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COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Dec 05, 2014

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Alex Brandão
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AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Livro I O APRENDIZ DO MAGO

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UM MISTÉRIO ENVOLVE O PONTO MAIS ELEVADO DO CONDADO, DIZEM

QUE MORREU UM HOMEM LÁ DURANTE UMA GRANDE TEMPESTADE,

ENQUANTO APRISIONAVA UM MAL QUE AMEAÇAVA O MUNDO INTEIRO, DEPOIS O GELO VOLTOU E, QUANDO DESA-

PARECEU, ATÉ AS FORMAS DAS COLINAS E OS NOMES DOS LUGARES

NOS VALES TINHAM MUDADO, AGORA, NÃO RESTA QUALQUER VESTÍGIO DO QUE ACONTECEU HÁ TANTO TEMPO NAQUELE PONTO

MAIS ELEVADO DOS CAMPOS, MAS O SEU NOME PERDUROU, CHAMAM-

LHE. .

A PEDRA VIGILANTE.

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CAPÍTULO 1

UM SÉTIMO FILHO

Quando o Mago chegou, a luz já começava a diminuir. Fora um dia longo e duro e eu estava pronto para a ceia.

— Tem certeza de que ele é um sétimo filho? —

perguntou. Mirava-me de alto a baixo e abanava a cabeça, cheio de dúvidas.

O meu pai anuiu.

— E você também é um sétimo filho?

O meu pai voltou a anuir e começou a bater impacientemente com os

pés, salpicando-me as calças de gotículas de lama e estrume. A chuva

escorria-lhe pela pala do boné. Chovera durante a maior parte do mês. Havia folhas novas nas árvores, mas o tempo primaveril ainda tardava

muito. O meu pai era agricultor, tal como o pai dele também fora, e a

primeira regra da agricultura é manter a terra unida. Não pode ser dividida pelos filhos, senão vai ficando menor a cada geração, até não

restar nada. Por isso, um pai deixa a fazenda ao filho mais velho. Depois

arranja ocupações para os restantes. Se possível, tenta encontrar um ofício para cada um. Para tal, precisa de muitos favores. O ferreiro local

é uma opção, em especial se a propriedade for grande e ele lhe tiver

solicitado bastante trabalho. Então, é provável que o ferreiro ofereça um aprendizado, mas ainda só fica com um filho arrumado na vida.

Eu era o sétimo e, quando chegou a minha vez, tinham-se esgotado os

favores. O meu pai estava tão desesperado que tentou mesmo convencer o Mago a aceitar-me como seu aprendiz. Ou, pelo menos, foi

o que pensei na altura. Devia ter desconfiado que a mão da minha mãe

andava ali. Ela estava por trás de muitas coisas. Muito antes de eu nascer, fora o

dinheiro dela que comprara a nossa fazenda. De que outra forma poderia

um sétimo filho tê-la adquirido? E a minha mãe não era do Condado. Vinha de uma terra distante, do outro lado do mar. A maioria das

pessoas não reparava, mas por vezes, se escutasse com muita atenção,

havia uma ligeira diferença na maneira como ela pronunciava certas palavras.

Mas não julguem que eu estava sendo vendido como escravo ou algo

assim. Fosse como fosse, estava farto de agricultura e aquilo que chamavam «a vila» pouco mais era do que uma aldeota para lá do Sol

poente. Não era certamente um lugar onde quisesse passar o resto da

minha vida. Por isso, de certa forma, agradava-me bastante a idéia de ser Mago; era bem mais interessante do que ordenhar vacas ou fertilizar

a terra.

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Mas sentia-me bastante nervoso, porque era um trabalho assustador.

Iria aprender a proteger fazendas e aldeias das coisas que andam por aí

à noite. Lidar com fantasmas, demônios e todo o tipo de seres maléficos, tudo faria parte de uma rotina normal. Era o que o Mago fazia e eu ia ser

seu aprendiz.

— Quantos anos ele tem? — perguntou o Mago. — Fará treze em Agosto próximo.

— É um bocado baixo para a idade. Sabe ler e escrever?

— Sim — respondeu o meu pai. — Sabe ambas as coisas e também sabe grego. A minha mãe ensinou-o e já conseguia falar antes mesmo de

andar.

O Mago anuiu e olhou para o caminho enlameado que se estendia do

portão em direção à casa da fazenda, como se escutasse algo. Depois

encolheu os ombros.

— Já é uma vida bastante dura para um homem, quanto mais um rapaz — disse. — Acha que ele está à altura?

— Ele é forte e será tão grande quanto eu quando chegar à idade adulta

— retorquiu o meu pai, endireitando as costas e erguendo-se em toda a sua altura. Mesmo assim, o alto da sua cabeça ficava exatamente ao

nível do queixo do Mago.

De repente, o Mago sorriu. Era a última coisa que eu estava esperando. O seu rosto era grande e parecia ter sido esculpido em pedra. Até ali

achara-o um bocado mal-encarado. A sua capa preta e comprida e o

capuz faziam lembrar um padre, mas quando ele nos olhava diretamente, a sua expressão sinistra fazia-o assemelhar-se mais a um

carrasco a avaliar-nos por causa da corda.

O cabelo que aparecia sob a parte da frente do capuz condizia com a barba, que era grisalha, mas tinha sobrancelhas pretas e muito

espessas. Saíam-lhe também uns pêlos pretos das narinas, e os seus

olhos eram verdes, a mesma cor dos meus. Reparei então em algo mais nele. Trazia um bordão comprido. Claro que

o vira mal ele aparecera, mas não percebera até àquele momento de

que o segurava na mão esquerda. Quereria dizer que era canhoto como eu? Fora algo que me trouxera

muitos problemas na escola da aldeia. Até tinham chamado o pároco

local para me observar e ele abanara constantemente a cabeça e dissera-me que teria de contrariar o hábito antes que fosse tarde

demais. Não entendi ao que se referia. Nenhum dos meus irmãos era

canhoto nem tampouco o meu pai. No entanto, a minha mãe é canhota e isso nunca pareceu incomodá-la sobremaneira, por isso, quando o

professor ameaçou fazer-me perder a mania à pancada e me amarrou a

caneta à mão direita, ela tirou-me imediatamente da escola e daquele dia em diante ensinou-me em casa.

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— Quanto quer para aceitá-lo? — perguntou o meu pai, interrompendo

os meus pensamentos. Agora é que estávamos verdadeiramente a

negociar. — Dois guinéus por um mês, como experiência. Se ele tiver jeito,

voltarei no Outono e ficará me devendo outros dez. Se não, trago-o de

volta e será só mais um guinéu pelo incômodo que tive. O meu pai voltou a anuir e o negócio se fez. Fomos até ao celeiro e

pagaram-se os guinéus, mas não houve aperto de mãos. Ninguém

queria tocar num Mago. O meu pai era um homem corajoso, ao estar ali a menos de dois metros dele.

— Tenho um assunto a tratar aqui perto — disse o Mago —, mas virei

buscar o rapaz ao raiar do dia. Ele que esteja pronto. Não gosto que me

deixem esperando.

Quando ele se foi, o meu pai bateu-me no ombro.

— Agora é uma vida nova para você, filho — disse-me. — Vá se lavar. Acabou-se a agricultura para você.

Quando entrei na cozinha, o meu irmão Jack envolvia a mulher Ellie com

um braço e ela sorria. Gosto muito de Ellie. É calorosa e amiga de uma forma que sentimos que

ela gosta realmente de nós. A minha mãe diz que foi bom para Jack

casar com Ellie porque o ajudou a ficar menos agitado. Jack é o mais velho e o maior de todos nós e, como o meu pai diz às

vezes na brincadeira, o mais bonito de um grupo feioso. É certo que ele

é grande e forte, mas, apesar dos seus olhos azuis e sadias faces coradas, as suas sobrancelhas farfalhudas quase se juntam no meio,

pelo que sempre discordei dessa opinião. Algo que nunca pus em causa

é o fato de ter conseguido atrair uma mulher boa e bonita. Ellie tem o cabelo da cor da palha da melhor qualidade três dias após uma boa

colheita e uma pele que brilha realmente à luz da vela.

— Vou embora amanhã de manhã — anunciei bruscamente. — O Mago vem me buscar ao raiar do dia.

O rosto de Ellie iluminou-se.

— Quer dizer que ele resolveu aceitá-lo? Anuí.

— Vou ficar um mês como experiência.

— Oh, muito bem, Tom! Fico realmente satisfeita por você — disse ela. — Não acredito! — zombou Jack. — Você, aprendiz de um Mago! Como

pode exercer semelhante ofício, se não consegue adormecer sem uma

vela acesa? Ri da piada dele, mas tinha razão. Às vezes via coisas no escuro e uma

vela era a melhor maneira de mantê-las afastadas para poder dormir um

pouco. Jack veio direto a mim e, com uma gargalhada, prendeu-me a cabeça e

começou a arrastar-me em volta da mesa da cozinha. Era a sua idéia de

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brincadeira. Ofereci apenas a resistência suficiente para satisfazê-lo e

passados alguns segundos ele me soltou e deu-me uma palmada nas

costas. — Muito bem, Tom — disse ele. — Vai fazer uma fortuna com esse ofício. No entanto, só há um problema. .

— Qual é? — indaguei.

— Vai precisar de todos os cêntimos que ganhar. Sabe porquê?

Encolhi os ombros.

— Porque os únicos amigos que vai ter serão aqueles que comprar! Tentei sorrir, mas havia um grande fundo de verdade nas palavras de

Jack. Um Mago trabalhava e vivia sozinho.

— Oh, Jack! Não seja cruel! — admoestou Ellie.

— Foi só uma piada — replicou Jack, como se não compreendesse a

razão de tanto desagrado de Ellie.

Mas Ellie olhava para mim e não para Jack e vi o seu rosto de repente esmorecer.

— Oh, Tom! — lamentou-se. — Isto quer dizer que não estará aqui

quando o bebê nascer. . Parecia realmente desapontada e fiquei triste por não estar em casa para

ver a minha nova sobrinha. A minha mãe dissera que ia ser uma menina

e ela nunca se enganava nestas coisas. — Virei fazer uma visita assim que puder — prometi.

Ellie fez um esforço para sorrir, e Jack aproximou-se e apoiou o braço

nos meus ombros. — Terá sempre a sua família — disse. — Estaremos sempre aqui, se

precisar de nós.

Uma hora depois, sentei-me à mesa para jantar, sabendo que partiria de manhã. O meu pai deu graças como fazia todas as noites e todos nós

murmuramos «Amém»

exceto a minha mãe. Limitara-se a olhar para a comida como sempre, esperando educadamente até terminar.

Quando a prece acabou, a minha mãe esboçou-me um pequeno sorriso.

Foi um sorriso caloroso e especial e não creio que mais alguém tivesse percebido. Fez-me sentir melhor.

O fogo continuava aceso na lareira, enchendo a cozinha de calor. No

centro da nossa grande mesa de madeira havia um candelabro de latão, que fora polido até se conseguir ver nele o rosto. Era uma vela cara,

feita de cera de abelha, mas a minha mãe não permitia sebo na cozinha,

por causa do cheiro. O meu pai tomava a maior parte das decisões sobre a fazenda, mas em algumas coisas ela levava a sua por diante.

Quando atacamos os nossos pratões de guisado fumegante, ocorreu-me

que o meu pai parecia envelhecido naquela noite — envelhecido e cansado — e havia uma expressão que se estampava no seu rosto de

tempos em tempos, uma pontinha de tristeza. Mas animou-se um pouco

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quando começou a trocar impressões com Jack sobre o preço da carne

de porco e se era ou não o momento certo para chamar o matador de

porcos. — É melhor esperarmos mais um mês ou dois —

afirmou o meu pai. — Com certeza o preço vai subir.

Jack abanou a cabeça e começaram a discutir. Era uma discussão amigável, daquelas que as famílias têm com freqüência, e poderia se

dizer que o meu pai estava gostando. No entanto, eu não participei.

Tudo aquilo chegara ao fim para mim. Como dissera o meu pai, acabara-se a agricultura para mim.

A minha mãe e Ellie riam baixinho. Tentei escutar o que diziam, mas

entretanto Jack estava todo entusiasmado, a sua voz subindo cada vez

mais de tom. Quando a minha mãe olhou para ele, vi que estava

saturada do barulho que ele fazia. Ignorando os olhares da minha mãe e

continuando a discutir sonoramente, Jack estendeu a mão para o saleiro e, sem querer, derrubou-o, entornando um pequeno cone de sal no

tampo da mesa. Logo em seguida, pegou uma pitada e atirou-a por cima

do ombro esquerdo. É uma velha superstição do Condado. Com este gesto, estaremos afastando o azar adveniente do seu derramamento.

— Jack, a verdade é que nem precisa de pôr sal —

ralhou a minha mãe. — Estraga um bom guisado e é um insulto à cozinheira!

— Desculpe, mãe — justificou-se Jack. — Tem razão. Assim está

perfeito. Ela sorriu, depois indicou-me com um gesto de cabeça. — E depois,

ninguém está dando atenção a Tom.

Não deve ser tratado assim na sua última noite em casa. — Eu estou bem, mãe — assegurei-lhe. — Já me satisfaz estar aqui

sentado ouvindo.

A minha mãe anuiu. — Bem, tenho algumas coisas a dizer-te. Depois da ceia fique na cozinha

para termos uma conversinha.

Assim, depois que Jack, Ellie e o meu pai terem ido se deitar, sentei-me numa cadeira junto à lareira e aguardei pacientemente para ouvir o que

a minha mãe tinha a dizer.

A minha mãe não era mulher de grandes espalha-fatos; a princípio não disse muito, além de explicar o que estava preparando para eu levar:

um par de calças de reserva, três camisas e dois pares de meias boas

que só tinham sido cerzidas uma vez cada. Olhei para as cinzas da lareira batendo com os pés nas lajes, enquanto a

minha mãe se levantava da cadeira de balanço e a posicionava de modo

a ficar bem de frente para mim. O seu cabelo preto apresentava alguns fios brancos, mas além disso, parecia-me praticamente igual a quando

eu começara a dar os primeiros passos, mal lhe chegando aos joelhos.

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Os seus olhos continuavam brilhantes e, à exceção da pele pálida,

parecia vender saúde.

— Esta é a última vez que vamos poder conversar um pouco — disse ela. — É um grande passo sair de casa e iniciar uma vida nova. Por isso, se

quiser dizer alguma coisa, se precisar perguntar alguma coisa, agora é o

momento para fazê-lo. Não me ocorreu uma só pergunta. Na verdade, não conseguia sequer

pensar. Só de ouvi-la dizer tudo aquilo, senti as lágrimas começarem a

atormentar-me os olhos. O silêncio continuou durante um bom tempo. Apenas se ouvia o ruído

dos meus pés nas lajes. Por fim, a minha mãe soltou um pequeno

suspiro.

— O que se passa? — perguntou-me. — O gato comeu sua língua?

Encolhi os ombros.

— Pare com esse desassossego, Tom, e concentre-se no que estou dizendo — advertiu a minha mãe. —

Em primeiro lugar, está ansioso para que chegue o dia de amanhã, para

começar a aprender o seu novo ofício? — Não tenho certeza, mãe — disse-lhe, recordando a piada de Jack a

respeito de ter de comprar os amigos.

— Ninguém quer se aproximar de um Mago. Não terei amigos. Estarei sozinho o tempo todo.

— Não será tão mau quanto julga — redarguiu a minha mãe. — Terá o

seu mestre com quem conversar. Ele será o seu professor, e sem dúvida acabará por se tornar seu amigo. E estará ocupado o tempo todo.

Ocupado a aprender coisas novas. Não terá tempo para se sentir

sozinho. Não acha toda esta novidade entusiasmante? — Entusiasmante é, mas o ofício assusta-me.

Quero segui-lo, mas não sei se sou capaz. Uma parte de mim quer viajar

e conhecer outros lugares, mas será difícil deixar de viver aqui. Vou sentir saudades de todos. Vou sentir falta de estar em casa.

— Não pode ficar aqui — disse a minha mãe. — O

seu pai está velho demais para trabalhar e no próximo Inverno vai entregar a fazenda a Jack. Ellie terá o bebê em breve, sem dúvida o

primeiro de muitos; acabará por não haver espaço para você aqui. Não,

o melhor é se acostumar antes que isso aconteça. Não pode voltar para casa.

A voz dela pareceu fria e um pouco sacudida, mas ao ouvi-la falar

comigo daquela maneira, senti subitamente uma dor profunda no peito e na garganta, a ponto de mal conseguir respirar.

Só queria ir para a cama, mas ela tinha muito que dizer. Raramente a

ouvira usar tantas palavras de uma só vez. — Tem um trabalho a fazer e vai fazê-lo — disse-me em tom austero. — E não é só fazê-lo; é fazê-lo

bem. Casei com o seu pai porque ele era um sétimo filho.

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E dei-lhe seis filhos para poder ter a você. Você é sete vezes sete e

possui o dom. O seu novo mestre ainda é forte, mas já não é o que era e

um dia vai finalmente chegar a sua hora. Há quase sessenta anos que percorre as linhas do Condado cumprindo o seu dever. Fazendo o que

tem de ser feito. Em breve será a sua vez. E, se não o fizer, quem o

fará? Quem olhará pela gente comum? Quem a protegerá do mal? Quem tornará as fazendas, aldeias e vilas seguras, para que as mulheres e as

crianças possam andar nas ruas e veredas sem receio?

Não soube o que dizer e não consegui olhá-la nos olhos. Esforcei-me apenas por reprimir as lágrimas.

— Gosto muito de todos nesta casa — prosseguiu ela, a voz agora mais

branda — mas, em todo o Condado, você é a única pessoa realmente

como eu. E, no entanto, não passa de um menino que ainda tem muito

que crescer, mas é o sétimo filho de um sétimo filho. Possui o dom e a

força para fazer o que tem de ser feito. Sei que vai me encher de orgulho.

— Ora ainda bem — concluiu a minha mãe, pondo-se em pé — que

resolvemos isto. Agora vá se deitar. Amanhã é um grande dia e quero que esteja no seu melhor.

Levei um abraço e um sorriso caloroso e esforcei-me realmente por me

mostrar animado e retribuir o sorriso, mas assim que cheguei ao meu quarto, sentei-me na beira da cama, de olhar vago e a pensar no que a

minha mãe me dissera.

A minha mãe é muito respeitada na vizinhança. Sabe mais de plantas e remédios caseiros do que o médico local, e quando há dificuldade em

fazer nascer um bebê, a parteira manda sempre chamá-la. A minha mãe

é perita no que ela chama de partos pélvicos. Às vezes, um bebê tenta nascer com os pés para a frente, mas a minha mãe sabe virá-lo

enquanto ainda está na barriga. Há dúzias de mulheres no Condado que

lhe devem a vida. Pelo menos era o que o meu pai estava sempre dizendo, mas a minha

mãe era modesta e nunca mencionava semelhantes coisas. Limitava-se

a fazer o que era preciso e eu sabia que ela esperava o mesmo de mim. Por isso queria enchê-la de orgulho. Mas era mesmo verdade que só se

casara com o meu pai e tivera os meus seis irmãos para poder me dar à

luz? Não parecia possível. Depois de pensar muito bem em tudo, fui até a janela virada para o

norte e sentei-me na velha cadeira de vime durante alguns minutos,

olhando lá para fora. A lua brilhava, banhando tudo com a sua luz prateada. Conseguia ver

para lá do pátio da fazenda, os dois campos de feno e a pastagem norte,

e mesmo até o limite da nossa fazenda, que terminava a meio da Colina do Carrasco. Gostava da paisagem. Gostava da Colina do Carrasco ao

longe. Gostava que fosse a coisa mais distante que se conseguia avistar.

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Durante anos, fizera isto antes de subir para a cama, todas as noites.

Costumava olhar para aquela colina e imaginar o que haveria do outro

lado. Na realidade, sabia que eram apenas mais campos e a seguir, três quilômetros mais adiante, o que era considerado a aldeia local — meia

dúzia de casas, uma pequena igreja e uma escola ainda menor —, mas a

minha imaginação criava outras coisas. Às vezes imaginava penhascos altos com um oceano do outro lado, ou

quem sabe uma floresta ou uma grande cidade com torres altas e luzes

a cintilar. Mas agora, ao contemplar a colina, recordei também o meu medo. Sim,

era bonita, vista de longe, mas não era um local de que eu quisesse me

aproximar. A Colina do Carrasco, como já terão adivinhado, não obtivera

o seu nome em vão.

Três gerações antes, alastra uma guerra por toda a terra e os homens

do Condado tinham participado dela. Fora a pior de todas as guerras — uma guerra civil amarga em que as

famílias haviam ficado divididas e em que, por vezes, irmão chegara a

lutar contra irmão. No último Inverno da guerra, houvera uma grande batalha cerca de

quilômetro e meio a norte, exatamente nos arredores da aldeia. Quando

finalmente terminou, o exército vitorioso trouxe os prisioneiros até esta colina e enforcou-os nas árvores da vertente setentrional. Enforcaram

igualmente alguns dos seus homens, invocando atos de covardia perante

o inimigo, mas circulava outra versão daquela história. Diziam que alguns destes homens tinham se recusado a lutar contra pessoas que

consideravam seus vizinhos.

Nem mesmo Jack gostava de trabalhar perto da vedação confinante, e os cães não queriam avançar mais que alguns passos na mata. Quanto a

mim, em virtude de conseguir sentir coisas que os outros não sentem,

não era sequer capaz de trabalhar na pastagem norte. Sabem, é que eu os ouvia dali. Ouvia as cordas chiando e os ramos gemendo sob o peso

deles. Ouvia os mortos serem estrangulados e sufocarem do outro lado

da colina. A minha mãe dizia que éramos iguais. Bem, ela era sem dúvida igual a

mim num aspecto: eu sabia que ela também via coisas que os outros

não conseguiam ver. Num Inverno, eu era muito jovem e todos os meus ir-mãos viviam em

casa, os ruídos na colina eram tão fortes à noite que os ouvia até do

meu quarto. Os meus irmãos não davam por nada, mas eu sim, e não conseguia dormir.

A minha mãe vinha ao meu quarto sempre que eu chamava, apesar de

ter que se levantar ao raiar do dia para efetuar as tarefas domésticas.

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Por fim, disse que ia resolver o assunto e, uma noite, subiu sozinha à

Colina do Carrasco e foi até junto das árvores. Quando regressou, estava

tudo calmo e assim ainda se mantinha depois de meses. Por isso, havia um aspecto em que divergíamos.

A minha mãe era muito mais corajosa do que eu.

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CAPÍTULO 2

PELA ESTRADA FORA

Levantei-me uma hora antes da aurora, mas a minha mãe já se encontrava na cozinha, a preparar o meu desjejum preferido, toucinho

defumado com ovos.

O meu pai veio para baixo quando eu limpava o prato com a última fatia de pão. Quando nos despedimos, ele tirou algo do bolso e colocou-o em

minhas mãos. Era a pequena caixa de mechas que pertencera ao pai

dele e, antes disso, ao avô. Um dos seus objetos pessoais preferidos.

— Quero que fique com isto, filho — disse ele. —

Pode vir a ser útil no seu novo ofício. E venha nos visitar em breve. Só

porque vai sair de casa, isso não significa que não possa regressar para uma visita.

— Está na hora de ir, filho — observou a minha mãe, aproximando-se de

mim para um último abraço. — Ele está ao portão. Não o faça esperar.

Éramos uma família que não gostava de demasiadas efusões e, como já

tínhamos nos despedido, saí sozinho para o pátio. O Mago encontrava-se do outro lado do portão: uma silhueta escura

recortada na luz cinzenta da aurora.

Tinha o capuz sobre a cabeça e erguia-se em toda a sua altura, o bordão na mão esquerda. Encaminhei-me para ele, levando a minha pequena

trouxa de pertences, sentindo-me muito nervoso.

Para minha surpresa, o Mago abriu o portão e entrou no pátio. — Bem, rapaz — disse ele —, siga-me! Agora, poderíamos começar pelo

caminho que tencionamos tomar.

Em vez de se dirigir para a estrada, rumou para o norte, direito à Colina do Carrasco, e não tardamos a atravessar a pastagem norte, o meu

coração já começando a bater forte. Quando chegamos à vedação

confinante, o Mago escalou-a com a agilidade de um homem da metade de sua idade, mas eu fiquei estático. Assim que apoiei as mãos na

extremidade superior da vedação, ouvi os sons das árvores a estalar, os

seus ramos vergados e curvados sob o peso dos enforcados. — O que se passa, rapaz? — perguntou o Mago, virando-se para me

olhar. — Se está com medo de algo bem à sua porta, me será de pouca

serventia. Respirei fundo e passei por cima da vedação. Subimos penosamente, a

luz da aurora escurecendo à medida que penetrávamos na sombra das

árvores. Quanto mais subíamos, mais frio parecia ficar, e não tardou que começasse a tremer. Era o tipo de frio que nos deixa a pele arrepiada e

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faz com que os pêlos se ericem na nuca. Já o sentira antes, quando algo

que não pertencia a este mundo se aproximava.

Assim que chegamos ao alto da colina, pude vê-los por baixo de mim. Deviam ser no mínimo uma centena, por vezes dois ou três pendurados

na mesma árvore, vestindo uniformes de soldados com cinturões de

couro largos e botas altas. Tinham as mãos atadas atrás das costas e cada um deles se comportava de maneira diferente. Alguns debatiam-se

desesperadamente, pelo que o ramo por cima deles se agitava e

sacudia, ao passo que outros apenas rodavam lentamente na extremidade da corda, apontando primeiro numa direção, depois na

outra.

Enquanto observava, senti subitamente um vento forte no rosto, um

vento tão frio e intenso que não podia ser natural. As árvores curvaram-

se até o chão e as suas folhas encarquilharam-se e começaram a cair.

Numa questão de momentos, todos os ramos ficaram despidos. Quando o vento cessou, o Mago apoiou a mão no meu ombro e guiou-

me até o enforcado que estava mais perto.

Paramos a poucos passos do mais próximo. — Olhe para ele — disse o Mago. — O que vê?

— Um soldado morto — respondi, a minha voz começando a tremer.

— Que idade aparenta? — Dezessete anos, no máximo.

— Ótimo. Muito bem, rapaz. Agora, diga-me, ainda sente medo?

— Um pouco. Não gosto de estar tão próximo dele. — Por quê? Não há nada a temer. Nada que possa te fazer mal. Pense

no que deve ter sido para ele. Concentre-se nele e não em si. Como terá

se sentido? O que seria a pior coisa? Tentei pôr-me no lugar do soldado e imaginar como deveria ter sido

morrer daquela maneira. A dor e a falta de ar deviam ter sido terríveis.

Mas talvez tivesse acontecido algo ainda pior. — O fato de saber que ia morrer e que nunca mais poderia ir para casa.

Que nunca mais voltaria a ver a família — disse ao Mago.

Ditas aquelas palavras, invadiu-me uma onda de tristeza. Depois, no exato momento em que isso aconteceu, os enforcados começaram a

desaparecer lentamente, até ficarmos sozinhos na vertente da colina e

as folhas voltarem às árvores. — Como se sente agora? Ainda com medo?

Abanei a cabeça.

— Não — respondi. — Sinto-me apenas triste. — Muito bem, rapaz. Está aprendendo. Nós somos os sétimos filhos de

sétimos filhos e possuímos o dom de ver coisas que os outros não

conseguem. Mas, por vezes, esse dom pode ser uma maldição. Se tivermos medo, pode haver coisas que vêm alimentar-se desse medo. O

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medo só torna tudo pior para nós. O segredo é concentrar-se naquilo

que consegue ver e parar de pensar em si mesmo.

Funciona sempre. — Foi uma visão terrível, rapaz, mas são apenas imagens

fantasmagóricas — prosseguiu o Mago. — Não há muito que possamos

fazer por elas e com o tempo acabarão sumindo. Daqui a cem anos ou mais, não restará nada.

Queria dizer-lhe que a minha mãe fizera em tempos algo por eles, mas

calei-me. Contradizê-lo teria sido um mau começo para ambos. — Agora, se fossem fantasmas , já seria diferente —

afirmou o Mago. — Pode-se falar com os fantasmas e esclarecê-los sobre

o que se passa. Só o fato de lhes fazer ver que estão mortos é um ato

de enorme bondade e um passo importante para que se vão embora.

Normalmente, um fantasma é um espírito desorientado, preso a esta

terra, mas sem saber o que aconteceu. Por isso, é frequente estarem atormentados. E não só: há outros que estão aqui com uma finalidade

concreta e podem ter algo a dizer. Mas uma imagem fantasmagórica não

é nada mais do que um fragmento de uma alma que alcançou uma situação melhor. Estes eram somente isso, rapaz. Apenas imagens

fantasmagóricas. Viu as árvores mudarem?

— As folhas caíram e era Inverno. — Bem, as folhas agora estão de volta. Por conseguinte, estava apenas

olhando para algo do passado. Apenas uma lembrança das coisas más

que por vezes acontecem nesta terra. Por norma, se for corajoso, não conseguem vê-lo e não sentem nada. Uma imagem fantasmagórica é

apenas como um reflexo num lago que fica para trás quando a pessoa a

quem pertence seguiu caminho. Compreende o que estou dizendo? Acenei com a cabeça.

— Bom, este assunto já está resolvido. De vez em quando, iremos lidar

com os mortos, para que fique bem acostumado a eles. De qualquer forma, vamos começar.

Temos um longo caminho a percorrer.

— Tome, a partir de agora vai levar isto. O Mago entregou-me o seu enorme saco de couro e, sem olhar para

trás, continuou a subir a colina. Segui-o até o alto, depois desci por

entre as árvores em direção à estrada, que era uma cicatriz cinzenta distante a serpentear para sul através da manta de retalhos verde e

castanha dos campos.

— Viajou muito, rapaz? — O Mago falou por cima do ombro. — Viu grande parte do Condado?

Respondi-lhe que nunca me afastara mais de dez quilômetros da fazenda

do meu pai. O mais longe que viajara fora até o mercado local. O Mago murmurou algo entre dentes e abanou a cabeça; pude ver que

não ficara muito satisfeito com a minha resposta.

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— Bem, as suas viagens começam hoje — disse-me. — Vamos para sul,

em direção a uma aldeia chamada Horshaw. Fica apenas a vinte e cinco

quilômetros em linha reta e temos de chegar lá antes de escurecer. Ouvira falar de Horshaw. Era uma aldeia mineira e possuía os maiores

depósitos de carvão do Condado, recebendo a produção de dúzias de

minas circundantes. Nunca esperara ir lá e fiquei curioso em relação ao que o Mago poderia

querer de um lugar daqueles.

Caminhava a bom ritmo, dando grandes passadas sem esforço. Não tardei a ter dificuldade em acompanhá-lo; além de carregar a minha

própria trouxa de roupas e outros pertences, tinha também que levar o

saco enorme dele, que parecia ficar mais pesado a cada instante.

Depois, para piorar as coisas, começou a chover.

Cerca de uma hora antes do meio-dia, o Mago parou subitamente. Virou-

se e olhou-me com dureza. Nesta altura, eu estava cerca de dez passos atrás. Doíam-me os pés e já começara a mancar ligeiramente. A estrada

pouco mais era do que uma trilha de terra batida que rapidamente se

transformou em lama. Exatamente quando o alcancei, dei uma topada, escorreguei e quase perdi o equilíbrio.

Ele manifestou impaciência.

— Sente-se tonto, rapaz? — perguntou. Abanei a cabeça. Queria dar um pouco de descanso ao braço, mas não

me pareceu correto pousar o saco dele na lama. — Isso é bom —

comentou o Mago com um ligeiro sorriso, a chuva a escorrer da orla do seu capuz para a barba. — Nunca confie num homem que se

desequilibra. Eis algo que convém mesmo não esquecer.

— Não estou tonto — protestei. — Não? — indagou o Mago, arqueando as sobrancelhas espessas. —

Nesse caso, devem ser suas botas.

Não serão muito úteis nesta ocupação. As minhas botas eram iguais às do meu pai e às de Jack,

suficientemente fortes e adequadas para a lama e o esterco do pátio da

fazenda, mas daquelas a que levávamos tempo a acostumar-nos. Um novo par custava-nos por norma quinze dias de bolhas, antes dos pés se

adaptarem.

Olhei para as do Mago. Eram feitas de couro forte, de boa qualidade, e possuíam solas muito espessas. Deviam ter custado uma fortuna, mas

calculo que, para alguém que caminhava muito, valiam cada cêntimo.

Flexionam-se quando ele andava e percebi que haviam sido confortáveis desde o primeiro momento em que as calçou.

— Um bom par de botas é importante neste ofício

— anunciou o Mago. — Não dependemos nem do homem nem dos animais para nos levarem aonde queremos ir. Se contar com as suas

duas pernas boas, elas não te decepcionarão. Por conseguinte, se eu

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resolver aceitá-lo, arranjarei um par de botas iguais às minhas. Até lá,

terá que se arrumar o melhor que puder com essas.

Ao meio-dia, paramos para uma breve pausa, abrigando-nos da chuva num alpendre para gado abandonado.

O Mago tirou um pedaço de pano do bolso e desembrulhou-o, revelando

um grande naco de queijo amarelo. Partiu um pedaço e entregou-me. Já vira pior e estava com fome, por

isso engoli-o vorazmente. O Mago comeu apenas um pequeno pedaço

antes de embrulhar o resto e enfiá-lo de novo no bolso. Uma vez abrigado da chuva, empurrou o capuz pa-ra trás, pelo que tive

finalmente a oportunidade de vê-lo bem. Além da barba comprida e dos

olhos de carrasco, o seu traço fisionômico mais perceptível era o nariz,

sinistro e pronunciado, com uma curvatura que fazia lembrar o bico de

uma ave. A boca, quando fechada, ficava quase escondida pelo bigode e

a barba. A primeira vista, julgara-a grisalha, mas, quando olhei melhor, tentando ser o mais discreto possível para que ele não se desse conta,

reparei que parecia irradiar dela a maior parte das cores do arco-íris.

Havia tonalidades de vermelho, negro, castanho e, obviamente, muito cinzento, mas, como vim a perceber mais tarde, tudo dependia da luz.

«Queixo pequeno, caráter fraco», costumava dizer o meu pai, e ele

acreditava também que alguns homens usavam barba apenas para ocultar esse fato. No entanto, ao olhar para o Mago, podia ver-se,

apesar da barba, que tinha um queixo comprido e, quando abria a boca,

revelava uns dentes amarelos que eram muito aguçados e mais adequados para devorar carne vermelha do que mordiscar queijo. Com

um arrepio, percebi subitamente de que ele me fazia lembrar um lobo. E

não era apenas a forma como olhava. Ele era uma espécie de predador porque perseguia o escuro; vivia unicamente de mordiscadas de queijo

que o deixariam sempre esfomeado e o tornariam ruim. Se concluísse o

meu aprendizado, acabaria igualzinho a ele. — Ainda tem fome, rapaz? — inquiriu, os seus olhos verdes cravando-se intensamente nos meus

até começar a sentir-me um pouco tonto.

Estava encharcado até os ossos e doíam-me os pés, mas tinha sobretudo fome. Então anuí, pensando que ele fosse me oferecer um pouco mais,

mas limitou-se a abanar a cabeça e a murmurar algo para si mesmo.

Depois, e mais uma vez, olhou-me intensamente. — A fome é algo a que vai ter que se acostumar —

disse. — Não comemos muito quando estamos trabalhando e, se for um

trabalho muito difícil, não comemos nada senão depois. O jejum é a coisa mais segura porque nos torna menos vulneráveis ao escuro. Deixa-

nos mais fortes. Por isso pode começar a treinar desde já, pois quando

chegarmos a Horshaw vou submetê-lo a um pequeno teste. Vai passar uma noite numa casa assombrada.

E vai fazê-lo sozinho. Assim, poderei avaliar realmente a sua fibra!

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CAPÍTULO 3

O NÚMERO 13 DE WATERY LANE

Chegamos a Horshaw quando o sino da igreja começou a se ouvir ao

longe. Eram sete horas e começava a escurecer. Uma chuva forte batia-

nos diretamente no rosto, mas ainda havia luz suficiente para eu poder ver que este não era um lugar onde quisesse viver e ao qual até uma

curta visita seria de evitar.

Horshaw era uma mancha negra nos campos verdes, um lugarzinho

lúgubre e feio com cerca de duas dúzias de filas de casas humildes de

costas umas para as outras, amontoando-se principalmente na vertente

sul de uma colina úmida e inóspita. Toda a zona estava crivada de minas e Horshaw ficava no meio delas. Bem acima da aldeia via-se um enorme

monte de escórias que assinalava a entrada de mais uma mina. Por

detrás do monte de escórias ficavam os depósitos de carvão, que armazenavam combustível suficiente para aquecer as maiores cidades

do Condado, mesmo durante os Invernos mais longos.

Não tardamos a percorrer as estreitas ruas empedradas, mantendo-nos junto das paredes enegrecidas a fim de evitarmos as carroças

carregadas de bocados de carvão preto, molhado e brilhante da chuva.

Os enormes cavalos de tiro que as puxavam esforçavam-se sob as suas cargas, os cascos escorregando no empedrado reluzente.

Havia poucas pessoas no exterior, mas as cortinas de renda agitavam-se

à nossa passagem, e até nos cruzamos com um grupo de mineiros carrancudos, que subia penosamente a colina para iniciar o turno da

noite. Os homens iam falando em voz alta, mas calaram-se subitamente

e colocaram-se em fila única a fim de passarem por nós, mantendo-se sempre do outro lado da rua. Um deles chegou mesmo a se benzer.

— Vá se habituando, rapaz — resmungou o Mago.

— Somos necessários, mas raramente bem-vindos, e alguns lugares são piores do que outros.

Por fim, dobramos uma esquina para a rua mais inferior e com pior

aspecto de todas. Ninguém vivia ali — via-se logo. Em primeiro lugar, algumas das janelas estavam quebradas e outras vedadas e, apesar de

ser quase noite, não se viam luzes acesas. Num extremo da rua ficava

um armazém de comércio de cereais abandonado, as duas enormes portas de madeira escancaradas e pendendo das dobradiças

enferrujadas.

O Mago parou junto da última casa. Era a que ficava na esquina mais próxima do armazém, a única casa na rua que tinha número. Esse

número fora feito em metal e pregado na porta. Era o treze, o pior e

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mais nefasto de todos os números, e havia uma tabuleta com o nome da

rua no alto da parede, pendendo de um único rebite enferrujado e

apontando quase verticalmente para o empedrado. Nela, lia-se, WATERY LANE.

Esta casa tinha vidraças, mas as cortinas de renda estavam amarelas e

cheias de teias de aranha. Devia ser a casa assombrada de que o meu mestre me falara.

O Mago tirou uma chave do bolso, abriu a porta e seguiu na frente até a

escuridão lá dentro. A princípio, até fiquei contente por me abrigar da chuva, mas quando ele acendeu uma vela e a colocou no chão mais ou

menos no meio da pequena divisão da frente, soube que ficaria mais

confortável num estábulo abandonado. Não se via uma única peça de

mobiliário, apenas o chão lajeado despido e um monte de palha suja

debaixo da janela. A divisão também estava úmida, o ar muito

desagradável e frio, e podia ver o vapor da minha respiração à luz tremulante da vela.

Se aquilo que via já era suficientemente mau, o que ele disse foi bem

pior. — Bom, rapaz, tenho uns assuntos a tratar, por isso vou andando, mas

voltarei mais tarde. Sabe o que tem a fazer?

— Não, senhor — respondi, observando o tremular da vela, receoso de que pudesse apagar-se a qualquer instante.

— Bem, é o que te disse antes. Não estava ouvindo? Tem que ficar

acordado, e não sonhando. De qualquer forma, não é muito difícil — explicou, coçando a barba como se algo andasse a rastejar nela. — Só

tem que passar a noite aqui sozinho. Trago todos os meus novos

aprendizes a esta casa velha na sua primeira noite, para avaliar a fibra deles. Oh, mas há uma coisa que ainda não te disse. À meia-noite, quero

que desça à cave1 e enfrente o que quer que se esconde lá. Se

conseguir agüentar, estará no bom caminho para ser aceito em caráter permanente.

Há alguma pergunta que queira fazer?

Perguntas não me faltavam, mas estava assustado demais para ouvir as respostas. Por isso abanei a cabeça e tentei evitar que meu lábio

superior tremesse.

— Como saberá que é meia-noite? — inquiriu ele. Encolhi os ombros. Eu me desvencilhava bastante bem adivinhando as

horas pela posição do sol ou das estrelas e, se por acaso acordasse no

meio da noite, sabia 1 Porão, adega ou divisão subterrânea quase sempre que horas eram, mas aqui não tinha tanta certeza. Em

alguns lugares o tempo parece passar mais lentamente e tinha a

sensação de que esta casa velha iria ser um deles. De repente, lembrei-me do relógio da igreja.

— Deram há pouco as sete — afirmei. — Ouvirei as doze badaladas.

Page 22: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Bem, pelo menos agora está acordado — disse o Mago com um leve

sorriso. — Quando o relógio der a meia-noite, pegue o toco da vela e

sirva-se dele para encontrar o caminho para a cave. Até lá, durma, se for capaz. Agora, ouça com atenção — há três coisas importantes para

não esquecer. Não abra a porta da rua para ninguém, por mais

insistentemente que bata, e não se atrase para descer à cave. Deu um passo em direção à porta da rua.

— Qual é a terceira coisa? — perguntei em alto e bom som no último

instante. — A vela, rapaz. Faça o que fizer, não deixe que ela se apague. .

A seguir, foi-se, fechando a porta atrás de si, e fiquei completamente

sozinho. Cautelosamente, peguei a vela, fui até à porta da cozinha e

espreitei lá para dentro.

Estava completamente vazia, com exceção de uma pia de pedra. A porta

dos fundos encontrava-se fechada, mas o vento soprava ainda por baixo dela. Havia duas outras portas à direita. Uma estava aberta e deixava

ver as escadas de madeira que conduziam aos quartos no piso de cima.

A outra, a mais próxima de mim, estava fechada. Algo me deixou inquieto a respeito daquela porta fechada, mas decidi ir

dar uma espreitadela rápida. Cheio de nervosismo, agarrei o puxador e

dei um puxão na porta. Não se deslocou e por um momento tive a arrepiante sensação de que alguém a mantinha fechada do outro lado.

Quando lhe dei um puxão ainda mais forte, abriu-se bruscamente,

fazendo-me perder o equilíbrio. Recuei alguns passos e quase larguei a vela.

Uma escada de pedra conduzia à escuridão; estava negra do pó de

carvão. Curvava para a esquerda, pelo que não pude ver diretamente a cave, mas subiu por ela uma corrente de ar frio, fazendo a chama da

vela dançar e tremular. Fechei rapidamente a porta e voltei para a

divisão da frente, fechando igualmente a porta da cozinha. Pousei cuidadosamente a vela no canto mais distante da porta e da

janela. Assim que me certifiquei de que não tombaria, procurei um lugar

no chão onde pudesse dormir. Não havia muito por onde escolher. Certamente não ia dormir na palha úmida, por isso instalei-me no meio

da divisão.

As lajes eram duras e frias mas fechei os olhos. Mal adormecesse, me afastaria daquela casa velha e lúgubre e estava confiante de que

acordaria bem antes da meia-noite.

Normalmente, não tenho dificuldade em adormecer, mas ali era diferente. Não parava de tremer de frio e o vento começava a sacudir as

vidraças. Havia também sussurros e ruídos que vinham das paredes. São

apenas ratos, disse para mim mesmo diversas vezes. Estávamos sem dúvida acostumados a eles, na fazenda. Mas depois, repentinamente,

Page 23: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

chegou um novo som perturbador lá de baixo, das profundezas da cave

escura.

A princípio foi fraco, levando-me a apurar o ouvido, mas depois cresceu gradualmente até deixar de ter dúvidas a respeito do que conseguia

ouvir. Acontecia algo lá em baixo, na cave, que não deveria estar

acontecendo. Alguém cavava ritmicamente, revolvendo terra pesada com uma pá

pontiaguda de metal. Primeiro ouviu-se o raspar da extremidade de

metal numa superfície pedregosa, seguido de um som suave de esmagar e sugar na altura em que a pá se cravava fundo no barro pesado e o

libertava da terra.

Continuou por vários minutos até o barulho parar tão subitamente

quanto começara. Reinava o silêncio. Até os ratos pararam com os seus

ruídos. Era como se a casa e tudo nela sustivesse a respiração. Sei que

era o que eu estava fazendo. O silêncio terminou com uma pancada surda ressoante. Depois toda uma

série de pancadas, bem ritmadas.

Pancadas que aumentavam de intensidade. Mais sonoras ainda. E mais próximas também. .

Alguém subia as escadas, vindo da cave. Peguei rapidamente na vela e

encolhi-me no canto mais distante. Pum, pum, o som de botas pesadas cada vez mais próximo. Quem poderia ter estado a cavar lá em baixo, no

escuro? Quem poderia vir neste momento subindo as escadas?

Mas talvez não devesse perguntar quem subia as escadas. Seria talvez mais correto perguntar o quê..

Ouvi a porta da cave abrir-se e o som de botas na cozinha. Encolhi-me

todo ao canto, tentando tornar-me o menor possível, à espera de que a porta da cozinha se abrisse.

E abriu-se, muito devagarinho, com enorme chiadeira. Entrou algo na

sala. Senti então o frio. Verdadeiro frio. O tipo de frio que me dizia que estava próximo de mim algo que não pertencia a esta terra. Era como o

frio na Colina do Carrasco, só que muito, muito pior.

Levantei a vela, a sua chama projetando sombras misteriosas que dançaram pelas paredes acima, até o teto.

— Quem está aí? — perguntei. — Quem está aí?

— A minha voz tremia ainda mais do que a mão que segurava a vela. Não obtive resposta. Até o vento lá fora se silenciara.

— Quem está aí? — tornei a perguntar.

Novamente nenhuma resposta, mas botas invisíveis rasparam nas lajes ao avançarem na minha direção. Estavam cada vez mais próximas e

conseguia ouvir agora uma respiração. Algo grande respirava com

dificuldade. Parecia um enorme cavalo de tiro que acabara de puxar uma carga pesada por uma colina íngreme.

Page 24: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Naquele exato momento, os passos se afastaram de mim e estacaram

perto da janela. Sustive a respiração e a coisa junto à janela pareceu

respirar por ambos, inalando grandes golfadas para os pulmões como se nunca conseguisse ar em quantidade suficiente.

Exatamente quando já não conseguia mais agüentar, aquilo soltou um

grande suspiro que pareceu cansado e triste ao mesmo tempo, e as botas invisíveis rasparam mais uma vez nas lajes, passos pesados que

se afastavam da janela, voltando para a porta. Quando começaram a

descer ruidosamente as escadas da cave, pude voltar finalmente a respirar.

O meu coração começou a desacelerar, as minhas mãos pararam de

tremer e me acalmei gradualmente. Tinha que me recompor. Ficara

assustado, mas se aquilo era o pior que ia acontecer naquela noite,

conseguira ultrapassá-lo, passara no meu primeiro teste. Se ia ser

aprendiz do Mago, então teria que me acostumar a lugares como esta casa assombrada. Ossos do ofício.

Depois de mais ou menos cinco minutos, comecei a me sentir melhor.

Pensei até em tentar dormir mais um pouco, mas, como costuma dizer o meu pai, «Os maus nunca têm descanso». Bem, não sei que mal fizera,

mas outro novo som súbito veio me perturbar.

A princípio foi tênue e distante — alguém batendo em uma porta. Seguiu-se uma pausa, depois voltou a ouvir-se. Três pancadas distintas,

mas um pouco mais próximas, desta vez. Outra pausa e mais três

pancadas. Não demorei muito a perceber o que se passava.

Alguém batia com força a cada porta da rua, aproximando-se cada vez

mais do número treze. Quando chegasse finalmente à casa assombrada, as três pancadas na porta da rua seriam suficientemente sonoras para

acordar os mortos. Iria a coisa na cave subir as escadas para responder

ao chamamento? Senti-me aprisionado entre ambos: algo lá fora querendo entrar; algo lá em baixo que queria libertar-se. E depois,

repentinamente, ficou tudo bem. Uma voz chamou-me do outro lado da

porta da rua, uma voz que reconheci. — Tom! Tom! Abra a porta! Deixe-me entrar!

Era a minha mãe. Fiquei tão contente de ouvi-la que corri para a porta

da rua sem pensar. Chovia lá fora e ela estava se molhando. — Depressa, Tom, depressa! — gritava a minha mãe. — Não me deixe

esperando.

Já levantava a tranca para abri-la, quando me lembrei do aviso do Mago: «Não abra a porta da rua a ninguém, por mais insistentemente que bata.

Mas como eu poderia deixar minha mãe ali no escuro? — Vamos, Tom! Deixe-me entrar — gritou de novo a voz.

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Lembrando-me do que o Mago dissera, respirei fundo e tentei pensar. O

senso comum dizia-me que não podia ser ela. Por que motivo me

seguira até ali? Como podia ter sabido para onde íamos? O meu pai ou Jack tê-la-iam acompanhado.

Não, era qualquer outra coisa à espera, lá fora. Algo sem mãos que

mesmo assim conseguia bater à porta. Algo sem pés que conseguia erguer-se no passeio.

As pancadas fizeram-se ouvir com maior intensidade.

— Por favor, deixe-me entrar, Tom — suplicava a voz. — Como pode ser tão insensível e cruel? Estou gelada, molhada e cansada.

Por fim começou a chorar e soube então com certeza que não podia ser

a minha mãe. A minha mãe era forte. A minha mãe nunca chorava, por

pior que fosse a situação.

Decorridos alguns momentos, os sons diminuíram e depois cessaram por

completo. Deitei-me no chão e procurei dormir novamente. Virava-me constantemente, primeiro para um lado e depois para o outro, mas, por

mais que tentasse, não conseguia adormecer. O vento começou a

abanar as vidraças cada vez com mais força, e o relógio da igreja foi dando as horas e as meias horas, aproximando-me cada vez mais da

meia-noite.

Quanto mais perto estava a hora de eu descer as escadas da cave, mais nervoso ia ficando. Queria passar no teste do Mago, mas, oh, como

ansiava estar de novo em casa, na minha rica caminha segura e quente!

E depois, assim que o relógio deu uma única badalada — onze e meia — recomeçaram as escavadelas...

Mais uma vez ouvi o lento pum, pum de botas pesadas a subirem as

escadas da cave; mais uma vez a porta se abriu e as botas invisíveis vieram até à divisão da frente.

Nesta altura, a única parte de mim que se mexia era o meu coração, que

batia com tanta força que parecia prestes a partir-me as costelas. Mas desta vez as botas não se encaminharam para a janela. Continuaram a

avançar — Pum!

Pum! Pum! —, vindo na minha direção. Senti-me levantado bruscamente pelos cabelos e a nuca, tal como uma

gata transporta os gatinhos. Depois, um braço invisível enrolou-se à

volta do meu corpo, prendendo-me os braços aos lados. Tentei encher os pulmões de ar, mas era impossível. O meu peito estava a ser

esmagado.

Era transportado na direção da porta da cave. Não conseguia ver o que me levava mas ouvia a sua respiração asmática e debati-me, em pânico,

porque de certa forma sabia exatamente o que ia acontecer. Sabia por

que motivo se ouvira cavar lá em baixo. Levavam-me pelas escadas da cave para a escuridão e sabia que uma sepultura me aguardava ali. Ia

ser enterrado vivo. Estava aterrado e tentei gritar, mas era pior do que

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ser apenas agarrado com toda a força. Ficara paralisado e não conseguia

mover um músculo.

De repente, senti-me cair. . Encontrei-me de quatro, a olhar pela porta aberta que dava para a cave,

a escassos centímetros do degrau de cima. Em pânico, o meu coração

tão acelerado que nem conseguia contar os batimentos, pus-me em pé e fechei com força a porta da cave. Ainda a tremer, voltei para a divisão

da frente, constatando que desrespeitara uma das três regras do Mago.

A vela apagara-se. . Quando me encaminhava para a janela, um clarão súbito de luz iluminou

a divisão, seguido de um forte ribombar de trovão mesmo por cima do

telhado. A chuva fustigava a casa, sacudindo as janelas e fazendo a

porta da rua chiar e gemer como se algo tentasse entrar.

Espreitei lá para fora durante alguns minutos, muito infeliz, vendo os

relâmpagos. Estava uma noite péssima, mas, apesar de os relâmpagos me apavorarem, teria dado tudo para estar lá fora, a andar nas ruas;

tudo para evitar descer àquela cave.

Ao longe, o relógio da igreja começou a dar horas. Contei as badaladas e foram exatamente doze. Agora tinha de enfrentar

o que estava na cave.

Foi então, quando um relâmpago voltou a iluminar a sala, que reparei nas grandes pegadas no chão. A princípio julguei que tivessem sido

deixadas pelo Mago, mas eram negras, como se as botas enormes que

as tinham feito estivessem cobertas de pó de carvão. Vinham da di-reção da porta da cozinha, iam quase até à janela e davam meia volta,

regressando pelo caminho que haviam trazido.

Voltavam para a cave. Para o escuro aonde eu tinha de ir! Obrigando-me a avançar, tentei encontrar no chão o toco de vela.

Depois, procurei às apalpadelas a minha pequena trouxa com as roupas.

Embrulhada no meio dela estava a caixa de mechas que o meu pai me dera.

Remexendo às escuras, despejei a pequena pilha de mechas no chão e

servi-me da pedra e do metal para fazer saltar faíscas. Ateei aquela pequena pilha de madeira até irromperem chamas, apenas com a altura

suficiente para acender a vela. Mal o meu pai sabia que o seu presente

se iria revelar logo tão útil. Quando abri a porta da cave, houve outro relâmpago e um estrondo

súbito de trovão que sacudiu toda a casa e ribombou nas escadas à

minha frente. Desci à cave, a minha mão a tremer e o toco de vela a dançar e a projetar estranhas sombras na parede.

Não queria ir lá abaixo, mas, se não passasse no teste do Mago,

provavelmente seria recambiado para casa assim que fosse dia. Imaginei a minha vergonha ao ter de contar à mãe o que sucedera.

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Oito degraus e contornava já a esquina, ficando com a cave à vista. Não

era uma cave grande, mas tinha sombras escuras nos cantos que a luz

da vela não conseguia alcançar plenamente e havia teias de aranha pendendo do teto em imundas cortinas frágeis. Viam-se pequenos

pedaços de carvão e grandes caixotes espalhados pelo chão de terra e

havia uma velha mesa de madeira ao lado de um barril enorme de cerveja. Contornei o barril de cerveja e percebi algo no canto mais

distante. Algo mesmo por detrás de alguns caixotes que me apavorou

tanto que ia deixando cair a vela. Era uma forma escura, quase semelhante a um monte de farrapos, e emitia um ruído. Um leve som

rítmico, como a respiração.

Dei um passo na direção dos farrapos; depois outro, servindo-me de

toda a minha força de vontade para obrigar as minhas pernas a

andarem. Foi então, quando me aproximei tanto que quase lhe podia ter

tocado, que a coisa cresceu de repente. De uma sombra no chão, empinou-se diante de mim até ficar três ou quatro vezes maior.

Quase corri dali para fora. Era alta, escura, encapuzada e aterradora,

com olhos verdes brilhantes. Só então reparei no bordão que segurava na mão esquerda.

— O que o deteve? — perguntou o Mago. — Vem quase com cinco

minutos de atraso!

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CAPÍTULO 4

A CARTA

— Vivi nesta casa quando criança — disse o Mago —, e vi coisas que te

deixariam todo arrepiado, mas eu era o único que as conseguia ver e o

meu pai costumava bater-me por dizer mentiras. Era usual sair uma coisa da cave. Deve ter acontecido o mesmo com você. Acertei?

Acenei com a cabeça.

— Bem, não fique preocupado, rapaz. E só mais uma imagem

fantasmagórica, um fragmento de uma alma perturbada que alcançou

uma situação melhor. Se ele não deixasse para trás a sua pior parte,

ficaria preso aqui para sempre. — O que foi que ele fez? — indaguei, a minha voz ecoando ligeiramente

no teto.

O Mago abanou a cabeça pesarosamente. — Tratava-se de um mineiro cujos pulmões estavam tão doentes que teve de deixar de trabalhar.

Passava os dias e as noites a tossir e com falta de ar, e a sua pobre

esposa é que ganhava para o sustento de ambos. Trabalhava numa padaria, mas, para mal dos dois, ela era uma mulher muito bonita.

Poucas são as mulheres em quem se pode confiar e as bonitas são as

piores de todas. «Para complicar, ele era um homem ciumento e a doença tornou-o mais

amargo. Uma noite, ela atrasou-se muito no regresso para casa, do

trabalho, e ele ia constantemente à janela, andando de um lado para o outro, ficando cada vez mais furioso por pensar que ela estava com

outro homem.

«Quando a mulher finalmente chegou, ele estava numa fúria tal que lhe rachou a cabeça com um pedaço grande de carvão. Depois deixou-a ali,

nas lajes, moribunda, e desceu à cave para abrir uma sepultura. Ela

ainda estava viva quando ele voltou, mas não conseguia se mexer, nem sequer gritar. E o terror que se apodera de nós, pois foi exatamente

assim que ela se sentiu quando ele lhe pegou e a levou para a escuridão

da cave. Ela ouvira-o cavar. Sabia o que ele ia fazer. «Mais tarde, naquela noite, ele suicidou-se. É uma história triste, mas,

apesar de agora repousarem em paz, a imagem fantasmagórica dele

permanece aqui, assim como as últimas lembranças dela, ambas suficientemente fortes para atormentarem pessoas como nós. Vemos

coisas que os outros não conseguem ver, o que é simultaneamente uma

bênção e uma maldição. Porém, é algo muito útil, no nosso ofício. Estremeci. Sentia pena da pobre esposa que fora assassinada e sentia

pena do mineiro que a matara. Sentia até pena do Mago. Imagine, ter de

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passar a infância numa casa como esta! Olhei para a vela, que colocara

no meio da mesa.

Estava quase no fim e a chama iniciava a sua última dança tremulante, mas o Mago não deu mostras de querer voltar lá para cima. Não gostei

das sombras no rosto dele. Pareciam ir mudando gradualmente, como se

lhe estivesse a nascer um focinho de porco ou outra coisa qualquer. — Sabe como venci o meu medo? — perguntou.

— Não, senhor.

— Uma noite, estava tão aterrado que gritei antes de conseguir me conter. Acordei todo mundo e, num acesso de fúria, o meu pai levantou-

me pelo colarinho e me trouxe pelas escadas abaixo até esta cave.

Depois, foi buscar um martelo e cravou pregos na porta, fechando-me

aqui dentro.

«Eu não era muito crescido. Provavelmente, teria sete anos, no máximo.

Subi as escadas e, gritando até rebentar, raspei e bati na porta. Mas o meu pai era um homem insensível e deixou-me completamente sozinho

no escuro e tive de ficar aqui horas, até muito depois da aurora.

Passados instantes, acalmei e, sabe o que fiz então? Abanei a cabeça, evitando olhá-lo no rosto. Os seus olhos brilhavam com

muita intensidade e pareceu-me mais do que nunca um lobo.

— Desci as escadas e sentei-me aqui nesta cave, às escuras. Depois respirei fundo três vezes e enfrentei o meu medo. Enfrentei a própria

escuridão, que é a coisa mais aterradora de todas, especialmente para

pessoas como nós, porque há coisas que vêm ter conosco no escuro. Procuram-nos com murmúrios e assumem formas que só os nossos

olhos conseguem ver. Mas saí-me bem e quando deixei esta cave, o pior

passara. Naquele momento a vela derreteu por completo e depois apagou-se,

mergulhando-nos na mais absoluta escuridão.

— Agora é que é, rapaz — disse o Mago. — Só estamos você, eu e o escuro. Consegue agüentar? Está preparado para ser meu aprendiz?

A voz dele parecia diferente, mais cava e estranha.

Imaginei-o a caminhar nas quatro patas, pêlo de lobo a cobrir-lhe o rosto, os dentes a aumentarem de tamanho.

Eu tremia e apenas consegui falar depois de respirar fundo pela terceira

vez. Só então lhe dei a resposta. Era o que o meu pai dizia sempre que tinha de fazer algo desagradável ou difícil.

— Alguém tem de o fazer — retorqui. — Portanto, posso ser eu.

O Mago deve ter achado piada, porque a sua gargalhada encheu toda a cave antes de ressoar pelas escadas ao encontro do próximo trovão, que

vinha a descer.

— Há quase treze anos — afirmou o Mago —, enviaram-me uma carta lacrada. Era breve e concisa e estava escrita em grego. Foi a sua mãe

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que a mandou. Sabe o que dizia? — Não — respondi tranqüilamente,

sentindo curiosidade pelo que vinha a seguir.

— «Acabei de dar à luz um rapaz», escreveu ela, «e é o sétimo filho de um sétimo filho. Chama-se Thomas J. Ward e é a minha dádiva ao

Condado. Quando ele tiver idade suficiente, mandá-lo-emos chamar.

Prepare-o bem. Será o melhor aprendiz que alguma vez teve, e também o seu último.»

«Nós não usamos magia, rapaz — continuou o Mago, a sua voz pouco

mais do que um murmúrio na escuridão. — As principais ferramentas do nosso ofício são o bom senso, a coragem e proceder a registros

rigorosos, para que possamos aprender com o passado. Acima de tudo,

não acreditamos em profecias. Não acreditamos que o futuro está

determinado. Por isso, se o que a sua mãe escreveu se vier a

concretizar, então é porque nós fizemos com que isso se concretizasse.

Compreende? Havia um tom de raiva na voz dele mas sabia que não me era dirigida e,

por isso, anuí na escuridão.

— Quanto a ser a dádiva da sua mãe ao Condado, cada um dos meus aprendizes era o sétimo filho de um sétimo filho. Por isso não comece a

julgar-se especial.

Tem muito estudo e trabalho árduo pela frente. «A família pode ser um estorvo — prosseguiu o Mago após uma pausa, a

sua voz mais suave, já sem a raiva. — Só me restam agora dois irmãos.

Um é serralheiro e damo-nos bem, mas o outro não fala comigo há mais de quarenta anos, apesar de ainda viver em Horshaw.

Quando abandonamos a casa, a tempestade dissipara-se e havia luar.

No momento em que o Mago fechou a porta da rua, reparei pela primeira vez no que fora talhado na madeira.

O Mago indicou-o com a cabeça.

— Uso símbolos como este para avisar outros com capacidade para os lerem ou por vezes apenas para estimular a minha própria memória.

Reconhecerá a letra grega gama. Tanto pode indicar um fantasma como

uma imagem fantasmagórica. A cruz em baixo, à direita, é o numeral romano para dez, que é o grau mais baixo de todos. Acima de seis é

apenas uma imagem fantasmagórica.

Não existe nada naquela casa que te possa fazer mal, seja corajoso. Lembre-se, o escuro alimenta-se do medo. Seja corajoso e não há muito

que uma imagem fantasmagórica possa fazer.

Se ao menos eu o tivesse sabido desde o início! — Anime-se, rapaz — disse o Mago. — A sua cara chega quase às botas!

Bem, talvez isto te alegre. — Tirou do bolso um bocado de queijo

amarelo, partiu um pequeno naco e entregou-me. — Mastigue-o — advertiu —, mas não o engula de imediato.

Page 31: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Segui-o pela rua empedrada. O ar estava úmido, mas pelo menos não

chovia e a oeste as nuvens pareciam lã de carneiro e começavam a

rasgar-se e a separar-se em faixas irregulares. Deixamos a aldeia e continuamos para sul. Mesmo no seu limite, quando

a rua empedrada se transformava numa viela lamacenta, havia uma

pequena igreja. Parecia abandonada: faltavam telhas de lousa no telhado e a tinta desprendia-se da porra principal. Quase não tínhamos

avistado ninguém desde que saíramos da casa, mas estava ali um

homem de pé, à porta. Tinha cabelo branco, escorrido, gorduroso e desgrenhado.

As roupas escuras indicavam tratar-se de um padre, mas, quando nos

aproximamos dele, o que realmente despertou a minha atenção foi a

expressão no seu rosto.

Olhava-nos ameaçadoramente, o semblante todo distorcido. E depois, de

forma dramática, fez um enorme sinal da cruz, chegando mesmo a pôr-se na ponta dos pés ao começá-lo, estendendo o mais que podia o

indicador da mão direita para o céu. Já vira antes padres fazer o sinal da

cruz, mas nunca com um gesto tão exagerado, tão cheio de raiva. Uma raiva que parecia ser-nos dirigida.

Calculei que tivesse alguma razão de queixa do Mago, ou talvez do

trabalho que ele fazia. Sabia que o ofício deixava a maior parte das pessoas nervosa, mas nunca vira semelhante reação.

— O que tem ele? — inquiri, depois de o deixarmos para trás e estarmos

a uma distância a que não seríamos ouvidos. — Padres! — grunhiu o Mago, a raiva nítida na sua voz. — Sabem tudo mas não vêem nada! E

aquele é pior do que a maioria! É o meu outro irmão.

Teria gostado de saber mais coisas, mas por uma questão de bom senso, não continuei a questioná-lo. Parecia haver muito que saber sobre o

Mago e o seu passado, mas parecia também que eram coisas que ele só

me conta-ria quando se sentisse preparado. Assim, continuei a segui-lo para sul, carregando o seu pesado saco e

pensando no que a minha mãe escrevera na carta. Nunca fora pessoa de

se gabar ou de fazer afirmações precipitadas. A minha mãe só dizia o que tinha de dizer, por isso havia uma intenção em cada palavra sua.

Normalmente, ela limitava-se a levar a vida a diante e a agir conforme

as necessidades. O Mago dissera-me que não havia muito que se pudesse fazer pelas imagens fantasmagóricas, mas uma vez a minha

mãe silenciara as da Colina do Carrasco.

Ser o sétimo filho de um sétimo filho não era nada por aí além, neste tipo de atividade — bastava tão-somente ser aceito como aprendiz do

Mago. Mas eu sabia que havia algo mais que me tornava diferente.

Eu também era filho da minha mãe.

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CAPÍTULO 5

DEMÔNIOS E BRUXAS

Dirigíamo-nos para aquilo que o Mago chamava a sua «Casa de Verão».

Enquanto caminhávamos, as últimas nuvens marinais dissiparam-se e

percebi subitamente que o sol estava diferente. Mesmo no Condado, por vezes o sol brilha no Inverno, o que é bom porque normalmente isso

significa que não vai chover; mas há uma altura em cada novo ano em

que percebemos pela primeira vez o seu calor. É como o regresso de um

velho amigo.

O Mago devia estar pensando quase exatamente o mesmo porque de

repente estacou, olhou-me de lado e brindou-me com um dos seus raros sorrisos.

— Este é o primeiro dia de Primavera, rapaz — disse —, por isso vamos

para Chipenden. Pareceu-me uma afirmação um tanto estranha. Ele ia sempre para

Chipenden no primeiro dia de Primavera, e, se sim, porquê? Resolvi

perguntar-lhe. — Instalações de Verão. Passamos o Inverno à beira de Anglezarke Moor

e desfrutamos do Verão em Chipenden.

— Nunca ouvi falar de Anglezarke. Onde fica? — indaguei. — No extremo sul do Condado, rapaz. É o lugar onde nasci. Vivemos lá

até o meu pai se mudar para Horshaw.

Bem, pelo menos ouvira falar de Chipenden, o que me deixou animado. Ocorreu-me que, na qualidade de aprendiz do Mago, teria de viajar

muito e precisava de aprender a orientar-me. Sem mais delongas,

mudamos de rumo, encaminhando-nos para nordeste, na direção das colinas distantes. Não fiz mais perguntas mas, naquela noite, quando

nos abrigamos novamente num celeiro frio e a ceia se re-sumiu a mais

algumas dentadas de queijo amarelo, o meu estômago começar a achar que me tinham cortado a garganta. Nunca sentira tanta fome.

Perguntei-me onde iríamos ficar em Chipenden e se arranjaríamos ali

algo decente para comer. Não conhecia ninguém que lá tivesse estado, mas ouvira dizer que era um lugar isolado e hostil em algum lugar nas

Fel s3 — as distantes colinas de tom cinzento e púrpura que apenas se

vislumbravam da fazenda do meu pai. Sempre me tinham feito lembrar enormes animais adormecidos, mas provavelmente a culpa era de um

dos meus tios, que costumava me contar semelhantes histórias. À noite,

dizia ele, punham-se em movimento, e às vezes, ao raiar do dia, desapareciam aldeias inteiras da face da terra, reduzidas a pó sob o peso

deles.

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Na manhã seguinte, escuras nuvens cinzentas encobriam mais uma vez

o sol e tudo indicava que íamos ter de esperar algum tempo pelo

segundo dia de Primavera. Estava também a levantar-se vento, sacudindo as nossas roupas à

medida que começávamos a subir e dispersando as aves por todo o céu,

as nuvens precipitando-se para leste a fim de esconderem os cumes das Fels.

3 Região de charnecas rochosas ou terrenos acidentados no Norte de

Inglaterra. ( N T ) O nosso ritmo era lento e dei graças por isso, visto ter uma bolha

horrível em cada calcanhar. Assim, estávamos quase no final do dia

quando nos aproximamos de Chipenden, a luz começando já a diminuir.

Nessa altura, apesar de o vento soprar ainda com intensidade, o céu

limpara e as colinas púrpura recortavam a linha do horizonte. O Mago

não falara muito durante a viagem, mas agora parecia quase excitado, ao proferir um por um os nomes delas. Havia designações como Parlick

Pike4, a que ficava mais próxima de Chipenden; ou então

— umas visíveis, outras escondidas e distantes — Mellor Knol 5, Saddle Fel e Wolf6 Fel .

Quando inquiri o meu mestre sobre se existiam alguns lobos em Wolf Fel

ele sorriu sinistramente. — As coisas mudam rapidamente aqui, rapaz — disse ele —, e temos de estar sempre atentos.

Quando se avistaram os primeiros telhados da aldeia, o Mago apontou

para um caminho estreito que partia da estrada, subindo a serpentear junto à margem de um pequeno ribeiro gorgolejante.

— A minha casa fica nesta direção — anunciou ele.

— É um percurso ligeiramente mais longo, mas significa que escusamos de atravessar a aldeia. Gosto de manter uma certa distância da

população que ali vive. E ela também prefere que assim seja.

Lembrei-me do que Jack dissera sobre o Mago e caiu-me o coração aos pés. Era uma vida solitária. Acabava-se a trabalhar sozinho.

4 Pico. ( NT)

5 Pequeno monte. ( NT) 6 Lobo. ( NT)

Havia algumas árvores atrofiadas em cada margem, agarrando-se à

vertente da colina por causa da força do vento, mas depois, subitamente, mesmo lá à frente, avistou-se uma mata de sicômoros e

freixos. Quando entramos nela, o vento reduziu-se a pouco mais do que

um suspiro distante. Não passava de um grande maciço de árvores, talvez algumas centenas, que proporcionava abrigo do vento fustigante,

mas, após alguns momentos, percebi que era mais do que isso.

Já antes reparara, de tempos em tempos, que algumas árvores eram ruidosas, com os ramos sempre a chiar ou as folhas a balançar,

enquanto outras quase não emitiam qualquer som. Ouvia lá em cima o

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sopro distante do vento, mas dentro da mata os únicos sons audíveis

eram os das nossas botas. Tudo o mais estava sossegado, toda uma

mata cheia de árvores tão silenciosas que até senti um arrepio subir e descer-me pela espinha. Cheguei quase a pensar que estivessem a

ouvir-nos.

Chegamos então a uma clareira, e mesmo lá à frente vislumbrei uma casa. Encontrava-se rodeada por uma sebe alta de espinheiro-alvar, pelo

que só se viam o piso superior e o telhado. Erguia-se uma coluna de

fumaça branca de uma chaminé. Seguia direto para o ar, impassível, até que, mesmo acima das árvores, o vento o empurrava para leste.

A casa e o jardim, reparei então, assentavam numa depressão na

vertente da colina. Era como se um gigante amável tivesse vindo retirar

o solo com a mão.

Segui o Mago ao longo da sebe até chegarmos a um portão de metal.

Este era pequeno, não ultrapassava a minha cintura, e fora pintado de um verde-vivo, um trabalho que parecia concluído tão recentemente que

me perguntei se a tinta secara devidamente e se o Mago ficaria com a

mão suja dela, uma vez que a estendia já para a tranqueta. Subitamente, sucedeu algo que me fez suster a respiração. Antes de o

Mago tocar na tranca, ela levantou-se sozinha e o portão abriu-se

lentamente, como se empurrado por uma mão invisível. — Obrigado — ouvi o Mago dizer.

A porta da rua não se moveu sozinha porque primeiro foi preciso abri-la

com a enorme chave que o Mago retirou do bolso. Parecia idêntica à que usara para abrir a porta da casa em Watery Lane.

— É a mesma chave que usou em Horshaw? — inquiri.

— É, rapaz — disse, olhando-me do alto enquanto abria a porta. — O meu irmão, o serralheiro, deu-me esta.

Abre a maior parte das fechaduras desde que não sejam demasiado

complicadas. Dá muito jeito, na nossa atividade. A porta deslizou com uma sonora chiadeira e um gemido profundo e

segui o Mago até um pequeno átrio obscuro. Havia umas escadas

íngremes à direita e um corredor estreito e lajeado, à esquerda. — Coloque tudo no fundo das escadas — disse o Mago. — Vá lá, rapaz.

Deixe de moleza. Não há tempo a perder. Gosto da comida a escaldar!

Largando então o saco dele e a minha trouxa no lugar que me indicara, segui-o pelo corredor em direção à cozinha e ao apetitoso cheiro de

comida quente.

Quando lá chegamos, não fiquei decepcionado. Fez-me lembrar a cozinha da minha mãe. Cresciam ervas aromáticas em

grandes vasos no parapeito da janela ampla e o sol poente salpicava a

divisão com as sombras das folhas. No canto ao fundo ardia uma enorme fogueira, enchendo a cozinha de calor e, mesmo no centro do chão

lajeado, havia uma grande mesa de carvalho. Encontravam-se em cima

Page 35: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

dela dois pratos vazios enormes e, no seu centro, cinco travessas com

comida até em cima, ao lado de um jarro cheio até à borda de molho

quente fumegante. — Sente-se e coma à vontade, rapaz — convidou o Mago, e não precisei que me dissesse uma segunda vez.

Servi-me de fatias grandes de frango e carne de vaca, quase não

deixando espaço suficiente no prato para o monte de batatas assadas e legumes que se seguiu. Por fim, reguei tudo com um molho tão saboroso

que só a minha mãe teria feito melhor.

Perguntei-me onde estava a cozinheira e como soubera que íamos chegar naquele exato momento para ter a comida quente a postos na

mesa. Todo eu era perguntas, mas estava também cansado, pelo que

guardei toda a minha energia para a comida. Quando engoli finalmente a

última bocada, o Mago limpara já o seu prato.

— Gostou? — quis saber.

Acenei com a cabeça, quase cheio demais para falar. Senti-me ensonado.

— Depois de uma dieta de queijo, é sempre bom chegar em casa e

tomar uma refeição quente — disse ele. — Comemos bem, aqui. Compensa as vezes em que estamos a

trabalhar.

Voltei a acenar e comecei a bocejar. — Há muito que fazer amanhã, por isso vá para a cama. O seu quarto é

o da porta verde, no alto do primeiro lance de escadas — informou-me o

Mago. — Durma bem, mas não saia do seu quarto e não ande a passear pela casa durante a noite. Ouvirá tocar uma sineta quando o desjejum

estiver pronto. Desça assim que a ouvir —

quando preparam comida boa, podem ficar aborrecidos se a deixar esfriar. Mas também não desça muito cedo, pois isso seria igualmente

mau.

Anuí, agradeci-lhe a refeição e percorri o corredor em direção à parte da frente da casa. O saco do Mago e a minha trouxa tinham desaparecido.

Curioso sobre quem os teria levado, subi as escadas para me ir deitar.

O meu quarto novo acabou por se revelar muito maior do que o de minha casa, que durante um curto período tivera de partilhar com dois

dos meus irmãos. Neste novo quarto cabiam uma cama, uma pequena

mesa com uma vela, uma cadeira e uma cômoda, mas havia também muito espaço para caminhar. E ali, em cima da cômoda, a minha trouxa

de pertences aguardava-me.

Mesmo em frente da porta ficava uma janela de guilhotina grande, dividida em oito vidraças tão espessas e irregulares que apenas

conseguia ver espirais e volutas de cor lá fora. Parecia que a janela não

era aberta há anos. A cama fora colocada ao longo da parede por debaixo dela, pelo que descalcei as botas, ajoelhei-me na coberta e

tentei abrir a janela. Apesar de estar um pouco emperrada, acabou por

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não ser tão difícil quanto supusera. Servi-me do cordão para levantar a

metade inferior da janela com uma série de puxões, apenas o suficiente

para pôr a cabeça de fora e apreciar melhor o que me rodeava. Consegui ver um amplo relvado por baixo de mim, dividido ao meio por

um caminho de pedras brancas que desaparecia nas árvores. Por cima

da linha das árvores, à direita, ficavam as extensões rochosas, a mais próxima tão perto que quase me pareceu possível estender a mão e

tocar-lhe. Inspirei uma profunda lufada de ar fresco e senti o cheiro da

relva antes de meter a cabeça para dentro e desatar a minha pequena trouxa de pertences. Couberam facilmente na gaveta de cima da

cômoda. Quando a ia fechar, reparei subitamente nas inscrições na

parede do fundo, nas sombras defronte dos pés da cama. Estava coberta

de nomes, todos rabiscados a tinta preta no estuque branco. Alguns

nomes eram maiores do que outros, como se quem os escrevera se

tivesse em alta conta. Muitos haviam sumido com o tempo e perguntei-me se seriam os nomes dos outros aprendizes que tinham dormido neste

mesmo quarto. Deveria acrescentar o meu próprio nome ou esperar até

ao final do primeiro mês, altura em que talvez fosse aceite com caráter permanente? Não tinha caneta nem tinta, por isso seria algo a ponderar

mais tarde, mas examinei a parede com mais atenção para determinar

qual o nome mais recente. Decidi que era BILLY BRADLEY — parecia-me o mais nítido e fora

comprimido num pequeno espaço à medida que a parede ia sendo

preenchida. Durante alguns momentos, ansiei saber o que faria Bily agora, mas estava cansado e pronto para dormir.

Os lençóis eram lavados e a cama convidativa, e assim, sem perder mais

tempo, despi-me e, no preciso instante em que a minha cabeça assentou na almofada, adormeci.

Quando voltei a abrir os olhos, o sol entrava pela janela. Estivera a

sonhar e fora acordado de repente por um ruído. Pensei que provavelmente seria a sineta do desjejum.

Fiquei então preocupado. Teria sido realmente a sineta a chamar-me

para o desjejum ou um sino no meu sonho? Como podia ter a certeza? O que deveria fazer?

Provavelmente teria problemas com a cozinheira, se descesse cedo ou

tarde. Então, decidindo que provavelmente ouvira a sineta, vesti-me e desci imediatamente.

No caminho, ouvi um barulho de tachos e panelas vindo da cozinha,

mas, assim que abri a porra, fez-se um silêncio de morte. Cometi então um erro. Devia ter voltado logo para cima, porque era

óbvio que o desjejum não estava pronto.

Tinham sido levantados os pratos e travessas da ceia da véspera mas a mesa estava ainda vazia e a lareira cheia de cinzas frias. Na realidade, a

Page 37: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

cozinha estava gelada e, pior do que isso, parecia arrefecer mais a cada

segundo.

O meu erro foi dar um passo na direção da mesa. Assim que o fiz, ouvi algo emitir um som mesmo atrás de mim. Foi um

som irado. Não havia a menor dúvida. Um nítido silvo de raiva muito

próximo da minha orelha esquerda. Tão próximo que senti o seu sopro. O Mago avisara-me para que não descesse cedo e senti subitamente que

corria verdadeiro perigo.

Mal aquele pensamento me ocorreu, algo me atingiu com força na nuca; cambaleei na direção da porta, por pouco não perdendo o equilíbrio e

estatelando-me de comprido.

Não precisei de segundo aviso. Saí dali correndo e subi as escadas.

Depois, a meio, fiquei estático. Encontrava-se um tanto no alto. Alguém

alto e ameaçador, recortado na luz da porta do meu quarto.

Estaquei, sem saber para que lado ir, até ser tranqüilizado por uma voz familiar. Era o Mago.

Era a primeira vez que o via sem a comprida capa preta. Vestia uma

túnica negra e calças cinzentas e pude ver que, apesar de ser um homem alto com ombros largos, o resto do seu corpo era magro,

provavelmente porque havia dias em que apenas conseguia dar umas

mordiscadas no queijo. Fazia lembrar os melhores criados de lavoura quando ficam mais velhos. Alguns, claro, engordam apenas, mas a

maioria — como aqueles que o meu pai contrata para a ceifa, agora que

quase todos os meus irmãos saíram de casa — são magros, com corpos duros e secos. «Magreza é destreza», diz constantemente o meu pai e

agora, ao olhar para o Mago, via por que razão ele conseguia caminhar a

um ritmo tão rápido e durante tanto tempo sem descansar — Avisei-o para não descer cedo — disse-me tranqüilamente. — Deve

ter levado uns bofetões. Que te sirvam de lição, rapaz. Para a próxima é

capaz de ser bem pior. — Pareceu-me ouvir a sineta — respondi. — Mas deve ter sido um sino

no meu sonho.

O Mago riu baixinho. — Essa é uma das primeiras e mais importantes li-

ções que um principiante tem de aprender — disse ele —: a diferença

entre estar acordado e a sonhar. Alguns nunca chegam a aprender. Abanou a cabeça, deu um passo na minha direção e bateu-me

delicadamente no ombro.

— Venha, vou mostrar-lhe o jardim. Tem de começar por algum lado e sempre passa o tempo até o desjejum estar pronto.

* * *

Quando o Mago me levou até lá fora, pela porta traseira da casa, vi que o jardim era muito grande, bem maior do que parecera do lado de fora

da sebe.

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Encaminhamo-nos para leste, semicerrando os olhos por causa do sol do

princípio da manhã, até chegarmos a um amplo relvado. No lusco-fusco

da véspera, parecera-me que o jardim estava completamente rodeado pela sebe, mas percebia agora o meu engano. Havia intervalos nela, e

mesmo por cima ficava a mata. O caminho de pedras brancas dividia o

relvado e desaparecia nas árvores. — Na realidade, existe mais de um jardim — disse o Mago. — Melhor

dizendo, três, alcançando-se cada um deles através de um caminho

como este. Vamos ver primeiro o jardim oriental. É bastante seguro quando há sol, mas nunca percorra este caminho depois de escurecer.

Bem, a menos que tenha uma razão muito forte. Mas nunca se estiver

sozinho.

Segui o Mago, cheio de nervosismo, em direção às árvores.

A erva era mais alta no extremo do jardim e estava salpicada de

campainhas. Gosto das campainhas porque florescem na Primavera e me lembram sempre que os dias longos e quentes de Verão não tardam,

mas naquele momento mal as olhei uma segunda vez. O sol da manhã

estava escondido pelas árvores e de repente o ar ficou muito mais fresco. Fez-me lembrar a visita à cozinha. Havia algo de estranho e

perigoso naquela parte da mata e parecia fazer cada vez mais frio, à

medida que avançávamos para as árvores. Havia ninhos de gralhas lá no alto, por cima de nós, e os gritos

desagradáveis e zangados das aves ainda me causavam mais arrepios

do que o frio. Eram quase tão musicais quanto o meu pai, que começava a cantar assim que terminávamos a ordenha. Sempre que o leite

azedava, a minha mãe atribuía-lhe as culpas.

O Mago parou e apontou para o solo cerca de cinco passos mais à frente. — O que é aquilo? — inquiriu, a sua voz pouco mais do que um

murmúrio.

A erva fora limpa e no centro do grande pedaço de terra estava uma pedra tumular. Era vertical, mas ligeiramente inclinada para a esquerda.

No chão diante dela, um metro e oitenta de solo estava cercado de

pedras mais pequenas, o que era invulgar. Mas havia algo ainda mais estranho: por cima do pedaço de terra, e presas às pedras exteriores por

pernos, encontravam-se treze barras de ferro grossas.

Contei-as duas vezes apenas para me certificar. — Então, rapaz, fiz-lhe uma pergunta. O que se passa? A minha boca estava tão seca que mal

conseguia falar, mas balbuciei três palavras: — É uma sepultura. .

— Muito bem, rapaz. Percebeu de primeira. Notou algo de invulgar? — perguntou ele.

Nesta altura não consegui de todo falar. Limitei-me a acenar com a

cabeça. Ele sorriu e bateu-me no ombro.

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— Não há nada a temer. É apenas uma bruxa morta e bastante fraca na

sua arte. Enterraram-na em solo profano do lado de fora de um

cemitério, a não muitos quilômetros daqui. Mas ela insistia constantemente em vir à superfície. Dei-lhe uma boa reprimenda mas

ela não quis ouvir, por isso tive de trazê-la para cá. Faz com que as

pessoas se sintam melhor. Dessa forma, podem prosseguir as suas vidas em paz. Nem querem pensar em coisas como esta. É a nossa função.

Acenei novamente e percebi de repente de que não respirava, por isso,

enchi bem os pulmões de ar. O coração batia-me desalmadamente no peito, ameaçando rebentar a qualquer instante, e eu tremia da cabeça

aos pés.

— Não, ela agora incomoda pouco — prosseguiu o Mago. — Às vezes, na

Lua cheia, consegue-se ouvi-la a agitar-se, mas não tem força para vir à

superfície e as barras de ferro impedi-la-iam na mesma. Mas há coisas

piores lá mais adiante, nas árvores — disse ele, apontando com o seu dedo ossudo para leste. — Dá cerca de vinte passos e chegará ao local.

Pior? O que podia ser pior? Fiquei intrigado, mas sabia que ele faria

questão em me contar. — Há duas outras bruxas. Uma está morta e a outra viva. A morta

encontra-se enterrada verticalmente, de cabeça para baixo, mas mesmo

assim, uma ou duas vezes por ano temos de endireitar as barras por cima da sua sepultura. Mantenha-se bem afastado do local, depois de

escurecer.

— Porque foi enterrada de cabeça para baixo? — quis saber.

— Eis uma boa pergunta, rapaz — observou o Mago. — Sabe, o espírito

de uma bruxa morta é o que chamamos normalmente «preso aos ossos». Encontra-se retido dentro dos ossos dela e, por vezes, elas nem

sequer sabem que morreram. Primeiro, experimentamos colocá-las de

cabeça para cima, e isso é suficiente a maioria das vezes. Todas as bruxas são diferentes, mas há algumas que são realmente teimosas.

Apesar de presa aos ossos, uma bruxa como esta esforça-se ao máximo

por voltar ao mundo. É como se quisesse voltar a nascer, de maneira que temos de lhe criar dificuldades e enterrá-la ao contrário. Não é fácil

sair pelos pés. Às vezes, os bebês humanos têm o mesmo problema.

Mas ela continua a ser perigosa, por isso mantenha-se bem longe. «Certifique-se de que se mantenha afastado da que está viva. Seria mais

perigosa morta do que viva, porque uma bruxa poderosa como aquela

não teria dificuldade nenhuma em voltar ao mundo. Por esse motivo a mantemos num poço. O nome dela é Mãe Malkin e fala sozinha.

Bem, na verdade, é mais um murmúrio. Ela é tão má quanto se pode

ser, mas está no poço há muito tempo e a maior parte do seu poder escoou-se para a terra. Adoraria deitar as mãos em um rapaz como

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você. Por isso, mantenha-se bem distante. Prometa-me agora que não

vai se aproximar. Quero ouvir-te dizê-lo. .

— Prometo não me aproximar — murmurei, sentindo-me desconfortável com tudo aquilo. Parecia uma coisa terrível e cruel manter qualquer

criatura viva —

mesmo uma bruxa — no solo, e não estava a ver a minha mãe a gostar muito da idéia. — Lindo menino. Não queremos que se repitam mais

acidentes como o desta manhã. Há coisas piores do que levar um

bofetão. Bem piores. Acreditei nele, mas não queria ouvir falar do assunto. Só que ele tinha

outras coisas para me mostrar, por isso fui poupado de mais palavras

assustadoras. Conduziu-me para fora da mata e percorremos outro

relvado.

— Este é o jardim meridional — anunciou o Mago.

— Também não venha cá depois de escurecer. — O sol foi rapidamente escondido por ramos densos e o ar ficou cada vez mais frio, pelo que

soube estarmos a aproximar-nos de algo mau. Parou a cerca de dez

passos de uma pedra grande que fora colocada deitada no solo, perto das raízes de um carvalho. Cobria uma área um pouco maior do que um

jazigo e, a avaliar pela parte que estava acima do solo, a pedra era

também muito grossa. — Quem acha que está enterrado ali debaixo? —

perguntou o Mago.

Procurei mostrar-me confiante. — Outra bruxa?

— Não — disse o Mago. — Não é necessário tanta pedra para uma

bruxa. Por norma, o ferro funciona. Mas a coisa ali debaixo pode escapulir-se através das barras de ferro num abrir e fechar de olhos.

Preste atenção na pedra. Consegue ver o que está gravado nela?

Anuí. Reconhecia a letra mas não sabia o que significava. — É a letra grega beta — disse o Mago. — É o sinal que usamos para um

demônio7. A linha diagonal significa que se encontra preso

artificialmente debaixo daquela pedra e o nome por baixo diz quem o fez. No canto inferior direito está o numeral romano para um. Quer dizer

que é um demônio da primeira categoria e muito perigoso.

Conforme mencionei, usamos graus de um a dez. Lembre-se disso — um dia poderá salvar-lhe a vida. Um de grau dez é tão fraco que as pessoas

nem sequer reparariam que estava lá. Já se for um de grau um poderia

facilmente matar-te. Custou-me uma fortuna mandar trazer aquela pedra para cá, mas valeu cada cêntimo. Agora é um demônio

aprisionado. Encontra-se preso artificialmente e ficará ali até Gabriel

fazer soar a sua trombeta. «Tem de aprender muito sobre os demônios, rapaz, e vou iniciar a sua

preparação logo a seguir ao desjejum, mas existe uma diferença

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significativa entre aqueles que estão presos e os que estão livres. Um

demônio livre consegue muitas vezes afastar-se quilômetros da sua casa

e, se estiver predisposto a isso, fazer maldades infinitas. Se um demônio se tornar particularmente incômodo e não der ouvidos à razão, compete-

nos aprisioná-lo. Se o fizermos bem, fica o que chamamos aprisionado

artificialmente. Desse modo não se consegue sequer mover. Claro, é mais fácil dizer do

que fazer.

O Mago carregou subitamente o cenho, como se recordasse algo desagradável.

— Um dos meus aprendizes meteu-se em sérios apuros ao atentar

aprisionar um demônio — disse, aba-7 Mais uma vez, a letra grega

escolhida não encontra correspondência em português. O termo

constante do original é boggart. (NT) mas como é apenas o seu primeiro

dia, não vamos falar já disso. Precisamente naquele momento, vindo da direção da casa, ouviu-se o

som da sineta. O Mago sorriu.

— Estamos acordados ou a sonhar? — indagou. — Acordados.

— Tem certeza? Acenei com a cabeça.

— Nesse caso, vamos comer — disse ele. — Mostrar-te-ei o outro jardim depois de termos enchido as barrigas.

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CAPÍTULO 6

UMA MENINA COM SAPATOS BICUDOS

A cozinha modificara-se desde a minha última visita. Fora acesa uma

pequena fogueira na lareira e estavam dois pratos de toucinho defumado

com ovos em cima da mesa. Havia também pão acabado de assar e uma bola grande de manteiga.

— Coma, rapaz, antes que esfrie — convidou o Mago. Ataquei de

imediato e não demoramos muito a dar conta das duas pratadas e

também de metade do pão. O Mago recostou-se na cadeira, cofiou a

barba e fez-me uma pergunta importante.

— Não acha — inquiriu ele, os seus olhos fitando diretamente os meus — que foi o melhor toucinho defumado com ovos que comeu?

Não concordei. O desjejum fora bem preparado.

Estava bom, sim, sempre era preferível ao queijo, mas já comera melhor. Já comera melhor todas as manhãs quando estivera em casa. A

minha mãe era muito melhor cozinheira, mas de certa forma não me

parecia que fosse a resposta pretendida pelo Mago. Então, disse-lhe uma mentira inofensiva, o tipo de falsidade que realmente não faz mal

nenhum e as pessoas ficam mais satisfeitas ao ouvirem-na.

— Sim — referi —, foi o melhor desjejum que alguma vez saboreei. E peço desculpa por ter descido cedo demais. Prometo que não voltará a

acontecer.

Ante aquelas palavras, o Mago esboçou um sorriso tão rasgado que julguei que o rosto se lhe fosse abrir ao meio; depois deu-me uma

palmada nas costas e levou-me de novo ao jardim.

Só quando chegamos lá fora é que o sorriso desapareceu de vez. — Muito bem, rapaz — disse ele. — Há duas coisas que reagem bem à

lisonja. A primeira é uma mulher e a segunda é um demônio. Nunca

falha. Bem, eu não vira qualquer sinal de uma mulher na cozinha, o que só

vinha confirmar as minhas suspeitas —

que era um demônio que preparava as nossas refeições. O mínimo que posso dizer é que foi uma surpresa. Toda mundo pensava que um Mago

matava demônios, ou que os manipulava para que não pudessem fazer

maldades. Quem iria acreditar que tinha um a cozinhar e a limpar para ele?

— Este é o jardim ocidental — informou-me o Mago, enquanto

percorríamos o terceiro caminho, as pedras brancas fazendo barulho sob os nossos pés. — É um local seguro de estar, seja de dia ou seja de

noite. Eu próprio venho aqui com freqüência, sempre que tenho um

Page 43: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

problema que necessita de aturada reflexão. Atravessamos outra

abertura na sebe e não tardamos a caminhar por entre as árvores. Senti

logo a diferença. As aves cantavam e as árvores oscilavam de leve com a brisa da manhã. Era um local mais aprazível.

Continuamos a andar até abandonarmos as árvores e chegarmos a uma

colina com uma vista para as extensões rochosas à nossa direita. O céu estava tão limpo que conseguia ver os muros de pedra que dividiam as

vertentes inferiores em campos e marcavam o território de cada

agricultor. Na realidade, a vista estendia-se até ao alto da extensão rochosa mais próxima.

O Mago indicou um banco de madeira à nossa esquerda.

— Sente-se, rapaz — convidou.

Fiz o que me mandavam. Durante alguns momentos, o Mago ficou a

olhar para mim, os seus olhos verdes cravados nos meus. Depois

começou a andar para cima e para baixo diante do banco, sem dizer nada. Já não me olhava, mas fitava o espaço com uma expressão vaga

nos olhos. Afastou a comprida capa preta e enfiou as mãos nos bolsos

das calças, muito repentinamente, depois sentou-se ao meu lado e fez perguntas.

— Quantos tipos diferentes de demônio acha que existem? Não fazia a

menor idéia. — Já conheço dois tipos — referi —: os livres e os aprisionados, mas não seria sequer capaz de dar um palpite sobre os

outros.

— Isso é duplamente bom, rapaz. Lembrou-se do que te ensinei e revelou-se alguém que não dá palpites à toa. Sabe, há tantos tipos de

demônios quantos os tipos de pessoas e cada um possui personalidade

própria. No entanto, convém salientar que existem alguns tipos que podem ser reconhecidos e designados por um nome. Umas vezes em

virtude da forma que assumem e outras por causa do seu

comportamento e das partidas que pregam. Remexeu no seu bolso direito e retirou um livrinho com encadernação de

couro preto. A seguir entregou-me.

— Tome, agora é seu — disse. — Tenha cuidado com ele e, faça o que fizer, não o perca.

O cheiro do couro era muito forte e o livro parecia novinho em folha. Foi

com uma certa decepção que o abri e encontrei cheio de páginas em branco. Acho que estava à espera de o ver repleto dos segredos das

atividades do Mago — mas não, tudo indicava que teria de ser eu a

escrevê-los, porque logo de seguida o Mago tirou uma caneta e um pequeno frasco de tinta do bolso.

— Prepare-se para tomar notas — disse, levantando-se e recomeçando a

andar para cá e para lá diante do banco. — E tenha cuidado para não entornar a tinta, rapaz. Ela não escorre do úbere de uma vaca.

Page 44: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Consegui desrolhar o frasco e depois, com muito cuidado, mergulhei nele

a ponta da caneta e abri o livro de notas na primeira página. O Mago

iniciara já a lição e falava muito depressa. — Em primeiro lugar, há demônios peludos, que assumem a forma de

animais. São sobretudo cães, mas existem quase tantos gatos e uma ou

outra cabra. Mas não se esqueça de incluir também os cavalos — podem ser muito traiçoeiros. E, seja qual for a sua forma, os demônios peludos

podem dividir-se naqueles que são hostis, naqueles que são amigáveis

ou nos que não são nem uma coisa nem outra. Depois há os barulhentos, que por vezes se trans-formam em

arremessadores de pedras e podem ficar muito zangados quando

provocados. Um dos tipos mais desagradáveis de todos é o estripador de

gado porque tem também um fraco por sangue humano. Mas não fique

com a idéia de que nós, os Magos, só lidamos com demônios, pois os

mortos perturbados nunca andam muito longe. A seguir, e só para complicar, as bruxas constituem realmente um problema no Condado.

De momento, não temos bruxas locais com que nos preocupar, mas a

leste, próximo de Pendle Hill, constituem uma verdadeira ameaça. E lembre-se de uma coisa: nem todas as bruxas são iguais. Inserem-se

em quatro categorias rudimentares —

as malévolas, as benévolas, as falsamente acusadas e as desconhecedoras.

Nesta altura, como certamente terão adivinhado, eu estava mesmo em

apuros. Para começar, ele falava tão depressa que não conseguira escrever uma única palavra.

Em segundo lugar, não conhecia sequer todos as palavras difíceis que

ele estava a usar. Todavia, naquele momento ele fez uma pausa. Acho que deve ter percebido a expressão confusa no meu rosto.

— Qual é o problema, rapaz? — indagou. — Vamos, desembucha. Não

tenha medo de fazer perguntas. — Não compreendi tudo o que disse a respeito das bruxas — respondi.

— Não sei o que significa «malévola».

Ou, já agora, «benévola». — Malévola significa má — explicou-me. — Benévola significa boa. E

uma bruxa desconhecedora significa que é uma bruxa que não sabe que

é bruxa e, por ser mulher, isso torna-a duplamente perigosa. Nunca confie numa mulher — disse o Mago.

— A minha mãe é uma mulher — contrapus, sentindo-me subitamente

um tanto irado —, e eu confio nela. — As mães são normalmente mulheres — afirmou o Mago. — E as mães

são normalmente dignas de confiança, desde que se seja seu filho. De

outro modo, fique atento! Já tive mãe e confiava nela, por isso conheço bem a sensação. Gosta de garotas? — perguntou de repente.

— Na verdade, não conheço quaisquer garotas —

Page 45: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

confessei. — Não tenho irmãs.

— Bem, nesse caso, pode ser facilmente vítima das manhas delas. Fique

atento às garotas da aldeia. Em especial a alguma que use sapatos bicudos. Anote isso. É um começo tão bom como qualquer outro.

Perguntei-me o que haveria de tão terrível em usar sapatos bicudos.

Sabia que a minha mãe não ficaria satisfeita com o que o Mago acabara de dizer. Ela defendia que se deviam aceitar as pessoas tal como eram e

não dar ouvidos à opinião de outrem. Mas eu tinha outra escolha?

Então, mesmo no alto da primeira página escrevi «Garotas da Aldeia com Sapatos Bicudos».

Ele me viu escrever, depois pediu-me o livro e a caneta. — Olha — disse

—, vai ter de ser muito mais rápido a tomar notas. Há muito que

aprender e não tardará que tenha enchido uma dúzia de livros destes,

mas, por agora, três ou quatro tópicos serão suficientes para começar.

Depois ele escreveu «Demônios Peludos» no alto da segunda página. A seguir «Barulhentos» no alto da terceira página; e, por último, «Bruxas»

no alto da quarta página. — Pronto — disse. — Já tem um começo.

Escreva apenas algo que aprenda hoje debaixo de cada um destes quatro tópicos. Mas de momento há um assunto mais urgente.

Necessitamos de provisões. Por isso vai ter de ir à aldeia; caso contrário,

amanhã passaremos fome. Nem o melhor cozinheiro consegue apresentar resultados sem provisões. Lembre-se de que terá de vir tudo

dentro do meu saco. É o açougueiro que o tem, portanto dirija-se lá em

primeiro lugar. Pergunte apenas pela encomenda de Mr. Gregory. Deu-me uma pequena moeda de prata, avisando-me que não perdesse o

troco, e depois mandou-me descer a colina pelo caminho mais rápido

para a aldeia. Não tardou que voltasse a caminhar por entre as árvores até chegar finalmente a uns degraus que me levaram a um carreiro

íngreme e estreito. Cerca de cem passos mais adiante, virei uma esquina

e apareceram as placas cinzentas dos telhados de ardósia de Chipenden. A aldeia era maior do que eu esperara. Havia pelo menos uma centena

de pequenas cabanas, depois uma taberna, uma escola e uma igreja

grande com campanário. Não se via sinal de uma praça de mercado, mas a rua principal

empedrada, que era bastante inclinada, estava cheia de mulheres com

cestos carregados que entravam nas lojas e saíam apressadas. Cavalos e carroças aguardavam de ambos os lados da rua, pelo que era evidente

que as mulheres dos agricultores locais vinham aqui às compras e, sem

dúvida, também as gentes dos lugarejos vizinhos. Dei facilmente com o talho e juntei-me a uma fila de mulheres ruidosas,

que gritavam todas com o açougueiro, um homem bem-disposto, grande

e corado de barba ruiva. Parecia conhecer cada uma delas e estas riam sonoramente das suas piadas, que pareciam não ter fim.

Page 46: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Não entendi a maior parte, mas via-se que as mulheres percebiam e

dava a impressão de estarem realmente a divertir-se.

Ninguém me prestou muita atenção, mas chegou finalmente a minha vez de ser atendido.

— Venho buscar a encomenda de Mr. Gregory —

disse ao açougueiro. Assim que falei, fez-se silêncio no estabelecimento e as gargalhadas

cessaram. O açougueiro baixou-se por detrás do balcão e pegou num

saco grande. Ouvi as pessoas cochichar atrás de mim, mas, apesar de ter apurado o ouvido, não percebi muito bem o que diziam. Quando me

virei, olhavam para todo o lado menos para mim. Algumas estavam até

de olhos postos no chão.

Entreguei a moeda de prata ao açougueiro, verifiquei cuidadosamente o

troco, agradeci-lhe e saí da loja com o saco, colocando-o ao ombro

quando cheguei à rua. A visita ao vendedor de hortaliças não demorou nada. As provisões

estavam já embrulhadas, de maneira que meti o volume no saco, que

começava agora a ficar bastante pesado. Até ali correra tudo bem, mas quando me encaminhei para a padaria, vi

o grupo de rapazes.

Eram uns sete ou oito, sentados num muro de jardim. Não havia nada de estranho nisso, exceto o fato de não estarem a conversar uns com os

outros — concentravam-se em olhar-me com rostos famintos, qual

matilha de lobos, observando cada passo que eu dava ao aproximar-me da padaria.

Quando saí de lá, continuavam no mesmo lugar e, no momento em que

principiei a subir a colina, eles começaram a seguir-me. Bem, apesar de ser demasiada coincidência pensar que tinham decidido subir a mesma

colina, não fiquei preocupado. Seis irmãos haviam-me dado montes de

prática de luta. Ouvi o som das suas botas cada vez mais próximo.

Estavam a alcançar-me muito rapidamente, mas isso talvez se devesse

ao fato de eu caminhar cada vez mais devagar. Sabem, não queria que pensassem que estava com medo e, de qualquer forma, o saco pesava e

a colina que subia era muito íngreme.

Apanharam-me cerca de uma dúzia de passos antes dos degraus, precisamente no ponto em que o carreiro se dividia numa pequena

mata, as árvores aglomerando-se de cada lado para bloquearem o sol da

manhã. — Abra o saco e mostre-nos o que temos — ordenou uma voz atrás de

mim. Era uma voz sonora, cava, acostumada a dizer às pessoas o que

fazerem. Possuía um timbre de dureza e perigo que me disse que aquele a que pertencia gostava de infligir dor e andava sempre à procura da sua

próxima vítima.

Page 47: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Virei-me para o enfrentar mas agarrei o saco ainda com mais força,

mantendo-o firmemente ao ombro. Aquele que falara era o líder do

grupo. Não existia a menor dúvida. Os restantes tinham caras magras e chupadas, como se estivessem a precisar de uma boa refeição, mas

parecia que ele andara a comer pelos outros todos. Tinha pelo menos

mais uma cabeça de altura do que eu, com ombros largos e um pescoço semelhante ao de um touro.

O seu rosto também era grande, de faces vermelhas, mas tinha uns

olhos muito pequenos e não dava mostras de pestanejar sequer. Acho que se ele não tivesse estado ali nem tentado desafiar-me, talvez

eu me houvesse compadecido. Afinal, alguns dos rapazes pareciam

meios esfomeados e havia imensas maçãs e bolos no saco. Por outro

lado, não eram meus para os estar a distribuir.

— Isto não me pertence — disse. — Pertence a Mr. Gregory.

— O último aprendiz dele não parecia muito incomodado com isso — redarguiu o líder, aproximando mais o seu rosto grande do meu. — Ele

costumava abrir o saco para nós. Se tivesse algum juízo, faria o mesmo.

Se não o quiser fazer por bem, então terá de ser por mal. Mas não vai gostar muito e no fim virá a dar tudo no mesmo.

O grupo começou a acercar-me e senti alguém atrás de mim puxar o

saco. Mesmo assim, não o larguei e olhei para os olhos miudinhos do líder, esforçando-me por não pestanejar.

Naquele momento, aconteceu algo que nos apanhou a todos de

surpresa. Verificou-se um movimento nas árvores em algum lugar à minha direita e viramo-nos todos para lá.

Estava um vulto negro nas sombras e, quando os meus olhos se

adaptaram ao escuro, vi que era uma garota. Avançava lentamente na nossa direção, mas a sua aproximação era tão silenciosa que até se

podia ouvir cair um alfinete e tão suave que ela parecia flutuar, em vez

de caminhar. Depois parou mesmo à beira da sombra das árvores, como se não quisesse avançar para a luz do sol.

— Porque não o deixam em paz? — inquiriu. Parecia uma pergunta, mas

o tom na voz dela dizia-me que era uma ordem. — O que tem a ver com isso? — perguntou o líder do grupo, espetando o

queixo e cerrando os punhos.

— Não é comigo que deve se preocupar — respondeu ela das sombras. — Lizzie voltou, e se não fizer o que eu digo, terá de responder perante

ela.

— Lizzie? — estranhou o rapaz, recuando um passo. — Lizzie dos Ossos. É minha tia. Não me diga que nunca ouviu falar dela. .

Já alguma vez sentiram que o tempo passa tão devagar que quase

parece parado? Alguma vez ouviram um relógio em que o próximo tique parece levar uma eternidade a seguir o último taque? Bem, foi

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exatamente assim até que, muito subitamente, a garota sibilou

sonoramente através dos dentes cerrados. Depois voltou a falar.

— Vamos — disse ela. — Desapareçam! Vão-se embora, e depressa, senão mato-os!

Foi imediato o efeito sobre o grupo. Captei a expressão em alguns dos

rostos deles e vi que não estavam apenas com medo. Estavam apavorados e à beira do pânico. O líder girou nos calcanhares e fugiu

imediatamente colina abaixo, com os outros a segui-lo muito de perto.

Não sabia por que motivo estavam tão assustados mas queria também fugir. A garota fitava-me de olhos arregalados e não me achei capaz de

controlar devidamente as pernas. Sentia-me como um rato paralisado

pelo olhar fixo de um furão prestes a saltar.

Obriguei o meu pé esquerdo a mover-se e, lentamente, virei o meu

corpo para as árvores a fim de seguir a direção em que o meu nariz

apontava, mas continuava a agarrar o saco do Mago. Fosse ela quem fosse, não estava disposto a abrir mão dele.

— Não vai fugir também? — perguntou-me ela.

Abanei a cabeça, mas tinha a boca tão seca que não confiava em mim para tentar falar. Sabia que diria as palavras erradas.

Ela teria provavelmente a minha idade — quando muito seria

ligeiramente mais nova. Tinha um rosto bastante bonito, pois possuía olhos castanhos grandes, malares salientes e cabelo preto comprido.

Envergava um vestido preto cingido na cintura com um pedaço de corda

branca. Mas enquanto eu registrava tudo isto, percebi subitamente de algo que me incomodou.

A garota calçava sapatos bicudos, e lembrei-me de imediato do aviso do

Mago. Mas mantive-me firme, decidido a não fugir como os outros. — Não vai me agradecer? — perguntou ela. — Seria agradável ouvir um

obrigado.

— Obrigado — disse-lhe, desajeitada mente, conseguindo finalmente dizer uma palavra.

— Bem, já é um começo — gracejou ela. — Mas para me agradecer

como deve ser, precisa de me dar algo, não é verdade? Um bolo e uma maçã serão suficientes de momento. Não estou a lhe pedir muito. Há

muitos no saco e o Velho Gregory não irá dar por isso, e se der, não dirá

nada. Fiquei chocado de a ouvir chamar «Velho Gregory»

ao Mago. Sabia que ele não gostava que o tratassem assim e alertou-me

para dois aspectos. Em primeiro lugar, a garota tinha pouco respeito por ele, e, em segundo, não o temia nem um bocadinho. Mas, no lugar de

onde eu vinha, a maioria das pessoas tremia só da idéia de que o Mago

pudesse estar nas proximidades. — Lamento — respondi —, mas não o posso fazer. Não me compete dá-

los.

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Ela olhou-me então com dureza e durante um bom bocado não falou.

Pensei a dada altura que fosse sibilar entre dentes. Olhei para ela,

tentando não pestanejar, até que um tênue sorriso lhe iluminou o rosto e ela voltou a falar. — Então terei de me contentar com uma promessa.

— Uma promessa? — estranhei, perguntando-me o que pretenderia.

— Uma promessa de me ajudar assim como eu te ajudei. Não preciso de qualquer ajuda neste momento, mas talvez venha a precisar um dia.

— Está bem — respondi-lhe. — Se alguma vez vier a precisar de ajuda, é

só pedir. — Como se chama? — indagou ela, brindando-me com um largo sorriso.

— Tom Ward.

— Bem, o meu nome é Alice e vivo acolá — disse, apontando para o

meio das árvores. — Sou a sobrinha preferida de Lizzie dos Ossos.

Lizzie dos Ossos era um nome estranho mas teria sido indelicado da

minha parte mencioná-lo. Fosse lá quem fosse, o seu nome bastara para apavorar os rapazes da aldeia.

E a nossa conversa terminou ali. Viramo-nos os dois e seguimos

caminhos separados, mas enquanto nos afastávamos, Alice gritou por cima do ombro.

— Agora tenha cuidado. Não queira ter o mesmo fim que o último

aprendiz do Velho Gregory. — O que lhe aconteceu? — inquiri. — É melhor perguntar ao Velho

Gregory! — gritou ela enquanto desaparecia por entre as árvores.

Quando regressei, o Mago verificou cuidadosamente o conteúdo do saco, dando baixa na lista.

— Tive algum problema na aldeia? — perguntou, depois de finalmente

terminar. — Uns rapazes seguiram-me colina acima e mandaram-me abrir o saco

mas eu neguei-me a fazê-lo — referi.

— Foi muito corajoso — afirmou o Mago. — Para a próxima não haverá nenhum problema se os deixar tirar alguns bolos e maçãs. A vida já é

bastante difícil, mas alguns deles são de famílias muito pobres.

Encomendo sempre a mais, para o caso de eles pedirem. Fiquei aborrecido. Se ele me tivesse dito aquilo antes! — Não o quis

fazer sem antes lhe perguntar — redargui.

O Mago arqueou os sobrancelhas. — Querias dar-lhes alguns bolos e maçãs?

— Não gosto que me provoquem — disse —, mas alguns deles tinham

um ar realmente esfomeado. — Para a próxima confie nos seus instintos e use a sua iniciativa —

replicou o Mago. — Confie na voz dentro de si. Raramente se engana.

Um Mago depende muito dela, porque às vezes pode significar a diferença entre a vida e a morte. Mas isso é outra coisa que precisamos

de descobrir a eu respeito. Se pode ou não confiar nos seus instintos.

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Fez uma pausa, fitando-me intensamente, os seus olhos verdes

perscrutando o meu rosto. — Algum problema com garotas? — inquiriu

subitamente. Como ainda estava aborrecido, não dei uma resposta direta à pergunta

dele.

— Problema nenhum — disse. Não era uma mentira, pois Alice ajudara-me, o que era precisamente o

oposto. Mesmo assim, julguei que me estivesse a perguntar se

encontrara alguma garota e sabia também que lhe devia ter falado dela. Especialmente porque usava sapatos bicudos.

Cometi muitos erros como aprendiz e aquele foi o meu segundo mais

grave — não contar toda a verdade ao Mago.

O primeiro, mais grave ainda, foi fazer a promessa a Alice.

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CAPÍTULO 7

ALGUÉM TEM QUE FAZER

Depois daquilo, a minha vida entrou numa rotina atarefada. O Mago

ensinava-me depressa e obrigava-me a escrever até ficar com o pulso a

doer e os olhos a arder. Uma tarde, levou-me até ao fundo da aldeia, para lá da última cabana

de pedra, onde havia um pequeno círculo de salgueiros que, no

Condado, têm o nome de «vimes». Era um lugar triste e havia ali uma

corda pendendo de um ramo. Olhei para cima e vi um sino grande de

latão. — Quando alguém precisa de ajuda — disse o Mago —, não vem

até em casa. Ninguém o faz, a menos que tenha sido convidado. Sou muito rigoroso nisso.

Descem aqui e tocam aquele sino. Depois nós vamos ter com eles.

O problema era que, mesmo depois de terem passado semanas, ninguém viera tocar o sino, e só precisei de ir para lá do jardim ocidental

quando houve necessidade de ir buscar as provisões semanais à aldeia.

Sentia-me também sozinho, com saudades da minha família, por isso foi boa idéia o Mago manter-me ocupado — isso queria dizer que não tinha

tempo para me pôr a pensar no assunto. Quando ia me deitar estava tão

cansado que adormecia mal a minha cabeça pousava na almofada. As lições eram a parte mais interessante de cada dia, mas não aprendi

muito sobre imagens fantasmagóricas, fantasmas e bruxas. O Mago

explicou-me que, no primeiro ano do aprendizado, os temas principais eram os demônios, juntamente com assuntos como a botânica, o que

implicava aprender tudo sobre plantas, algumas das quais eram

realmente úteis em mezinhas ou podiam ser comidas se não se encontrasse outro alimento. Mas as minhas lições não se limitavam a

tomar notas. Parte do trabalho era tão duro e físico como o que eu fazia

lá na nossa fazenda. Começou numa manhã quente e ensolarada, em que o Mago me mandou

pôr de lado o livro de notas e segui-lo até ao jardim meridional.

Entregou-me duas coisas para levar: uma pá e uma vara de medição comprida.

— Os demônios livres deslocam-se através de linhas — explicou. — Mas

por vezes algo corre mal. Pode ser conseqüência de uma tempestade ou talvez de um tremor de terra. Nunca se registrou um tremor de terra a

sério no Condado desde que há memória, mas isso não importa, porque

as linhas estão todas interligadas e algo que acontece numa, mesmo a milhares de quilômetros, pode afetar todas as outras. Então, os

demônios ficam presos no mesmo lugar durante anos e chamamos-lhes

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«aprisionados naturalmente». Muitas vezes não conseguem se mover

mais de uma dúzia de passos em qualquer sentido e causam poucos

problemas. A menos que se aproxime demais de um deles. Por vezes, no entanto, podem ficar presos em lugares estranhos, perto de uma casa ou

mesmo dentro dela. Então, talvez precise de mudar dali o demônio e

aprisioná-lo artificialmente noutro lugar. — O que é uma linha? — inquiri.

— Não existe um consenso, rapaz — explicou-me ele. — Há quem pense

que são apenas caminhos antigos que atravessam a terra, os caminhos que os nossos ante-passados percorreram em tempos antigos, quando

os homens eram homens de verdade e a escuridão conhecia o seu

devido lugar. Havia mais saúde, vivia-se mais tempo e toda a gente

estava feliz e contente.

— O que aconteceu?

— A camada de gelo desceu do norte e a terra ficou gelada durante milhares de anos — esclareceu o Ma-go. — Foi tão difícil sobreviver que

os homens se esqueceram de tudo o que haviam aprendido. O

conhecimento antigo não era relevante. Tudo o que importava era manterem-se quentes e terem comida. Quando o gelo finalmente

recuou, os sobreviventes eram caçadores vestidos com peles de animais.

Haviam esquecido como se obtinham boas colheitas e criavam animais. As trevas eram soberanas.

«Bem, agora está melhor, apesar de ainda termos um longo caminho

pela frente. Tudo o que resta daqueles tempos são as linhas, mas, na verdade, são mais do que meros caminhos. As linhas são verdadeiras

vias de poder, bem nas profundezas da Terra. Estradas secretas

invisíveis que os demônios livres podem usar para se deslocarem a grande velocidade. São estes demônios livres que causam a maior parte

dos problemas. Quando se instalam num novo local, com freqüência não

são bem-vindos. E isso deixa-os irados. Pregam peças — às vezes perigosas — e isso significa trabalho para nós. Então, é preciso

aprisioná-los artificialmente num poço. Como aquele que vai abrir agora.

. «Este é um bom local — disse, apontando para o solo perto de um

enorme carvalho antigo. — Acho que deve haver espaço suficiente entre

as raízes. O Mago entregou-me a vara de medição para que eu pudesse abrir o

poço exatamente com um metro e oitenta de comprido, um metro e

oitenta de profundidade e noventa centímetros de largura. Mesmo à sombra, fazia demasiado calor para cavar e levei horas e horas até

conseguir acertar porque o Mago era um perfeccionista.

Depois de abrir o poço, tive de preparar uma mistura malcheirosa de sal, limalhas de ferro e um tipo especial de cola feita com ossos.

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— O sal pode queimar um demônio — informou o Mago. — Por outro

lado, o ferro faz a ligação ao solo: tal como um raio dá com o caminho

até à terra e perde a sua força, o ferro pode por vezes fazer com que as coisas que habitam o escuro percam a força e a substância. Pode pôr fim

à malvadez de demônios incômodos. Usados juntos, o sal e o ferro

formam uma barreira que um demônio não consegue atravessar. Na realidade, o sal e o ferro podem ser usados em diversas situações.

Depois de agitar a mistura num balde grande de metal, servi-me de uma

trincha para revestir o interior do poço. Era como se pintasse, mas mais trabalhoso, e a camada tinha de ficar perfeita para evitar que até o

demônio mais habilidoso conseguisse escapulir.

— Faça um trabalho minucioso, rapaz — disse-me o Mago. — Um

demônio é capaz de fugir por um buraco do tamanho de uma cabeça de

alfinete.

Claro que, assim que o poço ficou concluído a contento do Mago, tive de tapá-lo e recomeçar. Obrigou-me a abrir dois poços por semana para

treinar, o que era um trabalho duro e fatigante e me ocupava grande

parte do tempo. Metia também um certo medo porque eu estava a trabalhar perto de poços que continham demônios verdadeiros e, mesmo

à luz do dia, era um lugar medonho. No entanto, reparei que o Mago

nunca se afastava muito e parecia sempre atento e alerta, dizendo-me que nunca se devia correr riscos com demônios, mesmo quando estavam

presos.

O Mago disse também que eu ia precisar de conhecer cada palmo do Condado — todas as suas vilas e aldeias e o caminho mais rápido entre

quaisquer dois pontos. Só que, apesar de o Mago dizer que possuía

muitos mapas lá em cima na biblioteca, parecia que eu tinha sempre de seguir o caminho mais difícil, e então começou por me mandar desenhar

o meu próprio mapa.

No meio situava-se a casa dele e os jardins e foi preciso incluir a aldeia e a extensão rochosa mais próxima.

A idéia era ele ir ficando gradualmente maior, de modo a incluir cada vez

mais a região em redor. Mas o desenho não era o meu forte e, como referi, o Mago era um perfeccionista, pelo que o mapa levou muito

tempo a crescer.

Só então ele começou a me mostrar os seus próprios mapas, mas obrigava-me depois a passar mais tempo a dobrá-los cuidadosamente do

que propriamente a estudá-los.

Comecei também a ter um diário. Para o efeito, o Mago entregou-me outro livro de notas, dizendo-me pela enésima vez que eu precisava de

registrar o passado para que pudesse aprender com ele. Não escrevia

nele todos os dias e às vezes doía-me demais o pulso de tanto rabiscar à pressa no outro livro de notas, enquanto tentava acompanhar o que o

Mago dizia.

Page 54: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Depois, uma manhã, ao desjejum, estava eu com o Mago apenas há um

mês, ele perguntou-me: — Qual a sua opinião até aqui, rapaz?

Estaria a referir-se ao desjejum? Talvez houvesse um segundo prato para compensar o toucinho fumado, que ficara um pouco esturricado

naquela manhã. Limitei-me a encolher os ombros. Não queria ofender o

demônio, que estaria provavelmente à escuta. — Bem, é um trabalho difícil e não o culparia se decidisse desistir neste

momento — disse ele. — Decorrido o primeiro mês, dou sempre a cada

novo aprendiz a oportunidade de ir a casa e pensar a sério se quer ou não continuar. Gostaria de fazer o mesmo?

Esforcei-me por não me mostrar demasiado ansioso mas não consegui

esconder o sorriso que afluiu ao meu rosto. Só que, quanto mais eu

sorria, mais triste o Mago parecia. Deu-me a impressão de que ele

queria que ficasse, mas eu estava ansioso por partir. A idéia de voltar a

ver a minha família e poder saborear os cozinhados da minha mãe parecia-me um sonho.

Numa hora, estava pronto para ir a casa.

— É um rapaz corajoso e de espírito vivo — disse-me ao portão. — Passou no seu mês à experiência por isso pode dizer ao seu pai que, se

quiser continuar, irei visitá-lo no Outono para receber os meus dez

guinéus. Possui os predicados de um bom aprendiz, mas é com você, rapaz. Se

não voltar, então saberei que decidiu o contrário. De outro modo,

espero-o de volta dentro de uma semana. Depois receberá cinco anos de preparação que te tornarão quase tão bom quanto eu, no ofício.

Parti para casa, animado. Sabem, não quisera dizer nada ao Mago, mas

no momento em que ele me dera a oportunidade de ir a casa e possivelmente não voltar, eu decidira fazer exatamente isso. Era um

trabalho horrível.

Pelo que o Mago me contara, para além da solidão, era perigoso e aterrador. Ninguém se importava se sobrevivíamos ou morríamos. Só

queriam que os livrássemos do que quer que os atormentava, mas não

pensavam nem por um segundo nas implicações que isso poderia ter para nós.

O Mago mencionara-me que uma vez quase fora morto por um demônio.

Mudara, num abrir e fechar de olhos, de barulhento para arremessador de pedras e por pouco não lhe rachara a cabeça com uma pedra do

tamanho de um punho de ferreiro. Disse que nem sequer lhe tinham

pago ainda, mas contava receber o dinheiro na Primavera seguinte. Bem, a Primavera seguinte ainda vinha muito longe, por isso de que

servia? Quando parti rumo a casa, parecia-me que estaria melhor a

trabalhar na fazenda. Mas foram quase dois dias de viagem e tive muito tempo para pensar

durante o caminho. Lembrei-me das vezes que me sentira enfadado na

Page 55: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

fazenda. Conseguiria realmente agüentar trabalhar ali o resto da minha

vida?

A seguir, comecei a pensar no que diria a minha mãe. Ela estava firmemente decidida a que eu fosse o aprendiz do Mago e, se desistisse,

decepcioná-la-ia muito.

Portanto, a parte mais difícil seria contar-lhe e observar a sua reação. Ao anoitecer do meu primeiro dia de regresso a casa, consumira já todo

o queijo que o Mago me dera para a viagem. Assim, no dia seguinte só

parei uma vez, para mergulhar os pés num riacho, chegando a casa mesmo antes da ordenha. Quando abri o portão do pátio, o meu pai

dirigia-se para o estábulo. Ao ver-me, o seu rosto iluminou-se num

amplo sorriso. Ofereci-me para ajudá-lo na ordenha, a fim de podermos

conversar, mas ele mandou-me ir falar imediatamente com a minha

mãe.

— Ela sentiu a sua falta. Será um deleite para a vista. Batendo-me nas costas, foi ordenhar as vacas, mas eu ainda não dera meia dúzia de

passos quando Jack saiu do celeiro e veio direito a mim.

— O que o traz de volta tão depressa? — perguntou. Pareceu-me um pouco frio. Bem, para ser sincero, ele estava mais gélido do que frio. O

seu rosto apresentava-se contorcido, como se tentasse carregar o cenho

e sorrir ao mesmo tempo. — O Mago mandou-me a casa por uns dias. Tenho de decidir se quero ou

não continuar.

— E o que é que vai fazer? — Vou conversar com a minha mãe sobre o assunto.

— Levará sem dúvida a água ao seu moinho, como sempre — disse Jack.

Nesta altura, Jack estava mesmo carrancudo e fiquei com a impressão de que acontecera algo enquanto eu estivera fora. Por que outro motivo

ficaria de repente tão antipático? Seria porque não queria que eu

voltasse para casa? — E nem quero acreditar que levou a caixa de mechas do pai — acrescentou.

— Ele me deu — retorqui. — Quis que eu ficasse com ela.

— Ele ofereceu-a, mas isso não significava que tivesse de aceitá-la. O seu mal é só pensar em si. Pense no pobre do pai. Ele adorava aquela

caixa de mechas.

Não disse nada porque não estava interessado em criar uma discussão. Sabia que ele estava errado. O pai quisera que eu ficasse com a caixa de

mechas, tinha a certeza absoluta.

— Enquanto aqui estiver, poderei dar uma ajuda — disse, tentando mudar de assunto.

— Se quer realmente ganhar o seu sustento, então vá dar comida aos

porcos! — gritou enquanto se afastava.

