-
estudos avanados 26 (75), 2012 355
Luiz Gama,contemptor de nossas falsas elites
Fbio Konder Comparato
Durante muito tempo, historiadores e socilogos consideraram ter
havi-do um claro contraste entre a escravi-do de africanos nos
Estados Unidos e no Brasil. Enquanto l os escravos fo-ram tratados
cruelmente, aqui os cativos receberam tratamento benigno, seno
francamente protetor.
A meu ver, na origem dessa suposta contradio de atitudes,
encontramos uma diferena radical de mentalidades. Os americanos no
costumam dissimular suas convices, e dizem francamente o que
pensam. Ns, ao contrrio, timbra-mos em proclamar nossos bons
senti-mentos em relao aos pobres e infelizes.
Sob esse aspecto, encarnamos per-feio o poeta fingidor de
Fernando Pes-soa. Fingimos to completamente, que chegamos por fim a
nos convencer de nossa ndole reconhecidamente com-passiva e
humanitria, como afirmou o autor do nico tratado jurdico sobre a
escravido brasileira.1 Alis, na Expo-sio Internacional de Paris de
1867, o nosso governo informava, oficialmente, que os escravos so
tratados com hu-manidade e so em geral bem alojados e
alimentados... O seu trabalho hoje moderado... ao entardecer e s
noites eles repousam, praticam a religio ou v-rios
divertimentos.2
Nesse contexto nacional de perma-nente autoelogio coletivo, a
personali-dade de Luiz Gama, retratada neste livro muito bem
organizado pela professora Lgia Fonseca Ferreira, aparece como
re-almente excepcional. O menino negro,
vendido como escravo pelo prprio pai quando tinha dez anos,
tendo aprendi-do a ler e escrever somente aos dezessete anos,
tornou-se um intelectual apurado e o maior advogado de escravos que
este pas conheceu. Praticamente sozinho, logrou livrar do cativeiro
ilegal mais de quinhentos negros fato sem preceden-tes na histria
mundial da advocacia. Mas, sobretudo, Luiz Gama, muito mais do que
qualquer abolicionista brasileiro, no hesitou em desmascarar pela
im-prensa o grande instrumento de con-trapoder da poca a falsidade
de nossas pretensas elites.
Gama escolheu como principais alvos de seus ataques
desmascaradores os dois grupos que mais se distinguiram no
tris-
FERREIRA, L F. Com a palavra, LuizGama Poema, artigos, cartas,
mximas.
So Paulo: Imprensa Oficial, 2011.
-
estudos avanados 26 (75), 2012356
te papel de legitimar a escravido negra: os clrigos e os
magistrados.3
J no sculo XVI, os jesutas de An-gola distinguiram-se na
coordenao do trfico negreiro de Angola para o Bra-sil. ordem de
cessao desse comrcio de carne humana, baixada pelo Geral da
Companhia em 1590, os padres de An-gola responderam que no
escanda-loso de pagar as nossas dvidas em escra-vos, pois eles so a
moeda corrente no pas, assim como o ouro e a prata o so na Europa e
o acar no Brasil.4
No curso dos sculos seguintes, v-rias ordens religiosas passaram
a possuir grandes fazendas, onde acumulavam mi-lhares de escravos.
Em algumas delas, instituram-se criatrios de escravos. O
norte-americano Thomas Ewbank, que visitou o Brasil em meados do
sculo XIX, informou que num grande esta-belecimento que a ordem
beneditina possua na Ilha do Governador, no Rio, numerosas geraes
de rapazes e moas de cor so l criadas at terem idade su-ficiente
para serem enviadas ao trabalho nas propriedades do interior.5
Na verdade, os escravos eram tam-bm numerosos dentro dos prprios
conventos de frades e freiras. Em mea-dos do sculo XVIII, no
Convento do Desterro da Ordem das Suplicantes, em Salvador, 75
religiosas eram servidas por 400 escravas.6
Fato que a Igreja Catlica no ma-nifestou, at as vsperas do 13 de
maio, o menor empenho pela abolio da es-cravatura.
Ao ser promulgada a Lei do Ven-tre Livre em 1871, D. Pedro Maria
de Lacerda, bispo do Rio de Janeiro, em linguagem retorcida, fez
questo de se pronunciar contra a abolio total e ime-diata. Os
revolucionrios que profanem
o nome da liberdade, escreveu ele em carta pastoral. Ns, porm,
mostremos que por ela, quando justa, como em nos-so caso, sabemos
fazer algum sacrifcio, principalmente sendo este compensado por bem
de ordem mais elevada, sem excluso dos bens materiais e
pecuni-rios. No Par, na mesma ocasio, o bis-po d. Antonio de Macedo
Costa dirigiu enrgico protesto contra aquela Lei ao presidente da
provncia, arguindo que se tratava de violao dos direitos da Igreja
por uma medida irregular e antican-nica.7
Quanto aos magistrados, as providn-cias de justia que deles
podiam esperar os cativos eram praticamente nulas; no s pelo velho
costume da corrupo, mas tambm por serem eles, quase sem exceo,
proprietrios de escravos.
