Copyright do texto e das ilustrações© 2003 Cressida Cowell Publicadoinicialmente na Grã-
Bretanha em 2003.
título original
How to Train Your Dragon
tradução Heloisa Prieto
copidesque Mariana Rimoli
revisão
Liciane Corrêa
Maria da Glória Carvalho
adaptação de capa e projeto gráficoJulio Moreira
tratamento e adaptação dasilustrações ô de casa
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOSEDITORES DE LIVROS, RJ
C915c Cowell, Cressida
Como treinar o seu dragão / [texto eilustração] Cressida Cowell;tradução de Heloisa Prieto. —
Rio de Janeiro : Intrínseca, 2010.
Tradução de: How to Train YourDragon Continua com: Como serum pirata ISBN 978-85-98078-
71-7
1. Literatura infantojuvenil. I.
Prieto, Heloisa. II. Título.
10-0143. CDD: 028.5
CDU: 087.5
[2010}
Todos os direitos desta ediçãoreservados à
Editora Intrínseca Ltda. Rua dosOitis, 50 22451-050 Gávea Rio deJaneiro — RJ Tel./Fax: (21)
3206-7400 www.intrinseca.com.br
Nota do Autor
Os dragões existiam quando eu eramenino.
Havia os grandes e austerosdragões celestes, que se aninhavamno
alto dos rochedos como se fossempássaros gigantescos eassustadores. Os
dragões pequeninos, marrons, decauda curta, que perseguiam ratos e
camundongos em bandos bemorganizados. Os Dragões do Mar,
absurdamente imensos, vinte vezes
maiores que uma baleia-azul, que
matavam só por diversão.
Você precisará acreditar em minhaspalavras, pois os dragões estão
desaparecendo tão rapidamente quelogo estarão extintos.
Ninguém sabe o que estáacontecendo. Eles estão voltandoaos mares
de onde vieram, sem deixar umosso, uma garra, um indícioqualquer para
que os humanos do futuro possamrecordar-se deles.
Então, para que essas criaturasexcepcionais não sejam esquecidas,eu
lhes contarei a verdadeira históriade minha infância.
Eu não fui o tipo de garoto capaz detreinar um dragão apenas com
um erguer de sobrancelhas. Eu nãoera um herói nato. Precisei meesforçar
muito. Esta é a história de como me
1. PRIMEIRO,CAPTUREO SEU DRAGÃO
Há muito tempo, na selvagem eventosa Ilha de Berk, um vikingpequenino
com nome comprido estava de péna neve.
Soluço Spantosicus StrondusTerceiro, a Grande Esperança e o
Herdeiro da Tribo dos HooligansCabeludos, sentia-se levemente
enjoado
desde que despertara pela manhã.
Dez garotos, incluindo Soluço,esperavam se tornar membros daTribo
após passarem no Programa deIniciação em Dragões. Elesestavam de pé
na pequena praia deserta, no lugarmais vazio da desolada ilha. Caíamuita
neve.
— PRESTEM ATENÇÃO! —gritou Bocão Bonarroto, o soldado
encarregado de fazer a Iniciação.Esta será nossa primeira operação
militar, Soluço será o comandantedo grupo.
— Ah, o So-luço, não — grunhiramBafoca de Maluquício e a maioria
dós garotos. — Não pode colocá-lono comando, senhor, ele é umINUTIL.
Soluço Spantosicus StrondusTerceiro, a Grande Esperança e o
Herdeiro da Tribo dos HooligansCabeludos, limpou o nariz namanga da
roupa, desanimado. Ele afundou umpouco mais na neve.
— QUALQUER UM seria melhorque Soluço — zombou Malvado
Melequento. — Até mesmo Perna-de-peixe.
Perna-de-peixe tinha um estrabismoque o deixava quase cego e era
alérgico a répteis.
— SILÊNCIO! — rugiu BocãoBonarroto. — Quem mais abrir aboca vai
comer moluscos no almoço naspróximas TRÊS SEMANAS!
O silêncio foi imediato. Moluscosparecem minhoca, ou meleca, e são
bem menos saborosos que qualquerum dos dois.
— Soluço será o responsável, eisso é uma ordem! — gritou Bocão,que
não sabia falar mais baixo.
Ele era um gigante de dois metroscom um brilho alucinado no olhar e
uma barba que parecia fogos deartifício explodindo. Apesar do frio
extremo, usava bermudas e umcolete de couro de veado quedeixava
entrever sua pele vermelho-lagostae seus enormes músculos. O viking
trazia uma tocha flamejante na mãogigantesca.
— Soluço será o líder, embora eleseja, eu admito, completamente
inútil, porque o garoto é o filho doCHEFE, e é assim que funcionaentre nós,
vikings. Onde vocês pensam queestão? Na REPUBLICAROMANA? De
qualquer modo, esse, hoje, será omenor de seus problemas. Vocêsestão
aqui para provar sua capacidade dese tornarem Heróis Vikings. Essa é
uma antiga tradição da Tribo dosHooligans. Vocês precisam... —
Bocão fez
uma pausa, bem teatral. —PRIMEIRO, CAPTURAR 0 SEUDRAGÃO!
“Com mil moluscos!”, pensouSoluço.
— Nossos dragões são o que nosdiferencia! — gritou Bocão. —
Humanos treinam gaviões paracaçar e cavalos para carregá-los.Apenas os
HERÓIS VIKINGS se atrevem adomar as criaturas mais selvagens e
perigosas
da face da Terra.
Bocão cuspiu na neve com arsolene.
— O Teste de Iniciação em Capturade Dragões tem três etapas. A
primeira, e mais perigosa, avaliasua coragem e habilidade deassalto. Se
querem entrar na Tribo dosHooligans, primeiro vocêsprecisam capturar os
seus dragões. E é POR ISSOprosseguiu Bocão, falando bem alto— que eu os
trouxe ao cenário adequado. Vejamo Rochedo do Dragão Selvagemcom os
próprios olhos.
Os dez garotos viraram a cabeçapara trás. O rochedo se elevavadiante
deles, sombrio e sinistro. No verão,mal se podia vê-lo, pois dragões de
todos os formatos e tamanhos se
empoleiravam por ali, grunhindo,
mordendo e produzindo umacacofonia, com ruídos que seespalhavam por
toda a região de Berk.
No inverno, porém, os dragõeshibernavam e o rochedo caía no
silêncio, com exceção de algunsroncos abafados e lúgubres. Soluçosentia
nas sandálias as vibrações sob seuspés.
— Agora — disse Bocão —, vocêsrepararam naquelas quatro cavernas
que ficam na metade do rochedo,agrupadas mais ou menos noformato de
uma caveira?
Os meninos concordaram com umaceno de cabeça.
— Dentro da caverna que seria oolho direito da caveira está acreche
dos dragõezinhos, onde, NESTEEXATO MOMENTO, três mil
filhotes de dragão
estão hibernando, em suas últimassemanas de inverno.
— OOOOOOOH! — murmuram osmeninos, animados. Soluço engoliu
em seco. Ele sabia muito maissobre dragões que qualquer outrapessoa
ali. Desde pequeno era fascinadopor essas criaturas. Passara horas
observando-as, escondido. (Osobservadores de dragões eramconsiderados
nerds, por isso mantinham suasatividades em segredo.) E tudo oque
Soluço aprendera sobre dragões lhedizia que entrar em uma cavernacom
três mil deles seria loucura.
Mas ninguém parecia muitopreocupado com isso.
— Em poucos minutos vou quererque vocês escolham uma dessas
cestas e comecem a escalar orochedo — comandou Bocão. —
Depois que
tiverem passado pela entrada dacaverna, ninguém os ajudará. Sougrande
demais para me espremer pelostúneis que levam à creche dedragões.
Vocês entrarão na cavernaSILENCIOSAMENTE, E issotambém se aplica a
você, Espinha-de-porco, a menosque queira ser a primeira refeição
primaveril de três mil dragões
famintos.
HÁ! HÁ! HÁ! HÁ!
Bocão riu muito de sua própriapiada, depois continuou:
— Dragões desse portenormalmente são inofensivos aosseres
humanos, mas em grande númeropodem agir como piranhas. Não
sobraria nada de ninguém, nemmesmo de um gordinho como você,
Espinha-de-porco. Só restariam
uma pilha de ossos e seu capacete.HÀ! HÀ!
HÀ! HÀ! Então... Vocêscaminharão SILENCIOSAMENTEpela caverna e cada
garoto vai roubar UM dragãoadormecido. Ergam o dragão darocha
CUIDADOSAMENTE e coloquemo bicho dentro de sua cesta. Algumadúvida
até aqui? Ninguém disse nada. .
— Se por acaso alguém despertar o
dragão, e é preciso ser
ABSURDAMENTE IDIOTA parafazer isso, corram a toda avelocidade para a
entrada da caverna. Os dragões nãogostam de frio, e a neveprovavelmente
os impedirá de seguir seus rastros.
“Provavelmente?”, pensou Soluço.“Ah, claro, isso é animador.”
— Sugiro que dediquem algumtempo a escolher o seu dragão. É
importante apanhar um bicho queseja do tamanho certo. Ele vaipescar e
caçar veados para vocês. Vãoescolher o dragão que os conduziráà batalha
futuramente, quando vocês foremmais velhos e tiverem se tornado
Guerreiros da Tribo. Além disso,vocês querem um animalimpressionante,
então, grosseiramente, a regra é:peguem o maior dragão que couber
na
cesta. Não demorem MUITO tempolá dentro...
“Demorar???”, pensou Soluço.“Dentro de uma caverna com trêsmil
DRAGÕES adormecidos?”
— Não preciso lhes dizer —prosseguiu Bocão, animado — quese for
para voltar sem dragão nem vale apena chegar até aqui. Todos os que
FALHAREM nesse teste serãoimediatamente exilados. A Tribodos Hooligans
Cabeludos não aceitaFRACASSADOS. Só os maisfortes permanecem.
Com tristeza, Soluço fitou ohorizonte. Só viu neve e mar.
O exílio também não lhe parecianem um pouquinho promissor.
— CERTO! — disse Bocãodepressa. — Cada um pegue umacesta para
enfiar o seu dragão e vamos emfrente.
Os garotos correram para apanharas cestas, conversando felizes e
animados.
— Vou pegar um dragão do tipoPesadelo Monstruoso com garras
extralongas, porque eles são muitoassustadores — gabou-seMelequento.
— Ah, cale a boca, Melequento,você não pode fazer isso — disse
Punho Rápido. — Só Soluço podeter um dragão PesadeloMonstruoso, você
precisa ser o filho do Chefe paraisso.
O pai de Soluço era Stoico, oImenso — o temível Chefe da Tribodos
Hooligans Cabeludos.
— SO-LUÇO? — disseMelequento, com ironia.
— Se ele for tão inútil quanto é nojogo de Batebolada, será uma sorte
se conseguir um Dragão Comum.
O Dragão Comum era uma feraobediente, mas sem charme algum.
— CALEM A BOCA E ENTREMNA FILA, SEUS MISERÁVEIS! —gritou Bocão.
Os garotos se atropelaram parachegar a seus lugares, as cestas nas
costas, e prestaram atenção. Bocãopercorreu a forma e acendeu com as
poderosas chamas que carregava astochas que cada menino erguiadiante
de si.
— DAQUI A MEIA HORAVOCÊS SERÃO GUERREIROSVIKINGS, COM UM FIEL
RÉPTIL A SEU LADO... OUESTARÃO TOMANDO CHÁCOM 0 DEUS ODIN EMVALHALA,
0 CAMPO DOS GUERREIROSMORTOS, COM 0 TRASEIROMARCADO POR DENTES DE
DRAGÃO! — gritou Bocão comseu horrível entusiasmo.
Bocão continuou berrando:
— MORTE OU GLÓRIA!
— MORTE OU GLÓRIA! —gritaram de volta fanaticamente oitogarotos.
“Morte...”, pensaram Soluço ePerna-de-peixe, com tristeza.
Bocão fez uma pausa dramática,levando a corneta de chifre aos
lábios.
“Acho que este é o pior momentoda minha vida ATÉ AGORA”,
pensou
Soluço, enquanto esperava pelotoque da corneta. “E se elescomeçarem a
gritar ainda mais alto vamosacordar os dragões antes mesmo de
começarmos a capturá-los.”
Bocão tocou a corneta:
FOOOMMMÜ!
2. DENTRO DACRECHEDE DRAGÕES
Na certa você já deve ter percebidoque Soluço não era um HeróiViking por
natureza.
Para começar, ele não tinha CARAde herói. Um sujeito como
Melequento, por exemplo, alto,musculoso, coberto de tatuagens de
caveiras e com um começo debigode, levava mais jeito. O bigodeconsistia
em alguns fiozinhos amarelosespalhados sobre o lábio superior,e era
muito desagradável de se ver, masmesmo assim Melequento era
impressionantemente másculo paraum garoto com menos de 13 anos.
Já Soluço era do tipo miúdo e tinhauma cara fácil de ser esquecida.
Ele TINHA cabelo de herói: ruivo,
que ficava espetado para cima pormais
que tentasse abaixá-lo molhandocom água do mar. Só que ninguémvia
isso, porque a cabeleira ficavaescondida debaixo do capacete amaior parte
do tempo.
Ninguém jamais escolheria Soluçopara ser o herói desta história no
meio daqueles dez garotos.Melequento era bom em tudo e um
líder nato.
Bafoca de Maluquício era tão altoquanto o pai e gostava de fazercoisas
engraçadas, como soltar pum noritmo do Hino Nacional de Berk.Soluço
era um garoto absolutamentenormal, magrinho, sardento, do tipoque
passa despercebido no meio damultidão.
Então, quando Bocão tocou sua
corneta e saiu de vista a fim de
encontrar uma pedra confortávelpara se sentar e comer seusanduíche de
tomate com mexilhão, Melequentopôs Soluço de lado e assumiu a
liderança.
— O.K., escutem só, rapazes — elesussurrou de um jeito ameaçador.—
EU estou no comando, não o Inútil.E quem se opuser leva um soco do
Bafoca de Maluquício.
— Ugh... — grunhiu Bafoca deMaluquício, batendo os punhos de
satisfação.
Bafoca era campeão de chutelateral, um garoto enorme, quase um
gorila.
— Acabe com ele, Bafoca, mostreo que eu quero dizer...
Bafoca ficou feliz em obedecer. Eledeu um empurrão em Soluço que o
deixou estatelado no chão, a caraenfiada na neve.
— Prestem atenção! — sussurrouMelequento.
Os meninos desviaram os olhos deBafoca e de Soluço, atentos. —
Amarrem-se uns aos outros. Omelhor alpinista vai na frente...
— Bem, claro que este é VOCÊ,Melequento — disse Perna-de-peixe. —
Você é o melhor em tudo, não émesmo?
Melequento olhou desconfiado paraPerna-de-peixe. Era difícil dizer se
ele estava caçoando de Melequentoou não, por causa do estrabismo.
— Está certo, Perna-de-peixe. EUSOU 0 MELHOR, — E, para ocaso de
ele ter caçoado, Melequento gritou:— Acabe com ele, Bafoca!
Enquanto Bafoca empurrava Perna-de-peixe para junto de Soluço na
neve, Melequento, bancando ochefão, ordenava a todos que se
mantivessem juntos.
Soluço e Perna-de-peixe foram osúltimos a ser amarrados, logodepois
de Bafoca, todo alegre e triunfante.
— Ah, ótimo! — murmurou Perna-de-peixe. — Vou entrar agora numa
caverna cheia de répteisdevoradores de seres humanosamarrado a oito
maníacos alucinados.
— Se é que vamos chegar até a
caverna... — disse Soluço,nervoso,
olhando para o rochedo escuro.
Soluço prendeu a tocha entre osdentes, para deixar as mãos livres,e
começou a subir atrás dos outros.
***
Era uma subida perigosa. As rochasestavam escorregadias por causa da
neve, e os outros meninos pareciamanimados demais, subindo com uma
rapidez exagerada. Ao alcançardeterminado ponto, Perdidotropeçou e caiu
— felizmente em cima de Bafoca,que o apanhou pelas calças e ocolocou
de volta na rocha antes que elederrubasse os outros colegas.
Quando eles finalmente alcançarama entrada da caverna, Soluço
olhou rapidamente para baixo,avistando o oceano que batia nasrochas, e
engoliu em seco.
— Desatem as cordas! — ordenouMelequento, os olhos arregaladosde
animação só de pensar nos perigosque viriam. — Soluço entraráprimeiro
na caverna porque ELE é o filho doChefe.... — disse, com raiva. — Ese
algum dragão ESTIVER acordado,ele será o primeiro a saber! Depoisque
adentrarmos na caverna, será cadaum por si! Só os mais fortesvencerão...
Embora não fosse um dos típicosbrutamontes desmiolados da Tribo,
Soluço também não era uma“florzinha”. Sentir medo é diferentede ser
covarde. Talvez ele f o s s e tãocorajoso quanto o restante doscolegas, porque
saiu para capturar um dragão,mesmo sabendo como são essas
criaturas. E,
depois de ter escaladoperigosamente até a boca dacaverna, e descoberto
que lá dentro havia um túnel longoe tortuoso, ainda assim eleprosseguiu,
apesar de não gostar nem um poucode túneis compridos e tortuososcom
dragões ao fim.
O túnel era úmido e frio. Às vezeso teto se elevava e os meninos
conseguiam percorrer o caminho depé. Em seguida se fechava,
transformando-se num buracoestreito e claustrofóbico por ondesó podiam
passar encolhidos, rastejando,segurando as tochas com a boca.
Depois de longos dez minutoscaminhando e rastejando até ocentro do
rochedo, o fedor de dragão — umcheiro salgado de alga e de cabeçade
peixe podre — foi ficando cada vezmais forte, até que finalmente setornou
intolerável, e o túnel se abriu parauma caverna imensa.
Ali havia mais dragões do queSoluço imaginava existir.
Os dragões eram de todas as corese tamanhos possíveis e incluíam
todas as espécies das quais Soluçojá ouvira falar, além de outras queele
não conhecia.
Soluço começou a suar enquantoolhava ao redor, percebendo as
pilhas de animais, encarapitadosem todo canto; havia até mesmodragões
pendurados de cabeça para baixo,como morcegos gigantes. Estavamtodos
profundamente adormecidos, amaioria roncava em uníssono. Oronco era
tão alto e grave que pareciapenetrar diretamente no corpo de
Soluço e
vibrar em suas entranhas,queimando-lhe o estômago e astripas, forçando
seu coração a bater no mesmo pulsolento dos dragões.
Se uma, apenas u m a daquelasinúmeras criaturas despertasse, ela
daria o alarme para as outras, e osgarotos teriam uma morte horrenda.
Soluço já vira um veado seaproximar muito do Rochedo doDragão
Selvagem e ser destroçado emminutos.
Ele fechou os olhos.
— NÃO vou pensar nisso —murmurou. — NÃO MESMO.
Nenhum dos meninos pensavanaquilo.
A ignorância é muito útil nessassituações. Os olhos deles se
arregalavam de animação enquantopercorriam a caverna, as mãos
tapando o nariz para evitar o cheiro
ruim, em busca do maior dragãoque
coubesse na cesta.
Eles deixaram as tochas numapilha, à entrada da caverna. O lugarjá
era suficientemente iluminado pelosVaga-lumes, que eram imensos,
vagarosos, de corpo manchado ebrilhante, e emitiam umafluorescência
opaca, como se fossem lâmpadasde baixa voltagem. E os Lança-
chamas
soltavam pequenos jatos declaridade extra, que reluziam aqui eacolá, à
medida que inspiravam eexpiravam.
Como era previsível, a maioria dosmeninos dirigiu-se aos piores
dragões possíveis.
Melequento tinha anunciado quecapturaria um dragão traiçoeiro do
tipo Pesadelo Monstruoso, e sorriu
com cinismo para Soluço enquanto
fazia isso. Melequento era filho deBarrigão Caído de Cerveja, oirmão
caçula de Stoico, o Imenso.Pensava em se livrar de Soluço emalgum
momento no futuro, de modo queele, Melequento, se tornasse Chefeda
Tribo dos Hooligans Cabeludos. Eum Chefe cruel e aterrorizantecomo
Melequento pretendia ser deviapossuir um dragão propriamente
assustador.
Espinha-de-porco e Bafoca deMaluquício se meteram numasonora
discussão aos sussurros para verquem ficaria com o Gronkel, umbruto de
couraça forte, com presas quepareciam facas de cozinha saindodo
focinho, tão numerosas que ele não
conseguia manter a boca fechada.
Bafoca foi o vencedor, mas depoisdeu um jeito de derrubar o bicho
enquanto tentava enfiá-lo no cesto.A couraça e as garras do dragão
produziram um ruído horrivelmentealto quando ele despencou no chãoda
caverna.
O Gronkel abriu seus malignosolhos de crocodilo. Todosprenderam a
respiração.
O Gronkel fixou o olhar à frente.Era difícil saber, por causa de seus
olhos inexpressivos, se ele estavadesperto ou adormecido. Soluço
percebeu, em meio à agonia e aosuspense, que a pele fina daterceira
pálpebra do animal ainda estavaabaixada.
E assim permaneceu por algunssegundos de congelar o coração até
que...
O dragão, devagar, fechou de novoa pálpebra superior.
Para surpresa de todos, nenhumoutro dragão despertou. Algunsdeles
se movimentaram letargicamenteantes de se aninharem outra vez.Mas a
maioria das criaturas se encontravaem tamanho estupor que mal se
movia.
Soluço soltou o ar lentamente.Talvez aqueles dragões estivessemtão
mortos para o mundo que nada osdespertaria.
Ele engoliu em seco, fez uma precea Loki, o padroeiro das
empreitadas duvidosas, e avançoucom cautela para capturar o dragãoque
lhe parecia mais inconsciente, demodo que pudesse sair daquelepesadelo
o mais depressa possível.
***
Pouca gente sabe que quanto maisprofundamente um dragão dorme,mais
frio fica seu corpo.
É até mesmo possível que umdragão entre em Coma por
Adormecimento, no qual fiquesupergelado, sem pulso, respiraçãoou
batimentos cardíacos perceptíveis.
Dragões podem ficar nesse estado
durante séculos, e somente umespecialista altamente qualificadopoderia,
só de olhar, determinar se estãovivos ou não.
Mas um dragão acordado, oulevemente adormecido, é de fatomuito
quente, como um pãozinho saído doforno.
Soluço encontrou um dragão queera quase do tamanho certo e
razoavelmente frio, e o enfiou nacesta o mais rápida ecuidadosamente
possível. Era um Dragão Comum,mas, naquele momento, Soluço nãodava
a menor importância ao fato. Erabem pequeno, embora fosse
surpreendentemente pesado.
— EU CONSEGUI! EUCONSEGUI! EU CONSEGUI! —Soluço comemorava
consigo mesmo.
Pelo menos não seria o únicogaroto da escola que não tinha um
dragão. Parecia que todos haviamconseguido uma criatura e estavam
agora saindo de fininho. Todos,menos...
Perna-de-peixe, que já estava todocoberto de brotoejas vermelho-vivo,
com uma coceira intensa, e naqueleexato momento se aproximava deuma
pilha de filhotes enroscados uns nos
outros, caminhando ruidosamentena
ponta dos pés.
Perna-de-peixe era um gatuno aindapior que Bafoca.
Soluço ficou paralisado:
— Não faça isso, Perna-de-peixe.POR FAVOR, não se mova — ele
sussurrou.
Mas Perna-de-peixe já estavacansado das ironias, provocações e
risadinhas de Melequento. Elequeria capturar um dragão bembacana
para conquistar o respeito dosgarotos.
O menino era tão vesgo que malconseguia enxergar o monte de
dragões. Com os olhoslacrimejando e se coçandoviolentamente, ele
esticou a mão devagar em direçãoao dragão de baixo, pegou a pernadele e
com delicadeza... puxou.
A pilha inteira despencou numamistura furiosa de pernas, asas e
orelhas. Todos os meninos dacaverna prenderam a respiração,
horrorizados.
A maioria dos filhotes sacudiu acauda e bateu no vizinho antes de
voltar a adormecer.
Um animal maior que os outrosabriu os olhos e piscou algumasvezes.
Soluço reparou, com enorme alívio,que a terceira pálpebra ainda
estava fechada.
Os garotos esperaram que os olhosse fechassem.
Foi quando Perna-de-peixeespirrou.
Quatro espirros GIGANTESCOSque ecoaram nas paredes dacaverna.
O filhote grande de dragão ficouolhando para o vazio, paralisadocomo
se fosse uma estátua.
Mas mui-to levemente um ruídoparecido com um ronronarassustador
começou a sair de sua garganta.
E mui-to lentamente...
...a terceira pálpebra se abriu.
— Ih! Caramba! — sussurrouSoluço.
A cabeça do filhote virou-serepentinamente para encarar Perna-de-
peixe, seus olhos amarelos e felinosse movendo até focalizar o menino.Ele
abriu as asas completamente e seesticou, como se fosse uma pantera
pronta a saltar. Então abriu a bocaaté soltar a língua bipartida e....
— C-O-R-R-A !!! — gritou Soluço,agarrando o braço de Perna-de-peixe e
carregando-o para longe.
Os garotos correram para o túnelque levava à saída. Perna-de-peixe
e
Soluço foram os últimos a chegar.
Não havia tempo para apanhar astochas, então todos correram no
escuro total. A cesta com o DragãoMarrom Básico sacolejava nascostas de
Soluço.