Page 56: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Era uma tarefa de que nenhum de nós gostava. Os porcos eram

grandes, peludos e malcheirosos e estavam sempre tão esfomeados que

nunca era seguro virar-lhes as costas. Apesar do que Jack dissera, não deixei de me sentir satisfeito por estar

em casa. Enquanto atravessava o pátio, olhei para a casa. As rosas

trepadeiras da minha mãe re-vestiam a maior parte da parede das traseiras, e sempre se tinham dado bem ali, não obstante estarem

viradas a norte. Agora começavam a rebentar, mas em meados de Ju-

nho estariam cobertas de flores vermelhas. A porta de trás encravava constantemente porque uma vez a casa fora

atingida por um raio. A porta incendiara-se e fora substituída, mas a

ombreira continuava ligeiramente empenada e eu tive de empurrá-la

com bastante força. Valeu a pena, pois a primeira coisa que vi foi o rosto

sorridente da minha mãe.

Estava sentada na sua velha cadeira de balanço, no canto mais afastado da cozinha, um local onde o sol poente não conseguia chegar. Se a luz

fosse demasiado intensa, feria-lhe os olhos. A minha mãe preferia o

Inverno ao Verão e a noite ao dia. Claro que ficou satisfeita de me ver, e a princípio tentei dizer-lhe o mais

tarde possível que viera para ficar.

Assumi uma expressão corajosa e fingi estar feliz, mas ela não se deixou enganar. Nunca lhe conseguia esconder nada.

— O que se passa? — perguntou-me. Encolhi os ombros e procurei

sorrir, provavelmente disfarçando os meus sentimentos ainda pior do que o meu irmão.

— Fale — ordenou-me. — E inútil guardar tudo só para si. Durante um

grande bocado não respondi porque estava tentando encontrar uma maneira de o expressar por palavras. O ritmo da cadeira de balanço da

minha mãe abrandou gradualmente, até acabar por cessar

completamente. Aquilo não era bom sinal. — Passei no meu mês à experiência e Mr. Gregory disse que tenho de

decidir se continuo ou não. Mas sinto-me sozinho, mãe — acabei por

confessar. — É tão mau quanto esperava. Não tenho amigos. Ninguém da minha idade com quem conversar. Gostaria de voltar a trabalhar

aqui.

Podia ter continuado, referindo-lhe o quanto costumávamos ser felizes quando todos os meus irmãos viviam ali. Não o fiz — sabia que ela

também sentia saudades deles. Pensei que se pudesse compadecer, mas

estava muito enganado. Seguiu-se uma longa pausa antes de a minha mãe falar e ouvi El ie a

varrer na divisão ao lado, cantando baixinho enquanto trabalhava.

— Sozinho? — perguntou a minha mãe, a sua voz cheia de raiva em vez de compaixão. — Como pode sentir-se sozinho? Tem a si próprio, não

tem? Se alguma vez se perder, então é que estará realmente sozinho.

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Entretanto, pare de se queixar. Já é quase um homem e um homem tem

de trabalhar. Desde que o mundo é mundo, os homens têm trabalhado

naquilo de que não gostam. Porque haveria de ser diferente no seu caso? É o sétimo filho de um

sétimo filho, e este é o trabalho que nasceu para fazer.

— Mas Mr. Gregory preparou outros aprendizes — saiu-me abruptamente. — Um deles podia voltar e olhar pelo Condado.

Porque tem de ser eu?

— Ele preparou muitos, mas pouquíssimos foram até ao fim — disse a minha mãe —, e aqueles que o fizeram não lhe chegam nem aos

calcanhares. Ou são imperfeitos ou fracos ou covardes. Seguem um

caminho desonroso, recebendo dinheiro a troco de muito pouco. Por isso

agora só resta você, filho. É a última oportunidade. A última esperança.

Alguém tem de fazê-lo. Alguém tem de enfrentar o escuro. E você é o

único capaz disso. A cadeira recomeçou a balançar, ganhando lentamente velocidade.

— Bem, fico contente por isto estar resolvido.

Quer esperar pela ceia ou que te sirva assim que ficar pronta?— perguntou a minha mãe.

— Não comi nada o dia inteiro, mãe. Nem sequer o desjejum.

— Bem, é coelho guisado. Deverá conseguir animar-te um pouco. Sentei-me à mesa da cozinha, sentindo-me mais desanimado e triste do

que nunca, enquanto a minha mãe se atarefava em volta do fogão. O

coelho guisado cheirava deliciosamente e começou a dar-me água na boca. Não havia melhor cozinheira do que a minha mãe e valia a pena

voltar para casa, nem que fosse para uma única refeição.

Sorrindo, a minha mãe trouxe um grande prato fumegante de guisado e colocou-o diante de mim.

— Vou preparar o seu quarto — disse. — Já que está aqui, pode

perfeitamente ficar um dia ou dois. Murmurei os meus agradecimentos e não perdi tempo a começar. Assim

que a mãe foi para cima, Ellie entrou na cozinha. — Que bom voltar a

ver-te, Tom — disse ela, com um sorriso. Depois olhou para a minha generosa pratada de comida. — Quer acompanhar com pão?

— Sim, por favor — respondi e Ellie cortou-me três fatias grossas com

manteiga, antes de se sentar à mesa defronte de mim. Terminei tudo sem parar uma só vez para respirar, limpando finalmente o prato com a

última fatia grande de pão acabado de cozer.

— Sente-se melhor, agora? Anuí e tentei sorrir, mas sabia que não estava a resultar porque de

repente Ellie mostrou-se preocupada.

— Não pude deixar de ouvir o que disse à sua mãe — aludiu. — Estou certa de que não é tão mau quanto isso. Só que o

trabalho é novidade e estranho. Não tardará a acostumar-se. De

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qualquer forma, não precisa voltar imediatamente. Após alguns dias em

casa, se sentirá melhor. E será sempre bem-vindo aqui, mesmo quando

a fazenda pertencer a Jack. — Não creio que Jack tenha ficado satisfeito de me ver.

— Ora essa, o que te leva a pensar semelhante coisa? — inquiriu Ellie.

— Ele não me pareceu muito amistoso, é tudo. Acho que não me quer aqui.

— Não se preocupe com o seu irmão grande e mau. Eu resolvo tudo com

ele num instante. Sorri então amplamente, porque era verdade. Como dissera uma vez a

minha mãe, Ellie conseguia dar a volta a Jack com o dedo mindinho.

— O que mais o preocupa é isto — disse Ellie, passando a mão pela

barriga. — A irmã da minha mãe morreu do parto e a nossa família ainda

hoje fala disso.

Deixa Jack nervoso, mas eu não estou nada preocupada porque não podia encontrar-me em melhor lugar, com a sua mãe a cuidar de mim.

— Fez uma pausa. — Mas há outra coisa. O seu novo ofício preocupa-o.

— Ele parecia bastante satisfeito antes de eu ir embora — respondi. — Estava a fazê-lo por você, porque é irmão dele e se preocupa com

você. Mas o trabalho de Mago assusta as pessoas. Deixa-as inquietas.

Acho que se tivesse ido logo embora, provavelmente não haveria problema. Mas Jack afirmou que no dia em que se foi, subiu a colina até

à mata e desde então os cães têm andado agitados. Agora nem sequer

querem ir à pastagem norte. «Jack pensa que você perturbou algo lá em cima.

Acho que se resume tudo a isto — prosseguiu Ellie, batendo

delicadamente na barriga. — Ele só está querendo proteger-nos, é tudo. A pensar na família dele. Mas não se preocupe. Tudo irá se resolver.

Acabei por ficar três dias, tentando mostrar-me corajoso, mas depois

senti que estava na hora de ir. A minha mãe foi a última pessoa que vi antes de partir. Estávamos os dois na cozinha e ela apertou-me o braço

e disse-me que se orgulhava de mim.

— Você é mais do que sete vezes sete — afirmou, sorrindo-me calorosamente. — Também é meu filho e possui a força para fazer o que

tem de ser feito.

Não pude deixar de anuir porque queria que ela ficasse feliz, mas o sorriso desapareceu do meu rosto assim que deixei o pátio. Arrastei-me

penosamente até casa do Mago com o coração mesmo aos pés,

sentindo-me magoado e desiludido por a minha mãe não me querer de volta. Choveu o tempo todo até Chipenden e quando cheguei estava

gelado, molhado e infeliz. Mas quando me aproximei do portão, para

minha surpresa, a tranca levantou-se sozinha e o portão abriu-se sem que eu lhe tocasse.

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Foi uma espécie de boas-vindas, um encorajamento a entrar, algo que

eu julgara estar unicamente reservado ao Mago. Acho que aquilo me

deveria ter deixado satisfeito, mas não. Causou-me arrepios. Bati à porta três vezes, antes de perceber que a chave estava na

fechadura. Como não respondessem às minhas pancadas, rodei a chave

e depois abri a porta. Verifiquei todas as divisões aqui em baixo, exceto uma. Depois chamei

das escadas. Não obtive resposta, de modo que arrisquei entrar na

cozinha. O fogo ardia na lareira e a mesa fora posta para uma pessoa. No seu centro estava um enorme tacho de guisado fumegante. Tinha

tanta fome que me servi e quase limpara tudo quando vi o bilhete

debaixo do saleiro.

Tive de ir a Pendle. Problema com bruxa, por isso vou estar ausente

algum tempo. Instala-se à vontade mas não se esqueça de ir buscar as

provisões para esta semana. Como sempre, o açougueiro tem o meu saco, por isso passe lá primeiro.

Pendle era uma enorme extensão rochosa — quase uma montanha, na

realidade — na região leste do Condado. Toda a zona estava infestada de bruxas e era um local arriscado onde ir, especialmente sozinho.

Recordou-me novamente quão perigoso podia ser o trabalho do Mago.

Mas, ao mesmo tempo, não pude deixar de ficar um pouco aborrecido. Todo aquele tempo à espera de que acontecesse algo, depois, assim que

viro costas, o Mago vai-se embora sem mim!

Dormi bem naquela noite, mas não tão profunda-mente que não ouvisse a sineta a chamar-me para o desjejum. Desci a tempo e fui

recompensado com o melhor prato de toucinho defumado com ovos que

alguma vez comera na casa do Mago. Fiquei tão satisfeito que, antes mesmo de me levantar da mesa, falei em voz alta, usando as palavras

que o meu pai proferia todos os Domingos depois do almoço.

— Estava excelente — disse. — Parabéns ao cozinheiro. Mal acabei de pronunciá-las, as chamas brilharam com mais intensidade

na lareira e um gato começou a ronronar. Não via nenhum gato, mas o

barulho que fazia era tão sonoro que era capaz de jurar que as vidraças estremeciam. Obviamente o elogio fora apreciado.

Então, sentindo-me bastante satisfeito comigo mesmo, pus-me a

caminho da aldeia para ir buscar as provisões. O sol brilhava num céu azul sem nuvens, as aves cantavam e, depois da chuva da véspera, o

mundo parecia brilhante, resplandecente e novo.

Comecei pelo açougueiro, recolhi o saco do Mago, passei ao vendedor de hortaliças e terminei na padaria.

Havia alguns rapazes da aldeia encostados a um muro próximo. Não

eram tantos quanto da última vez e o líder deles, o rapagão com pescoço de touro, não se encontrava ali.

Lembrando-me do que o Mago dissera, fui ter com eles.

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— Desculpem da última vez — disse —, mas sou novo e não conhecia

bem as regras. Mr. Gregory disse que podiam ficar com um bolo e uma

maçã cada um. — Dizendo isto, abri o saco e entreguei a cada rapaz o que prometera. Os olhos deles arregalaram-se tanto que quase saltaram

das órbitas, e balbuciaram agradecimentos.

No alto do caminho estava alguém à minha espera. Era a garota chamada Alice, e mais uma vez se colocara na sombra das

árvores, como se não gostasse da luz do sol. — Pode ficar com uma

maçã e um bolo — disse-lhe. Para minha surpresa, ela abanou a cabeça. — Não tenho fome de momento — respondeu. —

Mas há algo que quero realmente. Preciso que honre a sua promessa.

Preciso de ajuda.

Encolhi os ombros. Uma promessa é uma promessa e lembrava-me de a

ter feito. Por conseguinte, que mais podia fazer, a não ser cumprir a

minha palavra? — Diga-me o que quer e farei o melhor que puder

— repliquei.

Mais uma vez o rosto dela se iluminou num sorriso verdadeiramente rasgado. Trazia um vestido preto e os sapatos bicudos mas, não sei

como, aquele sorriso fez-me esquecer tudo isso. Mesmo assim, o que ela

disse a seguir deixou-me apreensivo e estragou por completo o resto do dia.

— Não vou te contar agora — disse ela. — Fá-lo-ei esta noite, pode ter a

certeza, assim que o Sol se puser. Venha ter comigo quando ouvir o sino do Velho Gregory.

Ouvi o sino mesmo antes do pôr do Sol e, com um peso no peito, desci a

colina em direção ao círculo de salgueiros onde os caminhos se cruzavam. Não me parecia certo ela estar a tocar o sino daquela

maneira. A menos que fosse trabalho para o Mago, mas tinha as minhas

dú- vidas. Lá no alto, os últimos raios de sol incidiam nos cumes das colinas

rochosas com um tênue brilho cor-de-laranja, mas aqui em baixo, entre

os vimes, estava cinzento e cheio de sombras. Estremeci ao ver a garota porque ela puxava a corda apenas com uma

mão e, no entanto, os badalos do sino grande soavam exageradamente.

Apesar de ter os braços magros e a cintura estreita, devia ser muito forte.

Parou de tocar assim que apareci e pousou as mãos nas ancas enquanto

os ramos continuavam a dançar e a tremer lá em cima. Ficamos a olhar um para o outro uma eternidade, até os meus olhos serem atraídos para

um cesto aos pés dela. Havia algo lá dentro coberto com um pano preto.

Pegou no cesto e estendeu-o na minha direção. — O que é? — perguntei.

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— É para você, para que possa cumprir a sua promessa. Aceirei-o, mas

não me sentia satisfeito. Curioso, meti a mão lá dentro para levantar o

pano preto. — Não, deixe assim — Alice falou bruscamente, um tom cortante na sua

voz. — Não podem apanhar ar, senão estragam-se.

— O que são? — indaguei. Escurecia mais a cada minuto que passava e começava a sentir-me nervoso.

— São apenas bolos.

— Muito obrigado — disse-lhe. — Não são para você — retorquiu ela, começando a bailar-lhe um tênue

sorriso aos cantos da boca. — Esses bolos são para a Velha Mãe Malkin.

Fiquei com a boca seca e um arrepio percorreu-me a espinha. Mãe

Malkin, a bruxa viva que o Mago mantinha no poço no seu jardim.

— Não creio que Mr. Gregory vá gostar disto —

disse. — Ele disse-me para me afastar dela. — O Velho Gregory é um homem muito cruel — respondeu Alice. — A

pobre Mãe Malkin está naquele buraco escuro e úmido no solo faz agora

quase treze anos. Está certo tratar tão mal uma mulher idosa?

Encolhi os ombros. Aquilo também não me agradara. Era difícil

concordar com o que ele fizera, mas alegara possuir muito bons motivos para tal.

— Olha — prosseguiu ela —, não se meterá em apuros porque o Velho

Gregory não precisa saber. Só lhe vai levar consolo. São os bolos preferidos dela, feitos pela família. Não há nada de mal nisso. É só para

ela se fortalecer por causa do frio, que atinge até os ossos.

Voltei a encolher os ombros. Parecia que todos os melhores argumentos lhe pertenciam.

— Dê-lhe apenas um bolo cada noite. Três bolos para três noites. É

melhor fazê-lo à meia-noite porque é nessa altura que ela tem mais apetite. Dê-lhe o primeiro esta noite.

Alice preparava-se para ir embora mas parou e virou-se para me sorrir.

— Podíamos ser bons amigos, você e eu — disse com uma risada. Depois desapareceu nas sombras cada vez mais densas.

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CAPÍTULO 8

A VELHA MÃE MALKIN

De regresso à cabana do Mago, comecei a ficar preocupado, mas, quanto

mais pensava no assunto, menos esclarecido me sentia. Sabia qual seria

a reação do Mago. Deitaria fora os bolos e dar-me-ia uma longa lição sobre bruxas e os problemas com meninas que usam sapatos bicudos.

Mas ele não estava ali, por isso excluía-se a hipótese. Havia duas coisas

que me faziam ir à escuridão do jardim oriental, onde ele mantinha as

bruxas. A primeira era a minha promessa a Alice.

— Nunca prometa nada que não esteja preparado para cumprir — dizia-

me sempre o meu pai. Mas eu tinha pouca escolha. Ele ensinara-me a distinguir o certo do errado, e lá porque era o aprendiz do Mago, isso

não significava que tivesse de mudar tudo na minha maneira de ser.

Em segundo lugar, não concordava que se mantivesse uma velha prisioneira num buraco no solo. Fazê-lo a uma bruxa morta ainda vá,

mas não a uma viva. Lembro-me de me perguntar que crime terrível

teria cometido para merecer tal destino. Que mal poderia haver em dar-lhe três bolos? Um pouco de conforto da

família contra o frio e a umidade, nada mais. O Mago dissera-me que

confiasse nos meus instintos e, depois de ponderar a questão, achei que estava a tomar a atitude certa.

O único problema era ter de ser eu a levar os bolos, à meia-noite. O

escuro é mais que muito nessa altura, especialmente se não houver luar. * * *

Aproximei-me do jardim oriental levando o cesto.

Estava realmente escuro, mas não tão escuro quanto eu esperara. Por um lado, a minha visão sempre foi bastante apurada à noite. A minha

mãe sempre viu bem no escuro e acho que herdei isso dela. E, por outro

lado, como estava uma noite sem nuvens, o luar ajudou-me a dar com o caminho.

Quando penetrei nas árvores, ficou subitamente mais frio e senti um

arrepio. Quando cheguei à primeira sepultura, aquela que tinha a cercadura de pedra e as treze barras, senti ainda mais frio. A primeira

bruxa fora enterrada ali. Era fraca, com pouca força, ou pelo menos o

Mago assim afirmara. «Não precisa de se preocupar», disse para com os meus botões, esforçando-me por acreditar.

Decidir dar os bolos à Mãe Malkin à luz do dia era uma coisa, mas agora,

ali no jardim, quase à meia-noite, já não tinha tanta certeza. Ele avisara-me mais de uma vez, por isso devia ser uma regra importante e

agora eu estava a violá-la.

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Ouvia-se todo o tipo de sons tênues. Os sussurros e agitações

provavelmente não eram nada, apenas pequenas criaturas que eu

incomodara ao sair do meu caminho, mas recordaram-me que não tinha o direito de estar ali.

O Mago informara-me que as outras duas bruxas estavam cerca de vinte

passos mais adiante, por isso contei-os com cuidado. Cheguei a uma segunda sepultura que era exatamente igual à primeira. Aproximei-me

mais, apenas para me certificar. Lá estavam as barras e podia ver-se a

terra logo por baixo delas, solo calcado, sem uma única erva. Esta bruxa estava morta, mas ainda era perigosa. Era a tal que fora enterrada de

cabeça para baixo. Isso significava que as solas dos pés estavam em

algum lugar mesmo por debaixo do solo.

Quando olhei para a sepultura, pareceu-me ver algo mexer-se. Foi uma

espécie de contração; provavelmente, apenas fruto da minha

imaginação, ou talvez algum animal pequeno — um rato, um musaranho ou assim. Avancei rapidamente. E se tivesse sido um dedo do pé?

Mais três passos levaram-me ao local que procurava

— não havia qualquer dúvida. Mais uma vez, tinha uma cercadura de pedras com treze barras. No entanto, apresentava três diferenças. Em

primeiro lugar, a zona por debaixo das barras era um quadrado em vez

de um losango. Em segundo lugar, era maior, provavelmente cerca de quatro passos por quatro. E em terceiro, não havia terra calcada por

debaixo das barras, apenas um buraco muito negro no solo.

Parei e escutei cuidadosamente. Não houvera muitos ruídos até ao momento, apenas os tênues sussurros de criaturas notívagas e uma

suave brisa. Uma brisa tão ligeira que mal dei por ela. No entanto,

percebi quando cessou. De repente ficou tudo muito sossegado e a mata tornou-se estranhamente silenciosa.

Sabem, estivera à escuta para tentar ouvir a bruxa e agora sentia que

era a mim que ela escutava. O silêncio pareceu prolongar-se eternamente, até que, subitamente,

percebi uma leve respiração vinda do poço. De certa forma, aquele som

fazia com que parecesse possível mover-me, de modo que dei mais alguns passos até me encontrar muito próximo da sua beira, com a

ponta da minha bota mesmo a tocar na cercadura de pedra.

Naquele instante, lembrei-me de algo que o Mago me dissera a respeito de Mãe Malkin:

«A maior parte do seu poder escoou-se pela terra, mas ela adoraria

deitar as mãos a um rapaz como você.» Recuei então um passo — não me afastando demais, mas as palavras do

Mago tinham-me feito pensar. E

se saísse uma mão do poço e me agarrasse o tornozelo? Querendo acabar aquilo rapidamente, chamei baixinho no escuro. — Mãe

Malkin — disse. — Trouxe-lhe uma coisa.

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É um presente da sua família. Está aí? Consegue ouvir-me?

Não obtive resposta, mas o ritmo da respiração lá em baixo pareceu

acelerar. Então, não perdendo mais tempo e desesperado por voltar para o calor da casa do Mago, enfiei a mão no cesto e apalpei debaixo do

pano. Os meus dedos fecharam-se sobre um dos bolos. Pareceu-me

mole e um bocado pegajoso e úmido. Retirei-o e segurei-o por cima das barras.

— É apenas um bolo — disse-lhe baixinho. —

Espero que a faça sentir-se melhor. Trar-lhe-ei outro amanhã à noite. Ditas aquelas palavras, larguei o bolo e deixei que ele caísse na

escuridão.

Devia ter voltado imediatamente para a cabana mas fiquei mais alguns

segundos à escuta. Não sei o que esperava ouvir, mas foi um erro.

Registrou-se um movimento no poço, como se algo se arrastasse pelo

solo. E depois ouvi a bruxa começar a comer o bolo. Pensei que alguns dos meus irmãos faziam ruídos desagradáveis à mesa,

mas este era muito pior. Parecia ainda mais repugnante do que quando

os nossos porcos grandes e peludos enfiavam os focinhos no balde da lavagem, uma mistura de fungadelas, resfôlegos e mastigação

juntamente com respiração pesada. Não soube se ela estava ou não a

gostar do bolo, mas certamente fazia bastante barulho a comê-lo. Naquela noite, tive imensa dificuldade em adormecer. Não pensava

senão no poço escuro e que teria de lá voltar na noite seguinte.

Desci para o desjejum mesmo à tangente e o toucinho defumado estava queimado e o pão um bocado para o seco e duro. Não conseguia

entender — ainda na véspera o trouxera do padeiro. E não apenas isso:

o leite estava azedo. Acaso estaria o demônio zangado comigo? Sabia o que eu andara a fazer? Estragara o desjejum de propósito como

uma espécie de aviso?

O trabalho numa fazenda é duro, e eu estava acostumado a ele. O Mago não me destinara quaisquer tarefas, por isso não tinha nada que me

ocupasse o dia. Fui até à biblioteca, pensando que provavelmente não se

importaria se eu tentasse encontrar algo útil que ler, mas, para minha decepção, a porta estava trancada.

O que me restava, a não ser ir dar um passeio? Decidi explorar as

colinas rochosas, subindo primeiro Parlick Pike; uma vez no alto, sentei-me no monte de pedras e admirei a vista.

Estava um dia de céu limpo e dali conseguia ver o Condado estender-se

por baixo de mim, com o mar distante de um azul convidativo e cintilante, mais para noroeste. A extensão rochosa continuava

indefinidamente, grandes colinas com nomes como Calder Fel e Stake

House Fel — tantas que parecia ser necessária uma vida inteira para as explorar.

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Ali próximo ficava Wolf Fel e pus-me a pensar se haveria realmente

lobos na região. Os lobos podiam ser perigosos e diziam que no Inverno,

quando o tempo arrefecia, eles por vezes caçavam em alcatéias. Bem, estávamos na Primavera, e claro que não vi qualquer sinal deles, mas

isso não significava que não estivessem lá. Fez-me perceber que estar

nas colinas rochosas depois de anoitecer poderia ser bastante assustador.

Não tão assustador, decidi, quanto ter de ir dar outro bolo de comer à

mãe Malkin e não tardou que o Sol começasse a descer em direção ao ocaso e me visse obrigado a regressar a Chipenden. Dei comigo mais

uma vez a transportar o cesto pela escuridão do jardim. Desta vez,

decidi despachar tudo rapidamente. Sem qualquer perda de tempo, atirei

o segundo bolo pegajoso para o poço negro através das barras.

Só quando já era tarde demais, no preciso instante em que deixou os

meus dedos, é que percebi de algo que me gelou logo o coração. As barras por cima do poço tinham sido dobradas.

A noite anterior estavam perfeitamente retas, treze barras de ferro

paralelas. Agora, as do meio tinham quase largura suficiente para fazer passar uma cabeça.

Podiam ter sido dobradas por alguém no exterior, acima do solo, mas

tinha as minhas dúvidas. O Mago dissera-me que os jardins e a casa estavam guardados e que ninguém conseguia entrar. Só não referira

como, nem pelo quê, mas palpitava-me que era algum tipo de demônio.

Talvez o mesmo que preparava as refeições. Por isso, só podia ser a bruxa. Ela devia ter saído de alguma forma pela

parte lateral do poço e começado a trabalhar nas barras. De repente,

fez-se luz no meu espírito sobre a verdade do que estava a acontecer. Fora tão estúpido! Os bolos fortaleciam-na.

Ouvi-a, lá em baixo na escuridão, começar a comer o segundo bolo,

emitindo os mesmos ruídos horríveis a mastigar, fungar e resfolegar. Abandonei rapidamente as árvores e voltei para a cabana. Cá para mim,

ela nem sequer precisava do terceiro.

Após outra noite insone, tomara uma decisão. Estava resolvido a ir ver Alice, devolver-lhe o último bolo e explicar-lhe o motivo por que não

podia cumprir a minha promessa.

Primeiro precisava encontrá-la. Logo a seguir ao desjejum, fui até a mata onde nos tínhamos encontrado da primeira vez e atravessei-a até

ao fundo. Alice dissera que vivia «acolá», mas não havia sinal de

quaisquer edifícios, apenas colinas pouco elevadas e vales e mais matas ao longe. Pensando que seria mais rápido perguntar, desci à aldeia.

Surpreendentemente, andavam por ali pouquíssimas pessoas, mas, tal

como esperara, alguns dos rapazes rondavam a padaria. Parecia ser o seu local preferido.

Page 66: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Talvez gostassem do cheiro. Eu cá gostava. O pão acabado de assar tem

um dos melhores cheiros do mundo.

Não se mostraram muito simpáticos, atendendo a que da última vez que nos tínhamos encontrado eu dera um bolo e uma maçã a cada um deles.

Provavelmente porque agora o rapagão de olhos miudinhos estava com

eles. Mesmo assim, ouviram o que eu tinha a dizer. Não entrei em pormenores — disse-lhes apenas que precisava de encontrar a garota

que tínhamos visto na orla da mata.

— Eu sei onde ela talvez possa estar — disse o rapagão, com uma expressão muito carregada —, mas seria uma estupidez ir lá.

— E porque haveria de ser?

— Não ouviu o que ela disse? — perguntou, arqueando as sobrancelhas.

— Ela disse que Lizzie dos Ossos era tia dela.

— Quem é Lizzie dos Ossos?

Entreolharam-se e abanaram as cabeças como se eu fosse maluco. Porque seria que todos tinham ouvido falar dela menos eu?

— Lizzie e a avó passaram aqui um Inverno inteiro, antes de Gregory

lhes tratar da saúde. O meu pai está sempre a falar delas. Eram só as bruxas mais medonhas que alguma vez houve nestas paragens. Vivia

com elas algo igualmente assustador. Parecia um homem mas era muito

grande, com demasiados dentes para lhe caberem na boca. Foi o que o meu pai me contou. Ele disse que nessa altura, durante o tal Inverno

longo, as pessoas nunca saíam depois de escurecer. Que grande Mago

há de ser, se nunca ouviu falar de Lizzie dos Ossos! Não me agradou nem um pouco aquela parte. Percebi que fora bem

estúpido. Se tivesse falado ao Mago da minha conversa com Alice, ele

teria percebido que Lizzie voltara e haveria feito algo para o remediar. Segundo o pai do rapagão, Lizzie dos Ossos vivera numa fazenda cerca

de cinco quilômetros a sueste da casa do Mago. Há anos que estava

abandonada e nunca lá ia ninguém. Por isso era o local mais provável onde se encontrar de momento. Pareceu fazer sentido, para mim,

porque fora nessa direção que Alice apontara.

Nesse momento, saiu da igreja um grupo de pessoas com expressão soturna. Viraram a esquina numa fila desordenada e subiram a colina em

direção à extensão rochosa, o pároco da aldeia na frente. Vestiam

roupas quentes e muitas delas levavam cajados. — O que vem a ser aquilo? — perguntei.

— Desapareceu uma criança a noite passada —

respondeu um dos rapazes, cuspindo para as pedras. — De três anos. Acham que ela foi até lá acima. Mas, olha, já não é a

primeira. Há dois dias, deram por falta de um bebê numa fazenda para

as bandas de Long Ridge. Era demasiado pequeno para andar, por isso deve ter sido levado.

Page 67: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Acham que podem ter sido os lobos. Tem sido um mau Inverno e isso às

vezes os traz até aqui.

As indicações que me deram revelaram-se bastante boas. Sem contar que voltei atrás a buscar o cesto de Alice, em menos de uma hora avistei

a casa de Lizzie.

Naquela altura, com o sol forre, levantei o pano e examinei o último dos três bolos. Cheirava mal mas o aspecto era ainda pior. Parecia feito de

pequenos pedaços de carne, pão e mais outras coisas que não consegui

identificar. Estava úmido e muito pegajoso e quase negro. Nenhum dos ingredientes fora cozinhado, apenas ligado e comprimido. Reparei então

noutra coisa ainda mais horrível. Havia minúsculas coisinhas brancas a

rastejar pelo bolo, que pareciam ser larvas.

Senti um arrepio, tapei-o com o pano e desci a colina até à fazenda

abandonada. As vedações estavam partidas, faltava metade do telhado

do celeiro e não se viam animais. Porém, houve um pormenor que me deixou mesmo apreensivo. Saía

fumaça da chaminé da casa da fazenda.

Parecia estar alguém em casa e comecei a ficar preocupado com a coisa que tinha dentes demais para lhe caberem na boca.

Estava contando com o quê? Ia ser difícil. Como conseguiria falar com

Alice sem ser visto pelos outros membros da família dela? Quando parei na vertente, tentando decidir o que fazer em seguida,

fiquei com o problema resolvido. Saiu uma figura esbelta e escura pela

porta de trás da casa da fazenda e começou a subir a colina mesmo na minha direção. Era Alice — mas como soubera que eu estava ali?

Havia árvores entre a casa da fazenda e o lugar onde me encontrava,

mas nenhuma janela virada naquela direção. Mesmo assim, ela não subia a colina por acaso.

Veio direita a mim e estacou a cerca de cinco passos.

— O que quer? — perguntou rispidamente. — Só pode ser estúpido, para vir até aqui. Felizmente para você que estão todos dormindo lá dentro.

— Não posso fazer o que me pediu — disse-lhe, estendendo o cesto.

Cruzou os braços e carregou o cenho. — Porque não? — quis saber. — Prometeu-me, não foi?

— Não me disse o que iria acontecer — referi. —

Ela comeu já dois bolos e está ficando mais forte. Já dobrou as barras por cima do poço. Mais um bolo e ficará livre e acho que você sabe. Não

foi essa a idéia desde o início? — acusei, começando a ficar furioso. —

Enganou-me, por isso a promessa já não conta. Ela deu um passo na minha direção, mas agora a sua própria raiva fora

substituída por algo mais. Subitamente, pareceu assustada.

— A idéia não foi minha. Eles obrigaram-me a fazê-lo — disse, gesticulando na direção da casa da fazenda.

Page 68: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Se não cumprir o que prometeu, estaremos ambos em maus lençóis.

Vá lá, dê-lhe o terceiro bolo. Que mal pode fazer? A Mãe Malkin já teve o

castigo que merecia. Está na hora de libertá-la. Vá lá, dê-lhe o bolo e ela irá embora esta noite e nunca mais te incomodará.

— Acho que Mr. Gregory deve ter tido um motivo muito forte para a

meter naquele poço — afirmei lentamente. — Sou apenas o novo aprendiz dele, por isso, como posso saber o que é melhor? Quando ele

voltar vou contar-lhe tudo o que aconteceu.

Alice esboçou um pequeno sorriso — o tipo de sorriso de alguém que sabe algo que nós desconhecemos.

— Ele não vai voltar — disse. — Lizzie pensou em tudo. Tem bons

amigos perto de Pendle. Fariam qualquer coisa por ela. Enganaram o

Velho Gregory. Quando estiver perto, vai ter o que merece. Nesta altura

provavelmente já estará morto e enterrado. Espera para ver se não

tenho razão. Em breve nem sequer estará seguro lá em cima, na casa dele. Uma noite virão buscar-te. A menos, claro, que ajude agora. Nesse

caso, talvez te deixem em paz.

Mal ela disse aquelas palavras, virei costas e subi a colina, deixando-a ali especada. Acho que ela me chamou diversas vezes, mas não ouvi. O que

ela dissera sobre o Mago dava voltas dentro da minha cabeça.

Só mais tarde percebi que levava ainda o cesto, de maneira que o atirei junto com o último bolo para um rio; depois, de volta à cabana do Mago,

não levei muito tempo a perceber o que acontecera e a decidir o que

fazer de seguida. Fora tudo planejado desde o começo. Tinham arranjado um ardil para afastar o Mago dali, sabendo que, na qualidade

de seu novo aprendiz, eu seria ainda inexperiente e fácil de enganar.

Não me parecia que o Mago fosse tão fácil assim de matar, senão não teria sobrevivido tantos anos, mas não podia contar que ele chegasse a

tempo de me ajudar. Tinha de impedir Mãe Malkin de sair do poço.

Necessitava desesperadamente de ajuda e pensei descer à aldeia, mas sabia ter à mão um tipo de ajuda mais especial. Então entrei na cozinha

e sentei-me à mesa.

Fiquei à espera de levar um bofetão a qualquer momento, por isso falei rapidamente. Expliquei tudo o que sucedera, sem omitir nada. Disse

depois que a culpa era minha e agradecia que me dessem uma ajuda.

Não sei o que esperava. Não me senti ridículo a falar sozinho para o ar porque estava muito transtornado e assustado, mas à medida que o

silêncio se prolongava, fui percebendo que estivera a perder o meu

tempo. Porque haveria o demônio de me ajudar? Tanto quanto sabia, estava encarcerado, preso à casa e ao jardim pelo Mago. Podia ser

apenas um escravo, desesperado por se libertar; podia até estar

satisfeito por me ver em apuros. No momento em que me preparava para desistir e sair da cozinha, lembrei-me de algo que o meu pai

costumava dizer antes de partirmos para o mercado local: «Toda a gente

Page 69: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

tem o seu preço. É tudo uma questão de fazer uma proposta que agrade

ao outro mas tão te prejudique em demasia.»

Então fiz uma proposta ao demônio. . — Se me ajudar neste momento, não o esquecerei

— disse-lhe. — Quando me tornar o próximo Mago, dar-te-ei folga todos

os Domingos. Nesse dia, prepararei as minhas próprias refeições para que possa descansar e fazer o que lhe agradar.

De repente, senti algo roçar nas minhas pernas debaixo da mesa. Ouviu-

se também um barulho, um ligeiro ronronar, e saiu de lá um grande gato cor de camarão que avançou na direção da porta.

Devia ter estado o tempo todo debaixo da mesa —

era o que me dizia o senso comum. Todavia, tinha a certeza de que não

era verdade, por isso segui o gato pelo corredor e depois escadas acima,

onde se deteve do lado de fora da porra trancada da biblioteca. A seguir

esfregou nela o dorso, como costumam fazer os gatos nas pernas das mesas. A porta abriu-se lentamente, mostrando mais livros do que

alguém alguma vez conseguiria ler numa vida inteira, dispostos

ordenadamente em filas de prateleiras paralelas. Entrei lá dentro, perguntando-me por onde começar. E quando me virei novamente, o

gato cor de camarão desaparecera.

Cada livro tinha o título bem visível na capa. Havia muitos escritos em

latim e uns quantos em grego. Não se via pó nem teias de aranha. A

biblioteca estava tão limpa e bem cuidada quanto a cozinha. Percorri a

primeira fila até algo me despertar a atenção. Perto da janela, havia três

prateleiras muito compridas cheias de livros de notas encadernados, tal

como aquele que o Mago me dera, mas a prateleira de cima tinha livros

maiores com datas nas capas. Cada um parecia abranger um período de

cinco anos, de maneira que peguei no que estava ao fundo da prateleira

e abri-o cuidadosamente. Reconheci a caligrafia do Mago. Folheando-o,

percebi que era uma espécie de diário. Continha o registro de cada

trabalho que fizera e da quantia que lhe fora paga. Mais importante,

explicava o que fizera a cada demônio, fantasma e bruxa. Voltei a

colocar o livro na prateleira e dei uma vista de olhos às outras lombadas.

Os diários vinham quase até à atualidade e recuavam centenas de anos.

Ou o Mago era muito mais velho do que aparentava, ou os primeiros

livros tinham sido escritos por outros Magos que haviam vivido há

séculos. De repente, perguntei-me se, mesmo que Alice estivesse certa e

o Mago não voltasse, existia a possibilidade de eu conseguir aprender

tudo o que era necessário estudando apenas aqueles diários. Melhor

ainda, em algum lugar naqueles milhares e milhares de páginas poderia

estar a informação que me ajudaria naquele momento. Mas como

Page 70: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

poderia encontrá-la? Bem, poderia levar tempo, mas a bruxa estivera no

poço quase treze anos. Tinha de haver uma descrição da maneira como

o Mago a pusera lá. Eis senão quando, numa prateleira inferior, vi algo

muito melhor.

Os livros ali eram ainda maiores, cada um dedicado a um tema em

particular. Um intitulava-se Dragões e Serpentes. Estavam arrumados por ordem alfabética, pelo que não demorei muito a encontrar

exatamente aquilo que procurava.

Bruxas. Abri-o com mãos trêmulas e verifiquei que estava dividido nas quatro

secções previsíveis...

As Malévolas, As Benévolas, As Falsamente Acusadas e As Desconhecedoras.

Passei rapidamente à primeira secção. Estava tudo escrito na caligrafia

legível do Mago e, mais uma vez, cuidadosamente organizado por ordem alfabética. Numa questão de segundos, encontrei uma página intitulada:

Mãe Malkin.

Era pior do que eu esperara. Mãe Malkin era quase tão má quanto se podia imaginar. Vivera em muitos lugares e em cada zona onde

permanecera algum tempo acontecera algo terrível, tendo a pior coisa

de todas ocorrido num pântano a oeste do Condado. Vivera ali numa fazenda, proporcionando guarida às mulheres jovens à

espera de bebê mas que não tinham maridos a apoiá-las. Era daí que

vinha a denominação «Mãe». Isto continuara durante vários anos, mas algumas das mulheres jovens nunca mais haviam sido vistas.

Estivera um filho seu a viver ali com ela, um homem novo, de força

incrível, chamado Tusk. Tinha dentes grandes e assustava tanto as pessoas que nunca ninguém se aproximava do lugar. Mas a população

local acabara por se revoltar e Mãe Malkin fora obrigada a fugir para

Pendle. Após a sua partida, tinham sido encontradas as primeiras sepulturas. Havia um campo cheio de ossos e carne putrefata,

principalmente os restos mortais das crianças que ela assassinara para

alimentar a sua necessidade de sangue. Alguns dos corpos pertenciam

àquelas mulheres; em cada caso, o corpo fora esmagado, as costelas

partidas ou estaladas.

Os rapazes da aldeia tinham falado de uma coisa com demasiados dentes para lhe caberem na boca. Poderia tratar-se do tal Tusk, filho de

Mãe Malkin? Um filho que provavelmente atacara aquelas mulheres,

tirando-lhes brutalmente a vida? Fiquei com as mãos a tremer de tal forma que mal consegui manter o livro suficientemente firme para o ler.

Parecia que algumas bruxas recorriam à «magia dos ossos». Eram

necromantes que obtinham o seu poder invocando os mortos. Mas Mãe Malkin era muito pior. Mãe Malkin usava a «magia do sangue». Obtinha

Page 71: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

o seu poder usando sangue humano e gostava particularmente do

sangue de crianças.

Pensei nos bolos pretos e pegajosos e senti um arrepio. Desaparecera uma criança em Long Ridge. Uma criança jovem demais para andar.

Teria sido raptada por Lizzie dos Ossos? Teria o seu sangue sido usado

para fazer aqueles bolos? E a segunda criança, aquela de que os aldeãos andavam à procura? E se Lizzie dos Ossos a tivesse raptado também,

para que, quando Mãe Malkin fugisse do poço, pudesse usar logo o

sangue dela para efetuar a sua magia? A criança podia estar neste momento na casa de Lizzie!

Fiz um esforço para continuar a ler.

Há treze anos, no princípio do Inverno, Mãe Malkin viera viver em

Chipenden, trazendo consigo a neta, Lizzie dos Ossos. Quando

regressara da sua casa de Inverno em Anglezarke, o Mago não perdera

tempo a tratar dela. Depois de expulsar Lizzie dos Ossos, prendera Mãe Malkin com uma corrente de prata e levara-a para o poço no seu jardim.

O Mago parecia estar a argumentar consigo próprio no relato. Via-se que

não lhe agradava enterrá-la viva, mas explicava por que motivo tivera de o fazer. Acreditava que seria por demais perigoso matá-la: uma vez

morta, teria poderes para voltar e se tornaria ainda mais forte e perigosa

do que antes. A questão era: poderia ela ainda escapar? Só com um bolo conseguira

dobrar as barras. Apesar de não ter comido o terceiro, dois seriam talvez

suficientes. Podia ainda sair do poço à meia-noite. Como agir? Se era possível prender uma bruxa com uma corrente de prata, então

talvez valesse a pena tentar passá-la por cima das barras dobradas, para

impedi-la de sair do poço. O problema era que a corrente de prata estava no saco do Mago, que o acompanhava sempre para todo o lado.

Vi outra coisa quando saí da biblioteca. Estava ao lado da porta, por isso

não reparara ao entrar. Era uma longa lista de nomes em papel amarelo, exatamente trinta e todos escritos pelo punho do próprio Mago. O meu

nome, Thomas J. Ward era mesmo o último, e logo acima dele estava o

nome Wil iam Bradley, que fora riscado com um traço horizontal; ao lado viam-se as letras DEP.

Fiquei então completamente gelado, porque sabia que queriam dizer

Descansa em Paz e que Bily Bradley morrera. Mais de dois terços dos nomes no papel tinham sido riscados; daqueles, outros nove tinham

morrido.

Calculei que uma parte deles tivesse sido simplesmente riscada porque não haviam conseguido alcançar o nível de aprendizes, talvez nem

chegando sequer ao final do primeiro mês. Aqueles que tinham morrido

eram mais preocupantes. Perguntei-me o que sucedera a Bily Bradley e lembrei-me do que Alice dissera: «Não queira ter o mesmo fim que o

último aprendiz do Velho Gregory.»

Page 72: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Como é que Alice sabia o que acontecera a Bily?

Provavelmente seria do conhecimento de toda a gente na localidade, ao

passo que eu era um forasteiro. Ou tivera a família dela algo a ver com isso? Esperava que não, mas só serviu para aumentar as minhas

preocupações. Não perdendo mais tempo, desci à aldeia. O açougueiro

parecia ter algum contato com o Mago. De que outra forma arranjava o saco onde colocar a carne? Decidi então falar-lhe das minhas

desconfianças para tentar persuadi-lo a ir procurar a criança

desaparecida na casa de Lizzie. A tarde ia já no fim quando cheguei à loja dele, e esta estava fechada. Bati às portas de cinco cabanas antes

de alguém me responder. Confirmaram o que eu já suspeitava: o

açougueiro partira com os outros homens para procurar nas colinas

rochosas. Não voltariam senão na tarde do dia seguinte. Parecia que

depois de andarem à procura nas colinas da região, iam atravessar o

vale até à aldeia no sopé de Long Ridge, onde desaparecera a primeira criança. Ali efetuariam uma busca mais exaustiva e passariam a noite.

Tinha de encarar a realidade. Estava entregue a mim próprio.

Pouco depois, triste e receoso, subia o caminho em direção à casa do Mago. Sabia que se Mãe Malkin saísse da sepultura, então a criança

estaria morta antes do amanhecer. Sabia igualmente que era o único

que poderia tentar fazer algo para impedi-lo.

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CAPÍTULO 9

NA MARGEM DO RIO

De volta à cabana, fui ao quarto onde o Mago guardava as roupas de

caminhar. Escolhi uma das suas capas velhas.

Claro que me estava enorme e a bainha dava-me quase pelos tornozelos, enquanto o capuz me caía constantemente sobre os olhos.

Mesmo assim, não deixaria entrar o frio mais desagradável. Levei

também emprestado um dos seus bordões, o que melhor me serviria de

apoio: era mais curto do que os outros e ligeiramente mais grosso numa

das extremidades.

Era quase meia-noite quando deixei finalmente a cabana. O céu estava iluminado e havia uma Lua cheia que acabara de surgir por cima das

árvores, mas sentia o cheiro a chuva e soprava um vento refrescante de

oeste. Fui até ao jardim e encaminhei-me diretamente pa-ra o poço de Mãe

Malkin. Estava cheio de medo, mas alguém tinha de o fazer e quem mais

a não ser eu? Além disso, a culpa fora minha. Se ao menos tivesse contado ao Mago que encontrara Alice e que ela dissera aos rapazes que

Lizzie estava de volta! Ele teria resolvido logo tudo.

Não teria sido atraído a Pendle. Quanto mais pensava, pior era. A criança de Long Ridge podia não ter

morrido. Sentia-me culpado, tão culpado, e não conseguia suportar a

idéia de outra criança poder morrer e também isso ser culpa minha. Passei a segunda sepultura onde a bruxa morta estava enterrada de

cabeça para baixo, e avancei muito lentamente, em bicos de pés, até

alcançar o poço. Um raio de luar filtrava-se por entre as árvores, iluminando-o, pelo que

não havia dúvida em relação ao que acontecera.

Chegara tarde demais. As barras haviam sido afastadas ainda mais, estavam quase com a forma de um círculo. Até o açougueiro teria

conseguido enfiar os seus ombros maciços por aquele intervalo.

Espreitei para a escuridão do poço mas não consegui ver nada. Acho que tinha remotamente esperança de que ela pudesse ter-se esgotado a

dobrar as barras e estivesse agora por demais cansada para subir.

A sorte sorriu-me. Naquele momento, uma nuvem encobriu a Lua, tornando tudo muito mais sombrio, mas consegui ver o mato pisado.

Percebi a direção que ela tomara. Havia luz suficiente para seguir o seu

rasto.

Page 74: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Então, fui atrás dela pelo escuro. Não me deslocava rápido demais e

estava a ser muito, muito cauteloso. E se ela estivesse escondida à

minha espera, lá mais adiante? Sabia também que provavelmente não fora muito longe.

Por um lado, não passariam mais de cinco minutos ou assim da meia-

noite. Independentemente do conteúdo dos bolos que ela comera, sabia que a magia negra devia ter surtido alguma influência na recuperação

das forças. Era uma magia que supostamente seria mais forte durante as

horas de escuridão — particularmente à meia-noite. Ela só comera dois bolos, não três, pelo que isso jogava a meu favor, mas pensei na terrível

força necessária para dobrar aquelas barras.

Uma vez fora do abrigo das árvores, não tive dificuldade em seguir o

rasto dela sobre a erva. Descia a colina mas numa direção que a

afastava da cabana de Lizzie dos Ossos. A princípio, fiquei intrigado, até

me lembrar do rio lá em baixo na ravina. Uma bruxa malévola não conseguia atravessar água corrente — o Mago ensinara-me isso — por

conseguinte, teria de seguir ao longo das suas margens até ele se curvar

sobre si mesmo, deixando-lhe o caminho livre. Uma vez avistado o rio, parei na colina e perscrutei a terra lá em baixo.

A Lua saiu de trás da nuvem, mas no começo, mesmo com a sua ajuda,

não conseguia ver nada junto ao rio porque havia árvores em ambas as margens, projetando sombras escuras.

Mas, então, reparei subitamente em algo muito estranho. Havia um

rasto prateado na margem de cá. Só era visível quando o luar incidia nele, mas fazia lembrar o rasto brilhante deixado por um caracol. Alguns

segundos depois vi uma coisa escura, umbrosa, toda curvada,

arrastando-se muito perto da margem do rio. Comecei a descer a colina o mais rapidamente possível. A minha

intenção era interceptá-la antes de chegar à curva do rio e avançar

diretamente para casa de Lizzie dos Ossos. Consegui-o e fiquei ali, o rio à minha direita, virando para jusante. Mas a seguir vinha a parte difícil.

Tinha agora de enfrentar a bruxa.

Eu tremia e agitava-me e estava tão sem fôlego que se poderia pensar que passara uma hora ou mais a correr para baixo e para cima pelas

colinas. Era um misto de medo e nervos e dava a impressão de os meus

joelhos irem ceder a qualquer momento. Só apoiando-me pesadamente no bordão do Mago é que me conseguia manter de pé.

Para rio, este nem tinha assim muita largura, mas era profundo,

engrossado pelas chuvas da Primavera, a ponto de quase galgar as margens. A água deslocava-se também rapidamente, passando por mim

para se ir precipitar na negrura por debaixo das árvores onde estava a

bruxa. Olhei com muito cuidado, mas levei ainda alguns momentos a encontrá-la.

Page 75: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Mãe Malkin deslocava-se na minha direção. Era um tanto mais escura do

que as sombras das árvores, uma espécie de negrura onde podíamos

cair, uma negrura que nos engoliria para sempre. Ouvi-a então, mesmo acima do ruído feito pelo rio de águas rápidas. Não era apenas o som

dos seus pés descalços, que emitiam uma espécie de ruído deslizante ao

avançarem para mim pela erva comprida à beira do rio. Não — havia outros sons que lhe vi-riam da boca e talvez do nariz. O mesmo tipo de

ruídos que fizera quando lhe dera o bolo. Havia resfôlegos e fungadelas

que me trouxeram mais uma vez à mente a lembrança dos porcos peludos a comerem do balde da lavagem. Depois um som diferente, um

ruído de sugar.

Quando ela saiu de baixo das árvores para campo aberto, o luar incidiu

nela e vi-a bem pela primeira vez.

Tinha a cabeça curvada, o rosto escondido por uma massa emaranhada

de cabelo branco e grisalho, pelo que dava a idéia de estar a olhar para os pés, que se viam mesmo por debaixo do vestido escuro que lhe

descia até aos tornozelos. Usava também uma capa preta e, ou era

demasiado comprida para ela ou os anos que passara na terra úmida tinham-na feito encolher. Arrastava-a pelo solo atrás de si e era este

arrastar pela erva que parecia estar a deixar o rasto prateado.

O vestido apresentava-se manchado e rasgado, o que não causava surpresa, mas algumas das nódoas eram recentes — manchas escuras e

úmidas. Escorria algo para a erva ao lado dela e as gotas vinham do que

ela agarrava com força na mão esquerda. Era um rato. Estava comendo um rato. A comê-lo cru.

Não parecia ter dado ainda por mim. Estava agora muito perto e, se não

acontecesse nada, colidiria comigo. Subitamente, tossi. Não era para a avisar. Tratou-se de uma tosse

nervosa e nada intencional.

Ela olhou então para mim, erguendo para o luar um rosto que era algo saído de um pesadelo, um rosto que não pertencia a uma pessoa viva.

Oh, mas ela estava viva e bem viva. Via-se bem pelos ruídos que fazia

ao comer aquele rato. Contudo, houve algo mais nela que me apavorou a ponto de quase

desfalecer ali. Eram os seus olhos. Pareciam dois carvões em brasa

ardendo dentro das órbitas, dois pontos vermelhos de fogo. E depois falou comigo, a sua voz algo entre um murmúrio e um

resmungo. Pareciam folhas mortas secas a roçagar em conjunto ao

vento de finais do Outono. — Olha, um rapaz — disse ela. — Gosto de rapazes. Venha aqui, rapaz.

Claro que não me mexi. Limitei-me a ficar ali pregado ao chão.

Sentia-me tonto e de cabeça vazia. Ela continuava a avançar para mim e os seus olhos pareciam ir ficando

maiores. Mas não eram apenas os olhos dela: todo o seu corpo dava a

Page 76: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

impressão de estar a inchar. Expandia-se numa imensa nuvem de

negrura que dentro de momentos escureceria os meus olhos para

sempre. Sem pensar, levantei o bordão do Mago. As minhas mãos e os meus

braços é que o fizeram, não eu.

— O que é isso, rapaz, uma varinha de condão? — resmungou. Depois riu-se sozinha e largou o raro morto, erguendo

ambos os braços na minha direção.

Era a mim que ela queria. O meu sangue. Em ab-soluto terror, o meu corpo começou a oscilar de um lado para o outro. Eu fazia lembrar uma

árvore nova agitada pelos primeiros sopros de um vento, o primeiro

vento tempestuoso de um Inverno escuro que nunca iria terminar. Eu

podia ter morrido então, na margem daquele ri-o. Não havia ninguém

para me ajudar e sentia-me incapaz de me ajudar a mim próprio.

Mas eis que aconteceu algo. O bordão do Mago não era uma varinha mágica, e não existe apenas um tipo de magia. Os meus braços

invocaram algo especial, movendo-se mais depressa do que eu

conseguia sequer pensar. Levantaram o bordão e atiraram-no com força, apanhando a bruxa na

têmpora com uma pancada forte.

Ela soltou uma espécie de resmungo e tombou para o lado, no rio. Ouviu-se um grande chapinhar e ela foi submersa mas apareceu muito

perto da margem, cerca de cinco ou seis passos logo abaixo. A princípio

julguei que tivesse sido o seu fim, mas, para meu horror, o braço esquerdo saiu da água e agarrou um tufo de erva. A seguir, o outro

braço estendeu-se para a margem e ela começou a arrastar-se para fora

de água. Sabia que tinha de fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais.

Então, usando toda a minha força de vontade, obriguei-me a dar um

passo na sua direção, enquanto ela ia içando mais o corpo para a margem.

Quando me aproximei o suficiente, fiz algo que continuo a recordar

vivamente. Ainda tenho pesadelos. Mas havia outra alternativa? Era ela ou eu. Só um de nós ia sobreviver.

Atingi a bruxa com a extremidade do bordão. Atingi-a com força e

continuei a bater-lhe até ela finalmente se soltar da margem e ser levada para a escuridão.

Mas ainda não terminara. E se ela conseguisse sair da água mais a

adiante? Podia ainda assim alcançar a casa de Lizzie dos Ossos. Tinha de me certificar de que isso não sucedia. Sabia que era errado matá-la e

que um dia provavelmente ela voltaria mais forte do que nunca, mas

como não dispunha de uma corrente de prata, não a podia prender. O que importava era o presente, não o futuro.

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Por mais difícil que fosse, sabia que tinha de seguir o rio em direção às

árvores.

Muito lentamente, comecei a caminhar ao longo da margem do rio, parando a cada cinco ou seis passos para escutar. Ouvia apenas o vento

a suspirar tenuamente através dos ramos lá em cima. Estava muito

escuro, apenas um esporádico raio de luar conseguia penetrar a abóbada de folhas, cada um como uma comprida lança de prata cravada no solo.

Da terceira vez que parei, aconteceu. Sem qualquer aviso. Não ouvi

nada. Senti simplesmente. Uma mão deslizou até à minha bota e antes que me pudesse afastar, agarrou ferreamente o meu tornozelo

esquerdo.

Senti a força daquele aperto. Era como se o meu tornozelo estivesse a

ser esmagado. Quando olhei para baixo, tudo o que consegui ver foi um

par de olhos a fitar-me da escuridão. Apavorado, bati às cegas na

direção da mão invisível que me agarrava o tornozelo. Tarde demais. O meu tornozelo foi torcido violentamente e caí por terra,

o impacto expulsando todo o ar do meu corpo. E, pior, o bordão voou da

minha mão, deixando-me indefeso. Fiquei ali um momento ou dois, tentando recuperar o fôlego, até me

sentir arrastado para a margem do rio.

Quando ouvi o chapinhar, soube o que estava acontecendo. Mãe Malkin servia-se de mim para sair do rio. As pernas da bruxa debatiam-se na

água e calculei que fosse acontecer uma de duas coisas: ou ela

conseguia sair ou eu iria acabar no rio com ela. Desesperado por fugir, rebolei para a esquerda, destorcendo o tornozelo.

Ela não o largou, de maneira que voltei a rebolar e imobilizei-me com o

rosto comprimido contra a erva úmida. Avistei então o bordão, a sua extremidade mais grossa banhada por um raio de luar. Estava fora do

meu alcance, à distância de três ou quatro passos.

Rebolei na direção dele. Rebolei uma vez e outra, cravando os dedos na terra macia, torcendo o meu corpo como um saca-rolhas. Mãe Malkin

agarrava com força o meu tornozelo, mas era tudo o que ela tinha. A

metade inferior do seu corpo continuava dentro de água, por isso, apesar da sua enorme força, não conseguia me impedir de rebolar nem

de torcê-la na água acompanhando os meus movimentos.

Alcancei finalmente o bordão e apontei-o bruscamente na direção da bruxa. Mas a mão dela deslocou-se para o luar e agarrou a outra

extremidade.

Pensei que acabara então. Julguei que era o meu fim, mas, para surpresa minha, Mãe Malkin gritou subitamente muito alto. Todo o seu

corpo ficou rígido e os olhos se reviraram. Depois soltou um longo e

profundo suspiro e ficou muito silenciosa.

Page 78: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Permanecemos ambos estendidos na margem do rio o que pareceu uma

eternidade. Só o meu peito subia e descia, ao respirar; Mãe Malkin não

se mexia sequer. Quando finalmente o fez, não foi para respirar. Muito lentamente, uma

mão largou o meu tornozelo e a outra soltou o bordão e ela deslizou pela

margem para o rio, entrando na água quase sem ruído. Não sabia o que sucedera, mas ela estava morra — disso tinha certeza.

Vi o corpo dela ser levado da margem pela corrente e rodopiar direito ao

meio do rio. Ainda iluminada pela lua, a cabeça dela mergulhou. Desaparecera. Morrera de vez.

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CAPÍTULO 10

POBRE BILLY

Fiquei tão fraco depois que me ajoelhei, e passados instantes senti-me

indisposto — mais indisposto do que alguma vez estivera. Vomitei sem

parar, mesmo quando já só saía bílis pela minha boca e as minhas entranhas pareciam dilaceradas e reviradas.

Por fim acabou e consegui levantar-me. Mesmo assim, a minha

respiração demorou bastante a regularizar e o meu corpo a parar de

tremer. Só queria voltar para casa do Mago. Já fizera o suficiente para

uma noite, não?

Mas não podia — a criança estava em casa de Lizzie. Era o que os meus instintos me diziam. A criança estava prisioneira de uma bruxa que era

capaz de assassinar.

Portanto, eu não tinha alternativa. Não havia mais ninguém senão eu e se não ajudasse, então quem o faria? Tinha de ir a casa de Lizzie dos

Ossos.

Estava a formar-se uma tempestade a oeste, uma linha escura e irregular de nuvens que encobria as estrelas.

Muito em breve começaria a chover, mas quando desci a colina em

direção à casa, a lua ainda brilhava — uma Lua cheia, maior do que eu alguma vez me lembrava de a ter visto. A minha sombra projetava-se lá

à frente, ao caminhar. Vi-a crescer, e quanto mais me aproximava de

casa, maior ela parecia ficar. Tinha o capuz puxado e levava o bordão do Mago na mão esquerda, pelo que a sombra já não parecia pertencer-me.

Movia-se à minha frente, até que incidiu na casa de Lizzie dos Ossos.

Virei-me então, esperando em parte ver o Mago de pé atrás de mim. Não estava lá. Fora apenas uma ilusão da luz. Continuei a avançar até

transpor o portão aberto e entrar no pátio.

Parei diante da porta da frente para pensar. E se eu chegara tarde demais e a criança já estivesse morta? Ou, então, se o seu

desaparecimento não fora obra de Lizzie e eu me expusera

desnecessariamente ao perigo? A minha mente não parava de pensar, mas, tal como sucedera na margem do rio, o meu corpo sabia o que

tinha a fazer.

Antes que a conseguisse suster, a minha mão esquerda bateu pesadamente três vezes com o bordão na madeira.

Durante alguns momentos reinou o silêncio, seguido do som de passos e

uma súbita nesga de luz debaixo da porta.

Page 80: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Enquanto esta se abria lentamente, recuei um passo. Para meu alívio,

era Alice. Segurava uma lanterna ao nível da cabeça pelo que uma

metade do seu rosto era iluminada enquanto a outra estava no escuro. — O que quer? — perguntou, a sua voz cheia de raiva. — Sabe o que

quero — repliquei. — Vim buscar a criança. A criança que vocês

roubaram. — Não seja ridículo — falou rispidamente. — Vá embora antes que seja

tarde demais. Eles foram encontrar-se com Mãe Malkin. Podem voltar a

qualquer instante. De repente, uma criança começou a chorar, um lamento fraco vindo de

algum lugar dentro da casa. Afastei então Alice e entrei.

Havia apenas uma única vela a tremular no corredor estreito, mas as

divisões propriamente ditas estavam às escuras. A vela era invulgar.

Nunca vira uma feita de cera preta, mas agarrei-a na mesma e deixei

que os ouvidos me guiassem até ao quarto certo. Abri a porta. O quarto não tinha qualquer mobília e a criança estava

deitada no chão, em cima de um monte de palha e bocados de pano.

— Como se chama? — perguntei, esforçando-me ao máximo por sorrir. Encostei o bordão na parede e aproximei-me.

A criança parou de chorar e pôs-se em pé, vacilante, de olhos muito

arregalados. — Não se preocupe. Não precisa de ter medo — disse-lhe, tentando incutir a maior tranqüilidade possível à minha voz. — Vou levá-

lo à sua mãe.

Pousei a vela no chão e peguei na criança. Cheirava tão mal quanto o resto do quarto e estava fria e molhada.

Envolvi-a com o braço direito e embrulhei-a o melhor que pude na minha

capa. Subitamente, a criança falou.

— Sou Tommy — disse. — Sou Tommy.

— Bem, Tommy — disse-lhe —, temos o mesmo nome. Também me chamo Tommy. Agora está seguro.

Vai voltar para casa.

Ditas aquelas palavras, peguei no meu bordão, dirigi-me para o corredor e saí pela porta da frente. Alice estava no pátio, próximo do portão. A

lanterna apagara-se, mas a lua brilhava ainda e, ao encaminhar-me para

ela, projetou a minha sombra na parte lateral do celeiro, uma sombra gigante, dez vezes maior do que eu.

Tentei passar, mas ela barrou-me diretamente o caminho, pelo que fui

obrigado a parar. — Não se intrometa! — advertiu-me, a sua voz muito ríspida, os dentes

reluzindo brancos e afiados ao luar. — Este assunto não te diz respeito.

Não estava disposto a perder tempo com discussões e, quando avancei direito a ela, Alice não tentou impedir-me. Saiu do meu caminho e gritou

atrás de mim: —

Page 81: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

É um tolo. Devolva-o antes que seja tarde demais. Eles irão atrás de

você. Nunca conseguirá escapar.

Não me dei ao trabalho de responder. Nem sequer olhei para trás. Transpus o portão e comecei a subir, afastando-me da casa.

A chuva principiou então a cair com intensidade, diretamente sobre o

meu rosto. Era o tipo de chuva que o meu pai costumava chamar «chuva que molha». Toda a chuva molha, mas alguns tipos parecem deixar-nos

encharcados mais rapidamente do que outros. Esta era mesmo muito

molhada e dirigi-me para casa do Mago o mais rapidamente possível. Não sabia ao certo se estaria seguro mesmo ali. E

se o Mago tivesse realmente morrido? Continuaria o demônio a guardar

a casa e o jardim?

Não tardaram a surgir preocupações mais imediatas. Comecei a perceber

que era seguido. Da primeira vez que o senti, parei e pus-me à escuta,

mas não havia nada senão o uivar do vento e a chuva a fustigar as árvores e a tamborilar na terra. Também não tinha grande visibilidade

porque agora estava muito escuro.

Continuei então, dando passos ainda maiores, esperando estar a seguir na direção certa. Uma vez, me deparei com uma sebe espessa e alta de

espinheiro-alvar e tive de efetuar um longo desvio até encontrar um

portão, sentindo o tempo todo que o perigo lá atrás estava cada vez mais próximo. Só depois de ter alcançado uma pequena mata é que tive

certeza de que alguém estava ali.

Subindo uma colina, parei para respirar perto do seu cume. A chuva abrandara por um momento e olhei para a escuridão lá atrás, na direção

das árvores. Ouvi o estalar e partir de ramos. Alguém se deslocava

muito rapidamente pela mata, direito para mim, não se preocupando com o lugar onde punha os pés.

No topo da colina olhei mais uma vez para trás. O

primeiro relâmpago iluminou o céu e o solo lá em baixo e vi duas figuras saírem das árvores e começarem a subir a vertente. Uma delas era

feminina, a outra tinha a forma de um homem, grande e corpulento.

Quando o trovão voltou a ribombar, Tommy desatou a chorar. — Não gosto de trovões! — lamuriou-se.

— Não gosto de trovões!

— Os trovões não podem lhe fazer mal, Tommy — disse-lhe, sabendo que não era verdade. Também me metiam medo.

Um dos meus tios fora atingido por um raio quando tentava recolher o

gado. Acabara por morrer. Não era seguro andar ao ar livre com um tempo daqueles.

Mas, apesar de os relâmpagos me apavorarem, não deixavam de ter a

sua utilidade. Mostravam-me o caminho, cada clarão intenso iluminando-me o percurso de volta a casa do Mago.

Page 82: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Não tardou que a respiração me saísse entrecortada, um misto de medo

e exaustão, ao mesmo tempo que fazia um esforço para seguir cada vez

mais depressa, esperando apenas que estivéssemos a salvo mal entrássemos no jardim do Mago. Ninguém estava autorizado a pôr os

pés na propriedade do Mago a menos que fosse convidado —

dizia constantemente de mim para mim, porque era a nossa única hipótese. Se conseguíssemos lá chegar primeiro, o demônio proteger-

nos-ia. Avistara as árvores, o banco debaixo delas, o jardim à espera do

outro lado, quando escorreguei na erva molhada. A queda não foi aparatosa, mas Tommy começou a chorar ainda mais alto. Quando

consegui levantá-lo, ouvi alguém correr atrás de mim, os pés batendo

com força na terra. Olhei para trás, respirando a custo. Foi um erro. O

meu perseguidor vinha cerca de cinco ou seis passos à frente de Lizzie e

alcançava-me rapidamente. Um novo relâmpago e vi a metade inferior

do rosto dele. Parecia ter chifres saindo de cada lado da boca e, ao correr, movia a cabeça de um lado para o outro. Recordei o que lera na

biblioteca do Mago a respeito das mulheres mortas que tinham sido

encontradas com as costelas esmagadas. Se Tusk me apanhasse, me faria o mesmo.

Por um momento, fiquei pregado ao chão, mas ele começou a emitir um

bramido, tal como um touro, e isso pôs-me novamente em movimento. Neste momento, quase corria. Se pudesse, teria acelerado, mas

carregava Tommy e estava cansado demais, as minhas pernas pesadas e

lentas, a respiração áspera na garganta. Contava ser agarrado por trás a qualquer momento, mas passei o banco onde o Mago me dera lições e

depois, finalmente, vi-me debaixo das primeiras árvores do jardim.

Mas estaria a salvo? Se assim não fosse, seria o fim de ambos, porque era impossível caminhar mais rapidamente do que Tusk até à casa.

Cessei de correr e tudo o que consegui foi dar alguns passos antes de

parar completamente, tentando recuperar o fôlego. Foi nesse instante que algo roçou pelas minhas pernas. Olhei para baixo,

mas estava escuro demais para ver fosse o que fosse. Primeiro senti a

pressão, a seguir ouvi um ronronar, uma vibração cava que sacudiu o chão por debaixo dos meus pés. Senti-o passar por mim, em direção à

orla das árvores, posicionando-se entre nós e aqueles que nos tinham

seguido. Agora não ouvia nada correr, mas escutei uma outra coisa. Imaginem o miado zangado de um gato macho multiplicado por cem.

Era uma mistura semelhante a um miado vibrante e um grito, enchendo

o ar com o seu desafio admoestador, um som que se poderia ouvir numa extensão de quilômetros. Era o som mais aterrador e ameaçador que

jamais ouvira e percebi então por que motivo os aldeãos nunca se

aproximavam da casa do Mago. Aquele grito anunciava a morte. Atravessem esta linha, dizia, e arrancar-lhes-ei o coração.

Page 83: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Atravessem esta linha, e reduzir-lhes-ei ossos a pasta e sangue

coagulado. Atravessem esta linha e arrepender-se-ão de terem nascido.

Por conseguinte, de momento estávamos a salvo. Entretanto, Lizzie dos Ossos e Tusk correriam colina abaixo. Ninguém

seria tolo a ponto de se meter com o demônio do Mago. Não admirava

que tivessem precisado de mim para dar os bolos de sangue à Mãe Malkin.

Havia sopa quente e um fogo vivo à nossa espera na cozinha. Embrulhei

o pequeno Tommy num cobertor grosso e dei-lhe um pouco de sopa. Mais tarde, trouxe para baixo duas almofadas e preparei-lhe uma cama

perto da lareira. Dormiu que nem uma pedra enquanto eu ouvia o vento

a uivar lá fora e a chuva a bater com força nas janelas.

Foi uma noite longa, mas eu estava quente e confortável e sentia-me em

paz na casa do Mago, que era um dos lugares mais seguros em todo o

mundo. Sabia agora que nada de indesejável conseguiria sequer entrar no jardim, muito menos transpor a soleira da porta. Era mais segura do

que um castelo com ameias altas e um fosso largo. Comecei a ver o

demônio como meu amigo, um amigo mesmo muito poderoso. Pouco antes do meio-dia, levei Tommy até à aldeia. Os homens tinham

já voltado de Long Ridge e, quando me dirigi a casa do açougueiro, mal

ele viu a criança, o seu cenho carregado transformou-se num sorriso rasgado.

Expliquei sumariamente o que acontecera, adiantando apenas os

pormenores necessários. Assim que terminei, ficou novamente carrancudo.

— Eles têm de ser eliminados de vez — disse.

Não me demorei muito. Depois de entregar Tommy à mãe e ela me agradecer pela décima vez consecutiva, tornou-se óbvio o que ia

suceder. Nesta altura, tinham-se reunido mais de trinta aldeãos. Alguns

deles traziam mocas e varapaus e falavam furiosamente em «apedrejar e queimar».

Sabia que tinha de se tomar uma atitude, mas não me queria envolver

diretamente. Apesar de tudo o que se passara, não suportava a idéia de Alice ser queimada, de modo que fui dar um passeio pelas colinas

rochosas durante uma hora ou mais para desanuviar as idéias, antes de

regressar lentamente a casa do Mago. Resolvi sentar-me um pouco no banco e desfrutar do sol da tarde, mas lá já se encontrava alguém.

Era o Mago. Afinal escapara! Até aquele momento, evitara pensar no que

fazer em seguida. Quer dizer, quanto tempo teria permanecido em sua casa antes de decidir que ele não ia voltar? Agora estava tudo resolvido,

porque ele se encontrava ali, a olhar através das árvores para o lugar

onde uma nuvem de fumaça castanha se elevava. Estavam a queimar a casa de Lizzie dos Ossos.

Page 84: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Quando me aproximei do banco, reparei numa enorme equimose roxa

por cima do seu olho esquerdo. Ele viu-me olhar para ela e esboçou-me

um sorriso cansado. — Fazemos muitos inimigos, nesta atividade —

disse ele —, e por vezes são precisos olhos na nuca.

Mesmo assim, as coisas não correram muito mal, porque agora temos menos um inimigo com que nos preocupar nas imediações de Pendle.

Sente-se. — indicou o lugar a seu lado no banco. — O que andou

tramando? Conte-me o que tem acontecido aqui. Comece pelo princípio e vá até ao fim, sem omitir nada.

Assim fiz. Contei-lhe tudo. Quando terminei, ele levantou-se e mirou-me

do alto, os seus olhos verdes fitando os meus com imensa dureza.

— Quem me dera ter sabido que Lizzie estava de volta. Quando coloquei

Mãe Malkin no poço, Lizzie partiu um bocado à pressa e não julguei que

ela alguma vez tivesse o descaramento de voltar a aparecer. Devia ter-me contado o encontro com a garota. Teria poupado incômodos a toda a

gente.

Baixei o olhar, incapaz de corresponder ao dele. — Qual foi a pior coisa que aconteceu? — perguntou-me. Voltou a

lembrança, com toda a nitidez, da bruxa velha a agarrar-me a bota e a

tentar sair da água. Recordei o grito dela quando se agarrou à extremidade do bordão do

Mago.

Quando lhe mencionei o sucedido, ele soltou um suspiro longo e profundo.

— Tem certeza de que ela morreu? — indagou.

Encolhi os ombros. — Ela não respirava. Depois o seu corpo foi levado para o meio do rio e

arrastado.

— Bem, é certo que foi uma péssima experiência — comentou —, e a sua lembrança ficará contigo para o resto da sua

vida, mas irás aguentar. Teve muita sorte em levar consigo o mais

pequeno dos meus bordões. É de sorveira-brava, a madeira mais eficaz de todas quando lidamos com bruxas. Em circunstâncias normais, não

teria afetado uma bruxa tão velha e tão forte. Mas ela encontrava-se

dentro de água corrente. Por isso teve sorte, mas saiu-se bem para um novo aprendiz. Mostrou coragem, verdadeira coragem, e salvou a vida

de uma criança. Mas cometeu dois erros gravíssimos.

Baixei a cabeça. Estava convencido de que, provavelmente, cometera mais de dois, mas não ia contestar.

— O seu erro de maior gravidade foi matar aquela bruxa — afirmou o

Mago. — Ela devia ter sido trazida de volta para cá. Mãe Malkin é tão forte que até se conseguiria libertar dos seus ossos. É muito raro, mas

pode suceder. O espírito dela há de conseguir voltar a nascer neste

Page 85: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

mundo, juntamente com todas as suas lembranças. Depois, virá à sua

procura, rapaz, e há de querer vingança.

— Isso pode levar anos, não pode? — inquiri. — Um bebê recém-nascido não tem muito poder. Primeiro ela tem de

crescer.

— Essa é a pior parte — disse o Mago. — Pode acontecer mais cedo do que julga. O espírito dela apodera-se do corpo de alguém e usa-o como

se fosse o seu.

Chama-se «possessão» e é péssimo para todos os intervenientes. Depois disso, nunca saberá quando, nem de que direção virá o perigo.

— Ela pode possuir o corpo de uma mulher jovem, uma mulher com um

sorriso estonteante, que conquistará o seu coração antes de te tirar a

vida. Ou pode servir-se da beleza dela para subjugar um homem forte à

sua vontade, um cavaleiro ou um juiz, que te atirará para uma

masmorra, onde ficará à mercê dela. E, mais uma vez, o tempo estará do seu lado. Ela pode atacar quando eu não estiver aqui para ajudar —

talvez daqui a muitos anos, quando houver perdido a juventude, quando

a sua visão falhar e as suas articulações começarem a estalar. «Mas existe outro tipo de possessão, aquele que é mais provável neste

caso. Muito mais provável. Sabe, rapaz, é problemático manter uma

bruxa viva num poço como aquele. Em especial uma bruxa tão poderosa que passou a sua longa vida a praticar a magia do sangue. Terá andado

a comer vermes e outras coisas viscosas, com a umidade a ensopar-lhe

constantemente a carne. Por conseguinte, da mesma maneira que uma árvore pode ficar petrificada aos poucos e transformar-se em rocha, o

corpo dela terá começado a mudar lentamente. Ao agarrar o bordão de

sorveira-brava, o coração dela pode ter parado, lançando-a para lá da barreira, na morte, e o fato de ter sido levada pelo rio talvez acelerasse

o processo.

«Neste caso, ela ainda estará presa aos ossos, tal como a maior parte das outras bruxas malévolas, mas, em virtude da sua enorme força,

conseguirá mover o seu corpo morto. Sabe, rapaz, ela estará o que nós

chamamos «latente». É um termo antigo do Condado, o qual lhe será, sem dúvida,

familiar. Assim como uma cabeleira postiça pode estar cheia de piolhos

que não se vêem, o corpo morto dela hospeda o seu espírito malévolo. Este se agitará como uma tigela de larvas e rastejará, deslizará ou se

arrastará em direção à vítima escolhida. E, em vez de ser duro como

uma árvore petrificada, o corpo morto dela estará mole e maleável, capaz de se enfiar no espaço mais ínfimo. Capaz de se infiltrar pelo nariz

ou pelos ouvidos de alguém e possuir o seu corpo.

«Só existem duas maneiras de termos a certeza de que uma bruxa tão poderosa como Mãe Malkin não conseguia voltar. A primeira é queimá-la.

Mas ninguém deveria ter de sofrer semelhante dor. A outra maneira é

Page 86: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

por demais horrível para se pensar sequer nela. Trata-se de um método

de que poucos ouviram falar porque foi praticado há muito tempo, numa

terra distante, do outro lado do mar. De acordo com os seus livros antigos, se comer o coração de uma bruxa, ela nunca mais consegue

voltar. E

tem de o comer cru. «Se usássemos qualquer dos métodos, não seríamos melhores do que a

bruxa que matamos — disse o Mago.

— São ambos bárbaros. A única alternativa que resta é o poço. É igualmente cruel, mas fazemo-lo para proteger os inocentes, aqueles

que seriam as suas futuras vítimas.

Bem, rapaz, de uma maneira ou de outra, ela agora está livre. Vem aí

apuros na certa, mas pouco poderemos fazer neste momento para os

evitar. Teremos apenas de estar muito atentos.

— Não se preocupe comigo — disse-lhe. — Hei de desvencilhar-me. — Bem, era melhor começar a aprender a ter mão num demônio — disse

o Mago, abanando pesarosamente a cabeça. — Esse foi o seu outro

grande erro. Um domingo de folga por semana? Foi excessivamente generoso!

De qualquer forma, o que deveríamos fazer em relação àquilo? —

inquiriu, indicando a fina nuvem de fumaça que era ainda visível a sudeste.

Encolhi os ombros. — Acho que entretanto já terá acabado tudo —

respondi. — Havia muitos aldeãos irados e eles estavam a falar em apedrejamento.

— Tudo acabado? Não acredite nisso, rapaz. Uma bruxa como Lizzie

possui um faro mais apurado do que qualquer cão de caça. Ela consegue cheirar as coisas antes de elas acontecerem e há muito que terá partido,

antes de alguém conseguir se aproximar. Não, ela terá fugido

novamente para Pendle, onde vive a maior parte do grupo. Devíamos ir atrás dela, mas estou caminhando há cinco dias e estou

cansado demais e dolorido e necessito de recuperar forças. Mas não

podemos deixar Lizzie livre por tempo demais, senão ela voltará a fazer das suas. Tenho de ir procurá-la antes do final da semana e você vem

comigo. Não vai ser fácil e, agora, já podia ir se acostumando à idéia.

Mas primeiro o mais importante, por isso, siga-me. . Enquanto o seguia, reparei que apresentava um ligeiro mancar e

caminhava mais lentamente do que de costume. Portanto, o quer que

acontecera em Pendle não deixara de ter custos para ele. Levou-me até a casa, subimos as escadas e entramos na biblioteca, parando ao lado

das prateleiras mais distantes, as que ficavam perto da janela.

— Gosto de guardar os meus livros na biblioteca — disse —, e gosto que a minha biblioteca vá crescendo em vez de

diminuir. Mas, em virtude do que aconteceu, vou abrir uma exceção.

Page 87: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Estendeu a mão e tirou um livro da prateleira mais acima e entregou-

me. — Precisa mais disto do que eu —

disse. — Muito mais. Como livro, não era muito grande. Era até mais pequeno do que o meu

livro de notas. Tal como a maioria dos livros do Mago, estava

encadernado a couro e tinha o título impresso tanto na capa como na lombada. Dizia: Possessão: os Malditos, os Desequilibrados e os

Desesperados.

— O que significa o título? — inquiri. — O que diz, rapaz. Exatamente o que diz. Lê o livro e descobrirá.

Quando abri o livro, fiquei decepcionado. Lá dentro, cada palavra de

cada página estava impressa em latim, uma língua que eu não conseguia

ler. — Estude-o bem e traga-o sempre com você — frisou o Mago. — É

uma obra decisiva.

Deve ter-me visto fazer uma careta porque sorriu e apontou para o livro com o dedo. — Decisivo significa que até ao momento é o melhor livro

que alguma vez foi escrito sobre a possessão, mas trata-se de um tema

muito difícil e foi escrito por um homem jovem que ainda tinha muito que aprender. Por isso, não é a última palavra sobre o assunto e há mais

para desvendar. Vai ao fim do livro.

Fiz o que ele me mandava e verifiquei que as últimas dez ou mais páginas estavam em branco.

— Se descobrir algo novo, então anote-o aí. Cada pedacinho ajuda. E

não se preocupe com o fato de estar em latim. Vou começar a ensiná-lo assim que tivermos comido.

Fomos tomar a refeição da tarde, que fora preparada quase na

perfeição. Mal engoli a última bocada, algo se moveu debaixo da mesa e começou a roçar-se nas minhas pernas. Subitamente, ouviu-se o som de

ronronar. Foi ficando gradualmente mais alto até todos os pratos e

travessas no aparador começarem a tilintar. — Não admira que esteja satisfeito — comentou o Mago, abanando a

cabeça. — Um dia de folga por ano teria sido a conta ideal! Mas não

fique preocupado, vai correr tudo bem e a vida continua. Traga o seu livro de notas, rapaz, temos muito que estudar hoje.

Segui então o Mago pelo caminho até ao banco, desarrolhei o frasco de

tinta, mergulhei a caneta e preparei-me para tirar notas. — Assim que passam no teste em Horshaw —

disse o Mago, começando a mancar para trás e para frente defronte o

banco —, normalmente tento iniciar os meus aprendizes no ofício o mais suavemente possível. Mas dado que já estive frente a frente com uma

bruxa, sabe o quão difícil e perigosa pode ser a tarefa, além disso, acho

que está preparado para descobrir o que aconteceu ao meu último aprendiz. Tem a ver com demônios, o tema que temos estado a estudar,

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por conseguinte, podia também aprender com ele. Procure uma página

em branco e escreva o seguinte como cabeçalho. .

Fiz o que ele me mandava. Escrevi: «Como Prender um Demônio.» Depois, enquanto o Mago contava a história, tomei notas, esforçando-

me, como sempre, por acompanhá-lo.

Tal como já sabia, era necessário muito trabalho árduo, que o Mago chamou «preparativos», para prender um demônio. Primeiro, tinha de se

abrir um poço o mais perto possível das raízes de uma árvore grande e

adulta. Depois de todas as escavações que o Mago me obrigara a fazer, fiquei

surpreendido ao saber que raramente um Mago abria pessoalmente o

poço. Quem se encarregava disso eram um aparelhador e o seu

ajudante.

A seguir, eram precisos os serviços de um pedreiro para cortar uma laje

de pedra que encaixasse no poço como uma pedra tumular. Era muito importante que a pedra fosse cortada rigorosamente, para vedar bem.

Depois de revestidos a parte inferior da pedra e o interior do poço com a

mistura de ferro, sal e cola forte, era chegado o momento de enfiar o demônio seguramente lá dentro.

Isso não era demasiado difícil. Sangue, leite ou uma mistura de ambos

resultava sempre. A parte realmente difícil era deixar cair a pedra corretamente enquanto ele se alimentava. O êxito dependia da qualidade

da ajuda contratada.

Era conveniente ter um pedreiro a postos e dois aparelhadores usando correntes controladas por um cavalete de madeira colocado por cima do

poço, de modo a descer a pedra com rapidez e segurança. Fora esse o

erro cometido por Billy Bradley. Estava-se no final do Inverno, fazia um tempo péssimo e Bily estava com pressa de voltar para a sua cama

quente. Então, resolveu economizar.

Contratou mão-de-obra local que nunca efetuara esse tipo de trabalho. O pedreiro fora cear, prometendo regressar daí a uma hora, mas Bily

estava impaciente e não conseguiu esperar. Meteu o demônio no poço

sem grandes problemas mas teve dificuldades com a pedra. Estava uma noite chuvosa e ela escorregou, prendendo-lhe a mão

esquerda debaixo da extremidade.

A corrente encravou, pelo que não foi possível levantar a pedra, e enquanto os operários estavam a braços com ela, e um deles foi a correr

chamar o pedreiro, o demônio, furioso por se ver preso debaixo da

pedra, começou a atacar os dedos de Bily. Sabem, era um dos demônios mais perigosos. Chamam-lhes «Estripadores» e normalmente

alimentam-se de gado, mas este gostava de sangue humano.

Quando conseguiram levantar a pedra, decorrera quase meia hora, e nessa altura já era tarde demais. O demônio comera os dedos de Bily

até à base dos dedos e estivera entretido a sugar-lhe o sangue do corpo.

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Os seus gritos de dor tinham-se reduzido a uma lamúria e quando lhe

libertaram a mão só restava o polegar. Morreu pouco depois, do choque

e da perda de sangue. — Foi um caso triste — disse o Mago —, e agora ele está sepultado

debaixo da sebe, mesmo do lado de fora do cemitério de Layton —

aqueles que seguem o nosso ofício não conseguem fazer repousar os ossos em solo sagrado. Aconteceu há mais de um ano, e se Bily tivesse

vivido, eu não estaria agora a conversar com você porque ele ainda seria

meu aprendiz. Pobre Bily, era um excelente rapaz e não merecia tal sorte, mas é um trabalho perigoso e se não for bem feito. .

O Mago olhou para mim com tristeza, depois encolheu os ombros.

— Aprenda com isto, rapaz. Precisamos de coragem e paciência, mas,

acima de tudo, nunca podemos ter pressa. Usamos o cérebro, pensamos

com cuidado, depois fazemos o que tem de ser feito. Por via de regra,

nunca mando um aprendiz sair sozinho antes de terminado o primeiro ano de preparação. A menos, claro — acrescentou com um tênue sorriso

—, que ele resolva agir por sua própria iniciativa. Mais uma vez, preciso

de ter certeza de que ele está preparado. Bom, vamos ao que interessa —

disse ele. — Está na hora da sua primeira lição de latim.

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CAPÍTULO 11

O POÇO

Aconteceu apenas três dias depois...

O Mago mandara-me à aldeia buscar os gêneros alimentícios para a

semana. A tarde ia já bastante avançada e, no momento em que saí da casa dele levando o saco vazio, as sombras principiavam a alongar-se.

Quando me aproximei dos degraus, vi alguém de pé mesmo na orla das

árvores, próximo do alto do caminho estreito. Quando percebi que era

Alice, o meu coração começou a bater mais depressa. O que fazia ali?

Porque não fora para Pendle? E se ela ainda ali estava, onde parava

Lizzie? Abrandei, mas tinha de passar por ela para chegar à aldeia. Podia ter

voltado para trás e efetuado um percurso mais longo, mas não lhe

queria dar a satisfação de pensar que estava com medo. Não obstante, depois de subir os degraus, permaneci do lado esquerdo do caminho,

mantendo-me junto da sebe alta de espinheiro-alvar, mesmo à beira da

vala funda que seguia ao longo dela. Alice estava de pé no escuro, apenas com as pontas dos seus sapatos

bicudos a saírem para a luz do sol.

Fez-me sinal para que me aproximasse mais, mas mantive a distância, ficando a uns bons três passos dela. Depois de tudo o que acontecera,

não confiava nela nem um bocadinho, mas, ainda assim, estava

satisfeito por não ter sido queimada ou apedrejada. — Vim despedir-me — anunciou Alice —, e avisá-lo para nunca se

aproximar de Pendle. É para lá que vamos. Lizzie tem família a viver ali.

— Ainda bem que escapou — comentei, parando e virando-me diretamente para ela. — Vi a fumaça quando incendiaram a sua casa.

— Lizzie sabia que eles vinham — disse Alice —, por isso fugimos com

bastante antecedência. No entanto, ela não o pressentiu, não é? Todavia, sabe o que fez à Mãe Malkin, mas só descobriu depois de ter

acontecido. Não deu sequer por você e isso a preocupa. E disse que a

sua sombra tinha um cheiro esquisito. Não pude deixar de soltar uma sonora gargalhada.

Quer dizer, era absurdo. Como podia uma sombra ter cheiro?

— Não tem piada — acusou Alice. — Não é para rir. Ela só cheirou a sua sombra no lugar onde incidiu no celeiro. Na realidade, eu a vi e estava

completamente errada. A lua mostrou a verdade em você.

De repente, ela aproximou-se mais dois passos, na direção da luz do sol e cheirou-me. — Tem um cheiro esquisito — disse ela, franzindo o nariz.

Recuou rapidamente e, de repente, pareceu amedrontada.

Page 91: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Sorri e pus a minha voz simpática. — Ouça — disse-lhe —, não vá para

Pendle. Só tem a ganhar mantendo-se à distância deles. Olhe que são

péssima companhia. — As péssimas companhias não me afetam. Não vão me mudar, não é?

Já sou má companhia. Má por dentro. Nem se passam pela cabeça as

coisas que tenho sido e feito. Desculpe — disse —, voltei a ser má. Não sou suficientemente forte para dizer não.

Então, tarde demais, compreendi a verdadeira razão do medo no rosto

de Alice. Não estava com medo de mim. Era do que se encontrava atrás de mim.

Não vira nem ouvira nada. Quando isso sucedeu, já era tarde demais.

Sem aviso, o saco vazio foi arrancado da minha mão e enfiado pela

minha cabeça e os meus ombros e ficou tudo escuro. Mãos fortes

agarraram-me, prendendo-me os braços ao lado do corpo. Debati-me

durante alguns instantes, mas em vão: fui levantado e levado com a mesma facilidade com que um criado de lavoura carrega uma saca de

batatas. Enquanto era transportado, ouvi vozes — a voz de Alice e

depois a voz de uma mulher; supus que se tratasse de Lizzie dos Ossos. A pessoa que me levava limitou-se a grunhir, por isso só podia ser Tusk.

Alice atraíra-me para uma armadilha. Fora tudo cuidadosamente

planejado. Deviam ter estado escondidos na vala, quando desci a colina vindo da casa.

Estava apavorado, mais apavorado do que alguma vez estivera na minha

vida. Quer dizer, eu matara a Mãe Malkin e ela era avó de Lizzie. Por conseguinte, o que iriam me fazer agora?

* * *

Passada uma hora ou mais, atiraram-me para o chão com tanta força que todo o ar foi expelido dos meus pulmões.

Assim que consegui voltar a respirar, fiz um esforço para me libertar do

saco, mas alguém me bateu duas vezes nas costas — e bateu com tanta força que me mantive muito quieto. Teria feito qualquer coisa para evitar

voltar a ser agredido daquela maneira, pelo que fiquei ali, mal ousando

respirar, enquanto a dor diminuía lentamente para uma pontada constante.

Ataram-me com uma corda, passando-a pela boca do saco, à volta dos

meus braços e da cabeça e dando-lhe um nó apertado. Depois Lizzie disse algo que me enregelou até aos ossos.

— Pronto, agora ele já não foge. Pode começar a cavar.

O rosto dela estava muito perto do meu de modo que pude cheirar o seu mau hálito através do tecido grosseiro. Era como o bafo de um cão ou de

um gato. —

Bem, rapaz — disse ela. — Qual a sensação de saber que nunca mais voltará a ver a luz do dia?

Page 92: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Quando ouvi o som distante de alguém a cavar, comecei a tremer de

medo. Lembrei-me da história do Mago sobre a mulher do mineiro,

especialmente a pior parte de todas, em que ela ficara ali paralisada, incapaz de gritar, enquanto o marido cavava a sua sepultura. Agora

estava a me acontecer o mesmo. Ia ser enterrado vivo e teria feito tudo

para voltar a ver a luz do dia, nem que fosse por um momento. A princípio, quando cortaram as cordas e me retiraram o saco, fiquei

aliviado. Nesta altura, o Sol pusera-se, mas olhei para cima e consegui

ver as estrelas, com a Lua em quarto minguante sobre as árvores. Senti o vento no rosto e nunca me senti tão bem. Porém, o meu alívio não

durou mais de uns momentos, porque comecei a perguntar-me o que

teriam ao certo em mente. Não me ocorria nada pior do que ser

enterrado vivo, mas provavelmente a Lizzie dos Ossos sim.

Para ser sincero, quando vi Tusk de perto pela primeira vez, não me

pareceu tão mau quanto esperara. De certa forma, afigurara-se pior na noite em que me perseguira. Não era tão velho quanto o Mago, mas o

seu rosto estava enrugado e queimado do sol e uma massa de cabelo

grisalho gorduroso cobria-lhe a cabeça. Os dentes eram grandes demais para lhe caberem na boca, o que significava que nunca a conseguiria

fechar bem, e dois deles curvavam para cima como presas amarelas, de

cada lado do nariz. Também era grande e muito peludo, com fortes braços musculados. Sentira aquele aperto e achara-o bastante mau, mas

sabia que ele possuía naqueles ombros força suficiente para me apertar

tão firmemente que todo o ar seria expulso do meu corpo e as minhas costelas se partiriam.

Tusk tinha uma faca grande e curva no cinto, com uma lâmina que

parecia muito afiada. Mas o pior nele eram os olhos. Estavam completamente apagados. Era como se não houvesse nada vivo dentro

da cabeça dele; era apenas algo que obedecia a Lizzie dos Ossos, sem

um único pensamento. Sabia que ele faria tudo o que ela mandasse sem questionar, por mais terrível que fosse.

Quanto a Lizzie dos Ossos, não era nada escanzelada e eu sabia, pelo

que lera na biblioteca do Mago, que provavelmente lhe chamavam assim porque usava a magia dos ossos. Cheirara já o hálito dela mas, à

primeira vista, ninguém a tomaria por uma bruxa. Não era como Mãe

Malkin, toda mirrada da idade, assemelhando-se a algo que já estava morto. Não, Lizzie dos Ossos era apenas uma versão mais velha de

Alice. Provavelmente não teria mais de trinta e cinco anos, com belos

olhos castanhos e cabelo tão negro como o da sobrinha. Usava um xale verde e um vestido preto, com um cinto de couro estreito a cingir a sua

cintura esbelta. Havia sem dúvida uma semelhança familiar — à exceção

da boca. Não era tanto a sua forma, mas a maneira como a movia; a maneira como se contorcia e fazia esgares quando ela falava. Uma outra

coisa em que reparei foi que nunca olhava diretamente para mim.

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Alice não era assim. Tinha uma boca bonita, ainda moldada para sorrir,

mas percebi então de que acabaria por ficar igual à de Lizzie dos Ossos.

Alice enganara-me. Era por sua causa que eu estava ali, em vez de são e salvo na casa do Mago, a cear.

A um sinal de Lizzie dos Ossos, Tusk agarrou-me e amarrou-me as mãos

atrás das costas. Depois segurou-me pelo braço e arrastou-me por entre as árvores. Primeiro vi o monte de solo escuro, depois o poço fundo ao

lado e captei o fedor de terra úmida e barrenta acabada de revolver.

Cheirava simultaneamente a morte e vida, com coisas trazidas à superfície que realmente deviam estar enterradas bem fundo.

Provavelmente, o poço teria mais de dois metros de profundidade, mas,

ao contrário daquele em que o Mago conservara a Mãe Malkin,

apresentava uma forma irregular, apenas um grande buraco com

paredes íngremes. Recordo-me de pensar que, com toda a minha

prática, teria feito bem melhor. Naquele momento, a lua mostrou-me algo mais —

algo que preferia não ter visto. A cerca de três passos dali, do lado

esquerdo do poço, estava um losango de solo recém-revolvido. Parecia exatamente uma nova sepultura.

Nem tive tempo de começar a me preocupar com aquilo, fui logo

arrastado para a beira do poço e Tusk puxou-me com força a cabeça para trás. Vislumbrei o rosto de Lizzie dos Ossos perto do meu,

enfiaram-me algo duro na boca e deitaram-me um líquido frio de travo

amargo pela goela abaixo. Sabia mal e encheu-me a garganta e a boca até à borda, vindo por fora e irrompendo-me até pelo nariz, de modo

que comecei a sufocar, arfando e esforçando-me por respirar. Tentei

cuspi-lo fora mas Lizzie dos Ossos apertou-me as narinas com força entre o indicador e o polegar, pelo que, para respirar tinha primeiro de

engolir.

Feito aquilo, Tusk largou-me a cabeça e transferiu a pressão para o meu braço esquerdo. Vi então o que fora enfiado à força na minha boca —

Lizzie dos Ossos segurou-o para eu ver. Era um pequeno frasco de vidro

escuro. Um frasco com um gargalo estreito e comprido. Virou-o de modo a ficar com a boca a apontar para o solo e caíram algumas gotas na

terra. O resto estava já no meu estômago.

O que é que eu bebera? Ter-me-ia ela envenenado? — Isto vai te manter os olhos bem abertos, rapaz

— disse com um sorriso escarninho. — Não queríamos que adormecesse,

não é? Não queríamos que perdesse nada. Sem qualquer aviso, Tusk atirou-me violentamente para o poço e o meu

estômago contraiu-se quando caí no espaço. Aterrei pesadamente, mas

o fundo era macio e, apesar de a queda me tirar o fôlego, fiquei ileso. Virei-me então para olhar para as estrelas, pensando que, afinal, talvez

me fossem enterrar vivo. Mas, em vez de uma pazada de terra a cair na

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minha direção, vi o contorno da cabeça e dos ombros de Lizzie dos Ossos

a espreitar para baixo, uma silhueta recortada no fundo de estrelas.

Começou a entoar uma estranha espécie de murmúrio gutural, muito embora não conseguisse compreender as palavras proferidas.

A seguir, esticou os braços por cima do poço e vi que segurava algo em

cada mão. Soltando um grito estranho, abriu as mãos e duas coisas brancas desceram na minha direção, aterrando na lama perto dos meus

joelhos.

Com o luar, vi nitidamente o que eram. Quase pareciam brilhar. Deitara dois ossos para o poço. Eram ossos de polegar — conseguia ver as

articulações.

— Goze a sua última noite nesta terra, rapaz —

gritou-me lá de cima. — Mas não se preocupe que não vai ficar sozinho,

deixá-lo-ei em boa companhia. O Finado Bily virá reclamar os seus

ossos. Está mesmo ao lado, por isso não precisa de se deslocar muito. Irá ter contigo não tarda e vocês os dois têm muito em comum. Foi o

último aprendiz do Velho Gregory e não verá com bons olhos que lhe

tenha ocupado o lugar. Depois, mesmo antes da aurora, lhe faremos uma última visita. Viremos recolher os seus ossos. São especiais, os

seus ossos, ainda melhores do que os de Bily e, assim acabados de

apanhar, serão sem dúvida os melhores que consigo desde há muito tempo.

O rosto dela recuou e ouvi passos a afastarem-se.

Portanto, já sabia a sorte que me esperava. Se Lizzie queria os meus ossos, isso significava que ia me matar.

Lembrei-me da enorme faca de lâmina curva que Tusk trazia à cintura e

comecei a tremer. Antes disso, porém, teria de enfrentar o Finado Bil y. Quando ela dissera

«mesmo ao lado», devia estar a referir-se a uma nova sepultura ao lado

do poço. Mas o Mago dissera que Bily estava enterrado mesmo do lado de fora do cemitério de Layton. Lizzie devia ter desenterrado o corpo

dele, cortado os polegares e enterrado o resto do corpo aqui no meio das

árvores. Agora, ele vinha reaver os polegares. Iria Bily Bradley querer fazer-me mal? Eu nunca lhe fizera nada, mas

provavelmente ele gostara de ser o aprendiz do Mago. Talvez estivesse

ansioso por concluir o período de aprendizado e tornar-se um Mago. Agora eu viera ocupar o que em tempos lhe coubera. Não apenas isso —

e então o feitiço de Lizzie dos Ossos? Ele podia julgar que fora eu quem

lhe cortara os polegares e os atirara para o poço. . Consegui ajoelhar-me e passei os minutos seguintes a tentar

desesperadamente desamarrar as mãos. Os meus esforços pareciam

fazer com que a corda me apertasse ainda mais. Também me sentia esquisito: com a cabeça oca e a boca seca. Quando

olhei para as estrelas, pareceram-me muito brilhantes e cada estrela

Page 95: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

tinha uma gêmea. Se me concentrasse seriamente, podia fazer com que

as estrelas duplas voltassem a ser uma só, mas, assim que relaxei, elas

separaram-se. Ardia-me a garganta e o meu coração batia três ou quatro vezes mais depressa do que o seu ritmo normal.

Continuava a pensar no que Lizzie dos Ossos dissera. O Finado Bily viria

reclamar os seus ossos. Ossos esses que estavam na lama a menos de dois passos do lugar onde me encontrava ajoelhado. Se tivesse as mãos

livres, atirá-los-ia para fora do poço.

De repente, notei um ligeiro movimento à minha esquerda. Se estivesse de pé, seria mesmo ao nível da minha cabeça. Olhei para cima e vi uma

cabeça comprida e gorda de verme a sair da parede lateral do poço. Era

maior, muito maior do que qualquer outro verme que já tivesse visto. A

sua cabeça cega e inchada movia-se num círculo lento enquanto fazia

sair o resto do corpo. O que seria? Era venenoso? Podia morder? E

depois veio direto para mim. Era um verme de caixão! Devia ser algo que estivera a viver no caixão de Bil y Bradley, engordando e ficando

nítido. Algo branco que nunca vira a luz do dia!

Estremeci quando o verme do caixão saiu da terra escura e caiu na lama aos meus pés. Perdi-o então de vista quando se enfiou rapidamente

debaixo da superfície.

Sendo tão grande, o verme branco desalojara um bocado de solo da parede do poço, deixando atrás de si um buraco semelhante a um túnel

estreito. Observei-o, horrorizado, porque algo mais se movia lá dentro.

Algo revolvia a terra, que caía em cascata do buraco para formar um monte de solo cada vez maior.

O fato de não saber o que era só agravava a situação. Tinha de ver o

que estava lá dentro, de modo que tentei pôr-me em pé. Cambaleei, sentindo novamente vertigens, as estrelas começando a andar à roda.

Quase caí, mas consegui dar um passo, avançando e ficando perto do

túnel estreito, agora mais ou menos ao nível da minha cabeça. Quando olhei lá para dentro, desejei não o ter feito.

Vi ossos. Ossos humanos. Ossos que estavam articulados. Ossos que se

moviam. Duas mãos sem polegares. Uma delas sem dedos. Ossos a deslocar-se na lama, arrastando-se pela

terra macia na minha direção. Uma caveira sorridente de boca aberta.

Era o Finado Bily, mas em vez de olhos, as suas órbitas pretas fitavam-me, cavernosas e vazias. Quando apareceu ao luar uma mão branca sem

carne e avançou diretamente no meu rosto, recuei, quase caindo,

soluçando de medo. Naquele momento, precisamente quando julgava que ia enlouquecer de

terror, o ar tornou-se subitamente muito mais frio e senti algo à minha

direita. Havia mais alguém comigo no poço. Alguém que estava de pé onde tal era impossível. Via-se metade do seu corpo, o resto estava

enfiado na parede de terra.

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Era um rapaz pouco mais velho do que eu. Apenas lhe via o lado

esquerdo porque o resto dele estava em algum lugar atrás, ainda no

solo. Com a mesma facilidade com que se entra por uma porta, ele virou o ombro direito na minha direção e o resto dele apareceu no poço.

Sorriu-me. Um sorriso caloroso, amigável.

— A diferença entre estar acordado e a sonhar — disse ele. — É uma das lições mais difíceis de aprender.

Aprende-a agora, Tom. Aprende-a antes que seja tarde demais...

Pela primeira vez, reparei nas botas dele. Pareciam muito caras e tinham sido feitas com couro da melhor qualidade. Eram iguais às do Mago.

Ergueu então as mãos, que ficaram de cada lado da sua cabeça, as

palmas viradas para fora. Faltavam os polegares em cada mão. A

esquerda também não tinha dedos.

Era o fantasma de Bily Bradley.

Cruzou as mãos sobre o peito e sorriu mais uma vez. Enquanto Bily sumia, pareceu-me feliz e em paz.

Compreendi exatamente o que ele me dissera. Não, eu não estava a

dormir mas, de certa forma, estivera a sonhar. Estivera a sonhar os sonhos negros que tinham saído do frasco que Lizzie me enfiara à força

na boca.

Quando me virei para olhar para o buraco, este desaparecera. Nunca houvera um esqueleto a avançar na minha direção. Tão pouco existira

um verme de caixão. A poção devia ter sido alguma espécie de veneno:

algo que tornava difícil distinguir entre estar acordado e a sonhar. Fora isso que Lizzie me dera. Obrigara o meu co-ração a bater apressado e

impossibilitara-me de dormir.

Mantivera os meus olhos bem abertos, mas também me fizera ver coisas que realmente não existiam.

Pouco depois, as estrelas desapareceram e começou a chover

intensamente. Foi uma noite longa, desconfortável e fria, e pensei constantemente no que me aconteceria antes da aurora. Quanto mais se

aproximava, pior eu me sentia.

Cerca de uma hora antes de o Sol nascer, a chuva passou a uns chuviscos antes de cessar por completo.

Consegui voltar a ver as estrelas e agora já não me pareciam duplicadas.

Estava encharcado e com frio mas parará de me arder a garganta. Quando apareceu um rosto lá em cima a espreitar para o poço, o meu

coração disparou porque julguei que era Lizzie que vinha buscar os meus

ossos. Mas, para meu alívio, era Alice. — Lizzie mandou ver como estava — falou baixinho lá para o fundo. —

Bily já esteve aqui?

— Já esteve e já se foi — respondi-lhe, furioso. — Eu não queria que isto acontecesse, Tom. Se não tivesse se

intrometido, estaria tudo bem.

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— Tudo bem? — repeti. — A esta hora haveria outra criança morta e o

Mago também, se tivesse levado aquilo a diante. E aqueles bolos tinham

lá dentro o sangue de um bebê. Acha que isso é estar tudo bem? Descende de uma família de assassinos e você própria é uma assassina!

— Não é verdade. Isso não é verdade! — protestou Alice. — Não havia

nenhum bebê. Tudo o que fiz foi dar-te os bolos. — Mesmo que assim fosse — insisti —, sabia qual ia ser o seu efeito. E

não devia ter deixado que isso acontecesse.

— Não sou assim tão forte, Tom. Como podia impedi-lo? Como podia impedir Lizzie?

— Eu escolhi o que quero fazer — disse-lhe. —

Mas o que você irá escolher, Alice? Magia dos ossos ou magia do

sangue? Qual delas? Qual irá ser?

— Não vai ser nenhuma delas. Não quero ser igual a elas. Vou fugir.

Assim que tiver oportunidade, fugirei. — Se fala a sério, então, ajude-me agora. Ajude-me a sair do poço.

Podíamos fugir juntos.

— Agora é perigoso demais — respondeu Alice. — Talvez daqui a umas semanas, quando eles não estiverem à espera.

— Quer dizer, depois de eu estar morto. Quando tiver mais sangue nas

suas mãos... Alice não respondeu. Ouvi-a começar a chorar baixinho, mas quando

julguei que estivesse prestes a mudar de opinião e fosse ajudar-me,

afastou-se. Fiquei ali sentado no poço, temendo o que me ia acontecer, lembrando-

me dos enforcados e sabendo agora exatamente o que deviam ter

sentido antes de morrerem. Sabia que nunca mais iria a casa. Nunca mais voltaria a ver a minha

família. Acabara de perder por completo a esperança, quando se

aproximaram passos do poço. Levantei-me, assustado, mas era de novo Alice.

— Oh, Tom, lamento muito — disse. — Eles estão a afiar as facas...

Aproximava-se o pior momento de todos e sabia que só tinha uma oportunidade. A minha única esperança era Alice. — Se lamenta

realmente, então vai ajudar-me —

disse-lhe baixinho. — Não há nada que eu possa fazer! — exclamou.

— Lizzie irá se virar contra mim. Ela não confia em mim.

Acha que sou branda. — Vai buscar Mr. Gregory — pedi-lhe. — Traga-o aqui.

— É tarde demais para isso, não acha? — Alice soluçou, abanando a

cabeça. — Os ossos apanhados à luz do dia não têm utilidade para Lizzie. Nenhuma utilidade mesmo. A melhor altura para apanhar ossos é

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precisamente antes de o Sol nascer. Por isso eles virão buscá-lo daqui a

alguns minutos. É todo o tempo que tem.

— Então arranje-me uma faca — pedi. — Não serve — retorquiu ela. — Eles são fortes demais. Não conseguirá

vencê-los!

— Não — respondi. — Quero-a para cortar a corda. Vou tentar fugir. De repente, Alice desapareceu. Fora buscar uma faca ou estava com

medo demais de Lizzie? Aguardei alguns instantes, mas como ela não

voltasse, fiquei desesperado. Debati-me, tentando separar os pulsos, tentando partir a corda, mas era escusado.

Quando um rosto me olhou lá do alto, o meu co-ração sobressaltou-se

com o medo, mas era Alice segurando algo por cima do poço. Largou-o

e, quando caiu, o metal brilhou ao luar.

Alice não me desiludira. Era uma faca. Se ao menos eu conseguisse

cortar a corda, ficaria solto. . A princípio, mesmo com as mãos atadas atrás das costas, nunca tivera

qualquer dúvida na minha mente de que o conseguiria fazer. O único

perigo era poder cortar-me, mas o que importava isso comparado com o que eles me iam fazer antes de o Sol nascer? Não demorei muito tempo

a agarrar a faca. Foi mais difícil posicioná-la contra a corda e muito

árduo deslocá-la. Quando a deixei cair pela segunda vez, entrei em pânico. Não faltaria nem um minuto para eles me virem buscar.

— Terá de fazê-lo por mim — disse lá de baixo a Alice. — Vamos, salte

para o poço. Não pensei que ela realmente o fizesse, mas para minha surpresa, o fez.

Não saltou, desceu; primeiro os pés, virada para a parede do poço e

ficando suspensa da borda pelos braços. Quando o seu corpo estava todo esticado, desceu num pulo o meio metro que faltaria.

Não demorou muito a cortar a corda. As minhas mãos ficaram livres e só

nos faltava sair do poço. — Deixe-me subir para os seus ombros — pedi-lhe. — Depois iço-te.

Alice não contestou e, à segunda tentativa, consegui equilibrar-me nos

ombros dela e arrastar-me para a erva molhada. Depois veio a parte realmente difícil — tirar Alice do poço.

Estendi a mão esquerda. Ela agarrou-a com força e colocou a sua mão

direita no meu pulso, para conseguir mais apoio. Depois tentei puxá-la. O meu primeiro problema foi a erva molhada e escorregadia e tive

dificuldade em não ser arrastado pela borda. Percebi então que não tinha

força para fazê-lo. Cometera um erro enorme. Uma porque ela era uma garota, e isso não a

tornava necessariamente mais fraca do que eu. Tarde demais me

lembrei da maneira como ela puxara a corda para tocar o sino do Mago. Fizera-o quase sem esforço. Devia tê-la deixado subir para os meus

ombros. Devia tê-la deixado sair primeiro do poço. Alice teria conseguido

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me puxar sem problemas. Foi então que ouvi o som de vozes. Lizzie dos

Ossos e Tusk avançavam por entre as árvores na nossa direção.

Vi por baixo de mim os pés de Alice rasparem na parede do poço, tentando agarrar-se. O desespero deu-me força suplementar. Com um

puxão súbito, ela transpôs a extremidade e caiu a meu lado.

Fugimos mesmo a tempo, correndo desalmadamente, o som de outros pés a perseguir-nos. A princípio estavam um pouco distantes, mas muito

gradualmente começaram a aproximar-se cada vez mais.

Não sei durante quanto tempo corremos. Pareceu uma eternidade. Corri até as minhas pernas pesarem como chumbo e a respiração me queimar

a garganta. Seguíamos no sentido de Chipenden — sabia-o pelos

esporádicos vislumbres das colinas rochosas através das árvores.

Corríamos em direção à aurora. O céu estava agora ficando cinzento e

clareava mais a cada minuto. Então, precisamente quando me senti

incapaz de dar mais um passo, as pontas das colinas rochosas brilharam com uma cor-de-laranja pálida. Era a luz do Sol e recordo-me de pensar

que mesmo que fôssemos apanhados então, pelo menos era de dia e,

assim, os meus ossos não teriam utilidade para Lizzie. Quando saímos das árvores para a vertente coberta de erva e

começamos a subi-la, as minhas pernas principiaram finalmente a falhar.

Pareciam de borracha e Alice começava a afastar-se de mim. Virou-se para me olhar, o seu rosto aterrorizado. Ouvia-os ainda a abrir caminho

por entre as árvores atrás de nós.

Então, imobilizei-me completa e subitamente. Parei porque não havia necessidade de correr mais.

É que, lá adiante no alto da vertente, estava uma figura alta vestida de

preto e trazendo um longo bordão. Era o Mago, sem a menor dúvida, mas de certa forma parecia diferente.

O capuz assentava-lhe nos ombros e o cabelo, iluminado pelos raios do

Sol nascente, parecia fluir-lhe da cabeça como línguas de fogo cor-de-laranja.

Tusk soltou uma espécie de rugido e correu vertente acima direito a ele,

brandindo a faca, com Lizzie dos Ossos mesmo atrás de si. Não estavam preocupados conosco, de momento. Sabiam quem era o seu principal

inimigo. Nós ficaríamos para depois.

Entretanto, Alice parará também, de modo que dei dois passos trêmulos para ficar ao lado dela. Ambos vimos Tusk efetuar o seu derradeiro

ataque, levantando a lâmina curva e gritando furiosamente enquanto

corria. O Mago estivera de pé, imóvel como uma estátua, mas depois, em

resposta, deu duas passadas vertente abaixo na direção dele e ergueu

alto o bordão. Apontando-o como uma lança, arremessou-o com força à cabeça de Tusk. Mesmo antes de atingi-lo na testa, ouviu-se uma

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espécie de estalido e apareceu uma chama cor-de-laranja na ponta.

Seguiu-se uma pancada forte ao acertar no alvo.

A faca curva voou no ar e o corpo de Tusk caiu como uma saca de batatas. Estava morto antes mesmo de atingir o solo.

A seguir, o Mago atirou o bordão para o lado e levou a mão dentro da

capa. Quando a sua mão esquerda reapareceu, agarrava algo que ele fez estalar no ar como um chicote. O sol incidiu-lhe e soube que era uma

corrente de prata.

Lizzie dos Ossos virou-se e tentou fugir, mas era tarde demais: da segunda vez que ele fez estalar a corrente, seguiu-se quase de imediato

um som metálico muito estridente. A corrente começou a descer numa

espiral de fogo para se enrolar com força à volta de Lizzie dos Ossos. Ela

soltou um grito enorme de angústia, depois caiu por terra.

Dirigi-me com Alice ao alto da vertente. Ali, vimos que a corrente de

prata estava firmemente enrolada em volta da bruxa, da cabeça aos pés. Apertava mesmo com força a sua boca aberta, pressionando-lhe os

dentes. Os olhos dela rolavam e todo o seu corpo se contorcia com

esforço, mas não conseguia gritar. Olhei para Tusk. Encontrava-se deitado de costas com os olhos

arregalados. Estava morto e bem morto e havia uma ferida vermelha no

meio da sua testa. Olhei então para o bordão, admirado com a chama que vira na sua ponta.

O meu mestre parecia doente, fatigado e subitamente muito

envelhecido. Abanava constantemente a cabeça como se estivesse farto da própria vida. Na sombra da vertente, o seu cabelo retomara o tom

grisalho habitual e percebi a razão por que parecera fluir-lhe da cabeça:

estava encharcado em suor e ele alisara-o com a mão de modo que espetava e lhe saía por detrás das orelhas. Repetiu o gesto enquanto eu

observava. Escorriam-lhe gotas de suor da testa e a sua respiração

estava muito acelerada. Percebi que estivera correndo.

— Como foi que nos encontrou? — perguntei.

Demorou um bocado a responder, mas, por fim, a sua respiração começou a abrandar e conseguiu falar. —

Há sinais, rapaz. Rastos que se podem seguir, se souber como. Mas isso

é outra coisa que vai ter de aprender. Virou-se e olhou para Alice. — Aqueles dois estão arrumados, mas o que

vamos fazer em relação a você? —

inquiriu, olhando-a intensamente. — Ela me ajudou a fugir — intervim.

— Verdade? — perguntou o Mago. — E o que mais fez ela? Fitou-me

então com dureza e procurei agüentar o olhar dele.

Page 101: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Quando o baixei para as minhas botas, ele soltou um estalido com a

língua. Não podia mentir e sabia que ele adivinhara que ela tivera

alguma participação no que me acontecera. Olhou de novo para Alice. — Abra a boca, menina

— ordenou com aspereza, a sua voz cheia de raiva. —

Quero ver os seus dentes. Alice obedeceu e o Mago estendeu a mão, agarrando-a pelo queixo.

Aproximou o rosto da boca dela aberta e cheirou ruidosamente.

Quando se virou para mim, o seu estado de espírito parecia amenizado e soltou um suspiro profundo.

— O hálito dela é bastante agradável — comentou.

— Cheirou o hálito da outra? — perguntou, soltando o queixo de Alice e

apontando para Lizzie dos Ossos.

Anuí.

— É provocado pela sua dieta — disse. — E lhe diz logo o que andou a fazer. Aqueles que praticam a magia dos ossos ou do sangue têm um

bafo de sangue e carne crua. Mas a menina parece bem.

Depois voltou a aproximar o rosto de Alice. — Olhe-me nos olhos, menina — ordenou-lhe. — Aguente o meu olhar o

máximo que puder.

Alice obedeceu mas não conseguiu olhá-lo por muito tempo, apesar de a sua boca se contorcer com o esforço. Baixou o olhar e começou a chorar

baixinho.

O Mago olhou para os sapatos bicudos dela e abanou a cabeça pesarosamente. — Não sei — disse, tornando a virar-se para mim. —

Olha que não sei qual a melhor atitude a tomar. Não é apenas ela.

Temos de pensar nos outros. Inocentes que podem vir a sofrer no futuro. Ela viu demais e sabe demais para o seu próprio bem. Tanto

pode dar para um lado como para o outro, e não sei se será seguro

deixá-la partir. Se ela for para leste e se juntar ao grupo em Pendle, então estará perdida para sempre e irá apenas aumentar as forças

tenebrosas.

— Não tem outro lugar para onde possa ir? — perguntei delicadamente a Alice. — Nenhuns outros parentes?

— Existe uma aldeia perto da costa. Chama-se Staumin. Tenho outra tia

que vive lá. Talvez ela me aceite.. — E se for como os outros? — inquiriu o Mago, olhando de novo

fixamente para Alice.

— À vista não parece — respondeu ela. — Mesmo assim, fica muito longe e nunca lá estive. Podia levar três dias ou mais a chegar lá.

— Eu podia mandar o rapaz acompanhar-te —

sugeriu o Mago, a sua voz subitamente muito mais simpática. — Ele estudou bem os meus mapas, por isso calculo que consiga achar com o

caminho. Quando ele voltar já saberá dobrá-los como deve ser. Seja

Page 102: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

como for, está decidido. Vou dar-te uma oportunidade, menina. Está na

sua mão aproveitá-la. Se não o fizer, então, um dia voltaremos a nos

encontrar, e pode crer que da próxima vez não terá tanta sorte. Depois o Mago tirou o pano habitual do bolso. Lá dentro estava um naco

de queijo para a viagem.

— É para não passarem fome — disse —, mas não o comam todo de uma vez.

Tinha esperança de que fôssemos encontrar algo melhor para comer

pelo caminho, mas não deixei de murmurar os meus agradecimentos. — Não vá diretamente para Staumin — disse o Mago olhando-me

duramente sem pestanejar. — Quero que volte primeiro a sua casa. Leve

esta menina com você e deixe que a sua minha mãe converse com ela.

Pressinto que talvez ela a possa ajudar. Conto que regresse daqui a duas

semanas.

Aquelas palavras fizeram-me sorrir. Depois de tudo o que acontecera, uma oportunidade de ir a casa por uns tempos era a concretização de

um sonho. Mas houve algo que me deixou intrigado, porque me lembrei

da carta que a minha mãe mandara ao Mago. Ele não parecera ter ficado muito satisfeito com algumas das coisas que ela dissera. Nesse caso,

porque pensaria que a minha mãe podia ajudar Alice? Não disse nada,

pois não queria correr o risco de fazer o Mago mudar de idéia. Estava satisfeito por me ir afastar dali.

Antes de partirmos, falei-lhe de Billy. Anuiu, pesarosamente, mas disse

que não me preocupasse porque faria o que era necessário. Quando partimos, olhei para trás e vi o Mago pôr Lizzie dos Ossos ao

ombro esquerdo e afastar-se em grandes passadas na direção de

Chipenden. Quem o visse de trás, tê-lo-ia tomado por um homem com menos trinta anos.

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CAPÍTULO 12

OS DESESPERADOS E OS DESEQUILIBRADOS

Ao descermos a colina em direção à fazenda, os chuviscos quentes

batiam-nos no rosto. Em algum lugar ao longe um cão ladrou duas

vezes, mas abaixo de nós estava tudo silencioso e imóvel. A tarde ia avançada e sabia que o meu pai e Jack estariam nos campos,

o que me permitiria conversar a sós com a minha mãe. Fora fácil para o

Mago dizer-me que levasse Alice, mas a viagem dera-me tempo para

pensar e não sabia como a minha mãe iria encarar a situação. Não me

parecia que lhe agradasse ter alguém como Alice em casa,

especialmente depois de eu lhe contar o que ela fizera. E quanto a Jack, conseguia imaginar qual seria a sua reação. Pelo que Ellie me relatara da

última vez a respeito da atitude dele em relação à minha nova ocupação,

ter em casa a sobrinha de uma bruxa era a última coisa que ele haveria de querer.

Quando atravessamos o pátio apontei para o celeiro. — É melhor se

abrigar ali debaixo — disse. — Vou entrar e explicar. Mal proferi estas palavras, veio da direção da casa da fazenda o choro

sonoro de um bebê com fome. Os olhos de Alice cruzaram-se

fugazmente com os meus, depois baixou-os e recordei a última vez que tínhamos estado juntos e uma criança chorara.

Sem uma palavra, Alice virou-se e encaminhou-se para o celeiro em

silêncio, tal como eu esperara. Seria de pensar que, depois de tudo o que acontecera, houvéssemos conversado muito durante a viagem, mas,

na realidade, mal havíamos trocado uma palavra. Calculo que tivesse

ficado afetada pela forma como o Mago lhe agarrara o queixo e cheirara o hálito. Talvez a tivesse feito pensar em todos os seus atos no passado.

O que quer que fosse, a maior parte da viagem ela parecera absorta em

pensamentos e muito triste. Acho que deveria ter me esforçado mais, mas estava esgotado demais e

cansado, por isso caminhamos em silêncio até que se tornou um hábito.

Foi um erro. Devia ter-me esforçado então por ficar conhecendo melhor Alice — quantos problemas não teria evitado mais tarde!

Quando abri com força a porta de trás, o choro cessou e ouvi outro som:

o estalido reconfortante da cadeira de balanço da minha mãe. A cadeira estava junto à janela, mas as cortinas não se encontravam

corridas na totalidade e percebi pela cara dela que estivera a espreitar

pela fresta entre elas. Vira-nos chegar ao pátio e, quando entrei na divisão, começou a balançar a cadeira cada vez mais depressa, fitando-

me o tempo todo sem pestanejar, uma metade do seu rosto no escuro, a

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outra iluminada pela vela enorme que tremulava no castiçal grande, de

latão, no centro da mesa.

— Quando traz contigo uma pessoa, é sinal de boa educação convidá-la a entrar em casa — disse ela, a sua voz um misto de contrariedade e

surpresa. — Julguei que lhe tivesse ensinado melhores modos.

— Mr. Gregory mandou-me trazê-la aqui — respondi. — O nome dela é Alice, mas tem andado em más companhias. Ele quer que a mãe tenha

uma conversa com ela, mas achei por bem contar-lhe primeiro o que

aconteceu, para o caso de não a querer convidar a entrar. Puxei então de uma cadeira e contei à minha mãe exatamente o que

sucedera. Quando terminei, ela soltou um longo suspiro, depois um

tênue sorriso suavizou as suas feições. — Fez bem, filho — disse-me. —

É jovem e novo no ofício, por isso os seus erros podem ser perdoados.

Vá lá buscar a pobre menina, depois deixe-nos a sós para conversarmos.

Se quiser pode ir lá em cima cumprimentar a sua nova sobrinha. Ellie irá certamente gostar de te ver.

Fui então buscar Alice, deixei-a com a minha mãe e subi as escadas.

Ellie estava no quarto maior. Pertencera aos meus pais, mas tinham-no cedido a ela e a Jack porque havia espaço para mais duas camas e um

berço, o que seria útil à medida que a família deles fosse crescendo.

Bati de mansinho à porta, que estava meio aberta, mas só entrei no quarto depois de El ie o permitir. Estava sentada na beira da cama

grande de casal a amamentar a bebê, a sua cabeça meio escondida pelo

xale cor-de-rosa. Mal me viu, a boca alargou-se num sorriso que me fez sentir bem-vindo,

mas parecia cansada e tinha o cabelo escorrido e oleoso. Apesar de eu

ter desviado rapidamente o olhar, Ellie era perspicaz e percebi que me vira fitá-la e entendera a expressão no meu rosto, porque afastou

rapidamente o cabelo dos olhos.

— Oh, desculpa, Tom — disse. — Devo estar medonha. . estive de pé a noite toda. Devo ter dormido apenas uma hora. Temos de aproveitar as

oportunidades com uma bebê tão esfomeada como esta. Ela chora

muito, especialmente de noite. — Quanto tempo tem? — perguntei.

