oucompatibilidade na
construo da temtica que fornece o ttuloao artigo. Certamente,
trata-se de um esforo incompleto que setornar mais frutuoso no
decurso de investigaes e prticas.
Por no possuir uma fundamentao natural, nem transcendentalou
infalvel, o entendimento desse tema to prximo de ns, tofugidio e
desafiante requer sempre a exposio dos estudos edescobertas que
foram alcanados e postos em prtica. Requer,ainda, busca de coerncia
de linguagem entre disciplinas e teoriasdistintas e entre mtodos
quantitativos e qualitativos, exploratrios,descritivos e
analticos.
Nada supera, porm, o esforo de articulao com a vida,identificada
aqui como o mundo da cultura, dos direitos humanos,da lei, dos
movimentos sociais e dos servios sociais e de ateno sade. Neste
mundo da vida, buscamos os elementos paracompreender e superar.
Sublinhamos que a reflexo sobre a interdisciplinaridade
emultiprofissionalidade no campo da praxis violncia e sade no uma
imposio externa e sim exigncia epistemolgica intrnsecae essencial.
Sem pretender esgotar esta reflexo metodolgica,julgamos importante
ressaltar que o princpio da cooperao central e deve prevalecer
sobre a hierarquia das disciplinas, acompetio institucional e a
oposio entre teoria e prtica. Ao selidar com o tema da violncia, s
se alcanar legitimidade atravsda argumentao num coro polifnico e
dialgico.
O presente texto deve ser relativizado, j que se apoia
empreocupaes acadmicas. A violncia, antes de ser um
problemaintelectual, uma questo da praxis scio-poltica. Desse
pontode vista, requer a busca social das condies que a engendram.O
contrrio da violncia no a no-violncia, a cidadania e avalorizao da
vida humana em geral e de cada indivduo nocontexto de seu grupo.
Jean Claude Chesnais, j citado nestetrabalho, ao estudar dois
sculos cie violncia na Europa, mostraque as variveis fundamentais
da significativa diminuio dacriminalidade, da delinqncia e das
mortes violentas no berodo Ocidente foram as lutas dos
trabalhadores por melhores condi-es de vida e maiores direitos
associadas institucionalizaoda educao formal e do Estado
democrtico.
verdade que muito se poderia discutir ainda sobre
outrasdisciplinas fundamentais que abordam a violncia, como a
criminologia
-
e o direito criminal, por exemplo. No temos flego para
tanto.Limitamo-nos tentativa de mostrar que caminhos podem
sertraados e trilhados a partir da colaborao necessria entre ostrs
campos indicados.
Seja como for, qualquer esforo interdisciplinar s tem sentidono
terreno prtico, onde os profissionais de sade possam
somarcolaboraes interinstitucionais e intersetoriais e buscar apoio
dasociedade civil.
Num mbito mais restrito, fundamental o dilogo entre asade pblica
e os servios mdicos, clnicos e de emergncia.No que diz respeito s
relaes da sade com outros setores, asaes coletivas demandam
entendimento com a educao, osservios sociais, a justia, a segurana
pblica, o ministrio pblico,o poder legislativo e, sempre, com os
movimentos sociais.
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