Eles tinham dois minutos devantagem, porque levava um tempoaté o
primeiro dragão acordar todos os
outros. Mas Soluço podia ouvir um
rugido furioso e o bater de asas àmedida que os animais começavama
lotar o túnel atrás dos garotos.
Ele correu um pouco mais rápido.
Os dragões conseguiam mover-semais depressa que os meninos
porque enxergavam bem no escuro,mas perderam tempo quando o túnel
se estreitou, porque precisavamdobrar as asas para passar por ali,
espremidos.
— Eu... não... tenho... um dragão...— disse sem fôlego Perna-de-peixe,
poucos passos atrás de Soluço.
— Esse — Soluço falou enquantose espremia na passagem estreita,
apoiado nos cotovelos — é oMENOR... ai !. . . dos problemas.Eles estão nos
alcançando!
— Sem... dragão... — repetiu
Perna-de-peixe, teimoso.
— Ah, PELO AMOR DE THOR!— murmurou Soluço.
Ele enfiou sua cesta nos braços dePerna-de-peixe e agarrou a vazia
que estava nas costas dele.
— Pegue o MEU, então. Espereaqui.
Soluço virou-se e voltou pelocorredor estreito, embora osrugidos
estivessem cada vez mais altos e
próximos dele.
— O QUE... VOCÊ... VAI...FAZER??? — gritou
Perna-de-peixe, agitando-sefreneticamente no mesmo lugar.
Soluço voltou do buraco outra vezalguns infinitos instantes depois.
Perna-de-peixe o agarrou pelobraço para ajudá-lo a se arrastar.
Dava para ouvir algo fungando deum jeito horrível, como se um
dragão entrasse na outra ponta da
passagem. Soluço atirou uma pedra
naquela direção e a criatura soltouum grito agudo, indignada.
Os garotos viraram no corredor e,de repente, conseguiram ver a luzna
extremidade do último túnel.
Perna-de-peixe foi primeiro, masbem na hora em que Soluço se
ajoelhava para segui-lo um dragãoo atingiu com a asa e guinchou.Soluço
bateu nele, que caiu de costas,dando espaço suficiente para que omenino
engatinhasse na direção da luz.Outro dragão — ou talvez o mesmo—
cravou as presas na perna deSoluço. O garoto estava tãodesesperado para
sair que arrastou o bicho com ele.
Assim que a cabeça e os ombros deSoluço surgiram na claridade,
Bocão chegou. Ele agarrou Soluço
por baixo dos braços e o arrancoudali,
os dragões lançando-se atrás dele.
— PULE! — gritou Bocão,enquanto nocauteava um dragãocom um
único soco de seu punho poderoso.
— Como assim, PULE?? — Soluçohesitou enquanto olhava para aqueda
vertiginosa até o mar.
— Não dá tempo de descer —
disse Bocão sem fôlego, batendoduas
cabeças de dragão uma contra aoutra e empurrando mais trêscabeças
com sua barriga gigantesca. —PULE!!!
Soluço fechou os olhos e saltou dorochedo.
Quando ele mergulhou no ar, odragão que estava preso em suaperna
abriu a boca com um som agudo e,
alarmado, saiu voando.
Soluço caía tão rápido que quandoalcançou o mar aquilo parecia
tudo, menos água. Era como setivesse batido em algo duro edoloroso, tão
frio que ele quase desmaiou.
Ele surgiu na superfície, surpresopor perceber que não tinha morrido,
e foi imediatamente coberto pelaágua esguichada com o peso deBocão
Bonarroto, que mergulhou quase aolado dele.
Guinchando furiosamente, osdragões saíram em revoada dacaverna e
atacaram os vikings que flutuavamno mar.
Soluço enfiou o capacete na cabeçaaté onde conseguia. Seguiram-se
barulhos horríveis de arranhõesquando as esporas dos bichosbateram no
metal. Outro dragão mergulhou na
água, silvando, bem em frente aSoluço.
Saiu voando de novo e soltou umberro quando sentiu como a águaestava
fria. Os dragões não gostavam devoar pela neve e, aliviado, Soluçoficou
olhando enquanto eles retornavampara o aquecido interior dacaverna, de
onde soltaram terríveis insultos emdragonês.
Bocão começou a tirar os meninosdo mar e a levá-los para cima das
rochas. Garotos vikings são ótimosnadadores, mas é difícil manter-se
flutuando quando se tem nas costasuma cesta contendo um dragão
aprisionado e apavorado. Soluçofoi o último a ser salvo — bem nahora,
pois ele já estava quase dormentede frio.
“Bem, pelo menos, não era aMORTE”, pensou Soluço enquanto
Bocão o pegava pelo pescoço pararesgatá-lo, quase fazendo com queele se
afogasse — mas certamente tambémnão era a GLORIA.
3. HERÓIS OU EXILADOS
Os garotos se equilibraram nospedregulhos escorregadios na pontada
praia e voltaram ao Caminho doLouco, a encosta de rochedo quehaviam
escalado algumas horas antes. Era
uma passagem estreita no meio do
precipício, repleta de rochaslargas. Eles tentavam se mover omais
rapidamente possível, mas é difícilser rápido quando se ficaescorregando
e caindo em imensas pedrascobertas de gelo, e por issoavançavam
penosamente devagar.
Um dragão que n ã o fora afastadopela neve veio guinchando
desfiladeiro
abaixo. Ele aterrissou nas costas deEspinha-de-porco e começou aatacá-
lo, cravando as presas no ombro dogaroto e enchendo os braços delede
arranhões vermelhos. Bocão bateuno focinho do dragão com o cabode seu
machado, e a criatura desistiu esaiu voando para longe.
Mas um bando de dragões o
substituiu, enchendo o desfiladeirocom
guinchos horríveis e estridentes,soltando fogo pelas ventas ederretendo a
neve ao redor, as garras abertas deum jeito ameaçador enquantodavam
rasantes.
Bocão parou, as pernas separadas,e girou seu grande machado duplo.
Ele lançou sua cabeça grande ecabeluda para trás, soltando um
grito
terrível, primai, que ecoou pelasencostas do desfiladeiro e fez comque os
pelos da nuca de Soluço searrepiassem como um ouriço-do-mar.
Sozinhos, os dragões tendem apossuir um saudável senso de
autopreservação, porém ficam maiscorajosos quando caçam em bando.
Eles sabiam agora que tinham avantagem de ser muito numerosos,
então
nem se preocuparam com o voo.Simplesmente avançavam sobre os
garotos.
Bocão então arremessou o machadoduplo.
Girando, a arma cruzou o ar cheiode flocos de neve. Ela atingiu o
maior dragão de todos, matando-oinstantaneamente, e continuouviajando
até aterrissar num monte de neve a
centenas de metros de distância e
sumir.
Isso fez com que os outros dragõesparassem para pensar. Alguns
deles trombaram com os outros napressa de sair voando para longedali,
ganindo feito cachorrinhos. Osoutros hesitaram, pairandoindecisos,
gritando ameaças mas se mantendodistantes.
— Perdi um bom machado grunhiuBocão. — Andem, garotos, eles
podem voltar! Soluço nãoprecisava ser encorajado paracontinuar
andando. Assim que saiu dodesfiladeiro e alcançou a terrapantanosa que
ficava logo adiante, ele disparouaos tropeços, de vez em quandocaindo
com a cara na neve.
Um pouco depois, quando Bocão
calculou que eles estavam a uma
distância segura do Rochedo doDragão Selvagem, gritou para queos
garotos parassem.
Muito cuidadosamente, ele contouas cabeças de novo, para conferirse
não tinha perdido alguém. Bocãopassara dez minutos desagradáveisde pé
na boca da caverna dos dragõespensando por que havia aquela
terrível
barulheira e como ele diria aStoico, o Imenso, que tinha perdidopara
sempre seu precioso filho eherdeiro.
Teria de usar uma frase cheia detato e sensibilidade, Bocão
imaginara, mas tato e sensibilidadenunca foram seu ponto forte, entãoele
levara cinco minutos para pensarem: “Soluço se deu mal. SINTO
MUITO.”
Depois passara os cinco minutosseguintes arrancando as barbas.
Por consequência, embora estivesseintimamente aliviado, ele não
estava de Bom Humor, e assim queconseguiu recuperar o fôlegoexplodiu
de raiva, enquanto os meninos,tremendo violentamente, faziamuma fileira
atrapalhada.
— NUNCA... em CATORZEANOS... eu encontrei um bando deINÚTEIS como
vocês. QUAL DE VOCÊS, SEUSMOLUSCOS IMPRESTÁVEIS,DESPERTOU OS
DRAGÕES????
— Fui eu — disse Soluço. O quenão era exatamente a verdade.
— Ah, isso é MARAVILHOSO —berrou Bocão —,MARAVILHOSO. Nosso
Futuro Líder exibindo sua
magnífica Capacidade deLiderança. Aos 10 anos
e meio de idade ele faz o que podepara se aniquilar e destruir orestante de
vocês NUM SIMPLES
EXERCÍCIO MILITAR!
Melequento soltou uma risadinha.
— Você acha isso engraçado,Melequento? -perguntou Bocão,com uma
gentileza ameaçadora. — TODOS
VOCÊS FICARÃO À BASE DERAÇÃO DE MOLUSCO
PELAS PRÓXIMAS TRÊSSEMANAS,
Os garotos grunhiram.
— Que esperto, Soluço — caçoouMelequento. — Mal posso esperar
para vê-lo em ação no campo debatalha.
— SILÊNCIO! — berrou Bocão.— ESTA É A INICIAÇÃO DEVOCÊS, NÃO UM
PASSEIO NO CAMPO!SILÊNCIO, OU VÃO ALMOÇARSANGUESSUGAS PELO RESTODA
VIDA!
“Agora — continuou Bocão, commais calma —, embora tudo isso
tenha sido uma grande confusão,não foi um desastre completo.Depois
desse fiasco, IMAGINO que todosvocês TENHAM um dragão...”
— Sim — disseram os meninos em
coro. Perna-de-peixe deu uma
olhada de soslaio para
Soluço, que estava com o olhar fixoà sua frente.
— Sorte de vocês — disse Bocão,sério. — Então todos passaram na
primeira etapa do Teste do Dragão.Contudo, ainda restam duas fases a
serem vencidas antes de setornarem membros plenos da Tribo.A próxima
tarefa consistirá em treinar seus
respectivos dragões. Será um testeda
força de personalidade. Vocês vãoimpor sua vontade a essas criaturas
selvagens e lhes mostrar quem é oMestre. O dragão deverá obedecera
simples comandos como “ande” ou“fique”, terá de caçar e pescar para
vocês, assim como os dragões têmcaçado para os Filhos de Thordesde
tempos imemoriais. Se estiverem
preocupados com o treinamento,estudem
o manual Como treinar o seudragão, de autoria do ProfessorTosco Traste, que
vocês encontrarão na lareira doGrande Salão.
De repente Bocão pareceu muitosatisfeito consigo mesmo:
— Eu pessoalmente roubei esselivro da Biblioteca Pública dos
Cabeças-ocas — falou commodéstia, olhando para as unhas
muito pretas.
— Bem debaixo do nariz doBibliotecário Cabelo Assustado...Ele nunca
reparou... Aquilo é que foi umroubo legal...
Espinha-de-porco levantou a mão.
— E quem não sabe ler, senhor?
— Não conte vantagens, Espinha-de-porco! — berrou Bocão. —Peça a
algum idiota que leia para você.
Seus dragões voltarão a dormir,porque
ainda estão na época de hibernar.— Realmente, alguns dragões jáestavam
bastante silenciosos dentro dascestas. — Levem-nos para casa eos
coloquem num lugar aquecido. Elesacordarão daqui a duas semanas. E
então vocês terão apenas QUATROMESES para se preparar para oDia da
Iniciação, durante as celebraçõesdo Dia de Thor, que será a últimaetapa
do Teste. Se, nesse dia, vocêsdemonstrarem que treinaram seusdragões
de modo que eu e os Anciões daTribo consideremos satisfatório,finalmente
poderão chamar a si mesmos deHooligans de Berk.
Os meninos ficaram firmes etentaram agir como se fossem
verdadeiros Hooligans.
— HERÓIS OU EXILADOS! —gritou Bocão Bonarroto.
— HERÓIS OU EXILADOS! —berraram de volta os oito meninosfanáticos.
“Exilados”, pensaram ao mesmotempo Soluço e Perna-de-peixecom
tristeza.
***
— Eu... detesto... ser... um... viking
— disse Perna-de-peixe a Soluço,sem
fôlego, enquanto regressavamtrôpegos pelo caminho até a Vilados
Hooligans.
Na Ilha de Berk não se caminhavarealmente, as pessoas chapinhavamno
meio das plantas, da lama ou daneve, que grudavam nas pernas e
tornavam difícil erguer os pés. Erao tipo de terreno no qual o mar e a
terra
se invadiam e se misturavam. Ailha era repleta de buracosescavados pela
água, um labirinto de riossubterrâneos que se entrecruzavam.Você
colocava o pé num trecho de gramaaparentemente sólido e entãopercebia
que estava afundado até as coxas nalama escura e pegajosa. Podia estar
caminhando entre as samambaias e,
de repente, ver-se cruzando um rio
supergelado com água pela cintura.
Os garotos já estavam ensopadosde água do mar, e agora a neve se
transformara numa chuva diagonal,atingindo o rosto deles com aviolência
dos ventos gaélicos que a todotempo cruzavam silvando as terrassalgadas
e desoladas de Berk.
— Primeiro, uma escapada por
pouco da morte numa manhã de
quinta-feira — queixou-se Perna-de-peixe —, e aí a rejeição totalpor parte
dos jovens da Tribo... Ninguém vaifalar comigo por ANOS depois doque
aconteceu... Só você, claro, Soluço,mas acontece que você é tãoesquisito
quanto eu...
— Obrigado — disse Soluço.
— E para completar — continuouPerna-de-peixe com amargura —,
devo carregar um dragãocompletamente enlouquecido nascostas por três
quilômetros. — A cesta de Perna-de-peixe ia se mexendo de um ladopara o
outro, porque o dragão tentavafuriosamente sair dela. — E, paraterminar
o dia, só nos resta um jantarmedonho à base de molusco.
Soluço concordou que não era umaboa coisa a se esperar.
— Posso devolver o dragão paravocê, se quiser, Soluço. Já vou
avisando que ele é muito pesadoquando está molhado e bravo —disse
Perna-de-peixe, desolado. —Bocão vai ficar bravo feito umfuracão quando
perceber que você está sem umdragão.
— Mas eu PEGUEI um dragão —
disse Soluço. Perna-de-peixe ficouparado e começou a
tirar a cesta das costas.
— Eu sei que esse dragão E seu,DE VERDADE -ele suspirou,cansado. —
Acho que vou passar direto pelavila e continuar correndo atéencontrar
um lugar civilizado. Talvez Roma.Eu sempre quis ir a Roma. E, por
Valhala, não tenho a menor chancede passar na Iniciação, então...
— Não, eu tenho outro dragão emminha cesta — insistiu Soluço.
Perna-de-peixe ficou boquiaberto,incrédulo.
— Eu o capturei quando voltei aotúnel — explicou Soluço.
— Uau! Tubarões me mordam! —Perna-de-peixe exclamou. —Como,
em nome de Thor, você sabia que odragão estava lá? Era tão escuroque
não dava para ver a um chifre de
distância.
— Foi esquisito — disse Soluço.— Acho que senti a presença do
dragão quando estávamos correndopelo túnel. Eu não conseguiaenxergar,
mas, enquanto passávamos, sabiaque havia um dragão ali, e queaquele
seria o MEU dragão. Eu ia ignorá-lo, na verdade, porque estávamosna
maior correria, mas então você
falou que não tinha um dragão, euvoltei
e... lá estava ele, deitado numasaliência do túnel, exatamente comoeu
imaginava.
— Bem, longa vida à água-viva! —Perna-de-peixe exclamou, e os
meninos saíram correndo outra vez.
Soluço estava todo machucado,tremia assustado e tinha umahorrível
mordida de dragão na batata daperna, que ardia loucamente porcausa da
água salgada. Ele estava morto defrio e tinha um pedaço irritante dealga
marinha preso em uma de suassandálias.
Também estava um poucopreocupado porque sabia que nãodeveria
ter arriscado a vida para capturarum dragão para Perna-de-peixe.
Aquela
não era a atitude de um HeróiViking. Um Herói Viking saberiaque
interferir no Destino de Perna-de-peixe não era certo.
Por outro lado, Soluço vinha sepreocupando com o Dia deCapturar o
Dragão havia bastante tempo. Eletinha certeza de que seria o único a
voltar sem dragão e de que avergonha, o embaraço e um terrível
exílio
viriam logo depois.
E agora, lá estava ele: um guerreiroviking COM um dragão.
Então, de modo geral, ele estavabastante satisfeito consigo mesmo.
As coisas estavam melhorando.
***
— Você sabe, Soluço — dissePerna-de-peixe um pouco depois,quando as
fortificações de madeira da vilasurgiram no horizonte —, pareceaté
Destino, essa história de você tersentido a presença do dragãodaquele
jeito. Como se fosse mesmo paraser assim. Você pode estar com umtipo
de dragão mágico em sua cesta.Algo que faça o PesadeloMonstruoso
parecer só uma rã voadora! Afinal,
você é filho e herdeiro do ChefeStoico, e
já está na hora de o Destino dar umsinal de seu futuro.
Os meninos pararam, exaustos esem fôlego.
— Ah, eu tenho certeza de que esteé um Dragão Comum ou de Jardim
que se afastou dos demais — disseSoluço, tentando soar casual, mas
incapaz de reprimir a emoção emsua voz. Ele podia estarcarregando um dragão
incrível!
Talvez Velho Enrugado estivessecerto. Velho Enrugado era o avô
materno de Soluço. Começara aprofetizar depois que envelhecera,e ficava
dizendo a Soluço que vira o futuro,que o menino era predestinado aatos
grandiosos.
Aquele incrível dragão poderia sero começo de sua transformação —do Soluço que
conheciam, o garoto normal, quenão era especialmente bom emnada, no Herói do Futuro!
Soluço tirou a cesta das costas e fezuma pausa antes de abri-la.
— Ele está bem quieto, não émesmo? — disse Perna-de-peixe,
repentinamente desconfiado de suateoria do Destino. — Quer dizer, o
dragão não está fazendo nenhummovimento aí. Você tem certeza deque
ele está vivo?
— É que ele está profundamenteadormecido -disse Soluço. —Estava
gelado quando o capturei.
De repente, Soluço teve a fortesensação de que os deuses estavamde
seu lado. Ele SABIA que o dragãoestava vivo.
Com os dedos trêmulos, Soluçoabriu o fecho, levantou a tampa e
então espiou dentro da cesta. Perna-de-peixe fez o mesmo.
As coisas já não pareciam tão boas.
Ali, enrolado e adormecido nofundo da cesta, formando um nó de
dragão, estava talvez o mais comumDragão Comum que Soluço já tinha
visto na vida.
Na verdade, a ú n i c a coisaextraordinária sobre aquele dragãoera como
ele podia ser tão excepcionalmentePEQUENO. Isso sim era admirável.
A maioria dos dragões que os
vikings usavam para caçar eram do
tamanho de um cão Labrador. Osjovens dragões que os meninosestavam
capturando não eram tão grandes,mas tinham q u a s e sua alturamáxima. O
dragão de Soluço mais parecia umWest Highland Terrier.
Soluço não conseguia compreendercomo não percebera isso quando
apanhou o dragão no túnel. Elededuziu, miseravelmente, que fora
um
momento de pressão, com três mildragões tentando matá-lo. Edragões
que estão em Coma porAdormecimento tendem a ficar maispesados do
que quando estão despertos.
— Bem — disse Soluço, finalmente—, isso pode ser um sinal, se você
quiser. Você saiu em busca de umNadder Mortal e pegou o quê? Um
Marrom Básico. Eu agarro umdragão no escuro e o que euconsigo? Um
Dragão Comum ou de Jardim. Oque os deuses nos dizem é quesomos
Comuns, gente simplória, Perna-de-peixe. Você e eu não estamosdestinados
a sermos heróis.
— Isso não importa no que serrefere a MIM... -disse Perna-de-peixe —,
mas você e s t á destinado a serherói, lembra? Filho do Chefe etudo mais. E
você vai ser um herói, eu sei quevai...
Perna-de-peixe colocou a cesta devolta nas costas de Soluço e ambos
caminharam na direção dos portõesda vila.
— ...Pelo menos eu sinceramenteESPERO que sim. Não quero ser
comandado por Melequento numabatalha. Você tem mais ideias sobre
as
táticas militares em seu dedinho doque Melequento em toda aquelacabeça
grande e gorda.
Mesmo que aquilo fosse verdade,Soluço não só não seria a futura
estrela do Treinamento de Dragões,como, com aquele animal emespecial,
seria ainda mais difícilcorresponder ao lugar que a famílialhe destinara.
Ele via seu futuro evaporando.
O dragão era tão miúdo que o fariaparecer ridículo.
Era tão pequeno que Melequentoteria muitas piadas desagradáveisna
ponta da língua.
4. COMO TREINAR O SEUDRAGÃO
— HÁ! HÁ! HÁ! HÁ!
Melequento ria tanto que nãoconseguiu dizer mais nada.
Os garotos estavam espalhadospelos portões da vila, aproveitandoa
chance de exibir os dragões quetinham capturado. Soluço tentoupassar
despercebido, mas Melequento odeteve:
— Vamos ver a criatura patéticaque veio com Soluço — disse
Melequento levantando a tampa.
— Ah, que MÁXIMO! Olhem sópara isso! — disse Melequento,
quando
finalmente recuperou o fôlego detanto rir. — O que É ISSO, Soluço?Um
coelhinho marrom com asas? Umafadinha das flores? Um sapinhovoador?
Venham todos ver o animalmagnífico que Nosso Futuro Lídercapturou!
— Ah, Soluço, você é um inútil —berrou Punho Rápido. — Você éfilho
de um CHEFE, pelo amor de Thor!Por que não capturou um daquelesnovos
Pesadelos Monstruosos com asasgigantescas e garras extralongas?Eles
são matadores muito cruéis, sãomesmo.
— Eu tenho uma — sorriuMelequento, fazendo gestos para oanimal de
aparência terrível, vermelho comofogo, adormecido dentro da cesta.
—
Acho que vou chamá-la LAGARTADE FOGO. Como você vai chamaro seu,
Soluço? Doce de leite? Cara debebê? Xodozinho?
Naquele exato momento o dragãode Soluço soltou um bocejo imenso,
abrindo sua boca pequenina erevelando uma língua bipartida,ondulante,
gengivas rosadas eABSOLUTAMENTE NENHUM
DENTE.
Melequento riu tanto que Bafocaprecisou ampará-lo.
— BANGUELA! — gritou
Melequento. — Soluço encontrou oúnico dragão SEM DENTES do
mundo não civilizado! Isso é bomdemais! Soluço, o INÚTIL, e seudragão
BANGUELA!
Perna-de-peixe saiu em defesa deSoluço:
— Bem, você não tem permissãopara ficar com esse Pesadelo
Monstruoso, Melequento. Apenas ofilho de um Chefe pode ter umdragão
do tipo Pesadelo Monstruoso. Essacriatura pertence a Soluço, pordireito.
Melequento estreitou os olhos. Eleagarrou o braço de Perna-de-peixee
o torceu nas costas, com força.
— Ninguém está ouvindo você, seu
desastre ambulante com a coragem
de um plancton e pernas de peixe— zombou Melequento. — Graçasa você
e a sua doença de espirrar e fungar,aquela operação militar inteira foi
quase um total desastre. Quando eufor o Chefe desta Tribo, a primeira
atitude que tomarei com qualquerum com uma alergia patética comoa
sua será mandá-lo para o exílio.Você não tem como ser um
Hooligan!
Perna-de-peixe ficou pálido, mas,mesmo assim, deu um jeito dedizer:
— Mas você NÃO será o Chefe daTribo. SOLUÇO é quem vai ser.
Melequento largou o braço dePerna-de-peixe e avançou
ameaçadoramente na direção deSoluço:
— Ah, vai ser, vai mesmo? —zombou ele. — Então, eu não tenhoo
direito de ter um dragão PesadeloMonstruoso, certo? Mas nossoFuturo
Líder não está muito quieto comrelação a isso? Vamos lá, Soluço,estou
roubando seu legado. O que é quevocê vai fazer, hein?
Todos os garotos ficaram sérios.Melequento realmente quebrarauma
antiga regra viking.
— Soluço deveria desafiá-lo para
uma disputa pela posse do dragão—
disse Perna-de-peixe lentamente, etodos giraram para lançar os olhos
cheios de expectativa na direção deSoluço.
— Ah, que ótimo... — murmurouSoluço. -Obrigado, Perna-de-peixe.
Meu dia está ficando cada vezmelhor.
Melequento era um verdadeirobárbaro, que realmente nãoprecisava
da ajuda de Bafoca de Maluquíciopara surrar as pessoas. Ele usava
sandálias especialmenteconfeccionadas com pontas debronze para causar
o máximo de dor naqueles quechutasse. Soluço tentava o máximopossível
se manter longe dele.
Mas não poderia ignorar o insulto aseu status, agora que Perna-de-
peixe lhe fizera o favor de ressaltarisso, sem passar por covarde diante
dos
outros meninos.
E se você ganhava fama de covardena Tribo dos Hooligans, era melhor
fazer logo o serviço completo:vestir um gibão cor-de-rosa,começar a tocar
harpa e trocar o nome paraHermintruso.