— Fará seis dias esta noite. Nasceu no sábado passado, pouco depois da

meia-noite. Fora na altura em que eu matara a Mãe Malkin.

Durante um momento, a lembrança voltou rapidamente e um arrepio

percorreu-me a espinha. — Olha, ela já acabou de mamar — disse Ellie com um sorriso. —

Gostaria de lhe pegar?

Era a última coisa que eu queria fazer. A bebê era tão pequena e delicada que tive medo de apertá-la com força demais e não gostava da

maneira como a cabeça dela pendia tanto. Não tive coragem de recusar,

Page 105: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

porque Ellie ficaria com certeza ofendida. Mas não segurei na bebê muito

tempo dado que, mal chegou aos meus braços, o seu rostinho ficou

vermelho e ela começou a chorar. — Acho que esta coisa não gosta de mim — disse a Ellie.

— É ela e não esta coisa — admoestou-me Ellie, pondo uma expressão

austera e ultrajada. — Não se preocupe, o problema não é você, Tom — explicou, a sua boca suavizando-se num sorriso. — Acho que ela ainda

está com fome, é tudo.

A bebê parou de chorar mal Ellie lhe pegou e depois daquilo não fiquei muito mais tempo. Então, quando ia a descer, chegou-me da cozinha um

som inesperado.

Eram gargalhadas, o riso sonoro e caloroso de duas pessoas que se dão

muito bem. No momento em que abri a porta e entrei, o rosto de Alice

ficou muito sério, mas a minha mãe continuou a rir alto durante mais

alguns instantes e, mesmo quando parou, o seu rosto continuou iluminado por um amplo sorriso. Tinham partilhado uma piada, uma

piada muito engraçada, mas não quis perguntar o que era e elas não me

disseram. A expressão nos olhos de ambas deu-me a sensação de se tratar de algo privado.

Uma vez, o meu pai disse-me que as mulheres sabem coisas que os

homens ignoram. Que às vezes têm uma certa expressão no olhar, mas, quando a vemos, nunca devemos perguntar-lhes no que estavam a

pensar.

Se o fizermos, podemos acabar por ouvir algo que não queremos. Bem, o fato de estarem a rir aproximara-as, sem dúvida, mais; a partir

daquele momento parecia que já se conheciam há anos. O Mago tivera

razão. Se alguém era capaz de lidar com Alice, só podia ser a minha mãe. No entanto, reparei em algo. A minha mãe dera a Alice o quarto

em frente do dela e do meu pai. Eram os dois quartos no alto do

primeiro lance de escadas. A minha mãe tinha o ouvido muito apurado e isso queria dizer que se Alice se virasse durante o sono, ela ouviria.

Por conseguinte, apesar daquelas gargalhadas, a minha mãe não

deixaria de ficar atenta a Alice. Quando voltou dos campos, Jack deitou-me um olhar muito carrancudo e

murmurou algo entre dentes.

Parecia furioso com alguma coisa. Mas o meu pai ficou satisfeito por me ver e, para minha surpresa, apertou-me a mão. Fazia-o sempre que

cumprimentava os meus outros irmãos que tinham saído de casa, mas

esta era a primeira vez, para mim. Senti-me triste e orgulhoso ao mesmo tempo. Estava a tratar-me como se eu fosse um homem que

seguia o seu próprio caminho na vida.

Jack não estava em casa nem há cinco minutos quando veio à minha procura.

Page 106: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Lá para fora — disse, mantendo a voz baixa pa-ra que mais ninguém

pudesse ouvir. — Quero falar com você.

Saímos para o pátio e ele seguiu à frente, contornando o celeiro até perto do chiqueiro, de onde não seríamos vistos da casa.

— Quem é a menina que trouxe com você?

— O nome dela é Alice. É apenas alguém que precisa de ajuda — respondi. — O Mago pediu-me que a trouxesse até aqui para a minha

mãe poder conversar com ela. — O que vem a ser isso de ela precisar de

ajuda? — Tem andado com más companhias, é tudo.

— Que tipo de más companhias?

Sabia que não lhe iria agradar, mas não tinha outra alternativa. Fui

obrigado a contar-lhe. Caso contrário, ele iria perguntar à mãe.

— A tia dela era uma bruxa, mas não se preocupe, o Mago tratou de

tudo e só vamos ficar alguns dias. Jack explodiu. Nunca o vira tão furioso.

— Onde está o bom senso com que nasceu? —

gritou. — Não pensa? Não pensou na bebê? Há uma criança inocente a viver nesta casa e traz para cá alguém de uma família dessas! É

inacreditável!

Levantou o punho e pensei que me fosse bater. Mas, ao invés, deu um murro na parede do celeiro, a pancada súbita

semeando a agitação entre os porcos.

— A mãe acha que não há problema — protestei. — Sim, seria de esperá-lo da mãe — redarguiu Jack, a sua voz

subitamente mais baixa, mas ainda cheia de raiva. — Como poderia ela

recusar algo ao seu filho preferido? E ela tem um coração generoso demais, como você muito bem sabe. Por isso, não devia se aproveitar.

Olhe, terá de se ver comigo se acontecer alguma coisa. Não gosto do ar

daquela menina. Parece-me manhosa. Vou estar muito atento a ela e se pisar nem que seja uma só vez o risco, vão ambos daqui para fora em

menos de um segundo. E terão de valer o que comem. Ela pode ajudar

nas tarefas domésticas para facilitar a vida da mãe e você colaborar no trabalho da fazenda.

Jack virou-se e começou a afastar-se, mas ainda tinha algo mais a dizer.

— Estando tão ocupado com coisas mais importantes — acrescentou, cheio de sarcasmo —, é capaz de não ter reparado que o pai anda com

um ar muito cansado. Ele tem cada vez mais dificuldade em trabalhar. —

Claro que ajudarei — gritei-lhe —, e Alice também. À ceia, para além da minha mãe, estiveram todos muito calados. Acho que era a presença de

uma estranha à nossa mesa. Apesar de a educação de Jack obstar a que

falasse sem rodeios, olhou para Alice de uma forma quase tão carrancuda como para mim. Por isso, felizmente a minha mãe esteve

bem-disposta e esforçou-se por animar todos à mesa.

Page 107: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Ellie teve de interromper duas vezes a ceia para atender à bebê, que não

parou de chorar a ponto de deitar a casa abaixo. Da segunda vez trouxe-

a para baixo. — Nunca conheci um bebê que chorasse tanto —

comentou a minha mãe com um sorriso. — Pelo menos tem pulmões

fortes e saudáveis. O seu rosto minúsculo estava outra vez todo vermelho e franzido. Nunca

o teria dito a Ellie, mas não era um bebê muito bonito. O seu rosto fazia-

me lembrar o de uma velha rezingona. Tão depressa chorava a ponto de rebentar, como depois, de um momento para o outro, se calava e ficava

sossegada. Tinha os olhos muito arregalados e olhava fixamente na

direção do centro da mesa, onde Alice estava sentada perto do enorme

castiçal de latão.

A princípio, não soube o que pensar daquilo. Julguei que a bebê de Ellie

estivesse apenas fascinada pela chama da vela. Mas depois, Alice ajudou a minha mãe a levantar a mesa e, de cada vez que Alice passava

próximo, a bebê seguia-a com os seus olhos azuis e, de repente, apesar

de a cozinha estar aquecida, senti um arrepio. Mais tarde, fui até o meu antigo quarto e, quando me sentei na cadeira

de vime junto à janela e contemplei a paisagem, foi como se nunca

tivesse saído de casa. Quando olhei para norte, na direção da Colina do Carrasco, pensei no

interesse que a bebê parecera demonstrar por Alice. Quando me lembrei

do que Ellie dissera antes, voltei a sentir um arrepio. A bebê dela nascera depois da meia-noite, mesmo na altura da Lua cheia. Era

demasiado próximo para ser coincidência. Mãe Malkin teria sido levada

pelo rio mais ou menos no momento em que a bebê de Ellie nascera. O Mago avisara-me de que ela haveria de voltar. E se ela tivesse voltado

ainda mais cedo do que ele previra? Contara que ela ficasse latente. E se

estivesse enganado? E se ela se libertara dos ossos e o seu espírito possuíra a bebê de Ellie no preciso momento do seu nascimento?

Não preguei os olhos naquela noite. Só havia uma pessoa a quem podia

expor os meus receios e essa pessoa era a minha mãe. A dificuldade estava em apanhá-la sozinha sem despertar a atenção para o fato de o

estar fazendo. A minha mãe cozinhava e efetuava outras tarefas que a

mantinham ocupada a maior parte do dia e normalmente não teria sido problemático falar com ela na cozinha porque eu estava a trabalhar ali

perto. Jack encarregara-me de reparar a fachada do celeiro e devo ter

cravado centenas de novos pregos reluzentes antes do pôr do Sol. Porém, a dificuldade era Alice. A minha mãe conservava-a na sua

companhia o dia inteiro, obrigando realmente a menina a trabalhar

arduamente. Podia ver-se o suor na testa dela e as rugas que a sulcavam constantemente, mas, apesar disso, nem uma só vez Alice se

queixou.

Page 108: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Só depois da ceia, quando acabou o barulho do lavar e limpar da louça, é

que tive finalmente a minha oportunidade. Naquela manhã, o meu pai

fora ao mercado da Primavera, em Topley. Para além de efetuar os seus negócios, dava-lhe a rara oportunidade de encontrar alguns dos seus

velhos amigos, pelo que estaria ausente dois ou três dias. Jack tinha

razão. Ele parecia cansado e sempre lhe proporcionava um descanso da fazenda.

A minha mãe mandara Alice ir repousar no quarto, Jack estava na sala

da frente e Ellie encontrava-se lá em cima a tentar fechar os olhos durante meia hora antes da bebê acordar de novo para mamar. Por isso,

não perdendo qualquer tempo, comecei a contar à mãe o que me

preocupava. Ela estivera balançando a cadeira, mas mal conseguira

proferir a primeira frase quando a cadeira parou. Escutou com muita

atenção enquanto lhe expunha os meus receios e razões para desconfiar

da bebê. Mas o rosto dela permaneceu tão impassível e calmo que não fazia idéia o que lhe ia na mente. Assim que despejei a última palavra,

ela pôs-se em pé.

— Espere aí — disse-me. — Precisamos resolver isto de uma vez por todas.

Saiu da cozinha e foi lá acima. Quando voltou, trazia a bebê, embrulhada

no xale de Ellie. — Vai buscar a vela — disse, avançando para a porta. Fomos até ao pátio, a minha mãe caminhando depressa, como se

soubesse exatamente onde ia e o que tencionava fazer. Acabamos por

nos deter do outro lado da pilha de estrume, ficando em cima da lama à beira do nosso lago, que era suficientemente fundo e grande para

abastecer de água as nossas vacas, mesmo durante os meses mais

secos de Verão. — Mantenha a vela bem alto para podermos ver tudo — disse a minha

mãe. — Não quero que haja dúvidas. Então, para meu horror, ela

estendeu os braços e segurou a bebê sobre a água escura e parada. — Se ela flutuar, a bruxa está dentro dela — afirmou a minha mãe.

— Se se afundar, está inocente. Bem, vamos ver. .

— Não! — gritei, a minha boca abrindo-se sozinha e as palavras brotando mais depressa do que o meu pensamento. — Não faça isso, por

favor. É a bebê de Ellie.

Por um momento, pensei que ela fosse deixar cair a bebê mesmo assim, depois sorriu, estreitou-a novamente e beijou-lhe muito delicadamente a

testa. — Claro que é a bebê de Ellie, filho. Não vê isso só de olhar para

ela? De qualquer forma, a «flutuação» é um teste feito pelos tolos e nem sequer resulta. Normalmente, amarram as mãos aos pés da pobre

mulher e atiram-na para águas profundas e tranqüilas. Mas se ela se

afunda ou flutua, é uma questão de sorte e depende do seu tipo de corpo. Não tem nada a ver com bruxaria.

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— E então a maneira como a bebe olhava constantemente para Alice? —

perguntei.

A minha mãe sorriu e abanou a cabeça. — Os olhos de um recém-nascido não conseguem focar convenientemente — explicou. —

Provavelmente era apenas a luz da vela que lhe despertava a atenção.

Não se esqueça — Alice estava sentada perto dela. Depois, de cada vez que Alice se

deslocava, os olhos da bebê eram atraídos pela mudança na luz. Não se

preocupe. — E se a bebê de Ellie estiver possuída de alguma maneira? — indaguei.

— E se houver algo dentro dela que nós não conseguimos ver?

— Olha, filho, tenho trazido tanto bem como mal a este mundo e

conheço o mal só de olhar para ele. Esta criança é boa e não existe nada

de preocupante dentro dela. Nada de nada.

— No entanto, não é estranho que a bebê de Ellie tenha nascido mais ou menos na mesma altura em que Mãe Malkin morreu?

— Nem por isso — respondeu a minha mãe. — E

mesmo assim. Por vezes, quando algo mau deixa o mundo, algo bom entra no seu lugar. Já vi acontecer isso antes.

Claro, percebi então de que a minha mãe nunca pensara sequer em

largar a bebê e que estivera apenas a tentar incutir algum juízo em mim, mas quando regressamos atravessando o pátio, os meus joelhos ainda

tremiam só de pensar naquilo. Foi então, quando chegamos à porta da

cozinha, que me lembrei de algo. — Mr. Gregory deu-me um pequeno livro com tudo sobre a possessão — disse eu. — Mandou-me lê-lo com

muita atenção, mas o problema é que está escrito em latim e até agora

só tive três lições. — Não é a minha língua preferida — comentou a minha mãe, parando

junto à porta. — Verei o que posso fazer, mas terá de ficar para quando

eu voltar, conto ser chamada esta noite. Entretanto, porque não pede a Alice?

Talvez ela possa ajudar.

A minha mãe acertara quando dissera que a iam chamar. Veio uma carroça buscá-la pouco depois da meia-noite, os cavalos todos suados.

Parecia que a mulher do agricultor estava passando um bocado

realmente mau e já se encontrava em trabalho de parto há mais de um dia e uma noite. Era também muito longe, quase trinta e dois

quilômetros para sul. Isso queria dizer que a minha mãe estaria ausente

dois ou mais dias. Na verdade, eu não queria pedir a Alice que me ajudasse no latim.

Sabem, tinha a certeza de que o Mago não iria concordar. Afinal, era um

livro da biblioteca dele e não lhe agradaria sequer a idéia de Alice lhe tocar. Mas, que outra alternativa tinha? Desde que viera para casa,

pensava cada vez mais em Mãe Malkin e não conseguia tirá-la da mente.

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Era apenas um instinto, uma impressão, mas achava que ela estava em

algum lugar no escuro e se aproximava mais a cada noite que passava.

Então, na noite seguinte, depois de Jack e Ellie terem ido para a cama, bati suavemente à porta do quarto de Alice. Não era algo que lhe fosse

pedir durante o dia, porque ela estava sempre atarefada, e se Ellie ou

Jack escutassem, não iriam gostar. Especialmente com a aversão de Jack ao ofício de Mago.

Tive de bater duas vezes antes de Alice abrir a porta. Estava com receio

de que ela pudesse encontrar-se já a dormir, mas ainda não se despira e não consegui evitar que os meus olhos descessem até aos seus sapatos

bicudos. Havia uma vela colocada no toucador, perto do espelho.

Acabara de ser apagada — ainda fumegava.

— Posso entrar? — perguntei, levantando a minha própria vela para que

lhe iluminasse o rosto de cima. —

Queria pedir-te uma coisa. Alice fez-me sinal para que entrasse e fechou a porta — Preciso ler um

livro, mas está escrito em latim.

A minha mãe disse que me podia ajudar. — Onde está? — perguntou Alice.

— No meu bolso. É um livro pequeno. Para uma pessoa que sabe latim,

não deverá levar muito tempo a lê-lo. Alice soltou um suspiro profundo e cansado. — Já tenho muito que fazer — queixou-se. — Do que trata?

— Possessão. Mr. Gregory acha que Mãe Malkin pode voltar para me

apanhar e que se servirá da possessão. — Mostre-me — pediu, estendendo a mão. Coloquei a minha vela ao lado da dela, depois enfiei

a mão nas calças e retirei o pequeno livro. Ela folheou-o sem dizer uma

palavra. — Consegue lê-lo? — inquiri.

— Não vejo porque não. Lizzie ensinou-me e ela sabe latim de trás para

a frente. — Sempre vai me ajudar? Ela não respondeu. Aproximou antes o livro

bastante do rosto e cheirou-o ruidosamente. — Tem certeza de que é

bom? — indagou. — Foi escrito por um padre e normalmente eles não sabem lá muito.

— Mr. Gregory chamou-lhe «obra decisiva» —

disse eu —, o que significa que é o melhor livro alguma vez escrito sobre o assunto.

Ela levantou então os olhos do livro e, para surpresa minha, vi que

transbordavam de raiva. — Sei o que significa decisiva — respondeu. — Acaso acha que sou estúpida? Olha que estudei durante anos, ao passo

que você só agora começou. Lizzie tinha muitos livros, mas agora estão

todos queimados. Pegaram fogo. Balbuciei que lamentava e ela sorriu-me.

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— O problema é que — disse ela, a sua voz suavizando-se de repente —

vai levar tempo a lê-lo e, neste momento, estou cansada demais.

Amanhã a sua minha mãe ainda estará fora e eu não terei mãos a medir com o trabalho. A sua cunhada prometeu ajudar, mas ela está muito

ocupada com a bebê e levarei quase todo o dia a cozinhar e limpar. Mas

se você me desse uma ajuda. . Não soube o que dizer. Ia ajudar Jack, pelo que não me sobraria muito

tempo. O problema era que os homens nunca cozinhavam nem

limpavam e não era assim apenas na nossa fazenda. Era o mesmo em todo o Condado. Os homens trabalhavam no exterior fizesse chuva ou

sol e, quando regressavam, as mulheres tinham uma refeição quente em

cima da mesa. A única ocasião em que ajudávamos na cozinha era no

Dia de Natal, altura em que lavávamos a louça como presente especial

para a minha mãe. Foi como se Alice me lesse o pensamento, porque o

seu sorriso alargou-se. — Não seria muito difícil, não é? — perguntou. — As mulheres dão comida às galinhas e ajudam na

colheita. Assim sendo, porque não haveriam os homens de ajudar na

cozinha? Basta que me ajude a lavar a louça, é tudo. E alguns tachos precisam de ser areados antes de eu começar a cozinhar.

Concordei então em fazer o que ela queria. Tinha outra escolha? Só

esperava que Jack não me apanhasse em flagrante. Nunca iria entender. Levantei-me mais cedo do que o costume e consegui arear os tachos

antes de Jack descer. A seguir, tomei o desjejum demoradamente,

comendo muito devagar, o que era invulgar em mim e foi o suficiente para suscitar um olhar desconfiado de Jack. Depois de ele ir para os

campos, lavei rapidamente os tachos e comecei a limpá-los.

Devia ter calculado o que iria acontecer, pois Jack nunca tivera muita paciência.

Entrou no pátio bradando e praguejando e me viu através da janela, o

seu rosto todo franzido de incredulidade. Depois cuspiu para o pátio e deu a volta e escancarou a porta da cozinha com um empurrão.

— Quando estiver despachado — disse sarcasticamente —, há trabalho

de homens para fazer. E pode começar por inspecionar e reparar os chiqueiros. Snout8

vem amanhã. Há que matar cinco animais e não queremos passar o

tempo todo correndo atrás dos desgarrados. Snout era a nossa alcunha para o matador dos porcos, e Jack tinha

razão. Às vezes, os porcos entravam em pânico quando Snout metia

mãos à obra e se houvesse qualquer ponto fraco na vedação, eles encontravam-no com certeza.

Jack virou-se para se ir embora e depois, subitamente, praguejou alto e

bom som. Fui até à porta ver o que era. Ele pisara sem querer um grande sapo gordo, transformando-o em polpa. Diziam que dava azar

matar uma rã ou um sapo e Jack voltou a praguejar, carregando

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8 Focinho de porco. (NT)

tanto o cenho que os seus espessos sobrancelhas pretos se uniram ao

meio. Atirou o sapo morto com um pontapé para a pia de despejos e afastou-se, abanando a cabeça.

Não soube que bicho lhe mordera. Jack não costumava ser tão mal-

humorado. Fiquei onde estava e limpei rapidamente o último tacho — já que ele me

apanhara em flagrante, podia perfeitamente concluir a tarefa. Além

disso, os porcos cheiravam mal e não estava muito ansioso por efetuar a tarefa que Jack me destinara.

— Não se esqueça do livro — recordei a Alice quando abri a porta para

sair, mas ela limitou-se a sorrir-me de forma estranha.

Só consegui voltar a falar com Alice ao final daquele dia, depois de Jack

e Ellie se terem recolhido. Tinha pensado ir fazer-lhe nova visita ao

quarto, mas ela desceu antes à cozinha, trazendo o livro e sentando-se na cadeira de balanço da minha mãe, perto das brasas da lareira.

— Tratou muito bem aqueles tachos. Deve estar desesperado por saber

o que está aqui — comentou Alice, batendo na lombada do livro. — Se ela voltar, quero estar preparado. Preciso saber o que posso fazer.

O Mago disse que provavelmente ela estará latente. Sabe o que é?

Os olhos de Alice arregalaram-se e anuiu. — Portanto, tenho de estar preparado. Se houver algo nesse livro que

possa ajudar, preciso saber.

— Este padre não é como os outros — comentou Alice, estendendo-me o livro. — Percebe do assunto, sim.

Lizzie gostaria mais disto do que de bolos à meia-noite.

Enfiei o livro nas calças e puxei um escabelo para o outro lado da lareira, de frente para o que restava da fogueira. Depois, comecei a interrogar

Alice. De início, foi uma tarefa muito difícil. Ela não adiantou muito e o

que consegui arrancar-lhe fez-me sentir muito pior. Comecei pelo estranho título do livro: Os Malditos, os Desequilibrados e

os Desesperados. O que significava? Porquê dar semelhante nome ao

livro? — A primeira palavra não passa de conversa de padre — disse Alice,

descaindo os cantos da boca em re-provação. — Eles aplicam essa

palavra às pessoas que fazem as coisas de maneira diferente. As pessoas como a sua mãe, que não vão à igreja nem dizem as preces

certas.

As pessoas que não são como eles, às pessoas que são canhotas — rematou, sorrindo-me com ar entendido.

— A segunda palavra é mais útil — continuou Alice. — Um corpo

possuído recentemente tem pouco equilíbrio. Está sempre a cair. Leva algum tempo, sabe, até o possessor que lá se instalou ficar

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confortavelmente adaptado ao seu novo corpo. É o mesmo que tentar

calçar um par de sapatos novos. Deixa-o também mal-humorado.

Uma pessoa calma e plácida pode atacar sem aviso. Logo, é outra maneira de o distinguir.

— Depois, quanto à terceira palavra, essa é fácil.

Uma bruxa que já teve um corpo humano saudável está desesperada por arranjar outro. Então, mal o consegue, fica desesperada por o conservar.

Não vai desistir dele sem lutar. Fará tudo. Seja o que for. Por isso os

possessos são tão perigosos. — Se ela voltasse, o que seria? — perguntei. — Se ela estivesse latente,

quem tentaria possuir? Seria eu? Tentaria fazer-me mal dessa maneira?

— O faria, se pudesse — disse Alice. — No entanto, não é fácil, sendo

você o que é. Também poderia me usar, mas não vou lhe dar a

oportunidade. Não, ela escolherá os mais fracos. Os mais fáceis.

— A bebê de Ellie? — Não, essa não lhe serviria de nada. Teria de esperar que crescesse.

Mãe Malkin nunca teve muita paciência e estar presa naquele poço na

propriedade do Velho Gregory só a terá tornado pior. Se for a você que ela queira fazer mal, primeiro arranjará um corpo forte e saudável.

— Nesse caso, Ellie? Ela escolherá Ellie!

— Mas, afinal, o que você sabe? — insurgiu-se Alice, abanando a cabeça, incrédula. — Ellie é forte. Seria difícil. Não, os homens são muito mais

fáceis. Especialmente um homem que pensa sempre com o coração.

Alguém capaz de se encolerizar sem sequer pensar. — Jack?

— Será com certeza Jack. Pense o que seria ter o grande e forte Jack

atrás de você. Mas o livro está certo numa coisa. Um corpo recentemente possuído é mais fácil de dominar. Está desesperado, mas

igualmente desequilibrado. Saquei do meu livro de notas e apontei tudo

o que me pareceu importante. Alice não falava tão rapidamente quanto o Mago, mas ao fim de algum tempo entrou no seu ritmo normal e não

tardou que me doesse o pulso.

Quando chegou aos assuntos realmente importantes — como lidar com os possessos — eram muitos os sinais de que a alma

original ainda estava aprisionada dentro do corpo. Por isso, se se ferisse

o corpo, iria ferir também aquela alma inocente. Portanto, destruir o corpo para se livrar do possessor era tão mau quanto assassinar.

Na verdade, aquela seção do livro foi decepcionan-te: não parecia

possível fazer muito. Sendo padre, o autor achava que um exorcismo, usando velas e água benta, era a melhor maneira de arrancar o

possessor e libertar a vítima, mas admitia que nem todos os padres o

conseguiam fazer e realmente bem só muito poucos. Parecia-me que alguns dos padres que o conseguiam fazer seriam, muito provavelmente,

Page 114: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

sétimos filhos de sétimos filhos e essa era realmente a questão

importante.

Depois de tudo aquilo, Alice disse que se sentia cansada e foi-se deitar. Eu também estava sonolento. Esquecera-me de quão árduo podia ser o

trabalho na fazenda e estava dolorido da cabeça aos pés. Uma vez no

meu quarto, fiquei grato por cair na cama, ansioso por adormecer. Mas, lá em baixo no pátio, os cães começaram a ladrar. Pensando que algo os

deveria ter alarmado, abri a janela e olhei para a Colina do Carrasco,

enchendo os pulmões do ar noturno para me acalmar e aclarar as idéias. Aos poucos, os cães foram-se calando e acabaram por parar de ladrar

definitivamente.

Quando ia a fechar a janela, a Lua saiu de trás de uma nuvem. O luar

consegue mostrar a verdade das coisas

— segundo apurara por Alice — tal como a minha sombra grande dissera

a Lizzie dos Ossos que havia algo de diferente em mim. A Lua nem sequer estava cheia, era apenas um quarto minguante diminuindo para

um crescente, mas mostrou-me algo novo, algo que não podia ser visto

na sua ausência. À sua luz, vi um tênue rasto prateado que descia a Colina do Carrasco. Passava por debaixo da vedação e estendia-se pela

pastagem norte, depois atravessava o campo de feno a leste até

desaparecer de vista algures por detrás do celeiro. Pensei então em Mãe Malkin. Vira o rasto prateado na noite em que a atirara ao rio. Eis agora

aqui outro rastro que parecia quase igual, e encontrara-me.

Com o coração a bater com força no meu peito, desci as escadas na ponta dos pés e esgueirei-me pela porta de trás, fechando-a

cuidadosamente atrás de mim. A Lua escondera-se atrás de uma nuvem,

por isso, quando dei a volta pela parte de trás do celeiro, o rasto prateado desaparecera, mas continuava a haver nítidos indícios de que

algo descera a colina em direção aos anexos da nossa fazenda. A erva

estava espalmada, como se um caracol gigante tivesse deslizado sobre ela.

Esperei que a Lua reaparecesse para poder verificar a zona lajeada por

detrás do celeiro. Alguns momentos depois, a nuvem afastou-se e vi algo que me deixou realmente assustado. O rastro prateado brilhava ao luar

e a direção que tomara era inequívoca. Evitava o chiqueiro e

serpenteava pelo outro lado do celeiro num arco amplo até alcançar o extremo mais distante do pátio. Depois, avançava na direção da casa,

terminando mesmo por debaixo da janela de Alice, onde o velho alçapão

de madeira cobria as escadas para a cave. Algumas gerações antes, o agricultor que vivera aqui costumava destilar

cerveja que fornecia às fazendas locais e até a algumas estalagens. Em

virtude disso, as gentes locais chamavam à nossa propriedade a «Fazenda do Cervejeiro», muito embora nós lhe chamássemos apenas

Page 115: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

«lar». As escadas permitiam a entrada e saída dos barris de cerveja sem

ser necessário atravessar a casa.

O alçapão tapava ainda as escadas, um grande cadeado ferrugento a manter as duas metades no lugar, mas havia um estreito intervalo entre

elas, no lugar onde as extremidades da madeira não uniam bem. O

intervalo não seria maior do que o meu polegar, mas o rasto prateado terminava exatamente ali e sabia que o que quer que deslizara até este

ponto se conseguira introduzir por aquele minúsculo intervalo. Mãe

Malkin voltara e estava latente, o seu corpo suficientemente mole e flexível para se esgueirar pelos intervalos mais estreitos.

Alcançara já a cave.

Presentemente não nos servíamos da cave, mas lembrava-me bastante

bem dela. O chão era de terra batida e estava cheio de barris velhos. As

paredes da casa eram espessas e ocas, o que significava que em breve

ela poderia estar em qualquer lugar dentro das paredes, em qualquer lugar na casa.

Olhei para cima e vi uma chama de vela tremular na janela do quarto de

Alice. Ainda estava de pé. Entrei em casa e, um momento depois, encontrava-me à porta do seu quarto. O truque era bater apenas com

força suficiente para Alice saber que era eu, sem acordar todos os

demais. Mas quando aproximei os nós dos dedos da porta, preparado para bater,

ouvi um som vindo de dentro do quarto.

Ouvi a voz de Alice. Parecia estar a conversar com alguém. Não gostei nada daquilo, mas bati mesmo assim.

Esperei um momento e, como Alice não abrisse a porta, encostei-lhe o

ouvido. Quem poderia estar conversando com ela no quarto? Sabia que Eli e Jack estavam já na cama e, fosse como fosse, só conseguia ouvir

uma voz e esta era a de Alice. No entanto, parecia diferente. Fez-me

lembrar algo que ouvira antes. Quando repentinamente me lembrei do que era, afastei a orelha da madeira como se me tivesse queimado e

recuei uma passada da porta.

A voz dela subia e descia, tal como a de Lizzie dos Ossos quando estivera debruçada sobre o poço, segurando um pequeno osso branco de

polegar em cada mão.

Antes mesmo de perceber o que fazia, agarrei no puxador, rodei-o e escancarei a porta. Alice, abrindo e fechando a boca, entoava diante do

espelho. Estava sentada numa cadeira de espaldar, a olhar fixamente

pela parte de cima de uma chama de vela para o espelho do toucador. Respirei fundo, depois aproximei-me sorrateiramente para ver melhor.

Como estávamos na Primavera ali no Condado, depois de escurecer o

quarto ficava um pouco frio; não obstante, havia grandes gotas de suor na testa de Alice.

Page 116: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Enquanto observava, duas delas juntaram-se e desceram-lhe para o olho

esquerdo e depois continuaram para a face, como uma lágrima. Ela

estava a olhar para o espelho, de olhos muito arregalados, mas quando chamei o nome dela, nem sequer pestanejou.

Coloquei-me por detrás da cadeira e captei o reflexo do castiçal de latão

no espelho mas, para meu horror, o rosto no espelho por cima da chama não pertencia a Alice.

Era um rosto velho e enrugado, com cabelo crespo grisalho e branco a

cair como cortinas sobre cada face descarnada. Era o rosto de algo que passara muito tempo em solo úmido.

Os olhos moveram-se então, deslizando para a esquerda ao encontro

dos meus. Eram pontos vermelhos de fogo. Apesar de se ter estampado

um sorriso no rosto, os olhos ardiam de raiva e ódio.

Não havia dúvida. Era o rosto de Mãe Malkin.

O que se passava? Alice fora já possuída? Ou estaria de alguma forma a usar o espelho para conversar com Mãe Malkin?

Sem pensar, peguei no castiçal e atirei a sua base pesada ao espelho,

que explodiu com grande estrondo, seguido de uma chuva cintilante e tilintante de vidro a precipitar-se. Quando o espelho se estilhaçou, Alice

soltou um grito sonoro e estridente.

Foi o pior grito que se possa imaginar. Estava cheio de tormento e lembrou-me o guincho que um porco dá às vezes, quando o estão a

matar. Mas não senti pena de Alice, muito embora agora ela chorasse e

puxasse os cabelos, os olhos arregalados e cheios de terror. Percebi que a casa se enchera de repente de outros sons. O primeiro foi

o choro da bebê de Ellie; o segundo foi a voz cava de um homem a

praguejar e blasfemar; o terceiro, botas grandes descendo as escadas ruidosamente.

Jack irrompeu pelo quarto, furioso. Olhou para o espelho partido, depois

avançou para mim e levantou o punho. Acho que deve ter julgado que fora tudo culpa minha, porque Alice continuava a gritar, eu segurava o

castiçal e havia pequenos golpes nos meus dedos provocados pelos

estilhaços de vidro. Ellie entrou no quarto mesmo a tempo. Trazia a bebe aninhada no braço

direito e esta chorava ainda a plenos pulmões, mas com a mão livre

agarrou Jack e puxou-o até ele abrir o punho e baixar o braço. — Não, Jack — suplicou. — De que servirá isso?

— Não acredito que ele o tenha feito — bradou Jack, fuzilando-me com o

olhar. — Sabe quantos anos tinha aquele espelho? O que pensa que o pai vai dizer agora? Como se irá sentir quando vir isto?

Não admira que Jack estivesse furioso. Já fora mau acordar toda a

gente, mas aquela mesinha de toucador pertencera à mãe do meu pai. Agora que ele me dera a caixa de mechas, era a última peça que

pertencera em tempos à sua família.

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Jack deu dois passos na minha direção. A vela não se apagara quando

eu partira o espelho, mas começou a tremular quando ele gritou

novamente. — Porque fez isso? O que diabo te deu? — bradou.

O que podia eu dizer? Limitei-me a encolher os ombros, depois olhei

para as botas. — E, afinal, o que está fazendo neste quarto? — insistiu Jack. Não respondi. Tudo o que eu dissesse só iria agravar a

situação.

— A partir de agora, vê se não sai do seu quarto! — berrou Jack. — A minha vontade era pô-los aos dois já daqui para

fora.

Olhei para Alice, ainda sentada na cadeira, a cabeça nas mãos. Parará de

chorar, mas todo o seu corpo tremia.

Quando olhei para trás, a raiva de Jack dera lugar ao alarme. Olhava

fixamente para Ellie, que parecera subitamente vacilar. Antes que tivesse tempo de se mover, ela desequilibrou-se e bateu na parede. Por

uns momentos, Jack esqueceu-se do espelho enquanto acudia a Ellie.

— Não sei o que me deu — disse ela, toda agitada. — De repente senti a cabeça vazia. Oh! Jack! Jack! Quase deixei cair a

bebê!

— Não deixou e ela está bem. Não se preocupe. Pronto, eu agora pego-lhe. .

Assim que teve a bebê nos braços, Jack acalmou.

— Para começar, vai limpar toda esta porcaria — ordenou-me. — Falaremos de manhã.

Ellie atravessou o quarto até à cama e apoiou a mão no ombro de Alice.

— Alice, vem comigo até lá abaixo enquanto Tom limpa o quarto — sugeriu. — Vou preparar uma bebida para nós.

Momentos depois, tinham descido todos à cozinha, deixando-me a

apanhar os cacos de vidro. Passados cerca de dez minutos, fui também até lá buscar uma vassoura e uma vasilha de metal. Estavam sentados à

volta da mesa da cozinha a beber chá de ervas, a bebê adormecida nos

braços de Ellie. Não falavam e ninguém me ofereceu uma bebida. Ninguém olhou sequer na minha direção.

Voltei para cima e limpei tudo o melhor que pude, depois regressei ao

meu quarto. Sentei-me na cama e olhei pela janela, sentindo-me assustado e sozinho. Estaria Alice já possuída? Afinal, fora o rosto de

Mãe Malkin que me olhara do espelho. Se sim, então a bebê e todos os

demais corriam verdadeiro perigo. Ela não tentara fazer nada até ali, mas Alice era relativamente pequena

comparada com Jack, por isso Mãe Malkin teria de ser astuta. Esperaria

que fossem todos dormir. Eu seria o alvo principal. Ou talvez a bebê. O sangue de uma criança faria aumentar a sua força.

Page 118: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Ou eu partira o espelho mesmo a tempo? Teria eu quebrado o feitiço no

preciso instante em que Mãe Malkin se preparava para possuir Alice?

Outra possibilidade era que Alice estivesse apenas a falar com a bruxa, servindo-se do espelho. Mesmo assim, já era suficientemente mau.

Significava que eu tinha dois inimigos com que me preocupar.

Precisava fazer algo. Mas o quê? Enquanto estava ali sentado, com a cabeça a rodar, tentando refletir sobre o assunto, ouvi uma pancada na

porta do meu quarto. Pensei que fosse Alice, de maneira que não fui lá.

Depois uma voz chamou baixinho por mim. Era Ellie, por isso abri a porta.

— Podemos falar aí dentro? — perguntou. — Não quero correr o risco de

acordar a bebê. Acabei de conseguir adormecê-la.

Anuí, Ellie entrou e fechou cuidadosamente a porta atrás de si.

— Está bem? — indagou, parecendo preocupada.

Acenei com a cabeça, infeliz, mas não a consegui encarar. — Gostaria de me falar do sucedido? — perguntou. — É um rapaz sensato, Tom, e deve

ter tido um motivo muito forte para fazer o que fez. Talvez se sentisse

melhor conversando. Como podia contar-lhe a verdade? Quer dizer, Ellie adorava a bebê, por

conseguinte, como podia dizer-lhe que havia uma bruxa em algum lugar

à solta na casa que gostava do sangue de crianças? Percebi então que, por causa da bebê, ia ter de lhe contar alguma coisa. Ela precisava saber

até que ponto a situação era grave. Ela tinha de sair dali.

— Há uma coisa, Ellie. Mas não sei como lhe contar. Ellie sorriu.

— O princípio seria um ponto tão bom como qualquer outro. .

— Algo me seguiu até aqui — disse eu, olhando Ellie diretamente nos olhos. — Algo pérfido que me quer fazer mal. Foi por isso que parti o

espelho. Alice estava a falar com aquilo e. .

Os olhos de Ellie chisparam subitamente de raiva. — Conte isso a Jack e pode ter a certeza de que vai sentir o seu punho!

Quer dizer que trouxe algo para cá, quando eu tenho uma bebê recém-

nascida? Como pode? Como pode fazer isso?

— Eu não sabia que isto ia acontecer — protestei.

— Só o descobri esta noite. Por isso estou te contando agora. Precisa deixar a casa e pôr a bebê a salvo. Vá agora, antes que seja tarde

demais.

— O quê? Neste momento? No meio da noite? Anuí.

Ellie abanou a cabeça firmemente.

— Jack se recusaria a partir. Não aceitaria ser expulso da sua própria casa a meio da noite. Por nada deste mundo. Não, vou esperar. Vou ficar

aqui e rezar as minhas preces. Aprendi isso com a minha mãe. Ela disse

Page 119: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

que se rezarmos realmente com intensidade, nada do escuro nos poderá

fazer mal. E eu acredito realmente nisso. E, depois, podia estar

enganado, Tom — acrescentou. — É jovem e ainda está a começar a aprender o ofício, portanto, pode não

ser tão mau quanto julgas. E a sua mãe deve voltar a qualquer

momento. Se não esta noite, com certeza amanhã à noite. Ela saberá o que fazer. Entretanto, mantenha-se afastado do quarto daquela menina.

Há algo que não está certo nela.

Quando abri a boca para falar, tencionando fazer mais uma tentativa para a persuadir a ir-se embora, surgiu repentinamente uma expressão

de alarme no rosto de Ellie e ela vacilou e apoiou a mão na parede para

evitar cair.

— Vê só o que arranjou. Sinto-me fraca só de pensar no que se passa

aqui.

Sentou-se na minha cama e apoiou a cabeça nas mãos por alguns momentos, enquanto eu me limitava a olhá-la, infelicíssimo, sem saber o

que fazer ou dizer.

Ao cabo de alguns instantes, ela voltou a pôr-se em pé. — Precisamos falar com a sua mãe assim que ela voltar, mas não se

esqueça: até lá, mantenha-se afastado de Alice. Promete?

Prometi e, com um sorriso triste, Ellie voltou para o seu quarto. Só depois de ela sair é que se fez luz no meu espírito. .

Era a segunda vez que Ellie cambaleava e dissera que sentia a cabeça

vazia. Uma vez ainda podia ser acaso. Apenas cansaço. Mas duas! Ela estava com tonturas. Ellie não tinha

equilíbrio e isso era o primeiro sinal de possessão! Comecei a andar de

um lado para o outro. Só podia estar enganado. Logo Ellie! Não podia ser Ellie. Talvez ela estivesse apenas cansada. Afinal, a bebê quase não a

deixava dormir. Mas Ellie era forte e saudável. Fora criada numa fazenda

e não era pessoa para se deixar abater pelas circunstâncias. E toda aquela conversa de rezar. . Devia tê-lo feito só para não provocar

desconfianças.

Mas Alice não me dissera que seria difícil Elie ser possuída? Referira também que provavelmente seria Jack, mas ele não evidenciara

qualquer sinal de desequilíbrio.

Mesmo assim, era inegável que ele estava a ficar mesmo muito mal-humorado e agressivo também! Se Ellie não o houvesse impedido, teria

me arrancado a cabeça dos ombros.

Mas, é claro, se Alice estava de conluio com Mãe Malkin, tudo o que ela dissera poderia destinar-se a despistar-me. Nem sequer podia confiar

nas informações a respeito do livro do Mago! Ela podia ter-me contado

mentiras o tempo todo! Eu não sabia latim, por isso era impossível verificar o que ela dissera.

Percebi que qualquer das hipóteses era possível.

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Dar-se-ia um ataque a qualquer momento e eu não tinha como saber de

quem partiria!

Com sorte, a minha mãe regressaria antes da aurora. Ela saberia o que fazer. Mas a aurora ainda vinha muito longe, pelo que não podia

permitir-me dormir. Tinha de ficar de vigia a noite inteira. Se Jack ou

Ellie estivessem possessos, não haveria nada que eu pudesse fazer a esse respeito. Não podia entrar no quarto deles, por isso só me restava

ficar de olho em Alice.

Fui lá para fora e sentei-me nas escadas entre a porta do quarto de Jack e Ellie e a do meu. Dali conseguia ver a porta do quarto de Alice, mais

abaixo. Se ela saísse do quarto, pelo menos poderia dar o alerta.

Decidi que se a minha mãe não voltasse, me iria embora ao raiar do dia;

para além dela, só havia mais uma hipótese de ajuda. .

Foi uma longa noite e, a princípio, sobressaltava-me ao menor som —

um rangido nas escadas ou um tênue movimento das tábuas num dos quartos. Mas, aos poucos, acalmei-me. A casa era antiga e eu estava

acostumado a ruídos daqueles — os ruídos que se espera ouvir quando

ela sossega e arrefece durante a noite. Todavia, com o aproximar da aurora, principiei a ficar novamente inquieto.

Comecei a ouvir ruídos de raspadelas tênues vindos do interior das

paredes. Pareciam unhas a arranhar a pedra e não era sempre no mesmo lugar. Por vezes, era mais ao alto das escadas, do lado

esquerdo; outras em baixo, mais perto do quarto de Alice. Eram tão

leves que tinha dificuldade em dizer se estaria ou não a imaginá-los. Mas comecei a sentir frio, muito frio, e isso avisou-me de que o perigo

rondava.

Depois os cães começaram a ladrar e, passados alguns minutos, os outros animais ficaram também enlouquecidos, os porcos peludos a

guincharem tão alto que se pensaria que o matador já chegara. Como se

não bastasse, a barulheira fez com que a bebê recomeçasse a chorar. Sentia agora tanto frio que todo o meu corpo era sacudido e tremia.

Tinha de fazer alguma coisa.

Na margem do rio, quando enfrentara a bruxa, as minhas mãos haviam sabido o que fazer. Desta vez, sucedeu que as minhas pernas foram

mais rápidas do que o pensamento. Levantei-me e corri. Assustado e

com o co-ração a bater descompassado, desci apressadamente as escadas, fazendo ainda mais barulho. Só pensava em ir lá para fora e

afastar-me da bruxa. Nada mais importava.

Toda a minha coragem se fora.

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CAPÍTULO 13

OS PORCOS PELUDOS

Saí de casa a correr e dirigi-me para norte, direito à Colina do Carrasco,

ainda em pânico, só abrandando quando cheguei à pastagem norte.

Precisava de ajuda, e rapidamente. Ia voltar a Chipenden. Só o Mago me poderia ajudar naquele momento.

Mal cheguei à vedação limítrofe, os animais calaram-se e virei-me e olhei

para trás, na direção da fazenda.

Vi, para lá dela, a estrada de terra batida serpenteando ao longe, como

uma mancha escura na manta de retalhos dos campos cinzentos.

Foi então que avistei uma luz na estrada. Uma carroça avançava na direção da fazenda. Seria a minha mãe?

Por um momento, a minha esperança renasceu. Mas quando a carroça

se aproximou do portão da fazenda, ouvi uma tosse ruidosa, o som de mucosidades a serem reunidas na garganta, e depois alguém escarrou.

Era apenas Snout, o matador de porcos. Tinha de fazer o serviço a cinco

dos nossos maiores porcos peludos; uma vez mortos, era preciso raspar muito cada um, por isso queria começar cedo.

Ele nunca me fizera mal, mas eu ficava satisfeito quando terminava o

serviço e se ia embora. A minha mãe também nunca gostara dele. Detestava o hábito de estar sempre a reunir as mucosidades espessas e

depois lançá-las para o pátio.

Era um homem grande, mais alto ainda do que Jack, com músculos salientes nos antebraços. Os músculos eram necessários para o trabalho

que efetuava. Alguns porcos pesavam mais do que um homem e

debatiam-se com uns doidos para se esquivarem à faca. No entanto, havia uma parte de Snout que fora descurada. As suas camisas eram

sempre curtas, com os dois botões de baixo abertos, e a barriga gorda,

branca e peluda pendia sobre o avental de couro castanho que usava para evitar que as calças ficassem ensopadas de sangue. Não deveria ter

muito mais de trinta anos, mas o seu cabelo era ralo e escorrido.

Desapontado por não ser a minha mãe, vi-o retirar a lanterna da carroça e começar a descarregar as ferramentas. Efetuava os preparativos para

a tarefa na parte da frente do celeiro, mesmo ao lado da pocilga.

Eu já perdera tempo suficiente e começara a escalar a vedação para a mata quando, pelo canto do olho, avistei um movimento mais abaixo na

vertente. Uma sombra avançava, célere, ao meu encontro, na direção

dos degraus no outro extremo da pastagem norte. Era Alice. Não queria que ela me seguisse mas preferia enfrentá-la agora

do que mais tarde, por isso sentei-me na vedação limítrofe e esperei que

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ela me alcanças-se. Não tive de esperar muito porque ela subia a colina

correndo.

Não se aproximou demais, ficando a cerca de nove ou dez passos, de mãos no quadril, tentando recuperar o fôlego. Mirei-a de alto a baixo,

vendo de novo o vestido preto e os sapatos bicudos. Devia tê-la

acordado quando descera as escadas correndo; para me alcançar tão depressa, certamente se vestira rapidamente, seguindo-me de imediato.

— Não quero falar com você — gritei-lhe, o nervosismo fazendo com que

a voz me tremesse e saísse mais esganiçada do que o costume. — Também não perca tempo seguindo-me. Teve a sua oportunidade, por

isso, de agora em diante é melhor que se mantenha bem longe de

Chipenden.

— Era bom que falasse comigo se quer evitar problemas — sugeriu Alice.

— Em breve será tarde demais, por isso há uma coisa que convém

saber. Mãe Malkin já está aqui. — Eu sei — respondi. — Eu a vi.

— Não apenas no espelho, porém. Não é só isso.

Ela voltou, está em algum lugar dentro da casa — disse Alice, apontando para o fundo da colina.

— Já te disse que o sei — respondi-lhe, furioso. —

O luar mostrou-me o rastro que ela deixou, e quando fui lá acima para te avisar, o que foi que descobri? Você estava já a falar com ela e é

natural até não ser a primeira vez.

Lembrei-me da primeira noite em que fora ao quarto de Alice e lhe dera o livro. Quando entrara, a vela ainda fumegava diante do espelho.

— Provavelmente trouxe-a até aqui — acusei. —

Disse-lhe onde eu estava. — Isso não é verdade — retrucou Alice, uma raiva na sua voz

equiparável à minha. Deu cerca de três passos na minha direção. — Eu

cheirei-a, sim, e servi-me do espelho para ver onde estava. Não sabia que ela estava tão próximo, está bem? Ela era forte demais para mim,

por isso não consegui me afastar. Ainda bem que entrou naquele

momento. A minha sorte foi ter partido o espelho. Queria acreditar em Alice, mas como podia confiar nela? Quando

avançou mais uns passos, virei-me parcial-mente, pronto para saltar

para a erva do outro lado da vedação. — Vou a Chipenden buscar Mr. Gregory — disse-lhe. — Ele saberá o que fazer.

— Não há tempo para isso — respondeu Alice. —

Quando voltar será tarde demais. Há que pensar na bebê. Mãe Malkin quer fazer-te mal, mas estará sedenta de sangue humano.

Ela prefere o sangue jovem. É esse que a torna mais forte.

O medo fizera-me esquecer a bebê de Ellie. Alice tinha razão. A bruxa não iria querer possuí-la, mas pretenderia, sem dúvida, o seu sangue.

Quando eu chegasse com o Mago seria tarde demais.

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— Mas o que posso fazer? — perguntei. — Que hipóteses tenho contra a

Mãe Malkin?

Alice encolheu os ombros e os cantos da sua boca descaíram. — Isso é assunto seu. Certamente o Velho Gregory ensinou-lhe algo que possa

ser útil, não? Se não o escreveu no seu livro de notas, então, talvez

esteja dentro da sua cabeça. Só precisa de se lembrar, é tudo. — Ele não me falou tanto assim sobre as bruxas —

referi, sentindo-me subitamente aborrecido com o Mago.

A maior parte da minha preparação fora sobre demônios, com alguns bocadinhos sobre imagens fantasmagóricas e fantasmas... quando todos

os meus problemas tinham sido causados por bruxas.

Continuava a não confiar em Alice, mas agora, depois do que ela

acabara de dizer, não podia ir a Chipenden. Nunca conseguiria trazer o

Mago até aqui a tempo. O aviso dela sobre a bebê de Ellie parecera bem-

intencionado, mas, caso Alice estivesse possessa ou do lado de Mãe Malkin, aquelas eram as palavras precisas que não me deixariam outra

alternativa senão descer a colina em direção à fazenda. Aquelas palavras

impediam-me precisamente de ir avisar o Mago, ao mesmo tempo que me colocavam à mercê da bruxa para ela por as mãos em mim quando

lhe conviesse.

No percurso colina abaixo, mantive a distância de Alice, mas ela ia a meu lado quando entramos no pátio e o atravessamos até perto da parte

da frente do celeiro.

Snout estava ali afiando as facas; ergueu o olhar quando me viu e baixou-me a cabeça. Correspondi à sua saudação. Depois de ele me

cumprimentar, limitou-se a fitar Alice sem falar, mas olhou-a de alto a

baixo por duas vezes. Depois, antes mesmo de chegarmos à porta da cozinha, assobiou longa e sonoramente, em aprovação.

Alice fingiu que não o ouvira. Antes de tratar do desjejum tinha outra

tarefa a cumprir: foi direta para a cozinha e começou a preparar o frango que iríamos comer à refeição do meio do dia. Pendia de um

gancho junto à porta, o pescoço e as entranhas já retirados na noite da

véspera. Começou por limpá-lo com água e sal, os olhos muito concentrados no que estava a fazer, para que os dedos atarefados não

falhassem o mais ínfimo pedacinho.

Foi então, enquanto a observava, que me lembrei finalmente de algo que talvez pudesse funcionar num corpo possuído.

Sal e ferro!

Não tinha bem certeza, mas valia a pena tentar. Era o que o Mago usava para prender um demônio num poço e podia ser que desse resultado no

caso de uma bruxa. Se o atirasse a alguém possesso, talvez conseguisse

expulsar Mãe Malkin. Não confiava em Alice e não queria que ela me visse servir-me do sal,

por conseguinte, tive de esperar até ela terminar de limpar o frango e

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sair da cozinha. Feito isso, e antes de iniciar as minhas próprias tarefas,

efetuei uma visita à oficina do meu pai.

Não levei muito tempo a encontrar aquilo de que precisava. Escolhi, de entre a enorme coleção de limas na prateleira por cima do banco de

carpinteiro, a maior e mais dentada delas todas. Era aquela a que

chamavam «bastarda» e que, quando era mais novo, me proporcionava a única

oportunidade de alguma vez usar tal palavra sem levar um sopapo na

orelha. Comecei então a limar a extremidade de um balde velho de ferro, o ruído bulindo-me com os nervos. Mas não tardou que um ruído

ainda maior cortasse o ar.

Foi o grito de um porco moribundo, o primeiro de cinco.

Sabia que Mãe Malkin podia aparecer em qualquer lado, e se ela não

tivesse já possuído alguém, a qualquer instante escolheria uma vítima.

Fiz um esforço para me concentrar e ficar permanentemente atento. Pelo menos agora tinha algo com que me defender.

Jack queria que eu ajudasse Snout, mas eu tinha sempre uma desculpa

pronta, dizendo que estava a acabar isto ou que ia começar a fazer aquilo. Se me pusesse a ajudar Snout não poderia vigiar os demais.

Como eu era apenas o irmão de visita por alguns dias, e não alguém

contratado, Jack não pôde insistir, mas andou lá perto. No fim, depois do almoço, de semblante muito carregado, lá se viu na

obrigação de ajudar Snout, que era exatamente o que eu pretendia. Se

ele estivesse a trabalhar defronte do celeiro, eu sempre o podia vigiar à distância. Usei constantemente de pretextos para ir ver Alice e Ellie

também. Qualquer delas poderia estar possessa, mas, se fosse Ellie, não

haveria grandes hipóteses de salvar a bebê: passava a maior parte do tempo ou nos braços da mãe ou a dormir no berço à sua beira.

Tinha o sal e o ferro, mas não sabia se seriam suficientes. Uma corrente

de prata teria sido muito mais eficaz. Mesmo que curta, sempre seria melhor do que nenhuma. Quando eu era pequeno, escutara uma vez o

meu pai e a minha mãe a falarem de um fio de prata que lhe pertencera.

Eu nunca a vira usar tal coisa, mas podia encontrar-se ainda algures na casa — talvez na arrecadação mesmo por debaixo do sótão, que a minha

mãe mantinha sempre fechada.

Mas o quarto deles não estava trancado. Em circunstâncias normais, nunca entraria ali sem autorização, mas estava desesperado. Procurei no

guarda-jóias da minha mãe. Havia lá pregadores e anéis, mas nenhum

fio de prata. Procurei em todo o quarto. Senti-me realmente culpado de andar a remexer nas gavetas, mas não deixei de o fazer. Pensei que

pudesse haver uma chave da arrecadação, mas não a encontrei.

Enquanto andava à procura, ouvi as botas de Jack a subir as escadas. Fiquei muito quieto, mal ousando respirar, mas ele foi apenas ao seu

quarto por alguns momentos e desceu logo em seguida. Concluí então a

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minha busca e, não tendo encontrado nada, desci para vir ver mais uma

vez como estavam todos.

Naquele dia, o ar estivera silencioso e calmo, mas, quando passei pelo celeiro, começou a levantar-se uma brisa. O Sol principiava a baixar no

horizonte, iluminando tudo com um brilho quente e vermelho e

prometendo bom tempo para o dia seguinte. Havia agora na frente do celeiro três porcos mortos pendendo, de cabeça para baixo, de ganchos

grandes. Eram cor-de-rosa e tinham sido acabados de raspar, o último

ainda a escorrer sangue para um balde, e Snout encontrava-se ajoelhado, abraçado com o quarto, que estava lhe dando uma

trabalheira — era difícil dizer qual deles grunhia mais alto.

Jack, a parte da frente da sua camisa encharcada de sangue, deitou-me

um olhar fuzilante quando passei, mas limitei-me a sorrir e baixar a

cabeça. Prosseguiam apenas a tarefa em mãos e faltava ainda um bom

bocado, pelo que estariam ocupados muito depois de o Sol se pôr. Até ao momento, não houvera o menor sinal de desequilíbrio, nem sequer

um indício de possessão.

Uma hora depois era já escuro. Jack e Snout trabalhavam ainda à luz da fogueira que projetava as suas sombras no pátio.

O horror começou quando fui ao barracão na parte de trás do celeiro a

fim de trazer uma saca de batata de semente do armazém. . Ouvi um grito. Foi um grito cheio de terror. O grito de uma mulher que

enfrenta a pior coisa que lhe poderia acontecer.

Larguei a saca de batatas e corri para a parte da frente do celeiro. Ali, estaquei de repente, mal podendo acreditar no que via.

Ellie encontrava-se a cerca de vinte passos, os dois braços estendidos,

gritando a bom som, como se a estivessem a torturar. A seus pés estava Jack, com o rosto cheio de sangue. Pensei que El ie gritasse por causa

de Jack — mas não, era por causa de Snout.

Estava virado para mim, como se aguardasse a minha chegada. Agarrava na mão esquerda a faca afiada preferida, aquela comprida que

usava sempre para degolar os porcos. Fiquei estático, horrorizado,

porque sabia o que ouvira no grito de Ellie. Ele segurava a bebê aninhada no braço direito. Havia sangue espesso de

porco nas suas botas e escorria ainda mais do avental para elas.

Aproximou mais a faca da bebê. — Venha cá, rapaz — gritou na minha direção. —

Venha cá. — Depois soltou uma gargalhada.

A boca dele abria e fechava ao falar, mas não era a voz dele que saía. Era a de Mãe Malkin. Tão pouco era a gargalhada cava e sonora dele.

Era a risada da bruxa.

Avancei lentamente um passo na direção de Snout. Depois outro. Queria aproximar-me dele. Queria salvar a bebê de Ellie.

Tentei ser mais rápido, mas não consegui.

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Parecia que os meus pés pesavam como chumbo. Era o mesmo que

tentar correr desesperadamente num pesadelo. As minhas pernas

moviam-se como se não me pertencessem. Percebi, de repente, de algo que me provocou cala-frios. Eu não estava a

avançar para Snout porque queria.

Mas porque Mãe Malkin me chamava. Ela estava a arrastar-me para ele ao ritmo que pretendia, aproximando-me da faca dele a postos. Eu não

ia salvar, mas tão-somente morrer. Encontrava-me sob uma espécie de

feitiço. Uma fórmula de compulsão. Sentira algo semelhante à beira do rio, só que nessa altura a minha mão

e o meu braço esquerdos tinham agido por si próprios para atirar Mãe

Malkin à água. Agora os meus membros estavam tão incapazes como a

minha mente.

Aproximava-me mais de Snout. Cada vez mais perto da sua faca a

postos. Os olhos dele eram os de Mãe Malkin e o seu rosto alterara-se de forma horrível. Era como se a bruxa dentro de si lhe estivesse a

distorcer a forma, inchando as faces ao ponto de arrebentarem,

arregalando os olhos ao ponto de saltarem, carregando o cenho como penhascos escarpados suspensos; por baixo deles, os olhos bulbosos e

salientes com fogo no centro, lançando um brilho vermelho e sinistro à

sua frente. Dei outro passo e senti o meu coração bater forte.

Novo passo e ele bateu novamente com força. Estava agora muito mais

próximo de Snout. Pum, pum, fazia o meu coração, um batimento por cada passo.

Quando estava a menos de cinco passos da faca em riste, ouvi Alice

correr na nossa direção, gritando o meu nome. Vi-a pelo canto do olho, saindo da escuridão para o clarão da fogueira. Vinha diretamente para

Snout, o cabelo preto fluindo para trás como se corresse ao encontro de

um vendaval. Sem interromper sequer o passo, deu um pontapé com toda a força por

cima do avental de couro dele, e vi a ponta do seu sapato bicudo

enterrar-se fundo na barriga gorda dele, pelo que só aparecia o calcanhar.

Snout arfou, dobrou-se e largou a bebê de Ellie mas, com a agilidade de

um gato jovem, Alice caiu de joelhos e apanhou-a antes mesmo de bater no solo. Depois virou-se bruscamente, correndo na direção de Ellie.

No preciso instante em que o sapato bicudo de Alice tocou na barriga de

Snout, o feitiço quebrou-se. Eu estava novamente livre. Livre para mover os meus pró-

prios membros. Livre para me deslocar. Ou livre para atacar.

Snout encontrava-se quase dobrado ao meio mas endireitou-se e, apesar de ter largado a bebê, segurava ainda a faca. Vi-o movê-la na

minha direção. Vacilou também um pouco — talvez estivesse sem

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equilíbrio, ou talvez fosse apenas uma reação ao sapato bicudo de Alice.

Liberto do feitiço, brotou em mim toda uma série de sentimentos. Havia

pena pelo que fora feito a Jack, horror ante o perigo que a bebê de Ellie correra e raiva por isto estar a acontecer à minha família.

E, naquele momento, soube que nascera para ser um Mago. O melhor

Mago que alguma vez existira. Eu podia e iria fazer com que a minha mãe se orgulhasse de mim. Sabem, é que em vez de estar cheio de

medo, eu era todo gelo e fogo. Cá no âmago, eu estava enfurecido,

cheio de uma raiva ardente que ameaçava explodir. Ao passo que, por fora, estava tão frio quanto o gelo, a minha mente encontrava-se alerta

e lúcida, a respiração lenta.

Enfiei as mãos nos bolsos das calças. Depois retirei-as rapidamente,

cada punho cheio do que encontrara ali e arremessei cada mão-cheia

diretamente na cabeça de Snout, algo branco da minha mão direita e

algo escuro na esquerda. Juntaram-se, uma nuvem branca e uma nuvem preta, no preciso instante em que lhe atingiram o rosto e os ombros.

Sal e ferro — a mesma mistura tão eficaz contra um demônio. Ferro para

lhe retirar a força; sal para queimá-lo. Limalhas de ferro do balde velho e sal da despensa da minha mãe. Só esperava que surtisse o mesmo

efeito sobre uma bruxa.

Acho que levar com uma mistura daquelas na cara não seria bom para ninguém — no mínimo, provocaria tosse e cuspidelas —, mas o efeito

sobre Snout foi muito pior do que isso. Primeiro abriu a mão e largou a

faca. Depois os seus olhos reviraram-se e caiu pesada e lentamente para a

frente, ajoelhando-se. A seguir bateu com toda a força com a testa no

solo e o seu rosto virou-se para um dos lados. Começou a sair-lhe algo espesso e viscoso da narina esquerda. Fiquei ali

a ver, incapaz de me mexer, enquanto Mãe Malkin saía lentamente a

borbulhar e a contorcer-se da narina dele, adquirindo a forma que eu recordava. Era ela, sem dúvida, mas uma parte sua estava igual,

enquanto outras se apresentavam diferentes.

Para começar, tinha menos de um terço do tamanho que apresentara da última vez que a vira. Agora, os ombros dela mal passavam dos meus

joelhos, mas trazia ainda a comprida capa que arrastava pelo chão, e o

cabelo grisalho e branco caía-lhe sobre os ombros curvados como cortinas bolorentas. O que estava realmente diferente era a sua pele.

Toda lustrosa, estranha e como que torcida e esticada. No entanto, os

olhos vermelhos não haviam mudado e fitaram-me uma vez, antes de ela se virar e começar a afastar em direção à esquina do celeiro. Parecia

estar a encolher ainda mais e perguntei-me se seriam o sal e o ferro que

continuavam a surtir efeito. Não sabia o que mais podia fazer, por isso fiquei ali a vê-la afastar-se, exausto demais para me mexer.

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Alice não se deteve por ali. Entregara entretanto a bebê a Ellie e veio

correndo, dirigindo-se para a fogueira.

Pegou num pedaço de madeira que ardia numa extremidade, depois avançou rapidamente para a Mãe Malkin, segurando-o diante dela.

Sabia o que ia fazer. Um toque e ela irromperia em chamas. Algo dentro

de mim não podia deixar que isso sucedesse porque era horrível demais, de modo que agarrei Alice pelo braço quando ela passou correndo e

rodei-a, posto o que largou a tora em chamas.

Ela virou-se para mim, o seu rosto todo em fúria, e julguei que fosse sentir um sapato bicudo. Mas agarrou-me o antebraço com tanta força

que as unhas se chegaram mesmo a cravar fundo na carne.

— Endureça, ou não sobreviverá! — atirou-me na cara. — Só fazer o que

diz o Velho Gregory não chega. Morrerá tal como os outros!

Soltou-me o braço e, quando olhei para ele, vi gotas de sangue no lugar

onde as unhas tinham se cravado em mim. — Tem de queimar uma bruxa — disse Alice, a raiva na sua voz a

diminuir —, para se certificar de que não voltará. Metê-la na terra não

serve de nada. Só retarda as coisas. O Velho Gregory sabe-o, mas é brando demais para usar o fogo. Agora é tarde demais...

Mãe Malkin desaparecia nas sombras, tendo contornado o celeiro,

continuando a encolher a cada passo, arrastando a capa preta pelo solo atrás de si.

Foi então que percebi que a bruxa cometera um grande erro. Seguira o

caminho errado, diretamente para o chiqueiro maior. Nesta altura estava suficientemente pequena para passar por debaixo da primeira tábua.

Fora um dia péssimo para os porcos. Cinco deles haviam sido mortos e

houvera momentos de muito barulho e sujidade, que provavelmente os deixaram bastante assustados. Por conseguinte, o que se pode dizer é

que não estavam nada satisfeitos e, provavelmente, não seria a ocasião

mais indicada para entrar no chiqueiro deles. E, além disso, os porcos grandes e peludos comem tudo, seja lá o que for. Não tardou que

chegasse a vez de Mãe Malkin gritar e fê-lo durante muito tempo.

— Aquilo deve equivaler a queimá-la — comentou Alice, quando o som finalmente desapareceu. Pude constatar o alívio no rosto dela. Eu sentia

o mesmo. Estávamos ambos satisfeitos por ter acabado tudo. Estava

cansado, de maneira que me limitei a encolher os ombros, não sabendo muito bem o que pensar, mas olhava para Ellie e não gostei do que vi.

Ellie estava assustada e horrorizada também. Olhava-nos como se não

pudesse acreditar no que acontecera e no que tínhamos feito. Era como se me tivesse visto devidamente pela primeira vez. Como se se

percebesse de repente do que eu era.

Compreendi também algo. Pela primeira vez, sentia realmente o que era ser o aprendiz do Mago. Vira as pessoas atravessarem para o outro lado

da rua a fim de evita-rem passar perto de nós. Vira-as estremecer ou

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benzer-se só porque havíamos atravessado a sua aldeia, mas não o

levara a mal. Na minha mente era a sua reação ao Mago, não a mim.

Mas não podia ignorar este fato, ou passá-lo para segundo plano na minha mente. Estava a acontecer-me diretamente e estava a acontecer

na minha própria casa.

De repente, senti-me mais sozinho do que nunca.

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CAPÍTULO 14

O CONSELHO DO MAGO

Mas nem tudo foi mau. Afinal, Jack não morrera. Eu não quis fazer

perguntas demais, pois só iria deixar todos aflitos, mas parecia que

quando Snout se preparava para começar a raspar a barriga do quinto porco com Jack, ficara louco assim sem mais nem menos, e atacara-o.

Era apenas sangue de porco no rosto de Jack. Perdera os sentidos ao

levar com uma tábua. Snout fora então para casa e agarrara na bebê.

Quisera usá-la como isca pa-ra se aproximar e poder usar a sua faca em

mim.

Claro que não estou a contar a versão mais fiel dos acontecimentos. Na realidade, não era Snout quem estava a fazer aquelas coisas terríveis.

Ele estava possesso e Mãe Malkin limitara-se a usar o corpo dele. Ao

cabo de algumas horas, Snout voltou a si e foi para casa intrigado e agarrado à barriga dolorida. Parecia não se lembrar de nada do que

sucedera, e nenhum de nós o quis esclarecer.

Ninguém dormiu muito naquela noite. Depois de atear um fogo forte, Ellie ficou a noite toda na cozinha e não quis deixar a bebê longe da

vista. Jack foi-se deitar para recuperar da cabeça dolorida, mas acordava

constantemente e vinha correndo para o exterior, a fim de vomitar no pátio.

Mais ou menos uma hora antes da aurora, a minha mãe chegou a casa.

Também não parecia muito satisfeita. Parecia que algo correra mal.

Peguei na mala dela para a levar para casa.

— Está bem, mãe? — perguntei. — Parece-me cansada. — Não se preocupe comigo, filho. O que aconteceu aqui? Vejo pela sua

cara que alguma coisa não está bem. — É uma longa história —

respondi. — É melhor entrarmos primeiro. Quando chegamos à cozinha, Ellie ficou tão aliviada de ver a minha mãe

que desatou a chorar e isso fez com que a bebê chorasse também. Jack

desceu então e toda a gente quis contar tudo à mãe ao mesmo tempo, mas eu desisti ao cabo de alguns segundos, pois Jack começou a falar

ruidosamente, como era seu hábito.

A minha mãe mandou-o calar rapidamente. — Baixe a voz, Jack — disse-lhe. — Esta ainda é a minha casa e não

suporto gritarias.

Ele não gostou que lhe falassem daquela maneira em frente de Ellie mas sabia que era escusado protestar.

Page 131: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Obrigou cada um de nós a contar-lhe exatamente o que acontecera,

começando por Jack. Eu fui o último e, quando chegou a minha vez, ela

mandou Ellie e Jack deitarem-se para que pudéssemos conversar a sós. Não que ela falasse muito. Limitou-se a escutar em silêncio, depois

segurou-me a mão.

Por fim, foi até ao quarto de Alice e passou muito tempo a falar a sós com ela.

O Sol havia nascido há menos de uma hora quando o Mago chegou. De

certa forma, eu estava a contar com ele. Esperou junto ao portão e eu fui lá fora, narrando de novo os acontecimentos, enquanto ele se

apoiava no bordão. Quando terminei, abanou a cabeça.

— Senti que algo estava errado, rapaz, mas cheguei tarde demais.

Mesmo assim, agiu bem. Mostrou iniciativa e conseguiu lembrar-se de

algumas das coisas que te ensinei. Se tudo o mais falhar, pode sempre

recorrer ao sal e ao ferro. — Devia ter deixado Alice queimar Mãe Malkin?

— inquiri. Ele suspirou e coçou a barba. — Como te disse, é uma coisa

cruel queimar uma bruxa e pessoalmente não concordo. — Acho que agora vou ter de enfrentar de novo Mãe Malkin — disse-lhe.

O Mago sorriu. — Não, rapaz, pode ficar descansado porque ela não

voltará a este mundo. Depois do que lhe aconteceu no fim. . Lembra-se do que te disse a respeito de comer o coração de uma bruxa? Bem, os

seus porcos fizeram-no por nós. — Não apenas o coração. Eles comeram

tudo — contrapus. — Portanto estou livre? Realmente livre? Ela não pode voltar?

— Sim, está livre de Mãe Malkin. Existem por aí outras ameaças iguais

ou piores, mas está livre, por agora. Senti um grande alívio, como se me tivesse saído um peso enorme de

cima dos ombros. Vivera num pesadelo e agora, eliminada a ameaça de

Mãe Malkin, o mundo parecia um lugar muito mais bonito e feliz. Acabara tudo, finalmente, e podia voltar a criar expectativas.

— Bem, está livre até cometer outro erro absurdo

— acrescentou o Mago. — E não diga que não vai cometer. Aquele que nunca comete um erro nunca chega a lado nenhum. Faz parte do

processo de aprendizagem. Bem, o que vamos fazer agora? —

perguntou, semicerrando os olhos para o Sol nascente. — A respeito de quê? — indaguei, curioso em saber ao que se referia.

— Da menina, rapaz — disse ele. — Parece que o poço a espera. Não

vejo outra solução. — Mas, no fim, ela salvou a bebê de Ellie — protestei. — Ela também

salvou a minha vida.

— Ela usou o espelho, rapaz. Isso é mau sinal. Lizzie ensinou-lhe muito. Demasiado. Agora ela mostrou-nos que está preparada para o usar. O

que irá fazer a seguir?

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— Mas as suas intenções foram boas. Ela usou os seus conhecimentos

para tentar encontrar Mãe Malkin.

— Pode ser, mas ela sabe demais e também é inteligente. Neste momento é apenas uma menina, mas um dia será uma mulher e uma

mulher inteligente é perigosa.

— A minha mãe é inteligente — redargui, aborrecido com o que ele dissera. — Mas também é boa. Tudo o que faz é com boas intenções. Ela

usa a inteligência para ajudar as pessoas. Um ano, era eu mesmo muito

pequeno, as imagens fantasmagóricas na Colina do Carrasco assustavam-me tanto que não conseguia dormir. A minha mãe foi lá

acima depois de escurecer e calou-as. Ficaram sossegadas durante

meses e meses.

Podia ter acrescentado que, na nossa primeira manhã juntos, o Mago me

dissera que não havia muito a fazer em relação às imagens

fantasmagóricas. E que a minha mãe provara que ele estava errado. Mas não o fiz. Já falara mais do que devia e desnecessariamente.

O Mago não disse nada. Olhava na direção da casa.

— Pergunte à minha mãe o que pensa de Alice — sugeri. — Parece dar-se bem com ela.

— Já tencionava fazê-lo — disse o Mago. — Está na hora de termos uma

conversinha. Espere aqui até terminarmos. Fiquei vendo o Mago atravessar o pátio. Antes mesmo de chegar lá, a

porta da cozinha abriu-se e a minha mãe veio recebê-lo à soleira.

Mais tarde, foi possível apurar algumas das coisas que tinham dito um ao outro, mas conversaram durante cerca de meia hora e nunca cheguei

a descobrir se as imagens fantasmagóricas tinham feito parte da

conversa. Quando o Mago saiu finalmente para a luz do Sol, a minha mãe ficou na

porta. Ele fez então algo invulgar —

algo que nunca o vira fazer. A princípio, julguei que tivesse baixado a cabeça à mãe ao despedir-se, mas houve algo mais naquele gesto.

Houve também um movimento dos ombros. Foi ligeiro mas muito nítido,

pelo que não restavam quaisquer dúvidas. Quando se despediu da minha mãe, o Mago fez-lhe uma pequena vênia.

Enquanto atravessava o pátio direto a mim, parecia sorrir de si para si.

— Vou voltar para Chipenden agora — disse —, mas acho que a sua minha mãe gostaria que ficasses mais uma noite. Seja como for, deixo

isso ao seu critério —

afirmou o Mago. — Ou traz a menina de volta e a prendemos no poço, ou levá-la à tia em Staumin. A escolha é sua. Use o seu instinto para

tomar a decisão certa. Saberá o que fazer.

Depois foi-se embora, deixando-me com a cabeça a andar à roda. Sabia o que pretendia fazer em relação a Alice, mas tinha de ser a atitude

certa.

Page 133: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Então, fui comer outra das ceias da minha mãe.

O meu pai regressara entretanto, mas, apesar de a minha mãe ficar

satisfeita de o ver, havia algo que não estava muito bem, uma espécie de atmosfera, como uma nuvem invisível a pairar sobre a mesa.

Portanto, não foi propriamente uma festa de comemoração e ninguém

falou muito. No entanto, a comida estava boa, um dos guisados especiais da minha

mãe, pelo que não me ralei com a falta de conversa — estava demasiado

ocupado a encher a barriga e a servir-me segunda vez antes que Jack tivesse tempo de limpar o prato.

O apetite de Jack voltara, mas ele estava um bocado acabrunhado, tal

como os demais. Passara por muito, tinha um galo enorme na testa a

prová-lo. Quanto a Alice, não lhe contara o que o Mago dissera, mas

achava que ela devia saber, ainda assim. Não abriu a boca uma só vez

durante o jantar. Mas a mais calada de todos era Ellie. Apesar da alegria de ter de volta a bebê, o que vira deixara-a muito

transtornada e calculei que fosse demorar algum tempo a recompor-se.

Quando os outros se foram deitar, a minha mãe pediu-me que ficasse. Sentei-me junto à lareira na cozinha, tal como fizera na noite que

antecedera a minha partida para ir iniciar o aprendizado. Mas algo no

rosto dela me disse que esta conversa ia ser diferente. Antes, ela mostrara-se firme comigo, mas esperançada. Confiante de que tudo iria

correr bem. Agora parecia triste e cheia de dúvidas.

— Há quase vinte e cinco anos que trago bebês a este mundo no Condado — disse, sentando-se na sua cadeira de balanço —, e perdi

alguns. Apesar de ser muito triste para a mãe e o pai, é apenas algo que

acontece. Acontece aos animais da fazenda, Tom. Você próprio o viu. Anuí. Todos os anos nasciam alguns carneiros mortos. Era algo com que

se contava.

— Desta vez foi pior — disse a minha mãe. — Desta vez, tanto a mãe como o bebê morreram, algo que nunca me

acontecera. Conheço as ervas certas e sei como misturá-las. Sei como

tratar uma hemorragia grave. Sei exatamente o que fazer. E esta mulher era jovem e forte.

Ela não devia ter morrido, mas não a consegui salvar. Fiz tudo o que

podia, mas não a consegui salvar. E isso causou-me uma dor aqui. Uma dor no coração.

A minha mãe soltou uma espécie de soluço e agarrou o peito. Por um

momento horrível, pensei que fosse chorar, mas depois ela respirou fundo e a força voltou-lhe ao rosto.

— Mas os carneiros morrem, mãe, e às vezes as vacas, quando parem —

disse-lhe. — Uma mãe acaba por estar sujeita a morrer. É um milagre que tenha passado tanto tempo sem que isso lhe acontecesse.

Esforcei-me ao máximo, mas foi difícil consolá-la.

Page 134: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

A minha mãe estava a encarar muito mal a realidade. Fazia-a ver o lado

negro da vida.

— Está ficando mais escuro, filho — disse-me. — E está a suceder mais depressa do que eu contava. Tinha esperança de

que primeiro se tornasse um homem, com anos de experiência em cima.

Por isso, vai ter de escutar com atenção tudo o que o seu mestre disser. A menor coisa contará. Vai ter de se preparar o mais rapidamente

possível e trabalhar com afinco nas suas lições de latim.

Fez então uma pausa e estendeu a mão. — Deixa-me ver o livro. Quando lhe entreguei, ela folheou as páginas, parando de vez em

quando para ler algumas linhas. — Ajudou-lhe? — inquiriu.

— Nem por isso — admiti.

— Foi o seu mestre que o escreveu. Ele lhe contou? Abanei a cabeça. —

Alice disse que fora escrito por um padre.

A minha mãe sorriu. — O seu mestre já foi padre. Foi assim que começou. Certamente um dia ele lhe contará. Mas não lhe

pergunte. Deixe que ele te conte quando achar que é o momento certo.

— Do que foi que a senhora falou com Mr. Gregory? — perguntei. — Disso e de outras coisas, mas principalmente de Alice. Ele perguntou-

me o que eu achava que lhe devia acontecer. Disse-lhe que deixasse isso

com você. Então, já se decidiu? Encolhi os ombros. — Ainda não sei bem o que fazer, mas Mr. Gregory

disse que eu deveria usar os meus instintos.

— É um bom conselho, filho — disse a minha mãe. — Mas o que acha a mãe? — perguntei. — O que foi que disse a Mr.

Gregory sobre Alice? Ela é uma bruxa?

Pelo menos conte-me isso. — Não — a minha mãe respondeu lentamente, medindo as palavras com

cuidado. — Ela não é uma bruxa, mas será um dia. Nasceu com o

coração de uma bruxa e não lhe resta senão seguir esse caminho. — Nesse caso, deveria ir para o poço em Chipenden? — afirmei com

pesar, abanando a cabeça.

— Lembre-se das suas lições. — A minha mãe falou de forma austera. — Lembre-se do que o seu mestre te ensinou. Existe mais do que um tipo

de bruxa.

— As «benévolas» — disse eu. — Está me dizendo que Alice pode vir a ser uma bruxa boa que ajuda os outros?

— Pode ser que sim. E pode ser que não. Sabe o que acho mesmo? É

capaz de não querer ouvir isto. — Quero — afirmei.

— Alice pode acabar por não ser nem boa nem má.

Pode vir a ficar em algum lugar no meio. E isso faria com que fosse muito perigoso conhecê-la. Aquela menina pode ser a desgraça da sua

vida, uma praga, um veneno em tudo o que fizer. Ou pode vir a revelar-

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se a melhor e mais forte amiga que alguma vez terá. Alguém que fará

toda a diferença no mundo. Só não sei para que lado penderá. Não

consigo ver, por mais que me esforce. — Mas como poderia vê-lo, mãe? — inquiri. —

Mr. Gregory disse que não acredita em profecias. Ele disse que o futuro

não está determinado. A minha mãe apoiou uma mão no meu ombro e apertou-o ligeiramente

para me encorajar. — Todos nós temos algumas escolhas em aberto —

disse. — Mas talvez uma das decisões mais importantes que alguma vez venhas a tomar seja em relação a Alice. Agora vá se deitar e dorme

bem, se puder. Tome a decisão amanhã, quando o sol brilhar. Uma coisa

que não perguntei à mãe foi como conseguira silenciar as imagens

fantasmagóricas na Colina do Carrasco. Novamente os meus instintos.

Sabia apenas que era algo de que ela não iria querer falar. Numa família,

há coisas que não se perguntam. Sabemos que nos contarão quando chegar o momento certo.

Partimos pouco depois da aurora, o meu coração aos pés.

Ellie seguiu-me até ao portão. Parei ali mas fiz sinal a Alice para que continuasse e ela foi subindo vagarosa-mente a colina, sacudindo o

quadril, sem olhar sequer uma vez para trás.

— Preciso de te dizer algo, Tom — começou Ellie. — Custa-me fazê-lo, mas tem mesmo de ser.

Notei pela voz dela que ia ser mau. Anuí, muito infeliz, e fiz um esforço

para fitá-la nos olhos. Fiquei chocado ao ver que estavam marejados de lágrimas.

— Continua a ser bem-vindo aqui, Tom — disse Ellie, afastando o cabelo

da testa e tentando sorrir. — Isso não mudou. Mas temos de pensar na nossa filha. Portanto, é bem-vindo aqui, mas não depois de escurecer.

Sabe, é por esse motivo que Jack tem andado tão mal-humorado. Não

queria te dizer o quanto isso o incomoda, mas agora tem de saber. Não lhe agrada nada a sua atividade. Nem um pouco. Deixa-o arrepiado. E

ele teme pela bebê.

— Estamos assustados, percebe? Receamos que, se alguma vez estiver aqui depois de escurecer, possa atrair algo mais. É capaz de trazer

consigo algo mau e não podemos correr o risco de acontecer alguma

coisa à nossa família. Venha visitar-nos durante o dia, Tom. Venha ver-nos quando o Sol tiver nascido e as aves estiverem a cantar. Ellie

abraçou-me e isso só piorou tudo. Sabia que surgira algo entre nós e

que tudo mudara para sempre. Queria chorar, mas me contive. Tinha um grande nó na garganta e não

consegui falar.

Vi Ellie voltar para a casa da fazenda e tornei a centrar a minha atenção na decisão que tinha de tomar.

O que iria fazer com Alice?

Page 136: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Acordara convicto de que era meu dever levá-la comigo para Chipenden.

Parecera-me a atitude certa a tomar. E a mais segura também. Sentia-o

como um dever. Quando dera os bolos à Mãe Malkin, deixara-me dominar pela brandura

do meu coração. E vejam onde isso me levara. Portanto, o melhor era

tratar já de Alice, antes que fosse tarde demais. Como dissera o Mago, tinha de pensar nos inocentes que poderiam vir a ser prejudicados no

futuro.

No primeiro dia de viagem não falamos muito um com o outro. Disse-lhe que íamos voltar para Chipenden, para ver o Mago. Se Alice desconfiava

do que lhe ia acontecer, o certo é que não se queixou. Depois, no

segundo dia, ao aproximarmo-nos da aldeia e vermos já as vertentes

mais baixas das colinas rochosas, a não mais de quilômetro e meio da

casa do Mago, contei a Alice o que guardava bem guardado dentro de

mim; o que me andava a preocupar desde que me apercebera do que continham os bolos. Estávamos sentados na orla verdejante junto à

beira da estrada. O Sol pusera-se e a claridade começava a diminuir. —

Alice, costuma mentir? — perguntei. — Todo mundo mente às vezes — respondeu. —

Não serias humano se não o fizesse. Mas a maior parte das vezes digo a

verdade. — E na noite em que estava preso no poço?

Quando te perguntei sobre aqueles bolos. Você disse que não havia

outra criança em casa de Lizzie. Isso era verdade? — Não vi nenhuma. — A primeira que desapareceu ainda era bebê. Não

podia ter-se afastado sozinha. Tem certeza?

Alice anuiu e depois baixou a cabeça, olhando para a erva. — Acho que podia ter sido levada pelos lobos —

referi. — Foi o que os rapazes da aldeia pensaram.

— Lizzie disse que vira lobos por estas bandas. Pode ter sido isso — concordou Alice.

— E então os bolos, Alice? O que continham?

— Sobretudo sebo e bocados de carne de porco. Miolo de pão também.

— E então o sangue? O sangue animal não teria servido a Mãe Malkin.

Ela precisava de força suficiente para dobrar as barras por cima do poço. De onde veio então o sangue, Alice, o sangue que foi usado nos bolos?

Alice começou a chorar. Esperei pacientemente que terminasse, depois

voltei a fazer a pergunta. — Então, de onde veio?

— Lizzie disse que eu ainda era uma criança —

contou Alice. — Elas tinham usado o meu sangue imensas vezes. Por isso, mais uma não teria importância. Não doía tanto assim. Quando já

se acostumou. . E, diga-me, como podia eu impedir Lizzie?

Page 137: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Então, Alice subiu a manga e mostrou-me o braço.

Havia ainda luz suficiente para ver as cicatrizes. E eram bastantes —

algumas antigas, outras relativamente recentes. A mais recente de todas ainda não sarara por completo. Ainda exsudava.

— E há mais do que estas. Muitas mais. Mas não posso mostrá-las todas

— acrescentou Alice. Não soube o que dizer, de modo que fiquei calado.

Mas tomara já a decisão e não tardamos a mergulhar no escuro,

afastando-nos de Chipenden. Resolvera levar Alice diretamente para Staumin, onde morava a tia. Não

suportava a idéia de ela acabar num poço no jardim do Mago. Era

simplesmente horrível demais — e lembrei-me de outro poço. Lembrei-

me de que Alice me ajudara a sair do poço de Tusk precisamente antes

de Lizzie ter vindo buscar os meus ossos. Mas, acima de tudo, o que

Alice acabara de me contar é que me fez finalmente mudar de idéia. Ela fora já um dos inocentes. Alice também fora uma vítima.

Subimos Parlick Pike e depois dirigimo-nos para Blindhurst Fel , mais a

norte, mantendo-nos sempre nas terras altas. Agradava-me a idéia de ir a Staumin. Ficava perto do mar e eu nunca

tinha visto o mar, exceto do alto das colinas. O percurso que escolhi

desviava-se um pouco do caminho, mas gostava de explorar e de estar ali em cima, perto do Sol. Pelo menos Alice não parecia importar-se nem

um pouco.

Foi uma viagem agradável e apreciei a companhia de Alice e, pela primeira vez, começamos realmente a falar. Ela também me ensinou

muito. Conhecia os nomes de mais estrelas do que eu e tinha muito jeito

para apanhar coelhos. Em matéria de plantas, Alice era perita em aspectos que o Mago não

mencionara sequer até ali, como por exemplo as tóxicas beladona e

mandrágora. Não acreditei em tudo o que ela disse, mas anotei-o ainda assim, porque ela fora ensinada por Lizzie e pareceu-me útil saber aquilo

em que uma bruxa acredita. Alice sabia perfeitamente distinguir os

cogumelos comestíveis dos venenosos, alguns dos quais eram tão perigosos que uma dentada podia fazer-nos parar o coração ou levar à

loucura. Tinha comigo o livro de notas e, dando-lhe o título de

«Botânica», acrescentei mais três páginas de informações úteis. Uma noite, quando estávamos a menos de um dia de caminho de

Staumin, instalamo-nos numa clareira da floresta. Tínhamos acabado de

cozinhar dois coelhos nas brasas de uma fogueira até a carne quase se desfazer nas nossas bocas. Após a refeição, Alice fez algo realmente

estranho. Depois de se virar para mim, debruçou-se e segurou-me a

mão. Ficamos sentados assim durante muito tempo, ela a olhar para as brasas

da fogueira e eu para as estrelas. Não queria me soltar, mas sentia-me

Page 138: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

completamente encabulado. A minha mão esquerda segurava a

esquerda dela e senti-me culpado. Senti-me como se estivesse a dar a

mão ao escuro e soubesse que o Mago não iria gostar. Era-me impossível ignorar a verdade. Um dia, Alice iria ser uma bruxa.

Foi então que percebi que a minha mãe tinha razão. Não tinha nada a

ver com profecias. Conseguia vê-lo nos olhos de Alice. Ela estaria sempre em algum lugar no meio, nem totalmente boa nem totalmente

má. Mas isso não se aplicava a todos nós? Não havia ninguém perfeito.

Resolvi não retirar a mão. Fiquei ali sentado, uma parte de mim a gostar de lhe segurar a mão, o que até era reconfortante depois de tudo o que

acontecera, enquanto a outra parte estava cheia de remorsos.

Foi Alice quem se soltou. Tirou a sua mão da minha e depois tocou no

meu braço, no lugar onde as unhas dela se haviam cravado na noite em

que tínhamos destruído Mãe Malkin. Podiam ver-se as cicatrizes com o

brilho das brasas. — Deixei-te aqui a minha marca — disse ela com um sorriso. — Nunca

irá desaparecer.

Pareceu-me algo estranho de se dizer e não percebi muito bem onde ela queria chegar. Lá na fazenda, marcávamos o gado. Fazíamo-lo para

mostrar que nos pertencia e para evitar que os animais tresmalhados se

misturassem com os das propriedades vizinhas. Mas como podia eu pertencer a Alice?

No dia seguinte, descemos a uma extensa planície.

Parte dela era terra pantanosa e, nos piores troços, pântano alagado, mas acabamos por dar com o caminho para Staumin. Nunca cheguei a

ver a tia dela, pois não quis sair para me cumprimentar. Mesmo assim,

concordou em receber Alice, pelo que não podia me queixar. Havia um rio grande e largo ali perto e, antes de partir para Chipenden,

descemos pela sua margem até ao mar. Não fiquei muito contente ao

vê-lo. Estava um dia cinzento e ventoso e a água era da mesma cor do céu e as suas ondas, grandes e tumultuosas.

— Vai ficar bem aqui — disse-lhe, tentando mostrar-me animado. —

Deve ser bonito com sol. — Tentarei tirar o melhor partido — respondeu Alice. — Não pode ser

pior do que Pendle.

De repente, tive novamente pena dela. Às vezes, sentia-me sozinho, mas sempre podia conversar com o Mago; Alice nem sequer conhecia

bem a tia e o mar encapelado fazia com que tudo parecesse ermo e frio.

— Olha, Alice, não conto que voltemos a nos ver, mas se alguma vez precisar de ajuda, mande-me um recado — prontifiquei-me.

Acho que o disse porque Alice era o mais próximo de um amigo que eu

tinha. E como promessa, não era tão tola quanto a primeira que lhe fizera. Não estava efetiva-mente a comprometer-me com nada. Da

próxima vez que ela pedisse algo, falaria primeiro com o Mago. Para

Page 139: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

surpresa minha, Alice sorriu e ficou com uma expressão estranha no

olhar. Lembrei-me do que o meu pai dissera uma vez, a respeito de as

mulheres saberem coisas que os homens desconhecem — e quando suspeitávamos de tal, nunca deveríamos perguntar no que elas estavam

a pensar.

— Oh, voltaremos a encontrar-nos — respondeu Alice. — Não tenho quaisquer dúvidas a esse respeito.

— Agora tenho de ir andando — disse-lhe, virando-me para partir.

— Vou sentir a sua falta, Tom — declarou Alice. — Não será o mesmo sem você.

— Também sentirei a sua falta, Alice — respondi, sorrindo-lhe.

Quando as palavras me saíram, pensei que as dissera por uma questão

de cortesia. Mas, não estava na estrada há mais de dez minutos quando

percebi que me enganara.

Cada palavra fora intencional e sentia-me já sozinho. Recorri sobretudo à memória para narrar estes acontecimentos, mas uma parte consta do

meu livro de notas e do meu diário. Já me encontro de volta a

Chipenden e o Mago está satisfeito comigo. Acha que estou a fazer bons progressos.

Lizzie dos Ossos está no poço onde o Mago tinha preso a Mãe Malkin. As

barras foram endireitadas e certamente ela não vai receber de mim quaisquer bolos à meia-noite. Quanto a Tusk, encontra-se sepultado no

buraco que cavou para minha sepultura.

O pobre Bil y Bradley voltou para o seu jazigo do lado de fora do cemitério de Layton, mas, pelo menos, conseguiu recuperar os seus

polegares. Nada disto é agradável mas é algo que faz parte do ofício.

Mesmo que não gostemos, temos de fazê-lo, como diz o meu pai. Há algo mais que lhes deveria contar. O Mago concorda com o que a

minha mãe disse. Acha que os Invernos estão a ficar mais longos e o

escuro a ganhar mais força. Tem a certeza de que o ofício será cada vez mais difícil.

Para que nunca me esqueça disso, vou continuar a estudar e a aprender

— como me disse uma vez a minha mãe, se não tentarmos, nunca saberemos do que somos capazes. Por isso vou tentar. Estou a esforçar-

me ao máximo, porque quero que ela se orgulhe realmente de mim.

Neste momento não passo de um aprendiz, mas um dia serei o Mago.

Thomas J. Ward

Fim

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AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Livro II A MALDIÇÃO DO MAGO

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CAPÍTULO 1

O ESTRIPADOR DE HORSHAW

Quando ouvi o primeiro grito, virei-me e tapei os ouvidos com as mãos,

pressionando com força até me doer a cabeça. Naquele momento, não

podia fazer nada para ajudar. Mas ainda o conseguia ouvir, os sons

produzidos por um padre que estava a ser atormentado, e prolongou-se

por muito tempo antes de finalmente cessar.

Fiquei então a tremer no celeiro escuro, ouvindo a chuva tamborilar no

telhado, tentando encher-me de coragem. Era uma noite má e só podia

piorar.

Passados dez minutos, quando o aparelhador e o ajudante chegaram,

corri para me encontrar com eles à porta. Eram ambos homens grandes

e eu mal lhes chegava aos ombros.

— Bem, rapaz, onde está Mr. Gregory? — perguntou o aparelhador, com

uma pontinha de impaciência na voz. Levantou a lanterna que segurava

e olhou à sua volta com desconfiança. Possuía uns olhos astutos e

inteligentes. Nenhum dos homens tinha ar de quem fosse tolerar

qualquer disparate.

— Ele tem estado bastante indisposto — respondi, tentando controlar os

nervos que faziam com que a voz me saísse fraca e trêmula. — Ele tem

estado de cama com uma febre alta nesta última semana, por isso

mandou-me no lugar dele. Sou Tom Ward. O aprendiz dele.

O aparelhador olhou-me de alto a baixo rapidamente, como um agente

funerário a tirar-me as medidas para futuro negócio. Depois arqueou

tanto um sobrolho que este desapareceu debaixo da aba do seu boné,

que pingava ainda da chuva.

— Bem, Mr. Ward — disse ele, um tom cortante de sarcasmo na sua voz

—, aguardamos as suas instruções. Levei a mão ao bolso das calças e

retirei um esboço que o pedreiro fizera. O aparelhador colocou a lanterna

no chão de terra e depois, com um abanar cansado da cabeça e uma

troca de olhares com o ajudante, aceitou o esboço e começou a

examiná-lo.

As instruções do pedreiro indicavam as dimensões do poço que tinha de

ser aberto, e as medidas da pedra que seria colocada sobre ele.

Page 143: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Após alguns momentos, o aparelhador voltou a abanar a cabeça e

ajoelhou ao lado da lanterna, segurando o papel muito próximo dela.

Quando se pôs em pé, tinha o cenho carregado. — O poço deveria ter

dois metros e setenta de profundidade — referiu ele. — Aqui diz apenas

um metro e oitenta.

O aparelhador percebia sem dúvida do ofício. O

poço normal para um demônio tem um metro e oitenta de profundidade,

mas para um Estripador, o demônio mais perigoso de todos, a norma

são dois metros e setenta. Estávamos sem dúvida em presença de um

estripador — os gritos do padre constituíam prova disso —, mas não

havia tempo para escavar dois metros e setenta.

— Terá de servir — respondi. — Deverá estar pronto pela manhã, senão

será tarde demais e o padre morrerá.

Até àquele momento tinham-se mostrado dois homens grandes calçando

botas grandes, a destilar confiança por todos os poros. Agora, de

repente, pareciam nervosos.

Estavam a par da situação pelo bilhete que eu lhes mandara a convocá-

los para o celeiro. Usara o nome do Mago para me certificar de que

vinham prontamente.

— Sabe o que está fazendo, rapaz? — inquiriu o aparelhador. — Está à

altura do trabalho?

Olhei-o diretamente nos olhos e esforcei-me por não pestanejar.

— Acho que não comecei nada mal — respondi.

— Contratei os melhores aparelhador e ajudante do Condado.

Tinham sido as palavras certas e estampou-se um largo sorriso no rosto

do aparelhador. — Quando é que chega a pedra? — perguntou.

— Bem, antes da alvorada. O pedreiro vai trazê-la pessoalmente. Temos

de estar a postos.

O aparelhador anuiu. — Siga então na frente, Mr.

Ward. Mostre-nos onde quer que cavemos.

Desta vez não houve sarcasmo na voz dele. Tinha um tom profissional.

Queria o trabalho despachado. Todos nós pretendíamos o mesmo, e o

tempo era escasso, por isso puxei o capuz para cima e, segurando o

bordão do Mago na mão esquerda, segui na frente sob a chuva fria e

forte.

A carroça de duas rodas deles estava lá fora, o equipamento coberto

com uma lona impermeabilizada, o cavalo paciente entre os varais

fumegando à chuva.

Page 144: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Atravessamos o campo enlameado, depois seguimos a sebe de

espinheiro negro até ao local onde escasseava, por debaixo dos ramos

de um carvalho antigo nos limites do adro da igreja. O poço teria de ficar

perto do solo sagrado, mas não perto demais. As sepulturas mais

próximas ficavam apenas à distância de vinte passos.

— Abra o poço o mais perto que puder daquilo —

disse-lhe, apontando na direção do tronco da árvore.

Sob o olhar atento do Mago, eu abrira muitos poços experimentais.

Numa emergência, teria sido eu próprio a efetuar o serviço, mas estes

homens eram peritos e trabalhavam com celeridade.

Enquanto foram buscar as ferramentas, afastei a sebe e passei por entre

as lápides em direção à velha igreja.

Encontrava-se bastante degradada: faltavam telhas no telhado e há anos

que não via uma pintura. Abri a porta lateral, que cedeu com um gemido

e uma chiado.

O velho padre mantinha-se na mesma posição, deitado de costas

próximo do altar. A mulher encontrava-se ajoelhada no chão perto da

cabeça dele, a chorar. A única diferença agora era que a igreja estava

toda iluminada. Ela recorrera à reserva de velas da sacristia e acendera-

as todas. Havia pelo menos uma centena, aglomeradas em grupos de

cinco ou seis. Colocara-as nos bancos, no chão e nos parapeitos das

janelas, mas a maioria encontrava-se no altar.

Quando fechei a porta, soprou uma rajada de vento dentro da igreja e as

chamas tremularam todas. Ela levantou a cabeça na minha direção, o

rosto banhado de lágrimas. — Ele está morrendo — disse, a sua voz

ecoando cheia de angústia. — Por que levou tanto tempo a chegar aqui?

Desde que a mensagem nos chegara a Chipenden, eu demorara dois

dias a alcançar a igreja. Eram mais de cinquenta quilômetros até

Horshaw e eu não partira de imediato. A princípio, o Mago, ainda doente

demais para sair da cama, recusara-se a deixar-me ir.

Normalmente, o Mago nunca manda os aprendizes efetuar um trabalho

sozinho enquanto ele não os tiver preparado durante pelo menos um

ano. Eu acabara de completar treze anos e era aprendiz dele há menos

de seis meses. Era uma atividade difícil e assustadora, que envolvia com

frequência lidar com aquilo que chamamos «o escuro». Eu estivera a

aprender a lidar com bruxas, fantasmas, demônios e coisas que

aparecem à noite. Mas estaria preparado para isto?

Page 145: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Era necessário aprisionar um demônio e, se feito como devia ser, seria

bastante simples. Eu vira já o Mago fazê-lo duas vezes. De cada uma

delas, contratara bons homens para ajudarem na tarefa e correra tudo

sem problemas. Mas este trabalho era um pouco diferente. Havia

complicações.

Sabem, é que o padre era irmão do próprio Mago.

Eu vira-o apenas uma vez quando tínhamos estado de visita a Horshaw

na Primavera. Ele deitara-nos um olhar fuzilante e fizera um enorme

sinal da cruz no ar, o seu rosto distorcido pela raiva. O Mago nem sequer

olhara na direção dele porque sempre se haviam detestado e não se

falavam há mais de quarenta anos. Mas o sangue falava mais forte e ele

acabou por me enviar a Horshaw.

— Padres! — bradara o Mago. — Por que não se limitam àquilo que

sabem fazer? Por que têm sempre de interferir? Qual era a idéia dele, ao

tentar enfrentar um estripador? Deixem-me fazer o meu trabalho e os

outros que façam o seu.

Por fim acalmara-se e passara horas a dar-me instruções

pormenorizadas sobre o que havia a fazer e indicando-me os nomes e

moradas do aparelhador e do pedreiro que eu tinha de contratar.

Chamara também um médico, insistindo que só ele serviria. Eis outra

contrariedade, porque o médico vivia a alguma distância. Tive de

mandar recado e só esperava que ele viesse imediatamente.

Olhei para a mulher, que limpava delicadamente a testa do padre com

um pano. O seu cabelo branco, liso e engordurado fora afastado do rosto

e revirava os olhos febrilmente. Não chegara a saber que a mulher

pedira a ajuda do Mago. Se assim fosse, ter-se-ia oposto, por isso ainda

bem que ele não me conseguia ver naquele momento. As lágrimas

escorriam dos olhos da mulher e brilhavam à luz das velas. Era a

governanta, nem sequer da família, e lembro-me de pensar que ele

devia ser realmente muito bom para ela estar tão transtornada.

— O médico não tarda a chegar — disse-lhe —, e ele vai dar-lhe algo

para as dores.

— Toda a vida sofreu — respondeu-me ela. —

Também tenho sido um grande incômodo para ele. Vive apavorado com

a idéia da morte. Ele é um pecador e sabe o que o espera.

O que quer que fosse que tivesse feito, o velho padre não merecia isto.

Ninguém merecia. Era sem dúvida um homem corajoso. Ou corajoso, ou

muito estúpido.

Page 146: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Quando o demônio começara a fazer das suas, ele tentara enfrentá-lo

sozinho usando as ferramentas de um padre: o sino, o livro e a vela.

Mas não é assim que se lida com o escuro. Na maior parte dos casos não

teria feito diferença, porque o demônio limitar-se-ia a ignorar o padre e

o seu exorcismo. Ele acabaria por se ir embora e o padre, como sucede

com frequência, ficaria com os louros.

Mas este era o tipo de demônio mais perigoso que temos de enfrentar.

Normalmente, chamamos-lhes «estripadores de gado» por causa da sua

dieta principal, mas quando o padre começara a interferir, ele é que

passara a ser a vítima. Era agora um «estripador» plenamente

desenvolvido com gosto por sangue humano e o padre teria muita sorte

se conseguisse escapar com vida.

Havia uma fenda no chão lajeado, uma fenda em ziguezague que vinha

da base do altar até cerca de três passos para além do padre. No seu

ponto mais largo era mais um abismo e tinha quase meio palmo de

largura.

Depois de fender o chão, o demônio agarrara o padre pelo pé e arrastara

a sua perna para dentro do solo quase até ao joelho. Agora, lá em baixo

no escuro, sugava-lhe o sangue, retirando-lhe a vida muito lentamente.

Era como uma sanguessuga grande e gorda, mantendo a vítima o

máximo possível para prolongar o seu próprio prazer.

O que quer que eu fizesse, seria muito difícil prever se o padre

sobreviveria. De qualquer das formas, eu tinha de aprisionar o demônio.

Agora que provara sangue humano, já não se contentaria em estripar

gado.

— Salve-o, se puder — pedira o Mago, quando me preparava para partir.

— Mas, independentemente do que possa fazer, certifique-se de que

trate do demônio. É esse o seu primeiro dever.

Comecei a efetuar os meus próprios preparativos.

Deixando que o ajudante do aparelhador continuasse a abrir o poço,

voltei para o celeiro na companhia do próprio aparelhador. Ele sabia o

que tinha a fazer: em primeiro lugar, deitou água no balde grande que

tinham trazido com eles. Eis uma vantagem de trabalhar com pessoas

experientes na matéria: providenciavam o equipamento pesado. Era um

balde forte, feito de madeira, unido com aros de metal e com capacidade

suficiente para fazer face até mesmo a um poço com três metros e

sessenta de profundidade.

Page 147: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Depois de enchê-lo quase até a metade com água, o aparelhador

começou a deitar um pó castanho de um saco grande que trouxera da

carroça. Foi deitando um pouco de cada vez e depois, após cada adição,

começou a mexer com um pau grosso.

Não tardou a tornar-se um trabalho árduo pois, muito gradualmente, a

mistura transformou-se numa substância viscosa que foi sendo cada vez

mais difícil de mexer. Além disso cheirava mal, como algo que estava

morto há semanas, o que não surpreendia realmente, atendendo a que o

conteúdo principal do pó era osso triturado. O resultado final seria uma

cola muito forte, e quanto mais o aparelhador a mexia, mais suava e

arfava. O Mago preparava sempre a sua própria cola, e obrigara-me a

exercitar, mas o tempo urgia e o aparelhador possuía músculos para a

tarefa. Sabendo isso, começara a trabalhar sem que fosse necessário

pedir-lhe.

Quando a cola ficou pronta, comecei a acrescentar limalhas de ferro e sal

dos sacos muito menores que trouxera comigo, mexendo lentamente

para garantir que se espalhavam uniformemente na mistura. O ferro é

perigoso para um demônio porque lhe retira a força, ao passo que o sal

o queima. Assim que um demônio se encontra no poço, permanecerá lá

porque a parte inferior da pedra e os lados do poço são cobertos com a

mistura, obrigando-o a encolher-se e a ficar dentro dos limites do espaço

interior. Claro que o problema principal reside em atrair o demônio ao

poço.

De momento, eu não estava preocupado com isso.

Por fim, o aparelhador e eu demo-nos por satisfeitos. A cola estava

pronta.

Como o poço ainda não ficara concluído, eu não podia fazer nada a não

ser esperar pelo médico na viela estreita e torta que conduzia a

Horshaw.

A chuva parara e o ar parecia muito calmo. Estava-se em finais de

Setembro e o tempo começara a piorar.

Em breve iríamos ter mais do que apenas chuva, e o primeiro ribombar

súbito de um trovão a oeste deixou-me ainda mais nervoso. Passados

cerca de vinte minutos ouvi o som de cascos ao longe. Cavalgando como

se todos os cães do Inferno o perseguissem, o médico apareceu na

curva, o seu cavalo a pleno galope, a capa a esvoaçar atrás dele.

Eu empunhava o bordão do Mago pelo que foram desnecessárias as

apresentações e, em qualquer dos casos, o médico viera tão depressa

Page 148: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

que estava sem fôlego. Por isso, limitei-me a baixar-lhe a cabeça e ele

deixou o seu cavalo suado a mastigar a erva alta na frente da igreja e

seguiu-me até à porta lateral. Mantive-a aberta por uma questão de

respeito para que ele pudesse entrar primeiro.

O meu pai ensinara-me a ter respeito por toda a gente, porque só assim

nos poderiam também respeitar.

Eu não conhecia este médico, mas o Mago insistira nele, por isso tive a

certeza de que seria bom no que fazia.

Chamava-se Sherdley e trazia uma maleta de couro preto.

Parecia quase tão pesada quanto o saco do Mago, que trouxera comigo e

deixara no celeiro. Pousou-a a cerca de um metro e oitenta do paciente

e, ignorando a governanta, que continuava a soluçar em seco, iniciou o

seu exame.

Eu fiquei mesmo atrás dele e para um dos lados de modo a que pudesse

ter a melhor visão possível. Delicadamente, levantou a sotaina preta do

padre expondo-lhe as pernas.

A perna direita era magra, branca e quase sem pêlos mas a esquerda,

aquela que o demônio agarrava, estava vermelha e inchada, com veias

roxas salientes que escureciam à medida que se aproximavam da

enorme fenda no chão. O médico abanou a cabeça e expirou muito

devagar. Quando falou com a governanta, a sua voz era tão baixa que

mal se percebiam as palavras.

— Vai ter de ser cortada — disse. — É a única esperança dele. — Ante

aquilo, as lágrimas começaram a descer novamente pelas faces dela e o

médico olhou para mim e apontou para a porta. Uma vez lá fora,

encostou-se à parede e suspirou.

— Quanto tempo até estar preparado? — indagou.

— Menos de uma hora, Doutor — respondi —, mas depende do pedreiro.

Ele ficou de trazer a pedra pessoalmente.

— Se demorar muito mais, vamos acabar por perdê-lo. A verdade é que

também não alimento muitas esperanças em relação a ele. Nem sequer

lhe posso dar nada para as dores no momento, porque o seu organismo

não irá aguentar duas doses e terei de lhe ministrar algo mesmo antes

de amputar. Ainda assim, o choque poderia matá-lo imediatamente. O

fato de termos de transferi-lo logo a seguir só vem agravar a situação.

Encolhi os ombros. Nem sequer me agradava pensar no assunto.

— Sabe exatamente o que se tem de fazer? — perguntou o médico,

observando o meu rosto com atenção.

Page 149: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Mr. Gregory explicou-me tudo — respondi, tentando mostrar-me

confiante. Na verdade, o Mago não me explicara apenas uma vez, fizera-

o pelo menos uma dúzia de vezes. A seguir, obrigara-me a repetir-lhe

tudo sucessivamente até se dar por satisfeito.

— Há cerca de quinze anos, tivemos de lidar com um caso semelhante —

referiu o médico. — Fizemos o que podíamos, mas o homem morreu

mesmo assim e era um jovem agricultor, forte como um touro e na

primavera da vida. Torçamos por sorte. Às vezes os velhotes são muito

mais rijos do que se pensa.

Seguiu-se um longo silêncio, que interrompi confirmando algo que me

andava a preocupar.

— Nesse caso sabe que vou precisar de um pouco do sangue dele.

— Quando você nasceu eu já andava aqui há muitos anos — resmungou

o médico, depois esboçou-me um sorriso cansado e apontou para a viela

na direção de Horshaw. — Vem aí o pedreiro, por isso é melhor ir fazer o

seu serviço. Deixe que eu encarrego-me do resto.

Pus-me à escuta e ouvi o som distante de uma carroça a aproximar-se,

de modo que voltei a passar pelas lápides para ver como se estavam a

sair os aparelhadores.

O poço estava pronto e tinham já montado a plataforma de madeira

debaixo da árvore. O ajudante do aparelhador subira à árvore e estava a

fixar o cadernal e a roldana num ramo forte. Era um dispositivo do

tamanho da cabeça de um homem, feito de ferro, de onde pendiam

correntes e um gancho grande. Iríamos necessitar de sustentar o peso

da pedra e posicioná-la com muito rigor.

— Chegou o pedreiro — anunciei.

Imediatamente, ambos os homens deixaram o que estavam a fazer e

seguiram-me na direção da igreja.

Havia agora outro cavalo à espera na viela, a pedra assente na traseira

da carroça. Até aqui, tudo bem, mas o pedreiro não tinha um ar muito

satisfeito e evitou os meus olhos. Mesmo assim, sem perdermos tempo,

trouxemos a carroça pelo caminho mais longo até ao portão que

conduzia ao campo.

Uma vez perto da árvore, o pedreiro enfiou o gancho na argola no meio

da pedra e esta foi içada da carroça.

Teríamos de esperar para ver se iria caber rigorosamente.

Sem dúvida o pedreiro colocara a argola corretamente porque a pedra

ficou suspensa horizontalmente da corrente em perfeito equilíbrio.

Page 150: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Foi descida até uma posição a cerca de dois passos da beira do poço.

Depois, o pedreiro deu-me a má notícia.

Tinha a filha mais nova muito doente com febre, aquela que grassava no

Condado e obrigara o Mago a ficar de cama. A mulher estava à cabeceira

da pequena e ele tinha de regressar imediatamente.

— Lamento — disse, olhando-me como deve ser nos olhos pela primeira

vez. — Mas a pedra é das boas e não terá problemas. Posso lhe garantir

isso.

Acreditei nele. Esforçara-se ao máximo e trabalhara a pedra num curto

período de tempo, quando preferia ter estado junto da filha.

Então paguei-lhe e mandei-o embora agradecendo-lhe em meu nome e

no do Mago, e desejando-lhe as rápidas melhoras da filha.

A seguir meti mãos à obra. Para além de cinzelarem a pedra, os

pedreiros são peritos a posicioná-la, pelo que teria preferido que ele

ficasse não fosse algo correr mal.

Mesmo assim, o aparelhador e o ajudante eram bons no seu ofício. Eu só

precisava de manter a calma e ter cuidado para não cometer erros

estúpidos.

Primeiro tinha de trabalhar rapidamente e revestir as paredes do poço

com a cola; e, por último, a parte inferior da pedra, mesmo antes de ser

baixada para ficar na posição correta.

Desci ao poço e, servindo-me da trincha e trabalhando à luz da lanterna

que o ajudante do aparelhador segurava, meti mãos à obra. Era um

processo moroso.

Não podia permitir-me falhar o pedaço mais ínfimo pois isso seria

suficiente para o demônio escapar. E tendo o poço apenas um metro e

oitenta de fundo em vez dos regulamentares dois metros e setenta,

precisava de ter cuidados redobrados.

A mistura aderiu ao solo enquanto eu trabalhava, o que foi bom, porque

não fenderia nem se soltaria facilmente quando o solo secasse no Verão.

O pior era a dificuldade em determinar a porção exata a aplicar de modo

a que ficasse no solo uma camada exterior suficientemente espessa. O

Mago avisara-me de que era algo que viria com a experiência. Até o

momento, ele estivera presente para verificar o meu trabalho e dar os

últimos retoques. Agora, teria de fazer o trabalho sozinho. A primeira.

Saí finalmente do poço e tratei da sua extremidade superior. Os últimos

trinta e cinco centímetros, a espessura da pedra, eram mais compridos e

mais largos do que o próprio poço, pelo que havia uma saliência para a

Page 151: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

pedra assentar sem deixar o mais pequeno intervalo por onde o demônio

se pudesse esgueirar. Era necessário ter extrema atenção porque era o

lugar onde a pedra isolava o solo.

Quando terminei, houve um relâmpago e, segundos depois, o forte

ribombar de um trovão. A tempestade estava praticamente por cima de

nós.

Regressei ao celeiro para buscar algo importante no meu saco. Era o que

o Mago chamava um «prato-isca».

Feito de metal, fora especialmente fabricado para o trabalho e

apresentava três pequenos furos a igual distância uns dos outros, perto

da borda. Retirei-o, limpei-o com a manga, depois corri para a igreja a

fim de avisar o médico de que estávamos prontos.

Quando abri a porta, senti um forte cheiro a alcatrão e, mesmo à

esquerda do altar, ardia uma pequena fogueira. Por cima dela, num

tripé, uma panela borbulhava e salpicava. O Dr. Sherdley ia usar o

alcatrão para estancar a hemorragia. Pincelando o coto com ele evitaria

também que o resto da perna gangrenasse depois.

Sorri para mim quando vi onde o médico fora arranjar a lenha. Estava

úmido lá fora, por isso recorrera à única madeira disponível. Partira um

dos bancos da igreja.

O padre não iria ficar mesmo nada satisfeito, mas talvez lhe conseguisse

salvar a vida. Fosse como fosse, naquele momento ele estava

inconsciente, com a respiração muito profunda, e permaneceria assim

durante várias horas até os efeitos da poção passarem.

Vinha da fenda no chão o ruído do demônio a alimentar-se. Era um som

desagradável de engolir com força e sorver enquanto ia bebendo sangue

da perna. Estava preocupado demais para perceber que nos

encontrávamos por perto e nos preparávamos para pôr cobro à sua

refeição.

Não falamos. Limitei-me a fazer sinal com a cabeça ao médico e ele

retribuiu. Entreguei-lhe o prato fundo de metal para recolher o sangue

de que necessitava, e ele retirou da mala uma pequena serra de metal e

depois encostou os seus dentes frios e brilhantes ao osso mesmo por

cima do joelho do padre.

A governanta mantinha-se na mesma posição mas fechara os olhos com

força e murmurava para si mesma.

Estaria provavelmente rezando e era óbvio que não seria de grande

ajuda. Então, com um arrepio, ajoelhei-me ao lado do médico.

Page 152: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Ele abanou a cabeça. — Não é necessário assistir a isto — disse. — Sem

dúvida irá testemunhar pior um dia, mas não precisa de ser agora. Vá,

rapaz. Vai à sua vida. Eu trato disto. Depois mande-me aqui os outros

dois para me ajudarem a levá-lo para a carroça quando terminar.

Eu estivera a cerrar os dentes, pronto para enfrentar a situação, mas

não foi preciso que me dissessem duas vezes. Absolutamente aliviado,

voltei para o poço. Antes mesmo de lá chegar, ouvi um sonoro grito

cortar o ar seguido do som de um choro angustiado. Mas não era o

padre. Ele estava inconsciente. Era a governanta.

O aparelhador e o ajudante tinham já voltado a içar a pedra e estavam

entretidos a retirar a lama das botas.

Depois, quando voltaram para a igreja a fim de ajudarem o médico,

mergulhei a trincha no resto da mistura e apliquei uma camada

abundante na parte debaixo da pedra.

Mal tive tempo de admirar o meu trabalho, pois o ajudante voltou

correndo. Atrás dele, movendo-se muito mais lentamente, vinha o

aparelhador. Trazia o prato contendo o sangue, tendo o cuidado de não

entornar uma única gota. O prato-isca era uma peça muito importante

do equipamento. O Mago possuía uma reserva deles lá em Chipenden, e

tinham sido feitos de acordo com as suas próprias especificações.

Retirei uma corrente comprida da mala do Mago.

Presas a uma argola grande numa extremidade estavam três correntes

mais pequenas, cada uma terminando num pequeno gancho de metal.

Coloquei os três ganchos nos três buracos na borda do prato.

Quando levantei a corrente, o prato-isca ficou suspenso dela em perfeito

equilíbrio, pelo que não foi necessária demasiada perícia para fazê-lo

descer ao poço e pousá-lo cuidadosamente no centro.

Não, a perícia estava em soltar os três ganchos. Era preciso ter muito

cuidado ao afrouxar as correntes para que os ganchos se soltassem do

prato sem o emborcar e derramar o sangue.

Passara horas à exercitar-me e, apesar de estar muito nervoso, consegui

soltar os ganchos logo na primeira tentativa.

Agora era apenas uma questão de esperar.

Conforme referi já, os estripadores são os demônios mais perigosos

porque se alimentam de sangue. As suas mentes são normalmente

rápidas e muito engenhosas, mas quando estão se alimentando, pensam

muito lentamente e levam bastante tempo a perceber as coisas.

Page 153: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

A perna amputada continuava presa na fenda no chão da igreja e o

demônio estava atarefado a sorver o sangue dela, mas chupava-o muito

devagar, de modo a fazê-lo durar. É assim que funciona um estripador.

Limita-se a sorver e chupar, não pensando em mais nada até perceber

lentamente de que cada vez vai lhe chegando menos sangue à boca.

Quer mais sangue, mas o sangue possui uma série de sabores diferentes

e agrada-lhe o gosto do que esteve a chupar. Agrada-lhe mesmo muito.

Por conseguinte, quer mais do mesmo, e assim que percebe que o resto

do corpo foi separado da perna, vai atrás dele. Foi por isso que os

aparelhadores tiveram de levar o padre para a carroça. Entretanto, a

carroça teria chegado já à orla de Horshaw, cada clip-clop dos cascos do

cavalo afastando-o sucessivamente do demônio furioso, desesperado por

mais daquele mesmo sangue.

Um estripador é como um sabujo. Conseguiria ter uma idéia muito

razoável da direção em que o padre era levado. E perceber também de

que ele estava a se afastar cada vez mais. Depois, notaria outra coisa.

Que o que ele queria estava muito próximo.

Fora por isso que eu colocara o prato no poço. Por esse motivo se

chamava «prato-isca». Era o embuste para levar o estripador à

armadilha. Assim que ele lá estivesse, a alimentar-se, tínhamos de agir

rapidamente e não nos poderíamos permitir cometer um único erro.

Olhei para cima. O ajudante encontrava-se na plataforma, uma mão na

corrente curta, pronto para começar a descer a pedra. O aparelhador

estava à minha frente, a sua mão na pedra, preparado para a posicionar

quando descesse. Nenhum deles parecia minimamente assustado, nem

sequer nervoso, e de repente foi agradável estar a trabalhar com

pessoas assim. Pessoas que sabiam o que estavam a fazer. Tínhamos

todos desempenhado o nosso papel, todos feito o que era preciso fazer o

mais rápida e eficientemente possível. Aquilo fez-me sentir bem.

Fez-me sentir parte de algo.

Esperamos em silêncio pelo demônio.

Passados alguns minutos, ouvimo-lo aproximar-se.

A princípio, parecia mais o vento a assobiar através das árvores.

Mas não havia vento. O ar estava perfeitamente parado e, numa estreita

faixa de luz das estrelas entre a orla de uma nuvem de trovoada e o

horizonte, era visível uma lua em crescente, juntando a sua luz pálida à

projetada pelas lanternas.

Page 154: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O aparelhador e o ajudante não conseguiam ouvir nada, claro, porque

não eram sétimos filhos de sétimos filhos como eu. Por isso tive de

alertá-los.

— Ele vem aí — disse. — Eu aviso-os quando chegar aqui.

Entretanto, o som da sua aproximação tornara-se mais estridente, quase

como um grito, e pude ouvir algo mais também: uma rosnadela cava,

ressoante. Atravessava rapidamente o cemitério, vindo direito ao prato

de sangue dentro do poço.

Ao contrário de um demônio normal, um estripador é ligeiramente mais

do que um espírito, especialmente quando acabou de se alimentar.

Mesmo assim, a maior parte das pessoas não consegue vê-lo mas sente-

o, como alguma coisa se lhes agarra à carne.

Nem sequer eu conseguia ver muito — apenas algo informe e de uma

cor parecida com um vermelho-rosado.

Depois, senti um movimento no ar próximo do meu rosto, e o estripador

desceu ao poço.

Dei o sinal ao aparelhador, que, por sua vez, o transmitiu ao ajudante,

que agarrou com mais força a corrente curta. Antes mesmo de puxá-la

veio um som do poço. Desta vez foi sonoro e nós os três ouvimos. Olhei

rapidamente para os meus companheiros e vi os olhos deles arregalados

e as bocas comprimidas com medo do que se encontrava por baixo de

nós.

O som que ouvíamos era o demônio a alimentar-se do prato. Parecia o

lamber ávido de uma língua monstruosa, combinado com o fungar e

resfolegar voraz de um grande carnívoro. Tínhamos menos de um

minuto antes de ele limpar tudo. Depois pressentiria o nosso sangue.

Tornara-se agora perigoso e todos nós constávamos no menu.

O ajudante começou a soltar a corrente e a pedra desceu firmemente.

Eu ajustava uma extremidade, o aparelhador a outra. Se eles tivessem

aberto o poço com rigor e a pedra tivesse exatamente o tamanho

especificado no esboço, não haveria problema. Era o que eu dizia para

mim — mas não conseguia deixar de pensar no último aprendiz do

Mago, o pobre Bily Bradley, que morrera ao tentar aprisionar um

demônio como este. A pedra ficara encravada, prendendo-lhe os dedos

debaixo da borda.

Antes de a conseguirem soltar, o demônio mordera-lhe os dedos e

sugara-lhe o sangue. Mais tarde, morrera do choque. Não conseguia

afastar aquilo do meu pensamento por mais que me esforçasse.

Page 155: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O importante era colocar a pedra no poço de primeira — e, logicamente,

manter os meus dedos bem longe dela.

O aparelhador assumira o controle, ocupando o lugar do pedreiro. A um

sinal seu, a corrente parou quando a pedra se encontrava levantada

apenas uma fração de centímetro. Olhou então para mim, de rosto muito

sério, e arqueou o sobrolho direito. Eu olhei para baixo e desloquei a

minha extremidade da pedra muito ligeiramente pelo que dava a

impressão de estar na posição perfeita.

Voltei a verificar apenas para ter a certeza, depois acenei ao

aparelhador, que fez sinal ao seu ajudante.

Algumas voltas da corrente curta e a pedra assentou na posição de

primeira, prendendo o demônio no poço.

Brotou um grito de raiva do estripador e todos nós o ouvimos. Mas não

tinha importância porque agora estava aprisionado e não havia mais

nada a temer.

— Um trabalho bem feito! — exclamou o ajudante, saltando da

plataforma, um sorriso a rasgar-lhe a boca de orelha a orelha. — O

encaixe perfeito!

— Sim — concordou o aparelhador, gracejando com secura. — Parece

mesmo feito sob medida!

Senti uma imensa sensação de alívio, feliz por tudo ter terminado.

Depois, quando o trovão ribombou e o relâmpago incidiu diretamente

iluminando a pedra, reparei, pela primeira vez, no que o pedreiro

gravara ali e, de repente, senti-me muito orgulhoso.

A letra maiúscula grega beta, atravessada por uma diagonal, era o sinal

de que fora aprisionado ali um demônio. Por debaixo dela, do lado

direito, o numeral romano um significava que era um demônio perigoso

da primeira categoria. Havia dez categorias ao todo e os da primeira à

quarta podiam matar. Depois, por baixo, estava o meu próprio

nome, Ward, que me atribuía o mérito do que fora feito. Acabara de

aprisionar o meu primeiro demônio. E

fora logo um estripador!