A corrupo geral da Justia no Brasil foi atestada pela maior
parte dos viajan-tes estrangeiros.
No relato de sua viagem ao Rio de Janeiro e a Minas Gerais,
Saint-Hilaire observou: Em um pas no qual uma longa escravido fez,
por assim dizer, da corrupo uma espcie de hbito, os magistrados,
libertos de qualquer esp-cie de vigilncia, podem impunemente ceder
s tentaes.8
No mesmo sentido, John Luccock: Na realidade parece ser de regra
que no Brasil toda a Justia seja comprada. Esse sentimento se acha
por tal forma arrai-gado nos costumes e na maneira geral de pensar,
que talvez ningum o con-sidere danoso (a tort); por outro lado,
protestar contra a prtica de semelhante mxima pareceria no somente
ridcu-lo, como serviria apenas para provocar a completa runa do
queixoso.9
E Charles Darwin, por ocasio da estadia do Beagle em nosso pas:
No
-
estudos avanados 26 (75), 2012 357
importa o tamanho das acusaes que possam existir contra um homem
de posses, seguro que em pouco tempo ele estar livre. Todos aqui
podem ser subornados.10
Compreende-se, assim, o grau de destemor e pertincia,
demonstrados por Luiz Gama, quando se ops sem meias palavras, em
mais de uma ocasio, a juzes pusilnimes e servis diante de se-nhores
de escravos.11
Ao assim proceder, seguiu ele as li-es de Ccero no De Oratore,
sobre a conduta e as qualidades intrnsecas da-quele que pleiteia no
foro ou na tribu-na poltica. Em primeiro lugar, o que o grande
romano chamou de acumen, vale dizer a argcia em argumentar. Em
segundo lugar, a diligentia, ou seja, o zelo e aplicao constantes
na defesa das causas confiadas ao seu patrocnio. Alm disso, o
probare, ou destreza em provar a verdade, aliado ao conciliare, ou
arte de atrair simpatia. Por fim, o movere, isto , a capacidade de
suscitar a emoo no esprito dos ouvintes.
Vamos, portanto, ler os libelos conti-dos neste livro, como se
estivssemos a ouvir o maior defensor de escravos que este pas
jamais conheceu.
Notas
1 Dr. Agostinho Marques Perdigo Ma-lheiro, A Escravido no Brasil
Ensaio Histrico-Jurdico-Social. Rio de Janei-ro: Typographia
Nacional, 1866. t.II, p.61 e 114.
2 Citado por Celia Maria Marinho de Azevedo, Abolicionismo:
Estados Unidos e Brasil, uma histria comparada (scu-lo XIX). So
Paulo: Annablume, 2003. p.63.
3 Em relao aos primeiros, leia-se, nas p.95 e ss., o artigo
Apontamentos Bio-
grficos, publicado no Radical Paulis-tano, onde descrita
sarcasticamente a pessoa de um bispo diocesano de So Paulo. Quanto
aos magistrados, leiam--se todos os artigos de jornal reproduzi-dos
nas p.101 a 129.
4 Cf. Histria da Igreja no Brasil. Petr-polis: Vozes, 1979. t.2,
p.200.
5 Thomas Ewbank, Vida no Brasil. So Paulo: Editora da
Universidade de So Paulo; Livraria Itatiaia, 1976. p.102.
6 Cf. Pedro Calmon, Histria social do Brasil. So Paulo:
Companhia Editora Nacional, s. d. 1 t., p.74.
7 Histria da Igreja no Brasil. Petrpolis: Vozes, 1980. t.II/2,
p.277-8.
8 Auguste de Saint-Hilaire, Viagem pelas provncias do Rio de
Janeiro e Minas Ge-rais. So Paulo: Editora da Universida-de de So
Paulo; Livraria Itatiaia, 1975. p.157.
9 Notas sobre o Rio de Janeiro e partes me-ridionais do Brasil,
So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo; Livraria Itatiaia,
1975. p.321.
10 O Dirio do Beagle. Editora UFPR, 2006. p.100.
11 Leia-se o artigo O Novo Alexandre, s p.121 e ss.
Fbio Konder Comparato professor em-rito da Faculdade de Direito
da Universi-dade de So Paulo, doutor Honoris Causa da Universidade
de Coimbra.@ [email protected]
O texto foi publicado originalmente como prefcio obra
resenhada.
-
estudos avanados 26 (75), 2012358
Ilus
tra
o A
cerv
o Fr
ance
Pre
sse
Lavagem de diamantes, Minas Gerais, 1812. (John Mawe, London,
1812).