— Eu o desafio, Melequento, pelaposse da dragoa Lagarta de Fogo,
que me pertence por direito —
disse Soluço, tentando disfarçar sua
relutância falando o mais alto eformalmente que conseguia.
— Aceito o desafio — afirmouMelequento super-rapidamente,com um
sorriso que se espalhou por suaface horrível, soberba. — Machadoou
socos?
— Socos — disse Soluço, porque omachado era MESMO uma péssima
ideia.
— Não vejo a hora de mostrar avocê como um verdadeiro FuturoHerói
luta — disse Melequento, e depoisse lembrou de algo: — Mas adisputa só
poderá ser APÓS todo o processode Iniciação, no Dia de Thor. Eunão quero
bater com o dedão ou algo assimenquanto estiver chutando você vilaafora.
— Pode ser que Soluço seja ovencedor — destacou Perna-de-peixe.
— É CLARO que ele não vaivencer — gabou-se Melequento. —Veja
minhas habilidades esportivas,minha coragem de viking, minhaviolência
cega. Minha vitória é tão certaquanto o fato de que um dia serei oChefe da
Tribo. Quer dizer, olhe só para meu
dragão e depois repare no DELE.
Melequento apontou cinicamentepara Banguela.
— Os deuses falaram. É só umaquestão de tempo. — Melequento
prosseguiu — Enquanto isso,viverei com o medo de ser mascadoaté a
morte pela terrível e temíveltartaruga sem dentes de Soluço.
Então Melequento saiu caminhandocom ar soberbo e deu um chute
forte na canela de Soluço ao passarpor ele.
***
— Desculpe-me pelo desafio —disse Perna-de-peixe, constrangido,após
cada um ter deixado sua cesta como dragão em casa, debaixo da cama.
— Ah, não se preocupe — disseSoluço. — Alguém teria feito issode
qualquer jeito. Você sabe comoeles adoram briga.
Perna-de-peixe e Soluço dirigiam-se ao Grande Salão para procurar o
tal livro que Bocão tinharecomendado: Como treinar o seudragão, escrito pelo
Professor Traste.
— Acontece — confidenciouSoluço — que já sei alguma coisasobre
dragões, mas não tenho a menorideia de como começar a treinarum. Eu
diria mesmo que é impossível
treiná-los. Estou ansioso parareceber
algumas dicas.
O Grande Salão era uma confusãode jovens bárbaros lutando,
gritando e jogando o popularBatebolada, um esporte viking decontato
muito violento, com muitapancadaria e poucas regras.
Soluço e Perna-de-peixeencontraram o livro enfiado nalareira,
praticamente junto ao fogo.
Soluço nunca antes tinha reparadonele.
Ele abriu o livro.
(Incluí aqui uma réplica simples deComo treinar o seu dragão, escritopelo
Professor Traste, de modo que vocêpossa compartilhar a experiênciade
abrir o livro pela primeira vez, comtoda a expectativa, o interesse e a
curiosidade. Você deverá imaginarque a capa é extraordinariamente
grossa, com fechos douradosenormes, e que algum escribacobriu-a com
elaboradas letras cor de ouro. Olivro parece realmenteconvidativo.)
— O QUE É ISSO?! — disseSoluço furiosamente, virando olivro de cabeça
para baixo e sacudindo-o para verse haveria mais do que uma única
folha
de papel dentro dele.
Soluço colocou o livro na mesa. Aexpressão excepcionalmente
desanimada.
— Tudo bem, Perna-de-peixe —disse ele -, a menos que seus berros
sejam melhores que os meus,estamos sozinhos nessa. Precisamos
descobrir nosso próprio jeito detreinar um dragão.
5. UM PAPO COMVELHO ENRUGADONa manhã seguinte, Soluço foi daruma olhadinha no dragão debaixode
sua cama. Ele ainda dormia.
Durante o café da manhã, sua mãe,Valhalarama, perguntou:
— Como foi sua Iniciação ontem,querido?
— Ah, tudo bem. Capturei meudragão — disse Soluço.
— Que bom, querido — replicouValhalarama, distraída.
Stoico, o Imenso, ergueu uminstante os olhos do prato e, antesde
voltar a executar a importante tarefade entupir a boca de comida, suavoz
ribombou:
— EXCELENTE, EXCELENTE!Depois do café da manhã,- Soluçofoi sentar-
se ao lado do avô, que fumava um
cachimbo, no degrau da frente dacasa.
Era uma manhã de inverno linda,fria e clara, sem sopro algum devento, o
mar ao redor liso como se fosse devidro.
Velho Enrugado soltou anéis defumaça, satisfeito, enquanto olhavao
nascer do sol. Soluço arremessavapedaços de pedra no terreno de
samambaias. Ambos fizeram um
longo silêncio.
Finalmente, Soluço disse:
— Capturei o tal dragão.
— Eu disse que você conseguiria,não disse? — replicou Velho
Enrugado, muito satisfeito consigomesmo.
Velho Enrugado passara a prever ofuturo depois que envelhecera,
embora sem muito sucesso.
— Uma criatura extraordinária,
você tinha dito -queixou-se Soluço.—
Um dragão realmente fora docomum. Um animal que realmentefaria com
que eu me destacasse.
— Isso mesmo — concordou oVelho Enrugado. -A profecia eramuito
nítida.
— A ú n i c a característicaextraordinária desse dragão —continuou
Soluço —, é como ele éextraordinariamente PEQUENO.Nesse ponto, ele é mesmo
completamente fora do comum.Agora mais do que nunca soumotivo de
piada.
— Ah, querido — disse o VelhoEnrugado, soltando uma risadinha
abafada pelo cachimbo.
Soluço olhou para ele com ar dereprovação, e Velho Enrugado
rapidamente disfarçou o riso,fingindo tossir.
— Tamanho é algo relativo, Soluço— disse Velho Enrugado. —TODOS
esses dragões são muito pequenosse comparados a um verdadeiroDragão
do Mar. Um VERDADEIRODragão do Mar é cinquenta vezesmaior que essas
pequenas criaturas. Um verdadeiroDragão do Mar do fundo do oceano
pode engolir dez navios vikings deuma só vez, sem nem sentir. Um
verdadeiro Dragão do Mar é ummistério cruel e insondável como opróprio
oceano. Num momento está calmocomo uma concha, no outro,agitando-
se como um polvo.
— Bem, aqui em Berk — disseSoluço —, onde não temos nenhum
Dragão do Mar para servir decomparação, o meu é considerado
menor que
todos os outros. Você está fugindodo assunto.
— Estou? — perguntou VelhoEnrugado.
— O ponto é que não vejo comoalgum dia vou poder me tornar um
herói — disse Soluço, com tristeza.— Sou o garoto menos heróico detoda
a Tribo dos Hooligans.
— Ora! Esta Tribo ridícula! —
soltou Velho Enrugado. — TUDOBEM,
então você não é um herói nato.Você não é grande e forte oucarismático
como Melequento. Mas só vaiprecisar trabalhar mais isso. Vai terde
aprender a ser um herói do jeitomais difícil.
E o avô continuou:
— De qualquer modo, talvez sejadisso que a Tribo precisa, de uma
mudança no estilo de liderança.Porque a questão é que os temposestão
mudando. Não vamos conseguircontinuar sendo maiores e maisviolentos
que os outros impunemente.IMAGINAÇÃO. É disso que elesprecisam e é
isso que você tem a oferecer. UmHerói do Futuro deverá ser astuto e
esperto, não só um grandalhão todomusculoso. Ele terá de fazer com
que
todos parem de brigar entre si ejuntos enfrentem os inimigos.
— Como vou convencer as pessoasa agir? -indagou Soluço. — Eles
começaram a me chamar deSOLUÇO, O INÚTIL. Esse não éum bom apelido
para um Líder Militar.
— Então você precisa enxergartudo isso de outra perspectiva —
prosseguiu Velho Enrugado,
ignorando o comentário de Soluço.— Eles
xingam você. Você não é bom emBatebolada. E daí? Essesproblemas são
pequenos no grande esquema dascoisas.
— É fácil para você dizer queesses problemas são pequenos —disse
Soluço, irritado. — Mas eu tenhoMUITOS pequenos problemas.Preciso
treinar esse dragão minúsculo até oDia de Thor ou serei expulso daTribo
dos Hooligans Cabeludos parasempre.
— Ah, sim — disse VelhoEnrugado, pensativo. -Existe umlivro que
fala disso, não é mesmo? Ajude-mea lembrar, como o grande Professorda
Universidade dos Cabeças-ocasensina a treinar um dragão?
— Ele acha que a gente deve berrarcom o dragão — disse Soluço,
voltando a atirar pedrinhas de umjeito melancólico. — Que devemostrar à
fera quem é o Mestre usando todo opoder encantador e carismático de
nossa personalidade, esse tipo deatitude. Eu tenho tanto carismaquanto
uma água-viva perdida, e gritar émais uma das habilidades que nãotenho.
— Sim — disse Velho Enrugado—, então talvez você preciseTreinar o
seu Dragão do Jeito Difícil. Vocêsabe muito sobre esses animais, nãoé
mesmo, Soluço? E todo o tempoque passou observando os dragões?
— Isso é segredo — disse Soluço,desconfortável.
— Eu já o vi conversando com eles— disse Velho Enrugado.
— Isso NÃO É VERDADE —
protestou Soluço, com o rosto jáficando
vermelho.
— Tudo bem, então —tranquilizou-o Velho Enrugado,fumando
calmamente seu cachimbo —, não éverdade.
Ambos ficaram em silêncio por umtempo.
— É verdade — admitiu Soluço—, mas, pelo amor de Thor, nãoconte a
ninguém, eles não compreenderiam
— A habilidade de conversar comdragões é muito rara — disse Velho
Enrugado. — Talvez — eleprosseguiu -você possa treinarmelhor um
dragão conversando que berrandocom ele.
— Que meigo — disse Soluço — ecomovente. Acontece que umdragão
não é uma criatura toda fofinha,como um cão ou um pônei. Um
dragão
não vai obedecer só porque vocêlhe pede com educação. Pelo quesei de
dragões, o berro ainda é o melhormétodo.
— Mas tem suas limitações, certo?— assinalou Velho Enrugado. —Eu
diria que o berro tem um bom efeitoem dragões menores que um leão-
marinho. Aliás, berrar comqualquer dragão maior que isso é
suicídio. Por
que você não inventa um métodoalternativo? Poderia acrescentaralgo ao
livro do Professor Traste. Eusempre achei que faltava algonaquele livro...
Não sei bem o quê...
— PALAVRAS... — respondeuSoluço. — Aquele livro precisa demuito
mais palavras.
6. ENQUANTO ISSO, NO FUNDODO OCEANO...
Enquanto isso, no fundo do oceano,mas não muito longe da Ilha deBerk,
um verdadeiro Dragão do Mar,exatamente como o que foradescrito pelo
Velho Enrugado, estavaadormecido. Ele eraindescritivelmente grande.
Passara tanto tempo dormindo nofundo das águas que quase parecia
parte do solo oceânico, como sefosse uma grande montanhasubmarina,
coberta de conchas e crustáceos,alguns membros parcialmenteafundados
na areia.
Gerações inteiras de pequenoscaranguejos-ermitões nasceram e
morreram nas orelhas do dragão.Ele dormia havia centenas e mais
centenas de anos, porque tinha feitouma grande refeição. Tivera a sorte
de
surpreender uma Legião Romanaque acampara no topo do rochedo— ela
foi completamente dizimada, e odragão passou uma agradável tarde
devorando o batalhão, desde osoficiais comandantes até ossoldados rasos.
Cavalos, bigas, escudos eespadas... Tudo desceu por suaimensa garganta
reptiliana. E já que objetos como
rodas douradas de carruagensvalem
como uma boa dose extra de fibrana dieta de um dragão, ele levavaum
certo tempo para digeri-los.
O dragão então se arrastara até asprofundezas do oceano e entrara
num Coma por Adormecimento.
Dragões podem ficar em estado desuspensão por uma eternidade,
meio mortos, meio vivos,
submersos em camadas e camadasde água do
mar congelada. Durante seis ou seteséculos, esse dragão em particular
não moveu um músculo.
Há uma semana, porém, uma BaleiaAssassina que perseguia focas a
uma grande profundidadesurpreendeu-se com um levemovimento da
pálpebra mais externa do olhodireito do dragão. Uma memóriaancestral
deu o alarme no cérebro da baleia,e a criatura se afastou o maisrápido
que suas nadadeiras conseguiram. Eem uma semana o mar em volta do
dragão-montanha — que antesestivera repleto de caranguejos,lagostas e
muitos cardumes — transformou-senum imenso deserto submarino.
Nenhum molusco, nenhumcrustáceo, nada se mexia.
O único sinal de vida por muitos
quilômetros era o rápidoestremecer
das duas pálpebras do dragão,abrindo e fechando como se, derepente, a
criatura tivesse passado a um sonomais leve e estivesse sonhando,sabe-
se lá que sonhos terríveis.
7. BANGUELADESPERTABanguela acordou mais ou menostrês semanas depois. Soluço estavaem
casa com Perna-de-peixe. Todostinham saído, então Soluço decidiu
aproveitar a oportunidade paraespiar a cesta de Banguela. Ele apuxou de
debaixo da cama. Uma névoa finade fumaça acinzentada escapavapela
tampa.
Perna-de-peixe assobiou.
— Ele está acordado mesmo! —disse ele. — Lá vamos nós.
Soluço abriu a cesta.
A fumaça escapuliu e fez com queSoluço e Perna-de-peixe
começassem a tossir. Soluço aabanou com a mão. Depois que seusolhos
pararam de lacrimejar, eleconseguiu enxergar um Dragão
Comum,
pequenino, que o fitava com olhosesverdeados, enormes e inocentes.
— Olá, Banguela 1— disseSoluço, de um jeito que eleesperava ser uma
boa pronúncia do dragonês.
— O que você está fazendo? —indagou Perna-de-peixe, curioso.
O idioma dragonês, quandopronunciado por um ser humano, é
pontuado por gritos estridentes,
estampidos e sons MUITOesquisitos.
— Eu só estava falando com ele —murmurou Soluço, muito sem
graça.
— Só falando?? — espantou-sePerna-de-peixe, assombrado. — Oque
você quer dizer com isso? Nãopode falar com ele, ele é umANIMAL, pelo amor
de Thor!
— Ah, cale a boca, Perna-de-peixe— disse Soluço, impaciente —,você
está assustando o dragão.
Banguela bufou e fungou, soltandoum pouco de fumaça. Ele inflou o
pescoço para dar a impressão deser maior, que é uma coisa que os
dragões fazem na hora do medo ouda raiva.
Finalmente, teve coragem de abriras asas e batê-las no braço de
Soluço. Caminhou até o ombro domenino, que virou o rosto nadireção do
dragão.
Banguela encostou sua testa na deSoluço e o fitou, sério. Ambos
ficaram ali, focinho e nariz colados,sem se mexer, por quase sessenta
segundos. Soluço piscou muito,porque o olhar de um dragãohipnotiza e
transmite a sensação irritante deque o animal está sugando sua alma.
Bem quando Soluço pensava: “Uau!Isso é maravilhoso! Estamos
1 Isso, claro, deve ser lido comoTudobom, Banguela, mas eu traduzido dragonês para auxiliar osleitores cujo conhecimento dessalíngua seja superficial. Por favor,leiam o livro de Soluço Como falardragonês para um curso rápidosobre esse fascinante idioma.
mesmo fazendo contato!”, Banguelaabaixou-se e mordeu seu braço.
Soluço soltou um gemido e afastouo dragão.
— P-p-peixe — sibilou Banguela,pairando no ar diante de Soluço. —Q-q-
quero peixe AGORA!
— Eu não tenho peixe — disseSoluço em dragonês, esfregando obraço.
Felizmente o dragão era mesmobanguela, mas como essas criaturas
têm mandíbulas fortes a mordidaainda estava doendo. Banguela omordeu
no outro braço.
— P-P-PEIXE! — ele dissenovamente.
— Você está bem? -indagou Perna-de-peixe. — Não acredito que vou
fazer essa pergunta, mas o que eleestá dizendo?
— Ele quer comida — respondeuSoluço, esfregando os dois braçosde
cara feia.
Ele tentou fazer com que sua vozsoasse firme, porém agradável,para
dominar a criatura simplesmentecom o poder de sua personalidade,
conforme dissera Bocão.
— Mas NÃO TEMOS PEIXE!
— Tudo bem, então — disseBanguela. — Como um g-g-gato.
Ele se virou para dar um bote emArrepiado, mas o gato subiu a
parede mais próxima soltando umberro de terror.
Soluço conseguiu pegar Banguelapela cauda quando ele ia voar atrás
do bichano. O dragão lutouselvagemente, gritando:
— QUERO P-P-PEIXE AGORA!QUERO
C-C-COMIDA AGORA!! GATO ÉGOSTOSO!
QUERO COMER, AGORA!
— Não TEMOS peixe — repetiuSoluço entredentes, sentindo que apaciência
já estava acabando — e você nãopode comer o gato. Eu gosto dele.
Arrepiado miou indignado do altode uma viga, no teto.
Os garotos colocaram Banguela noquarto de Stoico, onde havia um
problema de ratos.
Durante certo tempo, ele ficou felizperseguindo os ratinhos que
guinchavam desesperados, masdepois se cansou disso e começou aatacar
o colchão.
— PARE! — gritou Soluço,
enquanto penas voavam para todosos lados.
Banguela respondeu regurgitandoos restos de um rato recém-comido
bem no meio do travesseiro deStoico.
— Aaaaargh! — disse Soluço.
— AAAAAAAAAAAAAARGH!— disse Stoico, o Imenso, queentrou no
quarto justamente naquela hora.
Banguela lançou-se na barba de
Stoico, o Imenso, achando quefosse
uma galinha.
— Tirem o dragão daqui! — disseStoico.
— Ele não me obedece! — gritouSoluço.
— Grite BEM ALTO com ele —berrou Stoico. — MUITO ALTO,
Soluço gritou o mais alto que pôde:
— Poderia, por favor, parar decomer a barba de meu pai?
Como suspeitava Soluço, Banguelanão deu a menor bola.
“Eu SABIA que não conseguiriaberrar direito”, pensou o menino,
desanimado.
—DESÇADAÍSEUREPTILZINHOHORRÍVEL!— gritou Stoico.
Banguela desceu.
— Está vendo? — disse Stoico. —É assim que se trata um dragão.
Bafo de Verme e Garra de Gancho,
os dragões de caça de Stoico,
entraram no quarto. Banguela ficouparalisado enquanto os bichos o
rodeavam, os olhos amarelos emalvados brilhando. Cada dragãoera do
tamanho de um leopardo, e os doisestavam felizes com a chegada de
Banguela, como se fossem umadupla de gatos gigantes que sedivertia à
custa de um filhotinho.
— Alô, companheiro cuspidor defogo! — sibilou Bafo de Verme,cumprimentando
o recém-chegado com uma fungada.
— Precisamos aguardar atéficarmos a sós para lhe dar asboas-vindas que merece —
murmurou Garra de Gancho em tomameaçador.
Ele deu um tapinha maldoso emBanguela. Uma garra parecida com
uma faca de cozinha feriu o traseirodo pequeno dragão e ele uivou,
escondendo-se sob a túnica deSoluço até ficar apenas com acauda de
fora.
— GARRA DE GANCHO! —berrou Stoico.
— Minha garra escapou — disse odragão, choramingando.
—SAIAMDAQUIANTESQUEEUTRANSFOR-MEVOCÊSEMBOLSAS! — berrou
Stoico.
Bafo de Verme e Garra de Ganchose afastaram, murmurando os mais
terríveis xingamentos em dragonês.
— Conforme eu ia dizendo —prosseguiu Stoico, o Imenso -, EASSIM
que se lida com um dragão.
Stoico estava olhando paraBanguela com uma ansiedadeesquisita.
— Filho — disse ele, esperandoque aquilo fosse algum tipo deengano
-, este dragão é s eu?
— É, pai — admitiu Soluço. -
— Ele é... bem... é muito...PEQUENO, não? -disse Stoicolentamente.
Stoico não era uma pessoaobservadora, mas mesmo e l e nãopodia
deixar de reparar que aquele eraum dragão verdadeira eexcepcionalmente
miúdo.
—...e ele não tem dentes.
Silêncio e mal-estar.
Perna-de-peixe tentou ajudarSoluço.
— É porque a raça desse dragão éincomum — disse Perna-de-peixe.—
Ele vem de uma espécie rara e...hã... violenta chamada Devaneio
Banguela, que tem um parentescodistante com o PesadeloMonstruoso,
mas muito mais destemida e tãorara que está praticamente extinta.
— É mesmo? — Stoico examinou oDevaneio Banguela, em dúvida. —
Ele parece um Dragão Comum oude Jardim, a meu ver.
— Ahhh, com todo o respeito,Chefe — disse Perna-de-peixe —,é aí
que o senhor se ENGANA. Aosolhos de um amador, ele tem aaparência
exata de um Dragão Comum ou de
Jardim. Mas se o senhor olhar maisde
perto verá a marca característica doDevaneio Banguela. — Perna-de-peixe
apontou para uma verruga na pontado focinho do dragão. — Esta é a
marca que o diferencia da raçamais comum.
— Pelo amor de Thor, você estácerto! — disse Stoico.
— E não se trata apenas doDevaneio Banguela n o r m a l —
Perna-de-
peixe estava se animando. — Essedragão em especial tem SANGUEREAL.
— Não! — disse Stoico, muitoimpressionado. Stoico era umviking
terrivelmente esnobe.
— Sim — Perna-de-peixecontinuou, com ar solene —, seufilho
simplesmente partiu e roubou ofilhote do próprio Rei Presa de
Adaga, o
réptil soberano do Rochedo doDragão Selvagem. Os DevaneiosBanguelas
da realeza sempre são pequeninosno começo, mas se tornam criaturasde
porte IMPRESSIONANTE. Atémesmo GIGANTESCO.
— Exatamente como você, hem,Soluço? — disse Stoico, soltandouma
grande gargalhada e fazendo um
afago no cabelo do filho.
A barriga de Stoico queixou-se comum ronco que pareceu uma
distante explosão subterrânea.
— Acho que é hora de umjantarzinho. Meninos, limpem essabagunça
toda!
Stoico afastou-se, aliviado por terrestaurado a fé em seu filho.
— Obrigado, Perna-de-peixe —disse Soluço. — Você estava
inspirado.
— De nada — disse o garoto. —Eu estava lhe devendo uma por tê-lo
metido numa briga contra oMelequento.
— Em algum momento meu pai vaidescobrir a verdade, claro — disse
Soluço abatido.
— Não necessariamente —comentou Perna-de-peixe. — Vejasó a
conversa que você teve com oDevaneio Banguela. Aquilo foi
INACREDITÁVEL,FANTÁSTICO, Eu nunca tinhavisto algo assim. Quando
menos esperar vai estar treinandoele.
— É, eu até estava falando com ele— disse Soluço -, mas ele não
ouviu uma palavra do que eu disse.
***
Quando ia se deitar, naquela noite,
Soluço não quis deixar Bangueladiante
da lareira com Bafo de Verme eGarra de Gancho.
— Posso levar meu dragão paradormir comigo? -ele pediu ao pai.
— Um dragão é um animal detrabalho — disse Stoico, o Imenso.— Se
você ficar mimando esse bicho, elevai acabar perdendo sua tendênciaà
crueldade.
— Mas é que Bafo de Verme vaimatá-lo se eu o deixar sozinho com
eles.
Bafo de Verme grunhiu, agradecido.
— Seria um grande prazer — elesibilou.
— Que nada! — gritou Stoico, semreparar no último comentário de
Bafo de Verme, já que não falavadragonês. Stoico deu um tapinha
amistoso nos chifres de seu dragão.— Bafo de Verme só quer brincar.
Brincar assim, de luta, é bom parao dragão jovem. Obriga ele aaprender a
se defender.
Garra de Gancho estendeu asgarras, que mais pareciamcanivetes e
tamborilou no peito, na altura docoração.
Soluço fingiu que se despedia deBanguela perto do fogo, mas olevou
escondido para o quarto, enrolado
na túnica.
— Você precisa ficar totalmentequieto — disse ele com firmeza aBanguela
quando subiram na cama, e odragão fez que sim com a cabeça
ansiosamente.
O animal, na verdade, roncou alto anoite inteira, mas Soluço nem se
importou. O garoto havia passadotodo o inverno em Berk e sentira“muito
frio”, em todos os seus variadosestágios — de “bem friozinho” a
“completamente congelante”. Denoite, quem usasse muitoscobertores era
considerado mimadinho, entãoSoluço geralmente ficava acordadopor
algumas horas até que, tremendoacabava pegando num sono bemleve.
Mas, quando Soluço esticou os pése eles encostaram nas costas de
Banguela, ele sentiu ondas de caloremanando do pequeno dragão e,
gradualmente, subindo por suaspernas, aquecendo seu estômago eseu
coração congelados, alcançando atémesmo sua cabeça, que não ficava
realmente aquecida havia quaseseis meses. Até suas orelhasqueimavam
felizes. Seriam necessários seisdragões roncando para despertarSoluço,
tão profundo foi seu sono naquelanoite.
8. TREINANDO O SEU DRAGÃODO JEITO
DIFÍCIL
Soluço ainda tinha bastante certeza,por causa de seu conhecimento dos
dragões, de que berrar era o jeitomais fácil de treiná-los. Então, nas
semanas seguintes, ele tentou gritarcom Banguela para ver se davacerto.
Tentou berrar bem alto, comfirmeza e autoridade. Mostrava-seo mais
zangado possível. Mas Banguelanão o levava a sério.