Page 156: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 2

O PASSADO DO MAGO

Dois dias depois, de regresso a Chipenden, o Mago quis que eu lhe

contasse tudo o que sucedera. Quando terminei, obrigou-me a repetir.

Feito isso, coçou a barba e soltou um imenso suspiro.

— O que disse o médico a respeito daquele pateta do meu irmão? —

indagou o Mago. — Espera que ele recupere?

— Ele referiu que parecia que o pior já passara, mas que era cedo

demais para dizer.

O Mago anuiu pensativamente. — Bem, rapaz, agiu corretamente —

disse ele. — Não me ocorre nada que pudesse ter feito melhor. Por isso,

pode descansar o resto do dia. Mas não deixe que te suba à cabeça.

Amanhã voltamos no mesmo. Depois de toda aquela agitação precisa de

retomar uma rotina fixa.

No dia seguinte, treinou-me com o dobro da intensidade habitual. As

lições começaram pouco depois da alvorada e incluíram o que ele

chamava de «práticas». Apesar de nesta altura eu ter já aprisionado um

demônio de verdade, isso implicava treinar a abertura de poços.

— Tenho mesmo de abrir outro poço de demônio?

— perguntei em tom enfastiado.

O Mago fitou-me com uma expressão fulminante até eu baixar o olhar,

sentindo-me muito desconfortável.

— Acha-se superior a tudo isso agora, rapaz? —

inquiriu ele. — Pois não é, por isso não fique todo presunçoso! Ainda tem

muito que aprender. Pode ter aprisionado o seu primeiro demônio, mas

contou com a ajuda de bons homens. Um dia pode ter de ser você

mesmo a abrir o poço e a fazê-lo rapidamente a fim de salvar uma vida.

Depois de abrir o poço e revesti-lo de sal e ferro, tive de treinar a

colocação do prato-isca no fundo do poço sem entornar uma única gota

de sangue. Claro que, como fazia apenas parte da minha preparação,

usamos água em vez de sangue, mas o Mago levou tudo muito a sério e

por norma aborrecia-se se eu não conseguia fazê-lo de primeira. Mas

nesta ocasião ele não teve hipótese. Eu conseguira-o em Horshaw e fui

igualmente bom na prática, conseguindo-o dez vezes seguidas. Não

Page 157: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

obstante, o Mago não me disse uma só palavra de louvor e começava já

a sentir-me um pouco aborrecido.

A seguir veio uma prática realmente do meu agrado

— usar a corrente de prata do Mago. Havia um poste de um metro e

oitenta colocado no jardim ocidental e a idéia era lançar a corrente sobre

ele. O Mago obrigou-me a ficar a várias distâncias dele e treinar durante

mais de uma hora seguida, sem nunca esquecer que a dada altura

poderia estar realmente a enfrentar uma bruxa seriamente e que se

falhasse, não teria outra oportunidade. Havia uma maneira especial de

usar a corrente. Tinha de ser enrolada na mão esquerda e arremessada

com um movimento do pulso de modo a fazê-la rodar às avessas, caindo

numa espiral canhota para envolver o poste e manter-se firme nele. À

distância de dois metros e quarenta, eu era capaz de fazer enrolar a

corrente no poste nove em dez vezes mas, como sempre, o Mago foi

parco nos seus elogios.

— Acho que não está mal — comentou ele. —

Mas não se envaideça, rapaz. Uma bruxa verdadeira não te fará o

obséquio de ficar quieta enquanto atira a corrente.

Até o final do ano, conto que acerte dez de dez tentativas e nada menos!

Senti-me mais do que um pouco aborrecido. Estivera a trabalhar

arduamente e melhorara bastante. E não só, acabara de aprisionar o

meu primeiro demônio e conseguira-o sem qualquer ajuda do Mago.

Pus-me a pensar se ele teria conseguido fazer melhor durante o seu

aprendizado!

De tarde, o Mago deixou-me entrar na sua biblioteca para trabalhar

sozinho, lendo e tomando notas, mas apenas me autorizou a ler

determinados livros. Era muito rigoroso nesse aspecto. Eu estava ainda

no meu primeiro ano, pelo que os demônios constituíam a minha

principal área de estudo. Mas às vezes, quando ele estava fora a tratar

de algo, eu não conseguia deixar de dar também uma espreitadela em

alguns dos seus outros livros.

Assim, depois de ler até à saciedade sobre demônios, dirigi-me às três

prateleiras compridas perto da janela e escolhi um dos livros de

apontamentos encadernados em couro mesmo na prateleira de cima.

Eram diários, alguns deles escritos por magos há centenas de anos.

Cada um abrangia um período de cerca de cinco anos.

Desta vez, eu sabia exatamente o que procurava.

Page 158: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Escolhi um dos primeiros diários do Mago, curioso em saber como ele se

saíra nas funções quando era jovem e se conseguira melhores resultados

do que eu. Claro que ele fora padre antes de receber a preparação para

ser mago, por isso era já um pouco velho para aprendiz.

Fosse como fosse, escolhi algumas páginas ao acaso e comecei a ler.

Reconheci a caligrafia dele, claro, mas um desconhecido a ler pela

primeira vez um excerto não teria imaginado que fora escrito pelo Mago.

Quando ele fala, a sua voz é típica do Condado, realista e sem qualquer

vestígio daquilo que o meu pai chama «boas maneiras adquiridas».

Quando ele escreve é diferente. É como se todos aqueles livros que leu

lhe tivessem alterado a voz, ao passo que eu escrevo principalmente da

maneira como falo: se o meu pai alguma vez lesse as minhas anotações

ficaria orgulhoso de mim e saberia que eu não deixara de ser filho dele.

A princípio, o que li não me pareceu muito diferente das anotações mais

recentes do Mago, para além do fato de ele ter cometido mais erros.

Como sempre, era muito honesto, e explicava como fora que errara.

Como me estava sempre a dizer, era importante anotar tudo e aprender

assim com o passado.

Descrevia como, uma semana, passara horas e horas a treinar com o

prato-isca e o seu mestre se zangara porque ele não conseguia uma

média melhor do que oito em dez! Senti-me logo mais animado. E

depois apareceu algo que me deixou ainda mais satisfeito. O Mago só

aprisionara o seu primeiro demônio depois de ser aprendiz há quase

dezoito meses. E mais, fora apenas um demônio peludo, não um

perigoso estripador!

Aquilo foi o melhor que consegui encontrar para me animar: o Mago

fora, manifestamente, um aprendiz bom e esforçado. Bastante do que

encontrei era rotina, por isso saltei rapidamente as páginas até chegar

ao ponto em que o meu mestre se tornara mago, trabalhando por sua

conta. Já vira tudo o que precisava de ver e preparava-me para fechar o

livro quando algo me despertou a atenção. Voltei atrás, ao começo da

anotação apenas para me certificar, e eis o que li. Não está exatamente

palavra por palavra, mas tenho boa memória e anda bastante perto. E,

depois de ler o que ele escrevera, com certeza que não o ia esquecer.

Nos finais do Outono, desloquei-me à remota parte norte do Condado,

chamado ali para tratar de um inumano, uma criatura que andava há

tempo demais espalhando o terror no distrito. Muitas famílias na

Page 159: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

localidade tinham sofrido nas suas mãos cruéis e houvera muitas mortes

e mutilações.

Desci à floresta ao lusco-fusco. Todas as folhas tinham caído e jaziam

podres e castanhas no solo, e a torre era como um dedo demoníaco

negro a apontar para o céu. Fora vista uma menina a acenar da sua

única janela, pedindo freneticamente ajuda. A criatura apossara-se dela

c conservava-a agora como seu joguete, aprisionando-a dentro destas

paredes de pedra úmidas e frias.

Primeiro acendi uma fogueira e fiquei sentado a olhar para as chamas

enquanto me enchia de coragem. Tirando a pedra de amolar do meu

saco, afiei a lâmina até os meus dedos não poderem lhe tocar na

extremidade sem que brotasse sangue. Por fim, à meia-noite, fui à torre

e bati sucessivamente à porta com o meu bordão, lançando um desafio.

A criatura apareceu brandindo uma boca enorme e bramiu de raiva. Era

uma coisa medonha vestida com peles de animais, tresandando a

sangue e gordura animal, e atacou-me com terrível fúria.

A princípio recuei, aguardando a minha oportunidade, mas na vez

seguinte que ela se atirou em mim, soltei a lâmina do seu recesso no

meu bordão e, usando de toda a minha força, enterrei-a fundo na

cabeça. Caiu morta aos meus pés mas não senti pena de lhe tirar a vida,

pois teria voltado a matar sucessivamente sem nunca se dar por

saciada.

Foi então que a menina chamou por mim, a sua voz de sereia atraindo-

me para as escadas de pedra. Ali, no quarto mais alto da torre,

encontrei-a numa cama de palha; bem amarrada com uma comprida

corrente de prata. De pele leitosa e cabelo louro comprido, ela era de

longe a mulher mais bela que alguma vez os meus olhos tinham visto.

Chamava-se Meg e suplicou-me que a libertasse da corrente e a sua voz

foi tão persuasiva que o meu raciocínio desapareceu e o mundo girou à

minha volta.

Assim que a soltei das voltas da corrente ela comprimiu os seus lábios

com força contra os meus. E foram tão doces os seus beijos que quase

desfaleci nos braços dela.

Acordei com o sol a entrar pela janela e vi-a bem pela primeira vez. Era

uma das bruxas lâmia, e exibia a marca da cobra.

Apesar do seu belo rosto, a sua coluna estava coberta de

escamas verdes e amarelas.

Page 160: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Cheio de raiva pelo logro dela, voltei a prendê-la com a corrente e levei-

a para o poço em Chipenden. Quando a soltei, ela debateu-se tanto que

mal a consegui vencer e vi-me obrigado a puxá-la pelos longos cabelos

através das árvores, enquanto ela protestava e gritava a ponto de

acordar os mortos. Chovia intensamente e ela escorregava na erva

molhada mas continuei a arrastá-la pelo solo, apesar de os seus braços e

pernas despidos ficarem arranhados. Era cruel, mas tinha de ser feito.

Porém quando ia enfiá-la pela borda do poço, ela agarrou-se aos meus

joelhos e começou a soluçar que dava pena. Fiquei ali bastante tempo,

cheio de angústia, prestes a atirar-me pela borda, até que por fim tomei

uma decisão de que me posso vir a arrepender.

Ajudei-a a levantar-se, envolvi-a com os braços e choramos ambos.

Como podia colocá-la no poço, quando percebi de que a amava mais do

que a minha própria alma?

Supliquei-lhe que me perdoasse e depois, viramo-nos os dois e, de mão

dadas, afastamo-nos do poço.

Com este encontro ganhei uma corrente de prata, um instrumento

dispendioso que, de outro modo, só ao cabo de muitos meses

de trabalho árduo teria conseguido adquirir. Nem quero pensar no

que perdera ou podia vir ainda a perder. A beleza é uma coisa

terrível: prende um homem com mais força do que uma corrente de

prata numa bruxa.

Nem queria acreditar no que acabara de ler! O Ma-go avisara-me por

mais de uma vez em relação às mulheres bonitas, mas aqui ele quebrara

a sua própria regra! Meg era uma bruxa e, no entanto, ele não a

colocara no poço!

Folheei rapidamente o resto do livro de apontamentos, na esperança de

encontrar mais alguma referência a ela, mas não havia nada — nada de

nada! Era como se ela tivesse deixado de existir.

Eu sabia um pouco sobre bruxas, mas nunca antes ouvira falar de uma

bruxa lâmia, por isso guardei o livro de apontamentos e fui procurar na

prateleira de baixo, onde os livros estavam ordenados alfabeticamente.

Abri um livro intitulado Bruxas mas não encontrei qualquer referência a

Meg. Por que não escrevera o Mago a respeito dela? O que lhe

acontecera? Ainda estava viva? Ainda andava em algum lugar por aí pelo

Condado?

Estava realmente curioso e tive outra idéia; retirei um livro da prateleira

mais baixa. Este intitulava-se O Bestiário, e consistia numa listagem

Page 161: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

alfabética de todo o tipo de criaturas, inclusive bruxas. Encontrei

finalmente a anotação que pretendia: Bruxas lâmia.

Parecia que as bruxas lâmia eram naturais do Condado, mas provinham

de terras do outro lado do mar. Evitavam a luz do Sol, mas à noite

atacavam os homens e bebiam-lhes o sangue. Mudavam de forma e

pertenciam a duas categorias diferentes: as selvagens e as domésticas.

As selvagens eram as bruxas lâmia no seu estado natural, perigosas e

imprevisíveis e com muito poucas semelhanças com os humanos.

Possuíam todas escamas e garras em vez de unhas. Algumas corriam

pelo solo sobre os quatro membros, ao passo que outras tinham asas e

penas na parte superior do corpo mas apenas conseguiam voar curtas

distâncias.

No entanto, uma lâmia selvagem podia tornar-se uma lâmia doméstica

através do contacto estreito com os humanos. Muito gradualmente,

assumia a forma de uma mulher e parecia humana à exceção de uma

linha estreita de escamas verdes e amarelas que ainda se podia

encontrar nas suas costas, estendendo-se ao longo da espinha.

Sabia-se, inclusivamente, que as lâmias domésticas podiam vir a

partilhar as crenças humanas. Com frequência, deixavam de ser

malévolas e tornavam-se benignas, trabalhando para o bem dos outros.

Será que era verdade que Meg se tornara benigna?

Teria o Mago razões para não a aprisionar no poço?

De repente, percebi de que era tarde e saí correndo da biblioteca, com a

cabeça a girar. Alguns minutos mais tarde, o meu mestre e eu

estávamos na orla do jardim ocidental, debaixo das árvores com uma

visão nítida das extensões rochosas, o sol de Outono a descer para o

horizonte. Sentei-me no banco como de costume, atarefado a tomar

notas enquanto o Mago andava para cá e para lá a ditar. Mas não

conseguia me concentrar.

Tínhamos começado por uma aula de latim. Eu tinha um caderno

especial onde apontava a gramática e o vocabulário novo que o Mago me

ensinava. Havia uma série de listas e o caderno estava quase cheio.

Quis confrontar o Mago com o que acabara de ler, mas como podia fazê-

lo? Eu próprio quebrara a regra não me cingindo aos livros que ele

especificara. Não era suposto ter estado a ler os seus diários e agora

arrependia-me de o ter feito. Se lhe mencionasse algo, sabia que ele

ficaria zangado.

Page 162: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Em virtude do que lera na biblioteca, sentia cada vez maior dificuldade

em me concentrar no que ele dizia.

Tinha também fome e não podia esperar até chegar a hora da ceia.

Normalmente, os serões eram meus e podia fazer o que quisesse, mas

hoje ele obrigara-me a trabalhar arduamente. Mesmo assim, dispunha

ainda de cerca de uma hora antes de o Sol se pôr e o pior das lições já

passara.

Então ouvi um som que me fez gemer por dentro.

Era um sino a tocar. Não um sino de igreja. Não, este tinha o timbre

mais estridente e fraco de um sino de menores dimensões — aquele que

era usado pelas nossas visitas. Ninguém estava autorizado a ir a casa do

Mago, por isso as pessoas vinham até à encruzilhada e tocavam o sino

ali existente para que o meu mestre soubesse que precisavam de ajuda.

— Vá ver o que é, rapaz — disse o Mago, fazendo sinal com a cabeça na

direção do sino. Por via de regra, teríamos ido ambos, mas ele ainda

estava muito combalido da doença.

Não me apressei. Mal deixei de poder ser visto da casa, adotei um passo

perambulante. Era quase crepúsculo, pelo que não se poderia fazer nada

esta noite, especialmente com o Mago ainda não completamente

recuperado, por isso teria de ficar tudo para a manhã seguinte.

Eu regressaria com um relato do problema e transmitiria ao Mago os

pormenores durante a ceia. Quanto mais tarde regressasse, menos

haveria que escrever. Já fizera o suficiente por um dia e doía-me o

pulso.

Encoberto por salgueiros, que nós no Condado chamávamos de «vimes»,

a encruzilhada era um lugar soturno mesmo ao meio-dia e sempre me

deixava nervoso.

Em primeiro lugar, nunca se sabia o que podia estar ali à espera; em

segundo, eram quase sempre más notícias porque é isso que os traz ali.

Precisavam da ajuda do Ma-go.

Desta vez estava ali à espera um rapaz. Calçava botas grandes de

mineiro e tinha as unhas sujas. Parecendo ainda mais nervoso do que eu

me sentia, desenrolou a sua história tão depressa que os meus ouvidos

não conseguiram acompanhar e tive de lhe pedir que repetisse. Quando

se foi embora, regressei a casa.

Desta vez não deambulei, corri.

Page 163: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O Mago estava de pé junto ao banco, de cabeça baixa. Quando me

aproximei, olhou para cima e o seu rosto parecia triste. Acho que de

certa forma ele sabia o que eu ia lhe dizer, mas contei-lhe na mesma.

— Trago más notícias de Horshaw — anunciei, tentando recuperar o

fôlego. — Lamento, mas trata-se do seu irmão. O médico não conseguiu

salvá-lo. Morreu ontem de manhã, mesmo antes da alvorada. O funeral

é na sexta-feira de manhã.

O Mago soltou um suspiro longo e profundo e durante vários minutos

não falou. Não sabia o que dizer, de modo que permaneci em silêncio.

Era difícil adivinhar o que ele sentia. Como não se falavam há mais de

quarenta anos, não podiam ser muito chegados, mas o padre não

deixava de ser seu irmão e devia ter algumas lembranças felizes dele,

talvez de antes de terem discutido ou de quando eram crianças.

Por fim, o Mago voltou a suspirar e falou então.

— Vamos, rapaz — disse. — Temos de cear mais cedo.

Comemos em silêncio. O Mago debicava a comida e perguntei-me se

seria por causa das más notícias em relação ao irmão ou porque ainda

não recuperara o apetite em virtude de estar doente. Costumava proferir

algumas palavras, nem que fosse só para me perguntar como estava a

refeição. Era quase um ritual, porque tínhamos de elogiar

constantemente o demônio de estimação do Mago, que preparava todas

as refeições, senão ele ficava amuado.

Era muito importante elogiar a ceia, senão na manhã seguinte o

toucinho defumado vinha esturricado.

— O guisado está realmente muito bom — referi por fim. — Não me

lembro da última vez em que comi um tão bom.

O demônio era praticamente invisível, mas às vezes assumia a forma de

um gato grande cor de camarão; se estava realmente satisfeito,

esfregava-se nas minhas pernas debaixo da mesa da cozinha. Desta vez

não houve sequer um ligeiro ronronar. Ou eu não parecera muito

convincente ou mantinha-se em silêncio por causa da má notícia.

De repente, o Mago afastou o seu prato e coçou a barba com a mão

esquerda.

— Vamos a Priestown — anunciou solenemente.

— Partiremos amanhã logo pela manhã.

Priestown? Nem queria acreditar no que estava a ouvir. O Mago evitava

aquele lugar como a peste e dissera-me uma vez que nunca mais

voltaria a pôr os pés dentro dos seus limites. Não explicara a razão e eu

Page 164: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

nunca lhe perguntara, porque se via bem quando ele não queria explicar

algo. Mas quando tínhamos estado muito perto da costa e fora

necessário atravessar o rio Ribble, o ódio do Mago à cidade constituíra

verdadeiramente uma contrariedade. Em vez de usarmos a ponte de

Priestown, tínhamos sido obrigados a percorrer quilômetros para o

interior até à seguinte para podermos nos manter longe dela.

— Porquê? — inquiri, a minha voz pouco acima de um murmúrio,

perguntando-me se estaria a dizer algo que o fosse aborrecer. — Julguei

que pudéssemos ir a Horshaw para o funeral.

— Nós vamos ao funeral, rapaz — respondeu o Mago, em voz muito

calma e paciente. — O pateta do meu irmão trabalhava apenas em

Horshaw, mas era padre: quando morre um padre no Condado, levam o

seu corpo para Priestown e realizam uma cerimônia fúnebre na grande

catedral de lá antes de sepultarem os seus ossos no adro da igreja.

— Nesse caso, vamos lá prestar a nossa última homenagem. Mas essa

não é a única razão. Tenho um assunto pendente naquela maldita

cidade. Vá buscar o seu livro de apontamentos, rapaz. Abra-o numa

nova página e anote o seguinte título. .

Ainda não terminara o guisado mas obedeci de imediato ao pedido dele.

Quando falara em «assunto pendente», soubera que se referia a assunto

de mago, por isso tirei do bolso o frasco de tinta e coloquei-o em cima

da mesa ao lado do meu prato.

Fez-se luz no meu cérebro. — Refere-se ao estripador aprisionado? Acha

que fugiu? Não houve tempo para abrir um poço de dois metros e

setenta. Acha que ele fugiu para Priestown?

— Não, rapaz, agiu corretamente. Existe algo bem pior do que isso, lá. A

cidade está amaldiçoada! Amaldiçoada por algo que enfrentei pela última

vez há mais de vinte anos. Levou a melhor sobre mim e deixou-me de

cama seis meses. Na verdade, quase morri. Desde então, nunca mais lá

voltei, mas como temos necessidade de lá ir, agora, aproveito para

resolver este tal assunto pendente.

Não, não é um simples estripador que atormenta aquela cidade maldita.

É um espírito maléfico antigo chamado «o Destruidor» e é único no seu

gênero. Está ficando cada vez mais forte, por isso tem de se fazer algo e

não o posso adiar por mais tempo.

Escrevi «Destruidor» no cabeçalho de uma nova folha, mas depois, para

minha desilusão, o Mago abanou de repente a cabeça, seguindo-se um

enorme bocejo.

Page 165: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Pensando bem, terá de ficar para amanhã, rapaz.

É melhor terminar a sua ceia. Vamos sair bem de manhãzinha, por isso

convém deitarmo-nos cedo.

Page 166: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 3

O DESTRUIDOR

Partimos pouco depois da alva, levando eu o pesado saco do Mago, como

de costume. Decorrida uma hora porém, percebi que a viagem nos

levaria pelo menos dois dias.

Por norma, o Mago caminhava a um ritmo extraordinário, obrigando-me

a um esforço para o acompanhar, mas ele ainda estava fraco, ficava

constantemente sem fôlego e tinha de parar para descansar.

Estava um belo dia ensolarado, apenas com um restinho de frio outonal

no ar. O céu estava azul e as aves cantavam, mas nada disso importava.

Não conseguia deixar de pensar no Destruidor.

O que me preocupava era o fato de o Mago já ter sido quase morto uma

vez ao tentar aprisioná-lo. Agora estava mais velho e, se não

recuperasse as forças em breve, como podia ter esperanças de vencê-lo

desta vez?

Então, ao meio-dia, quando paramos para um longo descanso, decidi

inquiri-lo sobre este espírito terrível.

Não o fiz logo porque, para minha surpresa, quando nos sentamos os

dois no tronco de uma árvore tombada, ele retirou do seu saco um

grande naco de presunto e cortou uma generosa porção para cada um

de nós. Normalmente, quando íamos a caminho de um trabalho,

tínhamos de nos contentar com umas míseras dentadinhas de queijo

porque era preciso jejuarmos antes de enfrentarmos o escuro.

Mesmo assim, tinha fome, por isso não me queixei.

Calculei que teríamos tempo de jejuar logo que o funeral terminasse e

que o Mago precisava de se alimentar agora para recuperar novamente

as forças.

Por fim, quando terminei de comer, respirei fundo, puxei do meu livro de

apontamentos e inquiri-o então a respeito do Destruidor. Para minha

surpresa, ele mandou-me guardar o livro.

— Pode escrever isto mais tarde quando regressarmos — disse-me. —

Além disso, eu próprio tenho bastante o que aprender sobre o

Destruidor, por isso é escusado escrever algo que possas vir a ter

necessidade de alterar mais tarde.

Page 167: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Acho que a minha boca se abriu ante aquelas palavras. Quer dizer, eu

sempre julgara que o Mago sabia quase tudo o que havia que saber

sobre o escuro.

— Não fique tão espantado, rapaz — disse ele. —

Como sabe, eu próprio tenho ainda um livro de apontamentos e você

também terá, se chegar à minha idade.

Nunca deixamos de aprender neste trabalho, e o primeiro passo para o

conhecimento é aceitar a sua própria ignorância.

«Como referi antes, o Destruidor é um espírito antigo e malévolo que há

muito tempo levou a melhor sobre mim, envergonho-me de admiti-lo.

Mas espero que isso não suceda desta vez. O nosso primeiro problema

será encontrá-lo — prosseguiu o Mago. — Ele vive nas catacumbas por

debaixo da catedral de Priestown — existem quilômetros e quilômetros

de túneis.

— Para que são as catacumbas? — perguntei, curioso por alguém ter

construído tantos túneis.

— Estão cheios de criptas, rapaz, câmaras funerárias subterrâneas que

contêm ossos antigos. Esses túneis existiam muito antes de a catedral

ser construída. A colina era já um local sagrado quando os primeiros

padres aqui chegaram em navios do Ocidente.

— Nesse caso, quem construiu as catacumbas?

— Há quem chame os construtores de «Gente Pequena» em virtude do

seu tamanho, mas o verdadeiro nome deles era os Segoncíacos1; não

que se saiba muito a respeito deles, para além do fato de o Destruidor

ter sido em tempos deus deles.

— Foi um deus?

— Sim, foi sempre uma força poderosa, e a primeira Gente Pequena

reconheceu a sua força e venerou-o.

Calculo que o Destruidor gostaria de voltar a ser um deus.

Sabe, ele costumava andar em liberdade pelo Condado.

Ao longo dos séculos tornou-se corrupto e mau e aterrorizou a Gente

Pequena noite e dia, virando irmão contra irmão, destruindo colheitas,

incendiando casas, chacinando inocentes. Gostava de ver as pessoas

viver no medo e na pobreza, derrotadas até a vida quase não valer a

pena viver. Aqueles foram tempos negros e terríveis para os

Segoncíacos.

«Mas ele não atormentava apenas os pobres. O rei dos Segoncíacos era

um homem bom chamado Heys.

Page 168: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Derrotara todos os seus inimigos em batalhas e tentara tornar a sua

gente forte e próspera. Mas havia um inimigo que não conseguiam

vencer: o Destruidor. De repente, este exigiu um tributo anual ao rei

Heys. O pobre homem teve de sacrificar os seus sete filhos, começando

pelo mais velho. Um filho por ano até não restar nenhum vivo. Foi

demais para um pai poder suportar. Mas, não se sabe como, Naze, o

último filho, conseguiu aprisionar o Destruidor nas catacumbas. Não sei

como o fez — talvez se o soubesse fosse mais fácil vencer esta criatura.

Tudo o que sei é que o seu caminho estava barrado por um portão de

prata trancado: tal como muitas criaturas do escuro, tem uma

vulnerabilidade à prata.

— E, nesse caso, ele continua preso lá em baixo passado todo este

tempo?

— Sim, rapaz. Está aprisionado lá em baixo até alguém abrir o portão e

o libertar. É a realidade e é algo que todos os sacerdotes sabem. É um

conhecimento transmitido de geração em geração.

— Mas não existe outra saída? Como é que o Portão de Prata o mantém

lá dentro?

— Não sei, rapaz. Tudo o que sei é que o Destruidor está preso nas

catacumbas e só pode sair de lá através daquele portão.

Quis perguntar que mal havia em deixá-lo simplesmente ali se estava

aprisionado e não podia fugir, mas ele respondeu antes que eu tivesse

tempo de colocar a pergunta. Nesta altura, o Mago conhecia-me já bem

e sabia adivinhar o que eu estava a pensar.

— Na verdade receio que não possamos deixar tudo como está, rapaz.

Sabe, ele está ficando mais forte agora. Nem sempre foi um espírito.

Isso só aconteceu depois de ser aprisionado. Antes disso, quando era

muito poderoso, tinha uma forma física.

— Qual era o aspecto dele? — quis saber.

— Irá descobri-lo amanhã. Antes de entrar na catedral para a cerimônia

fúnebre, olhe para a escultura de pedra que existe por cima da porta

principal. É a melhor representação da criatura que provavelmente verá.

— Nesse caso já o viu ao vivo?

— Não, rapaz. Há vinte anos, quando tentei matar o Destruidor pela

primeira vez, ele ainda era um espírito.

Mas consta que a sua força aumentou tanto que agora está a assumir a

forma de outras criaturas.

— O que quer dizer?

Page 169: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Quero dizer que começou a mudar de forma e não tardará a ficar

suficientemente forte para assumir a sua verdadeira forma original.

Depois poderá obrigar quase todo mundo a fazer o que ele quer. E o

verdadeiro perigo é ele poder obrigar alguém a abrir o Portão de Prata. É

esse o aspecto mais preocupante de todos!

— Mas onde ele vai buscar a força? — quis saber.

— Principalmente no sangue.

— No sangue?

— Sim. No sangue de animais — e humanos. Tem uma sede terrível.

Mas, felizmente, ao contrário de um estripador, não consegue tirar

sangue de um humano, a menos que lhe seja dado de livre vontade . .

— Por que haveria alguém de querer dar-lhe o seu sangue? — perguntei,

espantado com a própria idéia.

— Porque consegue penetrar na mente das pessoas.

Tenta-as com dinheiro, posição e poder, é só dizer. Se não conseguir o

que pretende por persuasão, aterroriza as suas vítimas. Por vezes atrai-

as às catacumbas e ameaça-as com o que chamamos «a prensa».

— A prensa? — inquiri.

— Sim, rapaz. Pode tornar-se tão pesado que algumas das suas vítimas

são encontradas espalmadas, os ossos partidos e os corpos colados ao

chão — é preciso raspá-los para fazer o funeral. Foram «prensados» e

não é uma visão agradável. O Destruidor não pode tirar-nos sangue

contra a nossa vontade, mas lembre-se de que não deixaremos de ser

vulneráveis à prensa.

— Não entendo como pode ele obrigar as pessoas a fazer estas coisas

quando está aprisionado nas catacumbas — comentei.

— Consegue ler os pensamentos, influenciar os sonhos, enfraquecer e

corromper as mentes daqueles que estão acima do solo. Por vezes, vê

mesmo através dos olhos deles. A sua influência estende-se até à

catedral e ao presbitério, e aterroriza os padres. Há anos que causa o

mal em Priestown daquela maneira.

— Com os padres?

— Sim — especialmente aqueles que são fracos de espírito. Sempre que

pode, obriga-os a espalhar o seu mal.

O meu irmão Andrew é serralheiro em Priestown, e por mais de uma vez

me enviou avisos sobre o que está a suceder. O Destruidor esvazia o

espírito e a vontade. Obriga as pessoas a fazerem o que ele quer,

Page 170: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

silenciando as vozes do bem e da razão: elas tornam-se gananciosas e

cruéis, abusam do seu poder, roubando os pobres e os doentes.

Os dízimos em Priestown são agora cobrados duas vezes por ano.

Eu sabia o que era um dízimo. Um décimo dos rendimentos anuais da

nossa fazenda e tínhamos de pagá-lo como imposto à igreja local. Era a

lei.

— Já é suficientemente mau pagar uma vez — continuou o Mago —, mas

com duas torna-se ainda mais difícil evitar a miséria. Mais uma vez, está

a levar as pessoas ao medo e à pobreza, tal como sucedeu aos

Segoncíacos.

É uma das manifestações mais puras e malévolas do escuro que alguma

vez vi. Mas a situação não pode continuar por muito mais tempo. Tenho

de lhe pôr fim definitivamente antes que seja tarde demais.

— Como iremos fazê-lo? — indaguei.

— Pois, ainda não sei muito bem como. O Destruidor é um inimigo

perigoso e inteligente; pode conseguir ler-nos o pensamento e saber

exatamente o que estamos a pensar antes de nós mesmos nos darmos

conta.

«Para além da prata, ele tem realmente outros pontos fracos sérios. As

mulheres deixam-no muito nervoso e procura evitar a companhia delas.

Não suporta estar perto delas. Bem, até eu tenho dificuldade em

compreender, mas vou precisar de pensar na melhor maneira de usar

isso em nosso proveito.

O Mago avisara-me com frequência para ter cuidado com as garotas, e lá

tinha as suas razões, em particular aquelas que calçavam sapatos

bicudos. Por isso estava acostumado a que ele dissesse aquelas coisas.

Mas agora que sabia dele e de Meg, perguntava-me se ela contribuíra de

alguma maneira para a opinião por ele formada.

Bem, o meu mestre deixara-me certamente muito curioso. E não

conseguia deixar de pensar em todas as igrejas em Priestown, e nos

padres e nas congregações, todos crentes em Deus. Poderiam estar

todos errados? Se o Deus deles era tão poderoso, por que motivo não

fizera Ele algo em relação ao Destruidor? Por que permitira que

corrompesse os padres e espalhasse o mal pela cidade? O

meu pai era crente, muito embora nunca fosse à igreja.

Ninguém da nossa família o fazia porque a agricultura não parava ao

domingo e estávamos sempre atarefados com a ordenha ou a executar

outras tarefas. Mas, de repente, pus-me a pensar naquilo em que o

Page 171: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Mago acreditava, especialmente sabendo o que a Mãe me dissera — que

o próprio Mago fora em tempos padre.

— O senhor acredita em Deus? — inquiri.

— Já acreditei em Deus — respondeu o Mago, a sua expressão muito

pensativa. — Quando era criança nunca duvidei da existência de Deus

nem por um só momento, mas acabei por mudar. Sabe, rapaz, quando

vivemos tanto tempo quanto eu, há coisas que nos fazem pensar. Por

isso agora não tenho certeza se ainda mantenho a mesma abertura de

espírito.

«Mas uma coisa te digo — continuou ele. — Por duas ou três vezes na

minha vida me vi em situações tão más que nunca esperei conseguir sair

delas. Enfrentei o escuro e quase, mas não completamente, me resignei

à morte. Depois, precisamente quando tudo parecia perdido, enchi-me

de uma nova força. Mas apenas posso presumir de onde terá vindo. Só

que com essa força veio uma nova sensação. De que alguém ou alguma

coisa estava ao meu lado. Já não me encontrava sozinho.

O Mago fez uma pausa e suspirou profundamente.

— Não acredito no Deus sobre o qual pregam na igreja — disse ele. —

Não acredito num velho de barba branca. Mas há algo que observa o que

fazemos, e se levar uma vida direita, numa hora de necessidade ele

estará ao seu lado e lhe emprestará a sua força. É nisso que acredito.

Bem, vamos andando, rapaz. Já nos demoramos aqui tempo suficiente e

é melhor pormo-nos a caminho.

Peguei no saco dele e segui-o. Não tardamos a abandonar a estrada e

seguir por um atalho através de uma mata e de um prado imenso.

Estava a ser bastante agradável, mas paramos antes de o Sol se pôr. O

Mago estava exausto demais para prosseguir e, na realidade, devia ter

ficado em Chipenden, a recuperar da doença.

Eu estava com um mau pressentimento em relação ao que nos esperava,

uma forte sensação de perigo.

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CAPÍTULO 4

PRIESTOWN

Priestown, construída nas margens do rio Ribble, era a maior cidade que

eu jamais visitara. Quando vínhamos descendo a colina, o rio parecia

uma enorme cobra cor de laranja brilhando à luz do Sol poente.

Era uma cidade de igrejas, com flechas e torres erguendo-se acima das

filas de pequenas casas com terraço.

Mesmo no topo de uma colina, próximo do centro da cidade, ficava a

catedral. Três das maiores igrejas que eu vira em toda a minha vida

teriam cabido facilmente dentro dela. E o seu pináculo era digno de se

ver. Construído em calcário, era quase branco e tão alto que calculei que

num dia de chuva a cruz no seu topo ficasse escondida pelas nuvens.

— É o maior pináculo do mundo? — perguntei, apontando todo

entusiasmado.

— Não, rapaz — respondeu o Mago, com um raro sorriso. — Mas é o

maior do Condado, como seria de esperar de uma cidade que ostenta

tantos padres. Só gostaria que os houvesse em menor número, mas

vamos ter de arriscar.

De repente, o sorriso desapareceu do seu rosto. —

Falando no mau! — comentou ele, cerrando os dentes antes de me

puxar para um intervalo na sebe para um campo adjacente. A seguir,

encostou o indicador aos lábios a impor silêncio e obrigou-me a acocorar

com ele, enquanto eu escutava o som de passos que se aproximavam.

Era uma sebe de espinheiro-alvar boa e grossa e ainda tinha a maior

parte das folhas, mas consegui ver através dela uma batina preta por

cima das botas. Era um padre!

Permanecemos ali durante um bom tempo mesmo depois de os passos

terem desaparecido ao longe. Só então o Mago nos conduziu de novo ao

caminho. Eu não percebia para que fora tudo aquilo. Nas nossas viagens,

tínhamos passado por muitos padres. Não se haviam mostrado muito

simpáticos, mas nunca nos tínhamos tentado esconder antes.

— Temos de ficar atentos, rapaz — explicou o Mago. — Os padres

significam sempre problemas, mas representam um verdadeiro perigo

nesta cidade. Sabe, o bispo de Priestown é tio do Inquisidor-Mor. Terá

sem dúvida ouvido falar dele.

Page 173: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Anuí. — Ele caça bruxas, não caça?

— Sim, rapaz, ele faz isso. Quando apanha alguém que considera ser

uma bruxa ou um feiticeiro, coloca o seu barrete preto e torna-se o juiz

no julgamento deles —

um julgamento que termina muito rapidamente. No dia seguinte, coloca

um chapéu diferente. Torna-se o carrasco, e organiza a fogueira. Tem

fama de ser bom no que faz e costuma reunir-se uma grande multidão

para assistir.

Dizem que ele escolhe cuidadosamente a posição do poste para que o

pobre desgraçado leve muito tempo a morrer.

É suposto a dor levar uma bruxa a arrepender-se do que fez, por isso ela

suplicará o perdão de Deus e, ao morrer, a sua alma será salva. Mas isso

não passa de um pretexto. O

Inquisidor não possui os conhecimentos de um mago e não saberia

distinguir uma bruxa de verdade nem que ela saísse da sepultura e lhe

agarrasse o tornozelo! Não, ele não passa de um homem cruel que gosta

de infligir dor.

Adora o seu trabalho e enriqueceu com o dinheiro que ganha a vender as

casas e as propriedades daqueles que condena.

«Pois, e isso traz-me ao nosso problema. Sabe, o Inquisidor considera

que um mago é um feiticeiro. A Igreja não gosta de ninguém que lida

com o escuro, mesmo que o esteja a combater. Acham que só os padres

deveriam estar autorizados a fazê-lo. O Inquisidor tem o poder de

prender, com cobradores eclesiásticos armados a cumprir as suas ordens

— mas anime-se, rapaz, porque isto é apenas a má notícia.

«A boa notícia é que o Inquisidor vive numa grande cidade lá para sul,

muito para além dos limites do Condado, e raramente vem para norte.

Por isso, se nos avistarem, e o mandarem chamar, ele levaria mais de

uma semana a chegar, mesmo a cavalo. A minha vinda aqui seria

também uma surpresa. A última coisa que alguém espera-ria é que eu

viesse assistir ao funeral de um irmão com quem não falo há quarenta

anos.

Mas as suas palavras foram um parco consolo. Enquanto descíamos a

colina, sentia-me arrepiado das palavras dele. Entrar na cidade parecia

envolver muitos riscos.

Com a capa e o bordão, ele era inconfundivelmente um mago.

Preparava-me para referi-lo quando ele me fez sinal com o polegar e nos

Page 174: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

afastamos da estrada para uma pequena mata. Dados cerca de trinta

passos, o meu mestre parou.

— Ora bem, rapaz — referiu ele. — Tire a sua capa e entregue-me.

Não discuti; pelo tom da sua voz, percebi que falava sério, mas fiquei

curioso quanto à sua idéia. Despiu também a sua capa com o capuz

acoplado e colocou o bordão no solo.

— Bom — disse. — Agora arranje-me uns troncos e ramos finos. Nada

muito pesado, por favor.

Alguns minutos depois, tinha feito o que ele pedira e vi-o colocar o

bordão no meio dos ramos e embrulhar tudo nas nossas capas. Claro

que nesta altura adivinhara já o que ele pretendia. Os paus saíam de

cada lado da trouxa e parecia mesmo que tínhamos andado a apanhar

lenha.

Era um disfarce.

— Existem muitas pequenas estalagens perto da catedral — disse-me,

atirando-me uma moeda de prata. —

Será mais seguro para você se não ficarmos na mesma, porque se

vierem à minha procura, igualmente te prenderão. Seria também melhor

não saber onde estou, rapaz. O

Inquisidor recorre à tortura. Se capturar um de nós, não tardará a

apanhar o outro. Eu vou primeiro. Dê-me dez minutos, a seguir vá você.

«Escolha qualquer estalagem cujo nome não tenha nada que ver com

igrejas, para não acabarmos na mesma sem querer. Não ceie também

porque iremos trabalhar amanhã. O funeral é às nove da manhã mas

tente chegar cedo e sente-se perto da retaguarda da catedral; se eu já

estiver lá, mantém a distância.

«Trabalhar» significava assuntos de mago e perguntei-me se iríamos

descer às catacumbas para enfrentar o Destruidor. A idéia não me

agradava nem um pouco.

— Oh, e mais uma coisa — acrescentou o Mago ao virar-se para se ir

embora. — Vai tomar conta do meu saco, por isso o que deve ter

presente quando o transportar por um lugar como Priestown?

— Levá-lo sempre na mão direita — referi.

Ele anuiu, satisfeito, depois pôs a trouxa no ombro, o direito,

evidentemente e deixou-me à espera na mata.

Éramos ambos canhotos, algo que os padres re-provavam. Os canhotos

eram o que eles chamavam de

Page 175: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

«aziagos», aqueles mais facilmente tentados pelo Diabo ou mesmo de

conluio com ele.

Dei-lhe mais de dez minutos, só para ter certeza de que havia distância

suficiente entre nós, depois, levando o seu saco pesado, desci a colina,

dirigindo-me para o campanário. Uma vez na cidade, comecei a subir

novamente rumo à catedral, e quando me aproximei, comecei à procura

de uma estalagem.

Havia-as com abundância, sim; a maior parte das ruas empedradas

parecia ter uma, mas o problema era que pareciam também estar todas

ligadas a igrejas de uma maneira ou de outra. Havia o Báculo do Bispo,

a Estalagem do Campanário, o Frade Alegre, a Mitra, o Livro e a Vela,

para referir apenas algumas. Esta última fez-me lembrar a razão por que

tínhamos, antes de mais, vindo a Priestown.

Como descobrira o irmão do Mago à sua própria custa, os livros e as

velas não costumavam resultar contra o escuro.

Nem mesmo quando se usava também um sino.

Não tardei a perceber que o Mago ficara com a vida facilitada ao passo

que eu tinha a minha muito dificultada, e levei muito tempo a procurar

no labirinto de ruas estreitas e outras mais largas que as ligavam.

Caminhei ao longo de Fylde Road e depois subi uma rua mais larga

chamada Friargate , onde não havia qualquer indício de uma porta.

As ruas empedradas estavam cheias de pessoas e a maior parte delas

parecia apressada. O grande mercado perto do cimo de Friargate ia

terminar por aquele dia, mas alguns fregueses ainda se acotovelavam e

regateavam com os comerciantes tentando obter bons preços. O cheiro a

peixe era intenso e um grande bando de gaivotas esfomeadas grasnia lá

em cima.

De quando em quando, via uma figura vestindo uma batina preta e

mudava de direção ou atravessava a rua. Custava-me a crer que uma

cidade pudesse ter tantos padres.

A seguir, desci Fishergate Hil até conseguir ver o rio ao longe, e depois

voltei para trás. Acabei por andar às voltas, mas sem o menor êxito. Não

podia pedir a ninguém que me indicasse uma estalagem cujo nome não

tivesse nada a ver com igrejas porque iriam me achar doido.

Fazer recair a atenção sobre a minha pessoa era a última coisa que eu

pretendia. Apesar de carregar o pesado saco de couro do Mago na mão

direita, nem mesmo assim deixei de suscitar alguns olhares curiosos na

minha direção.

Page 176: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Por fim, quando estava já a escurecer, encontrei um lugar onde ficar,

não longe demais da catedral, onde iniciara a minha busca. Era uma

estalagem pequena chamada O Touro Preto.

Antes de me tornar aprendiz do Mago, nunca ficara numa estalagem,

pois nunca precisara de me afastar muito da fazenda do meu pai. Desde

então, passara a noite talvez numa meia dúzia delas. Deveriam ter sido

muito mais, pois andávamos com frequência na estrada, às vezes vá-

rios dias seguidos, mas o Mago gostava de poupar dinheiro e, a menos

que o tempo estivesse realmente mau, achava que uma árvore ou um

velho celeiro proporcionavam abrigo suficiente para a noite. Mesmo

assim, esta era a primeira estalagem onde ficava sozinho, e quando

transpus a porta, senti-me um pouco nervoso.

A entrada estreita dava acesso a uma sala grande e sombria, iluminada

por uma única lanterna. Estava cheia de mesas e cadeiras vazias, com

um balcão de madeira ao fundo. O balcão cheirava fortemente a vinagre

mas não tardei a perceber que era apenas da cerveja azeda que se

infiltrara na madeira. Havia um pequeno sino suspenso de uma corda à

direita do balcão, por isso toquei-o.

Abriu-se logo uma porta por detrás do balcão e apareceu um homem

careca, a limpar as mãos grandes a um avental enorme imundo.

— Gostaria de um quarto para esta noite, por favor

— disse, acrescentando rapidamente —, posso vir a ficar mais tempo.

Olhou-me como se eu fosse algo que ele encontrara na sola do sapato,

mas quando exibi a moeda de prata e a coloquei em cima do balcão, a

sua expressão tornou-se muito mais simpática.

— O cavalheiro vai querer cear? — perguntou.

Abanei a cabeça. Fosse como fosse, estava de jejum, mas bastou olhar

para o avental dele todo cheio de nódoas para perder logo o apetite.

Passados cinco minutos encontrava-me no meu quarto com a porta

trancada. A cama estava por fazer e os lençóis imundos. Sabia que o

Mago teria se queixado, mas eu só queria dormir e sempre era melhor

do que um celeiro cheio de correntes de ar. No entanto, quando olhei

pela janela, senti saudades de Chipenden.

Em vez do caminho branco que atravessava o relvado verde até ao

jardim ocidental e da minha habitual vista de Parlick Pike e das outras

extensões rochosas, tudo o que conseguia ver era uma fila de casas

sujas em frente, cada uma com uma chaminé a despejar nuvens de

fumaça negra na rua.

Page 177: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Resolvi deitar-me em cima da cama e, agarrando ainda as abas do saco

do Mago, adormeci rapidamente.

Pouco depois das oito da manhã seguinte dirigi-me à catedral. Deixara o

saco trancado dentro do quarto porque teria parecido estranho levá-lo

para uma cerimônia fúnebre. Estava um pouco ansioso por deixá-lo na

estalagem mas o saco tinha uma fechadura e a porta também e ambas

as chaves estavam na segurança do meu bolso.

Trazia também uma terceira chave.

O Mago dera-me quando eu fora a Horshaw resolver o assunto do

estripador. Fora feita pelo seu outro ir-mão, Andrew, o serralheiro, e

abria a maior parte das fechaduras desde que não fossem complexas

demais. Devia tê-la devolvido mas sabia que o Mago tinha mais de uma

e, como não a pedira, eu guardara-a. Dava bastante jeito, assim como a

pequena caixa de mechas que o meu pai me oferecera quando eu

iniciara o meu aprendizado. Andava também sempre comigo no bolso.

Pertencera ao pai dele e era uma herança de família mas algo bastante

útil para alguém que seguia o ofício de Mago.

Não tardei a começar a subir a colina, com o campanário à minha

esquerda. A manhã estava úmida, um chuvisco constante a cair-me no

rosto, e afinal não me enganara a respeito do campanário. Pelo menos o

seu terço superior ficava escondido pelas nuvens cinzentas que

avançavam rapidamente de sudoeste. O ar cheirava mal por causa dos

esgotos, e cada casa tinha uma chaminé fumegante, a maior parte da

fumaça descendo até ao nível da rua.

Muita gente subia apressada a colina. Uma mulher passou por mim

quase a correr, arrastando duas crianças mais depressa do que as

perninhas delas conseguiam acompanhar.

— Vamos! Apressem-se! — ralhou ela. — Vamos chegar atrasados.

Por um momento, perguntei-me se também iam ao funeral mas parecia

improvável porque os seus rostos estavam muito animados. Mesmo no

topo a colina aplanava e virei à esquerda na direção da catedral. Aqui,

uma multidão excitada enchia ansiosamente ambos os lados da rua,

como se aguardasse algo. Bloqueava o passeio, e tentei abrir caminho o

mais cuidadosamente possível. Pedia constantemente desculpa,

desesperado por não pisar os pés de ninguém, mas as pessoas

acabaram por estar tão densamente apinhadas que tive de parar e

esperar com elas.

Page 178: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Não tardou muito. Irromperam subitamente à minha direita sons de

aplausos e vivas. Ouvi acima deles o clip-clop de cascos a aproximar-se.

Um enorme cortejo avançava na direção da catedral, os dois cavaleiros

da frente envergando chapéus e capas pretas e usando espadas no

cinto. Atrás deles vinham mais cavaleiros, estes armados com punhais e

enormes bastões, dez, vinte, cinquenta, até que por fim apareceu um

homem montando um gigantesco garanhão branco.

Trazia uma capa preta, mas por debaixo dela via-se uma dispendiosa

cota de malha no pescoço e nos pulsos e a espada no seu cinto tinha um

punho com rubis incrustados. As suas botas eram de couro muito fino e

provavelmente valiam mais do que um agricultor ganhava num ano.

As roupas e o porte do cavaleiro assinalavam-no como líder, mesmo que

vestisse andrajos, não haveria a menor dúvida. Tinha cabelo muito

louro, que aparecia por debaixo de um chapéu de aba larga vermelho, e

olhos tão azuis que envergonhavam um céu azul de Verão. Fiquei

fascinado com o rosto dele. Era quase belo demais para ser de um

homem, mas ao mesmo tempo era forte, com um queixo saliente e uma

testa determinada. Depois olhei melhor para os olhos azuis e vi a

crueldade que irradiava deles.

Fez-me lembrar um cavaleiro que vira uma vez passar pela nossa

fazenda, quando era pequeno. Nem sequer olhara na nossa direção. Para

ele nós não existíamos.

Bem, pelo menos foi o que o meu pai disse. Ele referiu também que o

homem era nobre, que via só de olhar para ele que provinha de uma

família que sabia quem eram os seus antepassados ao longo de várias

gerações, todos eles ricos e poderosos.

Ao dizer a palavra «nobre» o meu pai cuspira para a lama e dissera-me

que eu tinha sorte por ser filho de um agricultor com um dia honesto de

trabalho pela frente.

Este homem que cavalgava por Priestown era também manifestamente

nobre e tinha a arrogância e a autoridade estampadas por todo o rosto.

Para meu choque e desalento, percebi que devia estar a olhar para o

Inquisidor, pois atrás dele vinha uma enorme carroça aberta puxada por

dois cavalos de carga e havia pessoas de pé ao fundo presas com

correntes.

Na sua maior parte eram mulheres, mas havia também dois homens. A

maioria parecia que não comia devidamente há muito tempo. Vestiam

roupas imundas e muitos haviam sem dúvida sido espancados. Estavam

Page 179: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

todos cobertos de equimoses e o olho esquerdo de uma mulher parecia

um tomate podre. Algumas das mulheres lamuriavam-se

desesperadamente, as lágrimas a escorrer-lhes pelas faces. Uma gritava

sem parar a plenos pulmões que era inocente. Mas em vão. Eram todos

prisioneiros, e não tardariam a ser julgados e queimados.

Uma mulher jovem correu subitamente para a carroça estendendo a mão

para um dos prisioneiros e tentando desesperadamente entregar-lhe

uma maçã. Talvez fosse parente do prisioneiro — possivelmente uma

filha.

Para meu horror, o Inquisidor limitou-se a virar a sua montada e passar-

lhe por cima. Num momento estava a segurar a maçã; no seguinte

encontrava-se estendida nas pedras a gritar de dor. Vi a expressão cruel

no rosto dele.

Gostara de machucá-la. Quando a carroça passou, seguida de uma

escolta de ainda mais cavaleiros armados, os vivas da multidão

transformaram-se em uivos de injúria e gritos de: «Queimem todos!»

Foi então que reparei na garota acorrentada entre os outros prisioneiros.

Não seria mais velha do que eu e os seus olhos estavam arregalados e

assustados. O cabelo preto colava-se à testa com a chuva, que lhe

escorria do nariz e da extremidade do queixo como lágrimas. Olhei para

o vestido preto que usava, depois mirei os sapatos bicudos, nem

querendo acreditar no que via.

Era Alice. E fora feita prisioneira do Inquisidor.

Page 180: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 5

O FUNERAL

A minha cabeça turbilhonava devido àquilo que presenciara. Tinham

passado vários meses desde a última vez que vira Alice. A tia dela, Lizzie

dos Ossos, era uma bruxa de que eu e o Mago tínhamos tratado, mas

Alice, ao contrário do resto da família, não era realmente má. Na

verdade, ela era o mais parecido com uma amiga que alguma vez eu

tivera, e fora graças a ela que alguns meses atrás eu conseguira destruir

Mãe Malkin — a pior bruxa do Condado.

Não, Alice fora apenas criada em más companhias.

Não podia deixá-la arder na fogueira como bruxa. Tinha de conseguir

descobrir uma maneira de salvá-la, mas naquele momento não fazia a

menor idéia de como poderia ser. Decidi que mal o funeral terminasse,

teria de ir tentar convencer o Mago a ajudar.

E depois havia o Inquisidor. Que incrível azar a nossa visita a Priestown

ter logo de coincidir com a chegada dele. O Mago e eu corríamos sério

perigo. Certamente agora o meu mestre não podia ficar aqui depois do

funeral. Uma enorme parte de mim esperava que ele quisesse partir logo

e não enfrentar o Destruidor. Mas eu não podia deixar Alice sofrer

semelhante destino.

Depois de a carroça passar, a multidão precipitara-se e começara a

seguir o cortejo do Inquisidor. Entalado num ombro a ombro, não tive

outro remédio senão avançar também. A carroça passou pela catedral e

parou à porta de uma casa grande de três andares e janelas com

pinázios. Presumi que fosse o presbitério — a casa dos padres — e que

os prisioneiros fossem ser julgados ali.

Retiraram-nos da carroça e arrastaram-nos lá para dentro, mas

encontrava-me longe demais para ver bem Alice. Não havia nada que

pudesse fazer mas teria de pensar rapidamente numa solução antes de a

queimarem, o que não tardaria a acontecer.

Triste, virei as costas e abri caminho por entre a multidão até chegar à

catedral e ao funeral do padre Gregory. O edifício tinha grandes

contrafortes e janelas altas e pontiagudas com vitrais. Depois,

lembrando-me do que o mago me dissera, olhei para a enorme gárgula

de pedra por cima da porta principal.

Page 181: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Era uma representação da forma original do Destruidor, a forma que ele

tentava lentamente retomar à medida que ia ficando mais forte lá em

baixo nas catacumbas.

O corpo, coberto de escamas, estava acocorado, com músculos tensos e

nodosos, compridas garras afiadas a segurar o lintel de pedra. Estava a

postos para saltar.

Já vira coisas aterradoras na minha vida, mas nunca nada tão feio

quanto aquela cabeçorra. Tinha um queixo alongado que curvava para

cima quase até ao nível do focinho comprido, e olhos maldosos que

pareceram seguir-me quando me encaminhei para lá. As orelhas

também eram estranhas, e não destoariam num cão grande ou mesmo

num lobo. Nada que agradasse enfrentar na escuridão das catacumbas!

Antes de entrar, olhei mais uma vez para trás, na direção do presbitério,

perguntando-me se haveria realmente alguma esperança de salvar Alice.

A catedral estava quase vazia, de modo que procurei um lugar na

retaguarda. Ali próximo, duas velhotas estavam ajoelhadas em prece,

cabisbaixas, e um menino de coro andava ocupado a acender as velas.

Tive muito tempo para olhar à minha volta. A catedral parecia ainda

maior por dentro, com o teto alto e enormes vigas de madeira; até a

mais ligeira tossidela ficava a ecoar para sempre. Havia três naves — a

do meio, que conduzia diretamente aos degraus do altar, era

suficientemente ampla para lá caber um cavalo e a carroça.

Este lugar era grandioso, sim: cada estátua à vista era dourada e até as

paredes estavam cobertas de mármore.

Não tinha nada a ver com a igrejinha em Horshaw onde o irmão do Mago

exercera o seu ofício.

Na parte da frente da nave central estava o caixão do padre Gregory,

aberto, com uma vela em cada canto.

Nunca vira semelhantes velas na minha vida. Cada uma, colocada num

enorme castiçal de latão, era maior do que um homem.

As pessoas tinham começado a afluir à igreja. Entravam sozinhas e de

duas em duas e, tal como eu, escolhiam os bancos de trás. Não deixei de

procurar o Mago mas por enquanto não havia sinal dele.

Não pude deixar de olhar à minha volta, procurando vestígios do

Destruidor. Não sentia efetivamente a sua presença, mas talvez uma

criatura tão poderosa conseguisse sentir a minha. E se os rumores

fossem verdade? E

Page 182: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

se ele tivesse mesmo forças para assumir uma forma física e estivesse

aqui sentado na congregação! Olhei à minha volta com nervosismo mas

depois descontraí quando me lembrei do que o Mago me dissera. O

Destruidor estava aprisionado nas catacumbas lá bem em baixo; por

isso, no momento, eu estava sem dúvida seguro.

Mas estaria mesmo? A sua mente era muito forte, dissera o meu mestre,

e conseguia chegar ao presbitério ou à catedral para influenciar e

corromper os padres. Talvez neste preciso momento estivesse a tentar

entrar na minha cabeça! Olhei para cima, horrorizado, e reparei numa

mulher que voltava ao seu lugar depois de prestar a última homenagem

ao padre Gregory. Reconheci-a imediatamente como a governanta que

estava a chorar e ela também me identificou naquele momento. Estacou

ao fundo do meu banco.

— Por que chegou tão tarde? — demandou num murmúrio alto. — Se

tivesse vindo assim que lhe mandei chamar, ele ainda estaria vivo hoje.

— Fiz o melhor que podia — respondi, tentando não despertar demais as

atenções sobre nós.

— Às vezes, o nosso melhor não é o suficiente, não é? — retrucou. — O

Inquisidor tem razão a seu respeito, vocês não trazem senão problemas

e merecem tudo o que lhes acontecer.

Ao ouvir o nome do Inquisidor, sobressaltei-me, mas tinham começado a

entrar muitas pessoas, todas elas vestindo batinas e casacos pretos.

Padres — dúzias deles!

Nunca julgara ver tantos num só lugar ao mesmo tempo.

Era como se todos os clérigos no mundo inteiro se tivessem reunido ali

para o funeral do velho padre Gregory.

Mas eu sabia que isso não era verdade e que eles eram os únicos que

viviam em Priestown e talvez alguns das aldeias e cidades vizinhas. A

governanta não disse mais nada e voltou apressada para o seu banco.

Agora é que eu ficara realmente assustado. Eis-me aqui, sentado na

catedral, mesmo por cima das catacumbas que abrigavam a criatura

mais temível do Condado, numa altura em que o Inquisidor estava de

visita — e tinham-me reconhecido. Queria desesperadamente afastar-me

o mais possível daquele lugar e olhava ansiosamente à minha volta à

procura de qualquer indício do meu mestre, mas não o conseguia ver.

Estava precisamente a decidir que provavelmente me deveria vir

embora, quando de repente as portas grandes da igreja foram

escancaradas e entrou um longo cortejo. Não havia fuga possível.

Page 183: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

A princípio, julguei que o homem à cabeça fosse o Inquisidor, pois

possuía feições familiares. Mas era mais velho e lembrei-me de o Mago

haver referido que o Inquisidor tinha um tio que era bispo de Priestown;

calculei que fosse ele.

A cerimônia começou. Houve muitos cânticos e levantamo-nos,

sentamo-nos e ajoelhamo-nos infinita-mente. Mal nos tínhamos

instalado numa posição logo tínhamos de nos voltar a mexer. Agora, se

a cerimônia fúnebre tivesse sido em grego, talvez eu pudesse entender

muito melhor o que se passava porque a minha mãe me ensinara aquela

língua quando eu era pequeno. Mas a maior parte do funeral do padre

Gregory foi em latim.

Consegui acompanhar uma parte da cerimônia, mas fez-me perceber

que tinha de me esforçar muito mais nas minhas aulas.

O bispo referiu que o padre Gregory estava no Céu, dizendo que merecia

estar lá depois de todo o bem que praticara. Fiquei um pouco

surpreendido por ele não fazer qualquer alusão à forma como o padre

Gregory morrera, mas acho que os padres queriam guardar aquele

segredo. Provavelmente estariam relutantes em admitir que o exorcismo

dele falhara.

Por fim, passada quase uma hora, a cerimônia fúnebre terminou e o

cortejo abandonou a igreja, desta vez com seis padres carregando o

caixão. Os quatro padres grandes que seguravam as velas tinham a

tarefa mais difícil porque vacilavam sob o seu peso. Só quando o último

passou, seguindo atrás do caixão, é que reparei na base triangular do

enorme castiçal de latão.

Em cada uma das três faces estava uma representação viva da feia

gárgula que vira antes por cima da porta da catedral. E, apesar de

provavelmente se dever ao tremular da chama, mais uma vez os seus

olhos pareceram seguir-me enquanto o padre passava lentamente

carregando a vela.

Todos os padres saíram em fila para se juntar ao cortejo e a maior parte

das pessoas lá atrás seguiu-os, mas deixei-me ficar por um bom tempo

dentro da igreja, pois queria manter-me afastado da governanta.

Não sabia o que fazer. Não vira o Mago e não tinha idéia de onde ele

estaria instalado ou como poderia voltar a encontrar-me com ele.

Precisava avisá-lo sobre o Inquisidor — e já agora sobre a governanta.

Lá fora, a chuva parara e o pátio na frente da catedral estava vazio.

Olhando para a minha direita, consegui ver a cauda do cortejo a

Page 184: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

desaparecer nas parte de trás da catedral onde era parecia ficar o

cemitério.

Decidi ir pelo outro lado, pelo portão da frente e sair para a rua, mas

tive um grande choque. Do outro lado da rua, duas pessoas travavam

uma acesa conversa. Mais precisamente, o excitamento partia de um

padre irado, de rosto congestionado e com a mão ligada. O outro homem

era o Mago.

Pareceram ambos dar pela minha presença ao mesmo tempo. O Mago

fez um gesto com o polegar, indicando-me que me afastasse

imediatamente. Acatei a ordem dele e o meu mestre seguiu-me,

mantendo-se do outro lado da rua.

O padre gritou atrás dele: — Pense bem, John, antes que seja tarde

demais.

Arrisquei olhar para trás e vi que o padre não nos seguira mas parecia

olhar-me fixamente. Era difícil ter certeza, porém ocorreu-me

subitamente que ele parecia bem mais interessado em mim do que no

Mago.

Continuamos a descer durante vários minutos antes de o piso ficar

plano. A princípio não havia por ali muitas pessoas mas em breve as

ruas se tornaram mais estreitas e bem mais azafamadas, e depois de

mudarmos duas vezes de direção, chegamos ao mercado lajeado. Era

uma praça enorme e movimentada, cheia de bancas, que estavam

protegidas por estruturas de madeira cobertas de toldos cinzentos à

prova de água. Segui o Mago por entre a multidão, às vezes quase

mesmo atrás dele. O que mais podia eu fazer? Teria sido fácil perdê-lo

num lugar como aquele.

Havia uma taberna grande no extremo norte do mercado, com bancos

vazios no exterior e o Mago encaminhou-se logo para lá. A princípio

julguei que fosse entrar e perguntei-me se íamos comprar o almoço. Se

ele tencionasse partir por causa do Inquisidor, não haveria necessidade

de jejuar. Mas ele virou antes num beco estreito empedrado, conduziu-

me a um muro baixo de pedra e limpou a seção mais próxima com a

manga. Quando tinha retirado já a maior parte das gotas de água,

sentou-se e fez-me sinal para que o imitasse.

Sentei-me e olhei à minha volta. O beco estava deserto e as paredes dos

armazéns cercavam-nos em três lados. Havia poucas janelas e

apresentavam-se partidas e manchadas de fuligem pelo que pelo menos

estávamos longe de olhos curiosos.

Page 185: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O Mago ficara sem fôlego da caminhada e assim tive oportunidade de

falar primeiro.

— O Inquisidor está aqui — disse-lhe.

O Mago anuiu. — Sim, rapaz, ele está aqui. Eu me encontrava do outro

lado da rua mas você estava ocupado demais olhando para a carroça

para reparar em mim.

— Mas não a viu? Alice vinha na carroça. .

— Alice? Qual Alice?

— A sobrinha de Lizzie dos Ossos. Temos de ajudá-la...

Conforme mencionei antes, Lizzie dos Ossos era uma bruxa de que

tínhamos tratado na Primavera. Agora o Mago aprisionara-a num poço,

lá no seu jardim em Chipenden.

— Oh, essa Alice. Bem, é melhor que a esqueça, rapaz, porque não há

nada a fazer. O Inquisidor é acompanhado de pelo menos cinqüenta

homens armados.

— Mas não é justo — insurgi-me, mal podendo acreditar que ele

conseguisse se manter tão calmo. — Alice não é uma bruxa.

— Muito pouca coisa nesta vida é justa — replicou o Mago. — A verdade

é que nenhumas delas são bruxas.

Como muito bem sabe, uma verdadeira bruxa teria pressentido a

presença do Inquisidor a uma distância de quilômetros.

— Mas Alice é minha amiga. Não posso deixá-la morrer! — protestei,

sentindo a raiva brotar dentro de mim. — Não há tempo para

sentimentalismos. A nossa tarefa é proteger as pessoas do escuro, não

distrairmo-nos com garotas bonitas.

Fiquei furioso — especialmente porque sabia que o próprio Mago em

tempos já se distraíra com uma garota bonita — e que essa

era realmente uma bruxa. — Alice ajudou a salvar a minha família de

Mãe Malkin, lembra-se?!

— E por que estava Mãe Malkin, antes de mais, em liberdade, rapaz,

responde-me lá!

Baixei a cabeça, envergonhado.

— Porque você mesmo se envolveu com aquela garota — continuou ele

—, e não quero que isso volte a acontecer. Especialmente não aqui em

Priestown, com o Inquisidor tão em cima de nós. Irás pôr a sua própria

vida em perigo — e a minha. E baixe essa voz. Não queremos despertar

atenções indesejadas.

Page 186: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Olhei à minha volta. Para além de nós, o beco estava deserto. Podiam

ver-se algumas pessoas passar à entrada, mas estavam a alguma

distância e nem sequer olhavam na nossa direção. Conseguia ver para lá

delas os telhados no outro extremo da praça do mercado e, erguendo-se

acima das chaminés, o campanário da catedral. Mas quando voltei a

falar, baixei a voz.

— Afinal o que faz aqui o Inquisidor? — perguntei.

— Não tinha me dito que o trabalho dele era lá no Sul e só vinha para

norte quando o mandavam chamar?

— Isso é quase tudo verdade, mas por vezes ele prepara uma expedição

até ao Norte do Condado e mesmo para lá dele. Parece que nas últimas

semanas tem andado a bater à costa, capturando a pobre escória da

humanidade que trouxe acorrentada naquela carroça.

Fiquei aborrecido quando ele disse que Alice fazia parte daquela escória

porque sabia que isso não era verdade. No entanto, o momento não era

propício a que se continuasse a discussão, de modo que parei por ali.

— Mas estaremos bastante seguros em Chipenden

— prosseguiu o Mago. — Ele nunca se aventurou a vir na direção das

extensões rochosas.

— Nesse caso vamos regressar já? — inquiri.

— Não, rapaz, ainda não. Já te disse antes, tenho um assunto pendente

nesta cidade.

O coração caiu-me aos pés e olhei na direção da entrada do beco, pouco

tranqüilo. As pessoas continuavam a passar apressadas, tratando da sua

vida, e ouvia alguns tendeiros a gritar o preço dos seus produtos. Mas,

apesar de haver muito barulho e azáfama, felizmente estávamos longe

da vista. Não obstante, ainda não me sentia tranquilo. Era provável

mantermo-nos afastados um do outro. O padre no exterior da catedral

reconhecera o Ma-go. A governanta reconhecera-me também. E se

aparecesse mais alguém no beco que nos reconhecesse aos dois e

fôssemos ambos presos? Estariam na cidade muitos padres do Condado

e eles podiam conhecer de vista o Mago.

A única boa notícia era que de momento eles estavam provavelmente

todos ainda no cemitério.

— Aquele padre com quem estava a falar antes, quem era? Pareceu-me

que o conhecia. Acha que ele não irá contar ao Inquisidor que o senhor

se encontra aqui? —

Page 187: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

perguntei, curioso em saber se algum lugar era realmente seguro. Cá

para mim, aquele padre de rosto vermelho no exterior da catedral

poderia mesmo encaminhar o Inquisidor para Chipenden. — Oh, e há

mais uma coisa. A governanta do seu irmão me reconheceu no funeral.

Estava muito aborrecida. É capaz de ir dizer a alguém que estamos aqui.

Pareceu-me que estávamos a correr um sério risco ao ficarmos em

Priestown enquanto o Inquisidor estivesse na zona.

— Acalme-se, rapaz. A governanta não irá contar a ninguém. Ela e o

meu irmão não estavam propriamente livres de pecado. E quanto àquele

padre — disse o Mago com um tênue sorriso —, é o padre Cairns. É da

família, meu primo. Um primo abelhudo que às vezes se excede um

pouco, mas não deixa de ser bem-intencionado. Está sempre tentando

salvar-me de mim mesmo e a querer levar-me para o caminho da

«probidade». Mas está a gastar o seu latim. Já escolhi o meu caminho —

e, certo ou errado, é aquele que trilho.

Naquele momento, ouvi passos e o coração saltou-me para a boca.

Entrara alguém no beco e vinha mesmo direto a nós!

— Já agora, por falar em família — afirmou o Ma-go, nada preocupado —

, aí vem outro membro. Este é o meu irmão Andrew.

Aproximava-se de nós pelo empedrado um homem alto de corpo magro

e rosto triste e ossudo. Parecia ainda mais velho do que o Mago e fez-me

lembrar um espanta-lho bem vestido, pois, apesar de calçar botas de

boa qualidade e roupas limpas, as suas vestes agitavam-se ao vento.

Parecia ainda mais necessitado de um bom desjejum do que eu.

Sem se preocupar em limpar as gotas de água, sentou-se no muro do

outro lado do Mago.

— Calculei que fosse te encontrar aqui. Um assunto lamentável, irmão —

afirmou, com ar melancólico.

— Sim — disse o Mago. — Já só restamos dois agora. Cinco irmãos

mortos e enterrados.

— John, tenho de te avisar, o Inqui. .

— Sim, eu sei — referiu o Mago, com uma certa impaciência na voz.

— Nesse caso têm de partir. Isto aqui não é seguro para nenhum de

vocês — avisou o irmão, baixando-me a cabeça.

— Não, Andrew, nós não vamos a lado nenhum até eu fazer o que tem

de ser feito. Por isso, gostaria que me voltasse a fabricar uma chave

especial — pediu-lhe o Mago. — Para o portão.

Page 188: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Andrew sobressaltou-se. — Não, John, não seja tolo — disse ele,

abanando a cabeça. — Eu não teria vindo aqui se soubesse o que

pretendia. Já se esqueceu da maldição?

— Shhh — disse o Mago. — Em frente do rapaz não. Guarde as suas

superstições absurdas para si.

— Maldição? — inquiri, subitamente curioso.

— Vê o que fez? — ralhou o meu mestre com o irmão.

— Não é nada — disse, virando-se para mim. —

Não acredito em semelhantes disparates e você também não devia.

— Enterramos um irmão hoje — comentou Andrew. — Agora vá embora,

antes que eu me veja a enterrar outro. O Inquisidor adoraria por as

mãos no Mago do Condado. Volte para Chipenden enquanto ainda pode.

— Eu não vou embora, Andrew, e está decidido.

Tenho um trabalho a fazer aqui, com Inquisidor ou sem Inquisidor —

frisou o Mago com veemência. — Então, vai ajudar-me ou não?

— A questão não é essa, e você sabe bem! — insistiu Andrew.

— Sempre te ajudei noutras ocasiões, não ajudei?

Alguma vez te decepcionei? Mas isto é loucura. Arrisca-se a ir para a

fogueira estando aqui. Esta não é a ocasião para voltar a interferir com

aquela coisa — disse, gesticulando na direção da entrada do beco e

erguendo os olhos para o campanário. — E pense no rapaz — não pode

ser arrastado para isto. Não agora. Volte na Primavera quando o

Inquisidor tiver partido e tornaremos a falar. Não seja tolo ao tentar algo

neste momento. Não consegue lidar com o Destruidor e o Inquisidor —

já não é mais jovem e, pelo seu aspecto, não me parece nada bem de

saúde.

Enquanto eles falavam, olhei para o campanário.

Desconfiara que pudesse ser visto de quase qualquer lugar na cidade e

que toda a cidade fosse também visível do campanário. Havia quatro

janelas pequenas perto do topo, mesmo abaixo da cruz. Dali, era

possível ver todos os telhados de Priestown, a maior parte das ruas e

muitas das pessoas, inclusive nós.

O Mago dissera-me que o Destruidor era capaz de usar as pessoas,

introduzir-se-lhes nas mentes e ver através dos olhos delas. Senti um

arrepio ao pensar se um dos padres estaria lá em cima neste momento,

o Destruidor a usá-lo para nos observar da escuridão dentro do

campanário.

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Mas o Mago estava mesmo decidido. — Vamos, Andrew, pense bem!

Quantas vezes me disse que o escuro estava a ficar mais forte nesta

cidade? Que os padres estavam se tornando mais corruptos, que as

pessoas têm medo? E pensa nos duplos dízimos e no Inquisidor a roubar

terras e a queimar mulheres e meninas inocentes. O que fez mudar os

padres e corrompê-los tanto? Que força terrível obriga homens bons a

infligir semelhantes atrocidades ou a deixá-las simplesmente acontecer?

«Ora, hoje mesmo aqui o rapaz viu a sua amiga ser levada numa carroça

para a morte certa. Sim, a culpa é do Destruidor, e ele tem de ser

imediatamente sustido. Acha realmente que posso permitir que isto se

prolongue por mais meio ano? Quantas pessoas inocentes mais terão

sido queimadas até lá, ou morrerão neste Inverno devido à pobreza, à

fome e ao frio se eu não fizer algo? A cidade pulula de rumores de visões

lá em baixo nas catacumbas. Se forem verdade, então o Destruidor está

a ganhar força e poder, transformando-se de um espírito numa criatura

com forma física. Em breve pode retomar o seu aspecto original, uma

manifestação do espírito mau que tiranizou a Gente Pequena. E depois o

que vai ser de todos nós? Não será então fácil para ele aterrorizar e

iludir alguém levando-o a abrir aquele portão? Não, é claro como água.

Tenho de agir agora para livrar Priestown do escuro antes que o poder

do Destruidor fique ainda mais forte. Por isso vou perguntar-te de novo,

mais uma vez. Me fará uma chave? Por um momento, o irmão do Mago

cobriu o rosto com as mãos tal como uma das velhotas a dizer as suas

preces na igreja. Por fim, levantou a cabeça e anuiu.

— Ainda tenho o molde da última vez. Terei a chave pronta amanhã logo

pela manhã. Devo ser mais tolo do que você — referiu.

— Discordo — replicou o Mago. — Eu sabia que não ia me decepcionar.

Virei buscá-la ao raiar do dia.

— Desta vez espero que saiba o que está fazendo quando for lá a baixo!

O rosto do Mago ficou vermelho de raiva.

— Faça o seu trabalho, irmão, que eu farei o meu!

— ripostou. Dito aquilo, Andrew levantou-se, soltou um suspiro cansado

e afastou-se sem olhar sequer uma vez para trás.

— Bem, rapaz — disse o Mago —, vá você primeiro. Volte para o seu

quarto e não saia de lá até amanhã. A oficina de Andrew fica em

Friargate. Já terei ido buscar a chave e estarei pronto para me encontrar

com você cerca de vinte minutos depois da alvorada. Não deverá haver

muitas pessoas àquela hora madrugadora.

Page 190: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Lembra-se onde estava hoje quando o Inquisidor passou a cavalo?

Confirmei com um aceno de cabeça.

— Apareça na esquina mais próxima. Não se atrase.

E lembre-se, temos de continuar a jejuar. Oh, e mais uma coisa: não se

esqueça do meu saco. Acho que podemos vir a precisar dele.

A minha mente rodopiava no regresso à estalagem.

O que eu temia mais: um homem poderoso que me perseguiria e

queimaria no poste? Ou uma criatura que vencera o meu mestre na sua

juventude e, através dos olhos de um padre, podia estar a vigiar-me

neste preciso momento das janelas no alto do campanário?

Quando olhei para a catedral os meus olhos captaram a negrura da

batina de um padre ali perto. Desviei o olhar mas não sem antes reparar

nele: o padre Cairns. Felizmente, o passeio encontrava-se ocupado e ele

fitava em frente e nem sequer olhara na minha direção. Fiquei aliviado,

pois se ele tivesse me visto aqui, tão perto da minha estalagem, não

teria de se esforçar muito para calcular onde eu poderia estar alojado. O

Mago dissera que ele era inofensivo, mas eu não conseguia deixar de

pensar que quanto menos gente soubesse quem éramos e onde está-

vamos, melhor. Mesmo assim o meu alívio foi de pouca duração pois,

quando cheguei ao meu quarto havia um bilhete pregado na porta.

Thomas,

Se quer salvar a vida do seu mestre, venha ao meu confessionário esta

tarde às sete, depois disso será tarde demais.

Padre Cairns

Senti um grande mal-estar. Como podia o padre Cairns ter descoberto

onde eu me instalara? Teria alguém me seguido? A governanta do padre

Gregory? Ou o estalajadeiro? Não me agradara nada o aspecto dele.

Teria enviado uma mensagem para a catedral? Ou ao Destruidor?

Conheceria aquela criatura cada movimento meu? Teria dito ao padre

Cairns onde me encontrar? O que quer que tivesse acontecido, os padres

sabiam onde me alojara e, se dissessem ao Inquisidor, este poderia vir

buscar-me a qualquer momento.

Abri apressadamente a porta do meu quarto e tranquei-a atrás de mim.

A seguir corri as persianas, esperando desesperadamente que

mantivessem afastados os olhos curiosos de Priestown. Fui ver se o saco

do Mago continuava no lugar onde o deixara debaixo da minha cama,

sem saber o que fazer. O Mago dissera-me para me manter no meu

Page 191: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

quarto até de manhã. Eu sabia que ele não haveria de querer que eu

fosse falar com o primo dele.

Dissera que era um padre intrometido. Estaria ele apenas a voltar a

intrometer-se? Por outro lado, ele dissera-me que o padre Cairns era

bem-intencionado. Mas, e se o padre tivesse realmente conhecimento de

algo que ameaçava o Mago? E se eu ficasse, o meu mestre podia acabar

nas mãos do Inquisidor. No entanto, se fosse à catedral, estaria a meter-

me diretamente na boca do Inquisidor e do Destruidor! O funeral já fora

bastante perigoso. Poderia eu realmente voltar a abusar da minha sorte?

O que eu deveria realmente ter feito era contar ao Mago da mensagem.

Mas não podia. Para já, ele não me dissera onde estava instalado.

«Confie nos seus instintos», sempre me ensinara o Mago, e então decidi-

me finalmente. Resolvi ir falar com o padre Cairns.

Page 192: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 6

UM PACTO COM O INFERNO

Concedendo-me bastante tempo, caminhei lentamente pelas ruas

úmidas empedradas. As palmas das minhas mãos estavam suadas dos

nervos e os meus pés pareciam relutantes em avançar na direção da

catedral. Era como se eles tivessem mais juízo do que eu e precisei de

fazer um esforço para colocar um pé diante do outro. Mas a tarde estava

fria, e felizmente não havia muita gente por ali. Não passei sequer por

um padre.

Cheguei à catedral cerca das dez para as sete e, ao transpor o portão

para o grande pátio lajeado da entrada, não pude deixar de olhar para a

gárgula por cima da porta principal. A cabeça feia parecia maior do que

nunca e os olhos pareciam conter ainda vida; seguiram-me enquanto me

encaminhava para a porta. O comprido queixo curvava tanto para cima

que quase se unia ao focinho, tornando-a diferente de qualquer criatura

que eu alguma vez vira.

Para além das orelhas caninas e uma comprida língua a sair-lhe da boca,

dois cornos curtos curvavam para cima desde o crânio e, de repente,

fez-me lembrar uma cabra.

Desviei o olhar e entrei na catedral, arrepiando-me da mera estranheza

da criatura. Dentro do edifício, os meus olhos levaram alguns momentos

a adaptar-se ao escuro, e para meu alívio vi que o lugar estava quase

vazio.

Senti medo por duas razões. Em primeiro lugar, não me agradava estar

dentro da catedral, onde podiam aparecer padres a qualquer instante. Se

o padre Cairns estava me enganando, então eu fora direitinho à

armadilha dele. Em segundo, encontrava-me agora em território do

Destruidor. O dia não tardaria a recolher-se, e assim que o Sol se

pusesse, o Destruidor, tal como todas as criaturas do escuro, seria bem

mais perigoso. Talvez então a sua mente pudesse sair das catacumbas e

vir à minha procura.

Tinha de resolver o assunto o mais rapidamente possível.

Onde ficava o confessionário? Havia apenas duas velhotas ao fundo da

catedral, mas estava um homem ajoelhado perto da frente, junto da

Page 193: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

pequena porta de um compartimento de madeira encostado à parede de

pedra.

Fiquei plenamente esclarecido. Havia um compartimento idêntico um

pouco mais adiante. Cada um tinha uma vela encaixada por cima e

dentro de um suporte de vidro azul. Mas apenas a mais próxima do

homem ajoelhado fora acesa.

Avancei pela nave do lado direito e ajoelhei no banco atrás dele.

Passados alguns instantes, a porta do confessionário abriu-se e saiu uma

mulher usando um véu preto. Atravessou a nave e ajoelhou num banco

mais atrás enquanto o homem entrava.

Dali a pouco ouvi-o murmurar. Nunca na vida estivera num

confessionário, mas fazia uma idéia jeitosa do que acontecia. Um dos

irmãos do pai tornara-se muito religioso antes de morrer. O pai

chamava-lhe sempre o Santo Joe, mas o seu nome verdadeiro era

Matthew. Ia confessar-se duas vezes por semana e depois de ouvir os

pecados dele o padre dava-lhe uma grande penitência. Isso significava

que depois tinha de dizer muitas preces sucessivamente. Calculei que o

velho estivesse a falar dos seus pecados ao padre.

A porta manteve-se fechada durante o que pareceu uma eternidade e

comecei a ficar impaciente. Ocorreu-me outra idéia: e se não fosse o

padre Cairns quem estava lá dentro mas algum outro padre? Teria

realmente de me confessar, senão iria levantar muitas suspeitas.

Procurei pensar em alguns pecados que pudessem parecer convincentes.

Seria a ganância um pecado? Ou chamavam-lhe gula? Bem, eu gostava

sem dúvida de comer, mas não in-gerira nada o dia inteiro e o meu

estômago começava a roncar. De repente pareceu-me uma loucura estar

a fazer isto. Dentro de momentos poderia acabar feito prisioneiro.

Entrei em pânico e levantei-me para ir embora. Só então reparei com

alívio num pequeno cartão colocado num suporte na porta. Estava lá

escrito um nome: PADRE CAIRNS.

Naquele momento a porta abriu-se e o velhote saiu, de modo que ocupei

o lugar dele no confessionário e fechei a porta atrás de mim. Era

pequeno e estava escuro lá dentro e, quando ajoelhei, o meu rosto ficou

muito próximo de uma grelha de metal. Por detrás da grelha havia uma

cortina castanha e, em algum lugar para lá dela, uma vela a tremular.

Não consegui ver nenhum rosto através da grelha, apenas o contorno

sombrio de uma cabeça.

Page 194: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Gostaria que o ouvisse em confissão? — A voz do padre tinha uma

pronúncia carregada do Condado e respirava ruidosamente.

Limitei-me a encolher os ombros. Percebi depois de que ele não

conseguia me ver bem através da grelha.

— Não, Padre — respondi —, mas agradeço mesmo assim. Sou Tom, o

aprendiz de Mr. Gregory. O

senhor queria falar comigo.

Seguiu-se uma ligeira pausa antes de o padre Cairns falar.

— Ah, Thomas, ainda bem que veio. Chamei-o aqui porque preciso

realmente de falar com você. Preciso de te contar algo muito importante,

por isso quero que fique aqui até eu terminar. Prometa-me que não vai

embora antes de eu te dizer o que tenho a dizer?

— Ouvirei — respondi, na dúvida. Agora tinha receio de fazer promessas.

Na Primavera, fizera uma promessa a Alice e acabara por me ver

envolvido numa série de problemas.

— É um bom rapaz — disse ele. — Começamos uma tarefa importante

com o pé direito. E sabe de que tarefa se trata?

Perguntei-me se estaria a falar do Destruidor, mas achei melhor não

mencionar aquela criatura tão perto das catacumbas, de modo que

referi: — Não, Padre.

— Bem, Thomas, temos de combinar os dois um plano para podermos

salvar a sua alma imortal. Mas sabe o que tem de fazer para iniciar o

processo, não sabe? Tem de se afastar de John Gregory. Tem de deixar

de praticar aquela vil arte. Fará isso por mim?

— Julguei que quisesse falar comigo por causa de ajudar Mr. Gregory —

referi, começando a irritar-me. —

Pensei que ele corresse perigo.

— E corre, Thomas. Estamos aqui para ajudar John Gregory, mas

primeiro temos de te ajudar. Sendo assim, fará o que eu disser?

— Não posso — retorqui. — O meu pai pagou bom dinheiro pelo meu

aprendizado e a minha mãe ficaria ainda mais desapontada, Ela diz que

eu tenho um dom e que o devo usar para ajudar as pessoas. E o que os

magos fazem. Andamos de terra em terra a ajudar as pessoas quando

correm perigo devido a coisas que saem do escuro.

Seguiu-se um longo silêncio. Tudo o que ouvia era a respiração do

padre. Depois lembrei-me de outra coisa.

— Eu ajudei o padre Gregory, sabe — referi atabalhoadamente. — Ele

acabou por morrer, é certo, mas salvei-o de uma morte pior. Pelo menos

Page 195: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

morreu na cama, quentinho. Ele tentou livrar-se de um demônio —

expliquei, levantando um pouco a voz. — Foi isso que o meteu em

problemas, antes de mais nada. Mr. Gregory podia ter resolvido tudo por

ele. Consegue fazer coisas que não estão ao alcance de um padre. Os

padres não conseguem se livrar dos demônios porque não sabem como

se faz. É

preciso mais do que algumas preces.

Sabia que não devia ter dito aquilo em relação às preces e calculei que

ele fosse ficar muito irado. Mas não.

Manteve a calma e isso só serviu para piorar a situação.

— Oh, sim, é preciso muito mais — respondeu o padre Cairns

tranquilamente, a sua voz pouco mais do que um murmúrio. — Muito,

muito mais. Sabe qual é o segredo de John Gregory, Thomas? Sabe de

onde provém o poder dele?

— Sim — referi, a minha própria voz subitamente muito mais calma. —

Ele estudou durante anos, durante toda a sua vida de trabalho. Tem uma

biblioteca cheia de livros, fez um aprendizado tal como eu, escutou com

atenção o que o mestre dele disse e anotou tudo em livros de

apontamentos, tal como eu faço agora.

— Acha que nós não fazemos o mesmo? São precisos longos anos de

preparação para o sacerdócio. E os padres são homens inteligentes

preparados por homens ainda mais inteligentes. Nesse caso, como foi

que conseguiu o que o padre Gregory não conseguiu, não obstante o

fato de ele ter lido do livro sagrado de Deus? Como explica o fato de o

seu mestre fazer rotineiramente o que o irmão dele não conseguiu?

— É porque os padres têm a preparação errada —

disse-lhe. — E por o meu mestre e eu sermos sétimos filhos de sétimos

filhos.

O padre emitiu um ruído estranho por detrás da grelha. A princípio,

julguei que se tivesse engasgado; depois percebi que ouvia gargalhadas.

Estava rindo de mim.

Achei uma tremenda falta de educação. O meu pai dizia sempre que

devíamos respeitar as opiniões das outras pessoas mesmo que por vezes

parecessem tolas.

— Isso não passa de superstição, Thomas — respondeu por fim o Padre

Cairns. — Ser o sétimo filho de um sétimo filho não significa nada. É

apenas uma história disparatada. A verdadeira explicação para o poder

de John Gregory é algo tão terrível que até estremeço só de pensar no

Page 196: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

assunto. Sabe, John Gregory fez um pacto com o Inferno. Vendeu a

alma ao Diabo.

Não podia acreditar no que ele estava afirmando.

Quando abri a boca, não saíram quaisquer palavras, de modo que me

limitei a abanar a cabeça.

— É verdade, Thomas. Todo o seu poder provém do Diabo. O que você e

outras pessoas do Condado chamam demônios são apenas diabos

menores que apenas se submeteram porque o amo deles os manda fazer

isso.

Convém ao Diabo porque, em troca, um dia ele apoderar-se-á da alma

de John Gregory. E uma alma é preciosa para Deus, uma coisa que

brilha e resplandece, e o Diabo fará qualquer coisa para sujá-la de

pecado e arrastar para as chamas eternas do Inferno.

— E então eu? — indaguei, voltando a enfurecer-me. — Eu não vendi a

minha alma. Mas salvei o padre Gregory.

— Isso é fácil, Thomas. Você é um servo do Mago, como lhe chama, que,

por sua vez, é um servo do Diabo.

Por isso o poder do mal lhe é emprestado enquanto serve.

Mas, claro, se concluísse a sua aprendizagem no mal e tencionasse

exercer a sua arte vil como mestre e não como aprendiz, então seria a

sua vez. Também você teria de ceder a sua alma. John Gregory ainda

não te contou nada porque é jovem demais, mas certamente o fará um

dia. E

quando esse dia chegar, não ficará surpreendido porque recordará as

minhas palavras neste momento. John Gregory cometeu muitos erros

graves na sua vida e afastou-se muitíssimo da graça. Sabia que ele já foi

padre?

Confirmei:

— Já sabia.

— E sabia que, tendo acabado de ser ordenado padre, resolveu

abandonar a sua vocação? Sabia da ignomínia dele?

Não respondi. Sabia que o padre Cairns me ia contar mesmo assim.

— Alguns teólogos têm defendido que uma mulher não tem alma. O

debate prossegue, mas de uma coisa podemos estar certos, um padre

não pode tomar uma esposa, porque o distrairia da sua devoção a Deus.

O erro de John Gregory foi duplamente mau: não só se deixou distrair

por uma mulher, como essa mulher já estava comprometida com um dos

Page 197: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

seus próprios irmãos. A família ficou destroçada. Irmão virado contra

irmão por causa de uma mulher chamada Emily Burns.

Nesta altura, não gostava nem um pouco do padre Cairns e sabia que se

ele tem falado com a minha mãe a respeito de as mulheres não terem

alma, ela lhe teria dito poucas e boas. Mas estava curioso em relação ao

Mago.

Primeiro ouvira falar de Meg e agora estavam me contando que, ainda

antes disso, ele se envolvera com esta tal Emily Burns. Fiquei espantado

e quis saber mais.

— Mr. Gregory casou-se com Emily Burns? — inquiri, sem quaisquer

rodeios.

— Não aos olhos de Deus — respondeu o padre.

Ela era de Black-rod, onde a nossa família tem raízes, e vive lá sozinha

até hoje. Há quem diga que eles discutiram, mas fosse como fosse, John

Gregory acabou por arranjar outra mulher, que conheceu lá para o Norte

do Condado e trouxe para sul. Chamava-se Margery Skelton, uma fa-

mosa bruxa. Os habitantes locais conheciam-na como Meg, e com o

tempo ela tornou-se temida e detestada em toda a extensão de

Anglezarke Moor e nas cidades e aldeias a sul do Condado.

Fiquei calado. Sabia que ele esperava me ver chocado. E estava, com

tudo o que ele contara, mas a leitura do diário do Mago em Chipenden

preparara-me para o pior.

O padre Cairns soltou outro resfôlego profundo, depois tossiu

cavernosamente.

— Sabe qual dos seis irmãos John Gregory prejudicou?

Já adivinhara.

— O padre Gregory — respondi.

— Em famílias devotas como os Gregory, é de tradição que um filho

receba as Ordens Sagradas. Quando John se desligou da sua vocação,

outro irmão tomou o seu lugar e começou a preparar-se para o

sacerdócio. Sim, Thomas, foi o padre Gregory, o irmão que enterramos

hoje. Ele perdeu a sua amada e perdeu também o irmão.

O que mais podia fazer senão virar-se para Deus?

Quando eu chegara, a igreja estivera quase vazia, mas enquanto

tínhamos estado a conversar, percebera sons no exterior do

confessionário. Houvera passos e o murmúrio crescente das vozes.

Então, de repente, o coro começou a cantar. Já deveria passar bastante

Page 198: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

das sete agora e o Sol ter-se-ia posto entretanto. Decidi inventar um

pretexto e sair mas, quando abri a boca, ouvi o padre Cairns levantar-se.

— Venha comigo, Thomas — disse. — Quero mostrar-te uma coisa.

Ouvi-o abrir a porta e sair para a igreja, de modo que o segui. Apontou-

me na direção do altar onde, conduzido por outro padre, bem alinhado

em três filas de dez, um conjunto de meninos de coro estava de pé nos

degraus. Cada um vestia uma batina preta sobre uma peliz branca.

O padre Cairns estacou e apoiou a mão ligada no meu ombro.

— Escute-os, Thomas. Não parecem anjos sagrados?

Como eu nunca ouvira um anjo cantar, não podia responder, mas eles

faziam certamente um ruído mais agradável do que o meu pai, que

costumava cantar quando nos aproximávamos do fim da ordenha. A sua

voz era suficientemente má para azedar o leite.

— Podia ter sido membro daquele coro, Thomas.

Mas deixou passar a idade. A sua voz já está começando a ficar mais

grossa e a oportunidade de servir perdeu-se.

Lá nisso ele tinha razão. Na sua maioria, os rapazes eram mais novos do

que eu e as suas vozes mais como as das meninas do que as dos

rapazes. De qualquer forma, o meu canto não era muito melhor do que o

do meu pai.

— Mesmo assim, há outras coisas que pode fazer.

Deixe-me mostrar-te..

Seguiu na frente para lá do altar, transpondo uma porta e percorrendo

um corredor. Depois fomos ter no jardim na parte de trás da catedral.

Bem, era mais do tamanho de um campo do que de um jardim, e em

vez de flores e rosas tinham plantado ali legumes.

Começava já a ficar escuro mas havia ainda luz suficiente para divisar

uma sebe de espinheiro-alvar ao longe com as lápides do adro da igreja

mesmo visíveis para lá dela. No primeiro plano estava um padre de

joelhos, a mondar com um sacho. Era um jardim grande e um sacho

muito pequeno.

— Vem de uma família de agricultores, Thomas. É

um trabalho bom e honesto. Sentir-se-ia bem trabalhando aqui —

referiu, apontando para o padre de joelhos.

Abanei firmemente a cabeça.

— Eu não quero ser padre — redargui com firmeza.

— Oh, você nunca poderia ser padre! — advertiu o padre Cairns, a sua

voz exprimindo choque e indignação.

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— Estive perto demais do Diabo para isso e agora vai ter de ser bem

vigiado durante o resto da sua vida que é para não ter uma recaída.

Não, aquele homem é um irmão.

— Um irmão? — inquiri, intrigado, pensando que era da família, ou

assim.

O padre sorriu.

— Numa grande catedral como esta, os padres têm assistentes que se

oferecem para ajudar. Chamamos-lhes irmãos porque, apesar de não

poderem ministrar os sacramentos, realizam outras tarefas vitais e

fazem parte da família da Igreja. O irmão Peter é o nosso jardineiro e

muito bom, por sinal. O que diz, Thomas? Gostaria de ser um irmão?

Eu sabia o que era ser um irmão. Sendo o mais novo de sete,

impingiam-me todas as tarefas que mais ninguém queria fazer. Parecia

que se passava o mesmo aqui. De qualquer forma, eu já tinha trabalho e

não acreditava no que o padre Cairns me dissera sobre o Diabo e o

Mago. Fizera-me pensar um bocado, mas lá no fundo eu sabia que não

podia ser verdade. Mr. Gregory era um bom homem.

Estava a ficar mais escuro e frio a cada instante de maneira que decidi

que chegara a hora de partir.

— Obrigado por falar comigo, Padre — referi —, mas podia dizer-me

agora qual o perigo que Mr. Gregory corre, por favor?

— Tudo a seu tempo, Thomas — alegou, esboçando-me um pequeno

sorriso.

Algo naquele sorriso me disse que fora enganado.

Que ele não fazia tenção nenhuma de ajudar o Mago.

— Vou pensar no que me disse, mas tenho de voltar já senão fico sem a

minha ceia — argumentei. Na altura pareceu-me uma boa desculpa. Ele

não tinha como saber que eu jejuava porque precisava de estar a postos

para enfrentar o Destruidor.

— Nós temos aqui a ceia para você, Thomas —

frisou o padre Cairns. — Na verdade, gostaríamos que passasses a noite

aqui.

Tinham saído outros dois padres de uma porta lateral e encaminhavam-

se para nós. Eram homens grandes e não gostei das expressões nos

rostos deles.

Houve um momento em que provavelmente teria podido fugir, mas

parecia-me absurdo fazê-lo quando não sabia bem o que ia acontecer.

Page 200: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Depois já era tarde demais porque os padres estavam um de cada lado

de mim, agarrando-me firmemente pelos braços e os ombros. Não me

debati porque era inú-

til. As mãos deles eram grandes e pesadas e pensei que, se me

mantivesse no mesmo lugar tempo demais, começaria a afundar-me

pela terra. Conduziram-me então à sacristia.

— Isto é para o seu próprio bem, Thomas — advertiu o padre Cairns,

enquanto nos seguia até lá dentro.

— O Inquisidor irá capturar John Gregory esta noite. Será julgado, claro,

mas já se sabe o resultado. Sendo considerado culpado de lidar com o

Diabo, será queimado no poste. É por isso que não posso te deixar voltar

para ele.

Você ainda tem chance. É apenas um rapaz e a sua alma ainda pode ser

salva da fogueira. Mas se estiver com ele quando for preso, então

sofrerá idêntico destino. Portanto isto é para o seu próprio bem.

— Mas ele é seu primo! — protestei. — É da família. Como pode fazer

isto? Deixe-me ir avisá-lo.

— Avisá-lo? — perguntou o padre Cairns. — Acha que não o tentei

avisar? Tenho-o avisado a maior parte da sua vida adulta. Agora preciso

de pensar mais na sua alma do que no seu corpo. As chamas purgá-lo-

ão. Através da dor, a sua alma pode ser salva. Não percebe? Estou

fazendo para ajudá-lo, Thomas. Há coisas muito mais importantes do

que a nossa breve existência neste mundo.

— O senhor traiu-o! Sangue do seu sangue. Avisou o Inquisidor de que

estávamos aqui!

— Não dos dois, apenas de John. Por isso junte-se a nós, Thomas. A sua

alma será purgada através da prece e a sua vida deixará de correr

perigo. O que me diz?

Era inútil discutir com alguém que tinha tanta certeza de que a razão o

assistia, por conseguinte não gastei a minha saliva. O único som que se

ouvia era o eco dos nossos próprios passos e o tilintar de chaves à

medida que me conduziam cada vez mais pela negrura da catedral

adentro.

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CAPÍTULO 7

FUGA E CAPTURA

Trancaram-me numa pequena divisão úmida sem janela e não me

trouxeram a ceia que tinham mencionado. Havia apenas um pequeno

monte de palha a fazer de cama.

Quando a porta se fechou, fiquei ali no escuro, a ouvir a chave rodar na

fechadura e os passos afastarem-se ecoando pelo corredor.

Estava escuro demais para ver um palmo à frente do nariz mas isso não

me preocupou muito. Após quase seis meses como aprendiz do Mago

tornara-me muito mais corajoso. Sendo o sétimo filho de um sétimo

filho, sempre vira coisas que os outros não conseguiam ver, mas o Mago

ensinara-me que, na sua maioria, não podiam nos fazer muito mal. Era

uma catedral velha e havia um cemitério enorme do outro lado do

jardim, o que significava que andariam por ali coisas — coisas

turbulentas como imagens fantasmagóricas e fantasmas — mas eu não

tinha medo delas.

Não, o que me incomodava era o Destruidor lá em baixo nas

catacumbas! A idéia de poder alcançar a minha mente era aterradora. Eu

não estava nada interessado em enfrentá-lo, e se se encontrasse agora

tão forte como o Mago desconfiava, saberia exatamente o que se

passava.

Na verdade, provavelmente corrompera o padre Cairns, virando-o contra

o próprio primo. Podia ter semeado o seu mal entre os padres e ter

escutado as conversas deles.

Devia saber quem eu era e onde estava, e o mínimo que posso dizer é

que não seria muito simpático.

Claro que não pretendia ficar ali toda a noite. Sabem, ainda tinha as três

chaves no meu bolso e tencionava usar a especial que Andrew fizera. O

padre Cairns não era o único com truques na manga.

A chave não me levaria além do Portão de Prata, porque era preciso algo

bem mais subtil e engenhoso para abrir aquela fechadura, mas sabia que

me faria chegar ao corredor e transpor qualquer porta da catedral. Só

precisava esperar que estivessem todos dormindo e depois poderia

esgueirar-me. Se fosse cedo de mais, provavelmente seria apanhado.

Por outro lado, se me atrasasse, seria tarde demais para avisar o Mago e

Page 202: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

poderia receber uma visita do Destruidor, por isso era um juízo em que

não me podia permitir errar.

Quando a escuridão se instalou e os ruídos lá fora desapareceram, decidi

tentar a minha sorte. A chave rodou na fechadura sem a menor

resistência, mas antes mesmo de abrir a porta ouvi passos. Fiquei

estático e sustive a respiração enquanto, gradualmente, eles

retrocediam ao longe e tudo voltava ao silêncio.

Esperei bastante tempo, escutando com muita atenção. Por fim, inspirei

lentamente e abri a porta. Felizmente não fez qualquer barulho e saí

para o corredor, estacando e voltando a escutar.

Não tinha certeza se haveria ainda alguém na catedral e edifícios

anexos. Talvez tivessem voltado todos para a casa grande dos padres?

Mas não podia acreditar que não tivessem deixado alguém de guarda,

por isso segui em bicos de pés pelo corredor escuro, receando fazer

sequer o mais leve ruído.

Quando cheguei à porta lateral da sacristia, tive um choque. Não

precisava da minha chave. Já estava aberta.

O céu estava agora limpo e a Lua aparecera, banhando o pátio com uma

luz prateada. Saí lá para fora e movi-me com cautela. Só então pressenti

alguém atrás de mim; alguém de pé ao lado da porta, escondido na

sombra de um dos grandes contrafortes de pedra que escorava as

paredes laterais da catedral.

Fiquei estático por um momento. Depois, com o coração a bater com

tanta força que o conseguia ouvir, virei-me lentamente. A figura na

sombra deslocou-se para o luar. Reconheci-o imediatamente. Não era

um padre, mas o irmão que vira antes ajoelhado a cuidar do jardim.

De rosto descarnado, o irmão Peter estava praticamente calvo, apenas

com um fino tufo de cabelo branco por debaixo das orelhas.

De repente falou. — Avise o seu mestre, Thomas

— disse. — Vá depressa! Saiam da cidade enquanto ambos ainda

podem!

Não respondi. Virei-me apenas e corri o mais depressa que podia. Só

parei quando cheguei às ruas. Procurei caminhar de forma a não

despertar muito a atenção sobre a minha pessoa e perguntei-me por que

motivo o irmão Peter não tentara impedir-me. Não era essa a sua

função? Não o tinham deixado de guarda?

Mas não havia tempo para pensar bem no assunto.

Page 203: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Precisava avisar o Mago da traição do primo dele antes que fosse tarde

demais. Não sabia em que estalagem o Mago se hospedara, mas talvez o

irmão dele soubesse.

Sempre era um começo porque sabia onde ficava Friargate: era uma das

ruas que descera enquanto andara à procura de uma estalagem, por isso

não devia ser muito difícil encontrar a oficina de Andrew. Percorri

apressado as ruas empedradas, sabendo que não tinha muito tempo;

que o Inquisidor e os seus homens viriam já a caminho.

Friargate era uma rua larga e íngreme com lojas de um lado e do outro e

dei facilmente com a serralharia. O

nome por cima da porta dizia ANDREW GREGORY,

mas as instalações estavam às escuras. Tive de bater três vezes antes

de uma luz tremular no quarto por cima.

Andrew abriu a porta e aproximou uma vela do meu rosto. Vestia uma

comprida camisa de dormir e o seu rosto era um misto de expressões.

Parecia intrigado, furioso e cansado.

— O seu irmão corre perigo — disse-lhe, tentando manter a voz o mais

baixa possível. — Eu mesmo o teria avisado mas não sei onde ele está

hospedado. .

Fez-me sinal para entrar sem dizer uma palavra e conduziu-me pela

oficina. As paredes estavam ornamentadas com chaves e fechaduras de

todos os tamanhos e formas possíveis. Uma chave grande era do

comprimento do meu antebraço e fiquei curioso quanto ao tamanho da

fechadura a que pertencia. Expliquei rapidamente o que acontecera.

— Eu avisei-o de que era uma tolice ficar aqui! —

exclamou, dando um soco com força no tampo de uma bancada. — E

raios partam aquele traiçoeiro e hipócrita do nosso primo! Sempre soube

que ele não era de confiança. O Destruidor deve tê-lo apanhado

finalmente, torcendo-lhe a mente para tirar John do caminho — a única

pessoa em todo o Condado que ainda constitui uma verdadeira ameaça

para ele!

Foi lá acima mas não demorou muito tempo a vestir-se. Em breve

voltávamos a percorrer as ruas vazias, seguindo um percurso que nos

levava de novo na direção da catedral.

— Ele está hospedado no O Livro e a Vela —

murmurou Andrew Gregory, abanando a cabeça. — Por que carga d’água

ele não te disse isso? Podia ter poupado tempo e ido diretamente para

lá. Esperemos que não seja tarde demais!

Page 204: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Mas chegamos realmente tarde demais. Ouvia-se à distância de várias

ruas: vozes de homens alteradas pela raiva e alguém a bater a uma

porta com força suficiente para acordar os mortos.

Assistimos de uma esquina, tendo o cuidado de não sermos vistos. No

momento não podíamos fazer nada. O

Inquisidor estava ali no seu cavalo enorme e tinha cerca de vinte

homens armados às suas ordens. Estes levavam bastões e alguns deles

tinham desembainhado as espadas como se esperassem resistência. Um

dos homens voltou a bater sonoramente com o punho da espada na

porta da estalagem.

— Abram! Abram! E rapidamente! — gritou. —

Senão arrombamos a porta!

Ouviu-se o som de fechaduras a serem corridas e o estalajadeiro

apareceu à porta em camisa de dormir, segurando uma lanterna. Parecia

perplexo, como se tivesse acabado de acordar de um sono muito

profundo. Viu apenas os dois homens armados diante dele, não o

Inquisidor. Talvez por isso tivesse cometido um grande erro: começou a

protestar com grande alarido.

— O que vem a ser isto? — gritou. — Um homem já não pode dormir

depois de um dia duro de trabalho? A perturbar a paz a estas horas da

noite! Conheço os meus direitos. Existem leis contra essas coisas.

— Tolo! — exclamou o Inquisidor, enfurecido, aproximando o cavalo da

porta. — Eu sou a lei! Há um feiticeiro a dormir dentro das suas paredes.

Um servo do Diabo! Dar guarida a um inimigo conhecido da Igreja

acarreta duras penalidades. Afaste-se, senão pagará com a vida!

— Peço desculpa, Lorde. Peço desculpa! — gemeu o estalajadeiro,

erguendo as mãos em súplica, uma expressão de terror no seu rosto.

Em resposta, o Inquisidor limitou-se a fazer sinal aos seus homens, que

agarraram rudemente o estalajadeiro. Foi arrastado para a rua sem

qualquer cerimônia e ar-remessado ao chão.

Depois, com perfeita deliberação, a crueldade estampada no seu rosto, o

Inquisidor fez passar o seu garanhão branco por cima do estalajadeiro.

Um casco desceu com força sobre a perna dele e ouvi nitidamente o osso

partir-se. O sangue gelou-me nas veias. O homem ficou no chão a gritar

enquanto quatro dos guardas entravam na casa; as suas botas fizeram

ruído nas escadas de madeira.

Page 205: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Quando arrastaram o Mago para fora, ele parecia velho e frágil. Talvez

um pouco receoso também, mas eu estava longe demais para ter

certeza.

— Bem, John Gregory, apanhei-te finalmente! —

exclamou o Inquisidor, numa voz sonora e arrogante. —

Esses seus ossos secos vão arder bem!

O Mago não respondeu. Vi-os amarrar-lhe as mãos atrás das costas e

conduzi-lo pela rua.

— Todos estes anos, para depois acabar assim —

murmurou Andrew. — Ele sempre foi bem-intencionado.

Não merece ser queimado.

Não queria acreditar no que estava acontecendo.

Sentia um nó tão grande na garganta que, até o Mago ter virado a

esquina e desaparecer de vista, não fui sequer capaz de falar.

— Temos de fazer alguma coisa — disse por fim.

Andrew abanou a cabeça, cansado.

— Bem, rapaz, pense no assunto e depois diga-me como vamos agir.

Porque eu não faço a menor idéia. É

melhor voltar para minha casa e ao raiar do dia afastar-se o mais

possível daqui.

Page 206: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 8

A HISTÓRIA DO IRMÃO PETER

A cozinha ficava na parte de trás da casa, dando para um pequeno pátio

lajeado. Quando o céu clareou, Andrew ofereceu-me algo para fazer de

desjejum. Não era muito, apenas um ovo e uma fatia de pão torrado.

Agradeci-lhe, mas tive de recusar pois ainda estava a jejuar. Comer

significaria a aceitação de que o Mago desaparecera e que não iríamos

enfrentar o Destruidor. De qualquer forma, não sentia a mínima fome.

Fizera o que Andrew sugerira. Desde que tinham levado o Mago, eu

passara cada momento a pensar na maneira de salvá-lo. Pensei também

em Alice. Se eu não fizesse algo, seriam ambos queimados.

— O saco de Mr. Gregory continua no meu quarto no O Touro Preto —

lembrei-me de repente, virando-me para o serralheiro.

— E ele deve ter deixado o bordão e as nossas capas no quarto dele na

estalagem. Como é que os vamos recuperar?

— Bem, eis um aspecto em que posso te ajudar —

referiu Andrew. — É arriscado demais para qualquer de nós, mas

conheço alguém que podia lá ir no seu lugar.

Tratarei disso mais tarde.

Enquanto via Andrew comer, começou a ouvir-se um sino em algum

lugar ao longe. Era apenas um toque monótono e seguia-se uma longa

pausa entre cada badalada. Era um som pesaroso, como um toque a

finados.

— É o da catedral? — inquiri.

Andrew anuiu e continuou a mastigar a comida muito lentamente.

Parecia que tinha tão pouco apetite quanto eu.

Perguntei-me se estaria a chamar as pessoas para o primeiro serviço

matinal, mas antes que eu pudesse exprimi-lo Andrew engoliu o pedaço

de torrada e disse-me:

— Significa outra morte na catedral ou em alguma outra igreja na

cidade. Ou isso, ou morreu um padre noutro local do Condado e a notícia

só agora aqui chegou. É

um som muito comum nestes dias. Temo que quaisquer padres que

ponham em causa as trevas e a corrupção na nossa cidade sejam

despachados rapidamente.

Page 207: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Senti um calafrio.

— Há alguém em Priestown que saiba que o Destruidor está na origem

dos tempos negros? — perguntei.

— Ou apenas os padres?

— De certa forma, o conhecimento do Destruidor encontra-se bastante

generalizado. Na zona mais próxima da catedral a maior parte das

pessoas mandou emparedar as portas das caves, e alastra-se o medo e

a superstição.

Quem pode culpar os habitantes da cidade se eles não conseguem

sequer confiar nos próprios padres para os protegerem? Não admira que

as congregações estejam a diminuir — comentou Andrew, abanando

pesarosamente a cabeça.

— Chegou a terminar a chave? — perguntei-lhe.

— Sim — disse —, mas o pobre John não vai precisar dela agora.

— Nós podíamos usá-la — sugeri, falando rapidamente de modo a poder

concluir o meu pensamento antes que ele me interrompesse. — As

catacumbas passam mesmo por debaixo da catedral e do presbitério, por

isso deveria existir uma entrada para elas. Esperávamos que

escurecesse, que estivessem todos a dormir, e entrávamos na casa.

— Isso não passa de um absurdo — referiu Andrew, abanando a cabeça.

— O presbitério é enorme, com imensas divisões tanto acima como

abaixo do solo. E nós nem sequer sabemos onde eles mantêm os

prisioneiros. E

não só, há homens armados a guardá-los. Também quer ser queimado?

Eu não!

— Vale a pena tentar — insisti. — Eles não vão estar à espera que lhes

apareça ninguém dentro de casa vindo das catacumbas com o Destruidor

lá em baixo. Teremos a surpresa do nosso lado e talvez os guardas

estejam a dormir.

— Não — disse Andrew, abanando a cabeça com firmeza. — É uma

loucura. Não justifica mais duas vidas.

— Nesse caso, dê-me a chave que eu faço-o.

— Nunca saberia o caminho sem mim. É um labirinto de túneis lá em

baixo.

— Quer dizer que conhece o caminho? — perguntei. — Já esteve lá

antes?

— Sim, conheço o caminho até ao Portão de Prata.

Page 208: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Mas não quero passar daí. E já vão vinte anos desde que lá desci com

John. Aquela coisa lá em baixo quase o matou.

Também poderia nos matar. Você ouviu o que John disse: está mudando

de um espírito, a transformar-se sabe Deus no quê. Podia nos deparar

com qualquer coisa lá em baixo. As pessoas têm falado de cães pretos

ferozes com dentes enormes à mostra; de serpentes venenosas. O

Destruidor pode ler-te o pensamento, não se esqueça, assumir a forma

dos seus piores receios. Não, é perigoso demais.

Não sei que destino será pior — ser queimado vivo na fogueira pelo

Inquisidor ou espalmado até à morte pelo Destruidor. Não são escolhas

que um jovem deva ter de fazer. — Não se preocupe com isso —

tranquilizei-o. —

Trate das fechaduras que eu farei o meu trabalho.

— Se o meu irmão não foi capaz, então, que esperança pode ter você?

Ele ainda estava na flor da idade e você não passa de um garoto.

— Não sou suficientemente tolo para tentar dar cabo do Destruidor —

argumentei. — Farei apenas o que for necessário para pôr o Mago a

salvo.

Andrew abanou a cabeça. — Há quanto tempo está com ele?

— Quase seis meses — respondi.

— Bem — comentou Andrew —, isso nos diz tudo, não diz? As suas

intenções são boas, eu sei, mas só iríamos complicar a situação.

— O Mago me disse que a morte na fogueira é terrível. A pior morte de

todas. É por isso que ele não concorda que se queime uma bruxa. Seria

capaz de deixá-lo passar por isso? Por favor, tem de ajudar. É a última

oportunidade dele.

Desta vez Andrew não disse nada. Permaneceu sentado por muito

tempo, perdido em pensamentos.

Quando se levantou da cadeira, tudo o que disse foi para me manter

bem escondido.

Pareceu-me um bom sinal. Pelo menos não me despachara dali.

Fiquei sentado na parte de trás, esperando em vão, enquanto a manhã

ia passando. Não conseguira sequer pregar olho e estava cansado, mas

dormir era a última coisa em que eu pensava depois dos acontecimentos

da noite.

Andrew estava trabalhando. Ouvia-o a maior parte do tempo na oficina,

mas às vezes chegava um toque da campainha da porta quando um

cliente entrava ou saía da loja.

Page 209: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Era quase meio-dia quando Andrew regressou à cozinha. Tinha uma

expressão diferente no rosto. Parecia pensativo. E vinha mais alguém

atrás dele!

Pus-me em pé, pronto para fugir, mas a porta de trás estava trancada e

os dois homens encontravam-se entre mim e a outra porta. Depois

reconheci o estranho e relaxei. Era o irmão Peter e trazia o saco do

Mago, o bordão e as nossas capas!

— Está tudo bem, rapaz — sossegou-me Andrew, aproximando-se e

colocando a mão no meu ombro para me tranquilizar. — Tire esse ar

ansioso do seu rosto e sente-se. O irmão Peter é um amigo. Olhe, ele lhe

trouxe as coisas de John.

Ele sorriu e entregou-me o saco, o bordão e as capas. Aceitei-os com um

aceno de agradecimento e coloquei-os no canto antes de me sentar.

Ambos os homens tiraram cadeiras da mesa e se sentaram de frente

para mim. O irmão Peter era um homem que passara a maior parte da

vida a trabalhar ao ar livre e a pele da sua cabeça acusava a ação do

vento e do sol com um tom castanho uniforme. Era da altura de Andrew

mas não tinha um porte tão ereto. As costas e os ombros dele estavam

curvados, talvez de demasiados anos a trabalhar na terra com o sacho

ou a enxada. O nariz era o aspecto que mais o distinguia; era adunco

como o bico de um corvo, mas tinha os olhos afastados e um ar

bondoso. Os meus instintos diziam-me que se tratava de um bom

homem.

— Bem — disse ele —, a sua sorte foi ser eu a fazer as rondas a noite

passada e não um dos outros, senão teria voltado para aquela cela!

Sucedeu que o padre Cairns mandou me chamar pouco depois da

alvorada e tive de responder a umas perguntas estranhas. Não ficou

nada satisfeito e não sei se irá me deixar em paz!

— Lamento — disse-lhe.

O Irmão Peter sorriu.

— Não se aflija, rapaz. Não passo de um jardineiro com fama de ser

duro de ouvido. Ele não irá se preocupar muito tempo comigo. Não

quando o Inquisidor tem tantos outros prontos para a fogueira!

— Por que me deixou escapar? — quis saber.

O irmão Peter arqueou os sobrolhos. — Nem todos os padres estão sob o

controle do Destruidor. Sei que ele é seu primo — referiu, virando-se

para Andrew —, mas não confio no padre Cairns. Acho que o Destruidor

o pode ter dominado.

Page 210: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Eu também já andava desconfiado — retorquiu Andrew. — John foi

traído e tenho a certeza de que o Destruidor esteve por detrás de tudo.

Ele sabe que John constitui uma ameaça para ele, por isso serviu-se da

fraqueza daquele nosso primo para se livrar dele.

— Sim, acho que tem razão. Reparou na mão dele?

Diz que está enfaixada porque se queimou numa vela, mas o padre

Hendle ficou com um ferimento no mesmo lugar depois de o Destruidor o

apanhar. Acho que Cairns deu o seu sangue àquela criatura.

Devo ter feito uma expressão horrorizada porque o irmão Peter se

aproximou e passou o braço pelos meus ombros.

— Não se preocupe, filho. Ainda restam alguns homens bons naquela

catedral, e posso não passar de um irmão inferior mas considero-me um

deles e contribuo para a obra do Senhor sempre que posso. Farei tudo o

que estiver ao meu alcance para te ajudar e ao seu mestre. O

escuro ainda não venceu! Por isso, vamos direto ao assunto. Andrew me

disse que é suficientemente corajoso para descer às catacumbas. É

verdade? — indagou, esfregando a ponta do nariz pensativamente.

— Alguém tem de fazê-lo, por isso estou disposto a tentar — retorqui-

lhe.

— E se ficar frente a frente com. .

Não terminou a frase. Era quase como se não conseguisse dizer «o

Destruidor».

— Alguém já te disse o que poderia enfrentar? Em relação à mudança de

forma e à leitura do pensamento e à. . — Hesitou e olhou por cima do

ombro antes de murmurar: — A prensa?

— Disseram, sim — respondi, parecendo muito mais confiante do que

me sentia. — Mas há coisas que poderia fazer. Ele não gosta de prata. .

Abri o saco do Mago, remexi nele e mostrei-lhes a corrente de prata.

— Podia aprisioná-lo com isto — aludi, olhando diretamente para os

olhos do irmão Peter e tentando não pestanejar.

Os dois homens entreolharam-se e Andrew sorriu.

— Treinou bastante, não treinou? — sondou-me.

— Horas e horas — disse-lhe. — Há um poste no jardim de Mr. Gregory

em Chipenden. Sou capaz de lançar esta corrente à distância de dois

metros e quarenta e consigo acertar nove em dez vezes.

— Bem, se de alguma maneira conseguisse passar por aquela criatura e

chegar esta noite ao presbitério, teria uma vantagem a seu favor. Ela

estaria certamente mais sossegada do que o normal — disse o irmão

Page 211: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Peter. — A morte da noite passada ocorreu na catedral por isso o corpo

já se encontra lá, e não fora da cidade. Esta noite quase todos os padres

estarão ali a fazer uma vigília.

Sabia, das minhas lições de latim, o que significava

«vigília». Mas ainda não me indicava o que estariam a fazer.

— Eles dizem preces e velam o corpo — explicou Andrew, sorrindo ante

a perplexidade no meu rosto. —

Quem foi que morreu, Peter?

— O pobre padre Roberts. Tirou a própria vida.

Atirou-se do telhado. Já são cinco suicídios este ano —

referiu, olhando para Andrew e depois logo para mim. —

Ele invade-lhes as mentes, sabe. Obriga-os a fazer coisas que são contra

Deus e contra a consciência deles. E isso é algo muito difícil para um

padre que recebeu as ordens sagradas a fim de servir a Deus. Por isso,

quando chega uma altura em que já não suporta, às vezes tira mesmo a

própria vida. E é um ato terrível de cometer. Tirar a própria vida é um

pecado mortal, e os padres sabem que nunca podem ir para o Céu,

nunca estar com Deus. Pense como deve ser mau para os levar àquilo!

Se ao menos pudéssemos nos livrar deste mal terrível antes que não

reste nada de bom na cidade para ele corromper.

Seguiu-se um breve silêncio, como se estivéssemos todos a pensar, mas

vi depois a boca do irmão Peter mover-se e calculei que talvez estivesse

a rezar pelo pobre padre morto. Quando fez o sinal da cruz tive então a

certeza disso. Depois, os dois homens entreolharam-se e anuíram

ambos. Sem falarem, tinham chegado a um acordo.

— Irei com você até ao Portão de Prata — afirmou Andrew. — Depois

disso, talvez aqui o irmão Peter possa te ajudar. .

O irmão Peter ia conosco? Ele deve ter lido a expressão no meu rosto

porque levantou ambas as mãos, sorriu e abanou a cabeça.

— Oh, não, Tom. Não tenho coragem de me aproximar das catacumbas.

Não, o que Andrew quer dizer é que posso ajudar de outra maneira:

dando-te indicações.

Sabe, existe um mapa dos túneis. Está montado numa moldura na

entrada do presbitério — aquela que conduz diretamente ao jardim.

Perdi a conta às horas que passei ali à espera que um dos padres

descesse e me desse as ordens para o dia. Ao longo dos anos, fiquei a

conhecer cada centímetro daquele mapa. Quer tomar nota, ou consegue

lembrar-se?

Page 212: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Tenho boa memória — respondi-lhe.

— Bem, avise-me se quiser que repita algo. Como disse Andrew, ele irá

te guiar até ao Portão de Prata. Uma vez lá chegado, só tem de

continuar até o túnel bifurcar.

Segue pelo corredor da esquerda até chegar a umas escadas. Elas

conduzem a uma porta, para lá da qual fica a enorme adega do

presbitério. Estará trancada, mas isso não constituirá nenhum problema

para você quando tem um amigo como Andrew. Existe apenas mais uma

porta que permite sair da adega e fica na parede do fundo no canto

direito.

— Mas o Destruidor não pode seguir-me até à adega e fugir? — inquiri.

— Não, ele só pode abandonar as catacumbas pelo Portão de Prata, por

isso estará perfeitamente a salvo dele depois de transpor a porta para a

adega. Agora, antes de deixar a adega há algo que deveria fazer. Existe

um alça-pão no teto do lado esquerdo da porta. Conduz ao caminho que

segue ao longo da parede norte da catedral — os distribuidores usam-na

para levar o vinho e a cerveja lá para baixo. Abra-o antes de avançar

mais. Seria uma via de fuga mais rápida do que voltar pelo portão. Tudo

claro até aqui?

— Não seria mais fácil usar aquele alçapão para descer? — perguntei. —

Sempre podia evitar o Portão de Prata e o Destruidor!

— Quem me dera que fosse tão fácil — referiu o irmão Peter.

— Mas é arriscado demais. A porta é visível da rua e do presbitério.

Alguém podia te ver entrar.

Anuí pensativamente.

— Apesar de não o poder usar para entrar, existe outro bom motivo para

tentar sair por ali — explicou Andrew. — Não quero que John corra o

risco de voltar a enfrentar o Destruidor. Sabe, lá no fundo, acho que ele

tem medo — tanto medo que não conseguiria vencer. .

— Medo? — perguntei, indignado. — Mr. Gregory não tem medo de nada

que pertença ao escuro.

— Não que ele o fosse admitir — continuou Andrew. — Pode ter certeza

disso. Provavelmente ele nem sequer o admitiria a si próprio. Mas foi

amaldiçoado há muito tempo e. .

— Mr. Gregory não acredita em maldições — voltei a interromper. — Ele

me disse.

— Se me deixar falar, poderei explicar-te — insistiu Andrew. — Trata-se

de uma maldição perigosa e poderosa. Grande como sempre são.

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Reuniram-se três grupos de bruxas para a lançarem. John andara a

interferir demais na sua atividade, de maneira que elas puseram de lado

as suas disputas e divergências e amaldiçoaram-no. Foi um sacrifício de

sangue e chacinaram-se inocentes. Aconteceu na noite de Santa

Valpurga, a véspera do primeiro de Maio, há vinte anos, e depois

mandaram-lhe um pergaminho salpicado de sangue. Ele me disse o que

vinha lá escrito: Morrerá num lugar escuro, bem abaixo do solo, sem

qualquer amigo a seu lado!