O garoto finalmente desistiu degritar quando Banguela roubou uma
sardinha de seu prato no café damanhã. Soluço deu um grito feroz e
assustador. Banguela apenas lhelançou um olhar mal-humorado e,com a
cauda, num só golpe, derrubou no
chão tudo o que estava sobre amesa.
Esse foi o fim da história do berropara Soluço.
— Tudo bem, então — disse ogaroto. — Vou tentar o métodooposto.
Assim, o menino foi o mais docepossível com seu dragão. Deu a eleo
lado confortável da cama e ficouperigosamente espremido nabeirada.
Soluço alimentou-o com todas aslagostas e sardinhas que o bicho
quis. Mas só fez isso uma vez,porque o dragãozinho comeu atépassar mal.
Ficava brincando com o dragãohoras a fio. Contou-lhe piadas,trouxe-
lhe camundongos para comer,coçou as espinhas nas costas queSoluço
não conseguia alcançar.
Ele tornou a vida do dragão tão
agradável quanto possível.
***
Em meados de fevereiro, o invernoterminava em Berk, e a temporadade
neve se transformava em períodode chuvas. Era o tipo de clima emque as
roupas nunca secavam, não haviajeito. Soluço pendurava sua túnica
encharcada numa cadeira diante dalareira antes de ir para a cama ànoite
e, pela manhã, a roupa ainda estavamolhada — quente e úmida em vezde
fria e úmida, mas, ainda assim,ÚMIDA.
O terreno ao redor da vila era lamapura, até os joelhos.
— O que, em nome de Odin, vocêestá fazendo? -indagou Perna-de-
peixe quando passou por Soluço,que cavava um buraco enorme dolado de
fora da casa.
— Estou construindo umchiqueirinho para Banguela —disse Soluço,
sem fôlego.
— Você mima esse seu dragão, deverdade — disse Perna-de-peixe,
balançando a cabeça emreprovação.
— É tudo psicologia — disseSoluço. — Esse jeito é inteligente emais
sutil, nada de bancar o homem dascavernas e ficar berrando feito
você
com sua Vaca Aterrorizante.
Perna-de-peixe tinha dado o nomede Vaca Aterrorizante a seu animal.
O termo “aterrorizante” forainserido com a intenção de fazercom que a
pobre criatura ganhasse um arassustador, pelo menos um pouco.A
palavra “vaca” veio porque, parauma dragoa, ela era incrivelmenteparecida
com uma vaca. Era uma criaturagrande, calma, marrom, de natureza
amorosa. Perna-de-peixesuspeitava de que a dragoa fosseaté mesmo
vegetariana.
— Eu sempre a surpreendomastigando madeira — ele sequeixou. —
SANGUE, Vaca Aterrorizante,SANGUE! É isso que você deviaquerer!
Contudo, talvez Perna-de-peixe
fosse melhor na hora do berro doque
Soluço, ou, quem sabe, sua dragoaera do tipo preguiçoso e mais
obsequiosa que Banguela, mas aquestão era que estava sendo bemfácil
treiná-la à base de grito.
— Tudo bem, Banguela, estápronto — disse Soluço. — Dê umaboa chafurdada.
Banguela parou de ficar tentandopegar ratos e saltou na lama. Ele
rolou na terra mole, estendendo asasas e sorrindo de felicidade.
— Estou criando um vínculo comele — disse Soluço —, assim o
dragão vai querer fazer tudo o queeu lhe pedir.
— Soluço — disse Perna-de-peixeenquanto Banguela engolia um tanto
de lama e depois cuspia tudo nacara de Soluço -, eu não sei muitosobre
os dragões, mas s e i que são ascriaturas mais egoístas da Terra.
Nenhum dragão vai fazer nada porgratidão. Eles nem sequer sabem o
que é isso. Desista. Esse seumétodo NUNCA VAIFUNCIONAR.
— O lance sobre nós, d-d-dragões— disse Banguela, tentando ajudar— é que somos
s-s-sobreviventes. Não somosgatinhos s-s-sentimentais oucachorrinhos b-b-bobos, que a-a-adoram seus Donos e coisasnojentas desse tipo. Sóobedecemos ao h-h-homem porque
ele é m-m-maior e porque nosalimenta.
— O que ele, afinal, está dizendo?— indagou Perna-de-peixe.
— O mesmo que você — Soluço.
— N-n-nunca confie num dragão— disse Banguela, saltando felizpara fora do
chiqueirinho e apanhando umcaramujo que Soluço tinhaencontrado para
ele. (Banguela gostava muito decomer caramujos.
“P-p-parecem caca de n-n-nariz”.— ele dizia. — Foi isso que m~m-minha mãe me ensinou no ninho, eela sabia das coisas.
Soluço suspirou. Era verdade.Banguela era uma gracinha e ótima
companhia, embora um poucocarente de atenção. Contudo,bastava olhar
em seus olhos de cílios longos,grandes e inocentes para perceberque ele
era totalmente sem moral. Os olhos
eram ancestrais, olhos de ummatador.
Seria como cultivar amizade comum crocodilo ou com um tubarão.
Soluço limpou a lama do rosto.
— Vou pensar em outra ideia —disse.
***
Fevereiro virou março e Soluçoainda estava pensando. Algumaspoucas
flores que cometeram o erro de
surgir foram imediatamentedestruídas por
geadas intensas, e por isso mesmonão apareceram mais.
Perna-de-peixe agora já conseguiraensinar a Vaca Aterrorizante os
comandos de “vá” e “fique”.Soluço ainda tentava ensinarBanguela a usar
o banheiro.
— NÃO FAÇA COCÔ NACOZINHA — disse Soluço pelacentésima vez,
levando Banguela para fora de casadepois de mais um acidente.
— É mais q-q-quentinho nacozinha — reclamou Banguela.
— Mas sujeira a gente faz do ladode FORA da casa, você SABE disso— falou Soluço, já sem forças.
Imediatamente, Banguela fez cocônas mãos e na túnica de Soluço.
— Aqui é FORA, aqui é FORA,aqui é FORA! -Banguela gritoutriunfante.
Nesse momento inoportuno,
Melequento e Bafoca, voltando dapraia,
passavam em frente à casa deStoico, trazendo seus dragões noombro.
— Olhe só — zombou Melequento—, se não é o INÚTIL coberto decocô
de dragão. Eu acho que issocombina muito bem com você.
— Há, Há, Há — debochouBafoca.
— Isso não é um dragão — caçoou
Lesma Marinha, o dragão deBafoca, que
era um grande Gronkel de narizachatado e temperamento ruim. —Isso é uma
salamandra alada.
— Não é um dragão — cuspiuLagarta de Fogo, a dragoa deMelequento, que
era tão maldosa quanto seu Mestre.— É um coelhinho recém-nascidocom uma disenteria
patética.
Banguela bufou de raiva.
Melequento mostrou a Soluço aimensa pilha de peixes que levava
embrulhada na túnica.
— Veja o que Lagarta de Fogo eLesma Marinha pescaram na praia.E
só levaram algumas horas...
Lagarta de Fogo tossiu, exibiu suamusculatura brilhante e olhou para
as garras com falsa modéstia.
— Ah, o que é isso! — disse. — Eunem estava CONCENTRADA; sequisesse MESMO, faria isso emdez minutos, com uma asa nascostas.
— Com licença, que vou vomitar— murmurou Banguela a VacaAterrorizante,
que fitava Lagarta de Fogo comseus grandes olhos marrons em
desaprovação.
— Acreditamos que Lagarta deFogo pode se tornar uma
CAÇADORA
LENDÁRIA — disse Melequento,sorrindo. — Ouvi dizer que Vaca
Aterrorizante é chegada emcenoura... Será que Banguela temcoragem de
atacar um vegetal? Cenouras sãomeio duras, mas talvez ele consiga
mastigar um pepino amassado... ouseria o caso de lhe darmos um suco
com canudinho...
— HA! HA! HÁ! — Bafoca riu
tanto que soltou meleca pelo nariz.
— Cuidado, Bafoca — dissePerna-de-peixe com educação -,seu
cérebro está saindo da cabeça.
Bafoca o empurrou com força, e osdois meninos se afastaram. Lagarta
de Fogo deu um esbarrão emBanguela que quase lhe arrancou oolho.
Assim que ambos estavam fora doalcance, Banguela escapuliu dos
braços de Soluço e soltou chamasde modo ameaçador.
— Valentões! Covardes! Venhamaqui que Banguela frita os dois!Banguela vai arrancar suas
entranhas e usar as tripas paratocar harpa! Banguela vai.. vai..vai.. Bem, é melhor vocês fícaremlonge, é isso!
— Ah! Que coragem, Banguela! —disse Soluço sarcasticamente. — Sevocê gritar mais alto talvez elesaté escutem!
9. MEDO, VAIDADE,VINGANÇA E PIADAS
IMBECIS
Março virou abril e abril viroumaio. Depois dos comentários deLagarta de
Fogo chamando-o de coelhinhopatético, Banguela nunca mais sujoua
cozinha. Mas Soluço não conseguiumuito progresso no treinamento.
Ainda chovia, mas não fazia frio. Ovento soprava, embora com menos
fúria. Dava para ficar parado de pé.
As gaivotas chocavam seus ovosnas pedras da Praia Longa, e ospais
das ninhadas mergulharam sobreSoluço e Perna-de-peixe quando osdois
chegaram ali para treinar.
— MATE, Vaca Aterrorizante,MATE! — dizia Perna-de-peixe àdragoa,
que estava calmamente empoleiradaem seu ombro. -Você devia engolir
aquela Gaivota Preta de café damanhã, ela tem metade de seutamanho.
Honestamente, Soluço, eu desisto,não sei como vou passar pelo testede
caça, Vaca Aterrorizante não teminstinto assassino Ela nuncasobreviveria
na vida selvagem. Soluço riu comironia.
— Você acha que VOCÊ temproblemas? Banguela e eu não
conseguimos acertar desde quecomeçamos: os comandos básicosde
obediência, a repreensão, osexercícios obrigatórios, a caçada, acoisa toda.
— Isso não pode ser assim tão ruim— disse Perna-de-peixe.
— Fique olhando — disse Soluço.
Os meninos andaram um pouco pelapraia, afastando-se das gaivotas.
Começaram a praticar o comandomais básico de todos: “Vá!”
Era para o dragão ficar de pé, como corpo ereto, no braço do
treinador, que então deveria berraro próximo comando o mais alto
possível, enquanto erguia o braço,lançando o dragão no ar. A criatura
deveria levantar voo elegantementequando o braço do treinadorestivesse
no alto.
Vaca Aterrorizante bocejou, coçou-se e suavemente voou para longe,
murmurando algo.
Banguela foi ainda menosobediente.
— VÁ! — gritou Soluço.
O garoto ergueu o braço. Banguelaficou parado.
— Eu disse VÁ! — repetiu Soluço,frustrado.
— P-p-por quê i-i-ir? — perguntouBanguela, dando de ombros,prendendo-
se com firmeza no braço do garoto.
— Vá! É só isso! VÁ VÁ VÁ VÁ! !— gritou Soluço, balançando obraço
enlouquecidamente, enquantoBanguela fazia de tudo para semanter
agarrado.
O dragão conseguiu ficar.
— Banguela — disse Soluço damaneira mais moderada possível —, por
favor, obedeça. Se você nãocomeçar a fazer isso quando eu
mandar, nós dois seremosexilados.
— Mas eu não q-q-quero ir —argumentou Banguela em tomigualmente
razoável.
Perna-de-peixe ficou observandotudo o que acontecia, tomado de
surpresa.
— Você tem problemas mesmo —ele disse com voz de espanto.
— É — falou Soluço.
Ele finalmente deu um jeito dedesprender as garras de Banguela,que
se soltou por um instante, eempurrou o dragão para longe.Banguela caiu
na areia com um grito deindignação e imediatamenteprendeu-se à perna
de Soluço, as garras segurando comfirmeza as sandálias do menino e as
asas abraçadas à sua panturrilha.
— N-n-não vou — disse Banguela,
teimoso.
— Não dá para ficar pior do queisso — disse Soluço. — Vou tentar
uma nova estratégia.
Ele tirou do bolso a caderneta emque estivera fazendo anotaçõessobre
dragões, na esperança de que issopudesse ajudá-lo.
— MOTIVAÇÃO DE DRAGÃO...— Soluço leu em voz alta. — 1.GRATIDÃO, —
Soluço suspirou. — 2. MEDO. Issofunciona, mas não consigo fazer. 3,4, 5.
GULA, VAIDADE e VINGANÇA.Vale a pena tentar essas.
6, PIADAS E CHARADAS. Só seeu estiver desesperado.
— É um começo — disse Perna-de-peixe —, mas preciso concordar
com Bocão Bonarroto. Por quevocê não grita só um pouquinho?
Soluço o ignorou.
— Tudo bem, Banguela — disseSoluço ao pequeno dragão, quefingia dormir
enquanto se mantinha agarrado àperna do menino. — Para cadapeixe que você
pescar, eu lhe darei duas lagostasa mais quando chegarmos emcasa.
Banguela arregalou os olhos.
— V-v-vivas? — ele perguntouansioso. — Banguela p-p-podematá-las? P-p-por favor?
Só dessa vez!
— Não, Banguela — disse Soluçocom firmeza. — Eu não lhe ensineique não é gentil
torturar as criaturas menores?
Banguela fechou os olhosnovamente.
— Você é muito c-c-chato — eledisse, magoado.
— Você é um dragão tão esperto erápido, Banguela! — disse Soluçonum tom
bajulador. — Aposto que sequisesse poderia pescar maispeixes que qualquer outro dragãono Dia de Thor.
Banguela abriu os olhos parapensar no assunto.
— D-d-duas vezes mais — eledisse com modéstia. —Mas eu nãoq-q-quero.
Era impossível argumentar. Soluçoriscou a palavra VAIDADE de sua
lista.
— Sabe aquela dragoa grande e
vermelha, a Lagarta de Fogo, quefoi grosseira com você? —
perguntou Soluço.
Banguela cuspiu no chão,indignado.
— D-d-disse que eu era umasalamandra alada. D-d-disse queeu era um c-c-coelho comdisenteria.
Banguela vai m-m-matá-la.Banguela vai a-a-arrancar o c-c-couro dela. B-b-bangueia vai..
— Sim, sim, sim — disse Soluço
apressadamente. — Aquela Lagartade Fogo e seu
dono, que parece um porco achamque ela vai pescar mais do que osoutros nas comemorações do Diade Thor. Imagine como ficarãocom cara de bobos quandoperceberem que foi VOCÊ quemganhou o prêmio de Dragão MaisPromissor?
Banguela soltou a perna de Soluço.
— Vou P-P-PENSAR, nisso —disse Banguela.
O animal se afastou um pouco e
ficou pensativo.
Cinco minutos depois, aindarefletia. Deixava escapar um ououtro
gemido, mas toda vez que Soluçod i z i a “E então?” , elesimplesmente replicava:
— A-a-ainda estou pensando. Váembora. Suspirando, Soluço riscoua palavra
VINGANÇA.
— Tudo bem — disse Perna-de-peixe olhando por sobre o ombro
de
Soluço —, você já tentou de tudo.Que tal PIADAS E CHARADAS?Imagino que
esteja desesperado.
— Banguela — disse Soluço. — Sevocê pescar um bom arenque, seráo dragão mais
inteligente e rápido de Berk E farácom que Lagarta de Fogo fiquecom cara de idiota E ganharátodas as lagostas que quiser E,quando chegar em casa, vou lhecontar uma boa piada. Banguela
virou-se.
— B-b-banguela adora piada. —Ele voou de volta ao braço deSoluço. — Tudo
bem. Banguela vai ajudar.
M-m-mas NÃO porque sou b-b-bonzinho ou essas coisas meigas.
— Não, não — disse Soluço. —Claro que não.
— Nós, os d-d-dragões, somoscruéis e malvados. Mas adoramosuma p-p-piada. Conte umaAGORA.
Soluço deu risadas.
— De jeito nenhum. Só DEPOISque você pescar.
— Tudo bem, então — disseBanguela. Ele saltou do braço deSoluço e
levantou voo.
Ver um dragão caçando é muitoimpressionante, mesmo um filhote
pequeno como Banguela. Ele vooupela praia em seu jeitodesengonçado e
torto de sempre, soltando ao longodo caminho alguns guinchos deinsulto
aos pássaros menores que ele. Mas,assim que alcançou o mar,Banguela
pareceu um pouco maior. O salmarinho despertou alguma memória
ancestral dos grandes monstroscaçadores dos quais ele descendia.Ele
abriu as asas como se fosse umapipa no céu e voou linda e
suavemente
sobre as ondas espumosas,mantendo o corpo e as asas firmesenquanto
buscava sinais de peixes emmovimento. Quando avistou algo,pairou em
círculos até ficar tão alto queSoluço, inclinando a cabeça paratrás, na
praia, só conseguia ver umpontinho. Essa mancha ficou imóvelpor um
segundo, depois mergulhou no ar,as asas fechadas, coladas ao corpo,
despencando do céu feito umapedra.
Banguela desapareceu na água eficou um tempo sumido. Se
quiserem, os dragões conseguemficar submersos por cerca de cinco
minutos, e Banguela ficou bastantedistraído lá embaixo, perseguindoum
peixe e depois outro, incapaz dedecidir qual era o maior.
Soluço tinha se entediado e estavaprocurando lagostas quando
Banguela saiu do mar triunfante,trazendo um pequeno arenque.
Ele largou o peixe aos pés deSoluço, deu três saltos eempoleirou-se
na cabeça do garoto. Banguelaemitiu o grito de triunfo dosdragões, que
parece um pouco com o canto deum galo, só que é mais alto e cheiode
satisfação.
Depois ele se inclinou e de cabeçapara baixo fitou os olhos de Soluço.
— Agora c-c-conte uma piada —disse.
— Com a graça de Odin! —exclamou Soluço. — Eleconseguiu. Ele conseguiu.
— C-c-conte uma PIADA — disseBanguela de novo.
— O que é que fica totalmentepreto, branco e vermelho? —perguntou Soluço.
Banguela não soube responder.
— Um pinguim queimado do sol —replicou Soluço. Era uma piadamuito, muito
antiga, mas aparentemente não tinhachegado até o Rochedo do Dragão
Selvagem. Banguela a achouhistericamente engraçada.
Ele saiu voando para apanhar maispeixes e ouvir mais piadas.
Foi uma tarde agradável. A chuvaparou, o sol brilhou, e Banguelanão
fez feio na caçada. Ele apanhoualguns peixes e, lá pelas tantas, saiuatrás
de coelhos nos rochedos. E,finalmente, voltou ao chamado deSoluço.
Depois de poucas horas já tinhapescado seis arenques médios e umcação.
De modo geral, Soluço ficou muitosatisfeito.
— Afinal — disse ele a Perna-de-peixe —, não é que eu queira
ganhar o
prêmio de Dragão Mais Promissornem nada. Só quero mostrar que
Banguela está sob meu controle efazê-lo pescar alguns peixes.Ficaremos
com cara de bobos comparadoscom Melequento e sua ferozCaçadora
Lendária, mas pelo menos teremospassado na Iniciação.
E, para completar, quandoBanguela deixou cair o último
peixe na
pilha diante de Soluço, Perna-de-peixe reparou em algo pontudo que
brilhava na mandíbula inferior dodragão.
— O primeiro dente de Banguelacomeçou a nascer! — disse Perna-de-
peixe.
Aquilo parecia ser um bompresságio.
***
Ao voltar para casa, eles passarampor Velho Enrugado, que gastara as
duas últimas horas sentado numarocha observando os meninos.
— Muito impressionante — sibilouo Velho quando os meninos lhe
mostraram os peixes embrulhadosna túnica de Soluço.
— Achamos que Soluço realmentevai conseguir passar no Teste Final
de Iniciação no Dia de Thor -dissePerna-de-peixe todo animado.
— Então você ainda estápreocupado com aquele Testezinhode nada,
Soluço? — indagou VelhoEnrugado.
— Existem problemas maiores,você sabe. Há uma tempestade
gigantesca a caminho, por exemplo.Ela chegará daqui a uns três dias.
— Testezinho? — disse Perna-de-peixe indignado.
— O que quer dizer comTestezinho? O Festival do Dia de
Thor é o
maior evento do ano. TODOMUNDO que é ALGUÉM estarápor lá, todos os
membros da Tribo dos HooligansCabeludos E também os Cabeças-ocas.
Além disso, pode não serimportante para VOCÊ, masqualquer pessoa que
falhe no Testezinho é exilado, paraacabar comido por canibais ou algo
igualmente horrível.
— Eu vou passar a me chamarSOLUÇO, 0 ÚTIL, e meu dragãoserá o
CHEIO DE DENTES — disse ogaroto, radiante. — Pensei nissoagora e estou
realmente contente com a ideia. Éforte, confiável, não é muitoexagerado e
nem cria expectativas demais.
— Esse réptil enfim conseguiu darcerto e pegar alguns peixes — disse
Perna-de-peixe apontando para
Banguela, que estava tirandomeleca do
nariz com a garra. — Por maisinacreditável que possa parecer,Soluço
pode passar no Teste, afinal.
— Ah, acho que é quase certo —disse Velho Enrugado olhando para
Banguela, que então tentavaenvesgar os olhos e perdera oequilíbrio ao
fazer isso. -Qua-se — repetiuVelho, pensativo.
E os garotos voltaram para casa,com Banguela no encalço deles
dizendo:
— AH, C-C-CARREGUE-ME, C-C-CARREGUE-ME..
não é j-j-justo.. minhas asas estãodoloridas..
10. QUINTA-FEIRA,
DIA DE THOR
As celebrações do Dia de Thoreram realmente uma ocasiãoespetacular.
Os grandes rivais da Tribo dosHooligans Cabeludos, os Cabeças-ocas, que
vinham das ilhas próximas,velejavam pelo Oceano Interno atéa Ilha de
Berk para comparecer à grande
reunião.
Os visitantes montaramacampamento na Baía do CoraçãoNegro, que,
do dia para a noite, transformou-sede um deserto que ecoava o somdas
gaivotas num acampamentotumultuado, repleto de cabanasfeitas com
tecido de velas que já tinhamremendos demais para continuarema ser
usadas nos barcos.
Na manhã seguinte, a Praia Longaestava lotada de barracas,
malabaristas e adivinhos. Haviauma bagunça animada de vikingsque
reencontravam velhos amigos,lutavam com espadas, gritavammandando
os filhos pararem de brigar,AGORINHA, pelo amor de Thor,ESTOU FALANDO
A SÉRIO... ou... ou... OU
ENTÃO...
Grandes homens vikings sentavam-se em rochas desconfortáveis
gargalhando alto, como gigantescosleões-marinhos em férias. Mulheres
vikings, impressionantes de tãoimensas, formavam grupinhos,tagarelando
como gaivotas e engolindo canecasde chá com um só gole.
Apesar das previsões sinistras deVelho Enrugado, de que haveria
terríveis tempestades e tufões, faziaum glorioso dia quente de verão,sem
sinal algum de nuvem no horizonte.
O Teste Final de Iniciação dosJovens Heróis não teria início antesdas
duas horas da tarde, então Soluçopassou a manhã ouvindo com
ingenuidade os contadores dehistórias repetirem lendas malucassobre
navegantes temíveis e princesas
piratas.
Ele estava morto de nervosismo,por isso era difícil aproveitar a
comemoração como nos anosanteriores.
Até mesmo Bocão, que vomitarabem no meio da competiçãoQuantos
Ovos de Gaivota Você ConsegueEngolir em 1 Minuto?, não tiroumais do
que um leve sorriso do rosto pálidoe tenso de Soluço.
A família de Soluço fez umpiquenique de almoço enquantoassistia à
Demonstração de Luta comMachados. O garoto nada conseguiacomer e,
mais estranho ainda: o mesmoacontecia com Banguela, que estavade mau
humor e torceu o nariz para osanduíche de atum que Valhalaramalhe
oferecera.
— Melhor guardar seu apetite dedragão para o jogo -aconselhou
Stoico, o Imenso, que estava deótimo humor.
Ele vencera garganta-de-sapo numaaposta durante o Concurso do
Bebê Mais Feio e não via a hora deassistir à excelente atuação de seufilho
no Teste de Iniciação.
Conforme o dia foi passando, umvento quente começou a soprar,
vindo não se sabe de onde. Aindaestava muito abafado, mas nuvens
escuras começaram a se formar nohorizonte. Havia no ar um esquisito
rugir de trovões.
Talvez Velho Enrugado estivessecerto, pensou Soluço quando olhou
para cima: como já era costume,Thor, o Deus do Trovão ia, sim,
comparecer às comemorações deseu dia.
— ATENÇÃO! Todos os jovens a
serem iniciados às Tribos este ano,por
favor, tomem seus lugares noterreno à esquerda da praia.
Soluço engoliu em seco, afagouBanguela e ficou de pé. Era agoraou
nunca.
***
Soluço foi um dos últimos jovens adescer ao local, que era um grande
espaço de areia molhada na beira
do oceano. Os meninos da Tribo já
estavam reunidos, com seusdragões pairando sobre suascabeças. Todos
conversavam agitados, e até mesmoMelequento parecia nervoso.
Os meninos da Tribo dos Cabeças-ocas e seus respectivos dragões
pareciam gigantescos, bravos,muito mais fortes que os Hooligans
Cabeludos. Um deles, em especial,era um garoto valentão e grosseiro,que
parecia ter pelo menos uns 15 anos.