— As catacumbas... — exteriorizei, a minha voz pouco mais do que um

murmúrio. Se ele enfrentasse o Destruidor sozinho lá em baixo nas

catacumbas, nesse caso, cumprir-se-iam as condições da maldição.

— Sim, as catacumbas — confirmou Andrew. —

Como disse, fado sair por aquele alçapão.

— Bem, irmão Peter, desculpe tê-lo interrompido. .

Peter esboçou um fraco sorriso e continuou. —

Assim que abrir o fecho do alçapão, transpõe a porta para um corredor.

Esta é a parte arriscada. Existe uma cela ao fundo onde costumam

guardar os prisioneiros. É aí que deve procurar o seu mestre. Mas, para

chegar lá, terá de passar pela sala dos guardas. É perigoso, mas há

umidade e frio lá em baixo. Eles devem ter uma grande fogueira acesa

na grelha e, se Deus quiser, a porta estará fechada por causa do frio. E é

tudo! Liberte Mr. Gregory e faça-o sair pelo alçapão e desta cidade. Ele

terá de voltar noutra altura para enfrentar aquela criatura medonha,

quando o Inquisidor tiver partido.

— Não! — interveio Andrew. — Depois de tudo isto, não quero que ele

volte aqui.

— Mas se ele não enfrentar o Destruidor, então quem o fará? — inquiriu

o irmão Peter. — Também não acredito em maldições. Com a ajuda de

Deus, John pode derrotar aquele espírito maléfico. Sabe que está ficando

cada vez pior. Não duvido que eu seja o próximo.

— Não o senhor, irmão Peter — disse Andrew. —

Conheci poucos homens com a sua determinação.

— Faço o que posso — respondeu ele, arrepiando-se. — Quando o ouço

murmurar ao meu ouvido, rezo mais intensamente. Deus dá-nos a força

de que necessitamos — isso se formos capazes de pedi-la. Mas tem de

ser feito algo. Não sei como tudo isto vai acabar.

— Acabará quando a população da cidade se fartar

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— retorquiu Andrew. — As pessoas têm um limite. Surpreende-me que

conseguissem aguentar a maldade do Inquisidor durante tanto tempo.

Alguns dos que vão ser queimados têm parentes e amigos aqui.

— Talvez sim, talvez não — disse o irmão Peter.

— Há muita gente que adora uma fogueira. Apenas podemos rezar.

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CAPÍTULO 9

AS CATACUMBAS

O irmão Peter voltou às suas obrigações na catedral enquanto

esperávamos que o Sol descesse no horizonte.

Andrew disse-me que o melhor caminho para as catacumbas era através

da cave2 de uma casa abandonada próximo da catedral; era menos

provável que reparassem em nós depois de escurecer.

Com o passar das horas, comecei a ficar cada vez mais nervoso. Quando

conversara com Andrew e o irmão Peter, tentara mostrar-me confiante,

mas o Destruidor deixava-me realmente assustado. Remexia

constantemente no saco do Mago, procurando algo que pudesse ter

alguma utilidade.

Claro que peguei na corrente de prata que ele usava para aprisionar

bruxas e enrolei-a à cintura, escondida debaixo da camisa. Mas sabia

que uma coisa era conseguir lançá-la sobre um poste de madeira e outra

completamente diferente era fazê-lo com o Destruidor. A seguir vinham

o sal e o ferro. Depois de transferir a caixa de mechas para o bolso do

casaco, enchi os bolsos das calças —

o direito com sal, o esquerdo com ferro. A combinação resultava contra a

maior parte das coisas que habitavam o escuro. Fora assim que eu

arrumara definitivamente a bruxa velha, Mãe Malkin.

Não me parecia que fosse suficiente para acabar com algo tão poderoso

quanto o Destruidor; se assim 2 Porão, adega ou divisão subterrânea

fosse, o Mago teria tratado dele da última vez, e em definitivo. No

entanto, eu estava suficientemente desesperado para tentar qualquer

coisa, e só o fato de ter aquilo e a corrente de prata já me fazia sentir

melhor. Afinal, eu não tencionava aniquilar o Destruidor, apenas afastá-

lo o suficiente para conseguir salvar o meu mestre.

Por fim, com o bordão do Mago na mão esquerda e o saco dele com as

nossas capas na direita, fui seguindo Andrew pelas ruas cada vez mais

escuras em direção à catedral. Lá em cima, o céu estava carregado de

nuvens e cheirava como se a chuva não estivesse muito longe.

Começava a detestar Priestown, com as suas ruas estreitas empedradas

e pátios traseiros murados. Sentia a falta das extensões rochosas e dos

amplos espaços abertos. Se ao menos eu estivesse em Chipenden, de

Page 216: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

volta à rotina das minhas lições com o Mago! Era difícil aceitar que a

minha vida ali pudesse ter terminado.

Quando nos aproximamos da catedral, Andrew conduziu-nos por um dos

caminhos estreitos que passavam por entre a parte de trás das casas

com terraço. Parou junto a uma porta, levantou devagar a trava e fez-

me sinal com a cabeça para que entrasse no pequeno pátio traseiro.

Depois de fechar cuidadosamente a porta do pátio, dirigiu-se à porta de

trás da casa, que estava completamente às escuras.

Um instante depois fez girar uma chave na fechadura e entramos.

Fechando a porta atrás de nós, acendeu duas velas e entregou-me uma.

— Esta casa está abandonada há mais de vinte anos

— disse-me —, e assim permanecerá também, pois, como terá

percebido, aqueles como o meu irmão não são bem-vindos nesta cidade.

Está assombrada por algo bastante desagradável, por isso, a maior parte

das pessoas mantém-se bem distante e até os cães a evitam.

Ele tinha razão ao dizer que havia algo bastante desagradável na casa. O

Mago desenhara um símbolo no lado de dentro da porta de trás.

Era a letra grega gama, que se usava ou para uma imagem

fantasmagórica ou um fantasma. O número à direita era o um, querendo

dizer que se tratava de um fantasma da primeira categoria,

suficientemente perigoso para levar algumas pessoas à beira da loucura.

— O seu nome era Matty Barnes — referiu Andrew —, e assassinou sete

pessoas nesta cidade, possivelmente mais. Tinha mãos grandes e usava-

as para tirar a vida das suas vítimas. Eram principalmente mulheres

jovens. Dizem que as trazia para aqui e lhes tirava a vida nesta mesma

divisão. Sucede que uma das mulheres contra-atacou e lhe espetou um

alfinete de chapéu no olho.

Ele morreu lentamente de septicemia. John ia convencer o seu fantasma

a ir-se embora mas desistiu. Sempre fizera tenção de aqui voltar um dia

e enfrentar o Destruidor e queria ter certeza de que esta descida para as

catacumbas ainda estaria disponível. Ninguém quer comprar uma casa

assombrada.

Senti de repente o ar ficar mais frio e as chamas das nossas velas

começaram a tremular. Algo estava muito perto e aproximava-se mais a

cada segundo. Chegou de repente. Não o consegui ver realmente mas

senti algo à espreita nas sombras no canto mais distante da cozinha;

algo que me olhava severamente.

Page 217: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O fato de eu não conseguir realmente vê-lo só piorava. Os fantasmas

mais poderosos conseguem escolher se se tornam ou não visíveis. O

fantasma de Matty Barnes estava a mostrar-me quão forte era

mantendo-se oculto, no entanto dava-me a entender que me vigiava. E

mais, conseguia sentir a sua maldade. Queria-nos mal e quanto mais

depressa saíssemos dali melhor.

— É imaginação minha ou de repente ficou muito frio aqui? — indagou

Andrew.

— Está mesmo frio — disse-lhe, sem mencionar a presença do fantasma.

Não havia necessidade de deixá-lo ainda mais nervoso do que ele já

estava.

— Nesse caso, vamos andando — alvitrou Andrew, seguindo na frente

até aos degraus da cave.

Era uma casa típica como as muitas com terraço que existiam nas

cidades do Condado: apenas duas divisões no piso de cima e outras duas

no piso de baixo com um sótão sob os beirais. E a porta da cave para a

cozinha encontrava-se exatamente na mesma posição que a de

Horshaw, onde o Mago me levara na minha primeira noite depois de me

ter tornado seu aprendiz. Aquela casa estivera assombrada por uma

imagem fantasmagórica, e para ver se eu estava à altura do cargo de

Mago, ordenara-me que descesse à cave à meia-noite. Nunca haveria de

esquecer aquela noite; só de pensar nela agora ainda me causava

arrepios.

Andrew e eu descemos as escadas até à cave. O

chão lajeado estava vazio à exceção de um monte de tapetes e alcatifas

velhos. Parecia suficientemente seco, mas havia um cheiro de mofo.

Andrew entregou-me a sua vela e depois arrastou rapidamente os

tapetes deixando à mostra um alçapão de madeira.

— Existe mais do que uma entrada para as catacumbas — referiu —,

mas esta é a mais fácil e a menos arriscada. Não é provável que

encontre muita gente a meter o nariz aqui em baixo.

Levantou a porta do alçapão e pude ver umas escadas de pedra que

desciam até à escuridão. Havia um cheiro a terra úmida e putrefação.

Andrew tirou-me a vela e desceu primeiro, mandando-me esperar um

momento.

Depois chamou: — Pode descer, mas deixe o alçapão aberto. Podemos

ter de sair daqui às pressas!

Page 218: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Deixei o saco do Mago, com as capas, na cave e segui-o, agarrando

ainda o bordão do meu mestre. Quando cheguei lá abaixo, para surpresa

minha, encontrei-me de pé em um terreno empedrado e não na lama,

com que estivera a contar. As catacumbas estavam também

pavimentadas como as ruas lá em cima. Teriam sido feitas pelas pessoas

que haviam vivido aqui antes da construção da cidade; aquelas que

veneravam o Destruidor? Se sim, as ruas empedradas de Priestown

tinham sido copiadas das catacumbas.

Andrew afastou-se sem dizer outra palavra e tive a sensação de que ele

queria sair rapidamente dali. Eu sabia que era o meu caso.

A princípio, o túnel era suficientemente largo para andarem duas

pessoas lado a lado mas o teto empedrado era baixo e Andrew viu-se

obrigado a caminhar com a cabeça inclinada para a frente. Não admirava

que o Mago lhes chamasse «Gente Pequena». Os construtores tinham

sem dúvida sido bem mais pequenos do que as pessoas de agora.

Não tínhamos avançado muito quando o túnel começou a estreitar; em

alguns lugares estava distorcido, como se o peso da catedral e dos

edifícios lá por cima estivesse a deformá-lo. Por vezes, as pedras que

revestiam também o teto e as paredes tinham caído, deixando que a

lama e o visco se infiltrassem e escorressem pelas paredes.

Ouvia-se o som de água a gotejar ao longe e o eco das nossas botas nas

pedras.

Não tardou que o corredor estreitasse ainda mais.

Fui obrigado a caminhar atrás de Andrew, e o nosso caminho dividiu-se

em dois túneis ainda menores. Depois de termos seguido pelo da

esquerda, fomos ter a um recanto na parede à nossa esquerda. Andrew

estacou e levantou a vela para que pudesse iluminar parte do interior.

Olhei horrorizado para o que vi. Havia filas de prateleiras e estavam

cheias de ossos: crânios com órbitas sem olhos, ossos de pernas, ossos

de braços, ossos de dedos e ossos que não identifiquei, todos de

tamanhos diferentes, todos misturados. E todos humanos!

— As catacumbas estão cheias de criptas como esta

— explicou Andrew. — Não convinha nada perdermo-nos aqui no escuro.

Os ossos também eram pequenos, como os de crianças. Estavam ali sem

dúvida os restos mortais da Gente Pequena.

Continuamos a avançar e ouvi água a correr rapidamente lá adiante.

Viramos uma esquina e lá estava, mais um pequeno rio do que um

ribeiro.

Page 219: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Este passa por debaixo da rua principal em frente à catedral — disse

Andrew, apontando na direção da água escura —, e vamos atravessar

ali. .

Pedras, nove ao todo, largas, lisas e planas, mas cada uma delas mesmo

à superfície da água.

Mais uma vez, Andrew foi na frente, dando passadas largas sem esforço,

de pedra em pedra. Chegado ao outro lado, parou e virou-se para trás, a

fim de me ver concluir a minha travessia.

— Esta noite é fácil — disse —, mas depois de fortes chuvas o nível da

água pode muito bem ficar acima das pedras. Então existe realmente o

perigo de se ser levado. Continuamos a caminhar e o som da água a

correr começou a ouvir-se ao longe.

Andrew estacou subitamente e pude ver por cima do ombro dele que

tínhamos chegado a um portão. E que portão! Nunca vira nenhum assim.

Do chão ao teto, de parede a parede, uma grade de metal bloqueava por

completo o túnel, metal que brilhava à luz da vela de Andrew.

Parecia ser uma liga que continha muita prata e fora feito por um

ferreiro extremamente habilidoso. Cada barra era constituída não por um

cilindro de metal, mas por várias barras muito mais finas, torcidas de

modo a formar uma espiral. O desenho era extremamente complexo:

eram sugeridos padrões e formas, mas quanto mais olhava mais eles

pareciam mudar.

Andrew virou-se e apoiou a mão no meu ombro.

— Aqui está ele, o Portão de Prata. Agora ouça — disse-me —, isto é

importante. Há algo por perto? Algo do escuro?

— Não me parece — respondi.

— Isso não é suficiente — respondeu Andrew, na sua voz áspera. — Tem

de ter certeza! Se deixarmos escapar esta criatura ela aterrorizará todo

o Condado, não apenas os padres.

Bem, eu não sentia o frio, o aviso habitual de que algo do escuro estava

próximo. Por isso, era um sinal de que estava tudo seguro. Mas o Mago

sempre me dissera para confiar nos meus instintos, pelo que, para ter a

dupla certeza respirei fundo e concentrei-me bastante.

Nada. Não sentia absolutamente nada.

— Está tudo desimpedido — informei Andrew.

— Tem certeza? Tem realmente certeza?

— Tenho certeza.

Page 220: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Andrew ajoelhou-se subitamente e levou a mão ao bolso das calças.

Havia uma pequena porta curva na grade mas a minúscula fechadura

ficava muito perto do chão e era por isso que Andrew estava tão

curvado. Muito cuidadosamente, introduziu uma chave minúscula na

fechadura. Lembrei-me da chave enorme exposta na parede da oficina

dele. Seria de pensar que quanto maior a chave, mais importante era. O

que poderia ser mais importante do que a chave minúscula que Andrew

segurava agora na mão? Uma chave que mantinha todo o Condado a

salvo do Destruidor.

Parecia estar fazendo um grande esforço e posicionava e reposicionava

constantemente a chave. Por fim ela rodou e Andrew abriu o portão e

levantou-se.

— Ainda quer fazer isto? — perguntou-me.

Anuí, depois ajoelhei-me, enfiei o bordão pelo portão aberto e segui-o,

gatinhando. Andrew trancou imediatamente o portão atrás de mim e

passou a chave pela grade. Guardei-a no bolso esquerdo das calças,

empurrando-a para o meio das limalhas de ferro.

— Boa sorte — desejou-me Andrew. — Vou voltar para a cave e esperar

uma hora caso tenha alguma razão para voltar por aqui. Se não

aparecer, seguirei para casa. Quem me dera poder ajudar mais. É um

rapaz corajoso, Tom. Como desejava ter a mesma coragem para te

acompanhar.

Agradeci-lhe e, levando o bordão na mão esquerda e a vela na direita,

avancei sozinho pela escuridão. Passados momentos, instalou-se em

mim o pleno terror do que ia empreender. Estava louco? Encontrava-me

agora no antro do Destruidor e ele podia aparecer a qualquer momento.

Onde é que eu tinha a cabeça? Ele podia saber já que eu estava aqui!

Mas respirei fundo e tranquilizei-me com a idéia de que se não se

precipitara para o Portão de Prata quando Andrew o abrira, não era

onisciente. E, se as catacumbas eram tão extensas quanto as pessoas

afirmavam, então naquele preciso momento o Destruidor poderia estar a

quilômetros de distância. Fosse como fosse, o que mais podia eu fazer

senão continuar a avançar? As vidas do Mago e de Alice dependiam

ambas do que eu fizesse.

Caminhei cerca de um minuto antes de chegar a dois túneis que

ramificavam. Recordando-me do que o irmão Peter me dissera, escolhi o

da esquerda. O ar à minha volta tornou-se mais frio e senti que já não

estaria sozinho. Ao longe, para lá da luz da vela, havia pequenas formas

Page 221: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

luminosas tênues agitando-se como morcegos, entrando e saindo das

criptas ao longo das paredes dos túneis. Quando me aproximei elas

desapareceram. Não se aproximaram demais, mas tive certeza de que

eram os fantasmas de parte da Gente Pequena. Os fantasmas não me

preocupavam muito; o que não me saía da idéia era o Destruidor.

Cheguei à esquina e, quando virei, seguindo para a esquerda, senti algo

debaixo dos pé e quase tropecei. Pisara algo mole e pegajoso.

Recuei e ergui a vela para poder ver melhor. E o que vi deixou-me os

joelhos a tremer e a vela a dançar na minha mão trêmula. Era um gato

morto. Mas não era o fato de estar morto que me incomodava; era a

forma como morrera.

Descera sem dúvida às catacumbas à procura de ratazanas ou ratos e

encontrara um fim terrível. Estava deitado de bruços, os olhos salientes.

O pobre animal fora tão espalmado que em ponto algum o seu corpo

tinha mais de dois centímetros e meio de espessura. Ficara colado às

pedras mas a sua língua saliente brilhava ainda, por isso não podia estar

morto há muito tempo. Estremeci de horror. Fora «prensando», sim. Se

o Destruidor me encontrasse, seria sem dúvida também esse o meu

destino.

Avancei rapidamente, satisfeito por deixar para trás aquela visão

horrível, e cheguei finalmente à base de umas escadas de pedra que

conduziam a uma porta de madeira.

Se o irmão Peter estivesse certo, aquela era a adega da casa dos padres.

Subi as escadas e usei a chave do Mago. Um instante depois, conseguira

abrir a porta. Uma vez dentro da adega, fechei-a atrás de mim mas não

a tranquei.

A adega era muito grande, com enormes barris de cerveja e filas e filas

de prateleiras cheias de garrafas de vinho, algumas das quais estavam

manifestamente ali há muito tempo — encontravam-se cobertas de teias

de aranha. Reinava um silêncio de morte aqui em baixo, e a menos que

alguém estivesse escondido a observar-me, parecia completamente

deserta. Claro que a vela iluminava apenas a pequena área à minha

volta e para lá dos barris mais próximos a escuridão podia esconder

tudo.

Antes de deixar a casa de Andrew, o irmão Peter dissera-me que os

padres só vinham à adega uma vez por semana buscar o vinho de que

necessitavam, e que a maior parte deles nem sonharia descer às

catacumbas por causa do Destruidor. Mas já não podia assegurar o

Page 222: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

mesmo a respeito dos homens do Inquisidor: não eram da região e não

sabiam o suficiente para recearem. E não só; podiam servir-se de

cerveja e provavelmente não se contenta-riam apenas com um barril.

Percorri todo o corredor com cautela, parando mais ou menos a cada dez

passos para escutar. Consegui finalmente avistar a porta que dava para

o corredor e ali, no teto à esquerda, mesmo encostado à parede, estava

um enorme alçapão de madeira. Tínhamos um alçapão idêntico lá em

casa. A nossa fazenda fora em tempos chamada a «Fazenda do

Cervejeiro» porque fornecia cerveja às tabernas e fazendas das

redondezas. Como explicara o ir-mão Peter, este alçapão era usado para

fazer entrar e sair os barris e caixotes da adega sem o incômodo de ter

de atravessar o presbitério. E ele tinha razão ao afirmar que seria a via

mais fácil de fuga. Se a usasse, correria sem dúvida o risco de ser

detectado, mas voltar pelo Portão de Prata significava possivelmente

enfrentar o Destruidor e, depois de ter estado trancado, o Mago não

teria forças suficientes para o enfrentar. E não só, havia que pensar na

maldição do Mago. Quer acreditasse nela quer não, não valia a pena pôr

à prova o destino.

Havia barris grandes de cerveja empilhados mesmo por debaixo do

alçapão. Colocando a vela num e pousando o bordão ao lado, subi para

outro e consegui chegar à fechadura, que fora colocada no alçapão de

modo a poder ser corrida ou aberta de ambos os lados. Era bastante

simples e a chave do Mago voltou a funcionar, mas naquele momento

deixei o alçapão fechado caso alguém pudesse ver lá de cima.

Abri a porta para o corredor com igual facilidade, rodando a chave muito

devagar de modo a não fazer qualquer ruído. Fez-me compreender que

era uma sorte o Mago ter um irmão serralheiro.

A seguir, abri a porta e avancei por um comprido corredor lajeado.

Estava deserto, mas cerca de vinte passos à frente, do lado direito, pude

ver um archote a tremular num suporte de parede por cima de uma

porta fechada. Só podia ser a casa dos guardas de que o irmão Peter me

avisara. Mais adiante no corredor havia uma segunda porta, e para lá

dela umas escadas de pedra que deviam conduzir às divisões por cima.

Avancei devagar pelo corredor em direção à primeira porta, quase nas

pontas dos pés e mantendo-me nas sombras. Uma vez perto da sala dos

guardas, ouvi sons vindos lá de dentro. Alguém tossiu, alguém soltou

uma gargalhada e houve o murmúrio de vozes.

Page 223: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

De repente, o meu coração disparou. Ouvira uma voz cava muito

próximo da porta e antes que me conseguisse esconder, a porta foi

escancarada com alguma força. Quase me atingiu, mas recuei para trás

dela e comprimi-me contra as pedras rugosas da parede. Saíram botas

pesadas para o corredor.

— Tenho de voltar ao meu trabalho — disse uma voz que reconheci. Era

o Inquisidor e falava com alguém que estava junto de pé à entrada!

— Mandem alguém buscar o irmão Peter — continuou —, e tragam-no

quando eu tiver terminado com o outro. O padre Cairns pode ter-nos

deixado escapar um prisioneiro, mas ele sabia de quem era a culpa, isso

posso afirmar. E pelo menos sempre teve o bom senso de me relatar o

sucedido. Prendam bem as mãos do nosso bom irmão atrás das costas, e

não sejam meigos. Façam com que a corda se lhe crave na carne para

que ele saiba exatamente o que o espera! Serão mais do que umas

palavras duras, podem ter certeza disso. Os ferros em brasa soltar-lhe-

ão a língua!

Como resposta ouviram-se as gargalhadas cruéis e ruidosas dos

guardas. Depois a comprida capa negra do Inquisidor ondulou atrás dele

na corrente de ar quando fechou a porta e se encaminhou rapidamente

para as escadas ao fundo do corredor.

Se tivesse se virado teria me visto logo! Por um momento pensei que

fosse parar à porta da cela dos prisioneiros, mas para meu alívio

continuou a subir as escadas e desapareceu de vista.

Pobre irmão Peter. Ia ser interrogado e não havia forma de o poder

avisar. E eu fora o prisioneiro a quem o Inquisidor se referira. Iam

torturá-lo porque me deixara sair em liberdade! E não apenas isso, o

padre Cairns falara de mim ao Inquisidor. Agora que tinha o Mago, o

Inquisidor viria também à minha procura. Tinha de salvar o meu mestre

antes que fosse tarde de mais para nós os dois.

Estive quase para cometer um grande erro e voltar pelo corredor na

direção da cela; no entanto, percebi mesmo a tempo de que a ordem do

Inquisidor seria executada imediatamente. De fato, a porta da sala dos

guardas voltou a abrir-se e saíram dois homens brandindo cacetes que

avançaram em passos largos para as escadas.

Quando a porta se voltou a fechar do lado de dentro, fiquei

completamente exposto, mas a sorte continuava a meu favor e os

guardas não se viraram. Depois de terem subido as escadas e

desaparecido de vista, esperei alguns instantes até o eco das suas botas

Page 224: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

desaparecer ao longe e o meu coração deixar de bater tão fortemente.

Foi então que ouvi outras vozes vindas da cela lá adiante. Uma chorava,

outra entoava uma prece. Precipitei-me para o som e cheguei a uma

porta de metal pesada, o seu terço superior formado por barras de metal

verticais.

Levantei a vela aproximando-a das grades e espreitei lá para dentro. À

luz trêmula, a cela parecia muito ruim e cheirava ainda pior. Estavam

cerca de vinte pessoas apinhadas naquele espaço pequeno. Algumas

encontravam-se deitadas no chão e pareciam dormir. Outras estavam

sentadas com as costas apoiadas na parede. Havia uma mulher de pé

junto à porta e fora a sua voz que eu ouvira. Presumira que estivesse a

rezar mas entoava uma algaraviada incompreensível e revirava os olhos

como se aquilo por que passara a tivesse levado à loucura.

Não conseguia ver o Mago e também não conseguia ver Alice, porém

isso não queria dizer que não estivessem lá dentro. Estes eram

prisioneiros, sim. Os prisioneiros do Inquisidor, prontos para a fogueira.

Sem perder tempo, pousei o bordão, corri a fechadura da porta e abri-a

lentamente. Queria entrar para procurar o Mago e Alice, mas antes

mesmo de a porta estar completamente aberta, a mulher que estivera a

entoar avançou e barrou-me o caminho.

Gritou algo, atirando-me as palavras na cara. Não consegui entender o

que ela dizia, mas foi tão ruidoso que olhei para trás na direção da sala

dos guardas. Numa questão de segundos, havia outros por detrás dela,

empurrando-a para a frente e para o corredor. Estava uma menina à sua

esquerda, pouco mais velha do que Alice.

Tinha grandes olhos castanhos e um rosto bondoso, de modo que recorri

a ela.

— Estou à procura de alguém — disse-lhe, a minha voz pouco mais do

que um murmúrio.

Antes que pudesse dizer algo mais, ela abriu bastante os lábios como se

fosse falar, revelando duas filas de dentes, alguns partidos, outros

pretos com cáries. Em vez de palavras, saíram gargalhadas ruidosas da

garganta dela e provocou de imediato um tumulto nos outros que a

rodeavam. Estas pessoas tinham sido torturadas e passado dias ou até

semanas sob a ameaça de morte. Era escusado apelar à razão ou pedir

calma. Estenderam-se dedos para mim, e um homem grande e magro

com membros compridos e olhos esgazeados agarrou-me a mão

Page 225: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

esquerda com força e começou a sacudi-la para cima e para baixo de

gratidão.

— Obrigado! Obrigado! — exclamou, e apertou ainda com mais força,

chegando eu a pensar que me esmagaria os ossos.

Consegui libertar a mão, peguei no bordão e recuei alguns passos. Não

tardaria, os guardas ouviriam a agitação e sairiam para o corredor a fim

de investigarem. E se o Mago e Alice não estivessem naquela cela? E se

se encontrassem presos noutro lugar?

Agora era tarde de mais porque, empurrado rudemente por trás, eu

passara já pela sala dos guardas, e mais alguns segundos levaram-me

até à porta da adega. Olhei para trás e vi uma fila de pessoas a seguir-

me. Pelo menos ninguém gritava agora, mas não deixava de haver

barulho a mais para o meu gosto. Só esperava que os guardas tivessem

bebido bastante. Provavelmente estavam acostumados ao barulho dos

prisioneiros; não contariam com uma fuga.

Uma vez dentro da adega, subi para um barril e equilibrei-me ali,

enquanto empurrava rapidamente o alça-pão para cima. Vislumbrei

através da porta aberta um contraforte de pedra da parede exterior da

catedral e recebi no rosto um afluxo de ar frio e umidade. Chovia

intensamente.

Outras pessoas tinham subido para os barris. O

homem que me agradecera acotovelou-me rudemente de lado e

começou a içar-se pelo alçapão. Instantes depois estava lá fora,

estendendo uma mão para mim, oferecendo-se para me içar.

— Vamos! — disse com voz sibilante.

Hesitei. Queria ver se o Mago e Alice tinham saído da cela. Depois era

tarde de mais, porque uma mulher subira para o barril a meu lado e

estendia os braços para o homem que, sem um momento de hesitação,

lhe agarrou os pulsos e a puxou pelo alçapão aberto.

Depois disso perdera a minha oportunidade. Havia outros, alguns quase

lutando entre si no desespero de saírem. Nem todos eram assim, porém.

Outro homem virou um barril de lado e rolou-o até o encostar ao

primeiro que estava ao alto para formar um degrau que facilitasse a

subida. Ajudou uma velhota a subir e segurou-lhe as pernas enquanto o

homem lá em cima a agarrava pelos pulsos e puxava lentamente para

cima.

Page 226: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Os prisioneiros estavam a sair pelo alçapão, mas outros passavam ainda

pela porta para a adega e não parei de olhar na direção deles, na

esperança de que um pudesse ser o Mago ou Alice.

De repente ocorreu-me algo. E se um deles estivesse demasiado doente

ou fraco para se mover e não conseguisse abandonar a cela?

Não tinha alternativa. Tinha de voltar atrás e ver.

Saltei do barril, mas era tarde de mais: um grito, depois vozes iradas.

Atroaram botas pelo corredor. Um guarda grande e entroncado entrou

na adega brandindo um bastão. Olhou à sua volta e, com um berro de

raiva, veio direto a mim.

Page 227: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 10

CUSPE DE UMA GAROTA

Sem um segundo de hesitação, agarrei no bordão e apaguei a vela,

mergulhando a adega na escuridão, e desloquei-me rapidamente na

direção da porta que conduzia às catacumbas.

Havia uma tremenda agitação lá atrás: gritos, berros e os sons de uma

luta. Olhando para trás, vi outro dos guardas levar um archote para a

adega, de modo que me enfiei atrás das prateleiras do vinho, mantendo-

as entre mim e a luz enquanto me dirigia para a porta na parede do

fundo. Senti-me péssimo por deixar para trás o Mago e Alice. Ter

chegado até aqui e não conseguir salvá-los fez-me sentir um miserável.

Só esperava que, de certa forma, na confusão, eles tivessem logrado

fugir. Ambos conseguiam ver bem no escuro e se eu conseguira

encontrar a porta para as catacumbas, eles também haveriam de

conseguir. Senti alguns dos prisioneiros passar por mim, afastando-se

dos guardas e enfiando-se nos recantos escuros da adega. Alguns

pareciam estar à minha frente.

Talvez o meu mestre e Alice se encontrassem entre eles, mas não podia

arriscar chamá-los e alertar os guardas. Ao avançar cuidadosamente por

entre as prateleiras de vinho, pareceu-me ver lá à frente a porta para as

catacumbas abrir-se e fechar-se rapidamente, mas estava escuro demais

para ter certeza.

Alguns momentos depois transpusera a porta. No instante em que a

fechei atrás de mim, fiquei mergulhado numa escuridão tão intensa que,

por uns segundos, não consegui ver um palmo à frente do nariz. Fiquei

ali no topo dos degraus, esperando desesperadamente que os meus

olhos se adaptassem.

Assim que consegui distinguir os degraus, desci cuidadosamente e

avancei pelo túnel o mais rapidamente que pude, consciente de que

alguém acabaria por ir verificar a porta: não a trancara para o caso de

Alice ou o Mago estarem lá atrás.

Normalmente, consigo ver no escuro mas naquelas catacumbas parecia

estar cada vez mais escuro por isso parei e retirei a caixa de mechas do

bolso do meu casaco.

Page 228: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Ajoelhei e tirei uma pequena quantidade de mechas para as pedras.

Rapidamente, servi-me da pedra e do metal para criar uma faísca e

alguns segundos depois consegui acender a minha vela.

Com a luz da vela a guiar-me, pude continuar a avançar mais mas o ar à

minha volta tornava-se mais frio a cada passo e não muito longe lá

adiante consegui ver as sinistras tremulações na parede. Mais uma vez,

moviam-se formas luminosas brancas dentro e fora das sombras, no

entanto, havia agora muito mais do que da última vez. Os mortos

estavam a reunir-se. A minha anterior passagem pelos túneis

incomodara-os.

Parei. O que era aquilo? Em algum lugar ao longe ouvira o uivo de um

cão. Fiquei estarrecido, o meu coração em sobressalto. Era um cão de

verdade ou poderia tratar-se do Destruidor? Andrew mencionara um cão

preto enorme com dentes ferozes. Um cão enorme que, na realidade,

era o Destruidor. Procurei convencer-me de que aquilo que eu estava a

ouvir era um cão de verdade, um cão que não se sabe como dera com o

caminho para as catacumbas. Afinal, se um gato o fizera, por que não

um cão?

Ouviu-se novamente o uivo, e ficou a pairar no ar durante bastante

tempo, ecoando e repercutindo-se pelos compridos túneis. Estava à

minha frente ou atrás? Neste túnel ou noutro? Era impossível dizer. Mas,

com o Inquisidor e os seus homens atrás de mim, não tinha outra

alternativa senão avançar para o portão.

Caminhei então rapidamente, tremendo de frio, desviando-me do gato

prensado, até chegar ao ponto onde os túneis bifurcados se uniam.

Contornei finalmente uma esquina e vi o Portão de Prata. Ali estaquei, os

meus joelhos começando a tremer, a minha mente receando prosseguir.

Porque lá à frente, na escuridão para lá da chama da vela, estava

alguém à minha espera. Havia uma figura umbrosa sentada no chão

próximo do portão. Poderia tratar-se de um prisioneiro que fugira?

Alguém que passara pela porta antes de mim?

Não podia voltar para trás, de maneira que dei alguns passos na direção

do portão e levantei mais a vela.

Virou-se para mim um rosto barbudo.

— Por que demorou? — perguntou uma voz que reconheci. — Já estou à

espera há cinco minutos!

Page 229: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Era o Mago, vivo e de saúde! Precipitei-me, muito aliviado por ele ter

conseguido fugir. Tinha uma equimose feia por cima do olho esquerdo e

a boca estava inchada.

Tinham-no espancado, pelo visto.

— O senhor está bem? — perguntei, ansioso.

— Sim, rapaz. Dê-me mais alguns instantes para recuperar o fôlego e

ficarei ótimo. Abra aquele portão e em breve iremos a caminho.

— Alice estava com você? — inquiri. — Estavam na mesma cela?

— Não, rapaz. O melhor que tem a fazer é esquecê-la. Ela não presta.

Só traz problemas e não há nada que possamos fazer para ajudá-la

neste momento. — A voz dele pareceu cruel e dura. — Ela merece o que

a espera.

— Morrer queimada? — perguntei. — O senhor nunca foi a favor de

queimar uma bruxa, quanto mais uma moça jovem, e chegou a dizer a

Andrew que ela era inocente.

Fiquei chocado. Ele nunca confiara em Alice mas custava-me ouvido falar

daquela maneira, especialmente quando ele próprio enfrentara

semelhante destino terrível.

E então Meg? Nem sempre fora tão frio e insensível. .

— O que te deu, rapaz, está a sonhar ou acordado?

— quis saber o Mago, a sua voz cheia de contrariedade e impaciência. —

Vamos, acorde! Pegue a chave e abra aquele portão.

Como eu hesitasse, ele estendeu as mãos para mim.

— Dê-me o meu bordão, rapaz. Estive tempo demais na cela úmida e

esta noite tenho os ossos doloridos...

Estendi o braço para lhe entregar, mas quando os dedos dele

começaram a envolvê-lo, recuei subitamente, aterrorizado.

Não fora apenas o choque do seu hálito quente e malcheiroso a queimar-

me o rosto. É que ele estendera-me a mão direita! A mão direita, não a

esquerda!

Não era o Mago! Este não era o meu mestre!

Enquanto observava, pregado ao chão, a mão dele desceu para o lado

do corpo, como uma cobra, começando a contorcer-se na minha direção

sobre as pedras. Antes que conseguisse me mexer, o braço dele descaíra

e esticara para o dobro do seu comprimento normal e a mão fechara-se

em volta do meu tornozelo, agarrando-o num aperto firme e doloroso. A

minha reação imediata foi tentar retirá-lo daquele aperto medonho, mas

sabia que não era possível. Mantive-me absolutamente imóvel.

Page 230: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Procurei concentrar-me. Agarrei o bordão e tentei vencer o medo,

lembrando-me de respirar. Estava apavorado, mas, apesar de o meu

corpo não se mexer, a minha mente fazia-o. Só havia uma explicação e

levava-me a estremecer de terror: encontrava-me perante o Destruidor!

Fazendo um esforço para me concentrar, analisei cuidadosamente aquela

coisa, procurando avidamente algo que me pudesse ajudar nem que

fosse só um bocadinho.

Parecia tal e qual o Mago, e a voz era também a dele. Era impossível

dizer a diferença, à exceção da mão a serpente-ar.

Depois de observar durante alguns segundos, senti-me um pouco

melhor. Era um truque que o Mago me ensinara: quando frente a frente

com os nossos maiores receios deveríamos concentrar-nos intensamente

e pôr de lado os nossos sentimentos.

«Funciona sempre, rapaz!», dissera-me ele uma vez.

«O escuro alimenta-se do medo, e com uma mente calma e a barriga

vazia tem meia batalha ganha antes mesmo de começar.»

E estava a funcionar. O meu corpo parara de tremer e sentia-me mais

calmo, mais relaxado.

O Destruidor libertou o meu tornozelo e a mão voltou a deslizar para

junto do corpo. A criatura levantou-se e deu um passo na minha direção.

Quando o fez, ouvi um ruído curioso: não o som de botas de que estava

à espera, mais como o raspar de garras enormes nas pedras. O

movimento do Destruidor agitou o ar, pelo que a chama da vela

tremulou, distorcendo a sombra que o Mago projetava no Portão de

Prata.

Rapidamente, ajoelhei e coloquei a vela e o bordão no chão entre nós.

Um instante depois, levantara-me, as minhas mãos em cada um dos

bolsos das calças, agarrando um punhado de sal e outro de ferro.

— Está perdendo o seu tempo — disse o Destruidor, a sua voz

subitamente nada parecida com a do Mago. Áspera e cava, ecoava pelas

próprias rochas das catacumbas, vibrando pelas minhas botas e

deixando-me os dentes sensíveis. — Truques velhos como esse não me

apanharão. Já aqui ando há tempo demais para ser afetado por isso!

O s eu mestre, Ossos Velhos, tentou-o uma vez mas não lhe serviu de

nada. De nada mesmo.

Hesitei, mas apenas por um momento. Podia estar simplesmente a

mentir — valia a pena tentar. Mas depois, no meio das limalhas de ferro,

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a minha mão esquerda fechou-se sobre algo duro. Era a pequena chave

do Portão de Prata. Não podia arriscar-me a perdê-la.

— Ahhh. . tem aquilo de que preciso, ora se tem — disse o Destruidor

com um sorriso manhoso.

Lera-me o pensamento? Ou talvez tivesse lido apenas a expressão no

meu rosto, ou possivelmente adivinhado? Fosse como fosse, sabia

demais.

— Olhe — referiu, com uma expressão astuta na cara —, se Ossos

Velhos não foi capaz de me apanhar, então, que hipóteses tem você?

Nenhuma mesmo! Hão de vir aqui embaixo, e andar à sua procura, não

tarda. Não ouve os guardas agora? Arderá, sim! Arderá com os

restantes! Não há saída daqui a não ser por este portão. Nenhuma saída

mesmo, sabe? Portanto, use a chave antes que seja tarde demais!

O Destruidor afastou-se para o lado, pelo que ficou de costas para a

parede do túnel. Eu sabia exatamente o que ele pretendia: seguir-me

pelo portão, ficar livre, poder fazer das suas em qualquer parte do

Condado. Sabia o que diria o Mago; o que esperava de mim. Eu tinha o

dever de me certificar de que o Destruidor permanecia aprisionado nas

catacumbas. Isso era mais importante do que a minha própria vida.

— Não seja tolo! — silvou o Destruidor, a sua voz outra vez muito mais

alta e áspera do que alguma vez ouvira a do Mago. — Ouça-me e será

livre. E recompensado também. Uma grande recompensa. A mesma que

ofereci a Ossos Velhos há muitos anos, mas ele não me quis dar ouvidos.

E onde é que isso o levou, hein? Diga-me! Amanhã será julgado e

considerado culpado. Depois de amanhã morrerá na fogueira.

— Não — argumentei. — Não posso fazê-lo.

Ante aquelas palavras, o rosto do Destruidor encheu-se de raiva. Fazia

ainda lembrar o Mago, mas as feições que eu conhecia tão bem estavam

distorcidas e carregadas de maldade. Deu outro passo na minha direção,

erguendo um punho. Podia tratar-se apenas de uma ilusão criada pela

luz da vela, mas a criatura parecia estar a crescer. E senti um peso

invisível começar a pressionar-me a cabeça e os ombros. Quando fui

obrigado a ajoelhar-me, pensei no gato esborrachado nas pedras e

percebi que me esperava idêntico destino. Procurei inspirar mas não

consegui e entrei em pânico. Não era capaz de respirar! Era isso!

A luz da vela perdeu-se na súbita escuridão que me cobriu os olhos.

Tentei desesperadamente falar, pedir misericórdia, mas sabia que não

havia misericórdia a menos que eu abrisse o Portão de Prata. Onde é

Page 232: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

que eu tinha a cabeça? Como fora tolo ao acreditar que, com alguns

meses de preparação conseguiria repelir uma criatura tão malévola e

poderosa quanto o Destruidor! Estava a morrer

— tinha certeza disso. Sozinho nas catacumbas. E, o pior de tudo, era

que falhara redondamente. Não conseguira salvar o meu mestre nem

Alice.

Depois ouvi algo ao longe: o som de um sapato a raspar nas pedras.

Dizem que, quando morremos, o último sentido que perdemos é o

ouvido. E por um momento pareceu-me que o raspar de um sapato era a

última experiência que levaria desta vida. Mas, nessa altura, o peso

invisível a esmagar o meu corpo foi retrocedendo lentamente. A minha

visão ficou mais clara e, de repente, pude voltar a respirar. Vi o

Destruidor virar a cabeça e olhar para trás na direção da curva do túnel.

O Destruidor também ouvira!

Outra vez o som. Desta vez não havia dúvida. Passos! Vinha aí alguém!

Olhei para trás na direção do Destruidor e vi que estava a mudar. Não o

imaginara possível. Estava mesmo a crescer. Mas agora, a sua cabeça

chegava quase ao teto do túnel, o corpo curvando-se para a frente, o

rosto a mudar até deixar de ser o do Mago. O queixo alongava-se,

saindo para fora e para cima e formando o princípio de um gancho, e o

focinho curvava para baixo ao encontro dele. Estaria a mudar para a sua

verdadeira forma — a da gárgula de pedra por cima da porta principal da

catedral? Recuperara a força plena?

Escutei os passos que se aproximavam. Devia ter apagado a vela, mas

isso apenas me deixaria no escuro com o Destruidor. Pelo menos parecia

vir aí apenas uma pessoa e não um bando de homens do Inquisidor. Não

me importava quem era. De momento salvara-me.

Vi primeiro os pés, quando alguém contornou a esquina e surgiu

iluminado pela luz da vela. Sapatos bicudos, depois uma menina magra

com um vestido preto e o menear de quadril quando ela virou a esquina.

Era Alice!

Parou, olhou para mim rapidamente, e arregalou os olhos. Quando viu o

Destruidor, o seu rosto ficou furioso em vez de receoso.

Olhei para trás e, por um momento, os olhos do Destruidor cruzaram-se

com os meus. Para além da raiva a chispar neles, pude ver algo mais,

mas antes que conseguisse perceber, Alice correu na direção do

Destruidor, bufando como um gato. Depois, para meu espanto, cuspiu-

lhe no focinho.

Page 233: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O que sucedeu seguidamente foi rápido demais pa-ra se ver. Levantou-

se um vento súbito e o Destruidor desapareceu.

Ficamos imóveis durante o que pareceu muito tempo. Depois Alice virou-

se para mim.

— Ele não gostou muito do cuspe de uma garota, não é? — comentou

com um tênue sorriso. — Ainda bem que cheguei nesta altura.

Não respondi. Não podia acreditar que o Destruidor tivesse fugido tão

facilmente, mas eu estava já de joelhos, a tentar enfiar a chave na

fechadura do Portão de Prata. As minhas mãos tremiam, e estava a ser

tão difícil quanto parecera quando Andrew o fizera.

Lá consegui introduzir a chave na posição certa e ela rodou. Abri o

portão, peguei na chave e no bordão e atravessei a gatinhar.

— Traga a vela! — gritei a Alice, e mal ela ficou em segurança, introduzi

a chave do outro lado da fechadura e esforcei-me por rodá-la. Desta vez

pareceu levar uma eternidade; esperava que o Destruidor voltasse a

qualquer momento.

— Não consegue ser um pouco mais rápido? —

perguntou Alice.

— Não é tão fácil quanto parece — respondi-lhe.

Por fim, consegui fechá-lo e soltei um suspiro de alívio. Depois lembrei-

me do Mago. .

— Mr. Gregory estava com você na cela? — inquiri.

Alice abanou a cabeça. — Não quando nos libertou. Eles tinham-no

levado para interrogá-lo cerca de uma hora antes de aparecer.

Tivera sorte ao conseguir evitar a captura. Sorte ao conseguir tirar os

prisioneiros da cela. Mas a sorte tem uma forma de se equilibrar a si

mesma. Chegara somente uma hora depois. Alice estava livre, mas o

Mago continuava preso e, a menos que conseguisse fazer algo a esse

respeito, ele ia ser queimado.

Sem perder mais tempo, conduzi Alice pelo túnel até chegarmos ao rio

de curso rápido. Atravessei depressa, contudo quando me virei para trás,

Alice continuava na outra margem, a olhar para a água.

— É fundo, Tom — exclamou. — É fundo demais e as pedras são

escorregadias!

Atravessei até onde ela ficara. Depois, agarrando-lhe a mão, conduzi-a

pelas nove pedras lisas. Não tardamos a chegar ao alçapão aberto que

dava acesso à casa vazia e, uma vez dentro da cave, fechei o alçapão

atrás de nós. Para meu desalento, Andrew fora-se embora. Precisava

Page 234: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

falar com ele: dizer-lhe que o Mago não estava na cela; avisá-lo de que

o irmão Peter corria perigo e que os rumores eram realmente verdade —

a força do Destruidor voltara!

— Era melhor ficarmos aqui um pouco. O Inquisidor irá começar a

procurar na cidade mal se perceber de que fugiu. Esta casa está

assombrada — o último lugar onde alguém irá querer procurar é aqui em

baixo na cave.

Alice anuiu e, pela primeira vez desde a Primavera, consegui olhá-la

como deve ser. Estava da minha altura, o que significava que crescera

pelo menos também dois centímetros e meio, mas estava ainda vestida

tal e qual da última vez que a vira quando a fora levar a casa da tia dela

em Staumin. Se não era o mesmo vestido preto, era um gêmeo dele.

O seu rosto estava bonito como sempre, só que mais magro, e mais

velho, como se tivesse assistido a coisas que o tinham obrigado a

crescer rapidamente; coisas a que ninguém deveria ter de assistir. O seu

cabelo preto estava opaco e imundo e havia manchas de sujeira no rosto

dela. Alice parecia não se lavar há pelo menos um mês.

— É bom voltar a te ver — disse-lhe. — Quando te vi na carroça do

Inquisidor, julguei que fosse o fim.

Ela não respondeu. Agarrou apenas a minha mão e apertou-a.

— Estou meio esfomeada, Tom. Não tem nada que se coma, não é?

Abanei a cabeça.

— Nem sequer um pedaço daquele queijo velho e bolorento?

— Lamento — disse-lhe. — Não me resta nenhum.

Alice virou-se e agarrou uma ponta do velho carpete que estava em cima

de um monte.

— Ajude-me, Tom — pediu. — Preciso me sentar e não gosto muito das

pedras frias.

Pousei a vela e o bordão e juntos estendemos o carpete nas lajes. O

cheiro de mofo era mais forte do que nunca e vi as baratas e os bichos-

de-conta que tínhamos destapado fugirem correndo pelo chão da cave.

Nada preocupada, Alice sentou-se no carpete e encolheu os joelhos para

que pudesse apoiar o queixo.

— Um dia vou me vingar — disse. — Ninguém merece ser tratado

daquela maneira.

Sentei-me ao lado dela e coloquei a minha mão na sua. — O que

aconteceu? — inquiri.

Page 235: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Ela permaneceu em silêncio durante um tempo e, precisamente quando

decidira que ela não me ia responder, de repente falou.

— Assim que me conheceu, a minha velha tia foi boa para mim.

Obrigava-me a trabalhar, se obrigava, mas sempre me alimentou bem.

Estava a acostumar-me a viver ali em Staumin quando veio o Inquisidor.

Apanhou-nos de surpresa e arrombou a porta. Mas a minha tia não era

Lizzie dos Ossos. Ela não era nenhuma bruxa.

— Atiraram-na no lago à meia-noite enquanto uma enorme multidão

assistia, todos rindo às gargalhadas e a escarnecer. Estava

verdadeiramente assustada, sim, à espera de que a seguir fosse a minha

vez. Amarraram-lhe os pés às mãos e atiraram-na lá para dentro. Foi ao

fundo como uma pedra, coitadinha. Mas estava escuro, fazia muito vento

e veio uma grande rajada no momento em que ela bateu na água;

apagou uma quantidade de archotes. Demoraram muito tempo a

encontrá-la e tirá-la para fora.

Alice enterrou o rosto nas mãos e soltou um soluço. Aguardei em silêncio

até que ela pudesse continuar.

Quando descobriu o rosto, tinha os olhos secos mas os lábios tremiam-

lhe.

— Quando a conseguiram tirar, estava morta. Não é justo, Tom. Ela não

boiou, afundou-se, por isso devia estar inocente, mas eles mataram-na

mesmo assim! Depois disso meteram-me na carroça com os restantes.

— A minha mãe contou-me que atirar uma bruxa na água não é

conclusivo — referi. — Só os tolos recorrem a esse método.

— Não, Tom, o Inquisidor não é nenhum tolo.

Existe um motivo para tudo o que ele faz, disso pode ter certeza. É

ganancioso. Ganancioso por dinheiro. Ele vendeu a cabana da minha tia

e guardou o dinheiro. Nós vimo-lo a contá-lo. É o que ele faz. Chama de

bruxas as pessoas, afasta-as do caminho e fica-lhes com as casas, a

terra e o dinheiro. E mais, gosta do seu trabalho. Há escuridão nele. Ele

diz que o faz para livrar o Condado das bruxas, mas é mais cruel do que

qualquer bruxa que eu tenha conhecido — e não fica por aí.

— Havia uma garota chamada Maggie. Não era muito mais velha do que

eu. Não a atirou à água. Fez um teste diferente e tivemos todos de

assistir. O Inquisidor usou um comprido alfinete afiado. Foi-lhe

espetando sucessivamente o corpo. Devia tê-la ouvido gritar. A pobre

garota quase enlouqueceu de dor. Desmaiava constantemente e eles

tinham um balde de água ao lado da mesa para fazê-la recobrar os

Page 236: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

sentidos. Mas no fim encontraram aquilo que procuravam. A marca do

Diabo! Sabe o que é, Tom? Anuí. O Mago contara-me que era uma das

coisas que os caçadores de bruxas usavam. Mas, segundo ele, não

passava de outra mentira. As marcas do Diabo não existiam. Quem

possuísse verdadeiros conhecimentos do escuro sabia-o.

— É cruel e muito injusto — continuou Alice. —

Ao fim de um tempo, a dor torna-se excessiva e o corpo fica

entorpecido, e quando a agulha entra deixamos de senti-la. Dizem então

que é o lugar onde o Diabo nos tocou, por isso somos culpadas e temos

de ser queimadas.

O pior de tudo foi a expressão no rosto do Inquisidor.

Estava todo triunfante. Irei de me vingar. Irei fazê-lo pagar por isso.

Maggie não merecia ser queimada na fogueira.

— O Mago também não merece ser queimado! —

respondi com azedume. — Toda a vida trabalhou arduamente para

combater o escuro.

— Ele é homem e a sua morte será mais fácil do que a de alguns —

referiu Alice. — O Inquisidor é muito pior com as mulheres. Diz que é

mais difícil salvar a alma de uma mulher do que a de um homem. Que

elas precisam de muita dor para se arrependerem dos seus pecados.

Recordei então o que o Mago dissera a respeito de o Destruidor não

tolerar as mulheres. O fato de o deixarem nervoso.

— A criatura em que cuspiu era o Destruidor —

contei-lhe. — Já ouviu falar dele? Como conseguiu assustá-lo tão

facilmente?

Alice encolheu os ombros. — Não é muito difícil perceber quando algo

não se sente confortável na nossa presença. Alguns homens são assim

— eu sei sempre quando não sou bem-vinda. Tenho essa sensação perto

do Velho Gregory, e aconteceu o mesmo lá em baixo. E o cuspe repele a

maior parte das coisas. Se cuspir três vezes num sapo, nada de pele fria

e viscosa te incomodará durante um mês ou mais. Lizzie costumava

jurar por ele.

Não creio, porém, que funcione dessa maneira com o Destruidor. Sim, já

ouvi falar dessa criatura. E se é capaz de mudar de forma agora, então é

que estamos todos metidos num grande problemas. Apanhei-o de

surpresa, é tudo. Mas da próxima vez ele estará precavido, por isso não

volto a ir lá abaixo.

Page 237: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Durante um tempo, nenhum de nós falou. Limitei-me a olhar para o

velho carpete bolorento, até ouvir de repente a respiração de Alice

tornar-se mais profunda.

Quando olhei para trás, os seus olhos estavam fechados e adormecera

na mesma posição, com o queixo apoiado nos joelhos.

Eu não queria realmente apagar a vela, mas não sabia quanto tempo

teríamos de ficar ali em baixo na cave e era melhor poupar alguma luz

para mais tarde.

Assim que a apaguei, tentei adormecer mas tive dificuldade. Para

começar, sentia frio e tremia constantemente. Depois, não conseguia

tirar o Mago do pensamento. Não tínhamos podido salvá-lo, e o

Inquisidor iria ficar realmente furioso com o que sucedera. Não tardaria

muito à começar a queimar as pessoas.

Por fim, devo ter cochilado porque fui acordado de repente pelo som da

voz de Alice muito perto do meu ouvido esquerdo.

— Tom — disse ela, a sua voz pouco mais do que um murmúrio —, está

existe algo além no canto da cave conosco. Está a olhar fixamente para

mim e isso não me agrada.

Alice tinha razão. Sentia algo no canto e notei frio.

Os cabelos na minha nuca começaram a eriçar-se. Provavelmente seria

apenas e de novo Matty Barnes, o estrangulador.

— Não se preocupe, Alice. — É apenas um fantasma. Procure esquecê-

lo. Desde que não tenha medo, ele não te pode fazer mal.

— Eu não tenho medo. Pelo menos não agora. —

Fez uma pausa, depois disse: — Mas senti medo naquela cela. Não

preguei o olho com todos aqueles gritos e berros. Não tardarei a voltar a

adormecer. Só quero que se vá embora. Não está certo, a olhar-me

daquela maneira.

— Não sei o que irei fazer agora — afirmei, pensando de novo no Mago.

Alice não respondeu e a sua respiração tornou-se outra vez mais

profunda. Adormecera. E eu devo ter também voltado a adormecer

porque um ruído me acordou de repente.

Era o som de botas pesadas. Alguém estava por cima de nós, na

cozinha.

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CAPÍTULO 11

O JULGAMENTO DO MAGO

A porta abriu-se chiando e a luz de uma vela encheu a divisão. Para meu

alívio era Andrew.

— Calculei que viesse a te encontrar aqui em baixo

— disse ele. Trazia um pequeno embrulho. Quando o pousou e colocou a

vela ao lado da minha, apontou com a cabeça na direção de Alice, que

continuava a dormir profundamente mas estava agora deitada de lado,

de costas para nós, o rosto apoiado nas mãos.

— Afinal quem é esta? — indagou.

— Costumava viver perto de Chipenden — contei-lhe. — Chama-se Alice.

Mr. Gregory não estava lá.

Tinham-no levado para cima para interrogá-lo.

Andrew abanou a cabeça, pesaroso. — O irmão Peter disse o mesmo.

Não podia ter tido mais azar. Mais meia hora e John estaria de volta à

cela com os outros.

Acontece que fugiram onze, mas cinco foram apanhados pouco depois.

Infelizmente as más notícias não ficam por aqui. Os homens do

Inquisidor prenderam o irmão Peter na rua pouco depois de ele ter saído

da minha oficina. Vi da janela de cima. Estou arrumado nesta cidade.

Provavelmente a seguir virão buscar-me a mim, mas eu não vou ficar

por aqui para responder seja a que perguntas for. Já fechei a oficina. As

minhas ferramentas estão na carroça e vou seguir rumo ao sul, para

regressar a Adlington, onde costumava trabalhar.

— Lamento, Andrew.

— Não lamente. Quem não tentaria ajudar o próprio irmão? Além disso,

não é tão mau assim para mim.

As instalações da oficina eram apenas alugadas e tenho o ofício nas

pontas dos dedos. Tome — disse, abrindo o embrulho. — Trouxe-te

alguma comida.

— Que horas são? — perguntei.

— Faltam cerca de duas horas para a alvorada. Arrisquei-me vindo aqui.

Depois deste tumulto todo, metade da cidade está acordada. Foi muita

gente para o salão grande em Fishergate. Depois do que aconteceu a

Page 239: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

noite passada, o Inquisidor vai realizar um julgamento sumário para

todos os presos que ainda lhe restam.

— Por que não espera até ser de dia? — inquiri.

— Nessa altura estariam ainda mais pessoas presentes — respondeu

Andrew. — Ele quer despachar tudo antes que haja qualquer oposição

significativa. Alguns dos habitantes da cidade opõem-se ao que ele está

a fazer.

Quanto às fogueiras, terão lugar esta noite depois de escurecer, na

colina do farol em Wortham, a sul do rio. O Inquisidor terá muitos

homens armados para o caso de haver problemas, por isso, se tiver

algum juízo, ficará aqui até anoitecer e depois seguir a estrada.

Antes mesmo que ele tivesse tempo de abrir o embrulho, Alice virou-se

para nós e sentou-se. Talvez lhe tivesse cheirado a comida ou estivera a

escutar durante aquele tempo todo, fingindo dormir. Havia fatias de

presunto, pão fresco e dois tomates grandes. Sem uma palavra de

agradecimento a Andrew, Alice atacou logo, e após um momento de

hesitação, fiz-lhe companhia. Estava realmente cheio de fome e não

parecia fazer muito sentido jejuar neste momento.

— Sendo assim, vou andando — anunciou Andrew. — Pobre John, mas

não há nada que possamos fazer agora.

— Não valeria a pena uma última tentativa para salvá-lo? — perguntei.

— Não, fez o suficiente. É perigoso demais aproximar-se do local do

julgamento. E em breve o pobre John estará com os restantes, escoltado

por guardas armados e a caminho de Wortham para ser queimado vivo

com todos aqueles outros pobres desgraçados.

— E então a maldição? — perguntei. — O senhor mesmo disse que ele

fora condenado por uma maldição a morrer sozinho debaixo de terra,

não aqui em cima num farol.

— Oh, a maldição. Não acredito nisso, tal como John também não. Eu só

estava desesperadamente a tentar impedi-lo de ir atrás do Destruidor

com o Inquisidor na cidade. Não, receio que o destino do meu irmão

esteja traçado, por isso vá embora. Uma vez John me disse que há um

mago a operar em algum lugar próximo de Caster.

Percorre as fronteiras do Condado até ao Norte. Mencione o nome de

John e talvez ele te aceite. Foi em tempos um dos aprendizes de John.

Baixando-me a cabeça, Andrew virou-se para partir.

— Vou lhe deixar a vela — referiu. — Boa sorte na estrada. E, se alguma

vez precisar de um bom serralheiro, saberá onde vir procurá-lo.

Page 240: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

E depois foi embora. Ouvi-o subir as escadas da cave e fechar a porta de

trás. Alguns instantes depois Alice lambia suco de tomate dos dedos.

Tínhamos comido tudo

— não restava nem uma migalha.

— Alice — disse-lhe —, quero ir ao julgamento.

Talvez haja uma possibilidade de eu poder fazer algo para ajudar o

Mago. Vem comigo?

Os olhos de Alice arregalaram-se. — Fazer algo?

Não ouviu o que ele disse? Não há nada a fazer, Tom! O

que pode fazer contra homens armados? Não, tenha juízo.

Não vale a pena o risco, não é? Além disso, por que haveria eu de tentar

ajudar? O Velho Gregory não faria o mesmo por mim. Me deixaria arder,

pode ter certeza!

Fiquei sem saber o que responder. Até certo ponto era verdade. Eu

pedira ao Mago que ajudasse Alice e ele recusara. Então, soltando um

suspiro, pus-me em pé.

— Eu vou mesmo assim — disse-lhe.

— Não, Tom, não me deixe aqui. Não com o fantasma. .

— Julguei que não tivesse medo.

— Não tenho. Mas da última vez que adormeci senti-o começar a

apertar-me a garganta, verdade. Pode fazer pior se não estiver aqui.

— Nesse caso, venha comigo. Não será tão perigoso assim, porque ainda

estará escuro. E o melhor lugar para nos escondermos é numa grande

multidão. Venha, por favor. O que diz?

— Tem um plano? — perguntou-me. — Algo que ainda não tenha me

contado?

Abanei a cabeça.

— Bem que achei — retorquiu ela.

— Olha, Alice, eu só quero ir ver. Se não puder ajudar viremos embora.

Mas nunca me perdoaria se não fizesse uma última tentativa.

Relutantemente, Alice levantou-se.

— Vou ver o que acontece — referiu. — Mas tem de me prometer que,

se for perigoso demais, nós vamos logo embora. Conheço o Inquisidor

melhor do que você.

Confie em mim, não deveríamos arranjar confusão próximo dele.

— Prometo — garanti-lhe.

Deixei o saco do Mago e o bordão na cave e pusemo-nos a caminho de

Fishergate, onde ia se realizar o julgamento.

Page 241: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Andrew referira que metade da cidade estava acordada. Fora um

exagero, mas para uma hora tão matutina havia muitas velas a tremular

por detrás das cortinas e algumas pessoas pareciam correr apressadas

pelas ruas escuras na mesma direção que nós.

Eu contava, em parte, que não conseguíssemos aproximar-nos sequer

do edifício, pensando que os guardas estariam alinhados na rua lá fora,

mas, para minha surpresa, não se viam nenhuns dos homens do

Inquisidor. As grandes portas de madeira estavam escancaradas e uma

multidão enchia a entrada, saindo cá para fora, como se não houvesse

espaço para todos no interior.

Fui avançando na frente com cautela, satisfeito com a escuridão. Quando

cheguei ao fundo da multidão, percebi que não estava tão densamente

apinhada quanto parecera ao princípio. Dentro do salão o ar tinha um

odor adocicado e enjoativo. Era apenas uma sala grande com o chão

lajeado, sobre o qual tinham espalhado irregularmente serradura. Não

conseguia ver bem por cima da multidão porque a maior parte das

pessoas era mais alta do que eu, mas parecia haver um grande espaço

lá na frente para onde ninguém queria avançar. Agarrei a mão de Alice e

abri caminho pelo aglomerado de pessoas, arrastando-a atrás de mim.

Estava escuro no fundo do salão, contudo a parte da frente era

iluminada por dois enormes archotes a cada canto de um palanque. O

Inquisidor encontrava-se na parte da frente, olhando para baixo. Dizia

algo, mas a sua voz chegava abafada.

Olhei para aqueles que me rodeavam e vi a variedade de expressões nos

seus rostos: raiva, tristeza, azedume e resignação. Alguns mostravam-

se manifestamente hostis. Esta multidão era composta sobretudo por

aqueles que se opunham ao trabalho do Inquisidor. Alguns deles podiam

mesmo ser parentes e amigos dos acusados. Por um momento esse

pensamento deu-me esperança de que pudessem tentar alguma

manobra de salvação.

Porém, depois, as minhas esperanças foram frustradas: vi por que

motivo ninguém avançara. Por baixo do palanque havia cinco bancos

compridos de padres de costas para nós, mas atrás deles e virada para

nós, havia uma dupla fila de homens armados de rostos sinistros. Alguns

tinham cruzado os braços; outros haviam colocado as mãos nos punhos

das espadas como se inquietos por as desembainhar. Ninguém queria

aproximar-se demasiado deles. Olhei para cima na direção do teto e vi

uma galeria alta que se estendia para as laterais do salão; rostos

Page 242: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

espreitavam aqui para baixo, ovais brancos e pálidos que pareciam todos

iguais vistos do piso térreo. Aquele deveria ser o local mais seguro e que

proporcionava uma melhor vista. Havia umas escadas à esquerda e

puxei Alice na direção delas. Momentos depois avançávamos pela ampla

galeria.

Não se encontrava cheia e logo estávamos instalados num lugar junto do

corrimão mais ou menos a meio caminho das portas e do palanque.

Pairava ainda o mesmo fedor adocicado no ar, muito mais intenso agora

do que quando tínhamos estado nas lajes lá em baixo. De repente

percebi o que era. O salão era quase com certeza usado como mercado

da carne. Era o cheiro de sangue.

O Inquisidor não era a única pessoa no palanque.

Mesmo ao fundo, nas sombras, um aglomerado de guardas rodeava os

prisioneiros que aguardavam o julgamento, mas imediatamente atrás do

Inquisidor estavam dois guardas agarrando pelos braços um prisioneiro

que chorava. Era uma garota alta com cabelo escuro comprido.

Trazia um vestido esfarrapado e estava descalça.

— Aquela é Maggie! — sussurrou-me Alice ao ouvido. — Aquela que foi

constantemente espetada com alfinetes. Pobre Maggie, não é justo.

Julguei que tivesse escapado.

Aqui em cima o som era muito melhor e pude ouvir cada palavra que o

Inquisidor proferiu. — Esta mulher é condenada pelos seus próprios

lábios! — gritou ele, a sua voz sonora e arrogante. — Ela confessou tudo

e a marca do Diabo foi encontrada na sua carne. Condeno-a a ser

amarrada ao poste e queimada viva. E que Deus tenha misericórdia da

sua alma.

Maggie começou a soluçar ainda mais alto, mas um dos seus captores

agarrou-a pelos cabelos e foi arrastada na direção de uma porta por

detrás do palanque. Mal ela desapareceu, logo outro prisioneiro de

batina preta e com as mãos amarradas atrás das costas foi empurrado

para a luz dos archotes. Por um momento julguei estar a fazer confusão,

mas não havia dúvida.

Era o irmão Peter. Reconheci-o pelo tufo fino de cabelo branco que lhe

orlava a calva e pela curvatura das costas e dos ombros. Mas o seu rosto

estava tão maltratado e manchado de sangue que mal o reconheci.

Tinham-lhe partido o nariz, esborrachando-o contra o rosto, e um olho

estava fechado, reduzido a uma fenda vermelha e inchada.

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Ao vê-lo naquele estado senti-me péssimo. Fora tudo por minha causa.

Para começar, ele deixara-me escapar; depois contara-me como chegar

à cela para salvar o Mago e Alice. Sob tortura, devia ter-lhes contado

tudo. A culpa era toda minha e senti-me destroçado pelo remorso.

— Em tempos este foi um irmão, um servo fiel da Igreja! — exclamou o

Inquisidor. — Mas olhem para ele agora! Olhem para este traidor! Ele

ajudou os nossos inimigos e aliou-se às forças das trevas. Temos a sua

confissão, escrita pelo seu próprio punho. Ei-la aqui! — gritou,

levantando um pedaço de papel bem alto para que todos pudessem ver.

Ninguém teve oportunidade de o ler — podia nem referir nada de nada.

Mesmo que fosse uma confissão, bastou-me olhar para o rosto do pobre

irmão Peter para ver que lhe fora arrancada à força. Não era justo. Não

se fazia justiça aqui. Isto não era sequer um julgamento. Em tempos, o

Mago contara-me que quando as pessoas eram julgadas no castelo de

Caster, pelo menos tinham uma audiência — um juiz, um advogado de

acusação e alguém que as defendesse. Mas aqui, o Inquisidor fazia tudo

sozinho! — Ele é culpado. Culpado sem a menor dúvida —

continuou. — Por conseguinte, condeno-o a ser levado para as

catacumbas e abandonado ali. E que Deus tenha misericórdia da sua

alma!

Ouviu-se um súbito arfar de horror da multidão, mas o mais sonoro de

todos partiu dos padres sentados na frente. Eles sabiam exatamente

qual iria ser o destino do irmão Peter. Seria prensado até à morte pelo

Destruidor.

O irmão Peter tentou falar mas os seus lábios estavam demasiado

inchados. Um dos guardas socou-o na cabeça enquanto o Inquisidor

esboçava um sorriso cruel.

Levaram-no na direção da porta, na parte de trás do palanque, e ainda

mal abandonara o edifício já outro prisioneiro era trazido do escuro. O

coração caiu-me aos pés.

Era o Mago.

A primeira vista, para além de algumas equimoses no rosto, o Mago não

parecia ter sido tão maltratado quanto o irmão Peter. Mas reparei depois

num pormenor mais arrepiante. Semicerrava os olhos para o archote e

parecia desorientado, com uma expressão vaga nos seus olhos verdes.

Parecia perdido. Era como se a sua memória tivesse desaparecido e ele

nem sequer soubesse quem era.

Comecei a perguntar-me até que ponto o haviam espancado.

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— Diante de vós encontra-se John Gregory! — exclamou o Inquisidor, a

sua voz ecoando de parede a parede. — Um discípulo do Diabo, nem

menos, que durante muitos anos exerceu a sua nefasta atividade neste

condado, recebendo dinheiro de pessoas pobres e crédulas. Mas este

homem renuncia? Admite os seus pecados e pede perdão? Não, é

obstinado e não confessará. Agora, só através do fogo poderá ser

expurgado e receber a esperança de salvação. Porém, não contente com

o mal que é capaz de fazer, ensinou outros e continua ainda a fazê-lo.

Padre Cairns, levante-se e preste depoimento!

Da fila de bancos da frente avançou um padre sob a luz do archote mais

próximo do palanque. Estava de costas para mim por isso não consegui

lhe ver o rosto, mas avistei a sua mão enfaixada e quando falou era a

mesma voz que eu escutara no confessionário.

— Lorde Inquisidor, John Gregory trouxe consigo um aprendiz ao visitar

esta cidade, alguém que já foi corrompido. O seu nome é Thomas Ward.

Ouvi Alice soltar uma arfada baixa e os meus joelhos começaram a

tremer. Tive de repente plena consciência do perigo que era estar aqui

neste salão, tão perto do Inquisidor e dos seus homens armados.

— Pela graça de Deus, o rapaz veio parar às minhas mãos — continuou o

padre Cairns —, e, se não tivesse sido a intervenção do irmão Peter, que

permitiu que ele escapasse à justiça, teria entregado para interrogatório.

Mas eu próprio o inquiri, e achei-o amadurecido para a sua idade e

insensível à persuasão por meras palavras. Não obstante os meus

melhores esforços, ele não conseguiu ver o erro dos seus atos e por tal

temos de culpar John Gregory, um homem que não se contenta em

praticar a sua vil arte, alguém que corrompe ativamente os jovens.

Tanto quanto sei, passou mais de uma vintena de aprendizes pelas suas

mãos e alguns, por sua vez, seguem agora a mesma arte e têm aceitado

aprendizes. Desta forma, o mal espalha-se pelo Condado como uma

praga.

— Obrigado, Padre. Pode sentar-se. O seu depoimento é suficiente para

condenar John Gregory!

Quando o padre Cairns se tornou a sentar, Alice agarrou-me o cotovelo.

— Vamos embora — murmurou-me ao ouvido —, é perigoso demais

ficar!

— Não, por favor — respondi murmurando também. — Só mais um

pouco.

Page 245: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

A menção do meu nome assustara-me, mas queria ficar mais alguns

minutos para ver o que acontecia ao meu mestre.

— John Gregory, para você só pode haver um castigo! — bramou o

Inquisidor. — Será amarrado a um poste e queimado vivo. Rezarei por

você. Rezarei para que a dor te ensine o erro dos seus atos. Rezarei para

que peça perdão a Deus e, enquanto o seu corpo arde, a sua alma possa

se salvar.

O Inquisidor não olhou para o Mago o tempo todo em que esteve

discursando, mas podia perfeitamente ter estado a gritar para uma

parede de pedra. Não existia expressão nos olhos do Mago. De certa

forma, era uma bênção porque ele parecia não saber o que estava a

suceder. Isto fez-me compreender que, mesmo que de certa forma eu

conseguisse salvá-lo, ele poderia nunca mais voltar a ser o mesmo.

Senti um nó na garganta. A casa do Mago tornara-se o meu novo lar e

recordei as lições, as conversas com o Mago e até os momentos

medonhos em que tínhamos tido de enfrentar o escuro. Ia sentir a falta

de tudo aquilo e a idéia de o meu mestre ser queimado vivo fez-me vir

as lágrimas aos olhos.

A minha mãe tivera razão. A princípio, eu pusera em causa vir a ser

aprendiz do Mago. Temera a solidão.

Mas ela dissera-me que teria o Mago para conversar; que, apesar de ele

ser meu professor, acabaria por se tornar meu amigo. Bem, não sabia se

isso já acontecera, porque ele continuava a ser muito austero e cruel,

contudo ia certamente sentir saudades suas.

Quando os guardas o arrastaram na direção da porta, acenei a Alice e,

mantendo a cabeça baixa e evitando olhar diretamente para quem quer

que fosse, avancei pela galeria e desci as escadas. Lá fora, pude ver que

o céu começara a ficar mais claro. Em breve não teríamos a cobertura do

escuro e alguém poderia reconhecer um de nós. As ruas registravam já

maior movimento e a multidão no exterior do salão mais do que

duplicara desde que tínhamos entrado. Abri caminho por entre a

multidão para poder olhar para a lateral do edifício, na direção da porta

por onde haviam levado os prisioneiros.

Um olhar disse-me que a situação era desesperada.

Não consegui ver quaisquer prisioneiros, mas isso não surpreendia

porque devia haver pelo menos vinte guardas próximo das portas. Que

hipóteses tínhamos contra tantos? Com o coração aos pés, virei-me para

Alice.

Page 246: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Vamos embora — disse-lhe. — Não há nada que possamos fazer aqui.

Estava ansioso por chegar à segurança da cave, por isso caminhamos

rapidamente. Alice seguiu-me sem abrir a boca.

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CAPÍTULO 12

O PORTÃO DE PRATA

Uma vez de regresso à cave, Alice voltou-se para mim, os seus olhos

chispando de raiva.

— Não é justo, Tom! Pobre Maggie. Ela não merece ser queimada.

Nenhum deles merece. Tem de se fazer alguma coisa.

Encolhi os ombros e limitei-me a olhar para o ar, a minha mente

entorpecida. Dali a pouco, Alice recostou-se e adormeceu. Procurei fazer

o mesmo mas comecei a pensar de novo no Mago. Apesar de a situação

parecer desesperada, deveria ir ainda assim assistir às fogueiras e ver se

podia fazer algo para ajudar? Depois de estar algum tempo a pensar,

decidi finalmente que, ao anoitecer, abandonaria Priestown e iria a casa

conversar com a minha mãe.

Ela saberia o que eu deveria fazer. Aqui, eu estava desorientado e

precisava de ajuda. Teria de caminhar toda a noite e não conseguiria

pregar olho, de maneira que o melhor era aproveitar o que pudesse

agora. Levei algum tempo a adormecer, mas quando o consegui,

comecei quase de imediato a sonhar e depois soube que estava de novo

nas catacumbas.

Na maior parte dos sonhos não sabemos que estamos a sonhar. Mas

quando isso sucede, normalmente acontece uma de duas coisas. Ou

acordamos logo ou permanecemos no sonho e fazemos o que queremos.

Pelo menos comigo foi sempre assim.

Mas este sonho era diferente. Parecia que algo estava a controlar os

meus movimentos. Eu caminhava por um túnel escuro com o coto de

vela na mão esquerda e aproximava-me da porta escura que abria para

uma das criptas que continha os ossos da Gente Pequena. Eu não queria

de modo algum aproximar-me dali, mas os meus pés continuavam

simplesmente a caminhar.

Estaquei junto da porta aberta, a luz tremulante da vela iluminando os

ossos. A maior parte encontrava-se nas prateleiras ao fundo da cripta,

mas havia alguns ossos partidos dispersos pelo chão empedrado ou

jazendo num monte ao canto. Não queria entrar ali, realmente não, mas

parecia não ter outra escolha. Entrei na cripta, ouvindo pequenos

Page 248: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

fragmentos de osso serem esmagados debaixo dos meus pés, quando de

repente senti imenso frio.

Um Inverno, era eu jovem, o meu irmão James perseguira-me e

enchera-me os ouvidos de neve. Tentara repeli-lo, mas ele tinha apenas

mais um ano do que o meu irmão mais velho Jack e era igualmente

grande e forte, a tal ponto que o meu pai acabou por mandá-lo aprender

o ofício de ferreiro. Partilhava o mesmo sentido de humor que Jack.

Neve nos ouvidos fora a idéia tola de James de uma partida mas, na

realidade, machucara-me e o meu rosto ficara completamente dormente

e passada uma hora ainda me doía. Era exatamente assim no sonho.

Queria dizer que algo do escuro se aproximava. O frio começou dentro

da minha cabeça até a sentir gelada e dormente, como se já não me

pertencesse.

Algo falou da escuridão atrás de mim. Algo que estava próximo das

minhas costas e entre mim e a porta. A voz era áspera e cava e não

precisei de perguntar quem era. Apesar de não me encontrar de frente

para ele, sentia o seu hálito fétido.

— Estou encurralado — disse o Destruidor. — Estou aprisionado. Não

tenho mais nada.

Não respondi e seguiu-se um longo silêncio. Era um pesadelo e tentei

acordar. Esforcei-me realmente, mas era inútil.

— Que espaço agradável, este — continuou o Destruidor. — Um dos

meus lugares preferidos, se é. Cheio de ossos velhos.

Mas o que quero é sangue fresco e o sangue dos jovens é o melhor

de todos. Mas se não conseguir arranjar sangue, terei de me

contentar com ossos. Os ossos novos são os melhores. Dêem-me

sempre ossos novos, frescos, saborosos e cheios de tutano. É disso que

eu gosto.

Adoro partir ossos jovens e chupar o tutano. Mas os ossos velhos sempre

são melhores do que nada. Ossos velhos como estes. São preferíveis à

fome a atacar-me as entranhas. A fome que dói tanto.

«Não há tutano dentro dos ossos velhos. Mas os ossos velhos ainda

guardam lembranças, sabe. Acaricio os ossos, sim, faço-o devagar, para

que eles me revelem todos os seus segredos. Vejo a carne que em

tempos os cobriu, as esperanças e ambições que acabaram nesta

fragilidade seca e morta. Isso também me alimenta. E alivia a fome.

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O Destruidor estava muito próximo do meu ouvido esquerdo, a sua voz

agora pouco mais do que um murmúrio. Senti uma vontade súbita de

me virar e olhar para ele mas deve ter-me lido o pensamento.

— Não se vire, rapaz — avisou-me. — Olhe que não vai gostar do que

vir. Responda-me apenas a esta pergunta.

Seguiu-se uma longa pausa e senti que o coração me batia com força no

peito. O Destruidor fez então a pergunta. .

— Depois da morte, o que acontece?

Não soube responder. O Mago nunca falava dessas coisas. Eu só sabia

que havia fantasmas que ainda conseguiam pensar e falar. E fragmentos

chamados imagens fantasmagóricas que tinham ficado para trás

enquanto a alma seguia caminho. Mas caminho para onde? Não sabia.

Só Deus sabia. Se existisse um Deus.

Abanei a cabeça. Não falei e estava assustado demais para me virar.

Sentia atrás de mim algo enorme e aterrador.

— Não há nada depois da morte! Nada! Nada de nada!

— berrou o Destruidor perto do meu ouvido. — Só existe negrura e

vazio. Nem pensamento. Nem sentimento. Apenas esquecimento. É tudo

o que te espera do outro lado da morte. Mas faça o que te peço, e te

darei uma longa, longa vida! Três vintenas mais dez anos é melhor do

que a maior parte dos humanos fracos pode esperar. Mas poderia dar-te

isso dez ou vinte vezes! E tudo o que tem de fazer é abrir o portão que

eu tratarei do resto. O s eu mestre ficaria livre também. Sei que é isso

que você quer. Poderia voltar à vida que teve em tempos.

Uma parte de mim ansiava dizer que sim. Imaginei o Mago a ser

queimado e uma viagem solitária para norte até Caster sem nenhuma

certeza de que poderia prosseguir o meu aprendizado. Se ao menos as

coisas pudessem voltar ao que tinham sido! Mas, apesar de me sentir

tentado a dizer que sim, sabia que isso não era simplesmente possível.

Ainda que o Destruidor cumprisse o prometido, não podia deixá-lo andar

à solta pelo Condado, para poder praticar o mal a seu bel-prazer. Sabia

que o Mago preferiria morrer a deixar que isso acontecesse.

Abri a boca para dizer que não, mas antes mesmo de conseguir articular

a palavra o Destruidor voltou a falar.

— A garota seria fácil! — referiu. — Tudo o que ela quer é uma fogueira

quente. Uma casa onde morar. Roupas limpas.

Mas pense no que estou te propondo! E tudo o que quero é o

seu sangue. Um pouquinho, percebe. E não doerá assim muito. Apenas o

Page 250: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

suficiente é tudo o que peço. E depois celebraremos um pacto juntos.

Deixe-me só chupar o seu sangue para que possa voltar a ficar forte.

Deixe-me só transpor o portão e devolver-me-ás a liberdade.

Três vezes depois, farei o que me pedir e terá uma longa, longa vida.

O sangue da garota é melhor do que nada, mas é realmente do seu que

preciso. Você é um sete vezes sete. Só uma vez antes saboreei um

sangue doce como o seu. E ainda me lembro bem, se lembro. O sangue

doce de um sete vezes sete. Como eu voltaria a ficar forte! Como seria

grandiosa a sua recompensa! Isso não ê melhor do que o nada da

morte?

«E a morte virá até você um dia. Virá com certeza a despeito de tudo o

que eu faça, avançando sorrateiramente como o nevoeiro na margem de

um rio numa noite fria e úmida. Mas posso re-tardar esse momento.

Retardá-lo por muitos e muitos anos. Passaria muito tempo antes de ter

de enfrentar aquela escuridão. Aquela escuridão. Aquele nada! Então, o

que me diz, rapaz? Estou encurralado. Estou aprisionado. Mas você pode

ajudar!

Estava assustado e tentei voltar a acordar. Mas de repente as palavras

saíram-me da boca, quase como se tivessem sido proferidas por outra

pessoa.

— Não acredito que não haja nada depois da morte

— disse. — Tenho alma e se viver a minha vida como deve ser, vivê-la-

ei de alguma maneira. Haverá algo. Não acredito no nada. Não acredito

nisso.

— Não! Não! — bramou o Destruidor. — Você não sabe o que eu sei!

Não pode ver o que eu vejo! Eu vejo para lá da morte. Eu vejo o vazio.

O vazio. Eu sei! Vejo o estado horrível de ser nada. O nada de nada, isso

existe! O nada de nada!

O meu coração começou a abrandar e de repente senti-me muito calmo.

O Destruidor continuava atrás de mim mas a cripta começava a ficar

quente. Agora percebia. Conhecia a dor do Destruidor. Sabia por que

precisava de se alimentar das pessoas, do seu sangue, das suas

esperanças e dos seus sonhos...

— Tenho uma alma e continuarei vivo — redargui ao Destruidor,

mantendo a minha voz muito calma. — E

é essa a diferença. Eu tenho alma e você não! Para você não existe nada

depois da morte! Nada de nada!

Page 251: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

A minha cabeça foi empurrada com força contra a parede da cripta e

ouvi um silvo de fúria atrás de mim.

Um silvo que se transformou num urro de raiva.

— Tolo! — gritou o Destruidor, a sua voz atroando e enchendo a cripta e

ecoando para lá dela pelos túneis compridos das catacumbas. Bateu-me

de lado na cabeça com toda a violência, fazendo com que a minha testa

raspasse nas pedras duras e frias. Vi pelo canto do olho o tamanho da

mão enorme que me agarrava a cabeça. Em vez de unhas, os dedos

terminavam em enormes garras amarelas.

— Teve a sua oportunidade, mas agora acabou-se para sempre! —

berrou o Destruidor. — Porém há mais alguém que pode ajudar-me. Por

isso, se não te posso ter, me contentarei com ela!

Fui empurrado para baixo, para o monte de ossos ao canto. Senti-me

cair no meio deles. Fui descendo sempre, mergulhando num poço sem

fundo cheio de ossos. A vela apagara-se, mas os ossos pareciam brilhar

no escuro: caveiras de sorriso rasgado, caixas torácicas, ossos de pernas

e ossos de braços, fragmentos de mãos, dedos e polegares, e sempre o

pó branco e seco da morte a cobrir-me o rosto, a entrar-me pelo nariz

para a boca e a descer-me pela garganta, até começar a sufocar e mal

conseguir respirar.

— É este o bafo da morte! — exclamou o Destruidor.

— E é este o aspecto da morte!

Os ossos desapareceram de vista e não consegui ver nada. Nada de

nada. Estava simplesmente a cair pela negrura. A cair no escuro. Senti

pavor de que o Destruidor me tivesse matado de alguma forma durante

o sono, mas continuei a fazer um esforço para acordar. Não sei como, o

Destruidor estivera a falar comigo enquanto dormia e sabia quem ele

estaria agora a persuadir para fazer o que eu recusara.

Alice!

* * *

Consegui finalmente acordar, mas já era tarde demais. Ardia uma vela a

meu lado, mas era apenas um coto.

Estivera dormindo por horas! A outra desaparecera, bem como Alice!

Levei a mão ao bolso mas apenas confirmei o que adivinhava já. Alice

tirara-me a chave do Portão de Prata. .

Quando tentei pôr-me em pé senti tonturas e doía-me a cabeça. Levei a

mão à testa e veio úmida com sangue. Não sei como, o Destruidor

fizera-me aquilo num sonho. Conseguia ler também os pensamentos.

Page 252: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Como era possível derrotar uma criatura quando ela sabia o que

pretendíamos fazer antes de termos tido oportunidade de nos mover ou

sequer de falar? O Mago tinha razão — esta criatura era a coisa mais

perigosa que alguma vez tínhamos enfrentado.

Alice deixara o alçapão aberto e, pegando na vela, não perdi tempo a

descer as escadas até às catacumbas.

Alguns minutos depois alcancei o rio, que me pareceu um pouco mais

profundo do que antes. A água, turbilhonando logo abaixo, cobria

efetivamente três das nove alpondras, as que ficavam mesmo no meio, e

senti a corrente puxar-me as botas.

Atravessei rapidamente, muito embora fosse impossível eu não chegar

tarde demais. Mas quando virei a esquina, vi Alice sentada com a cabeça

encostada à parede.

A sua mão esquerda repousava nas pedras, os dedos cobertos de

sangue.

E o Portão de Prata estava escancarado!

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CAPÍTULO 13

AS FOGUEIRAS

— Alice! — exclamei, olhando incrédulo para o portão aberto. — O que

você fez?

Ela olhou para mim, com os olhos cheios de lágrimas. A chave

continuava na fechadura. Furioso, retirei-a e voltei a enfiá-la no bolso

das calças, enterrando-a bem no fundo das limalhas de ferro.

— Vamos! — disse-lhe bruscamente, quase furioso de mais para falar. —

Temos de sair daqui.

Estendi-lhe a mão esquerda mas ela recusou-a.

Preferiu manter a sua, a que estava coberta de sangue, junto ao corpo e

olhou para ela, fazendo uma careta de dor.

— O que aconteceu com a sua mão? — inquiri.

— Nada de especial — respondeu. — Não demora a ficar boa. Agora vai

tudo correr bem.

— Não, Alice — redargui —, não vai, não. Agora todo o Condado corre

perigo, graças a você.

Puxei delicadamente pela sua mão sã e conduzi-a pelo túnel até

chegarmos ao rio. A beira da água ela deu um puxão e soltou a mão da

minha; não fiz qualquer julgamento sobre aquele gesto. Limitei-me a

atravessar rapidamente. Só quando cheguei ao outro lado é que olhei

para trás e vi Alice ainda ali de pé a olhar para a água.

— Vamos! — gritei. — Apresse-se!

— Não consigo, Tom! — gritou Alice em resposta.

— Não consigo atravessar!

Pousei a vela e fui buscá-la. Ela quis esquivar-se.

Mas agarrei-a com força. Se houvesse oferecido resistência, eu não teria

qualquer chance, mas assim que as minhas mãos lhe tocaram, o corpo

de Alice ficou inerte e tombou sobre mim. Sem perder tempo, flexionei

os joelhos e encaixei o seu corpo sobre o meu ombro, como vira o Mago

fazer para transportar uma bruxa.

Sabem, eu não tinha dúvidas. Se não conseguia atravessar água

corrente, então é porque Alice se tornara o que o Mago sempre receara

que lhe acontecesse. Os acordos dela com o Destruidor tinham-na

finalmente feito passar-se para o escuro.

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Uma parte de mim queria deixá-la ali. Eu sabia que era o que o Mago

teria feito. Mas não fui capaz. Estava a desobedecer-lhe mas tinha de

ser. Ela continuava a ser Alice e havíamos passado juntos por muita

coisa.

Não deixou de ser difícil atravessar o rio com ela ao ombro, apesar de

ela ser leve, e tive de fazer um esforço para manter o equilíbrio nas

pedras. Para complicar, no momento em que iniciei a travessia, Alice

começou a gemer como se estivesse a sofrer.

Ao chegarmos finalmente ao outro lado, depositei-a no chão e peguei na

vela.

— Vamos! — disse, mas ela ficou apenas ali a tremer e tive de lhe

agarrar a mão e puxá-la até chegarmos às escadas que conduziam à

cave.

Uma vez lá, pousei a vela e sentei-me na borda do carpete velho. Desta

vez, Alice não se sentou. Limitou-se a cruzar os braços e encostou-se à

parede. Nenhum de nós falou. Não havia nada a dizer e eu estava

ocupado demais a pensar.

Dormira bastante tempo, tanto antes do sonho como depois dele. Fui

espreitar à porta no topo das escadas da cave e vi que o Sol estava

mesmo no ocaso. Esperaria uma meia hora e depois pôrme-ia a

caminho. Queria desesperadamente ajudar o Mago mas sentia-me

absolutamente impotente. Sentia-me mal só de pensar no que lhe

estava a acontecer, contudo o que podia eu realmente fazer contra

dúzias de homens armados? E estava mesmo decidido a não ir à colina

do farol para o ver arder. A idéia era-me insuportável. Não, ia a casa ver

a Mãe. Ela saberia o que eu deveria fazer a partir dali.

Talvez a minha vida como aprendiz de mago tivesse terminado. Ou

talvez ela me sugerisse que fosse para norte de Caster e arranjasse um

novo mestre. Era difícil saber o que ela me aconselharia a fazer.

Quando achei que estava na hora, retirei a corrente de prata do lugar

onde a prendera debaixo da camisa, e voltei a guardá-la no saco do

Mago juntamente com a sua capa. Como sempre dizia o meu pai:

«Guarda o que não presta e achará o que precisas!» Assim, voltei a

guardar também o sal e o ferro nos seus compartimentos no saco -

o máximo que consegui retirar dos bolsos das minhas calças.

— Vamos — instiguei Alice. — Vou acompanhar-te até lá fora.

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Então, colocando a capa e levando o saco e o bordão, subi as escadas,

depois servi-me da minha outra chave para abrir a porta de trás. Uma

vez no pátio, voltei a trancá-la atrás de nós.

— Adeus, Alice — disse-lhe, e virei-me para me afastar.

— O quê? Não vem comigo, Tom? — perguntou Alice.

— Onde?

— Às fogueiras, claro, apanhar o Inquisidor. Ele vai ver o que o espera.

Vai ter o que merece. Vou retribu-ir-lhe pelo que fez à minha pobre tia

velha e a Maggie.

— E como tenciona fazer isso? — inquiri.

— Dei o meu sangue ao Destruidor, sabe — referiu Alice, arregalando

muito os olhos. — Introduzi os dedos através da grade e ele chupou-o

debaixo das minhas unhas. Pode não gostar de moças, mas gosta do seu

sangue. Tirou o que necessitava, por isso o pacto foi firmado e agora ele

tem de fazer o que eu disser. Tem de obedecer à minha vontade.

As unhas da mão esquerda de Alice estavam negras do sangue seco.

Enojado, virei a cara e abri o portão do pátio, saindo para o caminho

estreito.

— Onde vai, Tom? Agora não pode ir embora! —

gritou Alice.

— Vou para casa falar com a Mãe — respondi, sem sequer me virar para

olhá-la.

— Vai para junto da sua mãe, vai! Não passa de um filhinho da mamãe,

de um medroso, e sempre o será!

Eu não dera mais de uma dúzia de passos antes de ela vir a correr atrás

de mim.

— Não vá, Tom! Por favor não vá! — gritou. Continuei a caminhar. Nem

sequer me virei.

Quando Alice voltou a gritar, havia verdadeira raiva na sua voz. Mas

mais do que isso, parecia desesperada.

— Não pode ir embora, Tom! Não vou te deixar ir.

É meu. Você me pertence!

Enquanto corria para mim, virei-me e enfrentei-a.

— Não, Alice — disse. — Eu não te pertenço. Eu pertenço à luz e agora

você pertence às trevas!

Ela estendeu as mãos e agarrou-me o antebraço esquerdo com muita

força. Conseguia sentir as unhas dela a cravarem-se na minha carne.

Estremeci com a dor mas olhei-a diretamente nos olhos.

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— Não sabe o que fez! — redargui-lhe.

— Oh sim, sei, Tom. Sei exatamente o que fiz e um dia irá agradecer-

me. Está tão preocupado com o seu rico Destruidor, mas acredite em

mim, ele não é pior do que o Inquisidor — afirmou Alice, soltando-me o

braço. — Aquilo que fiz, fiz por todos nós, por você e por mim, até pelo

Velho Gregory.

— O Destruidor irá matá-lo. Será a primeira coisa que fará agora que se

encontra em liberdade!

— Não, está enganado, Tom! Não é o Destruidor que quer matar o Velho

Gregory, é o Inquisidor. Neste preciso momento o Destruidor é a sua

única esperança de sobrevivência. E tudo graças a mim.

Fiquei confuso.

— Olhe, Tom, venha comigo e lhe mostrarei.

Abanei a cabeça.

— Bem, quer venha comigo quer não — continuou ela —, o farei mesmo

assim.

— Fará o quê?

— Vou salvar os prisioneiros do Inquisidor. Todos eles! E vou mostrar-lhe

o que é arder!

Olhei de novo com dureza para Alice, mas ela não desviou o olhar do

meu. A raiva chispava nos seus olhos e, naquele momento, senti que ela

teria conseguido até fitar o Mago, algo de que normalmente não seria

capaz.

Alice falara muito seriamente e pareceu-me que o Destruidor era capaz

de lhe obedecer e ajudá-la. Afinal, eles tinham feito um pacto qualquer.

Se havia alguma chance de salvar o Mago, então eu tinha de lá estar

para lhe devolver a liberdade. Não me sentia nada confortável em ter de

contar com algo tão mau quanto o Destruidor, no entanto, que outra

alternativa me restava? Alice virou-se na direção da colina do farol e,

lentamente, comecei a segui-la.

As ruas estavam desertas e caminhamos rapidamente, dirigindo-nos

para sul.

— É melhor livrar-me deste bordão — comentei com Alice. — Pode

denunciar-nos.

Ela anuiu e apontou para um alpendre velho em ruínas. — Deixe-o ali

atrás — referiu. — Podemos vir buscá-lo no regresso.

Ainda havia alguma claridade no céu a oeste e refletia-se no rio, que

serpenteava pelos vales dos montes de Wortham. Os meus olhos foram

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atraídos para cima, para a assustadora colina do farol. As suas vertentes

inferiores estavam cobertas de árvores, que começavam agora a perder

as folhas, mas acima havia apenas erva e vegetação rasteira.

Deixamos para trás as últimas casas e reunimo-nos a uma quantidade

de pessoas que atravessava a estreita ponte de pedra sobre o rio,

deslocando-se lentamente através do ar úmido e parado. Havia uma

névoa branca na margem do rio, mas não tardamos a subir por entre as

árvores, passando por cima de montes de folhas úmidas a apodrecer e

indo sair perto do topo da colina. Encontrava-se já ali reunida uma

grande multidão, com mais pessoas a chegar a cada minuto. Havia três

montes enormes de troncos e ramos prontos para serem ateados, o

maior colocado entre os outros dois. Erguendo-se dessas piras viam-se

os grossos postes onde as vítimas seriam amarradas. No topo da colina

do farol, com as luzes da cidade a espalhar-se abaixo de nós, o ar era

mais fresco. A zona estava iluminada por archotes colocados em postes

esguios de madeira, que oscilavam ligeiramente com a brisa suave de

oeste. Mas havia zonas escuras, onde os rostos da multidão estavam na

sombra, e segui Alice até uma delas, para que pudéssemos assistir ao

que se passava sem que despertássemos as atenções.

De guarda, com as costas voltadas para as piras, estava uma dúzia de

homens usando capuzes pretos, apenas com fendas nos olhos e na boca.

Tinham bastões nas mãos e pareciam ansiosos por usá-los. Estes eram

os ajudantes dos carrascos, que auxiliariam o Inquisidor a acender as

fogueiras e, se necessário, a repelir a multidão.

Não sabia muito bem como reagir. Valeria a pena esperar que pudessem

fazer algo? Quaisquer parentes e amigos dos condenados haveriam de

querer salvá-los, mas seriam em número suficiente para efetuar uma

tentativa de salvamento? Claro que, como dissera o irmão Peter, havia

muitas pessoas que adoravam uma fogueira. Muitas estavam aqui pelo

espetáculo.

Mal aquele pensamento entrou na minha cabeça, ouviu-se ao longe o

rufar contínuo de tambores.

— Ardam! Ardam! Ardam, bruxas, ardam! — pareciam atroar os

tambores.

Ante aquele som, a multidão começou a murmurar, as suas vozes a

crescer até se tornarem um bramido até que finalmente irrompeu em

sonoros assobios e vaias.

Page 258: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Aproximava-se o Inquisidor, montado no seu enorme cavalo branco, e

atrás dele rolava uma carroça aberta contendo os prisioneiros. Outros

homens cavalgavam ao lado e na retaguarda da carroça, e tinham

espadas na cintura.

Atrás deles, a pé, vinha uma dúzia de tocadores de tambor,

pavoneando-se, os seus braços subindo e descendo teatralmente ao

ritmo que marcavam.

— Ardam! Ardam! Ardam, bruxas, ardam!

De repente, toda a situação parecia irremediável.

Alguns nas filas da frente da multidão começaram a atirar fruta podre

nos prisioneiros, mas os guardas nos flancos, provavelmente

preocupados em não serem atingidos por engano, puxaram das espadas

e avançaram diretos a eles, repelindo-os e fazendo com que a multidão

de pessoas fosse obrigada a recuar.

A carroça aproximou-se mais, depois parou e, pela primeira vez, pude

ver o Mago. Alguns dos prisioneiros estavam de joelhos, rezando. Outros

gemiam e puxavam os cabelos, mas o meu mestre estava de pé, muito

ereto, olhando em frente. O seu rosto parecia alterado e cansado, e

tinha a mesma expressão vaga nos olhos, como se ainda não

compreendesse o que lhe estava acontecendo.

Apresentava uma equimose nova na testa por cima do olho esquerdo, e

o lábio inferior estava aberto e inchado

— levara sem dúvida outra sova.

Um padre avançou, levando um rolo de pergaminho na mão direita, e o

ritmo dos tambores mudou. Tornou-se um rufar rápido e cavo que

atingiu um crescendo.

Depois parou, subitamente, quando o padre começou a ler o

pergaminho.

— Povo de Priestown, ouçam isto! Estamos aqui reunidos para presenciar

a execução legal pelo fogo de doze bruxas e um feiticeiro, os miseráveis

pecadores que vedes agora diante de vós. Rezai pelas suas almas! Rezai

para que, através da dor, eles possam vir a reconhecer o erro dos seus

atos. Rezai para que possam pedir perdão a Deus e assim redimir as

suas almas imortais.

Ouviu-se outro rufar de tambores. O padre ainda não terminara e, no

silêncio que se seguiu, continuou a ler.

— O nosso Lorde Protetor, o Inquisidor-Mor, deseja que isto seja uma

lição para outros que possam vir a escolher o caminho das trevas. Vede

Page 259: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

estes pecadores arder! Vede os seus ossos estalar e a sua gordura

derreter como sebo de vela. Escutai os seus gritos e ao mesmo tempo

recordai que isto não é nada! Isto não é mesmo nada comparado com as

chamas do Inferno! Nada comparado com a eternidade de tormento que

espera aqueles que não buscam o perdão!

A multidão ficara silenciosa ante aquelas palavras.

Talvez fosse o medo do Inferno que o padre mencionara, mas, mais

provavelmente, pensei, seria outra coisa. Era o que eu temia agora.

Ficar a assistir ao horror do que estava prestes a acontecer. A tomada de

consciência de que carne e sangue vivos iam ser lançados às chamas

para suportar uma agonia indescritível.

Dois dos homens encapuzados avançaram e tiraram com rudeza o

primeiro prisioneiro da carroça — uma mulher com cabelo grisalho

comprido, que lhe pendia densamente sobre os ombros, quase até à

cintura. Quando a arrastaram na direção da pira mais próxima, começou

a cuspir e a praguejar, tentando desesperadamente libertar-se. Alguns

da multidão riram e escarneceram, insultando-a, mas inesperadamente

ela conseguiu soltar-se e desatou a correr na direção do escuro.

Antes que os guardas conseguissem dar sequer um passo para a seguir,

o Inquisidor passou a galope por eles, os cascos do cavalo fazendo saltar

lama do solo macio.

Agarrou a mulher pelos cabelos, enrolando os dedos nos caracóis dela

antes de fechar o punho. Depois deu-lhe um puxão tão violento que as

costas dela se arquearam e foi quase levantada do chão. Ela soltou um

uivo estridente e penetrante quando o Inquisidor a arrastou de costas na

direção dos guardas, que a voltaram a agarrar e amarraram

rapidamente a um dos postes na orla da pira maior. O

destino dela estava traçado.

Caiu-me o coração aos pés ao ver que o Mago era o próximo prisioneiro

a ser retirado da carroça. Encaminharam-no para a pira maior e

amarraram-no ao poste central, mas nem uma só vez ele se debateu.

Ficou apenas ali com ar desorientado. Recordei mais uma vez a altura

em que me dissera que arder na fogueira era uma das mortes mais

dolorosas que se podia imaginar e não concordava que se fizesse isso a

uma bruxa. Era insuportável vê-lo ali amarrado, aguardando o seu

destino. Alguns dos homens do Inquisidor traziam archotes e imaginei-os

a acender as piras, as chamas avançando na direção do Ma-go. Era

horrível pensar nisso e as lágrimas começaram a descer-me pelo rosto.

Page 260: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Procurei recordar o que o meu amo dissera a respeito de algo ou alguém

a observar o que fazíamos. Se levar uma vida direita, dissera-me então,

numa hora de necessidade ele estará a seu lado e lhe emprestará a sua

força. Bem, ele levara uma vida direita e fizera tudo por aquilo que

julgava ser o melhor. Por isso merecia algo.

Não?

Se eu pertencesse a uma família que frequentava a igreja e rezasse

mais, era o que teria feito então. Não tinha esse hábito e não sabia como

se fazia, porém, sem me dar conta disso, murmurei algo para mim

mesmo. Não pretendi que fosse uma prece, mas acho que, na verdade,

o era.

— Ajudai-o, por favor — murmurei. — Ajudai-o, por favor.

De repente, os cabelos na minha nuca começaram a eriçar-se e senti

imediatamente frio, muito frio. Aproximava-se algo do escuro. Ouvi Alice

arfar subitamente, soltar um gemido cavo, e de imediato a minha visão

se toldou a tal ponto que, quando me virei e estendi a mão para ela, não

conseguia ver nem um palmo à frente do nariz. O murmúrio da multidão

ouviu-se ao longe e ficou tudo parado e silencioso. Senti-me isolado do

resto do mundo, sozinho na escuridão.

Sabia que o Destruidor chegara. Não conseguia ver nada mas sentia-o

próximo, um imenso espírito negro, um peso enorme que ameaçava

expulsar a vida de mim. Fiquei apavorado, por mim e por todas as

pessoas inocentes ali reunidas, mas não podia fazer nada senão esperar

na escuridão que aquilo acabasse.

Quando a minha visão aclarou, vi Alice começar a avançar. Antes que a

pudesse impedir, abandonou as sombras e avançou diretamente para o

Mago e os dois carrascos na pira central. O Inquisidor estava ali

próximo, observando. Quando ela se aproximou, vi-o virar o cavalo na

direção dela e esporeá-lo para um galope brando. Por um momento,

julguei que tencionasse passar-lhe por cima com o cavalo, mas obrigou o

animal a parar tão próximo que Alice podia ter estendido a mão e feito

uma festa no focinho dele.

Estampou-se um sorriso cruel no rosto do homem e percebi que a

reconhecera como um dos prisioneiros evadidos. Nunca esquecerei o que

Alice fez a seguir.

No silêncio repentino que se instalara, ela ergueu as mãos para o

Inquisidor, apontando para ele com ambos os indicadores. Depois soltou

uma longa gargalhada sonora e o som ecoou por toda a colina, fazendo

Page 261: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

com que o cabelo na minha nuca voltasse a se arrepiar. Era uma

gargalhada de triunfo e desafio e achei estranho que o Inquisidor

estivesse a preparar-se para queimar aquelas pessoas, todas elas

falsamente acusadas, todas elas inocentes, enquanto estava diante dele,

em liberdade, uma bruxa verdadeira, com verdadeiro poder.

A seguir, Alice girou nos calcanhares e começou a rodopiar, mantendo os

braços estendidos na horizontal.

Enquanto observava, começaram a aparecer pontos negros no focinho e

na cabeça do garanhão branco do Inquisidor. A princípio fiquei intrigado

e não percebi o que estava a suceder. Mas depois o cavalo relinchou de

medo e empinou-se nas patas traseiras e vi que saíam gotículas de

sangue da mão esquerda de Alice. Sangue do lugar onde o Destruidor

acabara de se alimentar.

Levantou-se um vento súbito intenso demais, houve um relâmpago

ofuscante e ribombou um trovão tão forte que me fez doer os ouvidos.

Encontrei-me de joelhos e ouvi pessoas aos gritos e berros. Olhei para

trás na direção de Alice e vi que ela continuava a rodopiar, a girar cada

vez mais depressa. O cavalo branco empinou de novo, desta vez

desalojando o Inquisidor, que caiu de costas sobre a pira.

Outro relâmpago e subitamente a orla da pira estava a arder, as chamas

subindo a crepitar e o Inquisidor de joelhos todo cercado de chamas. Vi

alguns guardas precipitarem-se para ajudá-lo, mas a multidão avançava

também e um dos guardas foi arrancado do cavalo. Passados momentos,

o tumulto generalizara-se. Por todo o lado se atacava e lutava. Outros

corriam para fugir e o ar encheu-se de gritos e brados.

Larguei o saco e corri para o meu mestre, pois as chamas avançavam

rapidamente, ameaçando envolvê-lo.

Sem pensar, saltei imediatamente para a pira, sentindo o calor das

chamas, que começavam já a devorar os pedaços maiores de madeira.

Tentei desamarrá-lo, os meus dedos de volta dos nós. À minha esquerda

um homem tentava libertar a mulher de cabelos grisalhos que tinham

amarrado primeiro.

Entrei em pânico porque não estava a conseguir nada.

Havia demasiados nós! Estavam excessivamente apertados e o calor

aumentava!

De repente, ouviu-se um grito de triunfo à minha esquerda. O homem

libertara a mulher e um olhar disse-me como: pegara numa faca e

cortara facilmente as cordas. Começava a afastar-se do poste quando

Page 262: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

olhou na minha direção. O ar enchera-se de gritos e berros e do crepitar

das chamas. Mesmo que eu tivesse gritado ele não me teria ouvido, por

isso limitei-me a estender a mão esquerda para ele. Por um momento

pareceu hesitar, olhando para a minha mão, mas arremessou a faca na

minha direção.

Não a apanhei e caiu nas chamas. Sem pensar, mergulhei a mão na

madeira em chamas e recuperei-a.

Bastaram alguns segundos para cortar as cordas.

O fato de ter libertado o Mago quando ele estivera tão perto de morrer

queimado proporcionou-me uma enorme sensação de alívio. Mas a

minha felicidade foi de pouca duração. Ainda faltava muito para

estarmos a salvo.

Havia homens do Inquisidor a toda a nossa volta e existia uma forte

possibilidade de sermos detectados e apanhados. Desta vez seríamos

ambos queimados!

Tinha de levá-lo da pira em chamas para a zona de escuridão mais

adiante; para algum lugar onde não fôssemos vistos. Pareceu levar uma

eternidade. Apoiava-se bastante em mim e dava pequenos passos

vacilantes.

Lembrei-me do saco dele, de maneira que nos dirigimos para o local

onde o largara. Apenas por um golpe de sorte evitamos os homens do

Inquisidor. Do seu líder nem sinal, mas vi ao longe homens montados a

acutilar com as espadas quem estivesse ao alcance delas. Esperava a

qualquer momento que um deles nos atacasse. O progresso estava a ser

cada vez mais difícil; o peso do Mago parecia aumentar no meu ombro e

ainda tinha de carregar com o saco dele na minha mão direita. Mas

depois, mais alguém lhe segurava o outro braço e avançávamos para o

escuro das árvores e a segurança. Era Alice.

— Consegui, Tom! Consegui! — gritou, toda entusiasmada. Não soube

muito bem o que responder. Claro que estava satisfeito, contudo não

podia aprovar o método dela. — Onde está agora o Destruidor? —

indaguei.

— Não se preocupe com isso, Tom. Sei quando ele está próximo e não

sinto nada em lado nenhum neste momento. Deve ter sido necessário

muito poder para fazer o que fez, por isso calculo que tenha voltado para

o escuro por um tempo a fim de recuperar as forças.

Aquilo não me agradou mesmo nada.

Page 263: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— E o Inquisidor? — perguntei. — Não vi o que lhe aconteceu. Está

morto?

Alice abanou a cabeça.

— Queimou as mãos quando caiu, é tudo. Mas agora já sabe o que é

arder!

Quando ela disse aquilo, percebi a dor na minha própria mão, a

esquerda, que amparava o Mago. Olhei para baixo e vi que as costas

estavam em carne viva e empoladas. A cada passo que dava a dor

parecia aumentar.

Atravessamos a ponte com uma multidão de pessoas assustadas que se

acotovelavam, correndo todas para norte, ansiosas por se afastarem do

tumulto e do que se seguiria. Em breve os homens do Inquisidor

reagrupariam, desejosos de recapturar os prisioneiros e castigar quem

quer que tivesse participado na sua fuga. Quem estivesse no caminho

deles sofreria.

Muito antes da alvorada estávamos longe de Priestown e passamos as

primeiras horas de luz do dia num abrigo de gado em ruínas, com medo

de que os homens do Inquisidor pudessem estar perto à procura dos

prisioneiros fugitivos.

O Mago não dissera uma única palavra quando eu falara com ele, nem

sequer depois de lhe ter recuperado e entregue o bordão. O seu olhar

permanecia vago e fixo, como se a sua mente estivesse num lugar

completamente diferente. Comecei a preocupar-me que a pancada na

ca-beça pudesse ser grave, o que me deixava poucas opções.

— Temos de levá-lo para a nossa fazenda — informei Alice. — A minha

mãe poderá ajudá-lo.

— Mas não irá ficar muito satisfeita por me ver, não é? — comentou

Alice. — Não, quando descobrir o que eu fiz. Tão pouco aquele seu

irmão.

Anuí, fazendo um esgar ante a dor na minha mão.

O que Alice dissera era verdade. Seria preferível se ela não viesse

comigo, porém eu precisava da ajuda dela para levar o Mago, que estava

longe de se aguentar de pé sozinho.

— O que se passa, Tom? — perguntou. Reparou na minha mão e veio

observá-la. — Vou já tratar dela —

disse —, é um instante.

— Não, Alice, é perigoso demais!

Antes que a conseguisse impedir, saiu do abrigo.

Page 264: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Passados dez minutos estava de volta com uns pedaços de casca de

árvore e folhas de uma planta que não reconheci.

Mastigou a casca com os dentes até ficar em pequenos pedaços fibrosos.

— Estenda a mão! — ordenou.

— O que é isso? — perguntei, na dúvida, mas a minha mão doía tanto

que obedeci.

Delicadamente, colocou os pequenos pedaços de casca e envolveu a

minha mão com as folhas. Depois, puxou um fio preto do vestido e usou-

o para manter as folhas na posição.

— Lizzie ensinou-me isto — explicou-me. — Não tardará a deixar de

sentir dores.

Preparava-me para protestar, mas quase de imediato a dor começou a

diminuir. Era um remédio natural ensinado a Alice por uma bruxa. Um

remédio natural que funcionava. O mundo dava muitas voltas. Do mal

advinha o bem. E não era apenas a minha mão. Por causa de Alice e do

seu pacto com o Destruidor, o Mago conseguira ser salvo.

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CAPÍTULO 14

A HISTÓRIA DO PAI

Avistamos a fazenda cerca de uma hora antes do pôr do Sol. Sabia que o

Pai e Jack estariam precisamente a começar a ordenha, por isso era uma

boa altura para chegar.

Precisava de uma oportunidade para falar com a Mãe a sós. Não ia a

casa desde a Primavera, altura em que a bruxa velha, Mãe Malkin, fizera

uma visita à minha família. Graças à coragem de Alice naquela ocasião,

tínhamos destruído-a, mas o incidente transtornara Jack e a esposa Ellie,

e eu sabia que não veriam com bons olhos a minha permanência depois

de escurecer. Os assuntos dos magos deixavam-nos assustados e

tinham receio de que pudesse acontecer algo à filha. Por isso, eu só

queria ajudar o Ma-go e então voltar o mais rapidamente possível à

estrada.

Tinha igualmente consciência de que estava a pôr em risco a vida de

toda a gente levando o Mago e Alice para a fazenda. Se os homens do

Inquisidor nos seguissem até aqui não teriam misericórdia com aqueles

que davam guarida a uma bruxa e um mago. Eu não queria pôr a minha

família em maior perigo do que o estritamente necessário, por isso decidi

deixar Alice e o Mago fora dos limites da fazenda. Havia uma velha

cabana de pastor pertencente à fazenda mais próxima da nossa. Eles

tinham passado a criar gado, por isso há anos que não era usada. Ajudei

Alice a levar o Mago lá para dentro e disse-lhe que esperasse ali. Feito

isso, atravessei o campo, encaminhando-me diretamente para a vedação

que delimitava o pátio da nossa fazenda.

Quando abri a porta da cozinha, a Mãe estava no seu lugar habitual no

canto perto da fogueira, sentada na sua cadeira de balanço. A cadeira

estava muito quieta e ela ficou simplesmente a olhar quando entrei. As

cortinas estavam já corridas, e no castiçal de latão ardia a vela de cera

de abelha.

— Sente-se, filho — convidou ela, a sua voz baixa e suave. — Puxe uma

cadeira e conte-me tudo. — Não parecia nem um pouco surpreendida

por me ver.

Já estava acostumado àquilo. A Mãe era solicitada com frequência

quando se deparavam problemas às parteiras num nascimento difícil e,

inexplicavelmente, ela sabia sempre quando alguém queria a sua ajuda

Page 266: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

muito antes de a mensagem chegar à quinta. Ela pressentia estas

coisas, tal como pressentira a minha aproximação. Havia algo de

especial em relação à minha mãe. Possuía dons que alguém como o

Inquisidor haveria de querer destruir.

— Passou-se algo de mau, não passou? — referiu a Mãe. — E o que

aconteceu à sua mão?

— Não é nada, Mãe. Apenas uma queimadura. Alice tratou-a. Agora já

não dói mesmo nada.

A Mãe arqueou os sobrolhos à menção de Alice. —

Conte-me tudo, filho.

Anuí, sentindo um nó formar-se na garganta. Tentei três vezes antes de

conseguir formular a minha primeira frase.

— Eles quase queimaram Mr. Gregory, Mãe. O

Inquisidor apanhou-o em Priestown. Conseguimos escapar mas eles

virão atrás de nós, e o Mago não está nada bem. Precisa de ajuda.

Precisamos todos.

As lágrimas começaram a escorrer-me pelo rosto ao admitir a mim

mesmo o que agora me estava a preocupar sobremaneira. A principal

razão de eu não ter querido ir à colina do farol fora o medo. Medo de que

eles me apanhassem e me queimassem também.

— Mas o que raio estava a fazer em Priestown? —

inquiriu a Mãe.

— O irmão de Mr. Gregory morreu e o funeral dele foi lá. Tivemos de ir.

— Não está me contando tudo — frisou a Mãe. —

Como foi que escapou do Inquisidor?

Não queria que a Mãe soubesse o que Alice fizera.

Sabem, a Mãe tentara uma vez ajudar Alice e eu não queria que

soubesse como ela havia acabado, virando-se para o escuro tal como o

Mago sempre temera.

Mas não tive outra alternativa. Contei-lhe a história toda. Quando

terminei, a Mãe suspirou profundamente.

— É mau, realmente mau — comentou. — O

Destruidor à solta não pressagia nada de bom para ninguém no Condado

— e uma jovem bruxa presa à vontade dele — bem, temo por todos nós.

Agora temos é de tirar o melhor partido. É tudo o que podemos fazer.

Vou só buscar o meu saco e ver o que posso fazer pelo pobre Mr.

Gregory.

Page 267: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Obrigado, Mãe — disse-lhe, apercebendo-me de repente de que só

falara dos meus problemas. — Mas como estão as coisas aqui? Como

tem passado a bebê de Ellie? — indaguei.

A Mãe sorriu mas detectei uma pontinha de tristeza nos olhos dela.

— Oh, a bebê está ótima e Ellie e Jack mais felizes do que nunca. Mas

filho — disse-me, tocando-me delicadamente no braço. — Também

tenho más notícias para você. Tem a ver com o seu pai. Ele tem estado

muito doente. Levantei-me, mal podendo acreditar no que acabara de

ouvir. A expressão do rosto dela indicou-me que era grave.

— Sente-se, filho — pediu-me —, e ouça com atenção antes de começar

já a afligir-se. É mau mas podia ter sido bem pior. Começou por uma

forte constipação, depois atacou-lhe o peito, transformou-se em

pneumonia e quase o perdemos. Ele está em vias de melhorar agora,

espero, mas vai precisar de se agasalhar bem este Inverno.

Receio que já não possa voltar a trabalhar muito na fazenda. Jack terá

de se virar sem ele.

— Eu podia ajudar, Mãe.

— Não, filho, você tem o seu próprio trabalho para fazer. Com o

Destruidor em liberdade e o seu mestre enfraquecido, o Condado precisa

mais do que nunca de você. Olhe, deixe-me só ir primeiro lá acima dizer

ao seu pai que está aqui. E eu não lhe contaria nada sobre os problemas

que teve. Não queremos dar-lhe más notícias ou provocar-lhe choques

desagradáveis. Vai ficar só entre nós.

Esperei na cozinha mas passados dois minutos a Mãe desceu, trazendo o

seu saco.

— Bem, vai lá acima falar com o seu pai enquanto eu vou ajudar o seu

mestre. Ele vai ficar contente por estar de volta mas não o obrigue a

falar demais. Ele ainda está muito fraco.

O Pai estava recostado na cama com várias almofadas. Esboçou um

sorriso quando entrei no quarto. O

seu rosto estava magro e cansado e havia uma barba grisalha crescida

no queixo que o fazia parecer muito mais velho.

— Que bela surpresa, Tom. Sente-se — disse-me, indicando com a

cabeça uma cadeira ao lado da cama.

— Lamento — referi. — Se tivesse sabido que não estava bem, teria

vindo para casa mais cedo para o ver.

O Pai levantou a mão como se para dizer que não tinha importância.

Depois começou a tossir violentamente. Era suposto estar a melhorar

Page 268: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

pelo que não me teria agradado nada ouvi-lo tossir quando estava

realmente doente. O quarto exalava a doença. O indício de algo que

nunca cheirávamos ao ar livre. Algo que só permanece nos quartos dos

doentes.

— Como vai o seu trabalho? — perguntou-me, quando finalmente parou

de tossir.

— Nada mal. Já estou me acostumando e prefiro-o à lavoura — referi,

empurrando tudo o que acontecera para o meu subconsciente.

— A agricultura é muito aborrecida para você, hein? — perguntou com

um tênue sorriso. — Mas olhe, nem sempre fui agricultor.

Anuí. Na sua juventude, o pai fora marinheiro. Sabia montes de histórias

dos lugares que visitara. Tinham sido histórias belas, cheias de cor e

aventura. Os seus olhos brilhavam sempre com uma expressão distante

quando recordava esses tempos. Queria voltar a ver neles a centelha de

vida.

— Sim, Pai — disse-lhe —, conte-me uma das suas histórias. Aquela da

baleia enorme.

Fez uma pausa momentânea, depois agarrou-me a mão, aproximando-

me dele. — Acho que há uma história que preciso de te contar, filho,

antes que seja tarde demais.

— Não diga tolices — retorqui, chocado com o rumo que a conversa

estava a tomar.

— Não, Tom, espero ainda ver outra Primavera e outro Verão mas não

creio que vá andar muito tempo aqui neste mundo. Tenho pensado

muito ultimamente e acho que chegou a altura de te contar aquilo que

sei. Não estava à espera de te ver aqui agora, e quem sabe quando

voltarei a te ver? — Fez uma pausa e depois disse: —

Tem a ver com a sua mãe — como nos conhecemos é isso.

— Ainda vai ver muitas primaveras, Pai — tentei animá-lo, mas fiquei

surpreendido. Apesar de todas as histórias maravilhosas do meu pai,

havia uma que ele nunca me contara mesmo: como conhecera a Mãe.

Víamos perfeitamente que não queria falar. Ou mudava de assunto ou

mandava-nos ir perguntar-lhe. Nunca o fizemos. Quando somos

crianças, há coisas que não enten-demos mas também não fazemos

perguntas. Sabemos que a nossa mãe e o nosso pai não nos querem

contar. Contudo, naquele dia foi diferente.

Page 269: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Abanou a cabeça penosamente, depois baixou-a, como se um enorme

fardo estivesse a fazer pressão sobre os seus ombros. Quando voltou a

se endireitar, o tênue sorriso voltara ao seu rosto.

— Olhe, não sei bem se ela irá me agradecer por te contar, por isso vai

ficar só entre nós. Também não vou contar aos seus irmãos, e peço-lhe

que fizesse o mesmo, filho. Mas atendendo ao seu tipo de trabalho, e

sendo você o sétimo filho de um sétimo filho e tudo isso, bem. .

Voltou a fazer uma pausa e fechou os olhos. Olhei para ele e senti uma

onda de tristeza ao perceber o quanto estava velho e tinha um ar

doente. Abriu de novo os olhos e começou a falar.

— Entramos num pequeno porto para nos abastecermos de água —

disse, começando a sua história como se necessitasse de avançar

rapidamente antes que se arrependesse. — Era um local ermo rodeado

de altas colinas rochosas, apenas com a casa do capitão do porto e

algumas pequenas cabanas de pescadores construídas em pedra branca.

Estávamos há semanas no mar e o comandante, sendo um homem bom,

disse que merecíamos uma folga. Então, deu-nos licença a todos para

irmos a terra.

Fizemos dois turnos e calhou-me o segundo, que começava muito depois

de escurecer.

«Éramos cerca de uma dúzia e quando chegamos finalmente à taberna

mais próxima, que ficava no extremo de uma aldeia a meio caminho de

uma montanha, estava quase a fechar. Bebemos então rapidamente,

emborcando bebidas alcoólicas fortes pelas gargantas abaixo como se

não houvesse amanhã, e depois trouxemos uma garrafa de vinho tinto

cada, para bebermos no regresso ao navio.

«Devo ter passado da conta porque acordei sozinho à beira de um

caminho íngreme que conduzia ao porto. O Sol começava já a subir mas

não estava excessivamente preocupado porque só partiríamos ao meio-

dia. Pus-me em pé e sacudi-me. Foi então que ouvi à distância alguém a

soluçar.

«Fiquei à escuta cerca de um minuto antes de tomar uma decisão. Quer

dizer, parecia exatamente uma mulher, mas como podia ter a certeza?

Há todo o tipo de histórias estranhas oriundas daquelas paragens sobre

criaturas que atacam os viajantes. Estava sozinho e não me importo de

te dizer que tive medo, no entanto se não tivesse ido ver quem estava a

chorar, nunca teria conhecido a sua mãe e você não estaria aqui neste

momento.

Page 270: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

«Subi a colina íngreme pela beira da trilha e passei para o outro lado até

chegar mesmo à beira de um penhasco. Era um penhasco alto, com as

ondas a rebentar nas rochas lá em baixo, e vi o navio ancorado na baía e

era tão pequeno que parecia caber na palma da minha mão.

— Saía do penhasco uma rocha estreita como um dente de rato e estava

ali sentada uma mulher jovem encostada a ele, virada para o mar. Fora

presa àquela rocha com uma corrente. E não apenas isso, estava nua

como no dia em que viera ao mundo.

Ditas estas palavras, o Pai ruborizou-se tanto que o seu rosto ficou

quase vermelho-tomate.

— Ela começou então a tentar dizer-me algo. Algo que temia. Algo bem

pior do que estar apenas presa àquela rocha. Contudo falava na sua

própria língua e não entendi uma palavra — ainda não entendo, mas ela

lhe ensinou bastante bem e, sabe uma coisa, é o único com quem ela

teve essa preocupação. Ela é uma boa mãe mas nenhum dos seus

irmãos sabe sequer uma palavra de grego.

Concordei. Alguns dos meus irmãos não tinham ficado nada satisfeitos

com isso, particularmente Jack, e por vezes isso trouxera-me alguns

problemas.

— Não, ela não conseguia explicar por palavras o que era, porém havia

algo no mar que a aterrorizava. Não me ocorria o que pudesse ser, mas

depois o Sol começou a despontar acima do horizonte e ela gritou.