Soluço imaginou que aqueledeveria ser Impiedoso, o filho doChefe
Morgadão, da Tribo dos Cabeças-ocas, porque ele tinha um dragão dotipo
Pesadelo Monstruoso cinza e prataempoleirado no ombro. A criatura
olhava para Lagarta de Fogo comose fosse um cão Rottweiler com aspiores
intenções.
Lagarta de Fogo não deu a menorbola.
— Um aristocrata nunca ruge —disse Lagarta de Fogo, suavemente.— Ele deve ser
um Pesadelo Monstruoso mestiço.Nós, de sangue verde puro,descendentes do grande GarraMortal, nunca sonharíamos emfazer algo tão mundano.
O rugido do Pesadelo Monstruosocinza ficou mais alto.
A multidão se reunia na largada.
Soluço evitou reparar em Stoico, o
Imenso, abrindo caminho e gritandocoisas do tipo “Saiam da frente, eu
sou um CHEFE!”
— APOSTO DEZ CONTRA UMQUE MEU FILHO VAI PEGARMAIS PEIXES QUE 0
SEU!
— Stoico berrou, dando uma boacutucada na barriga de seu velhoinimigo,
Morgadão, o Cabeça-oca.
O Chefe Cabeça-oca estreitou osolhos e ficou pensando se daria ou
não um soco em Stoico. TalvezDEPOIS do Teste.
— E qual deles é o seu filho? —indagou Morgadão, o Cabeça-oca.—
Aquele alto, com cara de porco etatuagens de caveira, que está como
Pesadelo Monstruoso vermelho?
— Não — respondeu Stoico,animado. — Aquele é o filho de
meu
irmão, Barrigão Caído de Cerveja.— MEU FILHO é aquelemagrelinho com o
dragão Devaneio Banguela.
Morgadão, o Cabeça-oca abriu umgrande sorriso.
Ele deu um tapa nas costas deStoico e berrou:
— ACEITO E DOBRO SUAAPOSTA!
— FECHADO! — gritou Stoico, e
os dois grandes chefes apertaram as
mãos e bateram com as barrigaspara selar a aposta.
***
Bocão Bonarroto comandava esseúltimo estágio do Teste deIniciação. Ele
ainda estava com a cara um poucoesverdeada depois da experiência
desagradável no concurso QuantosOvos de Gaivota Você ConsegueEngolir
em 1 Minuto?, e isso não contribuíamuito para seu humor.
— TUDO BEM, GENTEHORRENDA! — gritou Bocão. —Chegou a hora de
descobrir se vocês têm fibra deheróis. Se sairão da arena comomembros
das nobres Tribos dos HooligansCabeludos e dos ImpiedososCabeças-ocas
OU se serão expulsos para sempredas Ilhas Internas. Então vamos ver
como será!
Ele deu um sorriso maldoso para osvinte garotos de pé à sua frente.
— Começarei com uma inspeçãoem vocês e em seus animais,
verificando se são guerreirosprontos para entrar em combate. Euos
apresentarei aos membros dasTribos nas quais esperam ingressar,que os
observarão. Depois, terá início oTeste. Vocês deverão demonstrar
como
impuseram sua vontade a essascriaturas selvagens e as dominaram
apenas com o poder de suaPersonalidade Heroica.
Ele continuou:
— Vocês começarão mostrando oscomandos básicos de “vá”, “pare”e
“pegue”. E terminarão ordenando aseu réptil que capture os peixespara
vocês, como faziam seus ancestrais.
Soluço engoliu em seco, nervoso.
— O menino e o dragão que maisimpressionarem o juiz, quero dizer,A
MIM — Bocão exibiu os dentescinicamente -, terão a glória extrade ser
chamados de Herói dos Heróis eDragão Mais Promissor. Os garotose
dragões que FALHAREM nesseTeste dirão adeus às suas famílias
para
sempre e deverão deixar a Tribo epartir; para onde, não interessa.
Bocão fez uma pausa.
— Que poético... — murmurouPerna-de-peixe, em voz alta osuficiente
para que Bocão o ouvisse.
O viking encarou o menino.
— HERÓIS OU EXILADOS! —berrou Bocão.
— HERÓIS OU EXILADOS! —gritaram em resposta dezoitomeninos
fanáticos.
— HERÓIS OU EXILADOS! —urraram os membros das Tribos dos
Hooligans Cabeludos e dosCabeças-ocas.
“Por favor, que eu possa ser umpouco heroico, pelo menos destavez”,
pensaram Soluço e Perna-de-peixe.“Não preciso de nada muito
espetacular
ou coisa assim, só quero passar noTeste.”
— TOMEM SUAS POSIÇÕES,COM OS DRAGÕES NO BRAÇODIREITO! — gritou
Bocão.
Ele inspecionou a fileira demeninos.
— Que beleza! — Bocãocumprimentou Impiedoso, oCabeça-oca, e seu
dragão Pesadelo Monstruosochamado Matador, que abriu asasas
brilhantes com uma envergadura dequase dois metros.
Bocão parou abruptamente quandoalcançou Soluço.
— E, em nome de Thor, que RAIOde bicho é ESSE? — perguntouBocão,
empalidecendo.
— E um Devaneio Banguela,senhor — murmurou Soluço.
— Pequeno, mas feroz —acrescentou Perna-de-peixe,solícito.
— Devaneio Banguela??? —ironizou Bocão. — Esse é o menorDragão
Comum ou de Jardim que já vi.Acha que sou um idiota, por acaso?
— Não, não, senhor — Perna-de-peixe murmuro com convicção. —O
senhor só é um pouquinho lento.
Bocão o fuzilou com o olhar.
— Um Devaneio Banguela —explicou Soluço -tem a aparênciaexata
de um Dragão Comum ou deJardim, exceto pela verrugacaracterística na
ponta do focinho.
— SILENCIO! — disse Bocão,sussurrando com veemência. — Ouentão
eu os atiro longe. E ESPERO queesse dragão seja melhor caçador doque
aparenta. Você e seu amigo peixe-morto são os piores candidatos em
Iniciação que já tive o desprazer deensinar. Mas você é o futuro desta
Tribo, Soluço, e se nos envergonhadiante dos Cabeças-ocas, eu,
pessoalmente, nunca o perdoarei.Você entendeu?
Soluço fez que sim com a cabeça.
Então, cada garoto se adiantou parafazer o cumprimento e erguer seu
dragão, de modo a receber os
aplausos da plateia.
Os aplausos para MalvadoMelequento e sua dragoa, Lagartade Fogo,
foram intensos. Eles só perderampara Impiedoso, o Cabeça-oca, eseu
dragão, Matador.
— Eu apresento agora, finalmente— Bocão estava tentando aparentar
entusiasmo em seu berro otemível... o terrível... filho único deStoico, o
Imenso — SOLUÇO, 0 ÚTIL, ESEU DRAGÃO, CHEIO DEDENTES!
Soluço deu um passo adiante eergueu Banguela o mais alto que
conseguiu, para fazer com que eleparecesse maior.
Seguiu-se um silêncio perplexo.
As pessoas já tinham visto dragõespequenos antes, claro,
normalmente caçando ratos noscampos, mas NUNCA no papel deum nobre
dragão de caça em uma competiçãode Iniciação.
— TAMANHO NÃO É TUDO! —berrou Stoico, tão alto que sua vozfoi
ouvida a várias praias de distância,e bateu as mãos para puxar os
aplausos.
Todos tinham pavor do terríveltemperamento de Stoico, então o
acompanharam com educadaanimação.
Banguela ainda estava mal-humorado, mas ficou felicíssimopor ser o
centro das atrações. Estufou o peitoe curvou-se, compenetrado, num
cumprimento para a esquerda epara a direita.
Alguns membros dos Cabeças-ocasderam risadinhas.
“Mudei de ideia”, pensou Soluço,fechando os olhos. “ESTE é o pior
momento de toda minha vida.”
— Vamos lá, Banguela — elecochichou no ouvido do pequenodragão. — Esta é
nossa Grande Chance. Peguemuitos peixes aqui e eu lhecontarei mais piadas do que vocêjá ouviu a vida inteira. E issodeixará a grande dragoa Lagartade Fogo realmente furiosa.
Banguela olhou para Lagarta deFogo pelo canto do olho. Ela estava
afiando as unhas no capacete de
Melequento, com certeza absoluta
de que receberia o título de Dragão
Mais Promissor.
— ATENÇÃO!
Teve início o Teste.
***
Banguela não fez feio nosexercícios básicos de obediência,embora ele
nitidamente os considerasseextremamente chatos. Chovia muito,e
Banguela odiava chuva. Ele queriair para casa relaxar na frente dalareira.
Lagarta de Fogo e Matador iam evinham, exatamente como
comandavam Melequento eImpiedoso, ambos mergulhando esoltando fogo
só para se exibir. Lagarta de Fogoexecutou algumas acrobacias
elaboradas, e a plateia gritou ebateu os pés.
— QUE A CAÇADA SE INICIE!
— gritou Bocão.
Todos os dragões, com exceção deBanguela, voaram para o mar.
— B-b-banguela está com d-d-dorde barriga — ele se queixou.
Soluço evitou encarar seu pai, queolhava para os lados, surpreso.
Evitou reparar na multidão quesussurrava: “Aquele lá é o filho doStoico.
Não, não é o garoto alto comtatuagens de caveiras, aquele queparece um
porco, é o miudinho, aquele meninoque não consegue controlar seudragão
minúsculo.”
— Não se esqueça, Banguela —disse Soluço de dentes cerrados —,do PEIXE. Eu vou
lhe contar piadas que você nuncaouviu antes, lembra?
— C-c-conte AGORA — disseBanguela.
A ajuda veio de um cantoinesperado. Melequento estava
gritando:
— MATE, LAGARTA DE FOGO,MATE! — Então ele parou,inclinando-se e
dando uma risadinha perto deSoluço. — O que é que você ESTAfazendo,
Soluço? Você não está FALANDOcom essa salamandra alada, não émesmo?
Falar com um dragão é contra asregras, foi proibido por Stoico, oImenso,
seu pai tontão...
— S-s-salamandra alada? —repetiu Banguela.
— S-S-SALAMANDRA ALADA???
— Você não é uma salamandraalada, certo, Banguela? —perguntou Soluço. — Você é omelhor caçador do mundo, não émesmo?
— Sou MESMO! — disseBanguela, mal-humorado.
— MOSTRE a Melequento e suadragoa esnobe o que um
VERDADEIRO caçador é capaz defazer —
disse Soluço em tom de urgência.
— O.K., então — concordouBanguela.
Soluço soltou um suspiro profundoquando Banguela saiu voando de
um jeito extravagante rumo ao mar.
— Isso é bom demais para serverdade — Soluço disse a simesmo dez
minutos depois, quando Banguela
regressou de uma segunda jornada,
nitidamente entediado, mastrazendo os peixes e largando-osaos pés do
dono. — Dentro de meia hora, maisou menos, eu, Soluço, serei um
perfeito membro da Tribo dosHooligans Cabeludos.
Era bom demais para ser verdade.Lagarta de Fogo voava de voltapara
Melequento, trazendo seu vigésimopeixe. Os olhos verdes, felinos,
brilhavam triunfantes quandoBanguela disse em voz alta:
— Sua e-e-esnobe medíocre.
Lagarta de Fogo pairou no ar. Acabeça girou, os olhos estreitaram-se.
— O QUE foi que você disse? —sibilou ela.
— Ah, não — disse Soluço. —Não, Banguela, não faça isso..
— Sua e-e-esnobe medíocre —zombou Banguela. -Isso é o melhorque consegue fazer? É p-p-
patético.
Sem chances. I-I-Inútil. Vocês, P-P-Pesadelos, pensam que sãomuito cruéis, mas não passam demoluscos m-m-medíocres.
— VOCÊ — sibilou Lagarta deFogo, as orelhas ameaçadoramentepara
trás enquanto ela se esgueirava noar como um leopardo se preparando
para dar o bote. — Você é umMENTIROSO minúsculo.
— E V-V-VOCÊ — disse Banguela
calmamente —, você tem acoragem de um c-c-
coelho, o cérebro de uma m-m-minhoca marinha, e é umacomedora de c-c-caramujosESNOBE.
Lagarta de Fogo arremessou-secontra o dragão.
Banguela desviou-se do golpe,rápido como um raio, e asmandíbulas
fortes de Lagarta de Fogo fizeramum ruído quando morderam o ar.
Foi um caos.
Lagarta de Fogo perdeu totalmenteo controle. Ela mergulhou
loucamente no ar, as garrasestendidas, mordendo qualquercoisa que se
movesse, soltando grandes jatos defogo.
Infelizmente, no meio da confusãoela sem querer arranhou Matador,
um dragão com o pavio curto. Elecomeçou então a atacar qualquerdragão
da Tribo dos Hooligans queestivesse por perto.
Em um minuto todos os dragõesestavam envolvidos numa batalha
imensa, feroz. Os donos corriam àvolta deles berrando que parassem,
tentando separá-los sem seremmortos. Os dragões não lhes davama
menor atenção, não importava o quefizessem, nem quanto gritassem —
Impiedoso e Melequento estavamcom o rosto extremamente vermelho
depois da impressionante gritaria.
Bocão correu feito um louco paraas laterais.
—PORACASOALGUÉMPODEMEDIZERPEL-
OAMORDETHOROQUEESTÁACONTECENDO?
Banguela adorava esse tipo decaos, desviando tranquilamente dos
ataques de Lagarta de Fogo, dandomordidas em Croco-tigre de vez em
quando, unhadas em GarraBrilhante aqui e ali, obviamente
adorando a
briga.
Até mesmo Vaca Aterrorizantedemonstrou muita ferocidade parauma
dragoa supostamente vegetariana.Ela deu um jeito de lascar umamordida
impressionante em Lagarta de Fogo,que rolava no ar com Matador, um
arrancando pedaços do outro.
Bocão Bonarroto entrou na
confusão, agarrando a cauda deLagarta de
Fogo. A dragoa soltou um uivo deódio, girou e ateou fogo à barba de
Bocão. Com uma de suas mãosimensas Bocão apagou o fogo ecom a
outra prendeu as mandíbulas deLagarta de Fogo para que ela não
conseguisse morder ou queimarnada. Ele enfiou a dragoa furiosadebaixo
do braço, ainda prendendo sua
boca.
— PAAREEE!!!!! — disse Bocãocom um berro de arrepiar a pele eos
cabelos, um grito para matarqualquer um de susto, quereverberou pelos
rochedos, foi de encontro ao mar eproduziu ecos que puderam serouvidos
até no continente.
Os meninos pararam com suagritaria inútil. Os dragões pairaram
no
mesmo lugar, imóveis.
Seguiu-se um silêncio horrendo.
Até mesmo a multidão que osobservava calou-se.
Isso nunca tinha acontecido. Todosos vinte meninos demonstraram
total falta de controle sobre seusdragões no Teste de Iniciação.
Tecnicamente, isso significava quetodos eles seriam exilados de suas
Tribos. E exílio, naquele climahorrível, significava a morte. Acomida era
pouca, o mar, perigoso e haviacertas Tribos selvagens nas ilhasque
tinham fama de ser canibais.
Bocão Bonarroto ficou parado, sempalavras, com a barba ainda
fumegante.
Quando finalmente falou, sua vozestava grave, repleta de horror
diante da situação:
— Preciso falar com os Anciõesdas Tribos — foi tudo o que eledisse. O
viking derrubou Lagarta de Fogo nochão. Ela recuperara o controle eagora
deslizava na direção deMelequento, a cauda entre aspernas.
Os Anciões das Tribos eramMorgadão e Stoico, o próprioBocão,
alguns outros guerreiros temíveis,como o Terrível Cabeçadura, osGêmeos
do Mal e o Bibliotecário CabeloAssustado, da Biblioteca Públicada Vila
dos Cabeças-ocas. A multidão e osmeninos ficaram absolutamenteimóveis
enquanto os Anciões se reuniam naRodinha dos Anciões.
Enquanto isso, a tempestadepiorava. Trovões tremendos
explodiam no
céu, a chuva era torrencial, e elesnão podiam ficar mais encharcados,a
menos que mergulhassem no mar.
Os Anciões levaram muito tempoconfabulando na rodinha. Lá pelas
tantas, Morgadão ficou bravo eergueu o punho para Cabeçadura.Um dos
gêmeos segurou seu braço até queele se acalmasse novamente. Nofinal,
Stoico saiu da rodinha e ficouparado diante dos meninos, queestavam de
cabeça baixa, de vergonha, osdragões a seus pés.
Se Soluço tivesse tido coragem deolhar para o pai, teria percebidoque
Stoico não estava animado eviolento como de costume. Elerealmente
parecia solene.
— Calouros das Tribos — gritou
ele, com a voz triste —, isso tudofoi
péssimo para todos. Todos vocêsFALHARAM no Teste Final doPrograma de
Iniciação. Pela estrita Lei das IlhasInternas, isso significa quedeveriam ser
expulsos da Tribo, em exílioETERNO. Não quero que issoaconteça, não só
porque meu fiho está entre vocês,mas também porque isso significaráque
toda uma geração de guerreirosserá perdida. Mas não podemosignorar a
Lei. Apenas os mais fortes podempermanecer, caso contrário, osangue
Tribal enfraquecerá. Só os Heróispodem se tornar Hooligans eCabeças-
ocas.
Stoico ergueu um dedo gorduchoaos céus.
— Além disso — ele prosseguiu—, o deus Thor está realmentebravo.
Este não é o momento paraenfraquecer nossas Leis.
Thor soltou um trovão enorme,como se quisesse enfatizar odiscurso.
— Sob circunstâncias normais —disse Stoico —, a cerimônia doexílio
deveria começar agora. Aconteceque ser lançado ao mar num tempo
desses é morte certa. Como ato demisericórdia, permitirei que
permaneçam mais uma noite sobnosso teto, e assim que amanhecervocês
deverão partir para o continentepara viver por conta própria. Deste
momento em diante, todos estãobanidos e não podem mais dirigir a
palavra a outros membros da Tribo.
Um trovão estourou ao redor dosmeninos enquanto eles continuavam
de pé, de cabeça baixa, debaixo dechuva.
— Que Thor tenha piedade de mim,mas essa é a coisa mais triste que
fiz na vida, banir meu próprio filho— disse Stoico, melancólico.
A multidão murmurou comcompaixão e aplaudiu a nobreza deseu
Líder.
— Um Chefe não pode viver comoas outras pessoas — disse Stoico,
olhando para Soluço como seimplorasse perdão. — Ele precisaoptar pelo
que é bom para a Tribo.
De repente, Soluço ficou muitobravo.
— Bem, não espere que EU tenhapena do senhor!
— disse o garoto. — Que tipo depai pensa que sua Leis estúpidas
podem ser mais importantes que opróprio filho? E que tipo de Tribo
estúpida é essa, que não podeabrigar gente normal?
Stoico ficou olhando para o filho,surpreso e em choque por um
momento. Depois, ele se virou epartiu. As Tribos já deixavam apraia e
subiam as colinas em busca deabrigo na Vila. Relâmpagos caíamao redor.
— Eu vou matar você — sussurrouMelequento a Soluço, enquanto
Lagarta de Fogo, no ombro do
menino, rosnava de modoameaçador. — A
primeira coisa que farei depois deser banido vai ser matar você —ele falou
e saiu correndo atrás dos outros.
— Perdi meu d-d-dente —queixou-se Banguela, chorando. —C-C-Caiu quando eu
mordi aquela L-L-Lagarta deFogo.
Soluço nem sequer prestou atenção.Ele olhou para o céu, louco da
vida, enquanto o vento sacudia aágua do mar, criando marolas que
espirravam em seu rosto.
— SÓ DESTA VEZ — gritouSoluço -, porque você não me deixaser um
herói? SÓ DESTA VEZ? Eu nãoqueria fazer nada de extraordinário,só passar
naquele TESTE ESTÚPIDO parame tornar um verdadeiro vikingcomo todo
mundo.
O trovão de Thor rugiu e fez umestouro no céu.
—AH, TÁ! — gritou Soluço. —ACERTE-ME com seu raioestúpido. Faça
algo para mostrar que você pensapelo menos UM POUCO em mim.
Mas não caíram raios na cabeça deSoluço. Thor realmente não o
achava importante a ponto demerecer resposta. A tempestade sedeslocou
para o mar.
11. THOR ESTÁ IRADO
A tempestade desabou durante anoite inteira. Soluço não conseguiu
dormir enquanto o vento batia nasparedes como se cinquenta dragões
tentassem entrar na casa. “Deixem-nos passar, deixem-nos passar”,zunia
o vento. “Estamos muito, muitofamintos.”
Na escuridão mais profunda, lálonge, no mar, a tempestade era tão
violenta e as ondas tão gigantescasque acabaram realmenteperturbando o
sono de dois Dragões do Marancestrais.
O primeiro dragão era imenso, dotamanho de um rochedo.
O segundo dragão era maior do quese pode imaginar.
Foi ele o Monstro mencionadoanteriormente nesta história, agrande
Besta que caíra no sono depois de
um piquenique de soldadosromanos,
seis séculos antes, o mesmo que,recentemente, vinha passando a umsono
mais leve.
A poderosa tempestade ergueu osdois dragões gentilmente do leito
marinho, como se eles fossembebês adormecidos, e uma onda
indescritivelmente enormecarregou-os para a Praia Longa, noslimites da
vila de Soluço.
E então ali eles ficaram, dormindoem paz, enquanto ao redor o vento
urrava descontrolado feitofantasmas vikings festejando emValhala, até
que a tempestade cessou e o solnasceu na praia agora ocupadapelos
dragões e quase nada mais.
***
O primeiro dragão faria qualquer
um ter pesadelos horríveis.
O segundo faria até um pesadelo terpesadelos horríveis.
Imagine um animal vinte vezesmaior que um Tiranossauro Rex.Uma
criatura que mais parecia umamontanha do que um ser vivo —uma
montanha imensa, reluzente emaligna. Ele era tão coberto decracas que
dava a impressão de estar usando
uma armadura de joias. Nos pontosem
que os pequenos crustáceos e oscorais não se firmavam, como nasjuntas
e nas rachaduras do corpo, erapossível ver a cor verdadeira desua pele.
Era um verde-escuro glorioso, amesma cor do fundo do oceano.
Agora ele estava desperto e tinhatossido a última coisa quedevorara:
o Estandarte da 8a Legião Romana,com suas fitas patéticas ainda
sacudindo corajosamente pelo ar.Ele o estava usando como um palitode
dentes, e a águia no topo vinhasendo muito útil para tirar osirritantes
pedacinhos de carne que ficampresos entre aqueles enormesdentes
posteriores.
***
A primeira pessoa a descobrir odragão foi Bafofedido, o Rude, que
acordara muito cedo para ver sesuas redes tinham sobrevivido à
tempestade.
Ele deu uma olhada na praia, correuaté a casa do Chefe e o acordou.
— Temos um problema — disseBafofedido.
— Como assim, UM PROBLEMA?— quis saber Stoico, o Imenso.
Stoico não tinha dormido. Ele
ficara acordado, preocupado. Quetipo
de pai era ele, que colocava suaspreciosas Leis acima da vida deseu filho?
Mas também que tipo de filhodescumpriria as preciosas Leis queseu pai
tinha respeitado e obedecido a vidatoda?
Pela manhã, Stoico tomou aespantosa decisão de reverter o
pronunciamento solene que fizera
na praia e anular o banimento deSoluço
e dos outros meninos.
— Isso é uma FRAQUEZA minha,uma FRAQUEZA — dizia a simesmo,
melancolicamente. -Cara-de-lula, oTerrível, teria banido o filho numpiscar
de olhos. Gritalhão, o Cínico, teriaaté gostado de fazer isso. Qual é omeu
problema? Eu deveria ter banido a
mim mesmo, e não resta dúvida deque é
isso que Morgadão, o Cabeça-oca,vai sugerir.
Definitivamente, Stoico não estavaem condições de lidar com mais
problemas.
— Dois dragões descomunaisapareceram na Praia Longa —disse
Bafofedido.
— Mande-os embora — respondeu
Stoico.
— Mande v o c ê — disseBafofedido.
Stoico saiu batendo os pés até apraia. Quando voltou, parecia muito
preocupado.
— Você os espantou? — indagouBafofedido.
— ELE me espantou — disseStoico. — O dragão maior comeu o
menor. Eu não quis interromper.Acho que devo convocar um
Conselho de
Guerra.
***
Os Hooligans Cabeludos e osCabeças-ocas despertaram naquelamanhã
com o terrível som dos GrandesTambores convocando-os para oConselho
de Guerra, um recurso que só erausado em crises gravíssimas.
Soluço acordou sobressaltado. Ele
dormira muito mal. Banguela, que
tinha subido em sua cama na noiteanterior, não estava em lugar algume,
como sua cama estava fria, eraóbvio que ele partira havia algumtempo.
Soluço enfiou as roupasrapidamente. Elas tinham secadodurante a
noite e estavam tão duras de sal queera como se ele estivesse vestindo
uma camisa e uma calça de
madeira. Ele não tinha certezasobre o que
deveria fazer, pois aquela seria amanhã do exílio. Soluço seguiutodos os
outros em direção ao Grande Salão.Os Cabeças-ocas tinham passado a
noite ali mesmo, porque o tempoestava ruim demais para acampar.
No caminho, Soluço deu de caracom Perna-de-peixe, que dava a
impressão de ter dormido tão malquanto o amigo. Seus óculos
estavam
tortos.
— O que está acontecendo? —indagou Soluço. Perna-de-peixe
encolheu os ombros.
— E onde está Vaca Aterrorizante?Perna-de-peixe encolheu os ombros
outra vez. Soluço olhou ao redor,para o empurra-empurra damultidão em
direção ao Grande Salão, e reparouque não havia um único dragão
doméstico por perto. Normalmente,eles ficavam junto a seus Mestres,nos
ombros ou atrás deles, grunhindo erosnando uns para os outros. Havia
algo levemente sinistro nessaausência...
Ninguém mais reparou nisso. Haviaum tremendo murmurinho de
agitação, e eram tantos vikings, tãoenormes, que nem todo mundo
conseguiu entrar no Grande Salão— uma baita confusão de bárbaros
gritando e se acotovelando formou-se do lado de fora.
Stoico pediu silêncio.
— Eu os chamei aqui hoje —berrou Stoico — porque temos um
problema a resolver. Um dragãogigante está sentado na Praia Longa.
A multidão não ficou nadaimpressionada. Eles esperavam poruma
crise bem séria.
Morgadão deu voz à desaprovação
geral.
— Os Grandes Tambores só sãousados em caso de perigo mortal —
disse Morgadão, espantado. —Você nos reuniu aqui, a essa horada
madrugada só por causa de umDRAGÃO? — Morgadão não tinhadormido
bem, deitado no chão de pedra doGrande Salão e só com o capacetede
viking como travesseiro. — Espero
que você não esteja perdendo ojeito,
Stoico — ele zombou, desejandoexatamente isso.
— Não se trata de um dragãoqualquer — disse Stoico. — É uma
criatura ENORME. Imensa.Monstruosamente grande. Nunca vinada igual.
Parece mais uma montanha que umdragão.
Como não tinham visto o dragão-montanha, os vikings continuaram
céticos. Eles estavam acostumadosa mandar nos dragões.
— É claro que o bicho precisa serdeslocado. Mas é uma criatura
imensa. O que podemos fazer,Velho Enrugado? Você é o sábio daTribo.
— Você me envaidece, Stoico —disse Velho Enrugado, que pareciase
divertir com a situação toda. -Trata-se de um Dragonusmarinhus
Gigantescus Maximus, e um
espécime particularmente grande,eu diria.
Muito cruel, muito inteligente, deapetite voraz. Mas meu campo é aPoesia
Irlandesa Primitiva, não souespecialista em répteis de grandeporte. O
Professor Traste é quem pesquisadragões. Talvez vocês devessem
consultar o livro dele a respeito dotema.
— Claro! — disse Stoico. — Como
treinar o seu dragão, não émesmo? Creio
que Bocão roubou esse livro daBiblioteca Pública da Vila dosCabeças-
ocas. Ele lançou um olharmalicioso a Morgadão, o Cabeça-oca.
— Isso é um insulto! — berrouMorgadão. — O livro épropriedade dos
Cabeças-ocas... Exijo esseexemplar de volta imediatamente oudeclaro
guerra aqui mesmo.
— Ah, baixe a bola, Morgadão —disse Stoico. — Com bibliotecários
molengas como o seu, o que vocêesperava?
O Bibliotecário Cabelo Assustadoficou com a cara levemente coradae
tremeu nas bases — ou melhor, nospesões, tamanho 46.
— Barrigão, pegue o livro nalareira — berrou Stoico.
Barrigão Caído de Cerveja esticouseu braço, que era longo como um
tentáculo de polvo, e retirou o livroda prateleira. Ele lançou o livropor
cima da multidão, e Stoico oapanhou, sob muitos aplausos. Amoral de
todos estava em alta. Stoicocurvou-se a seu público e entregouo livro a
Bocão.
— BO-CÃO, BO-CÁO, BO-CÃO
— berrava a multidão.
Era o momento de triunfo de Bocão.Toda crise precisa de um Herói, e
ele sabia que seria o homem certopara o serviço. Seu peito inflou-sede
convencimento.
— Ah, não foi nada, realmente... —ele berrou modestamente. — Um
pouco de Roubo Básico, vocêssabem, só para não perder aprática...
— Pssiuuu... — sussurrou amultidão, como se fosse um bandode
serpentes marinhas, quando Bocãopigarreou para limpar a garganta.
— Como treinar o seu dragão —anunciou Bocão solenemente.
Ele fez uma pausa e leu:
— GRITE COM ELE. Outra pausa.
— E...? — indagou Stoico. — Gritecom o dragão e...?
— É isso — disse Bocão. —
GRITE COM ELE.
— Não tem nada no livro a respeitodos Dragonusmarinhus
Gigantescus Maximus em especial?
Bocão verificou novamente nolivro.
— Isso, não — disse ele. — Sófala sobre berrar, mesmo.
— Hmmm — disse Stoico. — Econciso, não é mesmo? Eu nuncatinha
reparado nisso antes, mas é
conciso... Conciso, porém exato —ele
acrescentou rapidamente, — comonós, os vikings. Graças a Thortemos
nossos peritos. Agora — disseStoico, assumindo modos de líder—, como
se trata de um dragão grande...
— Imenso — interrompeu VelhoEnrugado, alegremente. —
Gigantesco, estupendamenteenorme. Cinco vezes maior que a
grande
Baleia-azul.
— Sim, obrigado, Velho Enrugado— disse Stoico. — Já que ele éisso,
realmente, uma criatura gigante,vamos precisar de um grito gigante.
Quero que todos se reúnam norochedo para gritar ao mesmotempo.
— O que devemos gritar? —indagou Barrigão Caído deCerveja.
— Algo curto e direto ao ponto:VÁ EMBORA -disse Stoico.
***
As Tribos dos Cabeças-ocas e dosHooligans Cabeludos se reuniramno alto
dos rochedos na Praia Longa eolharam para baixo, onde o réptil
incrivelmente imenso estavaesticado na areia, lambendo osbeiços
enquanto devorava os restos de seupobre companheiro. O bicho era tão
colossal que nem dava a impressãode estar vivo, até que você o via se
movendo — o que parecia mais umterremoto ou uma miragem.
“É, algumas vezes tamanho édocumento”, pensou Soluço. “Estaé uma
delas.”
Dragões são vaidosos, cruéis eamorais, como eu já disse. Isso nãofaz
muita diferença quando eles sãomuito menores que você. Mas
quando a
péssima natureza de um dragão émultiplicada até ficar do tamanhode
uma colina, o que a gente faz?
Bocão Bonarroto deu um passoadiante para liderar a gritaria, na
qualidade de Berrador maisrespeitado do grupo. Seu peitoinflou-se de
orgulho.
— Um... dois... três...
Quatrocentas vozes vikingsgritaram juntas:
— VÁ EMBORA! — eacrescentaram o Urro de GuerraViking.
A intenção do Urro Viking é fazeros inimigos gelarem no início da
batalha. Um berro horrível,eletrizante, que começa pelaimitação do
guincho de um predador, depois setransforma no grito de puro terrorda
vítima e termina com uma imitaçãoterrivelmente realista de grunhido
mortal de alguém se afogando nopróprio sangue. Na maioria dasvezes, o
Urro é mesmo um barulhoassustador, mas centenas debárbaros urrando
juntos às oito da manhã fariam até opróprio Thor largar seu martelo e
chorar feito um bebê.
Seguiu-se um silêncio pesado.
Depois, o portentoso dragão virousua portentosa cabeça na direção
deles.
Quatrocentos suspirossobressaltados cortaram o arquando aqueles
olhos malignos, amarelados, dotamanho de seis homens altos,
estreitaram-se.
O dragão abriu a boca e soltou umsom tão alto e aterrorizante que
quatro ou cinco gaivotas que
passavam caíram mortas de medona mesma
hora. Era um barulho que fazia oUrro de Guerra dos Vikings parecerum
chorinho de recém-nascido. Era umsom terrível, de outro mundo, que
prometia MORTE IMPIEDOSAcom DIREITO A TUDO DE MAL,
Seguiu-se outro silêncio pesado.
Com um movimento delicado desua garra o dragão rasgou a túnica e
as calças de Bocão de cirna baixo,como se estivesse descascando uma
fruta Bocão soltou um grito nadaheroico de constrangimento Odragão
colocou a garra diante do viking e,como se ele fosse uma bolinha depapel,
com um peteleco jogou-o longe,bem longe, por cima da cabeça namultidão
e para dentro das muralhasfortificadas da vila.
O dragão ergueu a velha pataenorme e rachada até os lábios
reptilianos e jogou um beijo defogo para os vikings. O beijorasgou os céus
e caiu diretamente nas embarcaçõesde Stoico e de Morgadão, quetinham
sobrevivido à tempestade eestavam em segurança no Porto dosHooligans.
Todos os cinquenta barcos pegaramfogo na mesma hora.
Os vikings saíram correndo dorochedo tão depressa quantoaquelas
oitocentas pernas conseguiramlevá-los.
***
Bocão Bonarroto teve a sorte decair no telhado de sua casa, feito de
densas camadas capim enlameadoque ampararam sua queda. Ele
atravessou o telhado e terminousentado, nu, na própria cadeira,diante do
fogo. Atordoado, mas ileso.
— TUDO BEM, então — disseStoico aos quatrocentos vikingsque, depois
disso, pareciam sentir medo, mascontinuavam descontroladamente
agitados —, Berrar não adianta.
Eles estavam reunidos no centro davila.
— E, como nossas barcos foramdestruídos, não há como escapar da
ilha — continuou Stoico. — Agora
— ele tentava dar a impressão deter
tudo sob controle —, precisamosde alguém que vá lá e pergunte ao
monstro se ele veio em PAZ ou sequer GUERRA.
— Eu vou... — Bocão, que nessemomento se juntava a eles,
apresentou-se como voluntário,ainda determinado a ser o herói.
Ele estava tentando falar de umjeito nobre e digno, mas é muitodifícil
ser realmente honrado quando seucabelo está cheio de grama e vocêestá
usando o vestido de sua primaÁgata, que foi o único traje queBocão
encontrou na casa.
— Você fala dragonês, Bocão? —indagou Stoico, surpreso.
— Ah, não — admitiu o outro. —Ninguém aqui fala dragonês. O
idioma é proibido por ordem deStoico, o Imenso, O Nome Que Faz
Tremer,
Ah, Ah... Dragões são criaturasinferiores e devemos berrar comeles.
Dragões podem ficar muitoconvencidos se conversarmos comeles. Dragões
são criaturas traiçoeiras e precisamser postas em seu devido lugar.
— Soluço sabe falar com dragões— sussurrou Perna-de-peixe, bem
baixinho, do meio da multidão.
— Psiu, Perna-de-peixe —sussurrou Soluço, cutucando
desesperadamente o amigo.
— Mas você sabe — disse Perna-de-peixe decididamente. — Não
percebe? Esta é sua chance de setornar um herói. E, de qualquermodo,
nós todos vamos morrer, então vocêbem que pode tentar... -continuou
Perna-de-peixe, teimando. —Soluço sabe falar com os dragões!— berrou
ele, bem alto mesmo.
— Soluço? — disse BocãoBonarroto.
— SOLUÇO? — disse Stoico, oImenso.
— E, Soluço — disse VelhoEnrugado. — O garoto pequeno, decabelo
vermelho, sardas, o mesmo quevocê queria mandar para o exíliohoje de
manhã. — Velho Enrugado ficousério. — Para que o sangue das
Tribos
não enfraquecesse, lembra? Seufilho, Soluço.
— Eu sei quem é Soluço, obrigado,Velho Enrugado — disse Stoico, o
Imenso, sentindo-se desconfortável.-Será que alguém sabe onde ele foi
parar? SOLUÇO! Apresente-se!
— Parece que você vai ser útil,finalmente... -Velho Enrugadofalava
sozinho.
— Aqui está ele! — gritou Perna-de-peixe, dando um tapinha nas
costas de Soluço.
O garoto começou a ziguezaguearentre a multidão até alguém reparar
nele e erguê-lo, e ele foi passadode mão em mão, por cima dacabeça de
todos, até chegar diante de Stoico eser posto no chão.
— Soluço — disse Stoico. — Éverdade que você consegue falarcom
dragões?
Soluço fez que sim com a cabeça.Stoico tossiu, sem jeito.
— Esta situação é constrangedora.Eu sei que estávamos prestes a
bani-lo da Tribo. Entretanto, sevocê fizer o que vou pedir, e tenhocerteza
de que falo em nome de todos, podese considerar “desbanido”.Estamos
diante de um perigo imenso, eninguém aqui sabe falar dragonês.
Você iria
até o monstro para lhe perguntar seveio em PAZ ou se desejaGUERRA?
Soluço nada disse.
Stoico tossiu outra vez.
— Você pode falar comigo —disse Stoico. — Eu já acabei comseu
banimento.
— Ah, então agora o exílio nãovale, não é, Pai? — perguntou
Soluço.
— Se eu for lá e perder a vida sópara falar com aquela Besta doInferno,
serei considerado suficientementeheroico para entrar na Tribo dos
Hooligans?
Stoico ficou mais constrangido doque nunca
— Isso mesmo — disse ele.
— Então ESTÁ BEM, farei isso.
12. MORTE VERDEUma coisa é se aproximar de umpesadelo ancestral junto a umamultidão
de quatrocentas pessoas. Outra éfazer isso sem ninguém. Soluçoprecisou
de muito esforço para colocar umpé na frente do outro.
Stoico ofereceu-se para enviar umacomitiva com seus melhores
soldados, mas Soluço preferiu ir
sozinho.
— Assim haverá menos chances dealguém tentar qualquer atitude
heroica e estúpida — ele disse.
Embora essa seja a parte dahistória que os bardos gostam denarrar
como sendo o grande momento deheroísmo de Soluço, eu nãoconcordo. É
mais fácil ser corajoso quandovocê não tem alternativas. Soluçosabia, no
fundo do coração, que no fim dascontas o Monstro pretendia matartodos
eles. Então ele não tinha muito aperder.
Mesmo assim, ele suava frioquando espiou à beira do abismo.Lá
embaixo estava o dragão,inacreditavelmente grande, tomandoa praia
inteira.
Parecia estar adormecido, mas um
cantarolar esquisito vinha bem da
direção de seu estômago. A cançãodizia mais ou menos assim:
Veja bem, Grande Predador,
enquanto almoço um instantes,
Baleias-assassinas são tãoapetitosas,
por causa dos ossos crocantes.
Tubarões-brancoS são saborosos,
mas uma dica eu vou lhe dar:
Tome cuidad0 com os dentespontudos,
porque eles podem machucar.
“Que coisa estranha”, pensouSoluço, “ele consegue cantar deboca
fechada.”
Soluço quase saltou das calçasquando o dragão abriu os olhos de
crocodilo e falou-lhe diretamente:
— Por que isso é estranho? —disse o dragão, que parecia se
divertir. — Um
dragão de olhos fechados não estánecessariamente adormecido,assim como um dragão de bocafechada não está necessariamentecantando. Nada é o que pareceser. Esse ruído que você escutanão sou eu quem faz. ISSO, meuherói, é o ruído de um jantarcantante.
— Jantar cantante? — repetiuSoluço, lembrando rapidamenteque você nunca, nunca
mesmo, deve olhar nos olhos de um
dragão enorme e maligno comoaquele.
Então, ele fixou o olhar firmementenuma das garras do bichano.
O que foi um erro, pois Soluço derepente percebeu que o drag ã o
estava segurando um rebanho deovelhas que se debatiampateticamente
sob sua garra imensa. Ele fingiu terdeixado uma delas escapar. Então
esperou que o pobre animal seaproximasse das rochas, onde
estaria em
segurança, só para pinçá-lo comsuas garras e jogá-lo para o alto.
Era um truque que o próprio Soluçosempre fazia, mas com amoras. O
dragão então pôs para trás a enormecabeça e a bolinha peluda caiuentre
suas mandíbulas terríveis, que sefecharam fazendo um barulhohorrível.
Seguiu-se o ruído de algo sendoesmagado enquanto ele mastigava e
engolia a pobre ovelha.
O dragão viu que Soluço oobservava com fascínio e horror echegou a
cabeça ridiculamente grande bemperto do garoto. Soluço quasedesmaiou
com o bafo do dragão, um vaporamarelo-esverdeado e fedorento.Era o
cheiro da própria MORTE — umodor de matéria decadente, tão forteque
provocava até tontura, de cabeçaspodres de peixe morto e suor debaleia,
de cadáveres de tubarões e almasdesesperadas. O vapor foi sererguendo
numa espiral morna ao redor domenino até alcançar seu nariz, e ele
tossiu.
— Certas pessoas dizem que émelhor desossar a ovelha antes decomê-la — disse o dragão em tomde confidência, com um risinho. —
Mas eu acho que o osso dá umtoque crocante
à refeição, que senão ia parecerpapinha de carne..
O dragão arrotou um perfeitocírculo de fogo que subiu no arcomo um
anel de fumaça e aterrissou aoredor de Soluço, incendiando osolo. Por um
momento, ele ficou bem no centrode um círculo de labaredas e sverdeada s e
brilhantes. A grama e s tava úmida,mas mesmo assim a chama brilhoupor
alguns minutos antes de seextinguir.
— O-o-opa — disse o dragão,rindo maldosamente. — Perdão. Ésó uma
brincadeirinha que uso paraentreter os amigos —
Então ele pousou uma garragigantesca na base do penhascoonde
Soluço estava parado.
— Já no caso dos seres humanos— continuou o dragão, pensativo -,é melhor
desossá-los. A coluna, em especial,pode fazer muitas cócegas quandodesce pela garganta..
Enquanto falava, o dragão mostravasuas garras, as unhas emergiam
lentamente das patas até parecerimensas navalhas, de quase doismetros
de largura e seis de comprimento,
com pontas que lembravam umbisturi
cirúrgico.
— A remoção dos ossos das costashumanas é um trabalho delicado— sibilou o dragão de
um jeito nojento -, mas se trata deuma tarefa na qual sou exímio..uma pequena incisão na parte detrás da nuca. — Ele fez um gestona direção do pescoço de Soluço.— Um leve toque para baixo edepois é só puxar.. É praticamenteindolor.. para MIM.
Os olhos do dragão iluminaram-secom o mais puro prazer.
Soluço estava pensando realmenterápido. Nada melhor que encarar a
Morte de frente para acelerar ospensamentos. O que será que elesabia
sobre dragões que poderiafuncionar contra um MonstroInvencível como
aquele?
Ele conseguia ver mentalmente apágina com suas anotações sobre
Motivar um dragão. GRATIDÃO:os dragões nunca sentem gratidão.MEDO:
não funciona comigo. GUIA: nãoera uma boa ideia àquela altura do
campeonato. VAIDADE eVINGANÇA: poderiam ser úteis,mas Soluço não
sabia como despertar taissentimentos. Restavam as PIADASe as CHARADAS,
mas o dragão dava a impressão deestar um pouco exaltado para elas.
Entretanto, pela maneira comofalava, ele nitidamente seconsiderava um
tipo filosófico. Talvez Soluçoconseguisse ganhar um pouco detempo se
começasse uma conversainteressante...
— Eu já ouvi falar de jantardançante — disse Soluço —, maso que é exatamente um jantarcantante?
— Boa pergunta — disse o dragão,
surpreso. — Na verdade, trata-sede uma pergunta
EXCELENTE, mesmo.
Ele recolheu as garras, e Soluçosuspirou aliviado.
— Já faz muito tempo desde queuma refeição minha demonstroualguma inteligência. Geralmente,todos estão muito preocupados emsalvar sua pequena vida para sepreocupar com as QuestõesRealmente Importantes. Agoradeixe-me raciocinar — disse odragão, e, enquanto refletia, garfou
com a ponta da unha uma ovelhaque estava reclamando e mastigou-a,
compenetrado.
Soluço sentiu pena da ovelha, masficou profundamente aliviado por
não ser ele quem desaparecia pelagigantesca garganta reptiliana.
— Como posso colocar a questãopara um cérebro tão menor emenos inteligente que o meu.. O
problema é que todos, de um jeitoou de outro, somos o jantar.
Comida que caminha, fala,respira, é isso o que somos. Vejavocê, por exemplo. VOCÊ estáprestes a ser devorado por MIM,então é uma refeição. Isso é óbvio.
Mas até mesmo um carnívoroassassino como eu será jantadopor vermes um dia. Estamos todosroubando momentos preciosos daspacíficas mandíbulas do tempo —disse o dragão
descontraidamente.
Ele continuou:
— É por isso que é tão importante
— ele continuou — que o jantarcante da maneira mais belapossível.
Ele fez um gesto na direção doestômago, de onde se ouvia umacanção, embora ela estivesseficando cada vez mais fraca.
Seres humanos nunca têm gosto,
mas se você temperar um tantinho
Terá um bom almoço
jogando neles um salzinho.
— Esse jantar em PARTICULAR
— disse o dragão — que você estáouvindo cantar agora era umdragão menor que eu, mas muitoconvencido. Eu o devorei há meiahora.
— Isso não é canibalismo? —indagou Soluço.
— É delicioso, isso sim — disse odragão. — Além disso, não se podechamar um ARTISTA como eu deCANIBAL. — Ele agora pareciabem exasperado. — Você é muitorude para
uma criatura tão pequenina. O que
você quer, Jantarzinho?
— Eu vim — disse Soluço —descobrir se você veio em PAZ ouse quer GUERRA.
— Ah, em paz, eu acho — disse odragão. — Mas eu vou matar vocês— ele acrescentou.
— Todos nós? — indagou Soluço.
— Primeiro você — disse o dragãoeducadamente. — E em seguidatodos os outros,
mas depois que eu tirar umasoneca e ficar com fome de novo.
Leva um tempo para se despertarcompletamente de um Coma porAdormecimento.
— Mas isso é tão injusto — disseSoluço. — Por que VOCÊ podesair jantando todo mundo, sóporque é o maior de todos?
— O mundo é assim — disse odragão. — Além disso, você vaientender meu ponto de vistadepois que estiver dentro de mim— Essa é a parte boa da digestão..Mas onde foi parar minhaeducação?
Primeiro, eu preciso meapresentar. Sou Morte Verde.Como você se chama,Jantarzinho?
— Soluço Spantosicus StrondusTerce i ro — disse ele. Entãoaconteceu o fato mais
extraordinário. Quando Soluçopronunciou seu nome, Morte
Verde estremeceu, como se umvento súbito tivesse provocado neleum
calafrio. Nem ele nem Soluço
repararam nisso.
— Hum- — disse Morte Verde. —Tenho certeza de que ouvi essenome antes. Mas é um
nome muito longo, então vouchamá-lo apenas de Jantarzinho.Agora, antes que eu o devore, digaqual é seu problema.
— Meu problema? — indagouSoluço.
— Isso mesmo — disse o dragão.— Algo do tipo “Por que eu nãosou mais parecido com meu pai?”,ou “Por que é tão duro ser um
herói?”, ou “Melequento seria umChefe melhor que eu?” Eu járesolvi problemas de muitas deminhas refeições. De algum modo,quando o jantar depara com umProblema Realmente Gigantescocomo eu, as outras questõesadquirem a proporção certa.
— Deixe eu entender isso direito— disse Soluço. — Você sabe tudosobre meu pai, sobre eu não serexatamente um herói e tudo omais?
— Posso enxergar esse tipo decoisa — disse Morte Verde com
modéstia.
— E você quer que eu lhe contemeus problemas para depois medevorar?
— Voltamos ao início novamente— suspirou Morte Verde. — Todosnós seremos
devorados UM DIA. Você podeganhar tempo extra se forespertinho. Se me der unspedacinhos seus para que eu váfritando.”
Morte Verde bocejou.
— De repente fiquei muitocansado — disse ele. — Você é umaperitivo esperto, poderia meprender por ANOS numa conversa... — E o dragão bocejou outra vez.— Estou muito
fatigado para comê-lo agora, voltedaqui a algumas horas.. então voulhe dizer como lidar com seuproblema. Tenho a impressão deque posso ajudá-lo..
E dessa vez o terrível monstrorealmente adormeceu, roncandobem alto.
Suas garras enormes relaxaram seabriram, e as ovelhas que restavam,
tremendo de terror, fugiram dasunhas e dispararam pelo caminhodo
rochedo.
Soluço ficou olhando o dragão porum minuto pensativo, depois
caminhou lentamente pela trilha queconduzia à vila.
Todos o cumprimentaram quandoele atravessou o portão. Ele foi
carregado nos ombros e colocadodiante de seu pai.
— Bem, meu filho — disse Stoico.— A besta veio em PAZ ou deseja
GUERRA?
— Ele disse que veio em paz —afirmou Soluço. Todos aclamarame
bateram os pés. Soluço ergueu amão, pedindo silêncio.
— Mas assim mesmo ele vai nosmatar.
13. QUANDO A GRITARIA NÃOFUNCIONA
O dragão dormia enquanto oConselho de Guerra discutia qualseria o
próximo passo.
— Vou escrever uma carta cheia depalavrões para o Professor Traste
— disse Stoico, o Imenso. — Esselivro precisa de muito maisPALAVRAS que
digam o que fazer quando a gritarianão funciona.
Isso revela o quanto Stoico estavabravo — se dependesse dele, nunca
escreveria uma carta.
Stoico, na verdade, estavamuitíssimo abalado, pela primeiravez na
vida.
“É isso que acontece quando não sesegue a Lei”, disse a si mesmo. “Se
eu tivesse banido os meninos nanoite passada, como deveria terfeito, eles
não estariam aqui para morrer como restante de nós. Eu deveria ter
confiado em Thor.”
Morgadão, o Cabeça-oca, aindanão tinha percebido a gravidade da
situação. Ele achava que se tratavade uma questão de construir um
aparelho, algo como um megafone,para conseguir um Grito ainda mais
alto.