«Olhei para ela mas não queria acreditar no que estava a ver:

começaram a irromper minúsculas bolhas na sua pele até, em menos de

um minuto, ficou coberta de chagas. O que ela temia era o sol. Até hoje,

como provavelmente reparou, ela tem dificuldade em andar sequer ao

sol do Condado, mas a luz do Sol naquela terra era muito forte e sem

ajuda ela teria morrido.

Fez uma pausa para recuperar o fôlego, e pensei na Mãe. Sempre

soubera que ela evitava a luz do Sol — mas era algo a que já estava

acostumado.

— O que podia eu fazer? — continuou o Pai. —

Tive de pensar rapidamente, de modo que despi a camisa e cobri-a com

ela. Não era suficientemente grande, por isso não me restou outra

alternativa senão despir também as calças. Depois acocorei-me ali de

costas para o Sol, de modo a que a minha sombra incidisse nela,

protegendo-a da sua luz intensa.

Page 271: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

«Fiquei naquela posição até muito depois do meio-dia, altura em que o

Sol finalmente desapareceu por detrás da colina. Nessa altura, o navio

partira sem mim e as minhas costas estavam em chaga da queimadura

solar, mas a sua mãe estava viva e as bolhas tinham já desaparecido.

Tentei libertá-la da corrente, mas quem quer que a amarrara conhecia

ainda mais de nós do que eu, que era marinheiro. Só quando finalmente

lhe tirei é que percebi de algo tão cruel que nem queria acreditar. Quer

dizer, ela é uma boa mulher, a sua mãe — mas como podia alguém ter

feito semelhante coisa, e logo a uma mulher?

O Pai calou-se e olhou para as mãos e pude ver que tremiam ante a

lembrança do que vira. Esperei quase um minuto e depois instei-o

delicadamente.

— O que era, Pai? — perguntei. — O que lhe tinham feito?

Quando ergueu o olhar, os seus olhos estavam marejados de lágrimas.

— Tinham pregado a mão esquerda dela à rocha — contou-me. — Era

um prego grosso com uma cabeça larga e não consegui pensar na

maneira de libertá-la sem a machucar ainda mais. Ela sorriu apenas e

soltou a mão, deixando o prego ainda na rocha. O sangue escorria para

o chão aos pés dela, mas levantou-se e encaminhou-se para mim como

se não fosse nada.

«Recuei um passo e quase caí do penhasco mas ela colocou a mão

direita no meu ombro para me segurar e depois beijamo-nos. Sendo um

marinheiro que visitava dúzias de portos por ano, já beijara algumas

mulheres, mas normalmente era depois de ter emborcado um odre de

cerveja e estar entorpecido, às vezes mesmo perto de perder a

consciência. Nunca beijara uma mulher sóbrio e certamente nunca em

pleno dia. Não sei explicar, mas percebi logo que era a mulher certa para

mim. A mulher com quem passaria o resto da minha vida.

Começou então a tossir e assim continuou por um longo tempo. Quando

terminou, ficara sem fôlego e foram necessários mais dois minutos antes

de voltar a falar.

Devia tê-lo deixado descansar, mas sabia que poderia não ter outra

oportunidade. A minha mente era um turbilhão.

Algumas coisas na história do Pai fizeram-me recordar o que o Mago

escrevera sobre Meg. Também ela estivera presa com uma corrente.

Quando libertada, beijara o Ma-go tal como a Mãe beijara o Pai. Fiquei

curioso em saber se a corrente seria de prata, mas não podia perguntar.

Page 272: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Uma parte de mim não queria saber a resposta. Se o Pai quisesse que eu

soubesse, teria me contado.

— O que aconteceu depois, Pai? Como conseguiu voltar para casa?

— A sua mãe tinha dinheiro, filho. Vivia sozinha numa casa grande

construída no meio de um jardim rodeado por um muro alto. Não estaria

a mais de quilômetro e meio do lugar onde a encontrara, por isso

voltamos para lá e fiquei. A mão dela sarou rapidamente, sem restar

sequer a mais pequena cicatriz, e ensinei-lhe a nossa língua. Ou, para

ser sincero, foi ela que me ensinou a ensiná-la. Eu apontava para os

objetos e dizia o seu nome em voz alta. Quando ela repetia o que eu

dissera, só tinha de acenar para dizer que estava certo. Uma vez era

suficiente para cada palavra. A sua mãe é inteligente, filho. Realmente

inteligente. É uma mulher muito perspicaz e nunca esquece nada.

«Seja como for, fiquei naquela casa durante semanas e estava bastante

feliz, à exceção de uma ou outra noite, em que as irmãs dela a vinham

visitar. Eram duas, mulheres altas de olhar cruel, e costumavam acender

uma fogueira na parte de trás da casa e ficar ali até de madrugada a

conversar com a sua mãe. Às vezes as três dançavam à roda da

fogueira, noutras noites jogavam os dados.

Mas sempre que elas vinham havia discussões e foram piorando

gradualmente.

«Sabia que tinha algo a ver comigo porque as irmãs dela me deitavam

olhares fuzilantes através da janela, com a raiva nos olhos e a sua mãe

fazia-me sinal para que voltasse para o quarto. Não, elas não gostavam

muito de mim e foi essa a razão principal, creio, por que abandonamos

aquela casa e voltamos para o Condado.

«Eu partira como assalariado, um marinheiro vulgar, mas regressei

como um cavalheiro. A sua mãe pagou a nossa passagem e tínhamos

uma cabina só para nós.

Depois comprou esta fazenda e nos casamos na igrejinha em Mellor,

onde os meus pais estão sepultados. A sua mãe não acredita naquilo em

que nós acreditamos mas fê-lo por mim, para que os vizinhos não

falassem, e antes do final do ano nasceu o seu irmão Jack. Tive uma boa

vida, filho, e a melhor parte dela começou no dia em que conheci a sua

mãe. Estou a contar-te isto porque quero que compreenda. Tendo

consciência ou não, de que um dia, quando eu partir, ela voltará para a

sua terra, para o lugar onde pertence.

A minha boca abriu-se de espanto quando o Pai disse aquilo.

Page 273: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— E então a família dela? — inquiri. — Certamente não iria querer

abandonar os netos?

O Pai abanou a cabeça, pesaroso.

— Não creio que ela tenha alguma escolha, filho.

Uma vez ela me disse que tem o que chama «um assunto pendente» lá.

Não sei o que é e ela nunca me contou por que estava presa àquela

rocha para morrer. Ela tem o seu próprio mundo e a sua própria vida e,

quando chegar a altura voltará para ela, por isso não lhe dificulte a vida.

Olhe para mim, rapaz. O que vê?

Não soube o que dizer.

— O que vê é um velho que já não vai durar muito.

Eu vejo a verdade de cada vez que me olho ao espelho, por isso não

tente convencer-me de que estou enganado.

Quanto à sua mãe, ela ainda está cheia de vida. Pode não ser a jovem

que foi em tempos, mas ainda lhe restam anos de vida boa. Se não fosse

o que fiz naquele dia, a sua mãe não teria olhado duas vezes para mim.

Ela merece a liberdade, por isso deixe-a ir com um sorriso. Fará isso,

filho?

Assenti com a cabeça e depois fiquei com ele até se acalmar e acabar

por adormecer.

Page 274: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 15

A CORRENTE DE PRATA

Quando vim para baixo, a Mãe estava já de volta. Queria muito

perguntar-lhe como estava o Mago e o que lhe fizera mas não tive

oportunidade. Espreitando pela janela da cozinha, vi Jack atravessar o

pátio com Ellie, a bebê deles aninhada nos braços.

— Fiz o que podia pelo seu mestre, filho — murmurou a Mãe mesmo

antes de Jack abrir a porta. — Falaremos depois da ceia.

Por um momento Jack ficou estático à entrada, a olhar para mim, um

misto de expressões a percorrer-lhe o rosto. Depois sorriu e avançou

para assentar o braço nos meus ombros.

— É bom te ver, Tom — disse.

— Passei apenas por aqui no regresso a Chipenden

— respondi-lhe. — Lembrei-me de aparecer para ver como estavam

todos. Teria vindo mais cedo se soubesse que o Pai estava tão doente..

— Ele agora está se recuperando — referiu Jack.

— Isso é o que importa.

— Oh, sim, Tom, ele agora está muito melhor —

concordou Ellie. — Dentro de algumas semanas ficará bom.

Reparei que a expressão de tristeza no rosto da Mãe dizia o contrário. A

verdade era que o pai teria muita sorte se chegasse à Primavera. Ela

sabia-o e eu também.

À ceia mostraram-se todos muito comedidos, até a Mãe. Não consegui

perceber se era a minha presença ali ou a doença do Pai que deixava

todos tão calados, mas durante a refeição Jack pouco mais fez do que

inclinar a cabeça na minha direção, e quando falou foi para dizer algo

sarcástico.

— Está muito pálido, Tom — referiu. — Deve ser de tanto lidar com o

escuro. Não te faz nada bem.

— Não seja cruel, Jack! — admoestou Ellie. —

Diga-me, o que acha da nossa Mary? Batizamo-la o mês passado.

Cresceu bastante desde a última vez que a viu, não cresceu?

Sorri e anuí. Estava espantado com o quanto a bebê crescera. Em vez de

uma coisinha minúscula de rosto vermelho e franzido, estava gorducha e

Page 275: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

redonda com membros grossos e uma expressão viva, alerta. Parecia

querer sair do colo de Ellie e começar a gatinhar pelo chão da cozinha.

Eu não estava com muita fome, mas assim que a Mãe colocou um

montão de guisado a fumegar no meu prato, ataquei de imediato.

Assim que terminamos, ela sorriu a Jack e Ellie.

— Tenho um assunto a conversar com Tom —

disse ela. — Por que não vão se deitar mais cedo esta noite? E não se

preocupe com a louça, Ellie. Eu trato disso.

Havia ainda um bocado de guisado na travessa e vi os olhos de Jack

brilharem na sua direção e depois na da Mãe. Mas Ellie levantou-se e

Jack seguiu-a relutante. Deu para perceber que não estava nada

satisfeito.

— Acho que primeiro vou levar os cães até à vedação limítrofe — disse.

— Andou por lá uma raposa a noite passada.

Assim que eles saíram da sala, saiu-me atrapalhadamente a pergunta

que tanto ansiava fazer.

— Como é que ele está, Mãe? Mr. Gregory vai ficar bom?

— Fiz o que podia por ele — respondeu a Mãe. —

Os ferimentos na cabeça acabam por resolver-se de uma maneira ou de

outra. Só o tempo o dirá. Acho que quanto mais depressa o levar para

Chipenden melhor. Ele podia ficar aqui, mas tenho de respeitar a

vontade de Jack e Ellie.

Anuí e baixei os olhos para a mesa, tristonho.

— Consegue comer um segundo prato, Tom? —

inquiriu a Mãe. Não foi preciso perguntarem-me duas vezes e a Mãe

sorriu enquanto eu enfardava. — Acho que vou ver como está o seu pai

— disse.

Pouco depois veio para baixo.

— Está ótimo — anunciou. — Acabou de adormecer novamente.

Sentou-se à minha frente a ver-me comer, com o seu rosto sério.

— As feridas que vi nos dedos de Alice, foi de onde o Destruidor lhe tirou

o sangue?

Acenei com a cabeça.

— Confia nela agora, depois de tudo o que aconteceu? — perguntou-me

de repente.

Encolhi os ombros.

— Não sei o que fazer. Ela atravessou para o escuro, mas sem ela o

Mago e muitos outros inocentes teriam morrido.

Page 276: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

A Mãe suspirou.

— É um assunto desagradável e ainda não sei se tenho a resposta

concreta. Quem me dera poder ir com você e ajudar o seu mestre a

voltar para Chipenden, porque a viagem não será fácil, mas não posso

abandonar o seu pai. Sem grandes cuidados ele poderia ter uma recaída

e não quero correr o risco de que isso aconteça.

Limpei o prato com um pedaço de pão, depois afastei a cadeira.

— Acho melhor ir andando, Mãe. Quanto mais tempo aqui permanecer,

maior perigo os estarei a expor.

Agora é impossível o Inquisidor não nos perseguir. E com o Destruidor à

solta e tendo-se alimentado do sangue de Alice, não posso arriscar-me a

atraí-lo aqui.

— Não vá já — pediu a Mãe. — Vou lhe cortar um pouco de presunto e

pão para comer no caminho.

— Obrigado, Mãe.

Pôs-se a cortar o pão enquanto eu observava, desejando poder ficar

mais tempo. Seria bom estar de novo em casa, nem que fosse só por

uma noite.

— Tom, nas suas lições sobre bruxas, Mr. Gregory falou-te daquelas que

usam familiares?

Anuí. Os diferentes tipos de bruxas adquiriam os seus poderes de

maneiras diferentes. Algumas usavam a magia dos ossos, outras a

magia do sangue; recentemente ele falara-me de um terceiro tipo ainda

mais perigoso.

Usavam o que se chamava «magia de familiar». Davam o seu sangue a

uma criatura — podia ser um gato, um sapo ou mesmo um morcego. Em

troca, ele tornava-se os seus olhos e ouvidos e fazia-lhes todas as

vontades. Às vezes isto tornava-se tão poderoso que elas acabavam por

se submeter completamente ao seu poder e tinham pouca ou nenhuma

vontade própria.

— Bem, é o que Alice julga que está fazendo neste momento, Tom — a

usar magia de familiar. Estabeleceu um pacto com aquela criatura e está

a usá-la para obter o que pretende. Mas está a entrar num jogo

perigoso, filho.

Se ela não tiver cuidado, acabará por pertencer-lhe e nunca mais

poderás voltar a confiar nela. Pelo menos enquanto o Destruidor estiver

vivo.

Page 277: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Mr. Gregory disse que ele estava a ficar mais forte, Mãe. Que em

breve poderia assumir a sua forma física original. Eu o vi lá em baixo nas

catacumbas —

mudou para a forma do Mago e tentou enganar-me. Por isso é óbvio que

está a fortalecer-se lá em baixo.

— Isso é bem verdade, mas o que acabou de acontecer tê-lo-á retardado

um pouco. Sabe, o Destruidor terá gasto muita energia para se libertar

de um lugar onde esteve preso tanto tempo. Assim, por agora estará

confuso e perdido, sem força suficiente para assumir sequer uma forma

física. Provavelmente nem conseguirá recuperar o pleno vigor enquanto

o pacto de sangue com Alice não estiver concluído.

— Ele consegue ver através dos olhos de Alice? —

sondei-a.

A idéia era aterradora. Preparava-me para partir com Alice e atravessar

a escuridão. Recordei a sensação do peso do Destruidor na minha cabeça

e nos meus ombros, a expectativa de estar prestes a ser prensado e que

chegara o meu último momento. Talvez fosse preferível esperar até ser

dia. .

— Não, ainda não, filho. Ela deu-lhe o seu sangue e a liberdade. Em

troca terá prometido obedecer-lhe três vezes, mas em cada uma delas

irá querer mais sangue seu.

Depois de o voltar a alimentar nas fogueiras de Wortham, ela terá ficado

enfraquecida e cada vez lhe será mais difícil resistir. Se ela o tornar a

alimentar, ele conseguirá ver atrás dos seus olhos. Por último, na

derradeira dose, ela pertencer-lhe-á e ele terá forças para regressar à

sua verdadeira forma. E então, não haverá nada que se possa fazer para

salvar Alice — disse a Mãe.

— Por conseguinte, onde quer que esteja, ele andará à procura de Alice?

— Andará, filho, mas por pouco tempo, a menos que ela o chame a si, as

chances de encontrá-la serão muito remotas. Especialmente se ela

estiver em movimento. Se ficar num lugar por qualquer período de

tempo, o Destruidor terá mais chance de encontrá-la. No entanto, todas

as noites irá ficar um pouco mais forte, especialmente se encontrar mais

alguma vítima. Qualquer tipo de sangue o ajudaria, animal ou humano.

Seria fácil aterrorizar alguém sozinho no escuro. Fácil dobrá-lo à sua

vontade. Não tardará a encontrar Alice, e depois disso estará sempre em

algum lugar perto dela, exceto durante as horas de luz do dia, em que

provavelmente se manterá debaixo do solo. As criaturas do escuro

Page 278: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

raramente se arriscam a sair quando é dia. Contudo com o Destruidor à

solta, a adquirir força, todos no Condado deveriam ter medo quando a

noite cai.

— Como foi que tudo começou, Mãe? Mr. Gregory contou-me que o rei

Heys da Gente Pequena teve de sacrificar os filhos ao Destruidor e que

de alguma forma o último filho conseguiu aprisioná-lo.

— É uma história triste e terrível — disse a Mãe.

— O que aconteceu aos filhos do rei é impensável. Mas acho melhor

saber para perceber exatamente o que vai enfrentar. O Destruidor vivia

nos túmulos em Heysham, no meio dos ossos dos mortos. Primeiro,

levou o filho mais velho para lá, a fim de usá-lo como seu joguete,

roubando-lhe os pensamentos e os sonhos da mente até restar muito

pouco para além do infortúnio e o mais profundo desespero. E assim

continuou filho após filho.

Pense no que o pai deles não terá sofrido! Era rei e, no entanto, não

podia fazer nada para ajudá-los.

A Mãe suspirou, pesarosa. — Nenhum dos filhos de Heys sobreviveu

muito mais de um mês a semelhante tormento. Três atiraram-se dos

penhascos próximos, despedaçando-se nas rochas lá em baixo. Dois

recusaram-se a comer e definharam. O sexto atirou-se ao mar e nadou

até as forças lhe faltarem e afogar-se — o seu corpo deu à costa, trazido

pelas marés da Primavera. Os seis jazem nas sepulturas de pedra

esculpidas na rocha. Uma outra sepultura contém o corpo do pai, que

morreu pouco depois dos seis filhos, com o coração destroçado.

Portanto, apenas Naze, o último dos filhos dele, o sétimo filho, lhe

sobreviveu.

«O rei também era um sétimo filho, por isso Naze era como você e

possuía o dom. Era pequeno, mesmo pelos padrões do seu próprio povo,

e o sangue antigo corria com força nas suas veias. Conseguiu de alguma

forma aprisionar o Destruidor mas ninguém sabe como, nem sequer o

seu mestre. Depois, a criatura matou Naze ali mesmo, prensando-o nas

pedras. Então, passados anos, porque faziam recordar ao Destruidor a

forma como fora enganado, partiu os ossos em pedacinhos e empurrou-

os pelo Portão de Prata para que finalmente a gente de Naze lhe pudesse

fazer um funeral decente. Os seus restos mortais repousam com os

outros nas sepulturas de pedra em Heysham, que recebeu o nome do

antigo rei.

Page 279: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Durante alguns momentos permanecemos em silêncio. Era uma história

terrível.

— Nesse caso, como podemos acabar com ele, agora que está

novamente em liberdade, Mãe? — inquiri, interrompendo o silêncio. —

Como podemos matá-lo?

— Deixa isso com Mr. Gregory, Tom. Ajude-o apenas a regressar a

Chipenden e a ficar novamente forte.

Ele decidirá o que fazer em seguida. A maneira mais fácil seria tornar a

aprisioná-lo, mas mesmo assim conseguiria praticar o mal como tem

feito cada vez mais nos últimos anos. Se já conseguiu assumir a forma

física, lá em baixo nas catacumbas, então conseguirá fazê-lo de novo, e

muito rapidamente, enquanto a sua força aumenta, retomaria a

configuração natural, corrompendo Priestown e todo o Condado. Por

isso, apesar de ficarmos mais seguros com ele aprisionado, não é uma

solução definitiva. O seu mestre precisa de descobrir como matá-lo, para

o bem de todos nós.

— E se ele não recuperar?

— Vamos esperar que consiga, porque o que é preciso fazer ultrapassa

em muito o que você provavelmente estará em condições de enfrentar

neste momento. Sabe, filho, onde quer que Alice vá, ele irá usá-la para

fazer mal aos outros, por isso o seu mestre não terá outra alternativa

senão colocá-la num poço.

A Mãe pareceu perturbada, depois, repentinamente fez uma pausa e

levou a mão à testa, fechando os olhos com força como se tivesse uma

súbita dor de cabeça horrível. — Tudo bem, Mãe? — perguntei, cheio de

ansiedade. Ela anuiu, mas esboçou um sorriso fraco. — Olhe, filho,

sente-se um pouco. Preciso escrever uma carta para levar contigo.

— Uma carta? Para quem?

— Falaremos mais depois de eu terminar.

Sentei-me numa cadeira junto da lareira, a olhar fixamente para as

brasas, enquanto a Mãe escrevia à mesa.

Não parei de matutar no que ela estaria a escrever. Quando terminou,

sentou-se na cadeira de balanço e entregou-me o envelope. Estava

fechado e tinha escrito:

“Para o meu filho mais novo, Thomas Ward”

Fiquei surpreendido. Imaginara que fosse uma carta para o Mago ler

quando estivesse melhor.

Page 280: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Por que está me escrevendo, Mãe? Por que não me diz já o que tem a

dizer?

— Porque cada pequeno gesto nosso muda as coisas, filho — respondeu

a Mãe, apoiando delicadamente a mão no meu antebraço esquerdo. —

Ver o futuro é perigoso e comunicar o que se vê o é ainda mais. O seu

mestre tem de seguir o seu próprio caminho. Tem de encontrar o seu

próprio rumo. Cada um de nós possui livre-arbítrio. Mas temos pela

frente uma sombra e preciso de fazer tudo o que estiver ao meu alcance

para evitar que o pior possa acontecer. Só devera abrir a carta numa

altura de grande necessidade, em que o futuro pareça sem esperança.

Confie nos seus instintos. Saberá quando esse momento tiver chegado —

conquanto espere, para o bem de todos nós, que isso nunca venha a

acontecer. Até lá, guarde-a bem.

Obedientemente, meti-a dentro do casaco.

— Agora venha comigo — disse a Mãe. — Tenho mais uma coisa para

você.

Pelo tom de voz e modos estranhos dela, calculei onde íamos. E acertei.

Pegando no castiçal de latão, levou-me lá acima ao seu quarto

particular, a divisão trancada mesmo por debaixo do sótão. Hoje em dia

ninguém ia àquele espaço senão a Mãe. Nem sequer o Pai. Eu estivera lá

com ela umas duas vezes em criança, muito embora mal me conseguisse

lembrar dele agora.

Tirando uma chave do bolso, abriu a porta e eu entrei atrás dela. A

divisão estava cheia de caixas e arcas. Sabia que ela vinha aqui uma vez

por mês. Mas não imaginava o que fazia.

A Mãe entrou na divisão e parou diante da arca grande mais próxima da

janela. Depois olhou duramente para mim até me sentir um pouco

desconfortável. Ela era minha mãe e eu adorava-a, mas não gostaria de

tê-la por inimiga.

— Já é aprendiz de Mr. Gregory há quase seis meses, por isso já teve

tempo suficiente de ver as coisas por si próprio — referiu ela. — E agora

o escuro reparou em você, e irá tentar te perseguir. Por isso corre

perigo, filho, e durante algum tempo esse perigo irá continuar a crescer.

Por isso lembre-se do seguinte. Você também está a crescer. Está a

crescer rapidamente. A cada sopro, a cada batimento do seu coração

torna-se mais forte, mais corajoso, melhor. Há anos que John Gregory

luta contra o escuro, a preparar-te o caminho. Porque, filho, quando for

Page 281: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

um homem será a vez de o escuro ter medo, porque nessa altura você

será o caçador, não a caça. Foi para isso que te trouxe a este mundo.

Sorriu-me pela primeira vez desde que entrara naquele compartimento,

mas não deixou de ser um sorriso triste. Depois, levantando a tampa da

arca, ergueu a vela para que eu pudesse ver o que estava lá dentro.

Uma comprida corrente de prata com elos magníficos brilhava

intensamente à luz da vela.

— Tire-a — ordenou a Mãe. — Não posso lhe tocar. Estremeci ante as

suas palavras porque algo me dizia que esta era a mesma corrente que

prendera a Mãe à rocha. O Pai não mencionara que era de prata, uma

omissão vital, porque se usava uma corrente de prata para aprisionar

uma bruxa. Era um instrumento importante no ofício de mago. Queria

com isto dizer que a Mãe era uma bruxa?

Talvez uma bruxa lâmia como Meg? A corrente de prata, a forma como

ela beijara o meu pai — parecia-me tudo muito familiar.

Levantei a corrente e tomei-lhe o peso nas mãos.

Era fina e leve, de qualidade muito superior à corrente do Mago, com

muito mais prata na liga.

Como se adivinhasse o que me ia no pensamento, a Mãe disse:

— Sei que o seu pai te contou como nos conhecemos. Mas lembre-se

sempre disto, filho. Nenhum de nós é completamente bom ou

completamente mau — estamos todos em algum lugar no meio — mas

chega uma altura na nossa vida em que damos um passo importante, ou

na direção da luz ou na direção do escuro. Por vezes é uma decisão que

tomamos dentro da nossa cabeça. Ou talvez seja por causa de uma

pessoa importante que conhecemos. Em virtude do que o seu pai fez por

mim, avancei na direção certa e é por isso que me encontro aqui hoje.

Agora aquela corrente lhe pertence. Por isso guarde-a bem até precisar

dela.

Enrolei a corrente à volta do pulso, depois guardei-a no bolso interior do

casaco, junto da carta. Feito isso, a Mãe fechou a tampa e segui-a até lá

fora, esperando que ela trancasse a porta.

Lá em baixo, peguei no embrulho de sanduíches e preparei-me para

partir.

— Antes de ir embora, mostre-me essa mão! Estendi-lhe e a Mãe

desamarrou cuidadosamente os fios e retirou as folhas. A queimadura

parecia estar a sarar rapidamente.

Page 282: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Aquela jovem sabe o que faz — disse. — Tenho de lhe dar crédito.

Deixe-a ao ar agora e ficará completamente boa dentro de alguns dias.

A Mãe abraçou-me e, depois de lhe agradecer mais uma vez, abri a

porta de trás e saí para a noite. Ia a meio caminho do campo, dirigindo-

me para a vedação limítrofe, quando ouvi um cão ladrar e vi uma figura

encaminhar-se para mim na escuridão.

Era Jack, e quando se aproximou, vi à luz das estrelas que tinha o rosto

torcido da raiva.

— Acha que sou estúpido? — berrou. — Acha?

Não foram precisos nem cinco minutos para os cães darem com eles!

Olhei para os cães, que estavam ambos encolhidos atrás das pernas de

Jack. Eram cães de trabalho e nada meigos, mas conheciam-me e

esperara alguma espécie de saudação. Algo os deixara muito

assustados.

— Bem pode olhar — disse Jack. — Aquela garota bufou-lhes e cuspiu-

lhes e eles fugiram como se o próprio Diabo lhes estivesse a torcer as

caudas. Quando a mandei embora, ela teve o descaramento de me dizer

que estava nas terras de outra pessoa e que isso não me dizia respeito.

— Mr. Gregory está doente, Jack. Não tive outra alternativa senão

aparecer e pedir ajuda à Mãe. Mantive-o e a Alice fora dos limites da

fazenda. Sei o que sente, por isso arranjei a melhor solução possível.

— Aposto que sim. Sou um homem adulto mas a Mãe mandou-me ir

para a cama como se fosse uma criança. Como acha que me sinto? E em

frente da minha própria mulher também. Às vezes pergunto-me se a

fazenda alguma vez virá a me pertencer.

Eu próprio estava furioso nesta altura e ocorreu-me lhe dizer que

provavelmente sim e muito mais cedo do que ele julgava. Tudo seria

dele quando o Pai morresse e a Mãe voltasse para a sua terra. Apesar

disso mordi os lábios e não disse nada.

— Lamento Jack, mas tenho de ir andando — disse-lhe, partindo na

direção da cabana onde deixara Alice e o Mago. Após ter dado cerca de

uma dúzia de passos voltei-me, porém Jack já me tinha virado as costas

e seguia para casa.

Partimos sem trocar uma palavra. Tinha muito em que pensar e acho

que Alice o sabia. O Mago só olhava para o vazio mas parecia já

conseguir andar melhor e deixara de precisar de se apoiar em nós.

Cerca de uma hora antes de o Sol nascer, fui o primeiro a romper o

silêncio.

Page 283: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Tem fome? — inquiri. — A Mãe preparou-nos o desjejum.

Alice anuiu, sentamo-nos num talude verdejante e atacamos a comida.

Ofereci um pouco ao Mago, mas ele repeliu-me o braço com rudeza.

Passados alguns instantes afastou-se um pouco e sentou-se nos degraus

de uma vedação, como se não quisesse estar perto de nós. Ou pelo

menos de Alice.

— Ele parece mais forte. O que lhe fez a Mãe? —

quis saber.

— Ela molhou-lhe a testa e não parou de observar os olhos dele. Depois,

deu-lhe de beber uma poção. Mantive-me distante e ela nem sequer

olhou na minha direção.

— Isso é porque ela sabe o que fez. Tive de lhe contar. Não posso mentir

à Mãe.

— Fiz o que fiz porque era o melhor. Retribuí-lhe, sim, e salvei toda

aquela gente. Fiz também por você, Tom. Para poder levar o Velho

Gregory com você e continuar os seus estudos. Era isso que queria, não

era? Não tomei a atitude certa?

Não respondi. Alice impedira o Inquisidor de queimar pessoas inocentes.

Salvara muitas vidas, incluindo a do Mago. Ela fizera todas essas coisas

e eram tudo coisas boas. Não, não se tratava do que ela fizera, era antes

a maneira como o fizera. Eu queria ajudá-la mas não sabia como. Alice

pertencia agora ao escuro, e assim que o Ma-go estivesse

suficientemente forte haveria de querer pô-la num poço. Ela sabia-o e eu

também.

Page 284: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 16

UM POÇO PARA ALICE

Finalmente, com o Sol mais uma vez a pôr-se a ocidente, as extensões

rochosas surgiram logo em frente e não tardamos a subir por entre as

árvores em direção à casa do Mago, seguindo o desvio que permitia não

passar pela aldeia de Chipenden.

Parei a pouca distância do portão da frente. O Mago estaria cerca de

vinte passos mais atrás, a olhar para a casa como se a visse pela

primeira vez.

Virei-me para Alice.

— É melhor ir embora — disse-lhe.

Alice anuiu. Havia que contar com o demônio de estimação do Mago.

Guardava a casa e os terrenos. Mal ela desse um passo para lá do portão

correria enorme perigo.

— Onde vai ficar? — inquiri.

— Não se preocupe comigo. E também não comece a pensar que

pertenço ao Destruidor. Não sou estúpida. Tenho de chamá-lo mais duas

vezes antes de isso acontecer, não tenho? O tempo ainda não arrefeceu

assim tanto, por isso ficarei alguns dias por perto. Talvez no que resta

da casa de Lizzie. Depois, o mais provável é seguir para Pendle, a leste.

Que mais posso fazer?

Alice ainda tinha família em Pendle, mas eram bruxas. Apesar do que

afirmara, Alice pertencia agora ao escuro. Era onde se sentiria mais

confortável.

Sem acrescentar mais nada, virou-se e afastou-se na direção das

sombras. Triste, observei-a até desaparecer de vista, depois virei-me

também e abri o portão.

Destranquei a porta da frente e o Mago seguiu-me até lá dentro. Fui na

frente até à cozinha, onde o fogo ardia na grelha e a mesa estava posta

para dois. O demônio estivera à nossa espera. Foi uma ceia leve, apenas

duas tigelas de sopa de ervilha e fatias grossas de pão. Eu estava com

fome depois da nossa longa caminhada, de modo que ataquei logo.

Durante um tempo, o Mago ficou apenas ali sentado a olhar para a tigela

de sopa quente fumegante, depois pegou numa fatia de pão e fez sopas

com ela.

Page 285: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Tem sido duro, rapaz. E é bom estar em casa —

disse. Fiquei tão surpreendido por ele estar novamente a falar que quase

caí da cadeira.

— Sente-se melhor? — inquiri.

— Sim, rapaz, melhor do que estava. Com uma boa noite de sono ficarei

fino. A sua mãe é uma boa mulher.

Ninguém no Condado conhece melhor as suas poções.

— Julguei que não se lembrasse de nada — referi.

— Parecia distante. Quase como se fosse sonâmbulo.

— E era mesmo o que parecia, rapaz. Eu conseguia ver e ouvir tudo mas

não parecia real. Era tal e qual como se estivesse num pesadelo. E não

conseguia falar. Não conseguia encontrar as palavras. Só quando fiquei

lá fora a olhar para a casa é que me reencontrei. Ainda tem a chave do

Portão de Prata?

Surpreso, levei a mão ao bolso esquerdo das calças e tirei a chave.

Estendi-a ao Mago.

— Ela causou muitos problemas — disse ele, virando-a na mão. — Mas

agiu bem, apesar de tudo.

Sorri, sentindo-me mais feliz do que nos últimos dias, mas quando o

meu mestre tornou a falar, a sua voz era áspera.

— Onde está a garota? — perguntou bruscamente.

— Provavelmente não muito longe — admiti.

— Bem, trataremos dela mais tarde.

Durante toda a ceia pensei em Alice. O que arranja-ria para comer?

Bem, ela tinha jeito para apanhar coelhos, por isso fome não passaria —

sempre era menos um problema. No entanto, na Primavera, depois de

Lizzie dos Ossos ter raptado uma criança, os homens da aldeia haviam

deitado fogo à casa dela e as ruínas não proporcionariam grande abrigo

numa noite de Outono. Mesmo assim, como dissera Alice, o tempo ainda

não esfriara. Não, a sua maior ameaça provinha do Mago.

Acabou por ser a última noite amena do ano: na manhã

seguinte houve um nítido esfriamento do ar. O

Mago e eu sentamo-nos no banco a olhar para as extensões rochosas, o

vento a aumentar de intensidade. Havia o prenuncio da queda das

folhas. O Verão chegara mesmo ao fim. Tinha já comigo o livro de

apontamentos, mas o Mago não parecia ter pressa de começar a lição.

Não recuperara ainda do seu ordálio com o Inquisidor. Durante o

Page 286: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

desjejum falara pouco e passara a maior parte do tempo a olhar para o

ar, como se perdido em pensamentos.

Acabei por ser eu a quebrar o silêncio. — O que pretende o Destruidor,

agora que se encontra livre? O que irá fazer ao Condado?

— Isso é fácil de responder — disse o Mago. —

Acima de tudo, quer tornar-se maior e mais poderoso.

Nessa altura não haverá limite para o terror que causará.

Beberá sangue e lerá os pensamentos até os seus poderes serem

absolutos. Verá através dos olhos das pessoas que conseguem andar de

dia enquanto ele é forçado a esconder-se na escuridão em algum lugar

no subsolo. Se antes controlava apenas os padres na catedral e estendia

a sua influência em Priestown, agora nenhum lugar do Condado estará a

salvo.

«Caster pode muito bem vir a ser a próxima a sofrer. Mas primeiro

talvez o Destruidor escolha simplesmente um lugarejo pequeno e prense

todos até à morte como aviso, apenas para mostrar do que é capaz! Foi

assim que controlou Heys e os reis que governaram antes dele. A

desobediência significava que toda a comunidade seria prensada.

— A Mãe disse-me que ele irá andar à procura de Alice — referi, infeliz.

— É verdade, rapaz! A tola da sua amiga Alice.

Precisa dela para recuperar as forças. Por duas vezes ela deu-lhe

sangue, por isso, enquanto ela estiver em liberdade se encontrará a um

passo de ficar totalmente sob o controle dele. Se não houver nada que o

impeça, ela se tornará parte do Destruidor e quase não lhe restará

vontade própria. Conseguiria influenciá-la, usá-la com a mesma

facilidade com que dobro o meu dedo mindinho. O Destruidor saberá

fazer tudo o que puder para se voltar a alimentar dela. Andará à sua

procura neste momento.

— Mas ela é forte — protestei. — E, de qualquer forma, julguei que o

Destruidor tinha medo de mulheres.

Ambos o encontramos nas catacumbas quando eu ia tentar salvar o

senhor. Ele mudara para a sua forma a fim de me enganar.

— Afinal os rumores são verdadeiros — ele aprendeu a assumir uma

forma física lá em baixo.

— Sim, mas quando Alice lhe cuspiu, ele fugiu.

Talvez ela consiga continuar a fazê-lo.

— Sim, o Destruidor tem mais dificuldade em controlar uma mulher do

que um homem. As mulheres deixam-no nervoso porque são criaturas

Page 287: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

voluntariosas e com frequência imprevisíveis. Mas assim que bebe o

sangue de uma mulher tudo isso muda. Agora andará atrás de Alice e

não a deixará em paz. Insinuar-se-lhe-á nos sonhos e lhe mostrará as

coisas que ela pode ter — as coisas que podem ser dela, é só pedir —

até que, por fim ela julgará que existe a necessidade de voltar a chamá-

lo. Sem dúvida aquele meu primo estava sob o controle do Destruidor.

Caso contrário, nunca me trairia daquela maneira.

O Mago coçou a barba. — Sim, o Destruidor irá crescer cada vez mais e

haverá muito pouco que o impeça de fazer mal aos outros até dar cabo

de tudo no Condado.

Foi o que aconteceu à Gente Pequena até serem finalmente necessárias

medidas desesperadas. Precisamos saber exatamente como o Destruidor

foi aprisionado; melhor ainda, como pode ser morto. É por isso que

temos mesmo de ir a Heysham. Há lá uma cripta grande, um monte

arredondado que cobre um monumento tumular construído com pedras e

os corpos de Heys e dos filhos estão numas sepulturas de pedra nesse

lugar.

«Assim que eu estiver suficientemente forte, é onde vamos. Como sabe,

aqueles que sofrem mortes violentas às vezes têm dificuldade em deixar

este mundo. Por conseguinte, iremos visitar essas sepulturas. Se

tivermos sorte, pode ser que ainda lá esteja um fantasma ou dois.

Talvez mesmo o fantasma de Naze, que efetuou o aprisiona-mento. Essa

pode muito bem ser a nossa última esperança porque, para ser sincero,

rapaz, de momento não faço idéia de como vamos pôr termo a isto.

Ditas aquelas palavras, o Mago baixou a cabeça e pareceu realmente

muito triste e preocupado. Nunca o vira tão abatido.

— Já foi lá? — indaguei, curioso em saber por que razão os fantasmas

não tinham levado uma reprimenda e recebido ordem de se ir.

— Sim, rapaz, apenas uma vez. Fui lá quando era aprendiz. O meu

mestre teve de ir lá para enfrentar um espectro marinho incômodo que

andava a assolar a costa.

Feito isso, na colina por cima dos penhascos, passamos pelas sepulturas

e percebi que estava ali algo porque aquilo que fora uma noite quente de

Verão tornou-se subitamente muito fria. Como o meu mestre

continuasse a caminhar, perguntei-lhe por que não parava e fazia algo.

— «Deixe-os lá», respondeu-me. «Não incomodam ninguém. Além disso,

alguns fantasmas ficam nesta terra porque têm uma tarefa a realizar.

Page 288: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Por isso o melhor é deixá-los sossegados.» Não soube o que ele queria

dizer, mas, como sempre, tinha razão.

Tentei imaginar o Mago como aprendiz. Era muito mais velho do que eu

porque primeiro andara a ser preparado para o sacerdócio. Perguntei-me

como teria sido o seu próprio mestre, um homem que aceitara um

aprendiz tão velho.

— Seja como for — referiu o Mago —, iremos a Heysham muito em

breve, mas antes que isso aconteça, há uma outra coisa que tem de ser

feita. Sabe o que é?

Estremeci. Sabia o que ele ia dizer.

— Temos de tratar da garota, por isso precisamos saber onde está

escondida. O meu palpite iria para as ruí-

nas da casa de Lizzie. O que te parece? — perguntou o Mago.

Ia dizer-lhe que discordava, mas ele olhou-me com dureza até eu ser

obrigado a baixar o olhar para o chão.

Não podia lhe mentir.

— Provavelmente é onde estará — admiti.

— Bem, rapaz, ela não pode ficar ali muito mais tempo. É um perigo

para todos. Terá de ir para um poço.

E quanto mais depressa, melhor. Por isso é bom que comece a escavar. .

Olhei para ele, mal podendo acreditar no que ouvia.

— Olhe, rapaz, é difícil, mas tem de ser feito. A nossa obrigação é tornar

o Condado seguro para os outros e a garota será sempre uma ameaça.

— Mas isso não é justo! — referi. — Ela salvou-lhe a vida! E, na

Primavera passada salvou também a minha.

Tudo o que ela tem feito acaba por ser benéfico. Ela é bem-intencionada.

O Mago levantou a mão para me impor silêncio. —

Não fale em vão! — ordenou, a sua expressão muito austera. — Sei que

ela impediu as fogueiras. Sei que ela salvou vidas, incluindo a minha. No

entanto libertou o Destruidor e preferia estar morto a ter aquela coisa

medonha à solta e livre para fazer das suas. Por isso venha comigo e

resolvemos já isto!

— Mas, se matássemos o Destruidor, Alice ficaria livre! Teria outra

oportunidade!

O rosto do Mago ficou vermelho de raiva, e quando falou havia um nítido

tom de ameaça na sua voz. —

Uma bruxa que usa a magia de familiar é sempre perigosa.

Page 289: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Com o tempo, ao atingir a maturidade, será bem mais mortal do que

aquelas que usam a do sangue ou a dos ossos. Mas normalmente é

apenas um morcego ou um sapo

— algo pequeno e fraco que vai ganhando poder gradualmente. Pense

bem no que aquela jovem fez! Tinha de ser logo o Destruidor! E está

convencida de que o Destruidor está preso à vontade dela!

«Ela é inteligente e destemida e não há nada que não ousasse fazer. E

sim, arrogante também! Mas mesmo com o Destruidor morto, isso não

acabaria. Se deixarem que ela se torne mulher e, se não for controlada,

será a bruxa mais perigosa que o Condado já conheceu! Temos de tratar

dela agora, antes que seja tarde demais. Eu sou o mestre; você o

aprendiz. Siga-me e faça o que te mando!

E virou-me as costas, pondo-se a caminhar a um ritmo furioso. Com o

coração aos pés, segui-o até a casa para ir buscar a pá e a vara de

medição. Fomos diretamente para o jardim oriental e ali, a menos de

cinquenta passos do poço escuro que continha Lizzie dos Ossos, comecei

a abrir um novo poço, um quadrado com um metro e vinte de lado e dois

metros e quarenta de profundidade.

O Sol já se pusera quando o terminei a contento do Mago. Saí do poço

sentindo-me constrangido, sabendo que Lizzie estava no seu próprio

poço não muito longe dali.

— Por agora chega — disse o Mago. — Amanhã de manhã vai à aldeia e

traz o pedreiro para tirar as medidas. O pedreiro cimentaria uma cerca

de pedras em volta do poço com treze barras de ferro fortes que seriam

colocadas para impedir qualquer hipótese de fuga. O Ma-go teria de

vigiar o trabalho dele para mantê-lo a salvo do demônio de estimação.

Enquanto me arrastava até casa, o meu mestre apoiou de leve a mão no

meu ombro. — Cumpriu o seu dever, rapaz. É tudo o que se pode

esperar e gostaria de te dizer que, até ao momento, tem correspondido

ao que a sua mãe prometeu. .

Olhei para ele, espantado. A minha mãe escrevera-lhe uma vez uma

carta dizendo que eu seria o melhor aprendiz que ele alguma vez tivera,

mas não ficara nada satisfeito por ela lhe ter dito.

— Continue assim — prosseguiu o Mago —, e quando chegar o momento

de me aposentar, com certeza irei deixar o Condado em muitas boas

mãos. Espero que isto te faça sentir um pouco melhor.

O Mago era sempre parco nos elogios e ouvi-lo dizer aquilo foi algo

realmente especial. Acho que ele só estava tentando animar-me mas

Page 290: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

não me saíam da idéia o poço e Alice, pelo que os elogios dele não

ajudaram nada.

Naquela noite tive dificuldade em adormecer, por isso estava bem

desperto quando aquilo aconteceu.

A princípio, julguei que fosse uma tempestade súbita. Ouviu-se um

estrondo e um zumbido e toda a casa pareceu ser sacudida e tremeu

como se fustigada por um vendaval. Bateu algo na minha janela com

uma força terrível e ouvi nitidamente o vidro estalar. Alarmado, ajoelhei

na cama e afastei as cortinas.

A janela grande de guilhotina estava dividida em oito vidraças

irregulares espessas, pelo que não era possível ver grande coisa através

delas a maior parte das vezes, mas havia uma meia-lua e apenas

consegui distinguir as copas das árvores, curvando-se e contorcendo-se

como se os seus troncos estivessem a ser sacudidos por um exército de

gigantes enfurecidos. E três das minhas grossas vidraças estavam

estaladas. Por um momento, senti-me tentado a usar o cordão da

guilhotina para levantar a metade de baixo da janela a fim de poder ver

o que sucedia. Mas depois pensei melhor. A Lua brilhava com tanta

intensidade que era improvável tratar-se de uma tempestade natural.

Estávamos a ser atacados. Poderia ser o Destruidor?

Ter-nos-ia encontrado?

A seguir, veio um ruído de pancadas e algo a rasgar de algum lugar logo

acima da minha cabeça. Dava a idéia que alguém estava a levar uma

surra no telhado, sendo agredido com punhos fortes. Ouvi as telhas

começarem a voar e partirem-se nas lajes que delimitavam o relvado

ocidental.

Vesti-me rapidamente e desci correndo as escadas, dois degraus de cada

vez. A porta de trás estava escancarada e saí correndo para o relvado,

indo direto ao centro de um vendaval tão intenso que era quase

impossível respirar, quanto mais dar um passo em frente. Contudo fiz

um esforço tremendo, um passo de cada vez, obrigando-me a manter os

olhos abertos enquanto o vento me fustigava o rosto.

Ao luar, consegui ver o Mago de pé a meio caminho entre as árvores e a

casa, a sua capa preta agitando-se com o vento intenso. Erguera bem

alto o bordão diante de si como se a postos para desferir um golpe.

Pareceu decorrer uma eternidade até o alcançar.

— O que é? O que é! — gritei, quando cheguei finalmente junto dele.

Page 291: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Obtive quase de imediato a resposta, mas não do Mago. Um som terrível

e ameaçador encheu o ar; um misto de grito irado e uivo vibrante que se

terá ouvido num raio de quilômetros. Era o demônio do Mago. Já antes

ouvira aquele som, na Primavera, quando ele impedirá Lizzie dos Ossos

de me perseguir até ao jardim ocidental.

Por isso sabia que, ali na escuridão entre as árvores, ele estava frente a

frente com algo que ameaçava a casa e os jardins. O que mais podia ser

senão o Destruidor?

Fiquei ali a tremer de medo e frio, os meus dentes batendo e o meu

corpo doendo da ventania forte que o fustigava. Mas passados alguns

momentos o vento abrandou e, muito gradualmente, tudo ficou

silencioso e tranquilo.

— Volte para dentro de casa — ordenou o Mago.

— Não há nada a fazer aqui até de manhã.

Quando chegamos à porta de trás fiquei olhando para os fragmentos das

telhas que enchiam as lajes.

— Foi o Destruidor? — inquiri.

O Mago assentiu. — Não demorou muito a nos encontrar, não é? —

referiu ele, abanando a cabeça. — A garota é, sem dúvida, a culpada

disto. Temos de encontrá-la primeiro. Ou então foi ela que o chamou.

— Ela não o voltaria a fazer — atalhei, tentando defender Alice. — O

demônio salvou-nos? — perguntei, mudando de assunto.

— Sim, de momento salvou e a que custo é o que iremos saber pela

manhã. Mas eu não apostaria que ele consiga uma segunda vez. Vou

ficar aqui de vigia — disse o Mago. — Volte para o seu quarto e tente

dormir. Amanhã tudo pode acontecer, por isso precisa manter a cabeça

fria.

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CAPÍTULO 17

A CHEGADA DO INQUISIDOR

Fui novamente lá para abaixo antes da alvorada. O céu limpo durante a

noite estava agora nublado, não se movia uma palha e os relvados

apresentavam-se salpicados de branco com a primeira verdadeira geada

de Outono.

O Mago encontrava-se próximo da porta de trás, ainda de pé, quase na

mesma posição em que o vira a última vez. Parecia cansado e o seu

rosto estava sem vida e pardacento como o céu.

— Bem, rapaz — disse ele, em tom cansado —, vamos inspecionar os

estragos.

Julguei que se estivesse a referir à casa, mas ele partiu antes na direção

das árvores no jardim ocidental. Registravam-se efetivamente estragos,

mas não tão maus quanto parecera na noite anterior. Havia alguns

troncos grandes partidos, ramos espalhados pela relva e o banco fora

derrubado. O Mago fez um gesto e ajudei-o a levantar o banco e colocá-

lo de novo na posição.

— Não é mau — comentei, tentando animá-lo, pois ele estava com um

ar realmente deprimido e abatido.

— É bastante mau — respondeu-me com secura.

— O Destruidor haveria sempre de ficar mais forte, mas isto foi muito

mais rápido do que eu esperava. Muito mais rápido. Ele não deveria ter

conseguido fazer isto tão cedo.

Não nos resta muito tempo!

O Mago voltou para casa, seguindo na frente. Vimos que faltavam telhas

no telhado e uma das chaminés soltara-se do suporte.

— Vai ter de esperar até eu ter tempo de a arranjar

— disse.

Nesse preciso momento ouviu-se o som de um sino vindo da cozinha.

Pela primeira vez naquela manhã o Mago esboçou um tênue sorriso.

Parecia aliviado.

— Não sabia ao certo se teríamos desjejum esta manhã — comentou. —

Talvez não seja tão mau quanto eu julgava. .

Quando entramos na cozinha, a primeira coisa em que reparei foi que as

lajes entre a mesa e a lareira apresentavam manchas de sangue. E a

Page 293: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

cozinha estava realmente gelada. Depois vi porquê. Era aprendiz do

Mago há quase seis meses, mas esta era a primeira manhã em que não

havia fogo aceso na grelha. E em cima da mesa não havia ovos, nem

toucinho fumado, apenas uma fatia fina torrada para cada um de nós.

O Mago tocou-me no ombro em aviso. — Não digas nada, rapaz. Coma e

dá graças pelo que recebemos.

Fiz o que ele me mandara mas depois de engolir o último bocado de

torrada o meu estômago continuava a roncar. O Mago levantou-se. —

Foi um excelente desjejum. O pão estava muito bem torrado — disse

para o ar.

— E obrigado por tudo o que fez a noite passada. Estamos ambos muito

gratos.

A maior parte das vezes, o demônio não se mostrava, mas agora voltara

a assumir a forma do gato cor de camarão grande. Ouviu-se um

levíssimo ronronar e apareceu fugazmente perto da lareira. No entanto,

nunca como então o vira com aquele aspecto. Tinha a orelha esquerda

cortada e a sangrar e o pêlo do pescoço estava sujo de sangue. Mas o

pior de tudo era o que lhe acontecera ao focinho. No lugar onde

costumava estar o olho esquerdo havia agora uma ferida vertical em

carne viva.

— Nunca mais voltará a ser o mesmo — observou o Mago, triste, depois

de sairmos pela porta de trás. —

Devíamos estar gratos por o Destruidor ainda não ter recuperado a força

plena, senão teríamos morrido a noite passada. Aquele demônio

conseguiu-nos mais algum tempo. Agora temos de aproveitá-lo antes

que seja tarde demais...

Enquanto falava, começou a ouvir-se tocar o sino na encruzilhada.

Trabalho para o Mago. Com tudo o que acontecera e o perigo do

Destruidor, julguei que ele fosse ignorar, mas enganei-me.

— Bem, rapaz — disse. — Vá lá saber o que querem.

O sino parou de tocar antes de eu lá chegar, contudo a corda abanava

ainda. Lá em baixo no meio dos salgueiros estava escuro como sempre

mas demorei apenas um segundo a perceber que não era um chamado

para assuntos de mago. Estava ali à espera uma jovem de vestido preto.

Alice.

— Está correndo um enorme risco! — adverti-a, abanando a cabeça.— A

sua sorte foi Mr. Gregory não ter vindo até aqui comigo.

Alice sorriu.

Page 294: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— O Velho Gregory não conseguiria me apanhar fraco como está agora.

Não é nem metade do homem que era. — Não tenha tanta certeza

assim! — respondi, irado. — Ele obrigou-me a abrir um poço. Um poço

para você. E é onde vai acabar se não tiver cuidado.

— A força do Velho Gregory desapareceu. Não admira que ele o

mandasse abrir! — zombou Alice, a sua voz carregada de escárnio.

— Não — retorqui —, ele obrigou-me a abri-lo para que eu aceitasse o

que tem de ser feito. Tenho por obrigação meter-te lá dentro.

De repente, o tom de Alice ficou triste. — Seria realmente capaz de me

fazer isso, Tom? — inquiriu. —

Depois de tudo aquilo por que passamos juntos? Salvei-te de um poço.

Não se lembra, quando Lizzie dos Ossos queria os seus ossos? Quando

Lizzie estava a afiar a faca?

Lembrava-me bem. Se não tivesse sido a ajuda de Alice, eu haveria

morrido nessa noite.

— Olhe, Alice, vá para Pendle agora, antes que seja tarde demais —

aconselhei-a. — Afaste-se o mais possível daqui! — O Destruidor não

concorda. Acha que devo ficar por perto mais um pouco, é o que ele

acha.

— O Destruidor é uma coisa, não uma pessoa! —

redargui, irritado pelo que Alice estava a dizer.

— Não, Tom, não é — contrapôs Alice. — Eu cheirei-o, sim, e ele é de

certeza uma coisa-homem!

— O Destruidor atacou a casa do Mago a noite passada. Podia ter-nos

matado. Foi você que o enviou?

Alice abanou a cabeça numa veemente negação.

— Isso não tem nada a ver comigo, Tom. Juro.

Nós falamos, foi tudo, e ele disse-me umas coisas.

— Julguei que não ia ter mais contato com ele! —

referi, mal podendo acreditar no que ela me dizia.

— Esforcei-me bastante, Tom, realmente. Mas ele vem murmurar-me

coisas. Vem procurar-me no escuro, pois vem, quando estou tentando

dormir. Até fala comigo nos meus sonhos. Promete-me coisas.

— Que tipo de coisas?

— Não é fácil, Tom. As noites estão a ficar cada vez mais frias. O tempo

está a piorar. O Destruidor disse que eu podia ter uma casa com uma

grande lareira e muito carvão e lenha e que nunca me faltaria nada.

Disse que eu podia ter também roupas bonitas, para que as pessoas não

Page 295: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

me olhassem com desprezo como fazem agora, pensando que sou algo

que saiu a rastejar de uma sebe.

— Não lhe dês ouvidos, Alice. Tem de se esforçar mais!

— Ainda bem que às vezes lhe dou ouvidos — retorquiu Alice, com um

estranho semi-sorriso no rosto —, senão iria ficar cheio de remorsos. É

que eu sei uma coisa.

Uma coisa que pode salvar a vida do Velho Gregory assim como a sua.

— Conte-me — instei-a.

— Não sei por que haveria de fazê-lo, já que está a conspirar para que

eu passe o resto dos meus dias num poço! — Isso não é justo, Alice.

— Voltarei a ajudar, prometo. Mas será que você farias o mesmo por

mim. .?

Fez uma pausa e sorriu-me com ar triste. — Sabe, o Inquisidor está a

caminho de Chipenden. Queimou as mãos naquela fogueira, mais nada,

e agora quer vingar-se.

Ele sabe que o Velho Gregory vive em algum lugar aqui próximo e vem

aí com homens armados e cães. São sabujos enormes, com dentes

grandes. Estarão aqui ao meio-dia o mais tardar. Por isso vá contar ao

Velho Gregory o que te disse. Porém, não estou à espera de que ele me

agradeça.

— Contar-lhe-ei — referi, e pus-me logo a caminho, correndo colina

acima em direção à casa. Enquanto corria, percebi que não agradecera a

Alice, mas como podia agradecer-lhe por recorrer ao escuro para nos

ajudar?

O Mago estava à espera mesmo por dentro da porta de trás.

— Bem, rapaz — disse —, recupere primeiro o fôlego. Vejo pela sua cara

que é portador de más notícias.

— O Inquisidor vem para cá — informei-o. —

Descobriu que vivemos próximo de Chipenden!

— E quem te contou isso? — indagou o Mago, coçando a barba.

— Alice. Ela disse que ele estará aqui ao meio-dia.

O Destruidor avisou-a. .

O Mago suspirou fundo.

— Bem, é melhor partirmos o mais depressa possível. Antes disso,

porém, vá à aldeia e informe o talhador de que vamos seguir para norte

pelas extensões rochosas até Caster e estaremos fora algum tempo. A

seguir, procura o merceeiro e avise-o de que não vamos precisar de

provisões para a próxima semana.

Page 296: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Desci correndo à aldeia e fiz exatamente o que ele me mandara. Quando

regressei, o Mago já estava na porta, pronto para partir. Entregou-me o

saco.

— Vamos para sul? — inquiri.

O Mago abanou a cabeça. — Não, rapaz, vamos rumar a norte, tal como

disse. Precisamos chegar a Heysham e, se tivermos sorte, falar com o

fantasma de Naze.

— Mas dissemos a todos para onde íamos. Por que não fingir que íamos

rumar a sul?

— Porque espero que o Inquisidor faça uma visita à aldeia no caminho

até aqui. Depois, em vez de passar busca à casa, seguirá para norte e os

cães encontrarão o nosso rastro. Temos de afastá-los da casa. Alguns

dos livros na minha biblioteca são insubstituíveis. Se ele vier aqui, os

seus homens podem saquear a casa e talvez queimem tudo. Não, não

posso arriscar que aconteça nada aos meus livros.

— E então o demônio? Não guardará a casa e os jardins? Como podem

eles sequer entrar sem correrem o risco de ser dilacerados? Ou agora ele

está demasiado fraco?

O Mago suspirou e olhou para as botas.

— Não, ele ainda tem forças suficientes para enfrentar o Inquisidor e os

seus homens, mas não quero ter mortes desnecessárias na minha

consciência. E mesmo que matasse aqueles que entrassem, alguns

podiam conseguir escapar. De que mais provas necessitariam então para

afirmar que mereço a fogueira? Voltariam com um exército. Isto nunca

mais acabaria. Não teria paz até no fim dos meus dias. Seria obrigado a

abandonar o Condado.

— Mas eles não nos irão apanhar mesmo assim?

— Não, rapaz, Não se seguirmos pelas extensões rochosas. Eles não

poderão utilizar os cavalos e levaremos algumas horas de avanço.

Precisamos ter vantagem. Nós conhecemos bem o Condado, mas os

homens do Inquisidor são forasteiros. Bem, vamos lá embora. Já

perdemos tempo suficiente!

Dirigindo-se para as extensões rochosas, o Mago partiu a um ritmo

muito rápido. Segui-o o melhor que podia, carregando o seu saco como

de costume.

— Alguns dos homens dele não irão seguir caminho e fazer-nos uma

espera em Caster? — perguntei.

Page 297: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Certamente o farão, rapaz, e se fôssemos até Caster, isso poderia

constituir um problema. Não, nós vamos passar a leste da cidade.

Depois seguiremos para sudoeste, conforme te disse, para Heysham,

para visitar as sepulturas de pedra. Ainda temos de enfrentar o

Destruidor e o tempo está a esgotar-se. Falar com o fantasma de Naze é

a nossa oportunidade de descobrirmos como fazê-lo.

— E depois disso? Para onde iremos? Alguma vez poderemos voltar

aqui?

— Não vejo motivos para que não seja possível, com o tempo.

Acabaremos por conseguir despistar o Inquisidor. Existem maneiras de

fazê-lo. Oh, ele irá procurar durante um tempo e depois se aborrecerá,

sem dúvida.

Não tardará a voltar para o lugar de onde veio. Onde se pode manter

quente durante o Inverno que se avizinha.

Anuí mas não estava lá muito satisfeito. Divisava todo o tipo de falhas

no plano do Mago. Para começar, ele podia ter partido cheio de força,

mas ainda não estava completamente em forma e seria muito duro

atravessar as extensões rochosas. E podiam alcançar-nos antes de

chegarmos a Heysham. E depois, não deixariam de passar pela casa do

Mago e incendiá-la por despeito, especialmente se nos perdessem o

rastro. E havia que pensar no ano seguinte. Na Primavera, o Inquisidor

tornaria a rumar ao norte. Parecia-me um homem que nunca desistia.

Não via nenhuma maneira de a vida poder voltar ao normal. E ocorreu-

me outra idéia. .

E se me apanhassem? O Inquisidor torturava as pessoas para obrigá-las

a responder às perguntas. E se me forçassem a dizer-lhes onde vivia

antes? Eles confiscavam ou incendiavam as casas de bruxas e feiticeiros.

Pensei no Pai, em Jack e em Ellie, sem terem onde morar. E o que

fariam quando vissem a Mãe? Ela não podia ficar exposta ao sol. E

costumava ajudar as parteiras locais nos nascimentos difíceis e tinha

uma grande coleção de ervas e outras plantas. A Mãe correria verdadeiro

perigo!

Não mencionei nada disto ao Mago porque via que ele já estava cansado

das minhas perguntas.

Em menos de uma hora tínhamos chegado ao cume das extensões

rochosas. O tempo estava calmo e parecia que teríamos um belo dia pela

frente.

Page 298: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Se ao menos conseguisse afastar da idéia a razão por que estávamos

aqui em cima, poderia ter apreciado muito mais, pois o tempo estava

bom para caminhar. Tínhamos apenas a companhia dos maçaricos-reais

e dos coelhos, e ao longe, a noroeste, o mar distante cintilava ao sol.

A princípio, o Mago caminhava energicamente, seguindo na frente.

Contudo, muito antes do meio-dia começou a abrandar, e quando

paramos e nos sentamos perto de um monte de pedras, pareceu-me

completamente esgotado. Quando desembrulhou o queijo, reparei que

as mãos lhe tremiam.

— Tome, rapaz — disse, entregando-me um pequeno pedaço. — Não

coma tudo de uma vez.

Fazendo como ele me aconselhara, fui-lhe dando pequenas dentadas.

— Sabe que a garota vem nos seguindo? — inquiriu o Mago. Olhei para

ele, espantado, e abanei a cabeça.

— Está mais ou menos um quilômetro e meio lá atrás — disse-me,

fazendo um gesto para sul. — Como paramos, ela parou também. O que

acha que pode querer?

«Naturalmente não tem mais nenhum lugar para onde ir, a não ser

Pendle, a leste, e não quer realmente ir para lá. E não tem outra

alternativa senão abandonar Chipenden. Constitui uma ameaça porque,

para onde quer que vá, o Destruidor também não estará muito longe. No

momento encontrar-se-á escondido debaixo do solo, mas assim que

escurecer, ela o atrairá a si como a chama de uma vela uma borboleta e

com certeza andará a rondar. Se ela voltar a alimentá-lo, ele se tornará

mais forte e come-

çará a ver pelos olhos dela. Antes disso, pode mesmo preferir outras

vítimas — pessoas ou animais, o efeito será idêntico. Depois de se

empanturrar de sangue, ficará mais forte e em breve poderá voltar a

revestir-se de carne e ossos. A noite passada foi apenas o começo.

— Se não tivesse sido Alice, nunca haveríamos deixado Chipenden — fiz-

lhe ver. — Seríamos prisioneiros do Inquisidor.

Mas o Mago preferiu ignorar-me. — Bem — disse

—, é melhor irmos andando. Aqui sentado é que não vou rejuvenescer.

Porém, passada outra hora, tivemos de parar para descansar. Desta vez,

o Mago ficou sentado mais tempo antes de finalmente se obrigar a

levantar. Foi assim o dia inteiro, com os períodos de repouso a ficarem

cada vez maiores e o tempo que passávamos de pé sempre mais curto.

Perto do pôr do Sol o tempo começou a mudar. O

Page 299: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

cheiro da chuva inundava o ar e não tardou a começar a chuviscar.

Quando se instalou a escuridão, começamos a descer em direção a uma

manta de retalhos de muros de vedação de pedra seca. A vertente da

extensão rochosa era íngreme e a erva escorregava, por isso

desequilibrávamo-nos constantemente. E mais, a chuva aumentara de

intensidade e começara a levantar-se vento de oeste.

— Vou descansar enquanto recupero o fôlego — anunciou o Mago.

Encaminhou-se para a seção do muro mais próxima, escalamos e nos

acocoramos na extremidade oriental, para nos abrigarmos um pouco do

aguaceiro.

— A umidade entranha-se nos ossos quando se tem a minha idade —

queixou-se o Mago. — É o que nos traz uma vida de exposição às

condições climáticas do Condado. Acabam por nos atacar. Ou os ossos

ou os pulmões.

Encostamo-nos ao muro, desconsolados. Eu estava cansado e esgotado,

e apesar de estarmos ao relento numa noite como esta, era difícil

mantermo-nos acordados. Não tardei a mergulhar num sono profundo e

começar a sonhar. Foi um daqueles sonhos compridos que parecem

durar a noite inteira. E, lá mais para o fim, tornou-se um pesadelo. .

Page 300: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 18

PESADELO NA COLINA

Foi sem a menor dúvida o pior pesadelo que alguma vez tivera. E, num

ofício como o meu, já os tivera de sobra.

Andava perdido e tentava achar o caminho para casa. Devia ter

conseguido encontrar com bastante facilidade porque estava tudo

banhado pela luz da lua cheia, mas sempre que virará numa

determinada direção e julgava reconhecer algum ponto de referência,

não tardava a constatar que me enganara. Cheguei finalmente ao topo

da Colina do Carrasco e vi a nossa fazenda lá ao fundo.

Quando vinha descendo a colina, comecei a sentir uma grande aflição.

Apesar de ser de noite, estava tudo silencioso demais e nada se mexia lá

em baixo. As vedações encontravam-se muito degradadas, algo que o

Pai e Jack nunca teriam permitido que acontecesse, e as portas do

celeiro pendiam meias soltas dos ferrolhos.

A casa parecia deserta: algumas das janelas estavam partidas e

faltavam telhas no telhado. Tive dificuldade em abrir a porta de trás, e

quando cedeu com o habitual empurrão, entrei numa cozinha que

parecia não ser habitada há anos. Havia pó por todo o lado e teias de

aranha a pender do teto. A cadeira de balanço da Mãe encontrava-se

mesmo no meio da divisão e nela via-se um pedaço de papel dobrado,

que apanhei e levei lá para fora para ler à luz da Lua.

As sepulturas do seu pai, de Jack, Ellie e Mary estão lá em cima, na

Colina do Carrasco. Encontrará a sua mãe no celeiro.

Com o coração a doer ao ponto de rebentar, corri para o pátio. Depois,

estaquei à entrada do celeiro, escutando com atenção. Reinava o

silêncio. Não havia sequer um sopro de vento. Entrei no escuro cheio de

nervosismo, sem saber com o que contar. Estaria ali uma sepultura? A

sepultura da Mãe?

Havia um buraco no telhado logo acima, e pude ver a cabeça da Mãe

dentro de um raio de luar. Olhava diretamente para mim. O seu corpo

estava no escuro, mas, pela posição do rosto, parecia estar ajoelhada no

chão.

Por que faria semelhante coisa? E por que parecia tão infeliz? Não estava

satisfeita por me ver?

Page 301: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

De repente, a Mãe soltou um grito de angústia.

— Não olhe para mim, Tom! Não olhe para mim!

Vire-se imediatamente! — gritou, como se em tormento.

Assim que desviei o olhar, a Mãe levantou-se do chão e vi pelo canto do

olho algo que transformou os meus ossos em geléia. Do pescoço para

baixo, a Mãe estava diferente. Vi asas e escamas e um brilho de garras

quando se elevou no ar e colidiu com o telhado do celeiro, levando

metade atrás de si. Ergui o olhar, protegendo o rosto dos pedaços de

madeira e detritos que caíam na minha direção, e vi a Mãe, uma silhueta

negra no disco da lua cheia ao elevar-se dos destroços do telhado do

celeiro.

— Não! Não! — gritei. — Isto não é verdade, isto não está acontecendo!

Em resposta, uma voz falou dentro da minha cabeça. Era o silvo cavo do

Destruidor.

— A lua mostra a verdade das coisas, rapaz. Você já o sabe. Tudo o que

viu é verdade ou irá acontecer. É só uma questão de tempo.

* * *

Começaram a abanar-me o ombro e acordei coberto de suores frios. O

Mago estava debruçado sobre mim.

— Acorde, rapaz! Acorde! — chamou. — É só um pesadelo. É o

Destruidor tentando entrar na sua mente, a tentar enfraquecer-nos.

Anuí mas não contei ao Mago o que acontecera no sonho. Seria doloroso

demais. Olhei para o céu. A chuva continuava a cair, porém através dos

farrapos das nuvens viam-se algumas estrelas. Ainda estava escuro mas

a alvorada não tardaria muito.

— Dormimos a noite toda?

— Dormimos, sim — respondeu o Mago —, apesar de não ser essa a

minha intenção.

Levantou-se com dificuldade. — É melhor continuarmos enquanto ainda

podemos — referiu, cheio de ansiedade. — Não os ouve?

Pus-me à escuta e por fim, acima do ruído do vento e da chuva, ouvi ao

longe o latir dos cães.

— Sim, eles não estão muito longe — disse o Ma-go. — A nossa única

esperança é conseguir despistá-los.

Para o fazermos precisamos de água, mas terá de ser pouco funda para

podermos caminhar nela. Claro que a dada altura precisaremos voltar a

terra seca mas os cães terão de ser levados a bater a margem a fim de

Page 302: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

voltarem a encontrar o rastro. E se houver outro riacho perto facilitará

muito a tarefa.

Escalamos outro muro e descemos uma vertente íngreme, movendo-nos

o mais rapidamente que ousávamos pela erva úmida e escorregadia.

Havia abaixo de nós uma cabana de pastor, uma silhueta tênue contra o

céu, e ao lado dela um antigo espinheiro negro, dobrado na direção dela

pelos ventos predominantes, os seus ramos despidos como garras

estendidas para os beirais. Continuamos a encaminhar-nos para a

cabana mas depois estacamos subitamente.

Existia um curral de madeira lá à frente à nossa esquerda. E a luz dava

precisamente para vermos que continha um pequeno rebanho de

carneiros, cerca de vinte ou assim. E todos eles estavam mortos.

— Isto não me agrada em nada, rapaz.

E a mim também não. Mas percebi depois que ele não se referia aos

carneiros mortos. Olhava para a cabana mais adiante.

— Provavelmente chegamos tarde demais — disse, a sua voz pouco mais

do que um murmúrio. — Mas o nosso dever é entrar e ir ver. .

Dito aquilo, começou a avançar na direção da cabana, agarrando o

bordão. Segui-o, carregando o seu saco.

Quando passei pelo curral, olhei de soslaio para o carneiro morto mais

próximo. A lã branca que o revestia estava manchada de sangue. Se

aquilo era obra do Destruidor, então alimentara-se bem. Quão mais forte

estaria agora?

A porta da frente estava escancarada, por isso não fizemos cerimônia

em entrar, o Mago seguindo na frente.

Mal dera um passo para lá do limiar quando estacou e aspirou o ar.

Olhava para a esquerda. Havia uma vela em algum lugar lá ao fundo da

divisão e à sua luz tremulante pude ver o que, à primeira vista, me

pareceu ser a sombra do pastor. Mas era sólido demais para ser apenas

uma sombra. Estava de costas para a parede e tinha o cajado erguido

acima da cabeça como se para nos ameaçar. Demorei algum tempo a

perceber para o que estava a olhar, depois algo me pôs os joelhos a

tremer e o coração a bater irregularmente na boca.

Via-se no rosto dele um misto de raiva e terror.

Tinha os dentes à mostra mas alguns deles estavam partidos e a boca

suja de sangue. Estava ereto mas não de pé.

Fora espalmado. Prensado contra a parede. Esborrachado até aos ossos.

E fora obra do Destruidor.

Page 303: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O Mago deu outro passo na divisão. E outro. Fui-o seguindo até

conseguir ver todo o pesadelo lá dentro.

Houvera um berço de bebê no canto mas fora esmagado contra a parede

e no meio dos destroços estavam cobertores e um lençolinho manchados

de sangue. Da criança nem sinal. O meu mestre aproximou-se dos

cobertores e levantou-os com cautela. O que viu deixou-o

manifestamente incomodado e fez-me sinal para não olhar antes de

voltar a colocar os cobertores com um suspiro.

Entretanto, eu avistara a mãe do bebê. Havia um corpo de mulher no

chão, parcialmente encoberto por uma cadeira de balanço. Fiquei grato

por não poder ver-lhe o rosto. Segurava na mão direita uma agulha de

tricotar, e um novelo de lã rolara para a lareira perto das brasas, que

estavam a ficar cinzentas.

A porta da cozinha estava aberta e tive uma súbita sensação de receio.

Tinha certeza de que havia algo ali à espreita. Assim que o percebi a

temperatura na divisão desceu. O Destruidor continuava ali. Sentia-o nos

ossos.

Aterrorizado, quase fugi da cabana mas o Mago não arredou pé e

enquanto ele ficasse, como podia abandoná-lo?

Naquele momento a vela extinguiu-se repentinamente, como se apagada

por dedos invisíveis, mergulhando-nos no escuro, e uma voz cava falou

da completa negrura da porta da cozinha. Uma voz que ressoou pelo ar

e vibrou através do chão lajeado da cabana pelo que a pu-de sentir nos

pés.

— Olá, Ossos Velhos. Finalmente voltamos a encontrar-nos. Andei à sua

procura. Sabia que estava em algum lugar por aqui.

— Sim, e agora encontrou-me — disse o Mago com voz cansada,

assentando o bordão nas lajes e apoiando o seu peso nele.

— Sempre foi um intrometido, não foi, Ossos Velhos? Mas agora

intrometeu-se pela última vez. Primeiro vou matar o rapaz, enquanto

você fica a assistir. Depois será a sua vez.

Uma mão invisível agarrou-me e atirou-me de encontro à parede com

tanta força que todo o ar foi expulso do meu corpo. Depois começou a

pressão, uma força constante tão intensa que parecia que as minhas

costelas se iam partir. O pior de tudo era o peso terrível na minha testa

e lembrei-me do rosto do pastor espalmado e agarrado às pedras. Fiquei

apavorado, incapaz de me mexer ou sequer respirar. Passou-me uma

Page 304: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

sombra pela vista e a última coisa de que percebi foi de que o Mago

avançara para a porta da cozinha erguendo o bordão.

Sacudiam-me delicadamente.

Abri os olhos e vi o Mago debruçado sobre mim.

Encontrava-me estendido no chão da cabana.

— Está bem, rapaz? — perguntou-me, cheio de ansiedade.

Acenei com a cabeça. Doíam-me as costelas. Cada vez que respirava

doíam-me. Mas respirava. Ainda estava vivo. — Ande, vamos ver se

consegue se pôr em pé. .

Com o Mago a amparar-me, logo me levantei.

— Consegue andar?

Assenti com a cabeça e dei um passo. Não me sentia muito firme em pé

mas podia caminhar.

— Bom rapaz.

— Obrigado por me salvar — disse-lhe.

O Mago abanou a cabeça. — Eu não fiz nada, rapaz. O Destruidor

desapareceu de repente, como se tivesse sido chamado. Vi-o deslocar-se

colina acima. Parecia apenas uma nuvem negra a apagar as últimas

estrelas. Fizeram aqui uma coisa terrível — referiu, olhando para o

horror dentro da cabana. — Mas temos de nos afastar o mais depressa

que pudermos. Primeiro temos de nos salvar. Talvez consigamos escapar

ao Inquisidor, mas com aquela garota a seguir-nos o Destruidor estará

sempre por perto e a ficar cada vez mais poderoso. Precisamos chegar a

Heysham e descobrir como podemos acabar com aquela coisa medonha

de uma vez por todas!

Com o Mago na frente, deixamos a cabana e continuamos a descer a

colina. Atravessamos mais duas seções de muro até podermos ouvir o

som de água a correr.

O meu mestre movia-se agora muito mais depressa, quase tão

rapidamente como na altura em que tínhamos partido de Chipenden, por

isso presumo que o sono lhe tivesse feito algum bem. Ao passo que eu

estava todo dolorido e a fazer um esforço para o acompanhar, levando

na mão o seu pesado saco.

Chegamos a um caminho íngreme e estreito ao lado de um regato, uma

corrente larga de água que descia rapidamente por cima das rochas.

— Este vai desaguar num lago cerca de um quilômetro e meio mais

abaixo — anunciou o Mago, descendo em grandes passadas. — A terra

Page 305: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

aplana e os dois cursos de água vão dar lá. É precisamente o que

procurávamos.

Segui conforme podia. Parecia estar chovendo mais intensamente do que

nunca e o solo era traiçoeiro debaixo dos pés. Um deslize e íamos parar

na água. Perguntei-me se Alice estaria por perto e se conseguia descer

um caminho como este tão próximo de água a fluir rapidamente.

Alice correria também perigo. Os cães poderiam captar o rastro dela.

Então, acima do ruído do regato e da chuva, ouvi os sabujos; pareciam

estar a aproximar-se cada vez mais.

De repente escutei algo que me cortou a respiração.

Fora um grito!

Alice! Virei-me e olhei para o caminho mas o Mago agarrou-me o braço e

puxou-me para a frente. — Não há nada que possamos fazer, rapaz! —

gritou-me. — Nada absolutamente! Por isso continue a andar.

Obedeci, procurando ignorar os sons que vinham da vertente da

extensão rochosa atrás de nós. Havia berros e brados e mais gritos

horripilantes até que gradualmente tudo sossegou e ouvi apenas a água

passar a correr.

O céu estava muito mais claro e abaixo de nós, na primeira luz da

alvorada, pude ver as águas pálidas do lago estenderem-se por entre as

árvores.

Partia-me o coração de pensar no que poderia ter acontecido a Alice. Ela

não merecia isto.

— Continue a andar, rapaz — repetiu o Mago.

E depois ouvi algo no caminho atrás de nós — mas a aproximar-se cada

vez mais. Parecia um animal a correr na nossa direção. Um cão grande.

Não era justo. Estávamos tão perto do lago e dos seus dois riachos. Mais

dez minutos e teríamos conseguido despistar os sabujos. Mas para

minha surpresa, o Mago não estava a acelerar. Parecia até estar a

abrandar. Por fim, parou por completo e puxou-me para a beira do

caminho; perguntei-me se teria chegado ao fim das suas forças. Se sim,

então estava tudo acabado para nós.

Olhei para o Mago, na esperança de que ele retiras-se algo do saco para

nos salvar. Mas não o fez. O cão corria agora diretamente a nós a toda a

velocidade. No entanto, à medida que se aproximava reparei em algo

estranho nele. Para começar, latia em vez de ladrar como um cão em

matilha. E tinha os olhos fixos lá adiante e não em nós. Passou tão rente

que podia ter estendido a mão para lhe tocar.

Page 306: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Se não me engano, está apavorado — disse o Mago. — Cuidado! Aí

vem outro!

O seguinte passou, latindo como o primeiro, o rabo entre as pernas.

Rapidamente, vieram mais dois. Depois, logo atrás, um quinto cão.

Ignorando-nos todos, mas correndo pelo caminho lamacento em direção

ao lago.

— O que aconteceu? — indaguei.

— Não duvido que em breve saberemos — respondeu o Mago. — Vamos

continuar.

A chuva não tardou a parar e chegamos ao lago.

Era grande e, na maior parte, calmo. Porém, perto de nós, o regato

entrava nele com uma fúria de água branca, precipitando-se por uma

vertente íngreme e vindo agitar a superfície. Ficamos a olhar para a

queda de água, onde ramos, folhas e até um ou outro toro eram

arrastados para o lago.

De repente, algo maior atingiu a água com um chape tremendo.

Mergulhou bastante fundo mas reapareceu cerca de trinta passos mais

adiante e começou a ser arrastado para a margem ocidental do lago.

Parecia um corpo humano.

Precipitei-me para a beira da água. E se fosse Alice?

Antes que tivesse tempo de entrar na água, o Mago assentou a mão no

meu ombro e agarrou-o com força.

— Não é Alice — disse-me, baixinho. — Aquele corpo é grande demais.

Além disso, creio que ela chamou o Destruidor. Por que outro motivo

teria ido embora tão de repente? Com o Destruidor a seu lado, ninguém

se atreveria a fazer-lhe frente. Mas é melhor contornarmos o lago e ir

ver melhor.

Seguimos pela margem curva até que, passados alguns minutos, nos

encontramos na margem ocidental debaixo dos ramos de um sicômoro

enorme, mergulhados num monte de folhas caídas. A coisa na água

encontrava-se a alguma distância mas aproximava-se cada vez mais.

Esperava que o Mago tivesse razão, que o corpo fosse grande demais

para pertencer a Alice, mas estava ainda escuro demais para ter certeza.

E se não era dela, de quem era o corpo?

Comecei a sentir receio mas não havia nada que eu pudesse fazer senão

esperar que o céu clareasse mais e o corpo se aproximasse também

mais de nós.

Page 307: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Lentamente, as nuvens dissiparam-se e não tardou que o céu ficasse

suficientemente claro para podermos identificar o corpo sem a menor

margem de dúvida.

Era o Inquisidor.

Olhei para o corpo a boiar. Estava de barriga para cima e apenas se via

o rosto fora de água. Tinha a boca aberta e os olhos também.

Havia terror no seu rosto pálido e morto. Era como se não lhe restasse

uma gota de sangue no corpo.

— Ele afogou muitos inocentes em vida — disse o Mago. — Os pobres, os

velhos e os solitários. Muitos que trabalharam arduamente toda a vida e

mereciam apenas um pouco de paz e sossego na velhice, e um pouco de

respeito também. E agora foi a vez dele. Teve exatamente o que

merecia.

Eu sabia que atirar uma bruxa à água não passava de um absurdo

supersticioso, mas não me saía da cabeça o fato de ele estar a boiar. Os

inocentes iam ao fundo; os culpados boiavam. Inocentes como a tia de

Alice, que morrera do choque.

— Alice fez isto, não foi? — indaguei.

O Mago anuiu. — Sim, rapaz. Alguns diriam que foi obra dela. Mas, na

realidade, foi do Destruidor. Ela já o chamou duas vezes. O seu poder

sobre ela irá aumentar e o que ela vê ele consegue ver também.

— Não deveríamos pôr-nos a caminho? — perguntei, cheio de

nervosismo, olhando para o outro lado do lago onde o regato se vinha

precipitar. — Os homens dele não virão até aqui?

— Até podem vir, rapaz. Isto é, se ainda lhes restar algum fôlego. Mas

desconfio que por uns tempos não estarão em condições de o fazer e, se

não estou enganado, aqui vem ela. .

Segui o olhar do Mago na direção do regato, onde uma figura pequena

descia o caminho e ficou por um momento a olhar para a água em

queda. Depois, o olhar de Alice virou-se para nós e começou a percorrer

a margem na nossa direção.

— Lembre-se — avisou-me o Mago —, agora o Destruidor vê através dos

olhos dela. Está a ganhar força e poder, a detectar as nossas fraquezas.

Tenha muito cuidado com o que diz ou faz.

Uma parte de mim queria gritar e avisar Alice para fugir enquanto ainda

podia. Era impossível saber o que o Mago lhe poderia fazer agora. Outra

parte de mim, tinha súbita e desesperadamente, receio dela. Mas o que

podia eu fazer? Lá no fundo, sabia que o Mago era a sua única

Page 308: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

esperança. Quem mais a podia agora libertar do Destruidor? Alice

avançou até à beira da água, colocando-me entre ela e o Mago. Olhava

fixamente na direção do corpo do Inquisidor. Havia um misto de terror e

triunfo no rosto dela.

— Não tenha medo de vir ver, minha jovem — falou o Mago. — Observe

de perto o seu trabalho. Valeu a pena?

Alice assentiu.

— Ele teve o que merecia — disse com firmeza.

— Sim, mas a que preço? — perguntou o Mago. —

Você pertence cada vez mais ao escuro. Chame o Destruidor mais uma

vez e se perderá para sempre.

Alice não respondeu e ficamos ali muito tempo em silêncio, apenas a

olhar para a água.

— Bem, rapaz — disse o Mago —, é melhor irmos andando. Quem quiser

que trate do corpo porque nós temos mais que fazer. Quanto a você,

minha jovem, virá conosco se sabe o que te convém. E agora é bom que

ou-

ça e ouça com atenção porque o que estou propondo é a sua única

esperança. A única oportunidade que alguma vez terá de se libertar

daquela criatura.

Alice levantou a cabeça, os seus olhos muito arregalados.

— Sabe o perigo que corre, não sabe? Quer libertar-se? — perguntou-

lhe.

Alice anuiu.

— Então venha aqui! — ordenou-lhe com austeridade. Alice veio

obedientemente para o lado dele.

— Onde quer que vá, o Destruidor não estará muito longe, por isso o

melhor é vir comigo e o rapaz.

Prefiro saber mais ou menos onde se encontra aquela criatura do que tê-

la a vaguear por onde lhe agrade no Condado, a aterrorizar gente

decente. Por isso ouça-me, e muito bem. Neste momento é importante

que não veja nem ouça nada — desse modo o Destruidor não saberá

nada por você. Mas atenção, terá de fazê-lo de livre vontade. Se quebrar

este compromisso um pouquinho que seja, ele nos atacará a todos com

força.

Abriu o saco e começou a remexer lá dentro.

— Isto é uma venda — disse, mostrando uma faixa de pano preto para

Alice ver. — Vai usá-la? — perguntou-lhe.

Page 309: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Alice anuiu e o Mago estendeu a palma da mão esquerda para ela.

— Vê isto? — inquiriu. — São tampões de cera para os seus ouvidos.

Cada tampão continha um pequeno prego de prata alojado para facilitar

depois a remoção da cera. Alice olhou para eles na dúvida, mas depois

inclinou obedientemente a cabeça enquanto o Mago inseria com cuidado

o primeiro tampão. Depois de colocar o segundo tampão atou com

firmeza a venda sobre os olhos dela.

Partimos, dirigindo-nos para nordeste, o Mago guiando Alice pelo

cotovelo. Esperava que não passássemos por ninguém na estrada. O que

pensariam? Iríamos sem dúvida despertar muitas atenções indesejadas.

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CAPÍTULO 19

AS SEPULTURAS DE PEDRA

Era de dia, por isso não existia uma ameaça imediata do Destruidor. Tal

como a maior parte das criaturas do escuro, estaria escondido no

subsolo. E com Alice vendada e de ouvidos tapados, já não podia ver

através dos olhos dela nem escutar o que dizíamos. Assim não saberia

onde estávamos.

Estava a prever outro dia de caminhada árdua e perguntei-me se

chegaríamos a Heysham antes de anoitecer. Mas, para minha surpresa,

o Mago levou-nos por uma trilha até uma grande fazenda e aguardamos

no portão, o ladrar dos cães era capaz de acordar os mortos, enquanto

um velho agricultor avançava para nós a coxear apoiado numa bengala.

Tinha uma expressão preocupada no rosto.

— Lamento — resmungou. — Lamento muito, mas está tudo na mesma.

Se eu tivesse o que dar, seria seu.

Parecia que cinco anos antes, o Mago livrara este homem de um

demônio turbulento e ele ainda não lhe pagara. O meu mestre queria ser

pago agora, mas não em dinheiro.

Passada meia hora seguíamos numa carroça puxada por um dos maiores

cavalos de tiro que eu já vira; a conduzir a carroça vinha o filho do

agricultor. A princípio, antes de partir, ele olhara fixamente para a venda

nos olhos de Alice, uma expressão de perplexidade no seu rosto.

— Pare de olhar embasbacado para a garota e concentre-se no que faz!

— ripostara o Mago e o rapaz desviara rapidamente o olhar. Parecia

bastante satisfeito por nos levar, contente por se afastar das suas

tarefas por algumas horas, e em breve seguíamos pelos caminhos

secundários que passavam a leste de Caster. O Mago obrigou Alice a

deitar-se na carroça e cobriu-a com palha para que não pudesse ser

vista por outros viajantes.

Sem dúvida o cavalo estava acostumado a puxar cargas pesadas, e

apenas com nós três na traseira seguia a um trote razoavelmente

rápido. Avistamos ao longe a cidade de Caster com o seu castelo. Muitas

bruxas tinham morrido ali após um longo julgamento, mas não se

queimavam bruxas em Caster, eram enforcadas. Assim, para usar uma

das expressões de marinheiro do meu pai, passamos-lhe «bem ao

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largo», e em breve a deixamos para trás e atravessando uma ponte

sobre o rio Lune, antes de mudarmos a direção para sudoeste, rumo a

Heysham.

O filho do agricultor recebeu ordem para esperar no fundo do caminho

nos arredores da aldeia.

— Voltaremos ao alvorecer — informou o Mago.

— Não se preocupe. Farei com que não se arrependa.

Subimos uma trilha estreita por uma colina, com uma igreja e um

cemitério antigos à nossa direita. Ali, naquele lado abrigado da colina,

reinavam o silêncio e a tranqüilidade e árvores antigas cobriam as

pedras tumulares. Mas ao passarmos um portão para o cimo do

penhasco, fomos recebidos com uma brisa forte e o cheiro de maresia.

Diante de nós ficavam as ruínas de uma pequena capela de pedra

apenas com três paredes de pé. Estávamos a grande altitude e podia ver

uma baía lá em baixo, com uma praia de areia quase coberta pela maré

e as ondas a rebentar nas rochas de um pequeno promontório ao longe.

— Basicamente, o litoral oeste é plano — referiu o Mago —, e esta é a

altitude máxima dos penhascos do Condado. Dizem que foi aqui que os

primeiros homens desembarcaram no Condado. Vieram de uma terra

longínqua a oeste e o barco deles encalhou nas rochas lá em baixo. Os

seus descendentes construíram aquela capela.

Apontou e ali, mesmo do outro lado das ruínas, vi as sepulturas de

pedra.

— Não existe nada assim em mais nenhum lugar do Condado — disse o

Mago.

Esculpida numa imensa pedra plana, mesmo à beira de uma colina

íngreme, havia uma fila de seis caixões, cada um com a forma de um

corpo humano e com uma tampa de pedra que encaixava num sulco.

Eram de diferentes tamanhos e formas mas, regra geral, pequenos,

como se talhados para crianças, só que se tratava das sepulturas de seis

da Gente Pequena. Seis dos filhos do rei Heys.

O Mago ajoelhou ao lado da sepultura mais próxima. Por cima da cabeça

de cada uma delas havia uma cavidade quadrada e ele desenhou a sua

forma com o dedo.

Depois estendeu os dedos da mão esquerda. A mão aberta cobria a

cavidade à justa.

— Para que poderiam ter servido? — murmurou de para si mesmo.

Page 312: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— De que tamanho era a Gente Pequena? — indaguei. As sepulturas

eram todas de tamanhos diferentes e, agora que olhava com atenção, vi

que afinal não eram tão pequenas quanto a princípio julgara.

Em jeito de resposta, o Mago abriu o saco e retirou uma vara de

medição extensível. Abriu-a e mediu a sepultura.

— Esta tem cerca de um metro e sessenta e cinco

— anunciou —, e trinta e cinco centímetros de largura no meio. Mas

devem ter sido enterrados alguns pertences para a Gente Pequena usar

no outro mundo. Poucos teriam mais de um metro e meio de altura e

muitos eram bem mais pequenos. Com o decorrer dos anos, cada

geração foi-se tornando cada vez maior porque houve casamentos entre

eles e os invasores que vieram por mar. Por isso não se chegaram a

extinguir. O seu sangue corre ainda nas nossas veias.

O Mago virou-se para Alice e, para surpresa minha, retirou-lhe a venda.

A seguir foi a vez dos tampões dos ouvidos, guardando-os novamente na

segurança do seu saco. Alice pestanejou e olhou à sua volta. Não se

mostrou satisfeita.

— Não gosto deste lugar — queixou-se. — Algo não está certo. Há uma

má sensação.

— Verdade, minha jovem? — disse o Mago. —

Bem, isso é a coisa mais curiosa que disse o dia todo. É

estranho, porque acho este lugar bastante agradável. Não há nada como

um pouco de ar do mar revigorante!

Não me senti revigorado. A brisa cessara e agora estendiam-se braços

de nevoeiro serpenteando do mar e começava a esfriar bastante. Dentro

de uma hora escureceria. Eu sabia o que Alice queria dizer. Era um lugar

a evitar depois do pôr do Sol. Eu também sentia algo e não me pareceu

lá muito amigável.

— Há algo à espreita próximo — disse ao Mago.

— Vamos sentar-nos além e dar-lhe tempo para que se acostume a nós

— respondeu o Mago. — A nossa intenção não é assustá-lo. .

— É o fantasma de Naze? — indaguei.

— Espero que sim, rapaz. Espero bem que sim.

Mas em breve o saberemos. Seja um pouco paciente.

Sentamo-nos num talude verdejante a alguma distância, enquanto a luz

diminuía lentamente. Estava ficando cada vez mais preocupado.

— E depois de escurecer? — sondei o Mago. — O

Page 313: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Destruidor não vai aparecer? Agora que tirou a venda a Alice, ele saberá

onde estamos!

— Acho que estamos bastante seguros aqui, rapaz

— referiu o Mago. — Este é possivelmente o único local em todo o

Condado que ele evita. Fizeram algo aqui e, se não me engano, o

Destruidor não se aproximará daqui num raio de um quilômetro e meio.

Até pode saber que aqui estamos, mas não poderá fazer grande coisa

em relação a isso. Estou certo, minha jovem?

Alice estremeceu e concordou. — Ele está tentando falar comigo, sim.

Mas a sua voz está muito fraca e distante. Nem sequer consegue entrar-

me na cabeça.

— É precisamente o que eu esperava — declarou o Mago. — Quer dizer

que a nossa viagem não foi em vão.

— Ele quer que eu me afaste imediatamente daqui.

Quer que vá até ele. .

— E é isso o que você quer?

Alice abanou a cabeça negando e estremeceu.

— Folgo em ouvi-lo, menina, porque depois da próxima vez, conforme te

disse, ninguém poderá te ajudar. Onde é que ele está neste momento?

— Está bem debaixo da terra. Numa caverna escura e úmida. Encontrou

uns ossos mas tem fome, porque não são suficientes.

— Ótimo! Agora chegou o momento de passar à ação — anunciou o

Mago. — Vocês dois instalem-se ali em baixo abrigados por aquelas

paredes. — Apontou na direção das ruínas da capela. — Tentem dormir

enquanto eu fico de vigia aqui ao pé das sepulturas.

Não discutimos e instalamo-nos na erva dentro das ruínas da capela. Em

virtude da parede que faltava ainda conseguíamos ver o Mago e as

sepulturas. Julguei que ele fosse se sentar mas permaneceu de pé, a

mão esquerda assente no bordão.

Eu estava cansado e não tardei a adormecer. Mas acordei de repente.

Alice abanava-me o ombro.

— O que se passa? — inquiri.

— Ele está ali perdendo o seu tempo — disse Alice, apontando para o

lugar onde o Mago se encontrava agora acocorado ao pé das sepulturas.

— Há algo próximo mas é além, perto da sebe.

— Tem certeza?

Alice anuiu. — Mas vá você avisá-lo. Ele não o aceitará vindo de mim.

Aproximei-me do Mago e chamei: — Mr. Gregory!

Page 314: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Ele não se mexeu e perguntei-me se teria adormecido ali acocorado.

Porém levantou-se devagar e virou a parte superior do corpo na minha

direção, mantendo os pés exatamente na mesma posição.

Havia algumas aberturas nas nuvens, mas aqueles pedaços com estrelas

não eram suficientes para me deixar ver o rosto do Mago. Não passava

de uma sombra escura debaixo do capuz.

— Alice diz que há algo além perto da sebe — informei-o.

— Ah disse — murmurou o Mago. — Nesse caso, é melhor irmos dar

uma olhada.

Encaminhamo-nos para a sebe. À medida que nos aproximávamos dela

parecia estar ficando ainda mais fria, por isso soube que Alice tinha

razão. Havia uma espécie qualquer de espírito escondido ali perto.

O Mago apontou para baixo, depois, de repente ajoelhou-se, arrancando

a erva comprida. Ajoelhei-me também e comecei a ajudá-lo. Pusemos a

descoberto mais dois túmulos de pedra. Um tinha cerca de um metro e

meio de comprimento mas o outro apenas metade daquele tamanho. Era

o túmulo mais pequeno de todos.

— Alguém com sangue antigo puro nas veias foi sepultado aqui — referiu

o Mago. — Dele adviria força. É

este o que procurávamos. Deve ser o túmulo do fantasma de Naze, sim!

Afaste-se um pouco, rapaz. Mantenha distância.

— Não posso ficar para ouvir? — perguntei. O

Mago abanou a cabeça.

— Não confia em mim? — indaguei.

— Você confia em si mesmo? — foi a resposta dele. — Faça a pergunta a

si próprio! Para começar, o mais provável é que ele apareça se só estiver

aqui um de nós.

De qualquer forma, é preferível que não ouça isto. O

Destruidor consegue ler o pensamento, lembra-se? É suficientemente

forte para impedi-lo de ler o seu? Não podemos permitir que ele saiba o

que estamos a preparar; que temos um plano; que conhecemos os seus

pontos fracos. Quando ele entra nos seus sonhos, revirando o seu

cérebro à procura de pistas e planos, tem certeza absoluta de que não

denunciará nada?

Não tinha certeza.

— É um rapaz corajoso, o mais corajoso que alguma vez me surgiu como

aprendiz. Mas não passa disso, de um aprendiz, e não podemos

Page 315: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

esquecer. Portanto, volta para o seu canto! — ordenou-me, enxotando-

me dali.

Fiz o que me mandara e regressei esmorecido à capela em ruínas. Alice

estava dormindo, de modo que me sentei ao lado dela por alguns

momentos mas não tinha sossego. Estava agitado porque queria

realmente saber o que o fantasma de Naze teria a dizer. Quanto ao aviso

do Mago a respeito de o Destruidor me revirar a mente enquanto estava

a dormir, não me preocupou assim tanto.

Aqui estávamos a salvo do Destruidor, e se o Mago descobrisse aquilo

que necessitava saber, amanhã à noite seria o fim dele.

Abandonei então as ruínas e avancei sorrateiramente junto ao muro até

me aproximar mais do Mago. Já não era a primeira vez que desobedecia

ao meu mestre, mas era a primeira em que estivera tanto em jogo.

Sentei-me encostado ao muro e aguardei. Mas não muito.

Mesmo àquela distância, comecei a sentir muito frio e não parava de

tremer. Aproximava-se um dos mortos, mas seria o fantasma de Naze?

Começou a aparecer uma luz tênue brilhante por cima das duas

sepulturas mais pequenas. Não era particularmente humana na forma,

apenas uma coluna luminosa que mal chegava aos joelhos do Mago.

Ouvi-o começar logo a questioná-lo. O ar ficou muito parado, e apesar

de o Mago manter a voz baixa, conseguia perceber cada palavra que ele

dizia.

— Fale! — disse o Mago. — Fale, ordeno-te!

— Deixe-me em paz! Dê-me descanso! — ouviu-se a resposta. Apesar de

Naze ter morrido jovem e na primavera da vida, a voz do fantasma

parecia a de um homem muito velho. Era resmungada e áspera e

denotava um profundo cansaço. Mas isso não queria propriamente dizer

que não fosse o seu fantasma. O Mago dissera-me que os fantasmas não

falavam como tinham feito em vida.

Comunicavam diretamente com a nossa mente e era por isso que

conseguíamos compreender um que vivera muitas eras atrás; um que

poderia até ter falado uma língua muito diferente.

— O meu nome é John Gregory e sou o sétimo filho de um sétimo filho

— anunciou o Mago, levantando a voz. — Estou aqui para fazer o que

devia ter sido feito há muito; aqui para acabar com o mal do Destruidor

e dar-te finalmente paz. Mas há coisas que preciso saber. Primeiro, tem

de me dizer o seu nome!

Page 316: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Seguiu-se uma longa pausa e pensei que o fantasma não fosse

responder, mas por fim o fez.

— Sou Naze, o sétimo filho de Heys. O que deseja saber?

— Chegou o momento de acabar com isto de uma vez por todas —

referiu o Mago. — O Destruidor anda em liberdade e não tardará a

atingir poder absoluto e ameaçar toda a terra. Tem de ser aniquilado.

Por isso vim à procura dos seus conhecimentos. Como foi que o

aprisionou nas catacumbas? Como pode ser morto? É capaz de me dizer?

— É forte? — arranhou a voz de Naze. — É capaz de fechar a sua mente

e impedir que o Destruidor leia os seus pensamentos?

— Sim, sou capaz disso — respondeu o Mago.

— Então talvez haja esperança. Vou lhe dizer o que fiz.

Como aprisionei o Destruidor. Em primeiro lugar, celebrei um pacto com

ele dando-lhe o meu sangue a beber. Poderia bebê-lo mais três vezes, e

em troca, teria de obedecer três vezes às minhas ordens. No ponto mais

fundo das catacumbas de Priestown, existe uma câmara funerária que

contém as urnas com o pó dos nossos mortos antigos, os pais

fundadores do nosso povo. Foi a essa câmara que atraí o Destruidor e

lhe dei o meu sangue a beber. Em troca, revelei-me um amo exigente.

«Da primeira vez, ordenei que o Destruidor nunca mais voltasse às

criptas e se mantivesse bem longe desta zona onde o meu pai e os meus

irmãos estão sepultados, porque queria que eles descansassem em paz.

O Destruidor gemeu de contrariedade porque as criptas eram a sua

morada favorita, o lugar onde passava as horas do dia agarrado aos

ossos dos mortos e a sugar as recordações neles contidas. Mas um pacto

era um pacto e ele não tinha outra opção senão obedecer. Quando o

chamei da segunda vez, mandei-o ir aos confins da terra à procura de

conhecimentos, e esteve ausente um mês e um dia, dando-me todo o

tempo de que precisava.

«Pus então a minha gente a trabalhar, construindo e colocando o Portão

de Prata. Mas nem quando regressou o Destruidor soube de alguma

coisa porque a minha mente era forte e mantive os meus pensamentos

ocultos.

«Depois de lhe dar o meu sangue pela última vez, disse ao Destruidor o

que pretendia, gritando em voz alta o preço que ele teria de pagar.

«Fique preso a este lugar!» ordenei. «Limitado às catacumbas mais

fundas e sem saída. Mas, como não desejo a nenhum ser, por pior que

seja, que sofra sem uma réstia sequer de esperança, construí um Portão

Page 317: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

de Prata. Se alguém cometer a tolice de abrir esse portão na sua

presença, poderá transpô-lo para a liberdade. No entanto, na sequência

disso, se alguma vez voltar a este lugar, ficará preso aqui para toda a

eternidade!»

«Foi o que a brandura do meu coração me ditou e o aprisionamento não

foi tão firme quanto deveria ter sido. Durante a minha vida, enchi-me de

compaixão pelos outros. Alguns consideraram-no uma fraqueza e nesta

ocasião provaram estar certos. Porque eu não conseguira condenar

sequer o Destruidor a uma eternidade de aprisionamento sem lhe dar

uma tênue chance de fuga.

— Fez o suficiente — comentou o Mago. — E agora vou terminar o

trabalho. Se conseguirmos levá-lo até lá, ficará preso para sempre!

Sempre é um começo. Mas como podemos matá-lo? Pode dizer-me? Esta

criatura está tão má agora, que o seu aprisionamento será insuficiente.

Preciso aniquilá-lo.

— Em primeiro lugar, deve ter adquirido a camada de carne. Em

segundo, deve estar bem no fundo das catacumbas. Em terceiro, o seu

coração tem de ser penetrado com prata. Só se todas as três condições

forem preenchidas é que finalmente morrerá. Mas existe um grande

risco para aquele que o tentar. Nos limites da morte, o Destruidor

libertará tanta energia que o seu assassino quase com certeza morrerá.

O Mago soltou um suspiro fundo.

— Agradeço-lhe a informação — disse ao fantasma. — Será duro, mas

tem de ser feito, custe o que custar.

Mas a sua tarefa está completa agora. Vá em paz. Passe para o outro

lado.

Em resposta, o fantasma de Naze gemeu tão profundamente que os

cabelos na minha nuca começaram a se levantar. Fora um gemido

carregado de agonia.

— Não haverá paz para mim — gemeu o fantasma com voz cansada. —

Não haverá paz até o Destruidor finalmente morrer. .

E, ditas aquelas palavras, a pequena coluna de luz desapareceu. Sem

perder tempo, regressei às ruínas rente ao muro. Alguns instantes

depois o Mago entrou, deitou-se na erva e fechou os olhos.

— Tenho de pensar muito bem — murmurou.

Não lhe disse nada. De repente, senti-me culpado por ter escutado a

conversa dele com o fantasma de Naze.

Page 318: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Agora sabia demais. Receei que, se lhe contasse, ele me mandasse

embora e fosse enfrentar o Destruidor sozinho.

— Explicarei ao raiar do dia — murmurou. — Mas agora vê se dorme.

Não é seguro deixar este local antes do nascer do Sol!

Para minha surpresa, dormi bastante bem. Antes mesmo da alvorada, fui

acordado por um estranho som de raspar. Era o Mago, a afiar a lâmina

retrátil na pedra de amolar que tirara do saco. Trabalhava

metodicamente, experimentando-a esporadicamente com o dedo.

Finalmente, deu-se por satisfeito e ouviu-se um clique quando a lâmina

se recolheu no bordão.

Pus-me em pé e estiquei as pernas durante um tempo, enquanto o Mago

se baixava, abria de novo o saco e remexia lá dentro.

— Sei exatamente o que fazer — anunciou. — Podemos derrotar o

Destruidor. É possível fazê-lo mas será a tarefa mais difícil que alguma

vez tive de realizar. Se eu falhar, afetará a todos.

— O que é preciso fazer? — inquiri, sentindo-me mal porque já o sabia.

Não me respondeu e passou por mim direto a Alice, que estava sentada,

abraçando os joelhos.

Colocou a venda e introduziu o primeiro tampão de cera no ouvido.

— Agora vamos ao outro, mas antes disso, escuta-me muito bem,

menina, porque isto é importante —

referiu. — Quando os tirar esta noite, falarei com você e terá de fazer

imediatamente o que eu disser e sem questionar. Compreendeu?

Alice anuiu e ele colocou-lhe o segundo tampão.

Mais uma vez, Alice não podia ver e não podia ouvir. E o Destruidor não

saberia o que estávamos a preparar nem para onde íamos. A menos que

de alguma forma me conseguisse ler o pensamento. Comecei a sentir-

me muito aflito por causa do que fizera. Sabia demais.

— Agora — disse o Mago, virando-se para mim.

— Vou te dizer uma coisa que te desagradará. Temos de voltar a

Priestown. Às catacumbas.

Depois, girou nos calcanhares e, agarrando Alice pelo cotovelo esquerdo,

encaminhou-a para o cavalo e a carroça onde o filho do agricultor

continuava à espera.

— Temos de ir a Priestown o mais depressa que este cavalo conseguir —

anunciou o Mago.

— Isso eu não sei — respondeu o rapaz. — O meu velho pai está a

contar comigo antes do meio-dia. Há trabalho a fazer.

Page 319: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O Mago estendeu-lhe uma moeda de prata. — Olhe, toma isto. Leve-nos

lá antes de escurecer e haverá outra. Não creio que o seu pai vá se

importar muito. Ele gosta de contar o seu dinheiro.

O Mago obrigou Alice a deitar-se aos nossos pés e tapou-a de novo com

a palha para que ela não pudesse ser vista por ninguém de passagem, e

em breve estávamos a caminho. A princípio, contornamos Caster mas

depois, em vez de voltarmos pelas extensões rochosas, dirigimo-nos

para a estrada principal que conduzia diretamente a Priestown.

— Não será perigoso voltar lá em pleno dia? —

perguntei, cheio de nervosismo. A estrada tinha muito movimento e

estávamos constantemente a passar por carroças e pessoas a pé. — E se

os homens do Inquisidor nos reconhecem?

— Não digo que não haja risco — afirmou o Mago.

— Mas aqueles que andavam à nossa procura provavelmente estarão

agora ocupados a transportar o corpo pelas extensões rochosas. Sem

dúvida o trarão para Priestown para sepultar, mas isso só terá lugar

amanhã; nessa altura já estará tudo terminado e iremos a caminho.

Claro que depois há que pensar na tempestade. As pessoas com algum

juízo ficarão em casa, abrigadas da chuva.

Olhei para o céu. A sul, estavam a acumular-se nuvens mas não me

parecia muito mau. Quando o referi, o Mago limitou-se a sorrir.

— Ainda tem muito que aprender — respondeu-me. — Esta vai ser uma

das maiores tempestades que alguma vez viu.

— Depois de toda aquela chuva, julguei que fôssemos ter alguns dias de

tempo bom — protestei.

— Sem dúvida que vamos, rapaz. Mas esta está longe de ser natural. Ou

muito me engano, ou o Destruidor acaba de invocar o vento para

fustigar a minha casa. É

outro sinal de quão poderoso se tornou. Irá dominar a tempestade para

mostrar a sua raiva e frustração por não ser capaz de usar Alice como

muito bem quer. Só que isso joga a nosso favor: enquanto estiver

concentrado em tal, não se preocupa muito comigo e com você. E assim

poderemos alcançar a cidade sem problemas.

— Por que temos de ir às catacumbas para matar o Destruidor? —

inquiri, esperando que ele me dissesse o que eu já sabia. Assim não

teria de continuar a fingir mais.

— É para o caso de não conseguirmos aniquilá-lo, rapaz. Pelo menos,

uma vez lá, com o Portão de Prata fechado, o Destruidor voltará a ficar

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aprisionado. Desta vez para sempre. Foi o que me disse o fantasma de

Naze.

Depois, mesmo que não consiga exterminá-lo, pelo menos terei reposto

a situação existente. E agora chega de perguntas. Preciso de paz para

me preparar para o que vou fazer. .

Não tornamos a falar até chegarmos aos arredores de Priestown.

Entretanto, o céu estava escuro como breu, cortado por enormes

ziguezagues de relâmpagos enquanto os trovões ribombavam mesmo

por cima de nós. A chuva caía abundante, encharcando-nos as roupas e

sentia-me molhado e desconfortável. Tive pena de Alice porque

continuava deitada no fundo da carroça, que tinha agora quase dois

centímetros e meio de água. Devia realmente ser muito difícil não poder

ver nem ouvir e não saber para onde ia ou quando a viagem terminaria.

A minha própria viagem terminou muito mais cedo do que contava. Nos

arredores de Priestown, quando chegamos à última encruzilhada, o Mago

gritou ao filho do agricultor que parasse a carroça.

— É aqui que salta — disse, olhando-me com dureza.

Fitei-o, espantado. A chuva escorria-lhe da ponta do nariz e descia pela

barba mas não pestanejou quando me olhou com uma expressão cruel.

— Quero que volte para Chipenden — ordenou, apontando na direção da

estrada estreita que seguia rumo a nordeste. — Vá à cozinha e avise

aquele meu demônio de que posso não voltar. Diga-lhe que se for esse o

caso, terá de manter a casa segura para quando você estiver preparado.

Intacta e segura até concluir o seu aprendizado e estiver finalmente em

condições de assumir o cargo.

«Feito isso, siga para o norte de Caster e procure Bil Arkwright, o Mago

local. Ele é um pouco molengão mas é honesto e te preparará nos

próximos quatro anos.

No fim, terá de voltar para Chipenden e dedicar-se muito ao estudo. Tem

de se concentrar naqueles livros para compensar o fato de eu não estar

aqui para te preparar!

— Porquê? O que se passa? Por que não vai regressar? — perguntei. Era

outra pergunta cuja resposta eu já sabia.

O Mago abanou a cabeça, pesaroso. — Porque só existe uma forma

correta de lidar com o Destruidor e provavelmente vai custar-me a vida.

A da garota também, se não estou enganado. É duro, rapaz, mas tem de

ser feito. Talvez um dia, daqui a anos, você mesmo se veja confrontado

com uma tarefa semelhante a esta. Espero que não, mas por vezes

Page 321: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

acontece. O meu próprio mestre morreu a fazer algo idêntico e agora é a

minha vez. A história pode repetir-se e, se assim for, temos de estar

preparados para entregar as nossas vidas. São apenas ossos do ofício,

por isso é bom que se acostume.

Perguntei-me se o Mago estaria a pensar na maldição. Esperaria morrer

por causa dela? Se ele morresse, então não haveria ninguém para

proteger Alice lá em baixo à mercê do Destruidor.

— E então Alice? — protestei. — Não contou a Alice o que vai acontecer.

Enganou-a!

— Teve de ser. Provavelmente a garota já foi longe demais para poder

ser salva. É melhor assim. Pelo menos o espírito dela ficará livre. É

melhor do que preso àquela criatura imunda.

— Por favor — supliquei. — Deixe-me ir com você. Deixe-me ajudar.

— A melhor maneira de ajudar é fazendo o que te digo! — respondeu o

Mago com impaciência e, agarrando-me no braço, empurrou-me com

rudeza da carroça.

Caí desajeitadamente, ficando de joelhos. Quando me levantei, a carroça

já se afastava e o Mago nem sequer olhou para trás.

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CAPÍTULO 20

A CARTA DA MÃE

Esperei até a carroça ter quase desaparecido de vista antes de começar

a segui-la, a minha respiração a ficar presa na garganta. Não sabia o

que fazer, mas era-me insuportável a idéia do que podia suceder. O

Mago parecia resignado a morrer e a pobre Alice nem sequer sonhava o

que ia lhe acontecer.

Não deveria existir risco demais ser visto — a chuva caía

abundantemente e as nuvens negras lá em cima faziam com que

estivesse tão escuro como se fosse meia-noite. Mas os sentidos do Mago

eram apurados, e se me aproximasse demais, ele saberia de imediato.

Então, corri e caminhei alternadamente, mantendo a distância mas

conseguindo ainda avistar a carroça de tempos a tempos.

As ruas de Priestown estavam desertas e, apesar da chuva, mesmo

quando a carroça seguia bastante mais à frente, conseguia ouvir ainda

o clip-clop dos cascos e as rodas da carroça a rolarem sobre as pedras.

Não tardei a avistar o campanário branco de calcário acima dos telhados,

confirmando a direção e o destino do Mago. Tal como esperava, dirigia-

se para a casa assombrada com a cave que dava acesso às catacumbas.

Naquele momento senti algo muito estranho. Não era a habitual

sensação dormente de frio que anunciava a aproximação de algo do

escuro. Não, isto era mais como um súbito fragmento minúsculo de gelo

mesmo dentro da minha cabeça. Nunca antes sentira nada assim, mas

não precisei de mais nenhum aviso. Calculei o que fosse e consegui

limpar a minha mente antes mesmo de o Destruidor falar.

— Finalmente te encontrei, sim!

Instintivamente, parei e fechei os olhos. Quando percebi que ele não

poderia ver através deles, mantive-os fechados assim. O Mago avisara-

me de que o Destruidor não via o mundo da mesma maneira que nós.

Apesar de poder nos encontrar, tal como uma aranha estava ligada à sua

presa por um fio de seda, ele continuava a não saber onde estávamos.

Por conseguinte, tinha de me manter assim. Tudo o que os meus olhos

vissem seria filtrado pa-ra os meus pensamentos e o Destruidor não

tardaria a começar a esquadrinhá-los. Talvez conseguisse mesmo

encontrar pistas de que eu estava em Priestown.

Page 323: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Onde está, rapaz? Podia muito bem me dizer. Mais cedo ou mais tarde

acabará por fazê-lo. Pode ser por bem ou por mal. A escolha é sua. .

O fragmento de gelo estava a aumentar e toda a minha cabeça a ficar

dormente. Fez-me pensar de novo no meu irmão James e na fazenda.

Como ele me perseguira naquele Inverno e enchera os meus ouvidos de

neve.

— Vou a caminho de casa — menti. — Vou para casa descansar.

Enquanto falava, imaginei que me aproximava do pátio da fazenda com

a Colina do Carrasco a avistar-se no horizonte, através da escuridão. Os

cães tinham começado a ladrar e eu aproximava-me da porta de trás,

chapinhando nas poças, a chuva a bater-me no rosto.

— Onde está Ossos Velhos? Diga-me. Para onde vai com a garota? —

Voltou para Chipenden — disse. — Vai meter Alice num poço. Tentei

dissuadi-lo mas ele não me deu ouvidos. É o que ele costuma fazer a

uma bruxa.

Imaginei-me a abrir a porta de trás e a entrar na cozinha. As cortinas

estavam corridas e a vela de cera de abelha acesa no castiçal de latão

em cima da mesa. A Mãe estava sentada na sua cadeira de balanço.

Quando entrei, ela levantou a cabeça e sorriu-me.

O Destruidor desapareceu imediatamente e o frio começou a diminuir.

Não o impedira de me ler o pensamento mas enganara-o. Conseguira!

Segundos depois o meu júbilo desapareceu. Faria outra visita? Ou, pior

ainda, faria à minha família?

Abri os olhos e comecei a correr o mais depressa que podia em direção à

casa assombrada. Passados alguns minutos, ouvi de novo o som da

carroça e retomei a marcha e a corrida alternadas.

Por fim a carroça parou, mas quase de imediato partiu e escondi-me

num beco quando ela começou a avançar na minha direção. O filho do

agricultor vinha sentado curvado e sacudia as rédeas, fazendo com que

os cascos do enorme cavalo de tiro soassem nas pedras molhadas.

Aguardei cerca de cinco minutos para dar tempo a que Alice e o Mago

entrassem na casa antes de correr pela rua e levantar a tranca da porta

do pátio. Tal como esperava, o Mago trancara a porta de trás, mas eu

tinha ainda comigo a chave de Andrew e, passado um instante,

encontrava-me na cozinha. Tirei o coto de vela do bolso, acendi-o e

depois disso não foi preciso muito tempo para descer às catacumbas.

Page 324: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Ouvi em algum lugar um grito lá em frente e calculei o que fosse. O

Mago atravessava o rio carregando Alice. Mesmo com a venda e os

tampões nos ouvidos, ela devia ter conseguido sentir a água corrente.

Eu próprio não tardei a atravessar as pedras no rio e alcançar o Portão

de Prata mesmo a tempo. Alice e o Mago encontravam-se já do outro

lado e ele ajoelhara, preparando-se para fechá-lo.

Levantou a cabeça, furioso, quando me viu correndo para ele.

— Eu devia ter desconfiado! — gritou, a sua voz cheia de fúria. — A sua

mãe não te ensinou que é feio desobedecer?

Em retrospectiva, entendo agora a atitude do Mago, que só queria

manter-me a salvo, mas avancei rapidamente, agarrei o portão e

comecei a abri-lo. O Mago ofereceu resistência por um momento, mas

depois desistiu e veio para o meu lado, trazendo o seu bordão.

Não soube o que dizer. Não conseguia pensar com clareza. Não fazia

idéia do que esperava conseguir indo com eles. Mas de repente, lembrei-

me novamente da maldição.

— Quero ajudar — frisei. — Andrew falou-me da maldição. Que o senhor

iria morrer sozinho no escuro sem um amigo a seu lado. Alice não é sua

amiga mas eu sou. Se eu lá estiver, não poderá se cumprir. .

Levantou o bordão acima da cabeça como se fosse me bater com ele.

Pareceu crescer em tamanho até se agigantar por cima de mim. Nunca o

vira tão furioso. A seguir, para minha surpresa e desalento, baixou o

bordão, deu um passo na minha direção e bateu-me no rosto.

Cambaleei para trás, mal podendo acreditar que fosse verdade.

Não fora um estalo forte, mas vieram-me as lágrimas aos olhos e

desceram-me pelas faces. O Pai nunca me batera daquela maneira. Não

queria acreditar que o Mago o tivesse feito e senti-me magoado por

dentro. Magoara-me mais do que qualquer dor física.

Fitou-me com dureza por alguns momentos e abanou a cabeça como se

eu tivesse sido uma enorme desilusão para ele. Depois voltou a transpor

o portão, fechando-o e trancando-o atrás de si.

— Faça o que te digo! — ordenou. — Veio a este mundo por uma razão.

Não a desperdice por causa de al-go que não pode mudar. Se não o fizer

por mim, faça-o pela sua mãe. Volte para Chipenden. Depois vá a Caster

e faça o que te pedi. Seria a vontade dela. Faça com que ela se orgulhe

de você.

Page 325: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Ditas aquelas palavras, o Mago girou nos calcanhares e, guiando Alice

pelo cotovelo esquerdo, conduziu-a pelo túnel. Fiquei a vê-los até

virarem a esquina e desaparecerem de vista.

Devo ter ficado ali à espera cerca de meia hora, apenas a olhar para o

portão trancado, a mente paralisada.

Por fim, sem nenhuma esperança, virei-me e comecei a retroceder. Não

sabia o que ia fazer. Provavelmente apenas obedecer ao Mago, acho.

Voltar para Chipenden, depois ir para Caster. Que outra alternativa me

restava? Mas não me saía da cabeça o fato de o Mago me ter batido.

Provavelmente seria a última vez que nos víamos e separávamo-nos

furiosos e decepcionados.

Atravessei o rio, segui o caminho empedrado e subi à cave. Uma vez ali,

sentei-me no velho carpete bolorento a tentar decidir o que fazer.

Lembrei-me de repente de outro caminho para as catacumbas que me

levaria para lá do Portão de Prata. O alçapão que dava acesso à adega,

aquele por onde alguns dos prisioneiros tinham escapado!

Conseguiria lá chegar sem ser visto? Era perfeitamente possível, se

todos estivessem na catedral.

Mas mesmo que conseguisse descer às catacumbas, não sabia de que

forma poderia ajudar. Valia a pena desobedecer de novo ao Mago e tudo

em vão? Estaria apenas a tentar desperdiçar a minha vida quando tinha

a obrigação de ir a Caster e continuar a aprender o meu ofício? Teria o

Mago razão? Acharia a Mãe que era a atitude certa? Os pensamentos

rodopiavam constantemente dentro da minha cabeça mas não me

levaram a uma resposta clara.

Era difícil ter certeza fosse do que fosse, mas o Mago sempre me dissera

para confiar nos meus instintos e eles pareciam dizer-me que tinha de

tentar fazer algo para ajudar. Por pensar nisso, lembrei-me da carta da

Mãe porque fora exatamente o que ela me dissera.

«Abra-a numa altura de grande necessidade. Confie nos seus instintos.»

Era sem dúvida uma altura de grande necessidade, por isso,

extremamente nervoso, retirei o envelope do bolso do meu casaco.

Fiquei olhando para ele alguns momentos, depois abri-o com um rasgão

e retirei a carta lá de dentro. Aproximando-a da vela, comecei a ler.

Querido Tom,

Enfrenta um momento de grande perigo. Não contava que tal crise

surgisse tão cedo e agora tudo o que posso fazer é preparar-te dizendo-

Page 326: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

te o que enfrenta e indicando os resultados que dependem da decisão

que tem de tomar.

Há muito que não consigo ver, mas uma coisa é certa. O seu mestre irá

descer à câmara funerária no ponto mais fundo das catacumbas e ali

enfrentará o Destruidor numa luta até a morte. Por necessidade, irá usar

Alice para atraí-lo àquele lugar. Ele não tem qualquer escolha. Mas você

tem uma escolha. Pode descer à câmara funerária e tentar ajudar.

Mas, nesse caso, dos três que vão enfrentar o Destruidor, só dois sairão

vivos das catacumbas.

Mas se virar as costas neste momento, os dois lá embaixo morrerão com

certeza. E morrerão em vão.

Às vezes, nesta vida, é necessário uma pessoa sacrificar-se pelo bem

dos outros. Gostaria de te proporcionar consolo, mas não posso. Seja

forte e faça o que a sua consciência ditar. Escolha o que escolher, me

orgulharei sempre de você.

Mãe

Lembrei-me do que o Mago me dissera pouco depois de me ter aceito

como seu aprendiz. Dissera-o com tamanha convicção que ficou gravado

na minha memória.

«Principalmente, não acreditamos em profecias. Não acreditamos que o

futuro esteja determinado.»

Nem queria acreditar no que o Mago dissera porque, se a Mãe estava

certa, um de nós — o Mago, Alice ou eu — morreria lá embaixo no

escuro. Mas a carta na minha mão dizia-me sem a menor sombra de

dúvida que a profecia era possível. De que outra forma poderia a Mãe ter

sabido que o Mago e Alice estavam neste momento na câmara funerária

prestes a enfrentar o Destruidor? E como fora que eu lera a carta

precisamente no momento certo?

Instinto? Seria suficiente para explicá-lo? Estremeci e senti mais medo

do que em alguma outra ocasião desde que começara a trabalhar para o

Mago.

Senti-me como se caminhasse num pesadelo em que tudo fora decidido

de antemão e eu não podia fazer nada nem tinha qualquer escolha.

Como podia existir uma escolha, quando deixar Alice e o Mago e ir

embora teria como consequência as suas mortes?

E havia outra razão para eu ter de voltar a descer às catacumbas. A

maldição. Fora por isso que o Mago me batera? Estava furioso porque, lá

no fundo, acreditava nela e tinha medo? Mais uma razão para ajudar.

Page 327: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Uma vez, a Mãe dissera-me que ele seria meu professor e acabaria por

se tornar meu amigo. Era difícil dizer se chegara ou não esse momento,

mas eu era certamente mais amigo dele do que Alice e o Mago precisava

de mim!

Quando abandonei o pátio e entrei no beco, continuava a chover mas os

céus estavam tranquilos. Sentia que vinha aí mais trovoada e estávamos

no que o meu pai chama «o olho da tempestade». Foi então que, no

relativo silêncio, ouvi o sino da catedral. Não era o som pesaroso que

ouvira em casa de Andrew, o toque de finados pelo padre que se matara.

Era um toque alegre e esperançoso a chamar a congregação para as

vésperas.

Esperei então no beco, encostando-me a uma parede para evitar

molhar-me demais. Não sei por que me dava ao incômodo, visto já estar

encharcado até aos ossos.

Por fim, o sino parou de tocar, e esperava que isso significasse que

estavam todos dentro da catedral e fora do caminho. Comecei então a

dirigir-me lentamente para lá.

Virei a esquina e desci direto ao portão. A luz começava a diminuir, e as

nuvens negras continuavam acumuladas lá em cima. Depois,

subitamente, o céu iluminou-se com uma sucessão de relâmpagos e vi

que a zona em frente da catedral estava completamente deserta.