— Um dragão gigante só precisa deum Grito gigante — disse ele.
— Nós já TENTAMOS isso, seuCabeça de Plâncton — rebateuStoico.
— QUEM É QUE VOCÊ ESTÁCHAMANDO DE CABEÇA DEPLÂNCTON? —
indagou Morgadão, e eles ficaramcara a cara feito dois leões-marinhos
furiosos.
Soluço suspirou e saiu caminhandoda vila.
Ele estava com a sensação de que
os adultos não encontrariam
nenhum estratagema astuto.
Para surpresa de Soluço, ele foiseguido; não só por Perna-de-peixe,
mas por todos os Calouros das duasTribos, os Hooligans Cabeludos Eos
Cabeças-ocas.
Eles formaram um semicírculo aoredor de Soluço.
— Então, Soluço — disseImpiedoso, o Cabeça-oca. — 0 que
faremos
agora?
— Por que é que você estáperguntando isso a SOLUÇO? —indagou
Melequento, irado. — Você não vaiperguntar ao INÚTIL como tirar agente
dessa confusão, não é? Ele,sozinho, nos eliminou do TesteFinal de
Iniciação. Estávamos prestes a serbanidos e comidos por canibais,
tudo
por causa DELE. O cara nemconsegue controlar um dragão dotamanho de
uma lacraia.
— VOCÊ consegue conversar comdragões, Melequento? — perguntou
Perna-de-peixe.
— Tenho orgulho em dizer que não— disse Melequento, com
dignidade.
— Bem, cale a boca, então — dissePerna-de-peixe. Melequento pegou
o braço de Perna-de-peixe ecomeçou a torcê-lo.
— Ninguém, mas NINGUÉMmesmo, manda MALVADOMELEQUENTO calar
a boca.
— Eu mando — retrucouImpiedoso, o Cabeça-oca. Eleagarrou
Melequento pela camisa e olevantou do chão. — SEU dragão
provocou
nosso fracasso tanto quanto oDELE. Eu não vi o dragão deninguém aqui
sentado, dando uma de bonzinho nomeio da briga. VOCÊ cale a bocaou
vou arrancar todos os seusmembros e atirá-los às gaivotas,seu coração
enrugado, cérebro de alga, PORCOengolidor de lula.
Melequento fitou os olhos pequenos
e firmes de Impiedoso.
E calou a boca.
Impiedoso o derrubou no chão elimpou as mãos na túnica, com arde
desprezo.
— De qualquer modo — disseImpiedoso —, MEU pai tambémestava
naquele estúpido Conselho deAnciões. Estou com Soluço. Quetipo de pai
coloca suas Leis idiotas acima davida do filho? Que tipo de Testeestúpido
era aquele, afinal? Se salvarmostodas essas pessoas burras de umdragão
DE VERDADE, como o que está lána praia, talvez eles nos deixemfazer parte
dessa Tribo estúpida, no final.
“BOM, BOM, BOM”, pensouSoluço. “Essa é uma reviravolta dodestino.
Talvez o dragão esteja certo, elevai me ajudar nessa história decomo me
tornar um herói. Antes de medevorar, é claro.”
Bastou um único encontro comMorte Verde, e lá estavamdezenove
jovens bárbaros, a maioria delesmaior, mais forte e mais corajosaque
Soluço, todos olhando o meninocom expectativa, esperando que ele
lhes
dissesse o que fazer.
Soluço ficou na ponta dos pés etentou fazer cara de herói.
— O.K. — disse. — Preciso de umtempo para pensar.
— ABRAM ESPAÇO PROGAROTO AQUI! — berrouImpiedoso, empurrando
todos os outros. Ele puxou umapedra para Soluço se sentar.
— Pense o tempo que quiser, cara
— disse Impiedoso. — Trata-se de
uma situação que exige muitareflexão, e tenho a impressão deque você é o
único aqui que sabe refletir.Qualquer pessoa que consegueconversar com
um tubarão alado do tamanho de umplaneta por vinte minutos e saircom
vida é um pensador melhor que eu.
Soluço percebeu que começava asimpatizar com Impiedoso, o
Cabeça-
oca.
— QUIETOS! — gritou Impiedoso.— SOLUÇO ESTÁ PENSANDO.
Soluço pensou. E pensou.
***
Depois de mais ou menos meiahora, Impiedoso disse:
— Seja lá o que você estiverpensando para se livrar daqueledragão,
precisa servir para o outro também.
— Tem OUTRO dragão? —indagou Soluço. Impiedoso fez quesim com a
cabeça.
— Fui até o Ponto Culminante e oavistei enquanto você conversava
com o Monstro Verde.
— TUDO BEM — disse Soluço.— Na verdade, essa é uma boanotícia.
Vamos dar uma olhada no novo
Horror.
O caminho até o Ponto Culminanteestava imundo com conchas e
ossadas de golfinhos espalhadaspela tempestade gigante. Enquanto
andavam, eles chegaram a passardiante até mesmo dos destroços deuma
das embarcações preferidas deStoico, o Pura Aventura, que tinhanaufragado
havia sete anos e agora estavaempoleirado de um jeito esquisito
numa
rocha a mais de meio caminho dacolina mais alta de Berk.
Lá do topo era possível ver quasetoda a costa de Berk e o mar ao
redor. Do outro lado da ilha, umdragão ocupava todo o espaço daCaverna
Oculta e ainda sobrava para oslados.
O queixo enorme e malignodescansava apoiando no rochedocomo se
fosse um travesseiro. Colunasimensas de fumaça violetaescapavam de
suas narinas roncantes.
Era outro DragonusmarinhusGigantescus Maximus, de uma cor
púrpura gloriosa, e era um poucomaior que o dragão na Praia Longa.
— Acho que deve se chamar MortePúrpura — sussurrou Soluço,
tremendo. — É disso queprecisamos. Você tem certeza deque não existem
outros dragões?
Impiedoso riu, um pouco histérico.
— Acho que são só essas duasmáquinas de matar, pesadelosmesmo.
Dois não são o bastante para você?
***
De volta ao Ponto Culminante,Soluço delineou seu Plano de Ação.
Era Diabolicamente Astuto, e umpouco desesperado.
— Não somos grandes o bastantepara lutar contra esses dragões —
disse Soluço —, mas eles podemlutar UM CONTRA 0 OUTRO.Precisamos fazê-
los ficar realmente bravos um como outro. Nós, Hooligans Cabeludos,
concentraremos nossos esforços noMorte Verde, e vocês, Cabeças-ocas, no
Morte Púrpura. E só vamosprecisar de nossos dragões, queparecem ter
sumido, então é melhor começar achamá-los.
Eles saíram gritando pelos dragões,o mais alto possível, e mesmo
quando gritaram mais alto que onormal não houve resposta.
Os vinte dragões que pertenciamaos calouros não estavam, na
realidade, muito longe. Eles tinhamfeito as pazes depois da briga de
dragões e agora se escondiam numpântano assustador a alguns
quilômetros do lugar onde osmeninos ficaram, perto do PontoCulminante.
Estavam agachados como se fossemgatos gigantes, entre as folhagens,os
olhos malevolentes brilhando.Tinham uma cor tão parecida com ado
pântano que estavam perfeitamentecamuflados no lamaçal. Se vocêfosse
um coelho ou um veado, não
perceberia nada até sentir a garranas costas
ou o fogo quente na nuca.
Vinham seguindo os meninos haviaalgum tempo.
— Então — sussurrou Lagarta deFogo, a língua cintilando,ameaçadora
—, o que vamos fazer agora?
O poder está mudando de mãosnesta ilha. Os Mestres não serão os
mesmos. Eles estão aprisionados,
feito lagostas no pote. Nós , não.Podemos
voar sempre que quisermos. Vamosobedecer ou desertar?
Um dragão não é o tipo de criaturaque gosta de ajudar perdedores.
— Seja qual for a atitude —murmurou Garra Brilhante —,vamos tomá-la
RAPIDAMENTE, porque minhasasas estão congelando.
— Podemos matar os meninosagora e levá-los como oferenda ao
Novo Mestre — sugeriu
Lesma
Marinha, com um grunhido deprazer.
— Quem, o grande Demônio verdeque está na praia? —disse VacaAterrorizante
calmamente. — Não gosto do olhardele. Ele tem fome demais. Vamosacabar sendo a próxima
oferenda.
— Vamos voar, então — disse
Garra Brilhante, e os outrosmurmuraram,
concordando.
— S-s-silêncio — sibilou Lagartade Fogo. — Essas ilhas sãoperigosas — ela disse comdesdém. — Podemos voar paraescapar de um perigo e cair emoutro. Acho que devemos
obedecê-los até termos certeza deque foram derrotados. Quandochegar a hora, eu darei o sinalpara desertar.
E assim, como se saídos de lugar
nenhum, Lagarta de Fogo, Lesma
Marinha, Vaca Aterrorizante,Matador, Garra Brilhante, Croco-tigre e todos
os outros dragões voaram de seusesconderijos e subiram devagar,
traçando círculos até alcançar oPonto Culminante, depois pousaramno
braço esticado de cada garoto.
Por último veio Banguela,reclamando horrivelmente.
14. O PLANODIABOLICAMENTEASTUTOOs dragões protestaram um pouco,mas os meninos berraram para que
eles fizessem fila.
Todos com exceção de Banguela,que se recusou terminantemente a
obedecer.
— V-v-vocês devem estar b-b-brincando — debochou o pequenodragão. — Eu me
recuso a ir a qualquer lugar P-P-PERTO de um D-D-Dragonusmarinhus GigantescusM-M-Maximus. Aquelas coisas sãop-p-perigosas. Vou ficar aqui,observando vocês.
Soluço lhe deu uma bronca, depoisfez chantagem e ainda o ameaçou,
tudo em vão.
— Estão vendo? — disseMelequento. — O Inútil nãoconsegue
convencer nem seu próprio dragão
a participar de seu plano patético.E é
NESSA pessoa que vocês confiampara nos tirar da confusão?
— Humpf! — resmungou Bafoca deMaluquício.
— AH, CALABOCA, Melequento!— disseram os outros meninos em
coro.
Soluço deu um suspiro e desistiu.
— Tudo bem, então. Banguela,você fica sentado aqui e perde
todo o agito! Agora, quero quetodos desçam até o Recanto doNinho de Gaivota e recolham todasas
penas de pássaros que conseguirem.Vamos fazer bombas de penas...
— Penas de pássaros! —desdenhou Melequento. -Esseimbecil acha
que pode enfrentar uma criaturaDAQUELA com penas! O aço friode uma
espada é a única língua que essetipo de bicho vai compreender.
— Os dragões têm tendência aasma — explicou Soluço. — Porcausa
de tanto soltar fogo. A fumaça entranos pulmões.
— Então você acha que o monstrovai morrer ali, de asma, por causa
de umas poucas BOMBAS DEPENAS? Porque você não oalimenta só com
peixe frito para ver se ele cai mortocom um ataque cardíaco daqui a uns
vinte anos? — ironizouMelequento.
— Não — disse Soluço, compaciência -, as bombas de penas sóvão
deixá-lo desnorteado, assim ele nãosai matando ninguém. Melequento,
Impiedoso, vou precisar orientarLagarta de Fogo e Matador quantoao que
deverão dizer — continuou Soluço.
— Eu não vou arriscar meu dragãonesse plano maluco — disse
Melequento.
— AH, VAI SIM! — sussurrouImpiedoso, os dentes rangendo, opunho
brandindo contra Melequento. —Esse cara é um CHATO, Soluço.Não sei
como você consegue aguentá-lo.Ouça, Cheio de Meleca, por algummilagre
você capturou um dragão razoável.Trate de MANDAR seu bichoobedecer ao
Soluço ou eu, PESSOALMENTE,terei o prazer de chutar você até apraia, e
depois de lá para cá.
— O.k. — disse Melequento,irritado. — Mas não me culpe setodos nós
virarmos churrasquinho por causada péssima ideia desse Inútil.
***
Soluço supervisionou a confecçãodas bombas de pena.
Os meninos recolheram grandesbraçadas de penas do Recanto do
Ninho das Gaivotas.
Depois, eles roubaram todo omaterial que conseguiram encontrarlá:
os babadores de Garganta-de-sapo,os pijamas de Bocão, a tenda de
Morgadão, o Cabeça-oca, o sutiãde Valhalarama -quaisquer objetosque
encontrassem. Os adultos estavamocupados demais trocando ideias
para
reparar nisso.
Melequento ficou um pouco maisanimado por poder exibir seu
impressionante talento para oRoubo. Ele conseguiu afanar acueca de
Barrigão Caído de Cervejaenquanto ele estava de pé no meioda bagunça
na qual se discutia um Plano-deAção. O homem não reparou, nemsequer
quando estendeu a mão peluda,distraidamente, para coçar abarrigona —
ele estava muito ocupado falandode Métodos para Gritar Melhor eMais
Alto.
Os meninos então embrulharam aspenas com o material que
conseguiram, de modo que seespalhassem no ar quando asbombas
fossem lançadas.
Cada time de dez meninos estavaarmado com uma centena dessas
bombas de penas, guardadas em umenorme saco feito de uma antigavela
de barco.
Soluço liderou os Hooligans nadireção da Praia Longa, enquanto
Impiedoso conduzia os Cabeças-ocas até a Caverna Oculta.
A fileira de meninos conversavaanimada enquanto seguia Soluço;
Espinha-de-porco e Perdido, naretaguarda, arrastavam a vela, e os
dragões voavam em círculos edavam rasantes um pouco acima desuas
cabeças. Vikings são destemidos,criados para serem soldados, entãoaté
mesmo Soluço e Perna-de-peixeficaram animados em pensar nabatalha
que estavam prestes a travar.
Mas, assim que o monstro surgiu,
os garotos e seus dragões
instantaneamente ficaram agitados,com o coração disparado.
Era impossível que UMACRIATURA fosse TÃO grande.
Soluço os levou até o mais próximoque pôde da beira do precipícioque
dava para a Praia Longa.
Eles olharam para baixo e viram aterrível criatura roncando bem à
frente. Só as narinas já tinham o
tamanho de seis portas, e o fedorque saía
delas dificultava a respiração dosmeninos.
Espinha-de-porco, que sempre teveproblemas de estômago, vomitou
no arbusto, de um jeito nojento.
Soluço, Perna-de-peixe e Perdidodesamarraram as bombas de penase
as deram aos meninos. Os garotoschamaram seus dragões, baixinho, e
cada um colocou uma bomba naboca de seu animal.
Então, eles ficaram de pé na beirado penhasco com os dragões
pousados em seus braços esticados.
Essa atitude exigia quase a mesmacoragem que você precisaria ter
para saltar de uma montanha detrezentos metros de altura. Mesmocom o
monstro profundamenteadormecido, a reação natural dosgarotos teria
sido ir se esconder no pântano.
Soluço prendeu a respiração.
Ergueu o braço em sinal decomando.
— Voe — sussurrou Soluço.
— VOEM! — gritaram os meninos,e dez dragões começaram a voarem
volta da cabeça adormecida domonstro.
Assim que Morte Verde inspirou,Soluço gritou “AGORA!”, e os
dragões
lançaram as bombas de penas.
Morte Verde inspirou ar e penas.Ele despertou com um espirro
gigante, tremeu e tossiu. Lagarta deFogo, que estava pairando perto deseu
ouvido direito, fez um discurso queera mais ou menos assim, emborabem
mais irritante:
— Saudações, Dragonusinarinhus
Pusilanimus Minimus, da farte demeu pai, o Terror dos Mares. Eleestá com vontade de comer osbárbaros e, se tentar impedí-lo,ele vai devorar é VOCÊ. Nadepara longe, sua enguiaazinha, eestará a salvo. Se ficar na ilha,sentirá como as unhas dele sãoafiadas e como é forte seu bafo defogo.
O monstro gigante tentou rirsarcasticamente e tossir ao mesmo
tempo, mas isso é praticamenteimpossível. Uma pena fez ocaminho
errado e provocou ainda maistosse.
Então Lagarta de Fogo mordeu seufocinho.
Deve ter sido como receber umamordida de pulga, mas mesmoassim
o Monstro se ofendeu.
Com os olhos lacrimejando, MorteVerde deu um golpe na dragoa-
pulga e errou. Uma das garrasgigantes acabou arrancando parteda
encosta do penhasco.
Os nove dragões restantes, àquelaaltura, regressavam para pegar
mais bombas de penas com osgarotos nos rochedos.
— AGORA! — gritou Soluço, enuma fração de segundo elessoltaram as
bombas. Elas atingiram o alvo, queeram as narinas de Morte Verde, eele
entrou em colapso de tanto tossir.
— Você não pode vencer, seuverme maldito — gritou Lagarta deFogo. — Volte ao mar, onde é seulugar, e deixe que meu Mestre sesirva de seu jantar.
Agora Morte Verde estavarealmente bravo. Ele lançou-separa o lado, na
direção de Lagarta de Fogo,tentando apanhar o átomo irritantede dragoa
com as garras.
Mas capturar Lagarta de Fogo era
tão difícil para Morte Verde quanto
seria para você pegar uma moscacom as próprias mãos. Os Dragõestêm
mais habilidades que os humanosnesse tipo de jogo, mas MorteVerde não
acertava o outro dragão porqueseus olhos lacrimejavam muito.
— Errou de novo! — zombavaLagarta de Fogo, divertindo-seimensamente
enquanto escapulia das garras de
Morte Verde.
Morte Verde, por sua vez, saltou nadireção dela, mas Lagarta de Fogo
sobrevoou o canto do rochedo,desviando em direção à CavernaOculta.
Soluço e os meninos correram atrásdeles o mais rápido que
conseguiram, mas era impossívelalcançá-los. Correr no mato não émuito
diferente de correr com lama até ojoelho, e eles ficavam afundando no
atoleiro do pântano.
À medida que Lagarta de Fogo e oMonstro se afastavam numa corrida
pela costa, levava cada vez maistempo para que os outros dragões
voassem até os meninos eregressassem com mais bombas depenas.
Os comandantes militares entrevocês reconhecerão o tipo deproblema
que ocorre quando a linha desuprimentos não consegue mais
alcançar as
forças no fronte.
Finalmente, estava levando tantotempo para chegar a munição que
houve uma hora em que não haviamais penas fazendo cócegas nas
narinas de Morte Verde. Seus olhospararam de lacrimejar e, derepente,
ele conseguiu enxergar nitidamenteLagarta de Fogo...
Num reflexo rápido como um
relâmpago, Morte Verde pegou adragoa
vermelha com sua garra gigantesca.
Foi muita sorte de Lagarta de Fogoque naquele exato momento Morte
Púrpura estivesse vindo do outrolado e golpeasse Morte Verdediretamente
no estômago. O dragão soltouLagarta de Fogo por um segundo, eela
conseguiu fugir, aliviada.
Morte Verde sentou-sepesadamente no solo marinho etentou
recuperar o fôlego.
Morte Púrpura fez o mesmo.
15. A BATALHA MORTAL NOPROMONTÓRIO
DA MORTE
Enquanto Soluço e sua equipeirritavam Morte Verde, Impiedosoe o grupo
dele enfureciam Morte Púrpura.
Os dois monstros se pegaram agolpes quando se encontraram na
esquina do Promontório da Morte.
Uma das asas de Lagarta de Fogofora quebrada em dois lugares
depois de ser atingida por MorteVerde, mas ela se defendera
corajosamente e ainda fizera odiscurso final no ouvido domonstro,
quando ele se sentou, tentandorecuperar o fôlego.
— Aqui está ele — gritou Lagartade Fogo. — Meu Mestre, o HorrorPúrpura, que vai
arrancar cada membro de seucorpo e cuspir suas unhas!
E Lagarta de Fogo saiu voando emcírculos o mais rápido possível,com
uma asa pendurada.
***
Morte Verde estava num péssimodia.
Um Dragonusmarinhus GiantescusMaximus jamais sonharia em
atacar outro animal da mesmaespécie. Eles evitam lutar unscontra os
outros porque sabem que sãofortemente armados e a batalhapode acabar
na morte de ambos.
Contudo, Morte Verde tinha sidoatacado, tinha escutado zombarias
da parte de criaturas minúsculasque feriram e ultrajaram sua
vaidade.
Essa criatura, que parecia pensarque era mais forte que MorteVerde, o
golpeara fortemente no peito.
Morte Verde não pensou duasvezes.
Ele saltou sobre Morte Púrpuracom as garras estendidas, soltando
grandes bolas de fogo queiluminaram a paisagem ao redorcomo se fossem
raios.
A terra e o mar chocalhavam comoem um grande terremoto à medida
que os dois monstros gigantescos seenfrentavam loucamente, gritandoas
piores maldições em dragonês.
Morte Verde destruiucompletamente o Recife dosNaufragados com
um único golpe da pata.
As asas de Morte Púrpura
provocaram grandes deslizamentosnos
rochedos do Promontório da Morte.
Agora que seu trabalho haviaterminado, os meninos vikingsestavam
correndo o mais rapidamentepossível, os olhos esbugalhados deterror,
temendo que um dos dragõessobrevivesse à luta. De vez emquando, eles
olhavam para trás, tentando
descobrir como estava indo abatalha.
Gritos horríveis, temíveis cortavamo ar enquanto os dragões
arrancavam pedaços uns dos outros.
O Dragão do Mar é a criatura commais defesas que já viveu neste
planeta. Em alguns pontos, sua pelechega a ter um metro de espessura,
coberta de conchas e crustáceosque funcionam quase como uma
armadura.
É também a criatura mais bemarmada que já viveu neste planeta,
com garras de navalha e dentes queconseguem rasgar a couraça de sua
própria espécie com se fosse umafolha de papel...
Agora, ambos os dragões tinhamferimentos horríveis, e o sangueverde
deles jorrava.
Morte Verde agarrou MortePúrpura pelo pescoço, tentandoenforcá-lo.
Morte Púrpura tentou sufocar MorteVerde com um abraço de urso.
Nenhum dos dois soltava o outro —e a pegada de um dragão é algo
horrível. Eles lembravam Soluçodo desenho em um dos escudos deseu
pai: dois dragões formando umcírculo perfeito enquanto sedevoravam,
cada um com a cauda do outro naboca.
Os dragões lutavam com selvageria
na arrebentação, tossindo e
engasgando, os olhos esbugalhados,as caudas criando ondas imensasque
ensopavam os meninos, emboraeles estivessem fugindo dali o mais
depressa que podiam.
Finalmente, com derradeirostremores e ruídos mortais, as duas
bestas imensas ficaram imóveis naágua. Reinou o silêncio.
Os meninos pararam de correr. Eles
ficaram recuperando o fôlego,
observando com medo os monstrosimóveis. Os dragões dos meninos,que
voavam um pouco adiante dosdonos, também se viraram, aindapairando
no ar.
As Criaturas Terríveis não semoveram.
Os meninos aguardaram por doislongos minutos, enquanto as ondas
batiam gentilmente contra aquelescorpos imensos e imóveis.
— Eles estão mortos — disseImpiedoso, finalmente. Os meninos
começaram a rir histericamente,agora que o terror tinha passado.
— Muito bem, Soluço! —Impiedoso deu um tapinha nascostas do
menino.
Mas Soluço parecia preocupado.Ele estreitava os olhos, esforçando-se
para escutar alguma som.
— Não consigo ouvir nada — disseSoluço, ansioso.
— Você não pode ouvir nada,porque eles estão MORTOS —disse
Impiedoso alegremente. — Trêsurras para Soluço!
No meio das celebrações, Lagartade Fogo soltou um grito terrível.
— DESERTEM! — ela berrou. —DESERTEM, Desertem, desertem,desertem, desertem!
A cabeça do cadáver de MorteVerde ergueu-se lentamente evirou-se
em sua direção.
— Ih, caramba... — disse Soluço.
16. O PLANODIABOLICAMENTE ASTUTODÁ
ERRADO
Soluço esperava ouvir o Canto deMorte do Dragão Verde, mas eleainda
não tinha começado.
Morte Verde estava morrendo, masainda não estava morto.
E estava muito, mas muito bravo,de verdade.
De sua boca sangrenta saía umsibilo fraco.
— Onde ele está?
Ele se ergueu e sibilou com maisforça:
— ONDE ele está? Onde ESTÁ oJantarzinho? Eu sabia que o havia
reconhecido, ele é minhamaldição, não há dúvida. OJantarzinho ME transformou emjantar. Eu, Morte Verde!
Enquanto o dragão falava, ele ia seinclinando muito lenta e
dolorosamente, os olhos fixos notopo do rochedo, onde podia ver os
pequenos seres humanos quecomeçavam a correr pela ilha denovo.
O dragão atirou para trás a cabeçae soltou um GRITO aterrorizante de
VINGANÇA, horrível e tortuoso.
— VOU devorar o JANTARZINHOantes de partir, vou mesmo —disse o dragão e deu um
salto adiante.
— CORRAM! — gritou Soluço,mas todos já estavam correndo omais
rápido que conseguiam.
A distância, Soluço conseguia veros quatrocentos guerreiros das
Tribos dos Hooligans Cabeludos e
dos Cabeças-ocas vindo do Ponto
Culminante na direção deles.Devem ter se preocupado com osumiço dos
meninos e saído para procurá-los.
“Mas eles não chegarão aqui atempo”, pensou Soluço, “e, mesmoque
isso aconteça, o que poderãofazer?”
Bem nessa hora, o dragão pousouno alto do rochedo, fazendo um
barulho enorme, e, de repente, o solestava escondido.
Vinte meninos correram em buscade refúgio sob as plantas.