Conseguia ver o exterior escuro do edifício com os seus contrafortes

grandes e as janelas altas pontiagudas. Os vitrais estavam iluminados

pela luz de velas, e na janela à esquerda da porta encontrava-se a

imagem de S. Jorge com a armadura vestida, segurando uma espada e

um escudo com uma cruz vermelha. À direita estava S. Pedro, de pé

diante de um barco de pesca. E ao meio, por cima da porta, a escultura

malévola do Destruidor, a cabeça de gárgula, lançando-me um olhar

feroz.

O santo que me dera o nome não estava lá. To-más3, o Céptico. Tomás,

o Descrente. Não sabia se fora a minha mãe ou o meu pai que escolhera

aquele nome, mas tinham escolhido bem. Eu não acreditava naquilo em

que a Igreja acreditava; um dia seria sepultado do lado de fora, e não de

dentro, do adro de uma igreja. Assim que me tornasse mago, os meus

ossos nunca iriam repousar em solo sagrado. Mas isso não me

incomodava nem um pouco. Como costumava dizer o Mago, os padres

não sabiam nada. Ouvi cantar dentro da catedral. Provavelmente o coro

que vira ensaiar depois de falar com o padre Cairns no confessionário.

Page 328: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Por um momento invejei-lhes a religião. Felizmente tinham algo em que

podiam todos acreditar em conjunto. Era mais fácil estar dentro da

catedral com todas aquelas pessoas do que descer sozinho às

catacumbas úmidas e frias.

Atravessei as lajes e avancei pelo caminho largo de gravetos que seguia

ao longo da parede norte da igreja.

Quando me preparava para dobrar a esquina, o meu coração teve um

baque súbito, saltando-me para a boca. Alguém estava sentado em

frente ao alçapão, encostado à 3 Na realidade, Tomé é o nome que

damos em português ao após-tolo referido. Mas trata-se apenas de uma

variante da tradução de Thomas, o nome de Aprendiz, traduzido aqui por

Tomás (NT) parede, abrigado da chuva. A seu lado via-se uma enorme

moca de madeira. Era um dos cobradores eclesiásticos.

Quase gemi alto. Devia estar à espera daquilo. Depois de todos aqueles

prisioneiros terem fugido deviam estar preocupados com a segurança —

e também com a adega cheia de vinho e de cerveja.

Enchi-me de desespero e estive mesmo para desistir, mas precisamente

quando me virei, prestes a afastar-me na ponta dos pés, ouvi um som e

parei a escutar até ter certeza. Afinal não me enganara. Era o som de

ressonar. O guarda estava adormecido! Como diacho é que podia estar a

dormir com toda aquela trovoada?

Mal podendo acreditar na minha sorte, encaminhei-me para o alçapão,

muito, muito devagarinho, procurando que as minhas botas não

fizessem barulho nos ladrilhos, preocupado que o guarda não acordasse

a qualquer momento e eu ter de fugir dali em disparada.

Senti-me bem melhor quando me aproximei. Havia duas garrafas de

vinho vazias ali perto. Estava decerto embriagado e provavelmente

demoraria algum tempo a acordar. No entanto, continuava a não poder

correr quaisquer riscos. Ajoelhei e introduzi a chave de Andrew na

fechadura com muito cuidado. Um instante depois abrira o alçapão e

descera para os barris lá em baixo antes de voltá-lo a fechar.

Tinha ainda a caixa de mechas e um coto de vela que andavam sempre

comigo. Não levei muito tempo a acendê-la. Agora conseguia ver — mas

não sabia ainda como encontrar a câmara funerária.

Page 329: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 21

UM SACRIFÍCIO

Caminhei cautelosamente por entre os barris e prateleiras com vinho até

chegar à porta que dava para as catacumbas. Pelos meus cálculos

faltariam menos de quinze minutos para o anoitecer, por isso não tive de

esperar muito.

Sabia que assim que o Sol se pusesse, o meu mestre obrigaria Alice a

chamar o Destruidor pela última vez.

O Mago tentaria apunhalar o Destruidor no cora-

ção com a lâmina, mas teria unicamente uma oportunidade. Se

conseguisse, a energia libertada provavelmente o mataria. Era corajoso

da parte dele estar preparado para sacrificar a vida, mas se falhasse,

Alice sofreria também.

Ao perceber que fora enganado, e estava agora aprisionado para sempre

atrás do Portão de Prata, o Destruidor ficaria furioso. Alice e o meu

mestre pagariam certamente com as vidas se ele não fosse aniquilado

com rapidez suficiente. Prensaria seus corpos nas pedras.

Estaquei ao fundo das escadas. Que caminho devia seguir? Obtive

imediatamente resposta à minha pergunta: lembrei-me de um dos

adágios do meu pai.

«Causa sempre a melhor impressão possível!»

Bem, como eu era canhoto, fazia tudo melhor com a esquerda, por isso,

em vez de seguir pelo túnel mesmo em frente, aquele que conduzia ao

Portão de Prata e ao rio subterrâneo para lá dele, segui o da esquerda.

Era estreito, apenas com a largura suficiente para permitir a passagem

de uma pessoa, e curvava e inclinava perigosamente para baixo pelo que

tinha a sensação de estar a descer uma espiral.

Quanto mais fundo ia, mais frio ficava e soube que os mortos estavam a

se reunir. Avistava constantemente coisas pelo canto do olho: os

fantasmas da Gente Pequena, formas diminutas pouco mais do que

reflexos luminosos que se moviam constantemente para dentro e para

fora das paredes do túnel. E estava desconfiado de que havia mais atrás

de mim do que à frente — uma sensação de que me seguiam; que

descíamos todos em direção à câmara funerária.

Page 330: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Por fim, vi uma vela tremular lá em frente e fui sair na câmara funerária.

Era mais pequena do que esperava, uma sala circular talvez nem com

vinte passos de diâmetro. Havia uma prateleira alta por cima, escavada

na rocha, e viam-se nela enormes urnas de pedra que continham os

restos dos mortos antigos. No centro do teto existia uma abertura mais

ou menos redonda como uma chaminé, um buraco escuro ao qual a luz

da vela não chegava.

Escorria água do teto de pedra e as paredes estavam cobertas de lodo

verde. Havia também um cheiro forte: uma mistura de água podre e

estagnada.

Um banco de pedra acompanhava a curvatura da parede; o Mago estava

ali sentado, ambas as mãos apoiadas no bordão, enquanto à direita dele

estava Alice, ainda com a venda e os tampões nos ouvidos.

Quando me aproximei, ele olhou-me fixamente, mas já não parecia

zangado, apenas muito triste.

— Ainda é mais tolo do que julgava — disse-me tranquilamente, quando

avancei e me coloquei diante dele.

— Vá embora enquanto ainda pode. Dentro de momentos será tarde

demais.

Abanei a cabeça.

— Por favor, deixe-me ficar. Quero ajudar.

O Mago soltou um longo suspiro.

— Pode piorar ainda mais a situação — disse-me.

— Se o Destruidor tiver algum aviso que seja, se manterá afastado deste

lugar. A garota não sabe onde ele está e eu consigo fechar a mente a

ele. E você? E se ele ler o seu pensamento?

— O Destruidor tentou ler-me o pensamento há pouco. Queria saber

onde o senhor estava. Também onde eu estava. Mas aguentei firme e

ele não conseguiu — contei-lhe.

— Como foi que o impediu? — inquiriu, a sua voz subitamente áspera.

— Menti-lhe. Fingi que ia a caminho de casa e disse-lhe que o senhor ia

regressar a Chipenden.

— E ele acreditou em você?

— Pelo visto — respondi, sentindo-me menos cheio de certeza.

— Bem, em breve o saberemos, quando for chamado. Bem, recue um

pouco para o túnel — pediu o Mago, a sua voz mais branda. — Poderá

assistir dali. Se isto correr mal, ainda terá alguma chance de fuga. Vá lá,

rapaz! Não hesite. Está quase na hora!

Page 331: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Fiz o que ele mandou, recuando alguma distância no túnel. Entretanto,

sabia que o Sol já teria descido abaixo do horizonte e o crepúsculo iria

instalar-se. O Destruidor abandonaria o seu esconderijo no subsolo. Sob

a forma de espírito, podia agora voar livremente pelo ar e atravessar

rocha sólida. Uma vez chamado, viria direito a Alice, mais rápido do que

um falcão, com as asas recolhidas, descendo a pique como uma pedra

na direção da sua presa. Se o plano do Mago funcionasse, não

perceberia de onde Alice aguardava. Mal aqui estivesse, seria tarde

demais. Mas nós também estaríamos aqui, para enfrentar a sua raiva

quando percebesse que fora ludibriado e estava aprisionado.

Vi o Mago pôr-se em pé e colocar-se de frente para Alice. Baixou a

cabeça e manteve-se perfeitamente imóvel durante um longo tempo. Se

fosse um padre, diria que estava a rezar. Por fim, estendeu as mãos

para Alice e vi-o retirar-lhe o tampão de cera do ouvido esquerdo.

— Chame o Destruidor! — gritou, numa voz sonora que encheu toda a

câmara e ecoou pelo túnel. —

Faça-o agora, minha jovem! Sem demora!

Alice não falou. Nem sequer se mexeu. Não precisava fazê-lo porque o

chamava com a mente, desejando a sua presença.

Não houve aviso da chegada dele. Num momento reinava o silêncio, no

seguinte houve uma rajada de frio e o Destruidor apareceu na câmara.

Do pescoço para cima era uma réplica da gárgula sobre a porta principal

da catedral: a boca aberta, a língua a sair, orelhas de cão enormes e

chifres perigosos. Do pescoço para baixo, era uma imensa nuvem negra

informe em ebulição.

Ganhara forças para assumir a sua forma original!

Que chance tinha agora o Mago contra ele?

Por um breve momento o Destruidor permaneceu perfeitamente imóvel

enquanto os seus olhos se agitavam de um lado para o outro. Olhos com

pupilas verde-escuras, com fendas verticais. Pupilas iguais às de uma

cabra.

Depois, ao perceber onde estava, soltou um gemido de angústia e

desalento que ecoou pelo túnel a ponto de o sentir vibrar nas próprias

solas das minhas botas e sacudir-me os ossos.

— Outra vez preso! E bem preso! — exclamou com uma frieza áspera e

sibilante que ecoou nas câmaras e me penetrou como gelo.

— Sim — confirmou o Mago. — Agora está aqui e aqui ficará, preso para

sempre neste maldito lugar!

Page 332: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Aprecie o seu trabalho! Aspire o seu último sopro, Ossos Velhos.

Enganou-me, sim, mas para quê? Nada será, mas eu ainda terei domínio

sobre os de lá de cima. Ainda farei exigências e eles acatarão. Sangue

fresco me enviarão aqui para baixo! Por isso foi tudo em vão!

A cabeça do Destruidor ficou maior, o focinho tornando-se ainda mais

hediondo, o queixo alongando-se e curvando para cima ao encontro do

nariz curvo. A nuvem negra descia em ebulição, formando carne, pelo

que agora era visível um pescoço e os primórdios de umas espáduas

largas, forres e musculadas. Mas em vez de pele estavam cobertas de

escamas verdes ásperas.

Eu sabia do que o Mago estava à espera. No momento em que o peito

ficasse nitidamente definido, ataca-ria direto ao coração lá dentro.

Enquanto eu observava, a nuvem em ebulição desceu mais para formar

o corpo até à pélvis. Mas enganei-me! O Mago não usou a lâmina. Como

se aparecesse de lugar nenhum, a corrente de prata estava na sua mão

esquerda e levantou o braço para a arremessar ao Destruidor.

Já o vira fazer antes. Estava presente quando ele a atirara à bruxa,

Lizzie dos Ossos, formando uma espiral perfeita e descendo sobre ela,

prendendo-lhe os braços ao lado do corpo. Ela caíra por terra e não

pudera fazer nada senão ficar ali a protestar, a corrente envolvendo-lhe

o corpo e cerrando-lhe os dentes.

Deveria suceder o mesmo aqui, tinha certeza, e seria a vez de o

Destruidor ficar ali sem poder fazer nada.

Mas, no preciso momento em que o Mago se preparava para arremessar

a corrente de prata, Alice pôs-se em pé e arrancou a venda.

Sei que não era intenção dela, mas conseguiu colocar-se entre o Mago e

o seu alvo, fazendo-o falhar a pontaria. Em vez de passar pela cabeça do

Destruidor, a corrente de prata bateu-lhe no ombro. Ao tocar-lhe, a

criatura gritou em agonia e a corrente caiu no chão.

Mas ainda não terminara e o Mago pegou rapidamente no bordão. Ao

erguê-lo, preparando-se para o cravar no Destruidor, ouviu-se um

estalido súbito e a lâmina retrátil, feita com uma liga que continha prata,

estava agora à mostra, brilhando à luz da vela. A lâmina que o vira

amolar em Heysham. Vira-o usá-la uma vez antes, quando enfrentara

Tusk, o filho da bruxa velha, Mãe Malkin.

O Mago arremessou então o bordão com força e rapidez, direto ao

Destruidor, visando-lhe o coração. Ele tentou desviar-se mas era tarde

demais para evitar por completo o golpe. A lâmina perfurou-lhe o ombro

Page 333: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

esquerdo e ele gritou de agonia. Alice recuou, uma expressão de terror

no seu rosto, enquanto o Mago puxava o seu bordão e o preparava para

uma segunda arremetida, o seu rosto ameaçador e decidido.

Mas, de repente, ambas as velas se apagaram, mergulhando a câmara e

o túnel na escuridão. Freneticamente, recorri à caixa de mechas para

voltar a acender a minha vela mas quando ganhou vida a tremular o

Mago estava sozinho na câmara. O Destruidor desaparecera pura e

simplesmente. E Alice também!

— Onde é que ela está? — gritei, correndo na direção do Mago, que

abanava a cabeça, pesaroso.

— Não se mexa! — ordenou. — Ainda não acabou!

Olhava para cima, para o lugar onde as correntes desapareciam no

buraco escuro no teto. Havia um laço e ao lado dele uma segunda

corrente solitária. Preso à sua extremidade, e quase a tocar no chão,

via-se um gancho grande. Era uma espécie de sistema de cadernal e

roldana semelhante ao usado pelos aparelhadores para fazerem descer

as pedras dos demônios até à posição pretendida.

O Mago parecia estar à escuta. — Encontra-se em algum lugar lá em

cima — murmurou.

— É uma chaminé? — perguntei.

— Sim, rapaz. Algo desse gênero. Pelo menos, era para essa finalidade

que servia às vezes. Muito tempo depois de ter sido aprisionado, e a

Gente Pequena ter morrido e desaparecido, homens fracos e tolos

fizeram sacrifí-

cios ao Destruidor neste mesmo lugar. A chaminé levava a fumaça para

o seu antro lá em cima e eles serviam-se da corrente para fazer subir a

oferenda queimada. Como pagamento, alguns foram prensados!

Começara a suceder algo. Senti uma corrente de ar vinda da chaminé e

registrou-se um frio súbito no ar. Olhei para cima quando algo que

parecia fumaça começou a descer lentamente, enchendo a parte superior

da câmara.

Era como se todas as oferendas queimadas que alguma vez tivessem

sido preparadas neste local estivessem a ser devolvidas!

Mas era muito mais densa que fumaça; parecia água, como um

remoinho negro a girar por cima das nossas cabeças. Em segundos ficou

calmo e parado, fazendo lembrar a superfície polida de um espelho

negro. Conseguia ver os nossos reflexos nele: eu de pé ao lado do Ma-

Page 334: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

go, o seu bordão a postos, a lâmina a apontar para cima, pronta a

estocar.

O que aconteceu em seguida foi rápido demais para se ver

convenientemente. A superfície do espelho de fumaça avolumou-se na

nossa direção e irrompeu algo com suficiente rapidez e violência,

empurrando o Mago para trás. Ele caiu pesadamente, o bordão voando-

lhe da mão e partindo-se em duas partes desiguais com um som seco

forte.

A princípio fiquei atordoado, mal conseguindo pensar, incapaz de mover

um músculo, mas por fim, todo o meu corpo começou a tremer. Fui ver

se o Mago estava bem.

Encontrava-se de costas, de olhos fechados, um fio de sangue a

escorrer-lhe do nariz para a boca aberta. Respirava profunda e

regularmente de modo que o sacudi com cuidado, tentando acordá-lo.

Não reagiu. Aproximei-me do bordão partido e peguei no mais pequeno

dos dois pedaços, aquele que tinha a lâmina acoplada. Era mais ou

menos do comprimento do meu antebraço por isso enfiei-o no cinto.

Naquele momento, eu estava ao lado da corrente a olhar para cima.

Alguém tinha de tentar ajudar Alice a aniquilar esta criatura de uma vez

por todas, e eu era o único capaz de fazê-lo. Não podia deixá-la à mercê

do Destruidor. Assim, em primeiro lugar, procurei esvaziar a mente. Se

não tivesse nada lá dentro, o Destruidor não conseguiria ler-me os

pensamentos. Provavelmente o Mago estivera a treinar durante dias por

isso eu tinha simplesmente de dar o meu melhor.

Coloquei a extremidade da vela na boca, cravando-lhe os dentes, depois

agarrei cuidadosamente a única corrente com ambas as mãos,

procurando mantê-la o mais imóvel possível. A seguir coloquei os pés

por cima do gancho e prendi a corrente entre os joelhos. Eu tinha jeito

para subir por cordas e uma corrente não era assim muito diferente.

Comecei a subir com bastante rapidez, a corrente fria e a machucar-me

a mão. Na base da fumaça densa, inspirei fundo, sustive a respiração e

enfiei a cabeça na negrura. Não conseguia ver nada, e apesar de não

respirar, a fumaça estava a entrar-me no nariz e na boca aberta e sentia

um forte bafo acre na garganta que me fazia lembrar o de salsichas

queimadas.

Subitamente, a minha cabeça saiu da fumaça e icei-me mais pela

corrente até ficar com os ombros e o peito de fora dele. Encontrava-me

numa câmara circular quase idêntica à de baixo só que, em vez de uma

Page 335: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

chaminé por cima, havia um poço por baixo e a fumaça enchia a metade

inferior da câmara.

Na parede em frente, havia um túnel que seguia para a escuridão e

outro banco de pedra onde Alice estava sentada, a fumaça quase a

chegar-lhe aos joelhos. Tinha a mão esquerda estendida na direção do

Destruidor. A hedionda criatura estava ajoelhada na fumaça, debruçada

sobre ela, o arco nu do seu dorso fazendo-me lembrar um enorme sapo

verde. No momento em que observava, atraiu a mão dela para a sua

bocarra e ouvi Alice gritar de dor quando começou a chupar-lhe o

sangue por debaixo das unhas. Esta era a terceira vez que o Destruidor

se alimentava do sangue de Alice desde que ela o libertara.

Quando terminasse, Alice pertencer-lhe-ia!

Sentia frio, frio como gelo, e a minha mente estava vazia. Não pensava

em nada de nada. Aproximei-me mais e passei da corrente para o chão

de pedra da câmara superior. O Destruidor estava absorto demais no

que fazia pa-ra se perceber da minha presença. Sem dúvida, nesse

aspecto era como o estripador de Horshaw: quando se estava a

alimentar mais nada importava.

Aproximei-me mais e levei a mão ao pedaço do bordão do Mago no meu

cinto. Retirei-o e ergui-o acima da cabeça, a lâmina apontada ao dorso

verde escamoso do Destruidor. Só tinha de fazê-la descer com força e

cravar-lha no coração. Reassumira a forma física e ia ser o fim dele.

Morreria. Mas quando comecei a retesar o braço, senti repentinamente

medo.

Sabia o que ia me acontecer. Seria libertada tamanha energia que eu

morreria também. Seria um fantasma tal e qual o pobre Bily Bradley,

que morrera depois de um demônio lhe arrancar os dedos. Ele chegara a

ser feliz como aprendiz do Mago, mas agora estava sepultado do lado de

fora do adro da igreja de Layton. A idéia era demasiado difícil de

suportar.

Estava apavorado — apavorado de morte — e comecei de novo a tremer.

Começou nos joelhos e subiu-me pelo corpo até a mão que segurava a

lâmina começar a tremer.

O Destruidor deve ter sentido o meu medo porque virou repentinamente

a cabeça, os dedos de Alice ainda na boca, o sangue a escorrer-lhe pelo

enorme queixo curvo.

Page 336: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Mas depois, quando era quase tarde demais, o meu medo evaporou-se

por completo. Percebi de imediato o motivo por que estava ali a

enfrentar o Destruidor. Lembrei-me do que a Mãe dissera na carta. .

Às vezes, nesta vida, é necessário uma pessoa sacrificar-se pelo bem

dos outros.

Ela avisara-me que dos três que enfrentariam o Destruidor, apenas dois

sairiam vivos das catacumbas. De certa forma, eu achava que o Mago ou

Alice morreriam, mas percebia naquele momento de que ia ser eu!

Nunca poderia concluir o meu aprendizado, nunca iria tornar-me mago.

Mas ao sacrificar a minha vida agora poderia salvar os dois. Estava

muito calmo. Aceitara simplesmente o que tinha de ser feito.

Tive a certeza de que mesmo no último instante o Destruidor percebera

o que eu ia fazer, mas em vez de me prensar ali até à morre, virou a

cabeça na direção de Alice, que esboçou um sorriso estranho e

misterioso.

Desferi rapidamente o golpe com todas as minhas forças, enterrando a

lâmina na direção do coração dele.

Não senti a lâmina fazer contato mas ergueu-se diante dos meus olhos

uma negrura horrível; o meu corpo estremeceu da cabeça aos pés, pelo

que não tinha controle sobre os meus músculos. A vela saltou-me da

boca e senti-me a cair. Falhara o coração dele!

Por um momento, pensei que tivesse morrido. Estava tudo escuro mas

de momento o Destruidor parecia ter desaparecido. Tateei o chão à

procura da vela e tornei a acendê-la. Escutando com atenção, fiz sinal a

Alice para que permanecesse em silêncio, e ouvi um som vindo do túnel.

Um cão grande a caminhar.

Enfiei no cinto o pedaço do bordão com a lâmina.

A seguir, tirei do bolso a corrente de prata da Mãe e enrolei-a na mão e

no pulso esquerdo, a postos para arremessá-la. Com a outra mão,

peguei a vela e, sem mais delongas, fui atrás do Destruidor.

— Não, Tom, não! Deixe-o ir! — gritou Alice de trás. — Acabou. Pode

voltar para Chipenden!

Correu para mim, mas repeli-a com força. Ela cambaleou e quase caiu.

Quando avançou de novo para mim, levantei a mão esquerda para que

ela pudesse ver a corrente de prata.

— Afaste-se! Você agora pertence ao Destruidor.

Fique longe senão te prendo também!

Page 337: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O Destruidor alimentara-se pela última vez e agora não podia confiar em

nada do que ela dissesse. Teria de matá-lo antes de ela poder ficar livre.

Virei-lhe as costas e afastei-me rapidamente. Ouvia o Destruidor à

minha frente; atrás de mim o click-click dos sapatos bicudos de Alice

seguindo-me pelo túnel. Subitamente, os passos lá à frente cessaram.

Teria o Destruidor desaparecido simplesmente e ido para outra parte das

catacumbas? Parei e pus-me à escuta antes de avançar com maior

cautela. Foi então que vi algo lá à frente. Algo no chão do túnel. Parei

mesmo em cima e senti náuseas. Quase vomitei ali mesmo.

O irmão Peter jazia de costas. Fora prensado. A cabeça mantinha-se

intacta; os olhos arregalados, fixos, mostravam o terror que obviamente

sentira na altura da morte. Mas do pescoço para baixo o seu corpo fora

espalmado contra as pedras.

A visão deixou-me horrorizado. Durante os meus primeiros meses de

aprendizado, vira muitas coisas terríveis e estivera perto da morte mais

vezes do que queria me lembrar. Mas esta era a primeira vez que via a

morte de alguém de quem gostava — e uma morte tão horrível.

Estava ali, distraído pela visão do irmão Peter, e o Destruidor escolheu

esse momento para vir correndo pela escuridão direto para mim. Por um

momento estacou e fitou-me, as fendas verdes dos seus olhos brilhando

no escuro. O seu corpo pesado e musculoso estava coberto de pêlo preto

hirsuto e as mandíbulas escancaradas, revelando as filas de dentes

amarelos afiados. Escorria-lhe algo da língua comprida que pendia das

mandíbulas abertas.

Em vez de saliva, era sangue!

De repente, o Destruidor atacou, correndo para mim. Preparei a corrente

e ouvi Alice gritar atrás de mim.

Percebi mesmo a tempo de que ele mudara o seu ângulo de ataque. O

alvo não era eu! Era Alice!

Fiquei atordoado. Eu constituía a ameaça para o Destruidor, não Alice.

Nesse caso, porquê ela e não eu?

Instintivamente, ajustei a pontaria. Conseguia acertar nove em dez

vezes no poste no jardim do Mago, mas isto era diferente. O Destruidor

deslocava-se rapidamente, começando já a saltar. Então, fiz estalar a

corrente e lancei-a na direção da criatura, vendo-a abrir-se como uma

rede e descer na forma de uma espiral. Toda a minha prá-

tica estava a compensar e ela caiu diretamente sobre o Destruidor

enrolando-se firmemente à volta do seu corpo.

Page 338: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Ele rebolou sucessivamente, uivando e tentando fugir.

Teoricamente, não conseguiria se libertar, nem desaparecer nem mudar

de forma. Mas eu não ia correr riscos. Tinha de lhe trespassar

rapidamente o coração. Tinha de acabar com ele agora. Então,

precipitei-me, tirei a lâmina do cinto e preparei-me para o estocar no

peito. Os seus olhos fitaram-me quando estava preparando a lâmina.

Estavam cheios de ódio. Mas havia também medo: o terror absoluto da

morte; o terror do nada que ia enfrentar, e falou dentro da minha

cabeça, suplicando freneticamente a vida.

— Misericórdia! Misericórdia! — exclamou. — Não existe nada para nós!

Apenas escuridão. É isso que quer, rapaz?

Morrerá também!

— Não, Tom, não! Não faça isso! — gritou Alice atrás de mim, juntando

a sua voz à do Destruidor. Mas ignorei ambas. Fosse qual fosse o custo,

ele tinha de morrer. Contorcia-se nas voltas da corrente e apunhalei-o

duas vezes antes de lhe acertar no coração.

A terceira, desferi um golpe e o Destruidor desapareceu simplesmente,

mas ouvi um grito medonho. Nunca irei saber se foi o Destruidor, Alice

ou eu que emitimos aquele som. Talvez tenhamos sido os três.

Senti um soco tremendo no peito, seguido de uma estranha sensação de

afundamento. Ficou tudo silencioso e senti-me a mergulhar na

escuridão.

Depois, só sei que estava junto de uma enorme extensão de água.

Apesar do seu tamanho, era mais um lago do que um mar, pois, apesar

de soprar uma brisa agradável na direção da margem, a água

permanecia calma, como um espelho, refletindo o azul perfeito do céu.

Estavam a lançar pequenos barcos à água numa praia de areia dourada,

e conseguia ver para lá deles uma ilha bastante próxima da praia. Era

verde com árvores e prados ondulantes e pareceu-me mais maravilhosa

do que algo que alguma vez tivesse visto em toda a minha vida.

Entre as árvores no topo de uma colina havia um edifício como o castelo

que tínhamos avistado das extensões rochosas baixas ao contornarmos

Caster. Mas em vez de ser construído em pedra cinzenta fria, brilhava

com luz, como se tivessem sido usadas as faixas de um arco-íris e os

seus raios aqueciam a minha testa como um sol glorioso.

Não respirava, mas sentia-me calmo e feliz e lembro-me de pensar que

se estava morto, então a morte era agradável e só tinha de alcançar

aquele castelo, de modo que corri em direção ao barco mais próximo,

Page 339: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

desesperado por entrar a bordo. Quando me aproximei mais, as pessoas

deixaram de tentar lançar o barco e viraram os rostos para mim.

Naquele momento soube de quem se tratava.

Eram pequenas, muito pequenas, e tinham cabelo escuro e olhos

castanhos. Era a Gente Pequena! Os Segoncíacos!

Sorriram calorosamente, precipitaram-se para mim e começaram a

puxar-me na direção do barco. Nunca me sentira tão feliz na minha vida,

tão bem-vindo, tão desejado, de modo que aceitei. Toda a minha solidão

desapareceu. Mas precisamente quando ia subir para bordo, senti uma

mão fria agarrar-me o antebraço esquerdo.

Quando me virei, não havia ninguém mas a pressão no meu braço

aumentou até que começou a doer. Sentia unhas a cravarem-se na pele.

Procurei libertar-me, entrar no barco e a Gente Pequena tentou ajudar-

me também, mas a pressão no meu braço era agora uma dor ardente.

Gritei e engoli ar num enorme hausto doloroso que soluçou na minha

garganta e me deixou o corpo todo dormente, depois foi aquecendo cada

vez mais, como se eu estivesse a arder por dentro.

Encontrava-me deitado de costas no escuro. Chovia intensamente e

sentia as gotas baterem-me nas pálpebras e na testa e entrarem-me até

na boca, escancarada.

Estava cansado demais para abrir os olhos mas ouvi a voz do Mago a

alguma distância.

— Deixe-o aí! — disse. — Deixa-o em paz, minha jovem. É tudo o que

podemos fazer por ele agora!

Abri os olhos e vi Alice debruçada sobre mim. Atrás dela estava a parede

escura da catedral. Ela agarrava-me o antebraço esquerdo, as unhas

muito afiadas na minha pele. Inclinou-se para a frente e murmurou-me

ao ouvido.

— Não se escapa assim tão facilmente, Tom. Agora voltou. Voltou aonde

pertence!

Respirei fundo e o Mago avançou, os seus olhos cheios de espanto.

Quando ajoelhou a meu lado, Alice levantou-se e afastou-se.

— Como se sente, rapaz? — perguntou-me delicadamente, ajudando-me

a sentar. — Julguei que tivesse morrido. Quando te trouxe para fora das

catacumbas, juro que não havia qualquer sopro no seu corpo!

— O Destruidor? — inquiri. — Está morto?

— Está sim, rapaz. Acabou com ele e quase consigo no processo. Acha

que consegue caminhar? Precisamos nos afastar daqui.

Page 340: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Vi para lá do Mago o guarda com as garrafas vazias de vinho a seu lado.

Continuava no seu sono embriagado, mas podia acordar a qualquer

instante.

Com a ajuda do Mago, consegui pôr-me em pé e nós três abandonamos

os terrenos da catedral e percorremos as ruas desertas.

A princípio, estava fraco e trêmulo, mas à medida que subíamos

afastando-nos das filas de casas com terraço e voltávamos ao campo,

comecei a sentir-me mais forte.

Passado um tempo, virei-me e olhei para trás na direção de Priestown,

que se estendia lá em baixo. As nuvens tinham-se dissipado e a Lua

aparecera. O pináculo da catedral parecia brilhar.

— Até parece mais bonita — disse, parando para ver a vista.

O Mago colocou-se a meu lado e seguiu a direção do meu olhar.

— A maior parte das coisas parece melhor vista de longe — comentou.

— Aliás, a maior parte das pessoas também.

Devia estar gracejando, de modo que sorri.

— Bem — suspirou —, a partir de agora espero que seja um lugar bem

melhor. Mas nós também não temos pressa de voltar para cá.

Mais ou menos ao fim de uma hora na estrada, encontramos um celeiro

velho abandonado onde nos abrigamos. Tinha correntes de ar, mas pelo

menos estava seco e havia um bocado de queijo amarelo para

mordiscar. Alice adormeceu imediatamente enquanto eu fiquei muito

tempo sentado a pensar no que acontecera. O Mago também não

parecia cansado mas ficou sentado em silêncio, abraçado aos joelhos.

Por fim falou.

— Como sabia como matar o Destruidor? — inquiriu. — Observei-o —

respondi. — Vi-o tentar atingi-lo no coração. . — Mas, de repente, fui

vencido pela vergonha da minha mentira e baixei a cabeça. — Não,

desculpe

— corrigi-me. — Não é verdade. Aproximei-me quando o senhor foi falar

com o fantasma de Naze. Ouvi tudo o que disse.

— E bem deve pedir desculpa, rapaz. Correu um grande risco. Se o

Destruidor tivesse conseguido ler seu pensamento. .

— Lamento muito.

— E não me disse que tinha uma corrente de prata

— referiu.

— A Mãe me deu-a — retorqui.

Page 341: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Ora ainda foi bem que ela o fez. Tenho-a no meu saco e por agora

está segura. Até voltar a precisar dela. . — acrescentou com ar sinistro.

Seguiu-se outro longo silêncio, como se o Mago estivesse perdido em

pensamentos.

— Quando te trouxe para cima das catacumbas, parecias frio e morto —

disse finalmente. — Já vi tantas vezes a morte que sei que não estava

enganado. Depois a garota agarrou o seu braço e voltou a si. Não sei o

que pensar disto.

— Estive com a Gente Pequena — referi.

O Mago anuiu.

— Sim — disse —, eles estarão em paz, agora que o Destruidor morreu.

Inclusive Naze. Mas conte-me lá, rapaz? Como é que foi? Teve medo?

Abanei a cabeça.

— Tive mais medo logo depois de ter lido a carta da Mãe — expliquei-

lhe. — Ela sabia o que ia acontecer.

Senti que não tinha escolha. Que tudo estava já decidido.

Mas se tudo já está decidido, de que serve viver?

O Mago carregou o cenho e estendeu a mão.

— Mostre-me a carta — pediu.

Tirei-a do bolso e entreguei-a. Demorou muito a lê-la, no fim acabou por

me devolver. Durante um tempo não disse nada.

— A sua mãe é uma mulher arguta e inteligente —

afirmou finalmente o Mago. — Só assim se justifica grande parte do que

ela escreveu. Ela adivinhou exatamente o que eu ia fazer. Ela possui

conhecimentos mais do que suficientes para fazê-lo. Não é profecia. A

vida já é suficientemente má sem acreditarmos nisso. Você escolheu

descer as escadas. Mas tinha outra opção. Podia ter-se ido embora e

depois teria sido tudo diferente.

— Mas assim que escolhi, ela estava certa. Nós os três enfrentamos o

Destruidor e só dois sobreviveram. Eu morri. O senhor trouxe-me para a

superfície. Como podemos explicar isso?

O Mago não respondeu e o silêncio entre nós foi aumentando cada vez

mais. Passado um tempo, deitei-me e mergulhei num sono sem sonhos.

Não aludi à maldição.

Sabia que era algo de que ele não iria querer falar.

Page 342: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 22

UM ACORDO É UM ACORDO

Era quase meia-noite e uma lua em crescente erguia-se acima das

árvores. Em vez de se aproximar da casa pelo percurso mais direto, o

Mago fez-nos contornar ela vindos de leste. Pensei no jardim oriental lá

na frente e no poço que aguardava Alice. O poço que eu abrira.

Certamente não a ia meter no poço agora? Não depois do que ela fizera

para ajudar a endireitar as coisas?

Deixara que ele a vendasse e tapasse os ouvidos com cera.

E depois ficara ali sentada horas em silêncio e no escuro sem se queixar

uma só vez.

Mas depois vi o riacho lá à frente e enchi-me de uma nova esperança.

Era estreito mas de curso rápido, a água cor de prata, cintilando ao luar,

e havia uma única pedra no meio.

Ele ia pôr Alice à prova.

— Muito bem, menina — disse-lhe, a sua expressão austera. — Vá na

frente. Atravesse lá!

Quando olhei para o rosto de Alice, caiu-me o co-ração aos pés. Parecia

apavorada e lembrei-me que tivera de a transportar para atravessar o

rio perto do Portão de Prata. Agora que o Destruidor estava morto, o seu

domínio sobre Alice cessara, mas teriam os danos ultrapassado já todas

as chances de recuperação? Teria Alice se aproximado demais do

escuro? Poderia nunca mais ser livre?

Nunca mais conseguir atravessar água corrente? Era já uma bruxa

malévola plenamente desenvolvida?

Alice hesitou à beira da água e começou a tremer.

Levantou por duas vezes o pé para dar o simples passo para a pedra

plana no meio do riacho. E por duas vezes o baixou de novo. Tinha-lhe

acumulado gotas de suor na testa e começavam agora a escorrer na

direção do nariz e dos olhos.

— Vamos, Alice, você é capaz! — gritei, procurando incentivá-la. Os

meus esforços valeram um olhar fulminante do Mago.

Num esforço súbito e terrível, Alice saltou para a pedra e fez avançar a

perna esquerda quase de imediato para se transportar até à outra

Page 343: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

margem. Uma vez lá, sentou-se apressadamente e cobriu o rosto com as

mãos.

O Mago emitiu um estalido com a língua, atravessou o riacho e subiu a

colina em passadas largas direto às árvores na orla do jardim. Deixei-me

ficar para trás enquanto Alice se levantava, depois, juntos, fomos ter

com o Mago, que aguardava de braços cruzados.

Quando o alcançamos, o Mago avançou repentinamente e agarrou Alice.

Pegando-lhe pelas pernas, colocou-a no ombro. Ela começou a lamuriar-

se e a debater-se, mas sem dizer mais nenhuma palavra, ele agarrou-a

com maior firmeza, depois virou e entrou no jardim.

Eu seguia atrás, desesperado. Ele avançava pelo jardim oriental, indo

direto às sepulturas onde estavam as bruxas, direto ao poço vazio. Não

era justo! Alice passara no teste, não passara?

— Ajude-me, Tom! Ajude-me, por favor! — suplicou Alice.

— Não pode lhe dar mais uma oportunidade? —

implorei. — Só mais uma oportunidade? Ela atravessou.

Não é uma bruxa.

— Ela passou mesmo à prova desta vez — resmungou o Mago por cima

do ombro. — Mas existe maldade dentro dela, apenas à espera de uma

oportunidade.

— Como pode afirmar semelhante coisa? Depois de tudo o que ela fez. .

— Esta é a maneira mais segura. É o melhor para todos!

Soube então que chegara o momento daquilo que o meu pai chama

«umas tantas verdades». Tinha de lhe dizer que sabia de Meg, apesar de

ele poder vir a odiar-me por isso e não querer que eu continuasse a ser

seu aprendiz.

Mas talvez uma lembrança do passado o pudesse fazer mudar de idéias.

A hipótese de Alice ir para o poço era-me insuportável, e cem vezes pior

o fato de eu ter sido obrigado a abri-lo.

O Mago chegara ao poço e parara perto da beirada.

Quando ia enfiar Alice naquela escuridão, gritei: — O senhor não fez isso

com Meg!

Virou-se para mim com uma expressão de absoluto espanto no rosto.

— O senhor não enfiou Meg no poço, não é? —

bradei. — E ela era uma bruxa! O senhor não o fez porque gostava

demais dela! Por favor, não o faça a Alice!

Não está certo!

Page 344: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

A expressão de espanto do Mago mudou para fúria e ficou ali, hesitante,

à beira do poço; por um momento não percebi se ia atirar Alice lá para

dentro ou saltar ele mesmo. Ficou ali bastante tempo, mas depois, para

meu alívio, a fúria pareceu dar lugar a outra coisa e virou-se e afastou-

se, continuando a carregar Alice.

Contornou o novo poço vazio, passou por aquele onde Lizzie dos Ossos

estava aprisionada, afastou-se em grandes passadas das sepulturas

onde as duas bruxas mortas estavam enterradas e avançou pelo

caminho de pedras brancas que dava acesso à casa.

Apesar da recente doença, tudo aquilo por que passara e do peso de

Alice no seu ombro, o Mago caminhava tão depressa que tive de fazer

um esforço para acompanhá-lo. Retirou a chave do bolso esquerdo das

calças, abriu a porta de trás da casa e estava lá dentro antes que o meu

pé tivesse tocado no degrau.

Foi direto à cozinha e estacou próximo da lareira, onda as chamas

faziam saltar fagulhas cintilantes pela chaminé acima. A cozinha estava

quente, as velas acesas, com talheres e pratos para dois em cima da

mesa.

Lentamente, o Mago desceu Alice do ombro e colocou-a no chão. Mal os

seus sapatos bicudos assentaram nas lajes o fogo extinguiu-se logo, a

vela tremulou e quase se apagou, e o ar ficou manifestamente gelado.

No instante seguinte, ouviu-se um rosnado furioso que fez chocalhar a

louça e vibrou pelo chão. Era o demônio de estimação do Mago. Se por

caso Alice tivesse atravessado o jardim, mesmo com o Mago por perto,

tê-la-ia desfeito. Mas como o Mago a transportara, só quando os pés

dela tocaram no chão é que o demônio se percebeu da presença de

Alice. E agora não estava nada satisfeito.

O Mago colocou a mão esquerda na cabeça de Alice. A seguir, bateu

ruidosamente com o pé esquerdo nas lajes três vezes.

O ar ficou muito silencioso e o Mago gritou em voz alta:

— Agora ouça-me bem! Escute com atenção o que te digo!

Não obteve resposta mas o fogo espevitou-se um pouco e o ar pareceu

menos frio.

— Enquanto esta moça estiver em minha casa, não lhe toque nem um fio

de cabelo! — ordenou o Mago. —

Mas vige tudo o que ela fizer e zele para que faça tudo o que eu mandar.

Page 345: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Dito aquilo, voltou a bater três vezes nas lajes. Em resposta, o fogo

acendeu-se na grelha e a cozinha pareceu de súbito mais quente e

acolhedora.

— E agora prepare ceia para três! — ordenou o Mago. Depois fez sinal e

o seguimos pela cozinha e escadas acima. Parou do lado de fora da porta

trancada da biblioteca.

— Enquanto aqui estiver, mocinha, vai ter de ganhar para o seu sustento

— resmungou o Mago. — Há ali dentro livros que são insubstituíveis.

Nunca poderá entrar lá, mas te darei um livro de cada vez e poderá

fazer uma cópia dele. Estamos entendidos?

Alice anuiu.

— A sua segunda tarefa será contar aqui ao rapaz tudo o que Lizzie dos

Ossos te ensinou. E refiro-me a tudo. Ele tratará de anotar. Muita coisa

será disparate, claro, mas isso não importa porque nos permitirá

aumentar os nossos conhecimentos. Está preparada para o fazer?

Alice tornou a acenar com a cabeça, o seu semblante muito sério.

— Bem, então está decidido — disse o Mago. —

Dormirá no quarto por cima do de Tom, aquele mesmo no topo da casa.

E agora, pense bem no que estou dizendo. Aquele demônio lá embaixo

na cozinha sabe o que você é e o que quase se tornou. Por isso não

corra sequer o risco porque ele estará vigiando tudo o que fizer. E nada

lhe agradaria mais do que. .

O Mago soltou um suspiro longo e profundo. —

Ele não hesitará sequer — referiu. — Por isso não lhe dê razão. Fará o

que te pedi, mocinha? Merece que confiem em você?

Alice anuiu e a sua boca alargou-se num enorme sorriso. À ceia, o Mago

esteve estranhamente calado. Parecia a calma que antecede uma

tempestade. Ninguém falou muito mas os olhos de Alice vagueavam por

todo o lado e voltavam sucessivamente à enorme fogueira acesa que

enchia a divisão de calor.

Por fim, o Mago afastou de si o prato e suspirou.

— Bem, mocinha — disse —, vá-se deitar. Tenho umas coisas que

preciso conversar com o rapaz.

Quando Alice saiu, o Mago empurrou a cadeira e aproximou-se da

fogueira. Curvou-se e aqueceu as mãos por cima das chamas antes de

se virar de frente para mim.

— Bem, rapaz — resmungou —, desembuche logo. Onde descobriu isso

sobre a Meg?

Page 346: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Li-o num dos seus diários — respondi, timidamente, baixando a

cabeça.

— Bem me pareceu. Eu não tinha lhe avisado?

Voltou a desobedecer-me! Há coisas na minha biblioteca que não pode

ler por enquanto — referiu o Mago com ar severo. — Coisas para as

quais não está preparado. Eu serei o melhor juiz do que te convém ler.

Entendeu?

— Sim, mestre — respondi, dirigindo-me a ele por aquele título pela

primeira vez em meses. — Mas eu teria acabado por vir a saber de Meg

mesmo assim. O padre Cairns mencionou-a e contou-me também a

respeito de Emily Burns e que o senhor a roubou do seu irmão e isso

dividiu a sua família.

— Não consigo te esconder nada, não é rapaz?

Encolhi os ombros, sentindo-me aliviado por ter tirado um peso de cima

do peito.

— Bem — disse ele, voltando para a mesa —, cheguei a uma bela idade

e não me orgulho de tudo o que fiz, mas cada história não tem só uma

versão. Nenhum de nós é perfeito, rapaz, e um dia descobrirá tudo o que

precisa saber e depois poderá fazer o seu julgamento a meu respeito. E

escusado andar a remexer no passado agora, mas quanto a Meg, irá

conhecê-la quando formos a Anglezarke. Será mais cedo do que pensa

porque, dependendo do tempo, iremos partir para a minha casa de

Inverno mais ou menos dentro de um mês. O que mais o padre Cairns te

disse?

— Ele disse que o senhor vendeu a sua alma ao Diabo. .

O Mago sorriu.

— Os padres sabem alguma coisa? Não, rapaz, a minha alma continua a

pertencer-me. Lutei longos e longos anos para conservá-la, e

contrariamente ao que seria de esperar, ainda é minha. E quanto ao

Diabo, bem, costumava pensar que o mais provável era esse mal estar

dentro de cada um de nós, como uma mecha, apenas à espera da faísca

que a acenderia. Mas, mais recentemente, comecei a perguntar-me se,

afinal, existe algo por detrás de tudo aquilo que enfrentamos, algo

escondido bem no âmago do escuro. Algo que se torna mais forte à

medida que o escuro se fortalece também. Algo a que um padre

chamaria o Diabo. .

O Mago fitou-me com dureza, os seus olhos verdes cravando-se nos

meus.

Page 347: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— E se existisse algo como o Diabo, rapaz? O que faríamos?

Pensei por alguns instantes antes de responder.

— Precisaríamos abrir um poço bem grande —

disse eu. — O poço mais fundo alguma vez escavado por um mago.

Depois, precisaríamos de sacos e sacos de sal e ferro e de uma pedra

realmente grande.

O Mago sorriu.

— Tem toda a razão, rapaz, haveria trabalho para metade dos pedreiros,

aparelhadores e ajudantes do Condado! Vamos, agora vá se deitar.

Amanhã voltará às suas lições, por isso precisa dormir uma boa noite de

sono.

Quando abri a porta do meu quarto, Alice saiu das sombras nas escadas.

— Gosto muito deste lugar, Tom — disse, deitando-me um enorme

sorriso. — É uma bela casa, grande e quente. Um bom lugar para estar,

agora que o Inverno se aproxima.

Retribuí o sorriso. Podia ter-lhe dito que em breve partiríamos para

Anglezarke, para a casa de Inverno do Mago, mas ela estava feliz e não

quis estragar-lhe a primeira noite.

— Um dia esta casa nos pertencerá, Tom. Não o sente? — inquiriu.

Encolhi os ombros.

— Ninguém sabe o que vai acontecer no futuro —

referi, guardando a carta da Mãe no meu subconsciente.

— O Velho Gregory te disse, não disse? Bem, há muitas coisas que ele

não sabe. Será melhor mago do que ele alguma vez foi. Nada é mais

certo do que isso!

Alice virou-se e subiu as escadas meneando o quadril. De repente, olhou

para trás.

— O Destruidor estava desesperado pelo meu sangue — afirmou. — Por

isso fiz o acordo antes de ele beber. Eu só queria que tudo voltasse a

estar bem, por isso pedi-lhe que te deixasse e ao Velho Gregory em

liberdade. O Destruidor concordou. Um acordo é um acordo, por isso ele

não podia matar o Velho Gregory e também não podia lhe fazer mal.

Você matou o Destruidor mas eu fiz com que isso fosse possível. No fim,

foi por isso que me atacou. Não podia te tocar. Porém, não conte ao

Velho Gregory. Ele não iria entender.

Alice deixou-me ali estacado nas escadas enquanto as palavras dela iam

fazendo lentamente sentido na minha mente. De certa forma, ela

sacrificara-se. Ele a teria matado, tal como fizera com Naze. Mas ela

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salvara-me e ao Mago. Salvara as nossas vidas. E eu nunca o

esqueceria.

Atordoado com o que ela dissera, entrei no meu quarto e fechei a porta.

Demorei muito a adormecer.

Mais uma vez, a maior parte do que escrevi foi de memória, recorrendo

apenas ao meu livro de apontamentos quando necessário.

Alice tem-se portado bem e o Mago está muito satisfeito com o trabalho

dela. É rápida a escrever, sem que a sua caligrafia deixe de ser legível e

cuidadosa. Está também a cumprir o prometido, a contar-me as coisas

que Lizzie dos Ossos lhe ensinou para que eu as possa anotar todas.

Claro, muito embora Alice não o saiba ainda, não vai ficar muito tempo

conosco. O Mago disse-me que ela irá começar a distrair-me demais e

que não conseguirei me concentrar nos meus estudos. Não lhe agrada

ter uma garota com sapatos bicudos a viver na sua casa, especialmente

uma que esteve tão perto do escuro.

Estamos em finais de Outubro, e em breve partiremos para a casa de

Inverno do Mago em Anglezarke Moor. Ali perto, há uma fazenda gerida

por umas pessoas em quem o Mago confia. Acha que são capazes de

deixar Alice ficar com elas. Claro, obrigou-me a prometer-lhe não contar

nada a Alice por enquanto. De qualquer forma, vou ficar triste quando

ela partir.

É claro que irei conhecer Meg, a bruxa lâmia. Talvez conheça também a

outra mulher do Mago. Blackrod fica perto da charneca e é onde Emily

Burns supostamente vive ainda. Tenho a impressão de que há muitas

outras coisas no passado do Mago que ainda desconheço.

Preferia ficar em Chipenden, mas ele é o Mago e eu não passo do

aprendiz. E acabei por perceber que existe uma razão muito plausível

para tudo o que ele faz.

Thomas J. Ward

Fim

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AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Livro III

O SEGREDO DO MAGO

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CAPÍTULO 1

UMA VISITA INESPERADA

Era uma noite fria e escura de Novembro e Alice e eu estávamos

sentados na cozinha junto da chaminé com o meu mestre, o Mago. O

tempo ia esfriando cada vez mais e sabia que o Mago podia decidir a

qualquer momento que chegara a hora de partir para a sua «casa de

Inverno» na erma charneca de Anglezarke.

Eu não tinha qualquer pressa de partir. Só era aprendiz do Mago desde a

Primavera e nunca vira a casa de Anglezarke, mas não deixaria que a

minha curiosidade fosse mais forte do que eu. Sentia-me quente e

confortável aqui em Chipenden e era onde preferia ter passado o

Inverno.

Levantei a cabeça do livro dos verbos latinos que tentava aprender e

Alice captou o meu olhar. Estava sentada num escabelo perto da

chaminé, o seu rosto banhado pelo clarão quente da fogueira. Sorriu-me

e retribuí. Alice era a outra razão de eu não querer deixar Chipenden. Ela

era o mais próximo de uma amiga que eu alguma vez tivera e salvara-

me a vida numa série de ocasiões ao longo dos últimos meses. Fora

realmente muito agradável tê-la aqui conosco. Tornara mais suportável a

solidão da vida de um mago. Mas o meu mestre confidenciara-me que

ela nos deixaria em breve. Na realidade, nunca confiara nela porque

provinha de uma família de bruxas. Achava igual-1 Terreno árido e

pedregoso. No Brasil, curiosamente, o termo ganhou significado oposto,

representando área de características pantanosas, como brejos e

banhados.

mente que começaria a distrair-me das minhas lições, por isso quando o

Mago e eu fôssemos para Anglezarke, ela não viria conosco. A pobre

Alice nem tal sonhava e não tive coragem de lhe dizer, por isso, no

momento limitava-me a desfrutar aqueles nossos últimos preciosos

serões juntos em Chipenden.

Mas, afinal, acabou por ser mesmo o nosso último serão do ano:

enquanto Alice e eu estávamos sentados lendo ao clarão da fogueira e o

Mago cabeceava na sua cadeira, o toque do sino de chamamento veio

quebrar a nossa paz. Ante aquele som indesejável, o coração caiu-me

diretamente aos pés. Só podia significar uma coisa: assuntos de mago.

Page 352: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Sabem, é que nunca vinha ninguém na casa do Mago. Para começar,

teria sido esganado pelo demônio de estimação que guardava o

perímetro dos jardins. Por isso, apesar da luz a diminuir e do vento frio,

competia-me ir até lá abaixo ao sino no círculo de salgueiros e ver quem

necessitava de ajuda.

Sentia-me quente e confortável depois da ceia antecipada e o Mago deve

ter notado a minha relutância em partir. Abanou a cabeça como se

desiludido comigo, os seus olhos verdes chispando, ferozes.

— Vá lá embaixo, rapaz — resmungou. — Está uma noite péssima e

quem quer que seja não vai querer que o façam esperar!

Enquanto me levantava e pegava na minha capa, Alice esboçou-me um

sorriso compadecido. Sentia pena de mim, mas via também que estava

feliz ali sentada a aquecer as mãos enquanto eu tinha de sair para o

vento cortante.

Fechei com firmeza a porta de trás quando saí e, levando uma lanterna

na mão esquerda, atravessei o jardim ocidental e desci a colina, o vento

a esforçar-se bastante por me arrancar a capa das costas. Cheguei

finalmente às árvores pendentes, onde duas estradas se cruzavam.

Estava escuro e a minha lanterna lançava sombras perturbadoras, os

troncos e os ramos transformando-se em membros, garras e rostos de

trasgos. Por cima da minha cabeça, os ramos despidos dançavam e

sacudiam-se, o vento assobiando e uivando como uma banshee, um

espírito feminino que avisava de uma morte iminente.

Mas aquilo não me preocupava muito. Já estivera ali antes de escurecer

e, nas minhas viagens com o Mago, enfrentara coisas que os poriam de

cabelos em pé. Por conseguinte, não ia me incomodar por causa de

algumas sombras; estava à espera de ser recebido por alguém muito

mais nervoso do que eu me sentia. Provavelmente o filho de algum

agricultor enviado pelo pai atormentado por um fantasma e desesperado

por ajuda; um rapaz que estaria apavorado só de se aproximar da casa

do Mago.

Mas não era um rapaz que aguardava junto às árvores pendentes e

estaquei, surpreso. Ali, por debaixo da corda do sino, encontrava-se uma

figura alta vestindo uma capa preta com capuz, um bordão na mão

esquerda. Era outro mago!

O homem não se mexeu, de modo que me encaminhei para ele,

estacando à distância de apenas dois passos. Tinha ombros largos e era

ligeiramente mais alto do que o meu mestre, mas mal lhe conseguia ver

Page 353: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

o rosto pois o capuz mantinha as suas feições na sombra. Falou antes

que eu me pudesse apresentar.

— Sem dúvida ele estará a aquecer-se à lareira enquanto você vem

apanhar frio — afirmou o desconhecido, o forte sarcasmo na sua voz. —

Não muda mesmo!

— O senhor é Mr. Arkwright? — inquiri. — Sou Tom Ward, o aprendiz de

Mr. Gregory. .

Era um palpite bastante razoável. O meu mestre, John Gregory, era o

único mago que eu alguma vez conhecera mas sabia que existiam

outros, sendo o mais pró-

ximo Bil Arkwright, que exercia o seu ofício para lá de Caster, cobrindo

as regiões setentrionais que delimitavam o Condado. Por isso era muito

provável que este homem fosse ele — apesar de não adivinhar o que o

trazia ali.

O desconhecido retirou o capuz do rosto pondo a descoberto uma barba

preta salpicada de fios grisalhos e uma cabeleira preta rebelde prateada

nas têmporas. A boca dele sorriu mas os seus olhos eram frios e duros.

— Quem sou não é da sua conta, rapaz. Mas o seu mestre conhece-me

muito bem!

Ditas aquelas palavras, levou a mão dentro da capa, retirou um envelope

e entregou-me. Vireio, examinando-o rapidamente. Estava lacrado com

cera e vinha dirigido A John Gregory.

— Bem, ponha-se a andar, rapaz. Dê-lhe a carta e avise-o de que

voltaremos a nos encontrar em breve. Estarei à espera dele lá em

Anglezarke!

Fiz o que me mandavam, enfiando o envelope no bolso das calças,

satisfeito por poder me afastar dali, já que não me sentia confortável na

presença daquele desconhecido. Ainda mal me virará e dera alguns

passos, quando a curiosidade me fez olhar para trás. Para surpresa

minha, nem sinal dele sequer. Apesar de ele próprio não ter tido tempo

de dar mais do que alguns passos, desaparecera já nas árvores.

Intrigado, estuguei o passo, ansioso por voltar para a casa e abandonar

o vento frio e cortante. Ficara curioso quanto ao conteúdo da carta.

Houvera um tom de ameaça na voz do desconhecido e, pelo que

afirmara, não parecia que o desconhecido e o meu mestre fossem ter um

encontro amigável!

Com aqueles pensamentos a rodopiar na minha cabeça, passei o banco

onde o Mago me dava lições quando o tempo estava suficientemente

Page 354: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

quente, e cheguei às primeiras árvores do jardim ocidental. Mas depois

ouvi algo que me fez suster a respiração com o medo.

Retumbou no escuro um bramido estridente, vindo de baixo das árvores.

Foi tão intenso e aterrador que me deixou pregado ao chão. Era uma

rosnadela vibrante que se podia ouvir por quilômetros e já a escutara

antes. Sabia que era o demônio de estimação do Mago que se preparava

para defender o jardim. Mas do quê? Estaria a ser seguido?

Virei-me e ergui a lanterna, espreitando cheio de ansiedade no escuro.

Talvez o desconhecido tivesse vindo atrás de mim! Não conseguia ver

nada, de modo que apurei os ouvidos, à escuta do mais ínfimo som. Mas

só conseguia ouvir o vento a suspirar através das árvores e o ladrar

distante de um cão de fazenda. Por fim, satisfeito por não ter sido

sequer seguido, prossegui o meu caminho.

Ainda não dera outro passo quando o bramido de raiva voltou, desta vez

muito mais próximo. Os cabelos na minha nuca começaram a eriçar-se e

fiquei então ainda com mais medo ao sentir que a fúria do demônio me

era dirigida. Mas por que haveria de estar zangado comigo?

Eu não fizera nada de mal.

Mantive-me perfeitamente imóvel, não ousando dar outro passo,

temendo que o meu mais leve movimento pudesse levá-lo a atacar.

Estava uma noite fria, mas formava-me suor na testa e sentia

verdadeiramente medo.

— Sou só eu, Tom! — gritei finalmente na direção das árvores. — Não há

nada a temer. Trago apenas uma carta para o meu mestre. .

Ouviu-se um rosnado como resposta, desta vez muito mais suave e

distante, pelo que após alguns passos hesitantes, avancei rapidamente.

Quando cheguei à casa, o Mago estava emoldurado na porta de trás, de

bordão na mão. Ouvira o demônio e viera investigar.

— Está bem, rapaz? — gritou.

— Estou — respondi, gritando também. — O

demônio estava furioso, mas não sei porquê. Mas agora parece que se

acalmou.

Com um aceno da cabeça, o Mago voltou para dentro de casa,

guardando o seu bordão atrás da porta.

Quando o segui até à cozinha, ele estava de costas para a lareira,

aquecendo as pernas. Retirei o envelope do bolso.

— Estava um desconhecido lá em baixo, vestido como um mago —

contei-lhe, estendendo a carta. — Ele não quis me dizer o nome mas

Page 355: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

pediu-me para lhe entregar isto. . O meu mestre avançou e arrancou-me

a carta da mão. Imediatamente a vela em cima da mesa começou a

tremular, as chamas baixaram na grelha e um frio súbito encheu a

cozinha, tudo sinais de que o demônio ainda não estava apaziguado.

Alice pareceu alarmada e quase caiu do banquinho. Mas o Mago,

arregalando os olhos, rasgou o envelope e começou a ler.

Quando terminou, ficou carrancudo, a testa franzida de contrariedade.

Murmurando algo entre dentes, atirou a carta para o fogo, onde

irrompeu em chamas, encaracolando-se e enegrecendo antes de cair

para trás da grelha. Olhei para ele, estupefato. O seu rosto enchera-se

de fúria e parecia tremer da cabeça aos pés.

— Vamos partir amanhã de manhã bem cedo para a minha casa de

Anglezarke, antes que o tempo piore —

anunciou bruscamente, cravando os olhos em Alice —, mas você só nos

acompanhará até parte do caminho, mocinha. Vou te deixar perto de

Adlington.

— Adlington? — perguntei. — Isso é onde o seu irmão Andrew vive

agora, não é?

— É, rapaz, mas ela não ficará lá. Há um agricultor e a mulher nos

arredores da aldeia que, pelas minhas contas, me devem alguns favores.

Tiveram muitos filhos, mas infelizmente só um sobreviveu. Depois, para

somar à tragédia, houve uma filha que se afogou. O rapaz trabalha

agora fora a maior parte do tempo — a saúde começa a faltar à mãe e

convinha-lhe uma ajuda. Por isso vai ser a sua nova casa.

Alice olhou para o Mago, os seus olhos arregalando-se de espanto.

— A minha nova casa? Isso não é justo! — exclamou. — Por que não

posso ficar com você? Não fiz tudo o que pediu?

Alice não saíra da linha nem uma só vez desde o Outono, altura em que

o Mago a deixara vir viver conosco em Chipenden. Ganhara para o seu

sustento fazendo cópias de alguns dos livros da biblioteca do Mago, e

contara-me muitas coisas que a tia, a bruxa Lizzie dos Ossos, lhe

ensinara para que eu as pudesse anotar e aumentar os meus

conhecimentos de bruxaria.

— Sim, menina, fez o que te pedi, por isso não tenho razões de queixa

nessa matéria — referiu o Mago. —

Mas não é esse o problema. Treinar para ser mago é uma tarefa dura: a

última coisa de que Tom precisa é ser distraído por uma garota como

você. Não existe lugar para uma mulher na vida de um mago. Na

Page 356: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

verdade, é o único verdadeiro aspecto que temos em comum com os

padres.

— Mas onde foi buscar essa idéia de repente? Eu ajudei Tom, não o

distraí! — protestou Alice. — E não podia ter trabalhado mais

arduamente. Alguém lhe escreveu a dizer o contrário? — exigiu saber,

furiosa, fazendo um gesto na direção da parte de trás da grelha, para

onde caíra a carta queimada.

— O quê? — perguntou o Mago, arqueando os sobrolhos, mas

percebendo depois rapidamente daquilo a que ela se referia. — Não,

claro que não. Mas o que está na correspondência privada não é da sua

conta. De qualquer forma, já tomei a decisão — continuou, fitando-a

com dureza. — Por isso a discussão acaba aqui. Vai começar de novo. É

uma oportunidade tão boa como qualquer outra para que possa

encontrar o seu lugar neste mundo, mocinha. E será também a sua

última oportunidade!

Sem uma palavra ou sequer um olhar na minha direção, Alice virou

costas e subiu ruidosamente as escadas até ao quarto. Levantei-me para

segui-la e dizer-lhe algumas palavras de consolo mas o Mago chamou-

me.

— Você espera aqui, rapaz! Precisamos conversar antes de subir aquelas

escadas, por isso sente-se!

Fiz o que me mandavam e sentei-me ao pé da chaminé.

— Nada que você diga vai me fazer mudar de idéia!

Aceite isso desde já e será tudo muito mais fácil — advertiu-me o Mago.

— Até pode ser — redargui —, mas havia maneiras melhores de lhe

contar. Não podia ter falado mais delicadamente com ela?

— Tenho mais com que me preocupar do que os sentimentos da garota

— contrapôs o Mago.

Era inútil discutir com ele quando estava assim, de modo que poupei a

minha saliva. Não ficara satisfeito, mas não havia nada que eu pudesse

fazer a esse respeito.

Sabia que o meu mestre tomara a decisão há semanas e não ia mudá-la

agora. Pessoalmente, não entendia por que tínhamos afinal de ir para

Anglezarke. E por que íamos assim, tão repentinamente? Teria algo a

ver com o desconhecido e o que ele escrevera na carta? O demônio

reagira também de uma forma estranha. Seria por saber que eu trazia

aquela carta?

Page 357: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— O desconhecido disse que o encontraria em Anglezarke — proferi

atrapalhadamente. — Ele não me pareceu muito amistoso. Quem era?

O Mago fuzilou-me com o olhar, e cheguei a pensar que não me fosse

responder. Depois abanou a cabeça e murmurou algo entre dentes antes

de falar.

— O nome dele é Morgan e foi em tempos meu aprendiz. Um aprendiz

falhado, devo acrescentar, muito embora estudasse sob a minha

orientação durante quase cerca de três anos. Como sabe, nem todos os

meus aprendizes são bem-sucedidos. Ele não estava simplesmente à

altura do ofício, por isso guarda ressentimentos, é só. Espero que não o

veja enquanto estivermos lá em cima, mas se vir, mantenha-se bem

afastado. Ele só traz problemas.

Agora, vá lá para cima: como te disse, amanhã temos de partir cedo.

— Por que temos de ir passar o Inverno a Anglezarke? — inquiri. — Não

podíamos ficar antes aqui? Não seria mais confortável nesta casa? — Era

algo que não fazia simplesmente o menor sentido.

— Já fez perguntas suficientes para um dia! — retorquiu o Mago, a sua

voz cheia de irritação. — Mas vou te adiantar o seguinte. Nem sempre

fazemos as coisas porque as queremos fazer. E se pretende conforto,

então este ofício não é para você. Goste ou não, as pessoas precisam de

nós lá — especialmente quando as noites caem.

Somos necessários e é por isso que vamos. Agora pode subir. Nem mais

uma palavra!

Não era a resposta completa que eu esperara, mas o Mago tinha boas

razões para tudo o que fazia e eu era apenas o aprendiz com muito

ainda que aprender. Por isso, com um aceno obediente, fui me deitar.

Page 358: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 2

O ADEUS A CHIPENDEN

Alice estava sentada nas escadas do lado à porta do meu quarto

aguardando-me. Uma vela ao lado dela projetava sombras na porta.

— Não quero ir embora daqui, Tom — lamentou-se, pondo-se em pé. —

Tenho sido feliz aqui, de verdade que tenho. A casa de Inverno dele

também não seria má. O Velho Gregory não está a agir bem comigo!

— Lamento, Alice, até concordo, mas ele decidiu.

Não há nada que eu possa fazer.

Dava para ver que estivera a chorar mas não sabia o que mais dizer. De

repente, pegou-me na mão esquerda e apertou-a com força. — Por que

tem ele de ser sempre assim? — perguntou. — Por que detesta tanto as

mulheres e as jovens?

— Acho que ele foi muito magoado no passado —

referi delicadamente. Soubera recentemente algumas coisas sobre o

meu mestre mas até ao momento guardara-as só para mim. — Olhe,

vou contar-te algo agora, Alice, mas tem de prometer não revelar nada a

ninguém nem deixar que o Mago saiba que fui eu quem te disse!

— Prometo — murmurou, de olhos muito arregalados.

— Bem, lembra-se da altura em que ele quase te meteu no poço quando

voltamos de Priestown?

Alice anuiu. O meu mestre tratava da saúde das bruxas malévolas

mantendo-as aprisionadas vivas em poços. Estivera prestes a meter

Alice num há algum tempo, muito embora ela não o merecesse

realmente.

— Lembra-se do que eu gritei? — inquiri.

— Não consegui ouvir bem, Tom. Estava a debater-me e apavorada, mas

o que quer que tenha dito funcionou porque ele mudou de idéia. Ficarei

sempre grata por isso.

— Apenas lhe recordei que se ele não enfiara Meg no poço, também não

o deveria fazer com você!

— Meg? — interrompeu Alice. — Quem é ela?

Nunca a ouvi mencionar antes. .

— Meg é uma bruxa. Li tudo sobre ela num dos diários do Mago. Quando

era jovem apaixonou-se por ela.

Page 359: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Acho que lhe despedaçou o coração. E mais, ela continua a viver em

algum lugar lá em Anglezarke.

— Meg o quê?

— Meg Skelton.

— Não! Isso é impossível. Meg Skelton veio de partes estrangeiras.

Voltou para lá há anos. Todos sabem isso. Era uma bruxa lâmia e queria

voltar a estar com as da sua própria espécie.

Eu ficara sabendo muito sobre bruxas lâmia ao ler um livro na biblioteca

do Mago. A maior parte provinha da Grécia, onde a minha mãe vivera

em tempos e, no estado selvagem, alimentavam-se do sangue de

humanos.

— Bem, Alice, tem razão quanto ao fato de ela não ter nascido no

Condado, mas o Mago diz que ela ainda está aqui e que a vou conhecer

neste Inverno. Por isso, pode estar a viver na casa dele.

— Não seja tolo, Tom. Isso não é provável, não é?

Qual a mulher no seu perfeito juízo que viveria com ele?

— Ele não é tão mau assim, Alice — fiz-lhe ver. —

Temos partilhado ambos uma casa com ele durante semanas e sido

suficientemente felizes!

— Se Meg está vivendo na casa dele lá — afirmou Alice, com um sorriso

malvado no rosto —, não se admire se ele a tiver enterrado num poço.

Retribuí o sorriso. — Bem, descobriremos isso quando lá chegarmos —

disse-lhe.

— Não, Tom. Você descobrirá. Eu irei viver noutro lugar. Lembra-se?

Mas até nem é muito mau porque Adlington fica perto de Anglezarke —

referiu ela. — Não é uma grande caminhada, por isso podia vir visitar-

me, Tom. Faria isso? Faria isso por mim? Desse modo não me sentiria

tão sozinha. .

Apesar de não ter a certeza de que o Mago me deixaria ir visitada, quis

que se sentisse melhor. De repente, lembrei-me de Andrew.

— E então Andrew? — disse. — Ele é o único ir-mão que resta ao Mago e

vive e trabalha atualmente em Adlington. O meu mestre irá querer

visitá-lo de tempos em tempos, a viverem assim tão perto. E

provavelmente me levará consigo. Daremos sempre um pulo na aldeia,

tenho certeza, por isso não faltarão oportunidades para eu te ver. Alice

sorriu então e largou a minha mão. — Então faça isso, Tom. Ficarei à sua

espera. Não me desiluda. E

Page 360: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

obrigado por ter me contado essa coisa do Velho Gregory. Apaixonado

por uma bruxa, hein? Quem diria que ele era capaz?

Em seguida, pegou na vela e subiu as escadas. Iria realmente sentir

saudades de Alice, mas arranjar um pretexto para vê-la podia ser mais

difícil do que lhe dera a entender. Certamente o Mago não aprovaria. Ele

não tinha muito tempo para garotas e avisara-me em diversas ocasiões

que tivesse cuidado com elas. Contara já a Alice o suficiente sobre o

meu mestre, talvez até demais, mas havia mais coisas no passado do

Mago do que apenas Meg.

Ele também se envolvera com outra mulher, Emily Burns, que estava já

comprometida com outro dos seus irmãos.

Este morrera entretanto mas o escândalo dividira a família, causando

muitos problemas. Supostamente, Emily estaria a viver em algum lugar

próximo de Anglezarke. Não existe uma só versão da mesma história e

não ia me pôr a julgar o Mago enquanto não soubesse mais; mesmo

assim, eram mulheres demais para qualquer homem do Condado: o

Mago tivera sem dúvida uma vida agitada!

Entrei no meu quarto e coloquei a vela em cima da mesa-de-cabeceira

ao lado da cama. Havia perto dos pés dela uma quantidade de nomes

escrita numa parede, ra-biscados ali por antigos aprendizes. Alguns

tinham concluído com êxito a sua preparação com o Mago: o nome de Bil

Arkwright encontrava-se precisamente no canto superior esquerdo.

Muitos haviam falhado, não chegando ao fim do tempo. Alguns tinham

inclusivamente morrido.

O nome de Bily Bradley figurava ali no outro canto. Fora aprendiz antes

de mim mas cometera o erro de deixar que um demônio lhe arrancasse

os dedos. Bily morrera do choque e da perda de sangue.

Observei a parede com atenção naquela noite.

Tanto quanto sabia, quem quer que tivesse ocupado aquele quarto

escrevera ali o seu nome, incluindo eu. O

meu próprio nome era bastante pequeno porque não restava muito

espaço, mas figurava lá mesmo assim. No entanto, pelo que me era

dado ver, faltava um nome. Inspecionei cuidadosamente a parede para

me certificar, mas rinha razão: não havia nenhum «Morgan» escrito na

parede. Por que seria então?

O Mago dissera que ele fora seu aprendiz, nesse caso, o que o levara a

não acrescentar o seu nome?

O que houvera de tão diferente em Morgan?

Page 361: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Na manhã seguinte, depois de um desjejum rápido, fizemos as trouxas e

preparamo-nos para partir. Pouco antes de sairmos, dei uma escapada à

cozinha para me despedir do demônio de estimação do Mago.

— Obrigado por todas as refeições que preparou

— disse em voz alta para o ar vazio.

Não sabia bem se o Mago ficaria muito satisfeito com a minha

deslocação especial à cozinha para agradecer: estava sempre a falar de

manter a devida distância dos

«serviçais».

Fosse como fosse, sei que o demônio gostou do elogio porque mal acabei

de proferi-lo comecei a ouvir um ronronar cavo debaixo da mesa da

cozinha e tornou-se tão forte que os tachos e panelas começaram a

bater. O demônio era praticamente invisível, mas de vez em quando

assumia a forma de um gato grande cor de camarão.

Hesitei, enchi-me de coragem e voltei a falar. Não cheguei a saber como

iria o demônio reagir ao que eu tinha a dizer.

— Desculpe se te fiz se zangar a noite passada —

disse-lhe. — Só estava fazendo o meu trabalho. Foi a carta que te

incomodou?

O demônio não podia falar, de modo que não iria obter uma resposta por

palavras. O instinto levara-me a fazer a pergunta. Uma sensação de que

era a atitude certa.

De repente, veio uma lufada de ar pela chaminé, um tênue cheiro de

fuligem, depois um fragmento de papel elevou-se da grelha e veio

assentar no tapete da lareira.

Avancei e apanhei-o. Estava queimado nas pontas e uma parte desfez-se

nos meus dedos, mas sabia que era tudo o que restava da carta que eu

entregara a pedido de Morgan.

Havia apenas algumas palavras no pedaço de papel chamuscado e olhei

para elas por um tempo antes de as conseguir entender:

Dê-me o que me pertence senão farei com que se arrependa de ter

sequer nascido. Pode começar por

Era tudo o que restava, mas bastava para me dizer que Morgan estava

ameaçando o meu mestre. Do que se tratava? O Mago tirara algo de

Morgan? Algo que lhe pertencia por direito? Não imaginava o Mago a

roubar nada.

Ele não era desses. Não fazia o menor sentido.

Page 362: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Os meus pensamentos foram perturbados pelo Mago a gritar da porta da

frente. — Apresse-se, rapaz! O

que está fazendo? Não se demore! Não temos o dia todo!

Amassei o papel e atirei-o de novo para a grelha, peguei no meu bordão

e corri para a porta. Alice já se encontrava lá fora mas o Mago estava na

soleira, olhando-me com desconfiança, dois sacos aos seus pés. Não

levávamos muita coisa, mas teria de carregar ambos.

Entretanto, o Mago dera-me um saco só para mim, apesar de ainda não

ter muito que meter lá dentro. Continha apenas uma corrente de prata

que me fora dada pela minha mãe, uma caixa de mechas, que fora um

presente de partida do meu pai, os meus livros de notas e algumas

roupas. Algumas das minhas meias estavam tão engomadas que quase

pareciam novas, mas o Mago comprara-me um casaco de pele de

carneiro para o Inverno, que era muito quente, e usava-o por debaixo da

minha capa. Tinha também o meu próprio bordão — um novo que o meu

mestre talhara pessoalmente em madeira de sorveira, que era muito

eficaz contra a maior parte das bruxas.

O Mago, apesar de reprovar Alice, fora generoso com o vestuário dela.

Dera-lhe também um casaco de Inverno novo, de lã preta que lhe

chegava quase aos tornozelos; tinha um capuz acoplado para lhe manter

as orelhas quentes.

O frio não parecia incomodar muito o Mago e usava a capa e o capuz tal

como fazia na Primavera e no Verão. A sua saúde estivera debilitada nos

últimos meses, mas agora parecia ter se recuperado e encontrava-se

mais forte do que nunca.

O Mago trancou a porta da frente depois de sairmos, semicerrou os olhos

para o sol de Inverno e partiu a um ritmo furioso. Peguei em ambos os

sacos e segui o melhor que podia, com Alice logo atrás de mim.

— Oh, a propósito, rapaz — gritou o Mago por cima do ombro —, vamos

passar pela fazenda do seu pai a caminho do sul. Ele ainda me deve dez

guinéus como último pagamento pela sua preparação!

Fiquei triste por deixar Chipenden. Acostumara-me à casa e aos jardins e

lamentava que eu e Alice fôssemos ficar separados a partir de agora.

Mas pelo menos tinha oportunidade de ver a minha mãe e o meu pai.

Por isso o meu coração pulou de felicidade e havia uma nova energia no

meu passo. Ia a caminho de casa!

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CAPÍTULO 3

A IDA A CASA

Ao viajarmos para sul, olhava constantemente para as extensões

rochosas. Subira-as tantas vezes quase até alcançar as nuvens que

algumas delas eram mesmo velhas amigas, em particular Parlick Pike,

que ficava mais próxima da casa de Verão do Mago. Mas, ao final do

segundo dia de caminhada, aquelas enormes colinas familiares não

passavam de uma linha baixa e purpúrea no horizonte e muito jeito me

deu o meu casaco novo. Tínhamos já dormido uma noite desconfortável

enregelados num celeiro sem telhado e, apesar de o vento ter abrandado

e o sol brilhar timidamente, parecia agora estar a ficar mais frio a cada

hora que passava.

Aproximamo-nos finalmente de casa, e a ansiedade de voltar a ver a

minha família aumentava a cada passo.

Estava desesperado por ver o meu pai. Na minha última visita ele

estivera a recobrar de uma doença grave, com poucas chances de

alguma vez recuperar plenamente a saúde. De qualquer forma, ele já

tencionava deixar de trabalhar e entregar a fazenda ao meu irmão mais

velho, Jack, no princípio do Inverno. Mas a doença dele viera precipitar

os acontecimentos. O Mago chamara-lhe de a fazenda do meu pai, mas

na realidade assim já não sucedia.

Subitamente, lá em baixo, avistei o celeiro e a familiar casa da fazenda

com uma pluma de fumaça a elevar-se da chaminé. A manta de retalhos

dos campos circundantes e as árvores despidas pareciam desolados e

invernosos e ansiei aquecer as mãos na lareira da cozinha.

O meu mestre parou ao fundo do caminho.

— Bem, rapaz, não me parece que o seu irmão e a mulher dele vão ficar

muito entusiasmados por nos verem. Os assuntos dos magos

incomodam muita gente, por isso não devemos contrariá-los. Vá lá

buscar o meu dinheiro; a garota e eu ficaremos aqui à espera. Sem

dúvida estará ansioso por voltar a ver a sua família, mas não se demore

mais de uma hora. Enquanto estiver sentado junto a um fogo quente,

nós estaremos aqui a bater o dente!

Ele tinha razão: o meu irmão Jack e a mulher não gostavam dos

assuntos dos magos e tinham-me avisado no passado para não os levar

Page 364: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

até à porta deles. Por isso, deixei Alice e o Mago e subi correndo o

caminho em direção à fazenda. Quando abri o portão, os cães

começaram a ladrar e Jack apareceu vindo da lateral do celeiro.

Não nos tínhamos dado muito bem desde que eu me tornara aprendiz do

Mago, mas daquela vez pareceu satisfeito por me ver e o seu rosto

iluminou-se num sorriso rasgado.

— Fico feliz em te ver, Tom — disse, passando o braço pelos meus

ombros.

— E eu também, Jack. Mas como está o Pai? —

inquiri.

O sorriso desapareceu do rosto do meu irmão tão rapidamente quanto

surgira.

— A verdade, Tom, é que não acho que ele esteja muito melhor do que

da última vez que esteve aqui. Há uns dias em que notamos umas

melhoras, mas logo de manhã ele tosse e cospe tanto que mal consegue

respirar.

Dói só de ouvir. Queremos ajudá-lo mas não há nada que possamos

fazer.

Abanei a cabeça, pesarosamente.

— Pobre Pai. Vou passar o Inverno ao sul — informei-o —, e vim só

buscar o resto do dinheiro que o Pai deve ao Mago. Gostaria de poder

ficar, mas não dá. O

meu mestre está à espera no fundo do caminho. Partiremos novamente

dentro de uma hora.

Não mencionei Alice. Jack sabia que ela era sobrinha de uma bruxa e

tinha pouca tolerância com ela. Já antes houvera muitas razões e não

queria que a cena se repetisse.

O meu irmão virou-se e olhou para o caminho antes de me mirar de alto

a baixo.

— Está sem dúvida vestido a caráter— comentou com um sorriso

forçado.

Ele rinha razão. Eu deixara os sacos com Alice, mas com a capa preta

vestida e segurando o meu bordão parecia mesmo uma versão menor do

meu mestre.

— Gosta do casaco? — perguntei, afastando a capa para ele o poder ver

melhor.

— Parece quente.

Page 365: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Mr. Gregory comprou-o para mim. Diz que vou precisar dele. Ele tem

uma casa em Anglezarke Moor, não muito longe de Adlington. É onde

vamos passar o Inverno e faz por lá um frio de rachar.

— Sim, irá fazer frio por lá — pode ter certeza disso! Antes você do que

eu. De qualquer forma, é melhor voltar para as minhas tarefas — disse

Jack. — Não deixe a Mãe à espera. Hoje tem estado muito alegre e

animada.

Devia saber que vinha.

Dito aquilo, Jack afastou-se atravessando o pátio, parando para acenar

da esquina do celeiro. Acenei também e depois encaminhei-me para a

porta da cozinha.

Muito provavelmente a Mãe soubera que eu vinha a caminho. Ela tem

aquela maneira de sentir as coisas. Como parteira e curandeira, sabe

muitas vezes quando alguém vem pedir-lhe ajuda.

Quando empurrei a porra de trás, encontrei a Mãe sentada na sua

cadeira de balanço junto ao fogo. As cortinas estavam corridas porque

ela é muito sensível à luz do sol. Sorriu-me quando entrei na cozinha.

— Que bom te ver, filho — disse-me. — Venha aqui dar-me um abraço e

depois pode contar-me todas as suas novidades!

Aproximei-me e ela me abraçou com força. Puxei depois uma cadeira

para o pé dela. Acontecera muita coisa desde a última vez que vira a

Mãe no Outono, mas enviara-lhe uma longa carta a falar-lhe dos perigos

que enfrentara com o meu mestre durante as fases derradeiras de um

trabalho em Priestown.

— Recebeu a minha carta, Mãe?

— Recebi, sim, Tom, e lamento muito não ter respondido, mas isto tem

estado complicado por aqui e sabia que passaria por aqui a caminho do

sul. Como se tem portado Alice?

— Ela acabou por seguir o caminho certo, Mãe, e está satisfeita vivendo

conosco em Chipenden, mas o problema é que o Mago ainda não confia

nela. Vamos pa-ra a sua casa de Inverno mas Alice vai ficar numa

fazenda com pessoas que nunca viu.

— Pode parecer duro — respondeu a Mãe —, mas tenho certeza de que

Mr. Gregory sabe o que está fazendo. Será tudo para o bem dela.

Quanto a Anglezarke, tenha cuidado por lá, filho. É uma charneca

sinistra e erma.

Calculo que Alice tenha tido sorte.

Page 366: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Jack contou-me do pai. É tão mau quanto esperava, Mãe? —

perguntei. Da última vez que a vira, escondera de Jack os piores receios

mas dera-me a entender que a vida do Pai se aproximava do fim.

— Contava que ele ganhasse um pouco mais de forças. Precisa ser

vigiado com cuidado para aguentar o Inverno, e estou desconfiada que

terá o mesmo rigor de outros que vi desde a minha vinda para o

Condado. Ele agora está lá em cima a dormir. Levar-te-ei a vê-lo daqui a

alguns minutos.

— No entanto, Jack parece mais animado — referi, tentando desanuviar.

— Talvez tenha aceito a idéia de ter um mago na família.

A Mãe esboçou um largo sorriso.

— E deveria estar, mas, cá para mim, tem mais a ver com o fato de Ellie

estar novamente grávida e desta vez é um rapaz — tenho certeza. Jack

sempre quis um filho. Alguém que herdasse um dia a fazenda.

Fiquei feliz por Jack. A Mãe nunca se enganava naquelas coisas. Depois

percebi que a casa parecia sossegada. Quase demasiado sossegada.

— Onde está Ellie? — inquiri.

— Que pena, Tom, escolheu o dia errado para vir de visita. Quase todas

as quartas-feiras, ela vai visitar a mãe e o pai, levando consigo a

pequena Mary. Devia ver aquela criança agora! Está enorme para oito

meses e gatinha tão depressa que são precisos sete olhos para tomar

conta dela! Seja como for, sei que o seu mestre está à sua espera e faz

frio ali, por isso vamos lá acima ver o seu pai.

O Pai dormia profundamente, com quatro almofadas nas costas, pelo

que estava quase sentado.

— Ele respira mais facilmente naquela posição —

explicou a Mãe. — Ainda tem os pulmões um pouco congestionados.

O Pai respirava ruidosamente; o seu rosto estava macilento e havia uma

linha de suor na testa. A verdade é que ele parecia bastante doente —

uma mera sombra do homem forte e saudável que em tempos tomara

conta da fazenda sozinho ao mesmo tempo que era um bom pai

carinhoso para os sete filhos.

— Olhe, Tom, sei que gostaria de lhe dar uma palavrinha ou duas mas

ele não dormiu nada a noite passada.

É preferível não o acordarmos agora. O que me diz?

— Com certeza, Mãe — concordei, mas fiquei triste por não poder falar

com o meu pai. Estava tão doente, sabia que podia nunca mais voltar a

vê-lo.

Page 367: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Bem, dê-lhe apenas um beijo, filho, e vamos deixá-lo dormir. .

Olhei para a minha mãe, espantado. Não me lembrava da última vez que

dera um beijo no Pai. Uma palmada no ombro ou um aperto de mão

rápido seria mais o caso. — Vamos, Tom, dê-lhe apenas um beijo na

testa

— insistiu a Mãe. — E deseje-lhe as melhoras. Ele pode estar dormindo

mas uma parte de si ouvirá o que disser e o fará sentir-se aliviado.

Fitei a Mãe e os seus olhos cruzaram-se com os meus. Havia firmeza no

seu olhar e senti a força da sua vontade. Então, fiz exatamente o que ela

pedia. Debrucei-me sobre a cama e beijei o pai de leve na testa quente e

úmida. Notei um cheiro estranho que não soube bem identificar. Um

cheiro de flores. Um tipo de flor a que não consegui atribuir um nome.

— Rápidas melhoras, Pai — murmurei muito baixinho. — Virei aqui na

Primavera e nos veremos então. A minha boca ficou subitamente seca, e

quando lambi os lábios, senti o gosto de sal da testa dele. A Mãe sorriu

com pesar e apontou para a porta do quarto.

Quando a seguia até lá fora, o Pai começou a tossir e a pigarrear atrás

de mim. Virei-me, preocupado e, naquele momento, ele abriu os olhos e

viu-me.

— Tom! Tom! É você? — chamou, antes de dar início a outro ataque de

tosse.

A Mãe voltou para trás e debruçou-se ansiosamente sobre o Pai,

acariciando-lhe delicadamente a testa até a tosse passar por fim.

— Tom está aqui — disse-lhe —, mas não se canse com conversa

demais.

— Está se esforçando, rapaz? O seu mestre está satisfeito com você? —

perguntou o Pai, mas a sua voz era fraca e áspera, como se tivesse algo

preso na garganta.

— Sim, Pai, está a correr bem. Na verdade, essa é uma das razões por

que estou aqui — disse-lhe, aproximando-me da cama. — O meu mestre

vai sem dúvida continuar a ensinar-me e quer os últimos dez guinéus

que lhe deve para pagar o meu aprendizado.

— Que boas notícias, filho. Estou muito satisfeito por você. Gostou então

de trabalhar em Chipenden?

— Gostei, Pai — afirmei com um sorriso —, mas agora vamos passar o

Inverno na casa dele em Anglezarke Moor. De repente, o Pai ficou

alarmado.

— Oh, quem me dera não ter de ir para lá, filho —

Page 368: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

disse, olhando para a Mãe. — Contam histórias estranhas sobre aquele

lugar, e nenhuma delas boa. Todo o cuidado é pouco quando lá estiver.

Certifique-se de que se mantenha perto do seu mestre e escute com

atenção tudo o que ele diz.

— Ficarei bem, Pai. Não se preocupe. Aprendo mais a cada dia que

passa.

— Tenho certeza que sim, filho. Devo confessar que tive as minhas

dúvidas quanto a fazer o seu aprendizado para mago, mas a sua mãe

tinha razão. É uma tarefa árdua mas alguém tem de a fazer. Ela contou-

me as suas proezas até ao momento, e orgulho-me realmente muito de

ter um filho tão corajoso. Não tenho preferidos, atenção. Tive sete filhos,

todos bons moços. Adoro todos os meus rapazes e orgulho-me muito de

cada um, mas tenho um pressentimento de que é capaz de vir a ser o

melhor da prole.

Limitei-me a sorrir, sem saber o que dizer. O Pai sorriu também, depois

fechou os olhos e, passados momentos, o ritmo da sua respiração

mudou e ele mergulhou de novo no sono. A Mãe indicou a porta e

saímos do quarto. Quando voltamos para a cozinha, perguntei à Mãe

sobre o estranho cheiro.

— Fez a pergunta, por isso não vou tentar escondê-lo de você, Tom —

referiu. — Para além de ser o sétimo filho de um sétimo filho, herdou

algumas coisas de mim. Somos ambos sensíveis ao que chamamos

«avisos de morte». Portanto, o que cheirou é a aproximação da morte..

Senti um nó na garganta e as lágrimas começaram a picar por detrás

dos meus olhos. Imediatamente a Mãe avançou e abraçou-me.

— Oh, Tom, procura não se enervar. Não significa que o seu pai vá

necessariamente morrer daqui a uma semana, um mês ou mesmo um

ano. Mas quanto mais forte o cheiro, mais próxima a morre está. Se

alguém se recupera plenamente, o cheiro desaparece. E pode suceder o

mesmo com o seu pai. Há dias em que o cheiro quase nem sequer se

nota. Estou fazendo o meu melhor por ele e ainda há esperança. De

qualquer forma, pronto, já te contei e sempre aprende algo mais.

— Obrigado, Mãe — respondi com tristeza, preparando-me para partir.

— Não vá embora nesse estado — disse a Mãe, a sua voz suave e

bondosa. — Sente-se aí ao pé do fogo que vou preparar uns sanduíches

para a viagem.

Obedeci-lhe enquanto ela preparava rapidamente um embrulho com

sanduíches de presunto e frango para nós os três.

Page 369: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Não estamos nos esquecendo de nada? — indagou ela quando me

entregou o embrulho.

— O dinheiro de Mr. Gregory! — respondi. Esquecera-me por completo.

— Espere aí, Tom — disse ela. — Vou num instante buscá-lo no meu

quarto.

Por «meu quarto» não estava a referir-se ao quarto de dormir que

partilhava com o Pai. Falava do quarto trancado próximo do topo da casa

onde guardava os seus pertences. Só entrara lá uma vez desde que

começara a andar, e fora depois quando ela me dera a corrente de

prata. Mais ninguém entrava naquele quarto. Nem sequer o Pai.

Havia lá muitas caixas e arcas mas não imaginava o que pudessem

conter. Pelo que a Mãe acabara de dizer, também lá havia dinheiro. Fora,

antes de mais, o dinheiro da Mãe que comprara a nossa fazenda.

Trouxera-o consigo do seu país, a Grécia.

Antes de partir, a Mãe entregou-me o embrulho de sanduíches e contou

dez guinéus na minha mão. Quando me olhou nos olhos, detectei neles a

preocupação.

— Vai ser um Inverno longo, duro e cruel, filho.

Todos os sinais estão lá. As andorinhas voaram para sul quase um mês

antes do habitual e a primeira geada chegou quando as minhas últimas

rosas ainda estavam em flor —

algo nunca visto antes. Vai ser difícil e não creio que nenhum de nós lhe

vá sobreviver sem mudanças. E não poderia haver pior lugar onde

passá-lo do que em Anglezarke. O seu pai estava preocupado com você,

filho, e eu também estou. E as suas palavras estavam certas. Por isso

vou deixar de rodeios. Não há dúvida que o escuro está a ganhar força e

existe uma influência particularmente sinistra lá naquela charneca.

Alguns dos Deuses Antigos eram venerados ali, há muito tempo, e no

Inverno alguns deles começam a agitar-se no sono. O pior deles era

Golgoth, a quem alguns chamam o Senhor do Inverno. Por isso fique

perto do seu mestre. Ele é o único verdadeiro amigo que tem. Precisam

ajudar-se um ao outro.

— E então Alice?

A Mãe abanou a cabeça.

— Pode ser que ela fique bem e pode ser que não.

Sabe, lá naquela charneca fria vai estar mais próximo do escuro do que

na maior parte dos outros lugares do Condado, por conseguinte, essa

proximidade irá submetê-la a uma nova prova. Espero que ela a vença,

Page 370: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

mas não consigo ver o resultado. Faça apenas o que te disse. Trabalhe

em conjunto com o seu mestre. Isso é que conta.

Abraçamo-nos mais uma vez, depois disse adeus e voltei a descer o

caminho.

Page 371: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 4

A CASA DE INVERNO

Quanto mais nos aproximávamos de Anglezarke, pior o tempo ficava.

Começara a chover e o vento frio de sudeste aumentou até bater com

força nos nossos rostos, as nuvens cinzentas baixas e opressivas como

um peso de chumbo a pairar por cima das nossas cabeças. Mais tarde, o

vento soprou ainda com maior intensidade e a chuva deu lugar a neve e

granizo. O solo tornou-se lama debaixo dos nossos pés e progredíamos

muito lentamente. Para piorar a situação, só encontrávamos áreas de

terra coberta de musgo e pântano traiçoeiro enlameado, e foi necessária

toda a sabedoria do Mago para sairmos dali em segurança.

Mas na manhã do terceiro dia, a chuva abrandou e as nuvens dissiparam

pelo que pudemos ver uma linha lúgubre de colinas mesmo lá à frente.

— Ali está! — anunciou o Mago, apontando para a linha do horizonte

com o seu bordão. — Anglezarke Moor. E além, cerca de seis

quilômetros e meio para sul —

repetiu o gesto —, fica Blackrod.

Estávamos distantes demais para ver a aldeia. Julguei conseguir

distinguir alguns fios de fumaça mas podiam ser nuvens.

— Como é Blackrod? — perguntei. O meu mestre mencionava-a de

tempos a tempos, por isso imaginei que fosse o lugar onde iria buscar as

nossas provisões semanais.

— Não é um lugar tão simpático quanto Chipenden, por isso é melhor

evitá-lo — sugeriu o Mago. — Vivem lá pessoas estranhas e muitas delas

são família. Eu nasci lá por isso sei o que digo. Não, Adlington é um

lugar bem mais agradável e agora já não falta muito para chegarmos.

Cerca de um quilômetro e meio para norte fica o lugar onde iremos te

deixar, mocinha — dirigiu-se a Alice.

— Chama-se Moor View Farm. Irá ficar com Mr. e Mrs.

Hurst, que são os donos.

Cerca de uma hora depois chegamos a uma casa de fazenda isolada

perto de um lago grande. Quando o Mago avançou, os cães começaram

a ladrar; não tardou a encontrar-se no pátio, a falar com um velho

agricultor que não parecia lá muito satisfeito de vê-lo. Passados cerca de

Page 372: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

cinco minutos a mulher reuniu-se a eles. Não foi trocado um único

sorriso entre os três.

— Não vou ser bem-vinda aqui, tenho certeza! —

referiu Alice, descaindo os cantos da boca.

— Pode ser que não seja muito mau — disse-lhe, tentando animada. —

Não se esqueça, eles perderam uma filha. Há pessoas que nunca

recuperam de uma tragédia dessas.

Enquanto esperávamos, observei a fazenda com mais atenção. Não

parecia muito próspera e a maior parte dos edifícios encontrava-se em

ruínas. O celeiro estava inclinado e parecia que a próxima tempestade o

derrubaria. Tudo o que se avistava tinha um ar lúgubre. Não pude deixar

de ficar também curioso a respeito do lago ali próximo. Era uma

extensão desconsolada de água cinzenta delimitada por pântano ao

fundo, apenas com alguns salgueiros atrofiados na margem mais

próxima. Fora ali que se afogara a filha deles? Sempre que fossem às

janelas da frente, os Hursts recordar-se-iam do que acontecera.

Passados alguns minutos o Mago virou-se e fez-nos sinal para nos

aproximarmos e lá nos arrastamos pela lama em direção ao pátio.

— Este é o meu aprendiz, Tom — disse o Mago, apresentando-me ao

velho lavrador e à mulher.

Sorri e saudei-os. Ambos me baixaram a cabeça mas não retribuíram o

meu sorriso.

— E esta é a jovem Alice — continuou o Mago. —

É muito trabalhadora e será muito útil para ajudar na casa.

Sejam firmes mas gentis com ela e não lhe dará problemas. Olharam

Alice de alto a baixo mas não abriram a boca; após um breve aceno na

direção deles e um breve sorriso, pregou os olhos nos seus sapatos

bicudos. Percebi que estava infeliz; a sua estada na casa dos Hursts não

começava lá muito esperançosa. Na realidade, não a culpava. Tinham

ambos um ar infeliz e derrotado, como tivessem sido vencidos pela vida.

Os sulcos fundos no rosto e na testa de Mr. Hurst sugeriam que tinha

mais prática de franzir os sobrolhos do que de dar gargalhadas.

— Têm visto Morgan ultimamente? — inquiriu o Mago. Ante o uso súbito

do nome «Morgan» levantei bruscamente a cabeça e vi a pálpebra

esquerda de Mr.

Hurst tremelicar e entrar em espasmos. Parecia nervoso.

Talvez até assustado. Teria sido o mesmo Morgan que me entregara a

carta para o Mago?

Page 373: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Não muito — respondeu Mrs. Hurst taciturna-mente, sem encarar o

Mago. — Ele fica aqui uma noite ou outra, mas vai e vem como lhe

apraz. No momento tem-se mantido principalmente afastado.

— Quando foi a última vez que ele esteve aqui?

— Há duas semanas. Talvez mais...

— Bem, quando ele aparecer aqui de novo, diga-lhe que gostaria de lhe

dar uma palavrinha ou duas. Diga-lhe que apareça lá em casa.

— Sim, lhe direi.

— Mas diga mesmo. Bem, nós vamos andando.

O Mago deu meia volta e peguei no meu bordão e nos dois sacos e

segui-o. Alice veio correndo atrás de mim e agarrou-me o braço,

obrigando-me a parar.

— Não se esqueça do que prometeu — murmurou ao meu ouvido

esquerdo. — Venha visitar-me e que não passe mais de uma semana.

Estou a contar com você, olhe que estou mesmo!

— Virei te ver, não se preocupe — respondi-lhe, esboçando um sorriso.

E depois, foi ter com os Hursts e vi os três entrarem na casa da fazenda.

Senti realmente pena de Alice, mas não podia fazer nada.

Quando deixamos para trás Moor View Farm, falei ao Mago do que me

começara a preocupar.

— Eles não pareceram muito satisfeitos por receberem Alice — comentei,

esperando que o Mago me contradissesse. Para meu choque e surpresa,

ele deu-me razão.

— Sim, lá isso é verdade, não ficaram mesmo nada satisfeitos. Mas não

tiveram outra alternativa. Sabe, os Hursts devem-me uma quantia

razoável. Por duas vezes os livrei de demônios perturbadores. E ainda

não recebi uma moeda sequer pelo meu trabalho árduo. Concordei em

saldar a dívida deles se recebessem Alice.

Nem queria acreditar no que ouvia. — Mas isso não é justo para Alice! —

protestei. — Eles podem tratá-la mal.

— Aquela jovem sabe tomar conta de si, como você muito bem sabe —

redarguiu com um sorriso forçado.

— Além disso, calculo que não vá conseguir ficar longe e virá visitá-la de

tempos em tempos para ver se está bem.

Quando abri a boca para protestar, o sorriso do Mago alargou-se ainda

mais pelo que parecia um lobo esfomeado, abrindo as mandíbulas para

arrancar a cabeça à sua presa.

— Então, estou certo? — perguntou-me.

Page 374: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Anuí.

— Bem que achei, rapaz. Já te conheço suficientemente bem agora. Por

isso não se preocupe demais com a garota. Preocupe-se mas é consigo.

Provavelmente vai ser um Inverno difícil. Que nos irá testar até aos

limites das nossas forças. Anglezarke não é lugar para os fracos e os

medrosos!

Algo mais estava a me intrigar, de modo que decidi deitá-lo para fora do

peito. — Ouvi-o perguntar aos Hursts por alguém chamado Morgan —

referi. — É o mesmo Morgan que lhe enviou a carta?

— Bem, espero sinceramente que não existam dois, rapaz! Um já dá

trabalho suficiente.

— Portanto, às vezes ele fica na casa dos Hursts?

— Fica sim, rapaz, que é o que se espera dado ser filho deles.

— E mandou Alice para casa dos pais de Morgan!

— articulei, estupefato.

— Sim. E sei o que estou fazendo, por isso chega de perguntas por ora.

Vamos prosseguir. Precisamos chegar lá muito antes de anoitecer.

Desde o primeiro momento em que as vira de perto, gostara do aspecto

das extensões rochosas à volta de Chipenden, mas de certa forma

Anglezarke Moor era diferente. Não conseguia perceber bem o que era,

mas quanto mais nos aproximávamos mais o meu ânimo se afundava.

Talvez fosse o fato de a estar vendo na última parte do ano, em que era

mais triste e o Inverno se aproximava.

Ou talvez fosse a própria charneca escura a erguer-se diante de mim

como um gigantesco animal adormecido, as nuvens a cobri-la das suas

alturas sombrias. Mais provavelmente, seria por todos terem me avisado

a seu respeito dizendo-me quão rigoroso iria ser o Inverno. Fosse como

fosse, senti-me ainda pior quando vi a casa do Mago, o lugar sinistro

onde iríamos ficar nos próximos meses.

Aproximamo-nos dela seguindo um regato em direção à nascente,

subindo o que o Mago chamou uma «ravina», que era uma fenda na

charneca, um vale fundo e estreito com vertentes íngremes a erguer-se

de cada lado.

A princípio, as vertentes eram apenas seixos, mas não tardou que essas

pedras soltas dessem lugar a tufos de erva e rocha descoberta, e as

escarpas escuras da ravina parecessem aproximar-se de ambos os lados.

Após cerca de vinte minutos a ravina curvava para a esquerda, e de

repente a casa do Mago surgiu lá em frente, construída mesmo

Page 375: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

encostada à superfície da escarpa à nossa direita. O meu pai costumava

dizer que a nossa primeira impressão de algo está quase sempre correta,

por isso o coração caiu-me logo aos pés. Era o final da tarde e a luz

enfraquecia já, o que também não ajudava. A casa era maior e mais

imponente do que a de Chipenden, mas fora construída com pedra muito

mais escura, o que lhe conferia manifestamente um aspecto sinistro.

Para além de que as janelas eram pequenas, o que, combinado com o

fato de a casa ter sido construída numa ravina, tornaria certamente os

quartos lá dentro muito escuros. Era uma das casas menos convidativas

que eu alguma vez vira.

O pior de tudo, porém, era não ter jardim. Como referi, a casa fora

construída logo junto à escarpa rochosa verticalmente por detrás; na

frente, cinco ou seis passos levavam-nos à beira do regato, que não era

muito largo mas parecia fundo e muito frio. Mais trinta passos, pisando

os seixos, e tocava-se com o dedo grande do pé na superfície de rocha

do outro lado. Isto se se conseguisse atravessar as pedras escorregadias

sem cair lá dentro.

Não se elevava fumaça da chaminé, o que sugeria que não haveria uma

lareira a dar as boas-vindas. Lá em Chipenden, o demônio de estimação

do Mago sabia sempre quando regressávamos, e não só a casa estava já

aquecida, como haveria uma refeição fumegante à espera em cima da

mesa da cozinha.

Lá no alto, as paredes da ravina pareciam quase encontrar-se por cima

da casa e havia apenas uma faixa estreita de céu. Estremeci porque

fazia ainda mais frio ali em baixo na ravina do que nas vertentes mais

baixas da charneca e percebi que, mesmo no Verão, não se veria o sol

mais de uma hora ou assim cada dia. Isso levou-me a dar valor ao que

tivera em Chipenden, com matas e campos, as altas extensões rochosas

e o amplo céu no alto. Lá teríamos olhado o mundo de cima; aqui,

estávamos aprisionados num poço comprido, fundo e estreito.

Olhei nervosamente para as extremidades escuras da ravina onde se

encontravam com o céu. Alguém ou algo poderia encontrar-se lá a

espreitar-nos sem que o soubéssemos.

— Bem, rapaz, eis-nos aqui. Esta é a minha casa de Inverno. Temos

muito o que fazer: cansados ou não, vamos ter de por mãos à obra!

Em vez de se aproximar da porta da frente, o Mago deu a volta até uma

pequena área lajeada na parte de trás da casa. Três passos desde a

porta e estávamos na superfície de rocha, que escorria água e tinha

Page 376: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

estalactites de gelo suspensas, como os dentes de um dragão numa

história mirabolante que um dos meus tios costumava me contar.

Claro que, em semelhante local quente, os «dentes»

teriam se transformado em vapor num instante; naquele lugar frio por

detrás da casa aguentariam a maior parte do ano, e assim que nevasse,

nunca mais nos livraríamos deles senão no final da Primavera.

— Aqui usamos sempre a porra de trás, rapaz —

disse o Mago, tirando do bolso a chave que o seu irmão Andrew, o

serralheiro, fizera a seu pedido. Abriria qualquer porta desde que a

fechadura não fosse complicada demais. Eu também tinha uma chave

idêntica e já me fora útil em mais de uma ocasião.

A fechadura estava emperrada e a porta parecia relutante em abrir. Uma

vez lá dentro, fiquei deprimido com a escuridão, mas o Mago encostou o

bordão à parede, retirou uma vela do saco e acendeu-a.

— Ponha os sacos ali — disse-me, apontando para uma prateleira baixa

junto à porta de trás.

Obedeci e depois coloquei o meu bordão no canto ao lado do bordão do

Mago antes de segui-lo mais para o interior da casa.

A minha mãe teria ficado chocada com o estado da cozinha. Tinha agora

a certeza de que não havia qualquer demônio para fazer o trabalho. Era

evidente que ninguém cuidava do lugar desde que o Mago viera embora

no final do Inverno passado. Havia pó em cada superfície e teias de

aranha suspensas do teto. A pia de lavar a louça estava cheia até à

borda de panelas sujas e havia meio pão em cima da mesa, verde do

bolor. Notava-se também um leve cheiro doce e desagradável, como se

algo estivesse a apodrecer lentamente num canto escuro. Ao lado da

lareira havia uma cadeira de balanço semelhante à da Mãe lá na

fazenda. Por cima das costas via-se uma manta que parecia precisar de

uma boa lavagem. Perguntei-me a quem pertencia.

— Bem, rapaz — disse o Mago —, é melhor por mãos à obra.

Começaremos por aquecer a velha casa.

Feito isso, poderemos dar início às limpezas.

Ao lado da casa havia um enorme barracão de madeira cheio de carvão.

Nem quis pensar como toda aquela quantidade de carvão fora trazida

pela ravina. Em Chipenden, ele me mandava ir buscar as provisões para

a semana e só esperava que uma das minhas tarefas ali não fosse

carregar sacas de carvão.

Page 377: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Havia dois baldes grandes de carvão e os enchemos e os levamos para a

cozinha.

— Sabe acender uma boa fogueira com carvão? —

inquiriu o Mago. Anuí. No Inverno, lá na nossa fazenda, a minha primeira

tarefa todas as manhãs fora acender a lareira da cozinha.

— Pois muito bem — disse o Mago. — Você trata desta e eu encarrego-

me do da sala de visitas. Existem treze lareiras nesta velha casa, mas

acendendo seis já deve dar para aquecer o ambiente.

Ao fim de uma hora, tínhamos conseguido acender as seis lareiras: uma

na cozinha, uma na sala de visitas, uma no que o Mago chamava o seu

«gabinete de trabalho», que ficava no térreo, e outra em cada um dos

três quartos no primeiro andar. Havia mais sete divisões, incluindo o

sótão, mas não nos preocupamos com essas.

— Bem, rapaz, já é um bom começo — disse o Mago. — Agora vamos

buscar água.

Levando cada um o seu cântaro grande de barro, saímos de novo pela

porta de trás e demos a volta até à frente, onde o Mago seguiu na frente

até ao regato. A água era tão funda quanto parecera por isso foi

bastante fácil encher os nossos cântaros; e era suficientemente limpa,

fria e transparente para se verem as rochas no fundo. Era um regato

tranquilo e pouco mais do que rumorejava ao descer a ravina.

Mas precisamente quando terminara de encher o meu cântaro, senti um

movimento em algum lugar lá em cima. Não consegui propriamente ver

nada; foi realmente mais uma sensação de ser observado, e quando

olhei para o lugar onde a rocha formava uma aresta escura no céu

cinzento, não estava lá nada.

— Não olhe para cima, rapaz — censurou o Mago, uma pontinha de

irritação na sua voz. — Não lhe dê essa satisfação. Finja que não

reparou.

— Quem é ele? — indaguei, sentindo-me muito nervoso enquanto seguia

o Mago de regresso à casa.

— É difícil dizer. Não olhei, por isso não posso ter certeza — redarguiu o

Mago, estacando subitamente e pousando o cântaro. Depois mudou

rapidamente de assunto. — O que acha da casa? — perguntou.

O meu pai ensinara-me a dizer a verdade sempre que possível e sabia

que o Mago não era homem que se melindrasse facilmente.

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— Gostaria mais de viver no topo de uma colina do que como uma

formiga numa fenda funda entre pedregulhos — respondi-lhe. — Até

agora, prefiro a sua casa de Chipenden.

— Eu também, rapaz — disse o Mago. — Eu também. Só aqui vim

porque tinha de ser feito. Aqui estamos mesmo à beira, à beira do

escuro, e é um lugar mau onde passar o Inverno. Há coisas lá em cima

na charneca em que nem vale a pena pensar demais, mas se não formos

nós a enfrentá-las, quem será?

— Que tipo de coisas? — inquiri, recordando o que a Mãe me dissera

mas interessado em ver o que revelaria o Mago.

— Oh, há demônios, bruxas, fantasmas e imagens fantasmagóricas com

fartura e outras coisas bem piores...

— Como Golgoth? — sugeri.

— Sim, Golgoth. Sem dúvida a sua mãe te contou tudo a seu respeito.

Acertei?

— Ela mencionou-o quando lhe disse que vínhamos para Anglezarke mas

não adiantou muito mais. Disse apenas que por vezes se agita no

Inverno.

— Lá isso agita, rapaz, e irei aumentar os seus conhecimentos a respeito

dele numa ocasião mais oportuna.

Agora olhe para aquilo — disse, apontando para onde a fumaça castanho

espesso se elevava no ar das duas filas de potes cilíndricos. Apontou

com o indicador na direção da fumaça. — Viemos aqui para dar sinal da

nossa presença, rapaz. Procurei um sinal. Só conseguia ver a fumaça.

— Quero dizer que ao estarmos aqui afirmamos que esta terra nos

pertence e não ao escuro — explicou o Mago. — Fazer frente ao escuro,

especialmente em Anglezarke, é algo bastante difícil, mas é o nosso

dever e muito meritório. De qualquer forma — referiu, pegando no

cântaro —, vamos entrar e começar as limpezas.

Durante as duas horas seguintes estive definitiva-mente atarefado a

esfregar, varrer, limpar o pó e ir lá fora bater as nuvens de poeira dos

tapetes. Por fim, depois de lavar e enxugar a louça suja, o Mago

mandou-me fazer as camas nos três quartos do primeiro andar.

— Três camas? — estranhei, perguntando-me se teria ouvido bem.

— Sim, são três, e quando terminar é melhor ir lavar as orelhas! Vamos!

Não fique aí embasbacado. Não temos o dia todo.

Então, encolhendo os ombros, fiz o que me mandavam. A roupa estava

úmida mas puxei os lençóis para baixo para que as lareiras os secassem.

Page 379: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Feito isso, esgotado dos esforços, vim para baixo. Quando passei pelas

escadas da cave2, ouvi algo que fez com que os cabelos na nuca

começassem a eriçar-se.

Ouvi, lá de baixo, o que pareceu um longo suspiro entrecortado, seguido

quase imediatamente de um grito fraco. Aguardei no topo das escadas à

beira da escuridão, 2 Porão, adega ou divisão subterrânea

escutando com atenção, mas não se repetiu. Teria imaginado?

Fui à cozinha e encontrei o Mago a lavar as mãos na pia.

— Ouvi algo gritar lá da cave — informei-o. — É

um fantasma?

— Não, rapaz, agora não há fantasmas nesta casa

— tratei deles todos há anos. Não, deve ser Meg. Terá sem dúvida

acordado.

Julguei ter ouvido mal. Haviam-me dito que iria conhecer Meg e sabia

que ela era uma bruxa lâmia que vivia em algum lugar em Anglezarke.

Em parte, estivera também à espera de encontrá-la instalada na casa do

Ma-go. Mas ao vê-la abandonada e fria afastara da mente essa

perspectiva. Por que haveria ela de estar dormindo lá em baixo numa

cave incrivelmente fria? Fiquei curioso, mas sabia que não devia fazer

perguntas na ocasião errada.

Às vezes, o Mago estava com disposição para responder e mandava-me

sentar e dizia-me que pegasse no meu livro de notas e enchesse a

caneta de tinta e me preparasse para escrever. Noutras ocasiões, queria

apenas despachar o assunto em mãos, e vi naquele momento a

expressão decidida patente nos seus olhos verdes, de modo que me

mantive em silêncio enquanto ele acendia uma vela.

Segui-o pelas escadas de pedra da cave. Não estava propriamente

assustado porque ele sabia o que fazia, mas estava sem dúvida nervoso.

Eu nunca vira uma bruxa lâmia antes e, apesar de ter lido um pouco

sobre elas, não sabia ao certo o que esperar. E como conseguira ela

sobreviver ali em baixo no frio e no escuro durante a Primavera, o Verão

e o Outono? De que se alimentara? Lesmas, minhocas, insetos e

caracóis, como as bruxas que o Mago aprisionava nos poços?

Depois da primeira esquina das escadas surgiu um portão de ferro com

ripas cruzadas a barrar-nos o caminho. Para lá dele, as escadas

alargavam subitamente, pelo que poderiam ter descido quatro pessoas

lado a lado.

Page 380: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Nunca tinha visto umas escadas de cave tão largas. Não muito longe do

portão, vi uma porta cravada na parede e fiquei curioso quanto ao que

podia estar do outro lado. O

Mago tirou uma chave do bolso e introduziu-a na fechadura. Não era a

chave que habitualmente usava.

— É uma fechadura complicada? — perguntei.

— Pode crer que é, rapaz — disse-me. — Mais complicada do que a

maior parte. Se alguma vez precisar, costumo guardar esta chave no

meu gabinete de trabalho, na prateleira de cima da estante mais

próxima da porta.

Quando abriu o portão, este emitiu um ruído tão estridente que deu a

impressão de ressoar através das pedras tanto lá em cima como lá em

baixo, pelo que toda a casa funcionou como um sino enorme.

— O ferro conseguiria impedir a maior parte deles de passar daqui, mas

se assim não fosse, ouviríamos lá em cima o que sucedia. Esta porta é

melhor do que um cão de guarda. — Para a maior parte de quem? E por

que as escadas são tão largas? — perguntei.

— Vamos primeiro ao mais importante — retrucou o Mago. — As

perguntas e as respostas podem ficar para mais tarde. Para já, temos de

tratar de Meg.

Enquanto descíamos as escadas, comecei a ouvir ruídos tênues vindos lá

de baixo. Houve um gemido e o que soou como um fraco arranhar, o

que me deixou ainda mais nervoso. Não demorei muito a perceber que

devia existir no mínimo uma área de casa debaixo do solo tão grande

quanto acima dele: sempre que as escadas davam uma volta havia uma

porta de madeira cravada na parede, e na terceira curva, um pequeno

patamar com três portas.

O Mago parou logo à frente da porta do meio, depois virou-se para mim.

— Espere aqui, rapaz — avisou-me. — Meg fica sempre um pouco

nervosa quando acorda. Precisamos de lhe dar algum tempo para se

acostumar com você.

Ditas aquelas palavras, entregou-me a vela, rodou a sua chave na

fechadura e entrou na escuridão, fechando a porta atrás de si.

Fiquei cerca de dez minutos à espera do lado de fora e não receio dizer-

lhes que aquelas escadas eram mesmo bastante arrepiantes. Por um

lado, quanto mais desciam, mais frio fazia. Por outro, conseguia ouvir

ruídos ainda mais perturbadores vindos lá de baixo, depois da esquina

seguinte, do escuro. Eram sobretudo murmúrios muito tênues, mas de

Page 381: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

uma vez julguei ouvir um gemido distante, como se alguém ou algo

estivesse a passar um péssimo bocado.

Chegaram-me então vozes abafadas de dentro da cela onde o Mago

entrara. O meu mestre parecia estar a conversar baixinho mas com

firmeza, e a dada altura escutei um choro de mulher. Não durou muito e

ouviram-se mais murmúrios, como se nenhum deles quisesse que eu

percebesse o que diziam.

Por fim a porta abriu-se, chiando. O Mago apareceu e veio alguém atrás

dele até ao patamar.

— Esta é Meg — anunciou o meu mestre, afastando-se para que eu a

pudesse ver bem. — Vai gostar dela, rapaz. É sem dúvida a melhor

cozinheira em todo o Condado.

Quando Meg me olhou de alto a baixo, pareceu intrigada. Fitei-a no mais

puro espanto. Sabem, é que ela era simplesmente a mulher mais bonita

que eu alguma vez vira e calçava sapatos bicudos. Quando eu fora para

Chipenden, na minha primeira lição, o Mago alertara-me para os perigos

de falar com garotas que usassem sapatos bicudos. Conscientemente ou

não, alertou-me ele, algumas delas podiam ser bruxas.

Eu ignorara o aviso dele e conversara com Alice, que me metera numa

série de problemas antes de acabar por me ajudar a sair deles. Mas ali

estava o meu mestre, a ignorar o seu próprio conselho! Só que Meg não

era uma garota; era uma mulher, e tudo no rosto dela era tão perfeito

que não conseguíamos simplesmente deixar de fitar: os seus olhos, os

malares salientes, a compleição.

No entanto, foi o cabelo que a denunciou. Era prateado, a cor que se

espera encontrar numa pessoa muito mais velha. Meg não seria mais

alta do que eu e só dava pelo ombro do Mago. Observando-a mais

atentamente, percebíamos de que estivera a dormir vários meses no frio

e na umidade: viam-se um pouco de teias de aranha no seu cabelo e

manchas de bolor no seu vestido púrpura desbotado.

Existiam diversos tipos diferentes de bruxas e enchera páginas dos meus

livros de notas com as lições que o Mago me dera sobre elas. Mas

descobrira o que sabia sobre as bruxas lâmia bisbilhotando na biblioteca

do Ma-go os livros que não era suposto eu estudar.

As bruxas lâmia vinham do outro lado do mar, e nas suas terras

alimentavam-se do sangue humano. A sua condição natural é conhecida

como «selvagem», e nesse estado não se parecem nada com os

Page 382: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

humanos e têm escamas a cobrir-lhes o corpo e garras compridas nos

dedos.

Mas são mutantes lentas e quanto maior o contato que tiverem com os

humanos, mais gradualmente vão adquirindo o seu aspecto. Passado

algum tempo transformam-se no que é conhecido como «lâmias

domésticas», que se parecem com as mulheres humanas à exceção de

uma linha de escamas verdes e amarelas que segue ao comprimento da

espinha delas. Algumas podem mesmo tornar-se benignas em vez de

malévolas. Teria Meg se tornado boa? Fora outra razão por que o Mago

não tratara dela, metendo-a num poço como sucedera a Lizzie dos

Ossos?

— Bem, Meg — referiu o Mago —, este é Tom, o meu aprendiz. É um

bom rapaz, por isso vocês dois deveriam se dar bem.

Meg estendeu a mão na minha direção. Julguei que quisesse apertar a

minha, mas antes de os nossos dedos se tocarem, ela baixou o braço de

repente, como se se tivesse queimado, e surgiu nos seus olhos uma

expressão apreensiva.

— Onde está Bily? — inquiriu, a sua voz suave como seda mas com uma

pontinha de dúvida. — Eu gostava de Bily.

Sabia que se estava a referir a Bily Bradley, o anterior aprendiz do Mago

que morrera.

— Bily morreu, Meg — explicou-lhe delicadamente o Mago.

— Já tinha lhe contado. Não se preocupe com isso.

A vida continua. Agora terá de se acostumar a Tom.

— Mas é outro nome para lembrar — queixou-se Meg com pesar. — Vale

a pena o esforço se nenhum deles dura muito?

Meg não começou logo a preparar a nossa ceia.

Mandaram-me ir buscar mais água no regato e precisei de uma dúzia de

viagens indo e vindo antes de Meg finalmente se dar por satisfeita.

Depois, usando duas das lareiras, começou a aquecer a água, mas, para

minha decepção, percebi que não se destinava a cozinhar.

Ajudei o Mago a levar uma banheira de ferro enorme para a cozinha e

enchê-la de água quente. Destinava-se a Meg.

— Vamos retirar-nos para a sala de visitas — disse o Mago —, para que

Meg possa ter alguma privacidade.

Ela passou meses lá em baixo na cave e quer retemperar-se.

Resmunguei em silêncio para mim mesmo que se o meu mestre não a

tivesse trancado lá ela poderia manter a casa limpa e arrumada para o

Page 383: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

seu regresso todos os invernos. E, claro, isso levou a outra pergunta —

por que é que o Mago não levava Meg consigo para a casa de Verão em

Chipenden?

— Esta é a sala de visitas — disse o meu mestre, abrindo a porta e

convidando-me a entrar. — É aqui que temos as nossas conversas. É

aqui que recebemos as pessoas que precisam da nossa ajuda.

Ter uma sala de visitas é uma velha tradição do Condado. É a melhor

divisão, tornada o mais chique possível, e raramente é usada porque

tem de estar sempre limpa e arrumada para receber as visitas. O Mago

não tinha uma sala de visitas lá em Chipenden porque gostava de

manter as pessoas afastadas da casa. Por isso é que elas tinham de ir à

encruzilhada debaixo das árvores pendentes, tocar o sino e esperar.

Parecia que as regras iam ser diferentes aqui.

Lá na nossa fazenda também não nos preocupávamos com uma sala de

visitas, porque com sete irmãos éramos uma família grande e quando

vivíamos todos em casa, precisávamos de ocupar a totalidade das

divisões. De qualquer forma, a Mãe, que não nascera no Condado, acha

que ter uma sala de visitas é realmente uma idéia tola.

«De que serve ter uma sala de visitas que raramente é usada?»,

costuma ela dizer. «As pessoas têm de nos aceitar tal como somos.»

Não se podia dizer que a sala de visitas do Mago fosse muito chique,

mas o velho sofá usado era tão confortável quanto o aspecto das duas

poltronas e a divisão aquecera deliciosamente, por isso mal me sentei

comecei a sentir-me sonolento. Fora um longo dia e tínhamos caminhado

quilômetros e quilômetros.

Reprimi um bocejo mas não consegui enganar o Mago.

— Ia te dar outra lição de latim mas para isso tem de ter a mente bem

viva — disse-me. — Logo a seguir à ceia é melhor meter-se na cama,

mas levante-se cedo e reveja os verbos.

Acenei com a cabeça.

— Só mais uma coisa — lembrou-se o meu mestre, abrindo o armário

junto à lareira. Retirou uma garrafa grande de vidro castanho e ergueu-a

alto para que eu a pudesse ver. — Sabe o que é isto? — perguntou,

arqueando o cenho.

Encolhi os ombros, depois reparei no rótulo na garrafa e li-o.

— Chá de ervas — referi.

— Nunca se fie no rótulo de uma garrafa — aconselhou o Mago.

Page 384: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Quero que coloque um centímetro disto numa xícara todas as

manhãs, encha de água quente, mexa bem e dê a Meg. Depois quero

que fique por perto até ela beber a última gota. Demorará um tempo

porque ela gosta de tomar pequenos goles. Será a sua tarefa mais

importante do dia. Diga-lhe sempre que é a xícara habitual de chá de

ervas para lhe manter as articulações flexíveis e os ossos fortes. Ela

ficará satisfeita.

— O que é? — perguntei. O Mago não respondeu logo. — Como sabe,

Meg é uma bruxa lâmia — acabou por afirmar —, mas a bebida faz com

que ela esqueça quem é. É bastante perigoso e perturbador alguém

lembrar-se de quem realmente é, por isso espero que nunca tenha de

passar por isto, rapaz. Será algo particularmente perigoso para todos

nós se ela se lembrar de quem é do que pode fazer.

— É por isso que a mantém na cave e longe de Chipenden?

— Sim, jogo pelo seguro. E não posso permitir que as pessoas saibam

que ela está aqui. Não iriam entender.

Há nestas paragens quem se lembre do que ela consegue fazer — muito

embora ela própria não o consiga.

— Mas como é que ela sobrevive sem comida todo o Verão?

— No seu estado selvagem, as bruxas lâmia podem por vezes levar anos

sem comer, para além de insetos, larvas e um rato ou outro. Mesmo

quando se tornam domésticas como Meg, não têm problema em passar

fome alguns meses. Para além de fazê-la dormir, uma dose grande da

poção possui muitos nutrientes, por isso Meg não corre verdadeiramente

perigo.

«Além disso, rapaz, tenho certeza de que irá gostar dela. É uma

excelente cozinheira, como não tardará a descobrir — prosseguiu o Mago

—, para além de ser uma pessoa metódica e arrumada. Mantenha

sempre os tachos e panelas arrumados e brilhantes como novos e

guarde-os no armário exatamente como gosta. Sucede o mesmo com os

talheres. Sempre arrumados na gaveta, as facas à esquerda, os garfos à

direita.

Fiquei curioso quanto ao que ela diria da confusão que encontramos.