O dragão pegou com uma garra omenino que estava mais próximo eo
virou de barriga para cima.
Era Bafoca. Quando o dragão o pôsde lado, murmurando “Você não..”,os
outros meninos já haviamdesaparecido no pântano.
O dragão estava muito ferido, masria levemente.
— Vocês não estão a salvo aí.Porque, embora eu não fossa vê-los, posso matá-los usando meu..FOGO!
O pântano foi incendiado com oprimeiro sopro de fogo do dragão,e os
meninos saíram correndo comoloucos.
Soluço ficou um pouco mais,porque sabia que o monstro o
aguardava.
Finalmente, o calor se tornouinsuportável, e ele respirou fundo,
fechou os olhos e correu nodescampado.
Soluço só tinha percorrido algunspoucos quilômetros quando duas
garras do dragão se fecharam emtorno dele e o levantaram. Elesubiu,
subiu, até que os outros meninospareciam pequenos pontos láembaixo.
O dragão segurou Soluço diante desi.
— Agora, NÓS DOIS somosrefeições, Jantarzinho — disseele, e atirou Soluço para o
alto.
Quando Soluço dava a segundacambalhota no ar, pensou: “Agora,
realmente, ESTE È o PIORmomento de minha vida.”
Depois ele caiu.
Soluço olhou para baixo. Lá estava
a boca do dragão, aberta como se
fosse um túnel grande, negro,cavernoso. Ele ia cair ali dentro.
17. NA BOCA DO DRAGÃO
Soluço caiu na boca do dragão, e osdentes do bicho se fecharam comose
fossem portas de prisão.
Ele estava despencando na maiscompleta escuridão cercado por um
cheiro tão horrível que erasufocante.
De repente, a queda foiinterrompida por um solavanco —a camisa do
menino se enganchara em algo e eleficou pendurado.
Soluço permaneceu ali, naescuridão, balançando suavemente.Por um
golpe de sorte sua camiseta ficarapresa em uma lança que estavafincada
na garganta do dragão desde obanquete Romano. O pé de Soluço
tocou a
parede do que ele achava ser agarganta do dragão. Os sucosdigestórios da
fera queimavam feito ácido, e eleafastou o pé.
Acima de sua cabeça, Soluço podiaouvir a grande língua do dragão
lambendo e cutucando a boca,procurando-o para mastigá-lo até amorte...
A fera não tinha a intenção deengoli-lo de uma vez só.
Um rio de gosma verde e nojentadesceu pela garganta avermelhada e
inchada do dragão. No lado opostoao que Soluço estava pendurado,dois
pequenos buracos na paredeviscosa emanavam um vaporamarelo-
esverdeado. E vez ou outra umapequena explosão ali dentro faziaescapar
uma labareda.
“Que interessante”, pensou Soluço,
que estava estranhamente calmo,
porque não conseguia acreditar queaquilo estivesse de fatoacontecendo.
“Esses buracos devem ser apassagem do fogo.”
Havia anos biólogos vikingspesquisavam de onde vinha o fogodos
dragões. Alguns alegavam que saíados pulmões; outros, do estômago.
Soluço foi o primeiro a descobriros buracos de passagem do fogo,
que, em
um dragão de tamanho normal, sãopequeninos demais para seremvistos a
olho nu.
Lá embaixo, Soluço podia ouvir adistante cantoria da refeiçãoanterior
do dragão. “Um DragonusmarinhusGigantescus Maximus obviamenteleva
muito tempo para digerir”, pensou omenino.
O barulho ainda estava bem alto:
Seres humanos nunca têm gosto,
mas se você temperar um tantinho
Terá um bom almoço
jogando neles um salzinho.
A lança lentamente se curvava como peso de Soluço. Era só uma
questão de tempo até que elaquebrasse e ele caísse, para sejuntar ao
alegre otimista que o esperava lá
embaixo.
E o que era pior: a fumaça, o calore o fedor estavam começando a
deixar Soluço confuso, de modoque ele nem sequer seIMPORTAVA mais. O
barulho horrível do batimentocardíaco do dragão adentrara opeito de
Soluço, e seu próprio coração sevira forçado a seguir aquele ritmo.
“Afinal, um dragão precisa viver”,ele começou a pensar. E depois ele
se lembrou das palavras do dragãoquando estava no alto do rochedo:
“Você pensará como eu, quandoestiver dentro de mim...”
“Ah! Não!”, pensou Soluço. “Adigestão do dragão! Já começou!”
— Eu preciso viver! Preciso viver!— ele repetia para si mesmo sem
parar, tentando desesperadamentebloquear os pensamentos dodragão.
Seguiu-se um barulho horroroso dealgo quebrando: era a lança
Romana, que começava a se partirem duas...
18. A CORAGEMEXTRAORDINÁRIA DE
BANGUELA
E esse teria sido o fim de Soluço,não fosse pela bravuraextraordinária de
um certo Devaneio Banguela.
Banguela, se você lembra, tinha serecusado a participar da batalha no
Promontório da Morte. Ele
pretendia voar para bem longe dacosta e ficar
escondido até se sentir a salvooutra vez, mas acabou demorandoum
pouco no Ponto Culminante,assustando pássaros e coelhos.
Ele devia estar se divertido muito,pois não ouviu a aproximação de
Stoico e das Tribos inteiras dosHooligans e dos Cabeças-ocas, atéque
Stoico o agarrou pelo pescoço.
— ONDE ESTÁ 0 MEU FILHO?— indagou Stoico.
Banguela deu de ombros de umjeito malcriado.
— ONDE ESTÁ 0 MEU FILHO???— gritou
Stoico tão alto que os ouvidos deBanguela estremeceram.
Banguela apontou para oPromontório da Morte.
— MOSTRE PARA MIM — disseStoico, sério. Sob o olhar duro deStoico,
Banguela voou, com relutância, atéo local, seguido pelas duas Tribos.
Eles chegaram a tempo de ver omonstro terrível atirar Soluço pelos
ares e apanhá-lo com a boca comoum petisco.
“Fim do Plano DiabolicamenteAstuto”, pensou Banguela.
Ele ia aproveitar o momento dedistração de Stoico para escaparaté
um lugar seguro quando algo odeteve.
Ninguém sabe o que foi queaconteceu.
Chegou o momento que mudariatoda a visão de mundo da Tribo dos
Hooligans. Durante séculos,acreditamos que era impossível queos dragões
tivessem pensamentos altruístas ouatos de generosidade. Mas o que
Banguela fez em seguida jamaispoderia ser explicado como algoque
correspondesse a seus interesses
naquele momento.
Todos os seus colegas, os dragõesde estimação, sobrevoavam o
Oceano Interno. Assim que ouviramo grito de Lagarta de Fogo dizendoque
“desertem” , os que estavamescondidos nas cavernas, ou nasfendas, ou
agachados debaixo de plantas,levantaram voo juntos, como em um
enxame, e abandonaram o antigosMestres, fugindo até onde suas asas
os
levavam.
Aqueles do Rochedo do DragãoSelvagem já tinham partido havia
horas.
Mas algo impediu Banguela deacompanhá-los — talvez tenha sitoo
grito de sofrimento e impotência deStoico, aquele “NÃOOOOO!, que o
comovera. Ou talvez, em algumlugar de seu coração verde de
dragão
egoísta, ele realmente gostasse deSoluço e sentisse gratidão pelashoras
que passaram juntos, a atenção, aspiadas, o fato de que ele nunca
berrava, ou porque a lagosta queele lhe dera era a maior e maisgostosa de
todas.
— Dragões são E-E-EGOÍSTAS!— Banguela disse a si mesmo. —Dragões são d-d-
desalmados e impiedosos. É issoque nos t-t-torna s-s-sobreviventes.
Mesmo assim, ALGO fez com queele voltasse, ALGO fez com que ele
juntasse as asas ao corpo e voassefeito uma flecha de dragão nadireção
do Grande Monstro no topo dorochedo. Uma atitude que de fatonão era do
maior interesse de Banguela, comodisse antes.
O pequeno dragão voou direto paradentro da narina esquerda do
Monstro e começou a se moverpara cima e para baixo dentro donariz,
provocando cócegas com suas asas.
O Dragonusmarinhus respirou efungou, enrugando o nariz feito um
louco:
AAAAAHHHHH..
A criatura enfiou a garra no nariz,num gesto nojento, e tentou
arrancar a mosca que o irritava.
Banguela não conseguiu desviar dagarra a tempo e foi atingido no
peito. Mas ele estava tão animadoque mal sentiu a dor do ferimento,
continuou a fazer cócegas noMonstro, fugindo da garra quequeria pegá-lo.
—AAAAAAAAHHHHBHHHHHH...— fez o dragão. Enquanto isso,Soluço
era atirado de um lado para o outro
na garganta do animal, quebalançava
a c abeça sem parar. O meninotentava desesperadamente se manter
pendurado na lança, que podia caira qualquer momento.
— ...TCHIIIIMMMM!!!
O dragão finalmente espirrouSoluço, a lança e Banguela, e muitacaca
de nariz se espalhou na paisagem.
Banguela lembrou-se, no meio do
ar, que meninos não voam.
Ele dobrou as asas e mergulhou emdireção a Soluço, que caía com
velocidade rumo ao chão.
O dragão agarrou o garoto pelobraço e tentou suportar seu peso.As
garras de um dragão sãoextraordinariamente fortes e, aindaque não tenha
conseguido impedir a queda deSoluço, Banguela amorteceubastante o
impacto dele no chão.
Stoico atravessou o gramado comoum louco.
Ele apanhou o filho e encarou oMonstro, mantendo o escudo sobreo
corpo do menino desacordado.
Banguela escondeu-se atrás deStoico.
Morte Verde tinha se recuperado doataque de espirro. Ele avançou,
sangrando horrivelmente por causa
dos ferimentos fatais no peito e na
garganta. Abaixou sua cabeçaterrível até alcançar o nível dorochedo, e
seus olhos amarelos fitaram Stoicodiretamente.
— A hora da morte chegou paratodos nós — disse Morte Verde. —Você não f pode salvar a vida deleagora, sabe disso. Está muito,muito impotente. Meu FOGO vaiderreter seu escudo feitomanteiga..
Morte Verde abriu a boca e
respirou fundo, devagar. Stoicotentou
agarrar-se aos arbustos para evitarque fossem levados, mas ele,Soluço e
Banguela agora eram sugados lentae firmemente na direção do túnelnegro
e gigantes c o f ormado pelas mandí bulas abertas do Monstro.
Morte Verde f ez uma pausamomentânea antes de respirarnovamente,
divertindo-se em aterrorizá-los.
— É isso o que a-a-acontecequando não se respeita a Lei dosDragões.. — guinchou
Banguela, horrorizado, enquantoespiava por trás da túnica deStoico.
O monstro inflou as bochechas, eS to i c o e Banguela fi c aramesperando
o jato de f ogo.
Mas não saiu f ogo algum.
Morte Verde pare c eu surpreso.Inflou as bo c hechas e soprou commais
f orça.
E, novamente, nada de f ogo.
Ele tentou mais uma vez, e agorasua cabeça pare c ia estar ficandode
uma cor roxa estranha, tanto era seues f orço de soprar, e ele dava a
impressão de estar inchando,tornando-se cada vez maior, comose
estivesse sendo inflado.
O monstro não tinha a menor ideiado que estava acontecendo. Ele
balançou a cabeça vigorosamente,os olhos se arregalando mais emais, até
que houve um ruído tão alto que sereverberou por muitosquilômetros...
...e Morte Verde explodiu bemdiante dos olhos de todos.
Isso pode até parecer um milagre,ou intervenção dos deuses. Mas, na
realidade, havia uma explicaçãológica. Quando Soluço estavapendurado
na garganta do Dragão do Mar,repetindo desesperadamente“Preciso viver,
preciso viver”, ele tirou o capacetee encaixou os chifres nos buracosque
davam passagem para o fogo.Coube direitinho.
Então, quando o dragão tentouexpelir fogo, o bloqueio gerou uma
pressão crescente, tão grande queMorte Verde simplesmenteexplodiu.
Agora, havia pedaços de dragãovoando em todas as direções.Stoico e
Banguela tiveram uma sorteincrível, pois não foram atingidospor nada,
mesmo estando tão perto daexplosão.
Mas um único dente do dragão emchamas, de uns dois metros e meio
(um dos menores), explodiu bem nadireção de Soluço. O menino tinhasido
arrastado de debaixo do escudo deStoico quando o monstro inspirou, e
estava deitado na grama perto dopai e de Banguela, completamente
exposto.
Stoico percebeu pelo canto do olhoo movimento do dente do dragão e
mergulhou na frente dele comescudo. Só um viking seria tãorápido. Caçar
aves com arco e flexa ajuda adesenvolver esses reflexos tãoinstantâneos.
Assim, o escudo de Stoicorealmente salvou a vida de Soluço,no final.
Se não fosse por isso, o dente teriaatravessado o menino como a um
churrasquinho no espeto. Mas odente caiu e enterrou-seprofundamente
no centro do escudo de bronze, e láficou, ardendo com as labaredas
esverdeadas do fogo do dragão.
Stoico ergueu o escudo,aterrorizado com a possibilidadede que o
dente tivesse perfurado o corpo dofilho. Mas Soluço estava a salvo.De
olhos abertos ele prestava atençãoa algo. Ouvia um som estranho que
parecia sair do próprio dente. Era oruído de uma cantoria trêmula,cheia
de ecos, como o vento atravessando
cavernas de coral, e que dizia maisou
menos isso:
Eu digo à Grande Baleia-azul
que logo sua vida terminará,
Quando ma cauda virar ao sul
o sol se apagará e a luadesaparecerá.
Ventos e brisas estremecerão
quando começar meu rugido.
As próprias ondas balançarão
quando a praia ouvir meugemido...
— Escutem — disse Soluço, feliz,antes de desmaiar. — O jantar está
cantando.
19. SOLUÇO, O ÚTIL
Os quatrocentos vikings que agorase reuniam no topo do rochedo
celebraram a vitória de Soluço eBanguela.
Era uma cena estranha, bárbara,todos estavam cobertos com gosma
verde, e mesmo assim gritavam epulavam de alegria por aqueles que
tinham escapado da Morte Certa.
Ao redor deles, a luta terrível queacabara de acontecer havia
devastado a paisagem. Uma fumaçasufocante, verde-acinzentada,pairava
por toda parte, dificultando a visão.Grande parte do Promontório daMorte
havia sido atingida durante a luta.Avalanches lançaram rochas àpraia. O
corpo montanhoso e terrível deMorte Púrpura estava afundandonas
águas. Pedaços das entranhas e osseus ossos de Morte Verdeespalhavam-
se por todo canto, e grandes áreasde grama e plantas ainda estavamem
chamas.
Contudo, por um milagreextraordinário, quase todos osvikings e seus
dragões haviam sobrevivido àquelabatalha temível.
Eu digo “quase todos”, porquequando Banguela se adiantou para
lamber o rosto de seu Mestre comsua língua bifurcada e brilhante,Stoico
reparou numa ferida horrível nopeito do pequeno dragão, quederramava
sangue verde brilhante. A garra deMorte.
Verde ferira o pequenino bem nocoração — que, supostamente, ele
não deveria ter.
Banguela acompanhou o olhar deStoico e olhou para baixo pela
primeira vez. Ele soltou um guinchode terror e desmaiou na hora.
***
Dois dias depois Soluço acordou,sentindo o corpo dolorido e muita
fome.
Era tarde da noite. Ele estavadeitado na grande cama de Stoico.O quarto
parecia lotado de gente. Stoicoestava ali, bem como Valhalarama,Velho
Enrugado, Perna-de-peixe e amaioria dos Anciões da Tribo.
Havia também dragões: Bafo deVerme e Garra de Gancho,golpeando-
se e mordiscando as pernas de
Stoico, além de Vaca Aterrorizante,
empoleirada no pé da cama. (Osdragões tinha voado de voltaquando
ouviram a explosão e perceberamque os Mestres de Berk eramnovamente
os Líderes. Como eram dragões,eles não deram explicações sobreseu
desaparecimento, mas fizeram ofavor de se comportar um poucomelhor.)
— Ele está vivo! — gritou Stoicotriunfante, e todos começaram a
celebrar.
Valhalarama deu um soco no ombrode Soluço, o que para a mãe
viking equivale a um abraçocaloroso.
— Estamos todos aqui! — disseValhalarama -Torcendo que você
acordasse.
Soluço sentou-se na cama,subitamente bem desperto.
— Mas não estão todos aqui — eledisse. — Onde está Banguela?
Todos olharam para baixo, eninguém conseguia encarar omenino.
Stoico limpou a garganta, sem jeito.
— Sinto muito, meu filho, masBanguela não conseguiu sobreviver.Ele
morreu há algumas horas.
O restante da Tribo está preparandoum Funeral de Herói neste
momento. É uma grande honra. —Stoico prosseguiu, apressadamente:—
Ele será o primeiro dragão areceber o enterro de um viking.
— Como soube que ele estavamorto? — indagou Soluço.
Stoico pareceu surpreso.
— Bem, você sabe, o de sempre:sem pulso, sem respiração, a pelefria.
Ele estava nitidamente morto,infelizmente.
— Ah, Pai, PELO AMOR DETHOR! — disse Soluço, muitoirritado. — O
senhor não sabe NADA sobredragões? Isso pode ser um COMAPOR
ADORMECIMENTO, é um BOMSINAL, provavelmente ele está securando.
— Ah, pelas barbas de Thor —disse Perna-de-peixe. — Elesderam
início ao funeral há meia hora...
— Precisamos detê-los — gritouSoluço. — Os dragões não são
totalmente resistentes ao fogo. Vãoqueimá-lo vivo!
Soluço saltou da cama com umaenergia surpreendente para as
circunstâncias. Correu para fora doquarto e da casa, seguido porPerna-
de-peixe e por Vaca Aterrorizante.
***
No Porto dos Hooligans Cabeludos,
a cerimônia impressionante doFuneral
Militar Viking estava quaseterminando.
Era uma visão inacreditável, seSoluço estivesse no clima paraapreciá-
la.
O céu estava cravejado de estrelas.O mar, liso como vidro. As Tribos
inteiras dos Hooligans e dosCabeças-ocas estavam reunidas,imóveis,
sobre as rochas, e cada membrocarregava uma tocha acesa.
Até mesmo Melequento estava nofuneral, tentando parecer solene,
com o capacete fora da cabeça emsinal de respeito e o cabelo bem
penteado.
— Vá com Thor, salamandra alada— ele sussurrou discretamente
para Bafoca de Maluquício, quedeu uma risadinha.
— Quem mandou quebrar a Lei.
Ele mereceu — zombou Lagarta deFogo para
Lesma-marinha, que limpava ofocinho no ombro de Bafoca.
A réplica de um barco viking foralançada ao mar e se afastava
lentamente da Ilha de Berk,seguindo a trilha do reflexo da luapara além
dos vultos assustadores da frotadestruída de Stoico e de Morgadão.
Soluço conseguia enxergar opequeno corpo de Banguela
esticado na
embarcação. Ao lado dele,repousava o escudo de Stoico, oDente de
Dragão ainda cravado nele como sefosse uma estranha espadaalienígena.
Bocão fez soar em seu chifre otoque de luto. Ele agora já estava
completamente recuperado daquelevoo inesperado.
— AAATENÇÃO!!!
Vinte e seis dos melhores arqueirosde Stoico, que aguardavam do lado
direito do Porto, ergueram seusarcos. Cada arco estava munido deuma
flecha em chamas.
— N-N-NÃÃOOOO! — Soluçosoltou o berro mais alto de suavida.
Mas era tarde demais.
As flechas reluzentes rasgaram o ar.Caíram no barco e o incendiaram.
Algumas pessoas no meio damultidão viraram-se para olharpara cima,
imaginando quem estariaperturbando um ritual tão solene. —SOLUÇO! —
gritou Impiedoso, o Cabeça-oca,quando reconheceu com alegria afigura
no horizonte. Seguiu-se ummurmúrio de admiração entre aspessoas, que
sussurravam: “É o Soluço?” e
depois gritavam e celebravam,repetindo o
nome do menino cada vez mais alto.
Melequento ficou de queixo caído.Parecia decepcionado de verSoluço
são e salvo. Ele já estava quasesuportando a ideia de Soluçotransformado
em herói morto, mas um Soluçoherói e vivinho da silva ia sermuito difícil de
engolir...
Soluço observava a embarcação emchamas, as lágrimas escorrendo
por seu rosto.
O barco empinou, e o escudo deStoico e o Dente afundaram naágua.
Assim que a última ponta do barcoestava para submergir nas ondas,
quase consumida por fogo e água,as chamas se elevaram no céu. E,
escapando do fogo, as asas abertascomo as de uma Fênix, deixandouma
trilha de cometa, surgiu... Banguela.
Ele alçou voo bem alto, até asestrelas, traçando um caminho defogo
enquanto se deslocava. Depoismergulhou bem baixo, na direçãodo mar, e
desviou no último momento, diantedos gritos de admiração dos
espectadores. Soluço estavapreocupado, temendo que Banguelaestivesse
sentindo dor, até que este
sobrevoou a cabeça de Soluço, queouviu o grito
de triunfo do dragão.
Por mais bobagens que Banguelativesse cometido, era impossível
deixar de admirar seu talento parase aproveitar da ocasião. Dragões
Comuns ou de Jardim não sãonormalmente conhecidos por suas
habilidades de voo espetaculares,mas até mesmo um deles é capaz dedar
um show quando está em chamas.
Banguela riscou o céu noturnocomo se fosse fogos de artifícios,
exibindo-se em saltos ornamentais,arabescos aéreos. A multidão, queum
minuto antes pensava que iriachorar a morte de Banguela e deSoluço,
agora delirava de alegria ao ladodeles, celebrando histericamenteenquanto
o dragãozinho arrasava.
Finalmente, quando o fogo ficouquente demais, Banguela mergulhou
no mar para apagá-lo, voltou àsuperfície e pousou no ombro deSoluço.
Ali, ele agradeceu os intensosaplausos com algumas reverênciaspara a
direita e para a esquerda e soltouum guincho de autoelogio tãoesquisito
que quase arranhou sua imagem.
Stoico sinalizou para que a
multidão silenciasse e deu início ao
seguinte discurso:
— Hooligans e Cabeças-ocas!Terror dos Mares, Filhos de Thor e
temíveis Mestres de Dragões!Sinto-me honrado por presenteá-loscom o
mais recente membro da Tribo dosHooligans Cabeludos. Eu lhesapresento
meu filho: SOLUÇO, O ÚTIL!
E as palavras “Soluço, o Útil”
ecoaram nas colinas, espalharam-se
entre a alegre multidão e foramcarregadas pela brisa noturna, atéque o
mundo inteiro parecia dizer aSoluço que, no fim das contas, eletinha, sim,
alguma utilidade.
E essa, meus amigos, e s s a é amaneira mais difícil de se tornar um
herói.
Epílogo do autor,
Soluço Spantosicus Strondus III, oúltimo Herói
Viking
A história não para aqui, é claro.
Os dezenove meninos que fizeram aIniciação comigo há tantos anos
ingressaram nas Tribos dosHooligans Cabeludos e dosCabeças-ocas
devido a seus Atos Heroicos naderrota dos dois Dragonusmarinhus
Giantescus Maximus em um único
dia. A Batalha no Promontório daMorte
se transformou numa lenda viking eserá cantada pelos bardos enquanto
eles existirem.
Claro, hoje em dia restam poucosbardos. E, além disso, ninguém
nunca mais viu umDragonusmarinhus GiantescusMaximus, por isso as
pessoas já estão parando deacreditar que tal criatura tenhavivido na
Terra. Especialistas escreveramartigos sugerindo que essa história
simplesmente não se sustenta. Osdragões que seriam a provavoltaram
para o mar, onde seres humanos nãoconseguem alcançá-los, e agora queo
heroísmo saiu tanto de modaninguém vai acreditar na palavra deum herói
como eu.
Mas, quando se trata de dragões —
e sou uma pessoa que os conhece
bem —, eles podem muito bemestar apenas adormecidos nasprofundezas das
trevas. Podem existir inúmerosdragões, todos em Coma por
Adormecimento, com peixesdesprevenidos entrando e saindopor entre
suas patas, escondendo-se no meiode suas garras, botando ovos emsuas
orelhas.
Um dia chegará a hora em queheróis voltarão a ser necessários.
Um dia chegará a hora em que osdragões voltarão.
Quando isso acontecer, os sereshumanos desejarão aprender atreiná-
los e a enfrentá-los, e espero queeste livro tenha mais utilidade paraos
Heróis do Futuro do que um certolivro com o mesmo título teve paraMIM
há muitos anos.
É fácil esquecer que Monstrosassim existiram.
Eu mesmo me esqueço disso, devez em quando, mas quando olho
para o alto, como faço agora, vejoem minha mente um escudo,
estranhamente incrustado de cracasque parecem joias e de corais de
águas geladas, com um denteimenso cravado no centro. Toco aponta
desse dente, que ainda está bemafiada após todos esses anos —basta um
leve roçar dos dedos para que umfio de sangue escorra por essaspáginas.
E inclino a cabeça, sem meaproximar muito, para ter certezade que ainda
ouço o canto bem, bem distante:
Uma vez pus fogo no mar
com um sopro forte,
Uma vez eu era de assombrar
meu nome era Morte,
Cante alto esta canção, antes devirar refeição,
Tanto ao bom e ao regular, o fimpode chegar..
O Jantar ainda canta.
Visite
www.seriecomotreinaroseudragão.com.br
e saiba mais sobre as memórias