Talvez por isso a ansiedade do Mago em certificar-se de que ficasse tudo

limpo e arrumado.

— Bem, rapaz, já falamos o suficiente. Vamos ver como ela está. .

Depois do banho, o rosto de Meg ficara com um tom rosado e saudável

fazendo-a parecer ainda mais jovem e bonita, e mesmo com o cabelo

Page 385: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

prateado, se diria que aparentava metade da idade do Mago. Trazia

agora um vestido lavado, que era castanho, a cor dos seus olhos, e

fechava atrás com botões brancos. Era difícil ter certeza, mas pareciam

feitos de osso! Nem quis pensar no assunto.

Se fosse osso, de onde provinha?

Para minha decepção, não preparara a ceia. Como poderia tê-lo feito se

não havia comida em casa para além de meio pão bolorento? Tivemos

de nos virar com o último pedaço de queijo que o Mago trouxera consigo

para a viagem. Era queijo bom do Condado, amarelo-pálido e a

desfazer-se, mas nem por sombras chegava para satisfazer três

pessoas.

Sentamo-nos à mesa da cozinha a mordiscá-lo lentamente para fazê-lo

durar. Não se conversou muito: eu só conseguia pensar no desjejum.

— Assim que clarear, vou tratar das provisões semanais — sugeri ao

Mago. — Deveria ir a Adlington ou Blackrod?

— Mantenha-se simplesmente afastado de ambas as aldeias, rapaz —

redarguiu o Mago. — Especialmente de Blackrod. Ir buscar as provisões

é algo que não te competirá enquanto estivermos aqui. Deixe de se

preocupar. O que precisa é de se deitar cedo, por isso vá já para a

cama. O seu quarto é o que dá para a frente da casa —

tente dormir uma boa noite de sono. Meg e eu temos de conversar um

com o outro.

Obedeci e fui diretamente para a cama. O meu quarto era muito maior

do que o que me fora destinado em Chipenden, mas continuava a ter

apenas uma cama, uma cadeira e uma cômoda muito pequena. Se desse

para a parte de trás não conseguiria ver nada senão a parede de rocha

vertical de trás da casa. Felizmente dava para a frente e, mal abri a

janela de guilhotina, pude ouvir um murmúrio muito tênue do regato lá

em baixo e o uivo do vento a passar pela casa. As nuvens tinham

dissipado e brilhava uma lua cheia, lançando a sua luz prateada na

ravina que era depois refletida pelo regato. Ia estar uma noite fria, de

geada.

Enfiei a cabeça para fora da janela para ver melhor.

A lua estava logo por cima da escarpa ali à frente, parecendo

impossivelmente grande. Recortada nela, em silhueta, conseguia ver

alguém ajoelhado na superfície da escarpa, a olhar para baixo. Num

instante a figura desapareceu, mas não sem que antes eu tivesse tempo

de ver que usava capuz!

Page 386: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Olhei para o topo da escarpa por alguns momentos mas a figura não

reapareceu. O ar frio começava a encher o quarto, de modo que fechei a

janela. Era Morgan? E se sim, por que nos espiava? Fora também

Morgan que nos observara quando tínhamos ido buscar água ao regato?

Despi-me e enfiei-me na cama. Estava cansado, mas não deixei de ter

dificuldade em adormecer. A velha casa chiava e gemia muito, e dada

altura havia ruídos rápidos junto aos pés da cama. Provavelmente

seriam ratos debaixo das tábuas do assoalho, mas sendo o sétimo filho

de um sétimo filho, eu podia perfeitamente estar a ouvir algo muito

diferente.

Apesar de tudo, consegui finalmente embalar no sono — apenas para

acordar de repente no meio da noite.

Fiquei ali, sentindo-me inquieto, perguntando-me por que acordara tão

bruscamente. Estava escuro como breu e não conseguia ver nada, mas

sentia apenas que algo estava errado. Houvera um ruído qualquer. Tinha

certeza disso.

Não esperei muito para voltá-lo a ouvir. Dois sons diferentes que

começavam gradualmente, tornando-se cada vez mais fortes à medida

que os segundos passavam.

Um era uma espécie de zumbido estridente e o outro um atroar muito

mais baixo e cavo, como se alguém fizesse rolar pedregulhos por uma

vertente de montanha rochosa.

Só que parecia estar a acontecer em algum lugar por debaixo da casa, e

era tão intenso que as vidraças faziam barulho e até as paredes

pareciam estremecer e vibrar.

Comecei a sentir medo. Se piorasse mais, então a casa inteira viria com

certeza abaixo. Não sabia o que podia ser, mas ocorreu-me um

pensamento súbito. Poderia um tremor de terra fazer com que a ravina

se abatesse sobre a casa?

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CAPÍTULO 5

O QUE HAVIA POR BAIXO

Os tremores de terra aconteciam, mas eram muito raros no Condado.

Não havia memória de um forte entre as pessoas ainda vivas. No

entanto, a casa estremecia tanto que fiquei realmente preocupado.

Vesti-me então rapidamente, calcei as botas e fui lá abaixo.

A primeira coisa em que reparei foi que a porta da cave estava aberta.

Chegavam sons tênues lá do fundo e, aguçado pela curiosidade, desci

alguns degraus. O barulho era ainda pior ali em baixo e distingui

nitidamente um grito estridente, mais animalesco do que humano.

Mas imediatamente a seguir ouvi o portão fechar-se com estrondo e uma

chave girar na fechadura. Uma vela tremulou no escuro lá em baixo e os

passos aproximaram-se. Por um segundo cheguei a sentir medo,

perguntando-me quem poderia ser, mas não tardei a constatar que

afinal era o Mago.

— O que se passa? — inquiri, pensando que ele estivera a tratar de algo

lá em baixo.

O Mago olhou para mim, uma expressão sobres-saltada no seu rosto. —

O que está fazendo de pé a esta hora? — indagou. — Desapareça daqui,

volte imediatamente para a cama!

— Julguei ouvir alguém gritar — respondi-lhe. —

E o que estava a causar todo aquele barulho? É um tremor de terra?

— Não, rapaz, não é um tremor de terra. E não precisa de se preocupar!

Tenho mais em mente neste momento do que responder às suas

perguntas. Terminará dentro de alguns instantes, por isso volte para o

seu quarto e lhe contarei tudo pela manhã — disse, afastando-me das

escadas e trancando a porta atrás de si.

O tom da voz dele disse-me que era inútil tentar argumentar, de modo

que voltei para cima, ainda preocupado com a forma como a casa

continuava a tremer e vibrar. Bem, a casa não veio abaixo e, tal como o

Mago prometera, tudo voltou a sossegar. Consegui tornar a adormecer

rapidamente mas acordei uma hora antes da alvorada e desci à cozinha.

Meg dormia na sua cadeira de balanço e não percebi se ficara ali toda a

noite ou descera sorrateiramente do seu quarto quando os ruídos tinham

Page 388: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

começado. Não ressonava propriamente, mas de cada vez que expirava,

ouvia-se um ligeiro som sibilante.

Tendo o cuidado de não fazer barulho demais e acordá-la, deitei mais

um pouco de carvão na lareira que não tardou a espevitar-se. Em

seguida, instalei-me no banquinho junto à chaminé e comecei a rever os

verbos latinos. Tinha dois livros de notas comigo: um para escrever tudo

o que o Mago me contava sobre demônios e outros assuntos de mago; o

segundo para as lições de latim.

A Mãe ensinara-me grego, o que me impedira de ter de estudar também

aquela língua, mas tinha de pôr rapidamente o latim em dia, e os verbos

em particular davam-me muito trabalho. Muitos dos livros do Mago

estavam escritos em latim, de modo que tinha de me esforçar bastante

para aprendê-lo.

Comecei pelo princípio com o primeiro verbo que o Mago me fizera

entrar à força na cabeça. Ensinara-me os verbos latinos numa espécie de

padrão. Isso é importante porque a terminação de cada palavra é

diferente de acordo com o que se pretende dizer. É igualmente útil

recitá-los em voz alta, pois, conforme explicou o Mago, ajuda a retê-los

na memória. Não queria acordar Meg de modo que reduzi a minha voz a

pouco mais do que um murmúrio.

— Amo, amas, amat — disse, sem olhar para o livro de notas, recitando

três palavras que significam «eu amo, tu amas, ele ou ela ama».

— Já amei alguém em tempos — disse uma voz da cadeira de balanço —

, mas nem sequer me lembro de quem era.

Assustei-me de tal maneira que quase larguei o livro de notas e caí do

escabelo. Meg olhava para a lareira e não para mim, com uma expressão

no rosto que era um misto de perplexidade e tristeza.

— Bom dia, Meg — disse-lhe, esboçando um sorriso. — Espero que tenha

dormido bem.

— É muito gentil em perguntar, Bily — respondeu Meg —, mas não

dormi nada bem. Houve uma série de ruídos fortes e tenho estado a

tentar lembrar-me de algo toda a noite mas parece que continua a dar

voltas na minha cabeça. É algo muito rápido e escorregadio e não

consigo simplesmente retê-lo. Porém, não desisto facilmente, e vou

continuar aqui sentada junto à chaminé até me recordar.

Ao ouvir aquelas palavras fiquei alarmado. E se Meg se lembrasse de

quem era? Se se percebesse que era uma bruxa lâmia! Tinha de agir

rapidamente antes que fosse tarde demais.

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— Não se preocupe com isso, Meg — disse-lhe, pousando o meu livro de

notas e levantando-me. — Vou preparar-lhe uma bela bebida quente.

Rapidamente, enchi a chaleira de cobre com água e pendurei-a no

gancho na chaminé para que, como diz o meu pai, o fogo lhe aquecesse

o fundo. Depois fui buscar uma xícara lavada e levei-a comigo até à sala

de visitas. Ali, tirei a garrafa castanha do armário e deitei um centímetro

da bebida na xícara. Feito isso, regressei à cozinha e esperei que a água

fervesse antes de encher a xícara quase até à borda e mexendo muito

bem conforme o Mago instruíra.

— Aqui está o seu chá de ervas, Meg. Ajudará a manter as articulações

flexíveis e os ossos fortes.

— Obrigada, Bily — disse com um sorriso. Aceitou a xícara e começou a

soprá-la, depois bebeu muito lentamente, continuando a olhar para as

chamas.

— Está delicioso — disse dali a um pouco. — É

realmente um rapaz gentil. É exatamente do que preciso para pôr os

meus ossos velhos a mexer pela manhã. .

Senti-me triste quando proferiu aquelas palavras.

Uma parte de mim não se orgulhava do que fizera. Ela estivera acordada

quase toda a noite tentando se lembrar de algo e agora a bebida só faria

piorar ainda mais a sua memória. Enquanto estava entretida a sorvê-la,

aproximei-me por detrás dela para poder ver melhor algo que me

preocupara desde a noite anterior.

Olhei com atenção para os treze botões brancos que fechavam o seu

vestido do pescoço à bainha. Claro que não podia ter a certeza absoluta,

mas tinha a suficiente.

Cada botão era feito de osso. Ela não era uma bruxa que praticasse a

magia dos ossos; era uma bruxa lâmia, um tipo não oriundo do

Condado. Mas fiquei intrigado com os botões de osso. Teriam vindo de

vítimas que ela matara no passado? E debaixo daqueles botões, dentro

do vestido, sabia que como bruxa lâmia doméstica haveria uma linha de

escamas verdes e amarelas a todo o comprimento da sua espinha.

Pouco depois, ouviu-se uma pancada na porta de trás. Fui abrir já que o

meu mestre continuava a dormir depois da sua noite conturbada.

Estava lá fora um homem com um estranho barrete de couro com abas

que lhe cobriam as orelhas. Segurava uma lanterna na mão direita; com

a esquerda conduzia um pônei carregado com tantas sacas castanhas

que era um prodígio as patas do animal não cederem sob o peso.

Page 390: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Olá, meu jovem, trouxe a encomenda de Mr.

Gregory — disse, esboçando-me um sorriso de lábios tensos. — Deve ser

o novo aprendiz. Era um bom rapaz, aquele Bily, e lamento saber o que

lhe aconteceu.

— O meu nome é Tom — respondi, apresentando-me.

— Bem, Tom, como está? O meu nome é Shanks.

Importava-se de dizer ao seu mestre que trouxe provisões extra e que

irei duplicadas todas as semanas até o tempo piorar. Parece que vai ser

um Inverno rigoroso e quando a neve chegar, pode passar muito tempo

sem que eu consiga voltar aqui.

Anuí-lhe, sorri, depois olhei para cima. Continuava escuro, mas

começava a clarear e o pedaço de céu estava quase cheio de nuvens

cinzentas que avançavam de oeste.

Nessa altura, Meg veio ter comigo à porta. Parou ligeiramente atrás de

mim, mas Shanks viu-a bastante bem porque os seus olhos quase

saíram das órbitas e recuou rapidamente dois passos, quase colidindo

com o pequeno pônei.

Percebi que ele ficara assustado, mas depois de Meg dar meia volta e

regressar lá para dentro, ele se acalmou um pouco e ajudei-o a

descarregar as sacas. Enquanto o fazíamos, o Mago apareceu e pagou ao

homem.

Quando Shanks se virou para ir embora, o Mago seguiu-o pela ravina

mais ou menos cerca de trinta passos.

Começaram a falar mas estavam longe demais para eu poder apanhar

tudo o que diziam. No entanto, respeitava a Meg, tinha certeza, porque

ouvi o nome dela duas vezes.

Ouvi nitidamente Shanks afirmar, «O senhor nos disse que o assunto

dela fora resolvido!» ao que o Mago replicou, «Tenho-a bastante segura,

não se preocupe. Sei do meu ofício por isso não lhe diz respeito. E

guarde-o para si se sabe o que lhe convém!»

O meu mestre não parecia nada satisfeito quando voltou para junto de

mim. — Deste o chá de ervas a Meg?

— perguntou, desconfiado.

— Fiz exatamente como me disse — respondi-lhe

—, assim que ela acordou.

— Ela foi lá para fora? — inquiriu.

— Não, mas aproximou-se da porta e ficou atrás de mim. Shanks viu-a e

pareceu muito assustado.

Page 391: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— É uma pena que a tenha visto — disse o Mago.

— Ela não costuma mostrar-se daquela maneira. Pelo menos não em

anos recentes. Talvez precisemos de aumentar a dose. Conforme te

disse a noite passada, rapaz, Meg costumava causar muitos problemas

no Condado. As pessoas tinham medo dela e ainda têm. E até ao

momento, os habitantes locais não sabiam que ela andava em liberdade

pela casa. Se isto se vier a espalhar, vai ser muito ruim. As pessoas

daqui são teimosas: quando lhes mete uma coisa na cabeça não

desistem facilmente. Mas Shanks vai ficar de boca calada. Pago-lhe

suficientemente bem.

— Shanks é o merceeiro? — perguntei.

— Não, rapaz, é o carpinteiro e cangalheiro da região. A única pessoa

em Adlington que tem a coragem de se arriscar a vir aqui. Pago-lhe para

fazer as recolhas e entregas. Depois daquilo, guardamos as sacas lá

dentro em segurança, e o Mago abriu a maior e entregou a Meg o

necessário para começar a cozinhar o desjejum.

O bacon estava superior ao que o que o demônio de estimação do Mago

preparava, mesmo nas melhores manhãs, e Meg fritara bolos de batata

e mexera ovos frescos com queijo: o Mago não exagerara quando

dissera que Meg era boa cozinheira. Enquanto devorávamos o desjejum,

perguntei-lhe sobre os estranhos ruídos durante a noite.

— Agora não existem motivos para preocupações

— disse-me, engolindo outra grande bocada de bolo de batata. — Esta

casa foi construída sobre uma linha antiga, por isso são de esperar

problemas de vez em quando. Por vezes, um tremor de terra a

quilômetros daqui acaba por provocar distúrbios numa série de linhas.

Os demônios podem ser obrigados a sair dos lugares onde estão bem

instalados. A noite passada passou por baixo de nós um demônio. Tive

de ir à cave só para ver se estava tudo seguro e em condições.

O Mago falara-me dessas linhas quando estávamos em Chipenden. Eram

linhas de força por debaixo da terra, como estradas que alguns tipos de

demônio usam para ir rapidamente de um lugar a outro.

— Atenção, por vezes significa que vêm aí problemas — prosseguiu ele.

— Quando se instalam num novo local, começam com frequência por

pregar peças — às vezes perigosas — e isso implica trabalho para nós.

Atente nas minhas palavras, rapaz, podemos perfeitamente ter de

enfrentar um demônio local antes do final da semana.

Page 392: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Depois do desjejum fui ter a minha lição de latim no gabinete de

trabalho do Mago. Era uma divisão pequena com duas cadeiras de

madeira com espaldar, uma mesa grande, um escabelo solitário de

madeira com três pernas, soalho descoberto e muitas estantes altas em

madeira escura. Estava um pouco gelada também; o fogo da véspera

encontrava-se agora reduzido a cinzas cinzentas na grelha.

— Sente-se, rapaz. As cadeiras são duras mas não podemos ficar muito

confortáveis quando estamos a estudar. Não gostaria que adormecesse

— referiu o Mago deitando-me um olhar penetrante.

Relanceei as estantes. A sala era soturna, apenas iluminada pela luz

cinzenta da janela e duas velas, pelo que não reparara então que as

prateleiras estavam vazias.

— Onde estão todos os livros? — indaguei.

— Em Chipenden — onde é que acha, rapaz? Não vale a pena ter livros

aqui com o frio e a umidade. Os livros não gostam dessas condições.

Não, teremos apenas de nos virar com o que trouxemos conosco e talvez

fazer umas anotações pessoais enquanto aqui estivermos. Não pode

simplesmente ler livros o tempo todo e deixar que outros os escrevam.

Sabia que o Mago trouxera consigo uns quantos livros, o que tornara o

seu saco muito pesado, ao passo que eu me cingira aos meus livros de

notas. Na hora que se seguiu, estive debruçado com os verbos latinos.

Era um trabalho árduo e fiquei satisfeito quando o Mago sugeriu que

fizéssemos uma pausa, mas não com o que ele fez em seguida.

Puxou o escabelo de madeira para junto da estante mais próxima da

porta. Depois subiu para ele e tateou a prateleira de cima.

— Bem, rapaz — disse-me, mostrando a chave, de rosto muito

carregado. — Não podemos adiar mais. Vamos descer e ver a cave

propriamente dita. Mas primeiro vamos certificar-nos de que Meg está

bem. Não quero que ela saiba que vamos lá abaixo. Pode deixá-la

nervosa. Não lhe agrada nem um pouco a idéia daquelas escadas!

Aquelas palavras deixaram-me entusiasmado e assustado ao mesmo

tempo. Estivera morto de curiosidade em saber o que ficava para lá das

escadas do porão, mas, simultaneamente, sabia que descer até lá seria

tudo menos uma experiência agradável.

Encontramos Meg ainda na cozinha. Lavara a louça e estava naquele

momento sentada em frente da lareira, dormitando novamente.

— Ela está bastante feliz no momento — afirmou o Mago. — Para além

de lhe afetar a memória, a poção a faz dormir muito.

Page 393: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Cada um de nós acendeu uma vela antes de descer as escadas de pedra,

o Mago seguindo na frente. Desta vez reparei melhor no que me

rodeava, tentando registrar na minha memória a parte subterrânea da

casa. Já descera em algum porões, mas tinha a sensação de que esta

provavelmente seria a mais assustadora e invulgar.

Depois de o Mago ter aberto o portão de ferro, virou-se e bateu-me no

ombro. — Meg raramente vai ao meu gabinete de trabalho — referiu —,

mas aconteça o que acontecer, nunca a deixe se apoderar desta chave.

Anuí, vendo o Mago trancar o portão atrás de nós.

Olhei para baixo. .

— Por que os degraus lá em baixo são tão largos?

— voltei a perguntar.

— Têm de ser, rapaz. Trazem-se e levam-se coisas por estas escadas.

Os artífices precisam de bom acesso.

— Os artífices?

— Ferreiros e pedreiros, claro — os ofícios de que dependemos para o

nosso tipo de trabalho!

Enquanto descíamos, o Mago seguindo na frente, a minha vela projetou

a sua sombra trêmula na parede, e apesar do eco das nossas botas nos

degraus de pedra, ouvi os primeiros ruídos tênues vindos lá bem do

fundo. Houve um suspiro e uma tossidela engasgada distante. Estava

sem dúvida algo ou alguém lá em baixo!

Existiam quatro níveis subterrâneos. Os dois primeiros tinham ambos

apenas uma porta, cravada na pedra, mas chegamos finalmente ao

terceiro, que tinha as três portas que eu vira na véspera.

— A do meio, como sabe, é onde Meg costuma dormir quando estou

ausente — referiu o Mago.

Agora fora-lhe atribuído um quarto lá em cima, ao lado da do Mago,

provavelmente para poder estar de olho nela — muito embora, a julgar

pelo sucedido na última noite, ela preferisse dormir na cadeira de

balanço junto à lareira.

— Não uso muito as outras — continuou o Mago

—, mas podem ser muito úteis para manterem uma bruxa trancada em

segurança enquanto são tomadas todas as providências.

— Quer dizer enquanto preparam um poço?

— Sim, eu faço isso, rapaz. Como terá reparado, aqui não é como em

Chipenden. Não possuo o luxo de um jardim, por isso tenho de

aproveitar o subsolo...

Page 394: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O quarto nível e o mais baixo era, logicamente, a própria cave. Antes

mesmo de virarmos a última esquina e ser completamente visível, ouvi

coisas que fizeram tremer a vela na minha mão, pondo a sombra do

Mago a dançar furiosamente.

Houve sussurros e gemidos e, o pior de tudo, um leve som de

raspadelas. Sendo o sétimo filho de um sétimo filho, consigo ouvir aquilo

que escapa à maioria das pessoas, mas não há meio de me acostumar.

Há dias em que sou mais corajoso do que noutros, é tudo o que posso

afirmar. O Mago parecia suficientemente calmo, mas também toda a

vida fizera aquilo.

A cave era grande, ainda maior do que eu esperava, tão grande, na

verdade, que devia ter uma área superior à do térreo da casa. Uma

parede escorria água e o teto baixo mesmo por cima dela estava cheio

de umidade, de modo que me perguntei se ficaria à beira do regato ou

na realidade por debaixo dele.

A parte seca do teto encontrava-se coberta de teias de aranha, tão

grossas e emaranhadas que devia ter estado um exército de aranhas a

tecer. Se apenas uma ou duas aranhas tinham tecido aquilo, então não

as queria conhecer. Passei muito tempo olhando para o teto e as

paredes porque estava a retardar o momento em que teria de olhar para

o solo. Mas alguns segundos depois senti os olhos do Mago cravados em

mim, de modo que não tive outra alternativa e acabei por me obrigar a

olhar para baixo.

Vira o que o Mago guardava em dois dos jardins lá em Chipenden.

Calculei que ali fosse mais do mesmo, mas ao passo que as sepulturas e

os poços lá estavam espalhados entre as árvores onde o sol

esporadicamente incidia pintalgando o solo de sombras, aqui havia

muitas mais e senti-me encurralado, rodeado de quatro paredes e do

teto baixo com teias de aranha.

Havia nove sepulturas de bruxas, cada uma assinalada com uma lápide,

e a parte da frente deste um metro e oitenta de solo guarnecida de

pedras mais pequenas. Presas àquelas pedras por parafusos de ferro e a

cobrir cada pedaço de terra, viam-se treze barras grossas de ferro.

Tinham sido colocadas ali para impedir as bruxas mortas debaixo delas

de abrirem caminho escavando até à superfície.

Depois, ao longo de uma parede da cave, havia pedras muito mais

pesadas, maiores. Eram três e cada uma fora talhada pelo pedreiro

exatamente da mesma maneira: A letra grega beta avisava quem

Page 395: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

soubesse ler os símbolos que os demônios estavam aprisionados em

segurança por debaixo delas, e o numeral romano «I» no canto direito

indicava que eram de primeira categoria, criaturas mortíferas capazes de

acabar com um homem em menos de um piscar de olhos. Nada de novo

nisso, pensei, e como o Mago era bom no que fazia, não havia nada a

temer dos demônios que estavam ali aprisionados.

— Há também aqui em baixo duas bruxas vivas —

afirmou o Mago —, e aqui está a primeira — prosseguiu, apontando para

um poço quadrado escuro com uma cerca de pequenas pedras

atravessada por treze barras de ferro para a impedir de sair. — Repare

na pedra angular — disse, apontando para baixo.

Vi então algo em que não reparara antes, mesmo lá em Chipenden. O

Mago aproximou mais a vela para que eu pudesse ver melhor. Havia um

símbolo, muito menor do que o das pedras de demônio, seguido do

nome da bruxa.

— O símbolo é a letra grega sigma porque classificamos todas as bruxas

com «F» de feiticeira3. São tantos os tipos que, sendo mulheres e sutis,

com frequência se torna difícil categorizá-las com exatidão — explicou o

Mago. — Ainda mais do que um demônio, uma bruxa 3 À semelhança de

exemplos anteriores, a equivalência perde-se com a tradução, visto a

letra sigma corresponder a S de sorceress, feiticeira em português. (NT)

possui uma personalidade capaz de mudar com o tempo.

Por isso tem de referir a história delas — a história completa de cada

uma delas, aprisionada ou livre, está registrada na biblioteca lá em

Chipenden.

Sabia que não era verdade no que dizia respeito a Meg. Havia muito

pouco escrito sobre ela na biblioteca do Mago, mas não comentei nada.

De repente, ouvi uma leve agitação vinda da escuridão do poço e recuei

rapidamente um passo.

— Bessy é uma bruxa de primeira categoria? —

perguntei nervosamente ao Mago, porque eram as mais perigosas e

capazes de matar. — Não está assinalado na pedra. . — Todos os

demônios e bruxas nesta cave são de primeira categoria — disse-me o

Mago —, e aprisionei-os todos, por isso nem sempre vale a pena dar

mais trabalho ao pedreiro ao talhar a pedra, mas não tem nada a temer

aqui, rapaz. A Velha Bessy já ali está há muito tempo. Nós a

incomodamos e ela só está se agitando no sono, é tudo.

Agora, venha aqui ver isto. .

Page 396: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Era outro poço de bruxa, exatamente como o primeiro, mas senti

subitamente um arrepio de frio. Algo me disse que o que quer que

estava naquele poço era muito mais perigoso do que Bessy, adormecida

que apenas tentava ficar confortável no solo frio e úmido.

— Agora já podia olhar com mais atenção, rapaz

— disse o Mago —, para que possa ver com o que estamos a lidar.

Levante a sua vela, olhe para baixo e certifique-se de que mantenha os

pés bem recuados!

Não o queria fazer, mas a voz do Mago era firme.

Fora uma ordem. Olhar para o fundo do poço fazia parte da minha

preparação, por isso não tinha escolha.

Inclinei o meu corpo para a frente, mantendo os dedos dos pés bem

recuados das grades e levantei a vela, que lançou uma luz tremulante

pelo poço abaixo. Naquele preciso instante, ouvi um barulho lá no fundo

e algo enorme correu pelo chão e até às sombras escuras no canto mais

próximo. Pareceu cheio de vida, como se capaz de escalar pela parede

do poço para cima mais depressa do que eu conseguia pestanejar!

— Erga a vela bem acima das grades e olhe com atenção! — ordenou o

Mago.

Obedeci, segurando-a à distância do braço. A princípio, apenas consegui

ver dois olhos enormes e cruéis a fitar-me, dois pontos de fogo refletindo

a chama da vela.

Quando olhei com mais atenção, vi um enorme rosto descarnado

emoldurado por um emaranhado de cabelo espesso seboso e um corpo

atarracado por debaixo dele.

Tinha quatro membros e eram mais braços do que pernas, com mãos

grandes alongadas que terminavam com compridas garras afiadas.

Senti um arrepio e a minha mão tremeu tanto que quase deixei cair a

vela pelas grades. Recuei rápido demais e quase caí, mas o Mago

agarrou-me o ombro e firmou-me.

— Não é nada bonito de se ver, rapaz — murmurou, abanando a cabeça.

— O que temos ali em baixo é uma bruxa lâmia. Parecia bastante

humana há mais de vinte anos quando a coloquei ali. Agora tornou-se

novamente selvagem. É o que acontece quando se mete uma bruxa

lâmia num poço. Privada da companhia humana, ela volta lentamente ao

que era. E mesmo passados todos estes anos, ainda está forte. Por isso

conservo as grades de ferro nas escadas. Se alguma vez conseguisse

sair daqui, sempre a retardaria por uns tempos.

Page 397: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

«E não é tudo, rapaz. Sabe, um poço normal de bruxa não é

suficientemente bom para ela. Existem também grades de ferro nos

lados e no fundo do poço, enterradas debaixo do solo. Por conseguinte,

ela está dentro de uma jaula. Isso, para além de uma camada de sal e

ferro do outro lado. Ela é também capaz de escavar rapidamente e fundo

com aquelas quatro mãos com garras, por isso é a única maneira de a

conseguirmos impedir de sair! Diga-me, sabe quem ela é?

Que pergunta tão estranha. Olhei para baixo e li o seu nome na pedra.

O Mago deve ter visto a expressão no meu rosto ao fazer-se luz porque

sorriu com ar sinistro.

— Sim, rapaz. É a irmã de Meg..

— E Meg sabe que ela está aqui em baixo? — inquiri.

— Já soube, mas agora não consegue se lembrar; por isso é melhor

mantê-la assim. Agora venha aqui —

tenho algo mais para te mostrar.

Caminhou na frente por entre as pedras até ao canto extremo, que

aparentava ser a parte mais seca da cave; o teto por cima parecia na

sua maior parte limpo de teias de aranha. Havia um poço aberto, pronto

a ser usado, e a tampa estava mesmo ao lado dele no solo, à espera de

ser arrastada e posicionada.

Vi então, pela primeira vez, como se fazia a tampa para um poço de

bruxa. As pedras exteriores eram unidas com cimento num quadrado e

os pinos compridos atravessavam-nas de uma ponta à outra para haver

a certeza de que se mantinha no lugar. As treze barras de ferro eram

também, na realidade, compridos parafusos, fixos por porcas que

entravam nas pedras. Era uma obra muito inteligente e um pedreiro e

um ferreiro, trabalhando em conjunto, necessitavam de muita perícia

para executá-la.

De repente, a minha boca abriu-se e assim permaneceu tempo suficiente

até que o Mago percebeu. Desta vez, não havia símbolo, mas já fora

gravado um nome na pedra angular mais próxima:

— Qual te parece a melhor maneira, rapaz? —

perguntou o Mago. — Chá de ervas, ou isto? Porque vai ser uma ou a

outra.

— Chá de ervas — respondi, a minha voz pouco mais do que um

murmúrio.

Page 398: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Certo, portanto, agora já sabe por que não pode se permitir esquecer

de lhe dar todas as manhãs. Se se esquecer, ela se lembrará, e não

quero ser obrigado a trazê-la aqui para baixo.

Havia uma pergunta que queria lhe fazer, mas não fiz porque sabia que

não iria agradar ao Mago. Queria saber por que o que era

suficientemente bom para uma bruxa não servia para todas as outras.

Mesmo assim, sabia que não podia me queixar muito, nunca iria

esquecer quão próximo do escuro Alice estivera. Tão próximo que o

Mago achara por bem metê-la num poço. Só cedera porque eu lhe

recordara que ele não o fizera com Meg.

Naquela noite, tive dificuldade em adormecer. A minha cabeça rodava

com o que vira e a percepção do lugar onde vivia. Fora já confrontado

com algumas coisas assustadoras, mas viver numa casa com sepulturas

de bruxas, demônios aprisionados e bruxas vivas na cave não me

deixava lá muito tranquilo. No fim, decidi descer na ponta dos pés.

Deixara o meu livro de notas na cozinha e queria o das lições de latim:

sabia que meia hora a olhar para as listas enfadonhas de nomes e

verbos com certeza fariam chegar o sono.

Antes mesmo de chegar ao fundo das escadas, ouvi ruídos com que não

esperava. Alguém chorava baixinho na cozinha e escutei a voz do Mago

a conversar em voz baixa. Quando cheguei à porta da cozinha, não

entrei; estava entreaberta e vi algo pela fresta que me deixou pregado

ao chão.

Meg estava sentada na cadeira de balanço perto da chaminé. Apoiava a

cabeça nas mãos e os seus ombros subiam e desciam com os soluços. O

Mago estava debruçado sobre ela, falando baixinho e acariciando-lhe o

cabelo. O rosto dele, iluminado pela luz da vela, estava meio virado para

mim e tinha uma expressão que nunca lhe vira antes. Era semelhante à

maneira como o rosto grande e sisudo do meu irmão Jack por vezes se

suaviza quando olha para a mulher, Ellie.

Depois, enquanto observava, para meu espanto, uma lágrima rolou do

olho esquerdo do meu mestre e desceu pela face até lhe chegar à boca.

Sabia que não devia continuar a espreitar, de modo que voltei para a

cama.

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CAPÍTULO 6

UMA PESSOA MUITO PERIGOSA

Os dias não tardaram a entrar numa rotina fixa.

De manhã, as minhas tarefas eram acender as lareiras do térreo e ir

buscar água fresca no regato. Dia sim dia não, tinha de acender todas as

lareiras na casa para que não ficasse úmida demais.. Enquanto

preparava as lareiras dos quartos, tinha instruções para abrir cada janela

cerca de dez minutos a fim de arejar o quarto. Primeiro era necessário

limpar todas as grelhas e subia e descia várias vezes as escadas que

dava graças quando tudo terminava. A do sótão era a pior, claro, e

costumava começar por ela, antes que as minhas pernas ficassem

cansadas demais.

O sótão era realmente uma divisão grande, a maior da casa, com um

imenso espaço de chão. Só tinha uma janela que era uma enorme

clarabóia no telhado. O espaço estava vazio à exceção de uma

escrivaninha de mogno, que se encontrava fechada à chave. Na chapa

de latão à volta do buraco estava gravado um pentagrama, uma estrela

de cinco pontas dentro de três círculos concêntricos.

Sabia que os pentagramas serviam para proteger os magos quando

invocavam espíritos malignos e fiquei curioso em saber por que razão a

chapa apresentava aquele desenho.

A escrivaninha parecia ser bastante cara e perguntei-me também o que

conteria e por que razão o Mago não a trouxera para o seu gabinete de

trabalho, que seria um local muito mais adequado e útil. Nunca tive

oportunidade de lhe perguntar sobre escrivaninha, e quando finalmente

conversamos sobre o assunto, já era tarde demais.

Depois de arejar o sótão, começava a descer, um piso de cada vez. Os

três quartos mesmo por debaixo do sótão não estavam mobiliados.

Havia dois na frente da casa e um na parte de trás.

Este era o pior quarto e também o mais escuro da casa pois só tinha

uma janela, virada para a escarpa. Quando levantei a vidraça e espreitei,

a rocha úmida estava tão próxima que quase era possível estender o

braço e tocar-lhe. Havia uma saliência na escarpa com um caminho a

subir. Pareceu-me que seria possível passar da janela pa-ra a saliência.

Não que eu fosse tolo ao ponto de tentar!

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Uma escorregada e abriria os miolos lá em baixo nas lajes.

Depois de acender as lareiras, dei o chá de ervas a Meg, a seguir treinei

os verbos latinos até ao desjejum, que era muito mais tarde do que lá

em Chipenden. Após o que vinham as lições durante a maior parte do

dia, mas, ao final da tarde eu costumava ir dar um pequeno passeio com

o Mago, não mais de vinte minutos a descer até à base da ravina, no

ponto onde desembocava nas vertentes mais baixas da charneca. Apesar

do trabalho árduo de acender as lareiras, fazia muito mais exercício em

Chipenden e começava a sentir-me inquieto. A cada manhã o ar parecia

mais frio e o Mago disse-me que a primeira neve não tardaria a chegar.

Uma manhã o meu mestre foi a Adlington visitar o irmão Andrew, o

serralheiro. Quando lhe perguntei se o podia acompanhar, ele recusou.

— Não, rapaz, alguém precisa ficar vigiando Meg.

Além disso, tenho de conversar com Andrew. Os assuntos de família são

particulares. E quero pô-lo a par do que está acontecendo...

Presumi que o Mago fosse contar ao irmão toda a história sobre o que

nos acontecera em Priestown, altura em que o meu mestre quase

morrera na fogueira por ordem do Inquisidor. Mal tínhamos regressado a

Chipenden, o Mago enviara uma carta para Adlington, informando o

irmão de que estava salvo, mas provavelmente agora queria narrar os

pormenores.

Fiquei realmente desapontado por me excluírem —

estava desesperado por saber como se dava Alice — mas não tinha

escolha e, apesar do chá de ervas, Meg precisava realmente de ser

vigiada com atenção. O Mago temia em particular que ela pudesse sair

da casa e afastar-se, por isso tinha de me certificar de que tanto a porta

da frente como a de trás se conservavam fechadas à chave. Por sinal,

ela teve uma atitude completamente inesperada. .

A tarde já ia adiantada, e estivera no gabinete de trabalho do Mago a

escrever uma lição no meu livro de notas. De quinze em quinze minutos

ia ver se Meg estava bem. Normalmente, encontrava-a a cochilar diante

da chaminé; ou isso ou a preparar os legumes para a ceia.

Mas quando a fui ver desta vez, ela não estava lá.

Corri primeiro para as portas, por via das dúvidas, mas estavam ambas

trancadas. Depois de ir espreitar a sala de visitas, fui lá em cima.

Esperara encontrá-la no quarto, mas após bater à porta e não obter

resposta, experimentei abri-la. Estava vazio.

Quanto mais subia, pior me começava a sentir.

Page 401: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Quando vi o sótão também vazio, entrei em pânico. Mas depois respirei

fundo. «Pense!», disse para com os meus botões. Onde mais poderia

Meg estar?

Só havia um outro lugar e era nas escadas que conduziam à cave. Não

parecera provável porque o Mago me dissera que só a idéia das escadas

a deixava nervosa. Primeiro fui ao gabinete de trabalho dele,

empoleirando-me no escabelo para procurar em cima da estante. Era

impossível ela ter encontrado a chave sem eu perceber, mas confirmei

mesmo assim. Ainda se encontrava lá. Suspirando de alívio, acendi uma

vela e desci as escadas.

Ouvi o portão muito antes de alcançá-lo. Não parava de soar

atroadoramente, fazendo repercutir aquela barulheira pela casa acima.

Se não tivesse sido o fato de esperar encontrar Meg ali, teria presumido

que algo viera da cave e tentava sair.

Mas era sem dúvida Meg. Agarrara-se às grades com força e as lágrimas

escorriam-lhe pela face. A luz da vela, vi-a abanar o portão. Pela força

que imprimia, dava para ver que ainda estava muito forte.

— Venha, Meg — disse-lhe delicadamente —, vamos para cima. Está frio

e há correntes de ar aqui em baixo. Se não tiver cuidado, apanhará um

resfriado.

— Mas alguém está lá em baixo, Bily. Alguém lá em baixo que precisa de

ajuda.

— Não está ninguém lá em baixo — disse-lhe, consciente de lhe mentir.

A irmã dela, Márcia, a lâmia selvagem, encontrava-se lá, aprisionada no

seu poço. Começava Meg a recordar-se?

— Mas tenho certeza que está, Bily. Não me lembro do nome dela, mas

está lá em baixo e precisa de mim.

Por favor, abra o portão e ajude-me. Deixe-me ir lá embaixo ver. Por

que não vem comigo e traz a sua vela?

— Não posso, Meg. Sabe, eu não tenho a chave que abre o portão.

Venha, por favor. Volte para a cozinha. . — John saberá onde está a

chave? — inquiriu Meg.

— Provavelmente. Por que não lhe perguntamos quando ele regressar?

— Sim, Bily, é uma boa idéia. Faremos isso!

Meg sorriu-me por entre as lágrimas e subiu as escadas. Levei-a para a

cozinha e sentei-a na cadeira de balanço junto à chaminé.

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— Sente-se aqui e aqueça-se, Meg. Vou preparar-lhe outra xícara de chá

de ervas. Vai precisar depois de ter estado naquelas escadas frias e

úmidas...

Meg tomara já a dose habitual do dia e não queria correr o risco de

deixá-la doente, por isso coloquei apenas uma quantidade muito

pequena e adicionei água quente.

Agradeceu-me e não tardou a engoli-lo. Quando o Mago regressou, ela

já estava dormindo.

Quando lhe contei o sucedido, ele abanou a cabeça.

— Isto não me agrada nada, rapaz! A partir de agora, a dose matinal

dela tem de ser dois centímetros no fundo de uma xícara. Não o quero

fazer, mas não há outra alternativa.

Ficara realmente abatido. Raramente lhe vira um ar tão tristonho. Mas

não tardei a descobrir que não era só por causa de Meg.

— Tive más notícias, rapaz — disse-me, deixando-se cair pesadamente

numa cadeira junto à chaminé. —

Emily Burns faleceu. Já arrefeceu na sepultura há mais de um mês.

Não soube o que dizer. Tinham passado muitos anos desde que ele vira

Emily. De então para cá Meg fora a mulher da sua vida. Por que estaria

tão triste?

— Lamento — disse-lhe desajeitadamente.

— Mas não lamenta tanto quanto eu, rapaz — referiu o Mago. — Emily

era uma boa mulher. Teve uma vida difícil mas sempre se esforçou

muito. O mundo ficará mais pobre agora que ela partiu! Quando os bons

morrem, sempre se liberta algum mal que de outro modo estaria

controlado!

Ia perguntar-lhe o que queria dizer com aquelas palavras misteriosas,

mas naquele momento Meg começou a agitar-se e abriu os olhos por

isso remetemo-nos ao silêncio e ele não tornou a mencionar Emily.

Ao desjejum da oitava manhã depois de termos chegado, o Mago afastou

de si o prato, congratulou Meg pelos seus cozinhados e depois virou-se

para mim.

— Bem, rapaz, acho que está na hora de ir ver como se está saindo

aquela jovem. Acha que consegue encontrar o caminho?

Anuí, tentando não dar mostras de grande satisfação, e dez minutos

depois descia em passadas a ravina indo sair do outro lado da vertente

com o céu aberto lá no alto. Passei a norte de Adlington, em direção a

Moor View Farm, onde Alice ficara instalada.

Page 403: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Quando o Mago decidira viajar para a sua casa de Inverno, eu presumira

que pouco depois o tempo iria piorar e, na verdade, fora arrefecendo

gradualmente. Mas hoje parecia ter mudado para melhor. Apesar de

estar uma manhã fria, com geada, o sol brilhava, não havia nuvens e

conseguia ver a uma distância de quilômetros. Era uma daquelas

manhãs em que era bom estar vivo.

Alice deve ter me visto aproximar colina abaixo porque saiu do pátio da

fazenda e veio ao meu encontro.

Havia uma pequena mata perto do limite da fazenda e aguardou ali na

sombra das árvores. Parecia realmente triste, e percebi, antes sequer de

ela falar, que não estava feliz no seu novo lar.

— Não é justo, Tom. O Velho Gregory não podia ter me arranjado lugar

pior onde ficar! Não é muito divertido estar com os Hursts!

— É mesmo tão mau assim, Alice? — inquiri.

— Estaria melhor em Pendle, pode ter certeza.

Era em Pendle que vivia a maior parte da família de bruxas de Alice. E

ela detestava porque a tratavam mal.

— São cruéis com você, Alice? — perguntei, ficando alarmado.

Alice abanou a cabeça.

— Ainda não me puseram a mão em cima. Mas não falam muito comigo.

E não demorei a perceber por que eram tão calados e infelizes. É aquele

filho deles — o que se chama Morgan, por quem o Velho Gregory

perguntou.

É cruel e mau, se é. Nunca vi nada assim. Que tipo de filho bate no pai e

grita com a mãe até a fazer chorar? Nem sequer lhes chama Mãe e Pai.

«Velho» e «Velha» é o melhor que conseguem dele. Têm medo dele, se

têm, e mentiram ao Velho Gregory porque Morgan vai lá muitas vezes.

Não tenho nada a ver com isso, mas não aguento mais. Se for

necessário, de uma maneira ou de outra, dou-lhe cabo.

— Não faça nada por enquanto — aconselhei-a. —

Deixe-me falar primeiro com o Mago.

— Não me parece que ele vá correr a ajudar. Calculo que o Velho

Gregory tenha feito de propósito. Aquele filho deles é da mesma laia.

Anda de capa com capuz e traz também um bordão! Provavelmente

pediu-lhe que ficasse de olho em mim.

— Bem, ele não é mago, Alice.

— O que mais poderia ser?

Page 404: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— É um dos aprendizes fracassados do Mago e eles não se dão. Lembra-

se da última noite em Chipenden em que trouxe uma carta e o Mago

ficou realmente furioso? Não tive oportunidade de te contar, mas aquela

carta era de Morgan. Ele tem andado a ameaçar o Mago. Disse que o

meu mestre tem algo que lhe pertence.

— Bem, ele é mesmo muito perigoso — continuou Alice. — Não visita

apenas a casa. Algumas noites desce a colina e vai ao lago. Observei-o a

noite passada. Põe-se perto da beirada e olha fixamente para a água.

Por vezes a sua boca move-se como se falasse com alguém. A irmã dele

afogou-se no lago, não foi? Calculo que esteja falando com o fantasma

dela. Não me surpreenderia se ele a tivesse afogado!

— E bate no pai? — perguntei. Aquilo foi o que mais me chocou. Fez-me

pensar no meu próprio pai e formou-me um nó na garganta só da

lembrança. Como podia alguém levantar a mão contra o próprio pai?

Alice acenou com a cabeça.

— Discutiram duas vezes desde que estou lá.

Grandes desavenças. Da primeira vez, o velho Mr. Hurst tentou expulsá-

lo da casa e andaram se atracar. Morgan é muito mais jovem e forte e

pode calcular quem levou a pior. Da segunda vez, arrastou o pai lá para

cima e trancou-o no seu quarto. O velho começou a gritar. Não gostei

nada daquilo. Fez-me lembrar quando vivia com a minha própria família

lá em Pendle. Talvez se contar ao Velho Gregory como isto é mau, ele

me deixe vir morar com vocês.

— Não creio que fosse gostar de Anglezarke. A cave está cheia de poços

e ele tem duas bruxas vivas lá em baixo, e uma delas é irmã de Meg e é

uma bruxa lâmia selvagem. É medonho vê-la correr pelo poço. Mas

tenho mais pena da própria Meg. Tinha razão a respeito dela.

Vive na casa com o Mago, mas está medicada com uma poção para não

conseguir se lembrar de quem é. Passa mais da metade do ano trancada

numa cela lá em baixo perto da cave. É realmente triste de ver. Mas o

Mago não tem outra alternativa. Ou isso ou metê-la num poço como a

irmã. — Não está certo manter uma bruxa num poço.

Nunca concordei com isso. Mas preferia estar lá com você do que ter de

ver Morgan a maior parte dos dias. Sinto-me sozinha, Tom. Sinto a sua

falta!

— Também sinto a sua falta, Alice, mas não posso fazer nada no

momento. Porém, vou contar ao Mago o que acabou de dizer, e pedir-lhe

novamente. Farei o meu melhor, prometo. Mas diga-me, Morgan está lá

Page 405: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

em baixo neste momento? — indaguei, indicando a fazenda com a

cabeça.

Alice abanou a cabeça.

— Não o vejo desde ontem. Sem dúvida voltará em breve.

Não falamos muito mais depois porque Mrs. Hurst, a mulher do

agricultor, apareceu à porta e começou a chamar Alice, e ela teve de ir

embora.

Alice ficou carrancuda e ergueu os olhos para o céu.

— Virei te visitar em breve! — prometi-lhe quando ela se virou para ir.

— Faça isso, Tom. Mas peça ao Velho Gregory, por favor!

No entanto, não voltei logo para casa do Mago. Fui mesmo até ao topo

da charneca, onde o vento poderia limpar as teias de aranha da minha

cabeça. A minha primeira impressão foi de que o topo da charneca era

bastante plano, e a paisagem menos bonita do que a das extensões

rochosas por cima de Chipenden. Tão pouco era a vista dos campos lá

em baixo tão dramática.

Mesmo assim, havia colinas mais altas a sul e leste, e para lá de

Anglezarke, até mais charnecas. Mesmo a sul ficavam Winter Fíill e

Rivington, Smithhil s para lá delas e, a leste, Turton Moor e Darwen

Moor. Sabia porque estudara os mapas do Mago antes de partirmos,

tendo o cuidado de os dobrar cuidadosamente depois. Assim, tinha já na

mente uma boa idéia da configuração da zona. Havia muito o que

explorar e decidi que iria pedir um dia de folga ao Mago para o fazer

antes que o tempo invernoso chegasse de verdade. Calculei que

provavelmente ele concordasse em parte porque compete a um mago

conhecer a geografia do Condado, a fim de ir rapidamente de um lugar

ao outro e encontrar o caminho quando alguém manda pedir ajuda.

Desci mais até ver uma pequena colina arredondada ao longe, mesmo

no cimo da charneca. Parecia artificial e calculei que fosse uma cripta,

uma elevação tumular de algum antigo chefe de clã. Precisamente

quando ia me afastar, apareceu uma figura no seu cume. Trazia um

bordão na mão esquerda e usava uma capa com o capuz puxado para a

frente. Só podia ser Morgan!

O seu aparecimento na cripta foi tão súbito que quase pareceu ter

surgido do nada. No entanto, o bom senso disse-me que ele subira

simplesmente a vertente do outro lado da colina.

Mas o que fazia ele? Não conseguia perceber. Parecia uma espécie de

dança! Sacudia-se e agitava os braços no ar. Depois, muito de repente,

Page 406: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

soltou um urro de raiva e arremessou o bordão ao chão. Estava em

fúria. Mas do quê?

Um instante depois, avançou do leste, uma mancha de bruma que o

escondeu, de modo que retomei o meu caminho. Certamente não me

agradava nada ter de ficar frente a frente com ele. Especialmente

atendendo ao seu presente estado de espírito!

Depois daquilo, não me detive demais nas charnecas. De qualquer

forma, se eu regressasse em tempo razoável, provavelmente o Mago me

deixaria voltar a ver Alice em breve. E estava ansioso por lhe contar o

que soubera.

Assim, depois da nossa refeição do meio-dia, contei ao meu mestre que

vira Morgan no cume da charneca e tudo o que Alice dissera a respeito

dele.

O Mago coçou a barba e suspirou. — A garota tem razão. Morgan é uma

pessoa muito perigosa, não há dúvida. Veste-se como um mago e

algumas pessoas crédulas toma-o agora por isso. Mas falta-lhe a

disciplina para dominar o nosso ofício. Era também preguiçoso e

negligente. Já se vão quase dezoito anos desde que ele me deixou, e de

lá para cá tem andado sobretudo a fazer das suas.

Tem-se na conta de um esconjurador e leva dinheiro de gente boa e

honesta quando está mais vulnerável. Tentei impedi-lo de seguir maus

caminhos, mas pelos vistos algumas pessoas recusam-se simplesmente

a ser ajudadas.

— Um esconjurador? — inquiri, não familiarizado com a palavra.

— É outra palavra para mago ou feiticeiro, rapaz.

Alguém que pratica a chamada magia. Ele efetua também algumas

curas, mas a sua especialidade é a necromancia.

— Necromancia? O que é isso? — inquiri. Nunca ouvira o Mago usar o

termo antes e percebi que teria de tomar muitas notas no meu livro

depois da nossa conversa.

— Pense, rapaz. Vem do grego, por isso deve conseguir entender o que

significa!

— Bem, nekros significa «cadáver» — afirmei, após alguma reflexão

cuidada. — Por isso calculo que seja algo ligado aos mortos.

— Lindo rapaz! Ele é um esconjurador que usa os mortos para o

ajudarem e darem-lhe poder.

— Como? — quis saber.

Page 407: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Bem, conforme já te disse, os fantasmas e imagens fantasmagóricas

intervém ambos na atividade. Mas ao passo que nós conversamos

demoradamente com eles e os mandamos embora, ele faz o contrário.

Ele aproveita-se dos mortos. Usa-os como espiões. Encoraja-os a ficar

presos à terra para servir os seus propósitos e ajudá-lo a encher os

bolsos de prata. Às vezes ludibriando gente vulnerável e aflita.

— Nesse caso ele é uma fraude? — perguntei.

— Não, ele fala mesmo com os mortos. Portanto lembre-se disto, e

lembre-se bem: Morgan é um homem perigoso e as suas ligações com o

escuro têm-lhe granjeado alguns poderes muito reais e perigosos que

deveríamos temer. É também implacável, e machucaria seriamente

alguém que se atravessasse no seu caminho. Por isso, mantenha-se bem

distante dele, rapaz.

— Por que não o impediu antes? — perguntei. —

Não podia ter tratado dele há anos?

— É uma longa história — retorquiu o meu mestre. — Por acaso até

podia, só que o momento não era oportuno então. Mas trataremos dele

em breve. Procure manter-se afastado dele até estarmos preparados —

e pare de me dizer como fazer o meu trabalho!

Baixei a cabeça e o meu mestre bateu-me de leve no braço.

— Vamos, rapaz, nada está perdido. O seu raciocínio está certo. Agrada-

me ver que pense por si mesmo. E

a garota agiu bem ao espiá-lo falando com o fantasma da irmã. Foi

exatamente por isso que a coloquei lá, para ficar atenta a esse tipo de

coisas!

— Mas não é justo! — protestei. — O senhor sabia que Alice iria passar

lá um mau bocado.

— Sabia que não iria ser um mar de rosas, rapaz.

Mas a garota tem de compensar pelo que fez no passado e ela é mais do

que capaz de olhar por si mesma. Ainda assim, quando tivermos tratado

de Morgan, será um lar muito mais feliz. Mas primeiro temos de

encontrá-lo.

— Alice disse que os Hursts mentiram. Morgan visita a fazenda muitas

vezes.

— Ah pois visita!

— Disse-me que no momento ele não está lá mas que pode regressar a

qualquer instante.

Page 408: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Bem, talvez seja por aí que deveríamos iniciar a nossa busca amanhã

— afirmou o Mago, parecendo pensativo.

Como o silêncio se prolongasse, cumpri a minha promessa a Alice muito

embora soubesse que o pedido era uma perda de tempo.

— Alice não poderia ficar de novo conosco? —

perguntei. — Ela tem mesmo passado um mau bocado. É

cruel abandoná-la quando existe espaço suficiente para ela aqui.

— Para quê fazer uma pergunta se já sabe a resposta? — argumentou o

Mago, deitando-me um olhar furioso. — Não me venha com falas

mansas. Se deixar que o coração mande na sua cabeça, então o escuro

te vencerá sempre. Não se esqueças, rapaz — pode muito bem um dia

lhe salvar a vida. E já temos bruxas de sobra a viver aqui.

E a nossa conversa morreu ali. Mas não fomos à fazenda dos Hursts no

dia seguinte. Aconteceu algo que alterou tudo.

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CAPÍTULO 7

O ARREMESSADOR DE PEDRAS

Logo a seguir ao desjejum, o filho enorme e entrançado de um agricultor

por pouco não colocava abaixo a porta de trás com ambos os punhos,

como se a sua vida dependesse disso.

— O que está tentando fazer, meu grande bruta-montes? — exclamou o

Mago, escancarando a porta. —

Quer arrebentar com isto?

O rapaz parou de dar socos na porta e o seu rosto ficou vermelho que

nem um pimentão.

— Perguntei pelo senhor na aldeia — disse, apontando na direção de

Adlington. — Um carpinteiro veio ao pátio e indicou o caminho para cá.

Disse-me que batesse com força na porta de trás.

— Sim, mas ele disse bater, não arrebentar com ela

— redarguiu o Mago, furioso. — Adiante-se, qual o assunto que te traz

até mim?

— O Pai mandou-me. Ele disse para vir imediatamente. É um assunto

mau. Morreu um homem.

— Quem é o seu pai? — inquiriu o Mago.

— Henry Luddock. Moramos em Stone Farm, perto de Orshaw Clough.

— Já conheço o seu pai e trabalhei para ele antes.

Por acaso não será o Wiliam?

— Isso mesmo. .

— Bem, William, da última vez que visitei Stone Farm não passava de

um bebê de colo. Vejo agora que está aflito, por isso entre e sente-se.

Depois respire fundo, acalma-se e comece pelo princípio. Quero todos os

pormenores, por isso não omita nada — ordenou o Mago.

Quando atravessamos a cozinha para chegar à sala de visitas, nem sinal

de Meg. Quando não estava a trabalhar, costumava vir sentar-se na sua

cadeira de balanço, aquecendo as mãos na lareira da cozinha. Perguntei-

me se estaria escondida visto termos visitas — algo que deveria ter feito

quando Shanks viera entregar as mercearias.

Uma vez na sala de visitas, William deu início ao seu relato dos

acontecimentos que tinham começado bastante mal e depois ficado bem

pior. Parecia que um demônio, provavelmente aquele que o meu mestre

Page 410: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

e eu ouvíramos atravessar as linhas antigas noites antes, se instalara em

Stone Farm, dando início às suas travessuras fazendo alguns ruídos

durante a noite. Mexera nos tachos e panelas da cozinha, batera na

porta da frente e dera murros nas paredes várias vezes. Era suficiente

para eu o identificar logo pelas notas que tomara a respeito dos

demônios. Era um barulhento, por isso já calculava o que se seguiria na

história de Wiliam. Na manhã seguinte começara a arremessar pedras.

Inicialmente, tinham sido apenas pequenos seixos, que batiam nas

vidraças, rebolavam pelas telhas ou caíam pela chaminé. Depois as

pedras tornaram-se maiores. Muito maiores.

O Mago ensinara-me que os barulhentos por vezes evoluíam

para arremessadores de pedras. Estes eram demônios com mau gênio e

muito perigosos de enfrentar. O morto era um pastor que trabalhava

para Henry Luddock. O seu corpo fora encontrado na vertente inferior da

charneca.

— Tinha a cabeça esmigalhada — contou-nos William. — A pedra que o

matou era maior do que a cabeça dele. — Tem certeza de que não foi

um acidente? —

perguntou o Mago. — Ele pode ter tropeçado, caído e batido com a

cabeça.

— Claro que temos a certeza: ele estava estendido de costas e tinha a

pedra em cima dele. Depois, enquanto trazíamos o corpo para baixo,

começaram a cair outras pedras à nossa volta. Foi horrível. Julguei que

ia morrer.

Irá nos ajudar? Por favor. O meu pai está louco de preocupação. Há

trabalho a fazer mas não é seguro sair para o exterior.

— Sim, volte e diga ao seu pai que estou a caminho. Quanto ao trabalho,

ordenhem as vacas e só façam o que for mesmo necessário. Os

carneiros sabem cuidar de si próprios, pelo menos até a neve chegar,

por isso afastem-se da vertente da colina.

Depois de William ir embora, o Mago virou-se para mim e abanou a

cabeça pesarosamente.

— É um caso complicado, rapaz — disse. — Os arremessadores de

pedras são turbulentos mas raramente matam, por isso este patife pode

voltar a fazer o mesmo.

Já tratei antes de um ou dois como ele e normalmente acabou pelo

menos com uma forte dor de cabeça pelo meu trabalho. Não é bem o

mesmo que lidar com um estripador, mas por vezes pode ser igualmente

Page 411: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

perigoso. Houve magos que foram mortos por arremessadores de

pedras.

Já lidara com um estripador no Outono. O Mago estivera doente e tivera

de fazer tudo sem ele, auxiliado por um aparelhador e o seu ajudante.

Fora bastante assustador porque os estripadores costumam matar a sua

presa.

Este também era assustador, mas de uma forma diferente.

Não podíamos fazer muito para nos defendermos dos pedregulhos que

caíam do céu!

— Bem, alguém tem de fazê-lo! — respondi com um sorriso, pondo um

ar corajoso.

O Mago anuiu com gravidade.

— E tem, rapaz, por isso vamos lá nos apressar.

Havia algo que se impunha fazer antes de partirmos. O Mago levou-me

de novo para a sala de visitas e disse-me que fosse buscar a garrafa

castanha rotulada

«CHÁ DE ERVAS».

— Prepare outra bebida para Meg, rapaz — disse o Mago. — Só que

desta vez faça-a mais forte. Encha uns bons centímetros. Deve funcionar

pois voltaremos ainda esta semana.

Fiz o que me mandavam, usando pelo menos cinco centímetros da

bebida escura. Depois pus a chaleira ao fogo e enchi a xícara quase até à

borda com água quente.

— Beba isto, Meg — disse-lhe o Mago quando lhe entreguei a xícara

fumegante. — Vai precisar porque o tempo está a esfriar e pode te

causar dores nos ossos.

Meg sorriu-lhe e dez minutos depois ela esvaziara a xícara e começava

já a cabecear. O Mago entregou-me a chave do portão e disse-me que

fosse andando. Depois pegou em Meg como se fosse um bebê e veio

atrás de mim, com esforço.

Abri o portão, depois desci as escadas e esperei junto à porta do meio

das três enquanto o meu mestre levava Meg para o interior escuro.

Deixou a porta aberta e pude escutar cada palavra que lhe disse.

— Boa noite, meu amor — proferiu. — Sonhe com o nosso jardim.

Sei perfeitamente que não deveria ter escutado, mas escutara, e senti-

me um pouco embaraçado ao ouvir logo o meu mestre falar daquela

maneira.

Page 412: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

E a que jardim se referia o Mago? Seriam os jardins de Chipenden? Se

sim, esperava que fosse o jardim ocidental com a vista para as

extensões rochosas. Nos outros dois, com os poços dos demônios e as

sepulturas das bruxas, nem valia sequer a pena pensar.

Meg não deu qualquer resposta, mas o Mago deve tê-la acordado

quando saiu e trancou a porta atrás de si, porque ela começou

subitamente a chorar como uma criança com medo do escuro. Ao ouvir

aquele som, o Mago estacou e esperou um longo tempo do lado de fora

da porta até o choro finalmente passar e ser substituído por outro som

muito tênue. Ouvi o silvo da respiração que saía por entre os dentes de

Meg ao expirar.

— Ela agora está bem — disse baixinho ao meu mestre. — Está

dormindo. Ouço-a ressonar.

— Nada disso, rapaz! — respondeu o Mago, deitando-me um dos seus

olhares fulminantes. — É mais cantar do que ressonar! — Bem, a mim

parecia-me sem dúvida ressonar, e só me ocorreu que o Mago não

admitia nem a menor atenção a Meg. De qualquer forma, dito isto,

subimos, trancamos o portão e preparamos as nossas coisas para a

viagem.

Seguimos para leste, embrenhando-nos cada vez mais na ravina, até

ficar tão estreita que quase tínhamos de caminhar dentro do regato e

havia apenas uma minúscula fenda de céu cinzento por cima de nós.

Depois, para minha surpresa, chegamos a uns degraus talhados na

rocha.

Eram estreitos e íngremes, escorregadios com pedaços de gelo. Eu

carregava o saco pesado do Mago, o que significava que, se

escorregasse, só tinha uma mão livre para me salvar.

Seguindo o meu mestre, consegui chegar ao topo inteiro e valeu sem

dúvida a escalada porque estava de novo no ar puro, rodeado de amplos

espaços. O vento soprava com rajadas dignas de nos arrancarem da

charneca e as nuvens eram escuras e ameaçadoras, passando tão rente

às nossas cabeças que quase parecia possível estender o braço e tocar-

lhes.

Conforme lhes disse, sendo uma charneca, Anglezarke era alta mas

muito mais plana do que as extensões rochosas que deixáramos para

trás em Chipenden. Havia, porém, algumas colinas e vales, alguns deles

com formas muito estranhas. Um em particular destacava-se porque era

uma elevação pequena, arredondada e lisa demais para ser natural.

Page 413: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Quando passamos perto dela, reconheci-a subitamente como a cripta

onde vira o filho dos Hursts.

— Foi onde vi Morgan — disse ao Mago. — Ele estava mesmo ali no topo.

— Não duvido que estivesse. Ele sempre teve um fascínio por aquela

cripta e não consegue ficar longe dela.

Sabe, chamam-lhe Round Loaf4, por causa da forma —

explicou o Mago, apoiando-se no seu bordão. — Foi construída em

tempos antigos, pelos primeiros homens que chegaram ao Condado

vindos do oeste. Desembarcaram em Heysham, como muito bem sabe.

— Para que serve? — inquiri.

— Poucos o sabem ao certo, mas muitos são suficientemente tolos para

dar um palpite. A maioria pensa que é apenas uma cripta onde jaz um

antigo rei com a ar-4 Pão Redondo. (NT)

madura e o ouro. Pessoas gananciosas abriram poços fundos, mas,

apesar de todo o seu trabalho árduo, não encontraram nada. Sabe o que

significa a palavra Anglezarke, rapaz?

Abanei a cabeça e senti um arrepio de frio.

— Pois bem, significa «templo pagão». Toda a charneca era uma imensa

igreja, aberta para os céus, onde aquele povo antigo venerava os

Deuses Antigos. E, como a sua mãe te contou, o mais poderoso desses

deuses chamava-se Golgoth, que significa Senhor do Inverno. Há quem

diga que esta elevação era o seu altar especial. Para começar, ele

possuía uma força poderosa sobre os elementos, um espírito da natureza

que adorava o frio. E

como foi venerado durante tanto tempo e tão fervorosa-mente, tornou-

se consciente e voluntarioso, ficando por vezes mais tempo depois da

estação que lhe fora atribuída e ameaçando um domínio de gelo e neve

um ano inteiro.

Há quem pense até que foi o poder de Golgoth que provocou a última

Era Glacial. Vá lá saber. Para todos os efeitos, nas profundezas do

Inverno, no solstício, temendo que o frio pudesse nunca mais acabar e a

Primavera nunca mais voltar, as pessoas ofereceram sacrifícios para o

apaziguar. Foram sacrifícios de sangue, porque os homens nunca

aprendem.

— Animais? — perguntei.

— Humanos, rapaz — fizeram-no para que, empanturrado com o sangue

das vítimas, Golgoth ficasse saciado e mergulhasse num sono profundo,

deixando a Primavera voltar. Subsistem ainda os ossos dos que foram

Page 414: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

sacrificados. Escave em qualquer ponto no raio de um quilômetro daqui

e não tardará a encontrar ossos com fartura.

«Esta elevação é algo mais que sempre me trouxe desconfianças em

relação a Morgan. Não conseguia manter-se afastado deste lugar e

sempre se mostrou interessado em Golgoth — interessado demais para o

meu gosto

— e provavelmente ainda mostra. Sabe, há quem pense que Golgoth

podia ser a solução para alcançar a supremacia mágica, e se um

esconjurador como Morgan aproveitasse o poder de Golgoth, então a

força do escuro viria a dominar o Condado.

— E acha que Golgoth ainda está aqui, em algum lugar na charneca. .

— Sim. Dizem que dorme lá no fundo por debaixo dela. Daí o interesse

de Morgan em Golgoth ser perigoso.

O problema, rapaz, é que os Deuses Antigos ganham força quando são

venerados por homens tolos. O poder de Golgoth diminuiu quando esse

culto cessou e ele mergulhou num sono profundo. Um sono de que

nós não queremos que acorde.

— Mas por que deixaram as pessoas de o venerar?

Julguei que tivessem medo de que o Inverno pudesse nunca mais

acabar?

— Sim, rapaz, isso é verdade, mas por vezes há outras circunstâncias

mais importantes. Talvez uma tribo mais forte que se muda para a

charneca com um deus diferente. Ou talvez as sementeiras não cresçam

e um povo tenha de se deslocar para uma zona mais fértil. A razão

perde-se no tempo, mas neste momento Golgoth dorme.

E é assim que quero que ele fique. Por isso mantenha-se afastado deste

lugar, rapaz, é o conselho que te dou. E

vamos tentar manter Morgan longe dele também. Agora ande daí, já não

resta muito mais luz do dia, por isso é melhor apressarmo-nos.

Ditas aquelas palavras, o Mago afastou-nos e uma hora depois deixamos

a charneca e rumamos a norte, chegando a Stone Farm antes de

escurecer. William, o filho do agricultor, estava à nossa espera ao fundo

do caminho e subimos a colina em direção à fazenda precisamente

quando a luz começava a desaparecer. Mas antes de visitar a casa da

fazenda, o Mago insistiu em ser conduzido ao local onde fora encontrado

o corpo. Uma trilha que partia do portão na parte de trás da fazenda

conduzia diretamente à charneca, que era escura e ameaçadora sob o

Page 415: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

céu cinzento. O vento amainara entretanto, as nuvens avançando

lentamente e parecendo carregadas de neve.

Cerca de duzentos passos levaram-nos a uma ravina muito mais

pequena do que aquela onde fora construída a casa do Mago, mas não

menos sinistra e ameaçadora. Era apenas um barranco estreito cheio de

lama e pedras, dividido ao meio por um riacho de curso rápido.

Parecia não haver muito mais que ver mas não me sentia à vontade,

nem tão pouco Wil iam. Os olhos dele andavam de um lado para o outro

e virava-se constantemente de repente, como se pensasse que algo se

pudesse aproximar dele por trás. Era curioso observar mas também eu

estava assustado demais para esboçar sequer um sorriso. — Com que

então é este o lugar? — perguntou o Mago quando parou.

William anuiu e indicou um pedaço de solo onde os tufos de erva

estavam espalmados.

— E aquela é a pedra que levantamos da cabeça dele — disse,

apontando para um bocado de rocha cinzenta grande. — Foi preciso dois

para a içar!

A rocha era grande e olhei para ela carrancudo, temendo pensar que

algo assim pudera cair do céu. Fez-me perceber quão perigoso um

arremessador de pedras podia ser.

Depois, de um momento para o outro, começaram a cair pedras. A

primeira era pequena, o ruído dela ao bater na erva tão fraco que mal o

ouvi acima do gorgolejar do riacho. Olhei para as nuvens bem a tempo

de ver uma pedra bem maior descer, por pouco não me acertando na

cabeça. Não tardou que principiassem a cair à nossa volta pedras de

todos os tamanhos, algumas suficientemente grandes para nos

causarem danos graves.

O Mago apontou com o bordão na direção da fazenda e, para minha

surpresa, voltou para trás, começando a descer a ravina. Deslocávamo-

nos rapidamente, e procurei acompanhar o ritmo, o saco tornando-se

mais pesado a cada passo, a lama escorregadia sob os meus pés. Só

quando chegamos ao pátio da fazenda é que paramos, exaustos.

As pedras tinham deixado de cair, mas uma delas fizera estragos. Havia

um golpe na testa do Mago, de onde escorria sangue. Não era grave

nem punha em risco a sua saúde, mas vê-lo ferido daquela maneira

deixou-me preocupado.

Um arremessador de pedras matara um homem e, no entanto, de

alguma forma, o meu mestre — que já não era nada jovem — ia ter de

Page 416: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

lidar com ele. Eu sabia que amanhã ele ia mesmo precisar do aprendiz.

Sabia que ia ser um dia aterrador.

Henry Luddock recebeu-nos muito bem quando regressamos à fazenda.

Em breve estávamos sentados na cozinha dele em frente a uma lareira

de toras acesa. Era um homem grande, corado e jovial que não se

deixara abater pela ameaça do demônio. Ficara triste com a morte do

pastor que contratara, mas foi simpático e atencioso conosco e quis

fazer de anfitrião oferecendo-nos uma lauta ceia.

— Obrigado pela oferta, Henry — disse-lhe o Ma-go, declinando

educadamente. — É muito gentil da sua parte, mas nós nunca

trabalhamos de barriga cheia. Só arranjaríamos confusão. Mas esteja à

vontade e coma o que quiser.

Para meu desalento foi exatamente o que a família Luddock fez.

Sentaram-se e atacaram doses monumentais de empada de vitela,

enquanto uma miserável bocada de queijo e um copo de água foi tudo o

que o Mago nos permitiu.

Fiquei então ali sentado a mordiscar o meu queijo, pensando em Alice

naquela casa onde era tão infeliz. Se não tivesse sido este demônio,

talvez o Mago tivesse tratado de Morgan e melhorado a situação. Mas

com um arremessador de pedras para enfrentar, sabia-se lá quando é

que ele o poderia fazer.

Não havia quartos a mais em casa dos Luddocks e o Mago e eu

passamos uma noite desconfortável, cada um embrulhado no seu

cobertor no chão da cozinha, perto das cinzas da lareira. Frios e rígidos,

levantamo-nos na manhã seguinte bem antes da alvorada e partimos

para a aldeia mais próxima, que se chamava Belmont. O caminho era

sempre a descer, o que facilitava o avanço, mas sabia que não

tardaríamos a retroceder cada passo, efetuando a difícil subida de volta

à fazenda.

Belmont não era muito grande — apenas uma encruzilhada com meia

dúzia de casas e o ferrador que tínhamos vindo visitar. O ferreiro não

pareceu muito satisfeito por nos ver, mas provavelmente dever-se-ia ao

fato de as nossas pancadas o terem arrancado da cama. Era grande e

musculoso como a maior parte dos ferreiros, decerto não um homem

para brincadeiras, mas olhava o Mago com desconfiança e parecia

constrangido. Conhecia bem o ofício do meu mestre.

— Preciso de um machado novo — disse o Mago.

Page 417: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O ferreiro apontou para a parede por detrás da forja, onde havia uma

série de lâminas expostas, toscamente moldadas, à espera do

acabamento final.

O Mago escolheu rapidamente, apontando para a maior. Era enorme e

com lâminas duplas e o ferreiro olhou rapidamente o meu mestre de alto

a baixo, como se a avaliar se seria suficientemente grande e forte para a

manejar. Depois, sem mais delongas, anuiu, resmungou e começou a

trabalhar. Permaneci junto à forja, observando enquanto o ferreiro

aquecia, batia e moldava as lâminas na bigorna, mergulhando-as amiúde

numa tina com água no meio de um enorme fervilhar e uma nuvem de

vapor.

Enfiou-as num comprido cabo de madeira antes de afiá-las na mó, as

faíscas saltando. No total, passou quase uma hora antes de o ferreiro se

dar finalmente por satisfeito e entregar o machado ao meu mestre.

— Agora, vou precisar de um escudo grande —

pediu o Mago. — Tem de ser suficientemente grande para nos proteger

aos dois, no entanto, bastante leve para o rapaz o erguer por cima da

cabeça.

O ferreiro pareceu surpreendido mas foi à loja na parte de trás e voltou

com um enorme escudo redondo.

Era feito de madeira com um rebordo de metal. Tinha também uma

aplicação em ferro ao meio, com um espigão, que o ferreiro começou por

remover, substituindo-a por mais madeira a fim de tornar o escudo mais

leve. A seguir, cobriu o exterior do escudo com folha de alumínio.

Segurando a extremidade exterior, podia agora erguer o escudo acima

da minha cabeça com ambos os braços esticados. O Mago disse que

assim não dava pois eu machucaria os dedos e podia largar o escudo.

Então, a habitual tira de couro foi substituída por duas pegas de madeira

que ficariam do lado de dentro do rebordo.

— Ora bem, vejamos como se sai — disse o Mago.

Obrigou-me a segurar o escudo em várias posições e diferentes ângulos

e, dando-se finalmente por satisfeito, pagou ao ferreiro e regressamos a

Stone Farm.

Fomos logo direto à extensão rochosa. O Mago teve de deixar o seu

bordão pois tinha as mãos cheias de levar o machado e o seu próprio

saco. Eu me via atrapalhado com o pesado escudo, satisfeito por ele não

esperar que lhe carregasse também o saco. Subimos até alcançarmos o

Page 418: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

local onde o homem morrera. Então, o Mago parou e olhou-me

duramente nos olhos.

— Agora precisa de ser corajoso, rapaz. Muito corajoso. E temos de agir

rapidamente — advertiu-me. — O

demônio habita debaixo das raízes de um velho espinheiro além. Temos

de derrubar e queimar a árvore para expulsá-lo.

— Como é que o sabe? — indaguei. — Os arremessadores de pedras

costumam viver sob as raízes das árvores?

— Eles vivem onde lhes convém. Mas geralmente os demônios gostam

de viver em ravinas e, em particular, debaixo das raízes dos espinheiros.

O pastor foi morto aqui mesmo no sopé desta ravina. E sei que existe

um espinheiro além porque é exatamente onde tratei do último, há

quase dezenove anos, quando o jovem John era apenas um bebê de colo

e Morgan meu aprendiz. Mas isso criou-nos um problema porque se

aquele demônio deu ouvidos a um pouco de persuasão simpática e se foi

embora quando lhe pedi, este é um arremessador de pedras velhaco que

já matou, por isso as palavras não serão suficientes.

Assim, seguindo para norte, entramos na extremidade ocidental da

ravina, o Mago impondo um ritmo acelerado à minha frente: não

tardamos a sentir dificuldade em respirar. A lama deu gradualmente

lugar a pedras soltas, tornando difícil o piso sob os nossos pés.

A princípio, mantivemo-nos perto do topo da ravina, mas depois o Mago

começou a descer o cascalho até chegarmos à beira do riacho. Era baixo

e estreito, mas continuava a saltar sobre as pedras, precipitando-se na

descida com tamanha força que teria sido difícil atravessá-lo.

Continuamos a subir contra a corrente, as margens de ambos os lados

erguendo-se íngremes até só ser visível uma nesga de céu lá em cima.

Depois, apesar do ruído do riacho, ouvi o primeiro seixo cair na água

mesmo lá à frente. Era algo de que estivera à espera, mas em breve se

seguiram outras, obrigando-me a tirar o escudo das costas e tentar

segurá-lo por cima das nossas cabeças. O Mago era mais alto do que eu

de modo que tinha de levantá-lo bastante, e não tardou que os ombros e

os braços me começassem a doer. Apesar de manter o escudo à altura

dos braços, o Mago era obrigado a curvar-se e o progresso não era

confortável para nenhum de nós.

Dali a pouco avistamos o espinheiro. Não sendo particularmente grande,

era uma árvore antiga, preta e re-torcida, com raízes nodosas que

faziam lembrar garras.

Page 419: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Erguia-se em desafio, tendo sobrevivido uma centena de anos ou mais

às piores intempéries. Era um bom local pa-ra um demônio se alojar,

especialmente um arremessador de pedras como este, um tipo que

evitava a companhia humana e gostava de estar sozinho.

A queda de pedras aumentava a cada minuto, e precisamente quando

chegamos à árvore, uma maior do que o meu punho embateu no

escudo, por pouco não me ensurdecendo.

— Mantenha-se firme, rapaz! — gritou o Mago.

Depois as pedras pararam de cair.

— Além. . — O meu mestre apontou e, na escuridão por debaixo dos

ramos das árvores, vi o demônio começar a ganhar forma. O Mago

dissera-me que este tipo de demônio era, na realidade, um espírito e

não tinha nem carne, nem sangue nem ossos seus; mas, por vezes,

quando tentava assustar as pessoas, cobria-se de coisas que o tornavam

visível aos olhos humanos. Desta vez estava a usar as pedras e a lama

por debaixo da árvore. Elevaram-se numa enorme nuvem úmida

rodopiante e colaram-se de modo a poder-se ver a sua forma.

Não foi uma visão bonita. Tinha seis braços enormes que, presumo,

eram bastante úteis para arremessar pedras. Não admirava que atirasse

tantas tão depressa. A cabeça era também enorme, assim como o rosto

coberto de lama, visco e pedras que se moveram quando nos olhou

sinistramente, tal como se estivesse a ocorrer lá debaixo um tremor de

terra. Havia uma fenda preta no lugar da boca e dois enormes buracos

pretos onde deveriam ter estado os olhos.

Ignorando o demônio e não perdendo tempo, quando as pedras

começaram a chover de novo, o Mago foi direito à árvore, o machado

descendo já quando a alcançou. A velha madeira nodosa era rija e foram

necessários alguns golpes para lhe cortar os ramos. Eu perdera de vista

o demônio, estando ocupado demais tentando manter o escudo erguido

e repelir as pedras maiores que caíam na nossa direção. O escudo

parecia ficar mais pesado a cada minuto e os meus braços tremiam do

esforço de o manter no alto.

O Mago atacou o tronco, atingindo-o com fúria.

Percebi então por que escolhera um machado com lâminas duplas:

rodava-o tanto para a frente como para trás em enormes arcos de

segadeira, a ponto de sentir a minha própria vida em risco. Olhando para

ele, ninguém diria que fosse tão forte. Estava muito longe de ser jovem,

mas soube então, pela maneira como a lâmina do machado se cravou

Page 420: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

fundo na madeira, que, apesar da sua idade e recente falta de saúde,

continuava pelo menos tão forte quanto o ferreiro e teria feito dois do

meu pai.

O Mago não derrubou logo o espinheiro; rachou o tronco, depois pousou

o machado e levou a mão ao saco preto de couro. Não consegui ver bem

o que fazia porque as pedras principiaram a chover mais intensamente

do que nunca. Olhei de soslaio e vi o demônio começar a ondular e

expandir-se: enormes músculos salientes irrompiam por todo o seu

corpo como furúnculos inflamados. E, quando saltaram mais lama e

seixos, quase duplicou de tamanho.

Aconteceram depois duas coisas numa sucessão rápida.

A primeira foi cair do céu um enorme pedregulho à nossa direita que se

enterrou até a metade no solo. Se nos caísse em cima, o escudo teria

sido insuficiente. Ficaríamos ambos espalmados. A segunda foi a árvore

irromper subitamente em chamas. Tal como disse, não tive oportunidade

de ver de que forma o Mago agiu, mas o resultado foi sem dúvida

espetacular. A árvore acendeu-se com um enorme whoosh e as chamas

iluminaram o céu, as faúlhas a saltar em todas as direções.

Quando olhei para a esquerda, o demônio desaparecera, pelo que, com

braços trêmulos, baixei o escudo e assentei a extremidade inferior no

solo. Assim que o fiz, o Mago pegou no saco, pôs o machado ao ombro

e, sem dizer uma palavra ou olhar para trás, começou a descer a

extensão rochosa.

— Ande daí, rapaz — gritou lá para trás. — Não demore! Então, peguei

no escudo e segui-o, não arriscando sequer um olhar à retaguarda.

Dali a nada o Mago abrandou e alcancei-o.

— Pronto? — inquiri. — Acabou?

— Não sejas tolo! — disse, abanando a cabeça. —

Ainda mal começou. Aquilo foi só o primeiro passo. A fazenda de Henry

Luddock está segura por ora mas aquele demônio voltará a atacar em

algum lugar muito em breve.

O pior ainda está por vir!

Fiquei decepcionado porque julgara que o perigo passara e a nossa

tarefa fora concluída. Estava ansioso por uma refeição quente e

saborosa, mas o Mago acabara de destruir as minhas esperanças porque

teríamos de continuar a jejuar.

Assim que voltamos, ele informou Henry Luddock de que se livrara do

demônio. O agricultor agradeceu-lhe e prometeu pagar-lhe no Outono

Page 421: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

seguinte, logo a seguir às colheitas; cinco minutos depois estávamos de

regresso à casa de Inverno do Mago.

— Tem certeza de que o demônio voltará? Realmente julguei que o

trabalho ficara concluído — disse ao Mago enquanto atravessávamos a

charneca, o vento a empurrar-nos por trás.

— Na verdade, o trabalho ficou meio feito, rapaz, mas o pior ainda está

para vir. Tal como um esquilo enterra as bolotas para comer mais tarde,

um demônio acumula reservas de força no lugar onde se alojou.

Felizmente, por ora desapareceram, arderam juntamente com a árvore.

Vencemos a primeira grande batalha, mas depois de uns dias a reunir

forças, recomeçará a atormentar outra pessoa.

— Nesse caso vamos aprisioná-lo num poço?

— Não, rapaz. Quando um arremessador de pedras mata tão

descontraidamente, é preciso dar um jeito de vez!

— Mas onde ele irá buscar novas forças? — perguntei.

— No medo, rapaz. É assim que ele consegue. Um arremessador de

pedras alimenta-se do medo daqueles que atormenta. Alguma pobre

família aqui perto vai ter uma noite de terror. Não sei para onde ele irá

ou quem escolherá, por isso não se pode fazer nada nem mandar avisar.

É algo que temos de aceitar. Como matar aquela pobre árvore. Não o

queria fazer mas tinha pouca escolha. Aquele demônio se deslocará,

reunirá forças, mas daqui a um dia ou dois encontrará um novo lar mais

definitivo. E

é então que virá alguém pedir-nos ajuda.

— Por que se tornou antes de mais o demônio velhaco? — quis saber. —

Por que matou?

— Por que matam as pessoas? — perguntou o Mago.

— Algumas fazem-no e outras não. E algumas que começam por ser

boas acabam más. Calculo que este arremessador de pedras tenha se

fartado de ser apenas um barulhento, espreitando às esquinas dos

edifícios para assustar as pessoas com pancadas e socos durante a noite.

Queria mais: queria toda a vertente da colina só para si e planejou

expulsar o pobre Henry Luddock e a sua família da fazenda. Mas agora,

como lhe destruímos o lar, irá precisar de outro. Por isso irá seguir ao

longo da linha antiga.

Anuí.

Page 422: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Bem, talvez isto te anime — disse-me, retirando um pedaço de queijo

amarelo do bolso. Partiu um bocadinho e entregou-me. — Mastigue-o —

aconselhou —, mas não o engula todo de imediato.

Uma vez na casa do Mago, fomos buscar Meg à cave e retomei a minha

rotina de tarefas e lições. Mas havia uma grande diferença. Como

aguardávamos problemas com o demônio, o jejum continuou. Para mim

era uma tortura ver Meg cozinhar as refeições para si própria enquanto

nós passávamos fome. Jejuávamos há três dias inteiros até o meu

estômago julgar que me tinham cortado a garganta, mas finalmente,

cerca do meio-dia do quarto dia, ouviu-se uma pancada sonora na porta

das traseiras...

— Vá lá ver quem é, rapaz! — ordenou o Mago. —

São sem dúvida as novas por que temos aguardado.

Fiz o que me mandavam, mas quando abri a porta, para meu espanto,

encontrei Alice ali à espera.

— O velho Mr. Hurst mandou-me — referiu Alice.

— Há um demônio a atormentar Moor View Farm. Então? Não me

convida a entrar?

Page 423: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 8

O REGRESSO DO ARREMESSADOR DE PEDRAS

O Mago acertara em cheio na sua previsão mas ficou tão surpreendido

quanto eu quando conduzi a nossa visita à cozinha.

— O demônio apareceu na fazenda dos Hursts —

informei-o. — Mr. Hurst manda pedir ajuda.

— Venha até à sala de visitas, minha jovem. Falaremos lá — disse,

virando-se para indicar o caminho.

Alice sorriu-me mas não sem antes olhar na direção de Meg, que estava

de costas para nós a aquecer as mãos por cima da lareira.

— Sente-se — ordenou o meu mestre a Alice, fechando a porta da sala

de visitas. — Agora conte-me tudo.

Comece pelo princípio e leve o tempo que precisar.

— Não há muito que contar — esclareceu Alice.

— Tom falou-me o suficiente sobre demônios para ter a certeza de que é

um arremessador de pedras. Há dias que está a lançar pedras sobre a

fazenda — não é seguro sair.

Arrisquei a minha vida só para o vir aqui buscar. O pátio está cheio de

pedras grandes. Quase não resta uma vidraça e derrubou três tubos da

chaminé. Só por um triz ninguém ficou ferido.

— Morgan não tentou fazer nada? — indagou o Mago. — Ensinei-lhe o

suficiente do básico sobre demônios.

— Não o vejo há dias. Também não faz falta nenhuma!

— Parece que é aquilo de que temos estado à espera — referi.

— Sim, também acho. É melhor preparar o chá de ervas. Faça-o tão

forte quanto da última vez.

Levantei-me e abri o armário ao lado da lareira, retirando a garrafa

grande de vidro castanho. Quando me virei, vi a censura no rosto de

Alice. O Mago também a viu. — Sem dúvida, como de costume, o rapaz

pôs-te a par dos meus assuntos privados. Sabe, por conseguinte, o que

ele vai fazer e por que é necessário. Tire-me então essa cara!

Alice não respondeu mas seguiu-me até à cozinha e viu-me preparar o

chá de ervas enquanto o Mago ia ao gabinete de trabalho buscar o seu

diário para o atualizar.

Page 424: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Quando terminei, Meg dormitava na sua cadeira, de modo que tive de

acordá-la com jeitinho abanando-lhe o ombro.

— Tome, Meg — disse-lhe quando abriu os olhos.

— Aqui tem o seu chá de ervas. Beba-o com cuidado para não queimar a

boca. .

Aceitou a xícara mas depois olhou para ela pensativamente.

— Já não tomei hoje o meu chá, Bily?

— Precisa de outra xícara, Meg, porque o tempo está esfriando a cada

dia.

— Oh! Quem é a sua amiga, Billy? É uma garota muito bonita! Que

lindos olhos castanhos!

Alice sorriu quando ela me chamou «Billy» e apresentou-se.

— Sou Alice e costumava viver em Chipenden.

Agora estou morando numa fazenda aqui perto.

— Bom, venha visitar-nos sempre que quiser —

convidou Meg. — Não há muita companhia feminina ultimamente. Teria

muito bom te ver.

— Beba o seu chá, Meg — interrompi. — Beba-o enquanto está quente.

Faz-lhe melhor assim.

Meg começou então a beber a poção e não demorou muito a terminar

tudo e a voltar a cabecear.

— É melhor levá-la pelas escadas para o frio e a umidade! — disse Alice,

uma pontinha de azedume na sua voz.

Não tive oportunidade de responder porque o Ma-go saiu do gabinete de

trabalho e levantou Meg da cadeira.

Peguei numa vela e abri o portão enquanto ele a transpor-tava para a

cela na cave. Alice ficou na cozinha. Cinco minutos após o nosso

regresso, estávamos os três na estrada. Moor View Farm ficara muito

maltratada. Tal como Alice descrevera, o pátio estava cheio de pedras e

quase todas as vidraças tinham sido partidas. A janela da cozinha era a

única ainda intacta. A porta da frente encontrava-se trancada mas o

Mago usou a sua chave e abriu-a em segundos. Procuramos os Hursts e

fomos dar com eles encolhidos na cave; do demônio nem sinal.

O Mago não perdeu tempo.

— Terão de sair imediatamente daqui — disse ao velho agricultor e à

mulher. — Temo que não haja outra solução. Levem apenas o essencial

e ponham-se a caminho. Deixem-me fazer o necessário.

— Mas para onde iremos? — perguntou Mrs.

Page 425: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Hurst, à beira das lágrimas.

— Se ficarem, não posso responder pelas suas vidas — avisou-os o Mago

sem rodeios. — Têm parentes em Adlington. Terão de os receber.

— Quanto tempo antes de podermos voltar? —

perguntou Mr. Hurst. Estava preocupado com os seus meios de

subsistência.

— Três dias no máximo — respondeu o Mago. —

Mas não se preocupe com a fazenda. O meu rapaz se encarregará do

que for necessário.

Enquanto se preparavam, o meu mestre ordenou-me que fizesse o

máximo possível de tarefas da fazenda. Reinava o silêncio: não caíam

pedras e parecia que o demônio repousava. Então, tirando o melhor

partido da situação, comecei por ordenhar as vacas; estava já escuro

quando terminei. Quando me dirigi à cozinha, o Mago estava sentado à

mesa, sozinho.

— Onde está Alice? — perguntei.

— Partiu com os Hursts, para onde mais poderia ter ido? Não pode haver

uma garota a envolver-se no nosso caminho quando temos de tratar de

um demônio.

Estava realmente cansado, por isso nem me dei ao trabalho de

argumentar. Esperara em parte que Alice fosse autorizada a ficar.

— Sente-se e tire essa expressão carrancuda, rapaz.

É capaz de azedar o leite. Precisamos estar a postos.

— Onde está o demônio neste momento? — inquiri. O Mago encolheu os

ombros.

— A descansar debaixo de uma árvore ou de um pedregulho, presumo.

Agora que escureceu, não tardará muito a aparecer. Os demônios podem

estar ativos de dia e, como descobrimos à nossa custa na extensão

rochosa, defender-se-ão se provocados. Mas a noite é a altura preferida

deles e quando estão também mais fortes.

— Se for o mesmo demônio que encontramos em Stone Farm, então a

situação pode complicar-se. Por um lado, se lembrará de nós assim que

se aproximar e vai querer vingar-se do que lhe fizemos. Não se

contentará em partir vidros e derrubar alguns tubos de chaminé. Irá

tentar arrasar esta casa de fazenda conosco lá dentro. Por isso vai ser

uma luta até ao fim. De qualquer forma, rapaz, anime-se — disse-me,

ao ver a preocupação estampada no meu rosto. — É uma casa velha e

bem construída com pedra do Condado sobre alicerces muito fortes. A

Page 426: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

maior parte dos demônios é mais estúpida do que parece, por isso ainda

não estamos mortos. Precisamos é de enfraquecê-lo mais. Vou oferecer-

me como alvo. Quando lhe tiver esgotado a força, você armado com sal

e ferro, por isso enche os seus bolsos, rapaz, e fique a postos!

Eu próprio usara o truque do sal e do ferro quando enfrentara a bruxa

velha, Mãe Malkin. As duas substâncias combinadas eram muito eficazes

contra o escuro. O sal queimaria o demônio; o ferro sugaria a força.

Segui então as instruções do meu mestre, enchendo os bolsos de sal e

ferro tirado das bolsas que ele guardava dentro do seu saco.

* * *

Precisamente antes da meia-noite o demônio atacou. Há horas que se

preparava uma grande tempestade e os primeiros rumores longínquos

tinham dado lugar a fortes trovões e relâmpagos lá no alto e extensos

raios.

Encontrávamo-nos ambos na cozinha, sentados à mesa, quando

aconteceu.

— Aí vem ele — murmurou o Mago, a sua voz tão baixa que mais parecia

falar consigo mesmo do que comigo. Tinha razão: alguns segundos

depois o demônio desceu bombástica e ruidosamente a extensão

rochosa e precipitou-se sobre a casa da fazenda. Parecia que um rio

transbordara e uma inundação se precipitava para nós.

A janela da cozinha estilhaçou-se, espalhando fragmentos de vidro por

todo o lado, e a porta de trás curvou para dentro como se um enorme

peso estivesse encostado a ela. Depois toda a casa abanou como uma

árvore numa tempestade, inclinando-se primeiro numa direção, depois

na outra. Sei que parece impossível, mas juro que foi o que aconteceu.

A seguir ouviu-se um barulho de arrancar e rebentar lá em cima e as

telhas começaram a voar do telhado e a partir-se no pátio da fazenda.

Depois, durante alguns segundos ficou tudo muito sossegado, como se o

demônio estivesse a repousar ou a pensar no que fazer em seguida.

— Está na hora de acabar com isto, rapaz — anunciou o Mago. — Você

fica aqui e vigia pela janela. Tenho certeza de que isto vai se complicar.

Julguei que estivesse já tudo bastante complicado, mas não comentei.

— Custe o que custar, aconteça o que acontecer —

prosseguiu o meu mestre —, não vá lá para fora. Use apenas o sal e o

ferro quando o demônio entrar na cozinha.

Se o aplicar lá fora com este tempo, não terá o impacto pleno. Por isso

prepare-se.

Page 427: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O Mago destrancou a porta e, levando o seu bordão, saiu para o pátio da

fazenda. Era o homem mais corajoso que eu já conhecera. Não teria me

agradado nada enfrentar aquele demônio sem claridade.

Estava escuro como breu, e na cozinha todas as velas tinham se

apagado. Ser mergulhado na mais completa escuridão era a última coisa

que eu queria, mas felizmente ainda tínhamos uma lanterna. Trouxe-a

para junto da janela mas não iluminava muito o pátio. O Mago

encontrava-se a alguma distância por isso não conseguia ver tudo o que

acontecia e estava dependente dos relâmpagos.

Ouvi o Mago bater três vezes com o bordão nas lajes; depois, soltando

um uivo, o demônio foi direito a ele, atravessando o pátio da fazenda da

esquerda para a direita.

A seguir houve um grito de dor e um som semelhante a um ramo a

partir-se. Quando se deu novo relâmpago, vi o Mago de joelhos, as mãos

estendidas à sua frente, tentando proteger a cabeça. O seu bordão

estava nas lajes a alguma distância dele, partido em três bocados.

No escuro, ouvi pedras atingirem as lajes perto do Mago e mais telhas a

cair do telhado por cima dele. Gritou de dor talvez umas duas ou três

vezes e, apesar de ter me mandado vigiar da janela e esperar que o

demônio entras-se, perguntei-me se deveria ir tentar ajudar. O meu

mestre estava a passar um mau bocado e tudo indicava que não se

ficaria por ali.

Olhei para a escuridão, tentando ver o que acontecia, esperando que os

relâmpagos voltassem a iluminar o pátio. Não conseguia sequer ver o

Mago. Mas depois a porta de trás começou a abrir-se muito lentamente,

chiando. Apavorado, afastei-me dela, recuando até ficar contra a parede.

Viria o demônio agora atrás de mim? Pousei a lanterna em cima da mesa

e preparei-me para levar as mãos aos bolsos a fim de tirar o sal e o

ferro. Um vulto escuro transpôs lentamente a soleira entrando na

cozinha e fiquei estarrecido, petrificado, mas depois aspirei

ruidosamente ao ver o Mago de quatro. Viera rastejando em direção à

porta na sombra da parede. Por isso eu não o conseguira ver.

Avancei rapidamente, fechei a porta com força, depois o ajudei a

aproximar-se da mesa. Foi uma luta porque todo o corpo dele parecia

tremer e não lhe restava muita força nas pernas. Estava um caco. O

demônio machucara-o seriamente: havia sangue em todo o seu rosto e

um galo do tamanho de um ovo na testa. Apoiou ambas as mãos na

beira da mesa, esforçando-se por se aguentar de pé. Quando abriu a

Page 428: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

boca para falar, reparei que lhe faltava um dos dentes da frente. Não era

nada bonito de se ver.

— Não se preocupe, rapaz — gemeu. — Pusemos ele em movimento.

Não lhe resta muita força e chegou a hora de acabar com ele de vez.

Prepare-se para usar o sal e o ferro, mas aconteça o que acontecer, não

falhe!

Com «pôr em movimento» o Mago queria dizer que se oferecera como

alvo e o demônio gastara muita energia a tentar destruí-lo e encontrava-

se agora bastante mais enfraquecido. Mas quão mais enfraquecido?

Ainda podia ser assaz perigoso.

Naquele preciso instante, a porta voltou a escancarar-se e desta vez o

demônio entrou mesmo. O relâmpago iluminou-o e vi a cabeça redonda

e os seis braços cobertos de lama. Mas havia uma diferença: parecia

agora muito mais pequeno. Perdera uma parte da sua força e o Mago

não sofrerá em vão. Com o coração em sobressalto e os joelhos a

tremer, avancei para enfrentar o demônio. Depois, fui aos bolsos, retirei

duas mãos cheias e arremessei-as ao demônio. Sal da minha mão

direita; ferro da esquerda. Apesar do que lhe custara, o Mago fizera tudo

certinho. Primeiro queimara a árvore do demônio, retirando-lhe a

reserva de energia. Depois oferecera-se como alvo lá fora, sugando

ainda mais força ao demônio. Mas eu tinha de terminar o trabalho ali

dentro. E não podia permitir-me falhar.

Havia apenas a corrente de ar da janela com a porta aberta, e a minha

pontaria foi certeira. A nuvem de sal e ferro atingiu o demônio em cheio.

Houve um grito, tão forte e estridente que me fez ranger os dentes e

quase rebentou os tímpanos. O sal queimava a criatura, o ferro retirava-

lhe a restante energia. No momento seguinte o demônio desaparecera.

Fora-se. Para sempre. Eu acabara com ele de vez!

Mas o meu alívio foi de pouca duração. Vi o Mago cambalear e percebi

que ia cair. Tentei alcançá-lo, realmente tentei. Mas foi tarde demais. Os

seus joelhos cederam, perdeu o apoio da mesa e caiu para trás, batendo

com toda a força com a cabeça nas lajes da cozinha. Esforcei-me por

levantá-lo mas era um peso morto e, reparei, para meu desalento, que

sangrava bastante do nariz.

Entrei em pânico. A princípio, não o ouvia respirar.

Depois, senti finalmente o sopro sair-lhe muito tênue da garganta. O

Mago estava gravemente ferido e precisava com urgência de um médico.

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CAPÍTULO 9

AVISOS DE MORTE

Corri todo o caminho colina abaixo até à aldeia sob chuva torrencial, a

trovoada a rebentar lá em cima e os raios vivos a bifurcar o céu.

Não tinha a mínima idéia de onde o médico morava e, em desespero,

bati à primeira porta que encontrei. Não obtive resposta de modo que

dei socos com força na seguinte. Como também não me respondessem,

lembrei-me que o irmão do Mago, Andrew, tinha uma loja em algum

lugar na aldeia. Continuei então a descer, correndo em direção ao

centro, escorregando no empedrado e atravessando os riachos de água

da chuva que vinham em cascata pela colina abaixo.

Demorei muito a encontrar a casa de Andrew. Era menor do que a que

ele alugara em Priestown, mas estava bem localizada, em Babylon Lane,

mesmo à esquina do que parecia ser a principal fila de lojas da aldeia.

Um relâmpago iluminou a tabuleta por cima da vitrine: ANDREW

GREGORY MESTRE SERRALHEIRO

Bati ruidosamente com os nós dos dedos na porta da loja e, como não

obtivesse qualquer resposta, agarrei na maçaneta e sacudi-a

violentamente, ainda sem qualquer resultado. Perguntei-me se Andrew

estaria a fazer algum trabalho fora dali. Talvez passasse a noite noutra

aldeia.

Depois ouvi levantar a janela de guilhotina de um quarto por cima da

loja e uma voz masculina irada gritar na noite.

— Vá embora daqui! Imediatamente! O que pretende com tanta

barulheira a esta hora da noite em que gente decente precisa de dormir?

— Procuro um médico! — gritei na direção da janela retangular escura.

— É urgente. Um homem pode estar morrendo!

— Bem, está perdendo o seu tempo aqui! Isso é uma loja de serralheiro!

— Trabalho para o irmão de Andrew Gregory. Ele vive na casa lá em

cima na ravina à beira da charneca. Sou aprendiz dele!

Houve um novo relâmpago e vislumbrei o rosto lá em cima, e vi o medo

estampado nele. Provavelmente a aldeia inteira sabia que o irmão de

Andrew era mago.

— Vive um médico em Bolton Road, a cerca de cem metros para sul!

— Onde fica Bolton Road? — demandei.

Page 430: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Desça a colina até a encruzilhada e vire à esquerda. Estará em Bolton

Road. Depois segue sempre em frente. É a última casa da fila!

Então, a janela foi fechada com força, mas já não importava: tinha a

informação necessária. Desci então a colina correndo, virei à esquerda,

continuei a correr, respirando a custo e em breve batia à porta da última

casa da fila.

Os médicos estão acostumados a ser acordados no meio da noite para

emergências, por isso este não demorou muito a vir abrir a porta. Era

um homem baixo com um bigode fino preto e cabelo a embranquecer

nas têmporas. Segurava uma vela e anuiu enquanto eu falava,

parecendo muito calmo e entendido. Contei-lhe que o homem ferido

estava em Moor View Farm, mas quando lhe expliquei quem precisava

de ajuda e porquê, os seus modos mudaram e a vela começou a tremer-

lhe na mão.

— Volta para lá que seguirei o mais depressa possível — respondeu,

fechando-me a porta na cara.

Tornei a subir na direção da charneca mas ia preocupado. O médico

ficara manifestamente assustado por ter de tratar um mago. Iria cumprir

o que prometera? Iria realmente seguir-me até à fazenda? Se não o

fizesse, o Mago podia morrer. Tanto quanto sabia, ele até já podia estar

morto e, com o coração apertado, arrastei-me colina acima o mais

depressa possível. Entretanto, o pior da tempestade afastara-se já e só

se ouviam os ruídos distantes da trovoada por cima da charneca e um ou

outro relâmpago forte.

Não precisava de ter me preocupado com o médico. Fora fiel à sua

palavra e chegara à fazenda apenas quinze minutos ou mais depois de

mim.

Mas não se demorou muito. Quando examinou o Mago, as suas mãos

tremiam tanto que nem precisei da expressão de olhos arregalados no

rosto dele para perceber que estava apavorado. Ninguém gosta de ficar

próximo de um mago. Contara-lhe também o sucedido no pá-

tio e na cozinha, o que só viera piorar a situação. Olhava

constantemente à sua volta como se esperasse ver o demônio

aproximar-se sorrateiramente de si. Até teria achado piada se não me

sentisse tão triste e preocupado.

Ajudou-me, porém, a levar o Mago lá para cima e a metê-lo na cama.

Depois encostou o ouvido ao peito do Mago e escutou com atenção.

Quando se levantou, abanava a cabeça.

Page 431: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— A pneumonia está a atacar-lhe os pulmões —

disse por fim.

— Não há nada que eu possa fazer.

— Ele é forte! — protestei. — Há de melhorar.

Virou-se para mim com uma expressão no rosto que já vira antes

noutros médicos. Era um ar profissional, um misto de compaixão e

calma, uma máscara adotada quando têm de dar más notícias aos

familiares dos gravemente doentes.

— Temo que o prognóstico seja muito mau, rapaz

— disse, batendo-me delicadamente no ombro. — O seu mestre está

morrendo, é improvável que sobreviva a esta noite. Mas a morte acaba

por chegar a todos nós, por isso só temos de aceitá-la. Está aqui

sozinho?

Anuí.

— Ficará bem?

Tornei a anuir.

— Bem, vou mandar alguém aqui em cima pela manhã — anunciou,

pegando na maleta e preparando-se para sair. — Ele vai precisar ser

lavado — acrescentou sinistramente.

Sabia o que ele queria dizer com aquilo. Era tradição do Condado lavar

os mortos antes do enterro. Sempre me parecera uma idéia tola. Qual a

necessidade de lavar alguém que iria acabar dentro de um caixão na

terra? Fiquei furioso e estive quase para lhe dizer, mas consegui

controlar-me e vim sentar-me ao lado da cama, ouvindo o esforço do

Mago para respirar.

Ele não podia estar morrendo! Recusava-me a acreditar. Como podia

morrer depois de tudo aquilo por que passara? Não estava simplesmente

preparado para o aceitar. O médico só podia ter-se enganado, não? Mas,

por muito que me esforçasse por me convencer de que o médico estava

errado, comecei a desesperar. Sabem, lembrei-me daquilo que a Mãe

dissera sobre os avisos de morte. Lembrei-me do cheiro no quarto do

Pai, aquele fedor a flores, e que a Mãe afirmara ser um sinal da

aproximação da morte. Eu possuía o dom dela e sentia naquele

momento o cheiro porque vinha do Mago e ficava mais forte a cada

minuto.

Mas quando o dia chegou, o meu mestre continuava vivo e a mulher

enviada pelo médico para lhe lavar o corpo não conseguiu disfarçar a

decepção no rosto.

Page 432: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Não posso ficar para além do meio-dia. Tenho outro para lavar esta

tarde! — anunciou bruscamente, mas depois mandou-me ir buscar um

lençol lavado e rasgá-lo em sete tiras e trazer-lhe uma tigela com água

fria.

Depois de fazer o que ela me pedira, pegou numa tira do lençol e

dobrou-a até não ficar maior do que a palma da mão e mergulhou-a na

água. Depois usou-a para molhar a testa e o queixo do Mago. Era difícil

dizer se o fizera para ele se sentir melhor ou para poupar algum tempo

quando lavasse o corpo mais tarde.

Feito isso, sentou-se ao lado da cama e começou a tricotar o que

pareciam ser roupas de bebê. Falou bastante também, contando-me a

história da sua vida e gabando-se das suas duas atividades. Para além

de lavar os mortos e prepará-los para o enterro, era também a parteira

local.

Apanhara uma forte constipação e tossia constantemente para cima do

Mago, assoando o nariz vermelho a um lenço grande pintalgado.

Pouco antes do meio-dia começou a guardar tudo, preparando-se para

partir.

— Voltarei pela manhã para amortalhá-lo — referiu. — Não sobreviverá a

uma segunda noite.

— Não existe qualquer esperança? — inquiri, consciente de que o Mago

não abrira os olhos desde que batera com a cabeça.

— Escute a respiração dele — disse-me.

Escutei com atenção. A sua respiração tinha um som áspero, com um

ligeiro ruído. Parecia que tinha a traquéia comprimida.

— É o estertor da morte — disse-me. — O seu tempo neste mundo está

chegando ao fim.

Naquele momento, ouviu-se uma pancada na porta da frente e fui ver

quem era. Quando abri a porta, Alice encontrava-se perto do degrau, o

casaco de lã abotoado até ao pescoço e o capuz puxado para a frente.

— Alice! — exclamei, bastante satisfeito por vê-la.

— O Mago machucou-se ao tratar do demônio. Bateu com a parte de

trás da cabeça e o médico acha que ele vai morrer!

— Deixe-me vê-lo — afirmou Alice, afastando-me.

— Talvez não seja tão mau quanto parece. Os médicos podem enganar-

se. Ele está lá em cima?

Page 433: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Anuí e segui Alice até ao quarto da frente. Aproximou-se logo do Mago e

pôs a mão na testa dele. A seguir levantou-lhe a pálpebra esquerda com

o polegar e observou o olho com muita atenção.

— Ainda há esperança — referiu Alice. — Acho que vou poder ajudar. .

A mulher pegou no saco e preparou-se para sair, a indignação a vincar-

lhe a testa.

— Bem, já percebi tudo! — exclamou, olhando pa-ra os sapatos bicudos

de Alice. — Uma bruxinha veio em auxílio de um mago!

Alice levantou a cabeça, os seus olhos chispando de raiva, escancarou a

boca e mostrou os dentes. Depois bufou à mulher, que recuou

rapidamente dois passos da cama.

— Não conte que ele te agradeça! — disse a Alice, em tom de aviso,

recuando até à porta do quarto antes de descer as escadas a correr.

— Não tenho grande coisa comigo — afirmou Alice depois de a mulher

ter ido embora. Desabotoou o casaco e retirou uma pequena bolsa de

couro do bolso interior. Estava presa com um cordel, abriu-a e deitou

algumas folhas secas na palma da mão. — Para já, vou preparar-lhe

uma poção rápida — disse.

Enquanto ela ia à cozinha, sentei-me à cabeceira do Mago, fazendo o

que podia para o ajudar. Todo o seu corpo ardia em febre e continuei a

molhar-lhe a testa com o pano espremido e a tentar fazer baixar a febre.

Descia-lhe um fio constante de sangue e muco do nariz e continuava a

escorrer-lhe para o bigode, pelo que tinha de o estar sempre a limpar. O

tempo todo o peito dele chiava e o cheiro a flores era mais forte do que

nunca, de modo que comecei a achar que, apesar das palavras de Alice,

a enfermeira estava certa e não faltaria muito para ele se finar. Dali a

pouco Alice voltou a subir as escadas trazendo uma xícara meio cheia de

um líquido amarelo-claro, e levantei a cabeça do Mago enquanto ela lhe

deitava um pouco na boca. Desejei que a Mãe estivesse ali mas sabia

que Alice também não lhe ficava atrás: conforme me dissera a Mãe uma

vez, ela era entendida em poções.

O Mago engasgou-se e cuspiu um pouco mas conseguimos que ele

bebesse quase tudo.

— É realmente uma péssima altura do ano mas talvez consiga arranjar

algo melhor — anunciou Alice. —

Vale a pena ir lá fora procurar. Não que ele o mereça, da forma como

me tratou!

Agradeci a Alice e acompanhei-a à porta da frente.

Page 434: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Deixara de chover mas havia uma frieza no ar úmido. As árvores

estavam despidas e parecia tudo desolado. — É

Inverno, Alice. O que pode encontrar se não cresce quase nada?

— Mesmo no Inverno, há raízes e cascas que se podem usar — replicou

Alice, abotoando o casaco por causa do frio. — É preciso saber onde

procurar. Regres-sarei o mais depressa que puder. .

Voltei para o quarto a fim de fazer companhia ao Mago, triste e perdido.

Sei que parece egoísmo mas não podia deixar de começar a preocupar-

me comigo. Era impossível concluir o aprendizado sem o Mago. Teria de

ir para norte de Caster, onde Arkwright exercia o seu ofício e pedir-lhe

que me aceitasse. Como ele fora em tempos aprendiz do Mago e vivera

em Chipenden tal como eu, talvez o fizesse, mas não era garantido.

Podia ter já um aprendiz. Depois daquele pensamento, senti-me pior.

Verdadeiramente culpado. Porque só estivera a pensar em mim, não no

meu mestre.

Então, passado mais ou menos uma hora, o Mago abriu de repente os

olhos. Estavam esgazeados e brilhantes da febre e, para começar, não

creio que tivesse me re-conhecido. No entanto, ainda se lembrava de

como dar ordens e começou a gritá-las a plenos pulmões como se

pensasse que eu era surdo ou assim.

— Ajude-me a levantar! Levante-me já! Rápido!

Rápido! Vamos! — gritou, enquanto eu o tentava ajudar a ficar sentado e

empilhava as almofadas por detrás das suas costas. Começou a gemer

forte, e os seus olhos deram a volta nas órbitas até só serem visíveis as

córneas.

— Traga-me uma bebida! — berrou. — Preciso de uma bebida!

Havia um jarro de água fria na mesa-de-cabeceira, enchi meia xícara e

aproximei-lha delicadamente dos lábios. — Beba devagarinho —

aconselhei, mas o Mago engoliu uma grande golada e cuspiu-a para cima

das cobertas. — Mas que porcaria é esta? Não mereço melhor?

— bradou, as suas pupilas voltando a aparecer e fixando-se em mim,

esgazeadas e iradas. — Traga-me vinho! E

que seja tinto. É do que preciso!

Não achei que fosse nada boa idéia, visto estar tão doente, mas ele

tornou a insistir. Queria vinho e tinha de ser tinto.

— Lamento, mas não há vinho — expliquei, mantendo a voz calma para

não o deixar ainda mais agitado.

— Claro que não há vinho aqui! Isto é um quarto!

Page 435: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— gritou. — Lá em baixo na cozinha, é onde o poderá arranjar. Se não,

experimente a cave. Vá procurar. E rapidinho. Não me faça esperar.

Havia cerca de meia dúzia de garrafas de vinho na cozinha e eram todas

de tinto. O problema era que nem sinal de um saca-rolhas — também

não me esforcei por procurá-lo. Levei então a garrafa para o quarto,

pensando que o assunto morreria ali.

Mas enganei-me: mal me aproximei da cama, o meu mestre tirou-me a

garrafa das mãos, meteu-a na boca e puxou a rolha com os dentes que

lhe restavam. Por um momento, pensei que a tivesse engolido, mas de

repente cuspiu-a com tamanha força que a rolha fez ricochete na parede

oposta.

Depois começou a beber e, enquanto bebia, falou.

Nunca antes vira o Mago beber álcool, mas agora parecia não conseguir

enfiá-lo pela garganta abaixo com rapidez suficiente. Foi ficando cada

vez mais excitado, a conversa redundando em tagarelice contínua. Não

fazia grande sentido porque ele delirava da febre e da bebida. Uma

grande parte era também em latim, a língua que eu me esforçava ainda

por aprender. A dada altura começou a fazer sucessivamente o sinal da

cruz com a mão direita, à semelhança dos padres.

Lá na nossa fazenda, o vinho era algo que raramente bebíamos. A Mãe

prepara o seu próprio vinho de baga de sabugueiro e é realmente muito

bom. Só o vai buscar em ocasiões especiais, porém: quando eu vivia lá

em casa, já era uma sorte darem-me meio copo de vinho duas vezes por

ano. O Mago emborcou a garrafa inteira em menos de quinze minutos e

depois ficou mal disposto

— tão mal disposto que por pouco não morria engasgado ali mesmo.

Claro que tive de limpar a porcaria recorrendo às tiras do lençol.

Alice regressou pouco depois e preparou outra poção com as raízes que

encontrara. Trabalhamos juntos e conseguimos enfiá-la pela goela do

Mago, e instantes depois voltara a adormecer.

Feito isso, Alice farejou o ar e franziu o nariz.

Mesmo depois de eu ter mudado a roupa de cama o quarto estava ainda

empestado, mas pelo menos já não sentia o cheiro de flores. Pelo menos

foi o que me pareceu então. Não me dera conta de que o Mago estava a

melhorar.

Afinal de contas, o médico e a enfermeira tinham-se enganado: horas

depois a febre baixara e o meu mestre tossia mucosidades espessas dos

pulmões, enchendo lenços com a mesma rapidez com que eu conseguia

Page 436: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

encontrá-los, de modo que acabei por rasgar outro lençol em tiras. Ele

estava no caminho lento para a recuperação. E, mais uma vez, o mérito

fora todo de Alice.

Page 437: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 10

MÁS NOTÍCIAS

Os Hursts regressaram no dia seguinte mas pareciam perdidos e

desnorteados, como se não soubessem por onde começar a livrar-se

daquela confusão. O Mago passava a maior parte do tempo a dormir

mas não podíamos deixá-lo ficar num quarto com o vento entrando a

uivar pelos vidros partidos, de modo que fui buscar algum dinheiro no

saco dele e entreguei-o a Mr. Hurst para pagar algumas das reparações.

Foram contratados trabalhadores da aldeia: um vidraceiro colocou um

novo vidro nas janelas do quarto e da cozinha enquanto Shanks tapava

temporariamente as restantes com tábuas para manter afastados os

elementos.

Eu próprio tive um dia atarefado, a acender as lareiras nos quartos e

uma lá em baixo na cozinha, ajudando também nas tarefas da fazenda,

especialmente a ordenha. Mr.

Hurst efetuou algum trabalho mas faltava-lhe energia. Parecia já não

gostar da vida e ter perdido toda a vontade de viver. — Valha-me Deus!

Valha-me Deus! — murmurava constantemente de si para si, sem

ânimo. E mais uma vez ouvi-o dizer nitidamente, ao olhar para o telhado

do celeiro, o seu rosto cheio de angústia: — Que mal fiz eu?

Que mal fiz eu para merecer isto?

Naquela noite, pouco depois de termos terminado a ceia, ouvimos três

pancadas fortes na porta da frente e o pobre Mr. Hurst pôs-se em pé tão

repentinamente que quase caiu para trás por cima da cadeira.

— Eu vou abrir — disse Mrs. Hurst, apoiando delicadamente a mão no

braço do marido. — Você fica aqui, querido, e vê se mantém a calma.

Não volte a atormentar-se.

Pela reação deles calculei que fosse Morgan à porta.

E houve algo na maneira como as três pancadas tinham sido dadas que

me enregelou até aos ossos. As minhas suspeitas confirmaram-se

quando Alice olhou para mim, descaiu os cantos da boca e articulou

silenciosamente a palavra «Morgan».

Morgan avançou pomposamente pela sala à frente da mãe. Trazia um

bordão e um saco. Com a capa e o capuz, parecia mesmo um mago.

— Bem, isto está acolhedor. E temos aqui o jovem aprendiz — disse,

virando-se para mim. — Voltamos a encontrar-nos, Mancebo Ward.

Page 438: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Respondi baixando-lhe a cabeça.

— Mas afinal o que se passa aqui, Velho? — Morgan atormentou Mr.

Hurst. — Aquele pátio está uma lástima. Onde está o seu orgulho? Vai

deixar este lugar cair aos bocados.

— A culpa não é dele. Mas você é estúpido ou quê?

— ripostou Alice, a sua voz carregada de hostilidade. —

Qualquer tolo percebe que foi obra de um demônio!

Morgan carregou o cenho e fuzilou-a com o olhar, levantando um pouco

o bordão, mas Alice retribuiu o olhar dele com um sorriso escarninho.

— Com que então o Mago enviou o seu aprendiz para tratar dele, hein?

— referiu Morgan, virando-se para a mãe. — Bom, aí tem o pagamento,

não é, Velha? Recebe aqui a bruxinha dele e nem sequer se dá ao

trabalho de vir ajudar a aprisionar o seu demônio. Sempre me saiu um

patife sem coração.

Pus-me em pé num ápice.

— Mr. Gregory veio, sim senhor. Está lá em cima porque ficou muito

maltratado ao enfrentar o demônio.

Percebi imediatamente de que falara demais. De repente, senti temor

pelo meu mestre. Morgan ameaçara-o no passado e agora o Mago

estava fraco e indefeso.

— Oh, afinal tem língua — disse ele, escarnecendo de mim. — Se quer

saber a minha opinião, o seu mestre já deu o que tinha a dar.

Machucou-se ao aprisionar um demônio? Santo Deus, esse é o truque

mais fácil do livro!

Mas a idade não perdoa. Manifestamente, o velho tolo já não tem

préstimo. É melhor eu ir lá acima dar-lhe uma palavrinha.

Dito aquilo, Morgan atravessou a cozinha e começou a subir as escadas

para os quartos. Inclinei-me e murmurei a Alice que se deixasse ficar

onde estava. Depois saí da cozinha e dirigi-me para as escadas. A

princípio, cuidei que Mrs. Hurst me fosse pedir para ficar, mas ela

limitou-se a permanecer sentada e cobriu o rosto com as mãos.

Comecei a subir sorrateiramente as escadas, mas alguns degraus

chiaram de modo que subi apenas três antes de parar para escutar as

gargalhadas roufenhas vindas lá de cima, seguidas do som da tosse do

Mago. Depois as escadas chiaram atrás de mim, virei-me e vi Alice com

o dedo encostado aos lábios a impor silêncio.

Seguidamente, chegou-me a voz do Mago do quarto lá em cima.

Page 439: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Continua a escavar naquela velha elevação tumular? — ouvi-o

perguntar. — Ainda um dia será a sua morte. Devia ter mais juízo.

Mantenha-se afastado enquanto ainda te resta fôlego no corpo.

— Bem que você me podia facilitar — replicou Morgan. — É só devolver-

me o que é meu. Não peço mais nada.

— Se eu te desse, causaria estragos incalculáveis.

Isso se sobrevivesse. Por que tem de ser assim? Pare de se meter com o

escuro e veja se toma juízo, rapaz! Lembre-se das promessas que fez à

sua mãe. Ainda não é tarde demais para tomar outro rumo na vida.

— Escusa de fingir que se preocupa comigo —

respondeu Morgan. — E não se atreva a falar da minha mãe. Nunca quis

saber de nenhum de nós, essa é que é a verdade. Nada senão aquela

bruxa. Assim que lhe apareceu Meg Skelton, a minha pobre mãe não

teve qualquer chance. E onde é que isso o levou? E onde é que isso a

levou a não ser condená-la a uma vida de infortúnio?

— Não, rapaz. Eu gostava de você e gostava da sua mãe. Amei-a em

tempos, como muito bem sabe, e toda a minha vida fiz o possível para a

ajudar. E por amor a ela tentei ajudar-te, apesar de tudo o que fez!

O Mago recomeçou a tossir e ouvi Morgan soltar uma imprecação e

começar a encaminhar-se para a porta.

— Agora as coisas mudaram, Velho, e quero o que me é devido —

exigiu. — E se não me der, terei de usar outros meios.

Alice e eu viramo-nos em conjunto e descemos as escadas. Tínhamos

chegado precisamente à cozinha quando as botas dele rasparam no

primeiro degrau.

Mas, afinal, Morgan nem sequer olhou para nós. De semblante muito

carregado, ignorando a mãe e o pai dele, atravessou a cozinha em

grandes passadas e entrou no corredor. Escutamos todos em silêncio

quando ele correu um ferrolho e abriu a fechadura de uma porta no

corredor, ouvindo-se depois os seus passos ruidosos do outro lado da

divisão. Decorridos alguns momentos, ouvimo-lo voltar a sair e fechar e

trancar a porta. Um instante depois saiu de casa; a porta da frente bateu

com estrondo atrás de si.

À mesa, ninguém abriu a boca, mas não pude deixar de olhar para Mrs.

Hurst. Pelos vistos o Mago amara-a também. Bom, envolvera-se já com

três mulheres! E era por essa razão que Morgan parecia guardar

ressentimentos contra ele.

Page 440: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Vamos te levar para a cama, querido — dirigiu-se Mrs. Hurst ao

marido, a sua voz suave e afetuosa.

— Está precisando é de uma boa noite de sono. Se sentirá muito melhor

de manhã.

Então, os dois levantaram-se da mesa, o pobre Mr.

Hurst arrastando os pés em direção à porta, cabisbaixo.

Senti realmente pena de ambos. Ninguém merecia um filho como

Morgan. A mulher dele estacou junto à ombreira e olhou para nós.

— Não se demorem a subir, vocês dois — disse, ao que anuímos ambos

cortesmente e depois ficamos a ouvi-los subir as escadas juntos.

— Bem — disse Alice —, agora estamos só nós dois. Por que não vamos

dar uma espiada ao quarto de Morgan? Quem sabe o que poderíamos

encontrar. .

— O quarto onde ele acabou de entrar?

Alice acenou com a cabeça.

— Às vezes ouvem-se lá estranhos ruídos. Gostaria de ver o que está lá

dentro.

Então, tirou a vela da palmatória e saiu da cozinha à minha frente,

atravessando a sala de estar e indo ter ao corredor.

Havia duas divisões que comunicavam com aquele corredor. De costas

para a porta da frente, ia-se ter à sala de estar; à esquerda havia outra

porta pintada de preto.

Tinha um ferrolho no exterior.

— É esta — murmurou Alice, tocando na porta com a ponta do seu

sapato bicudo e correndo o ferrolho.

— Se não estivesse trancada, já teria ido bisbilhotar lá dentro. Mas agora

não há problema. A sua chave não tardará a abri-la, Tom. — Apontou

para a fechadura.

A minha chave destrancou de fato a porta e abri-a.

Era uma divisão bastante grande, mais comprida do que larga, com uma

janela tapada com tábuas ao fundo, de onde pendiam uns pesados

cortinados pretos. O chão era lajeado, tal como o resto do rés-do-chão,

mas não havia tapetes nem carpetes. E viam-se apenas três peças de

mobília no quarto: uma mesa de madeira comprida com uma cadeira de

espaldar em cada extremidade.

Alice foi a primeira a entrar no quarto.

— Não há muito que ver, não é? — comentei. —

O que esperava encontrar?

Page 441: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Não sei bem, mas julguei que houvesse algo mais — começou Alice.

— Às vezes ouço sinos tocar aqui dentro. Sobretudo sinos pequenos,

como aqueles que cabem na nossa mão. Mas uma vez ouvi um sino de

funeral que parecia bastante grande e tocava de uma torre de igreja.

Depois, ouve-se muitas vezes o som de água a escorrer e uma menina a

chorar. Calculo que seja a irmã dele que morreu.

— Ouve os sons quando ele está dentro do quarto?

— Principalmente, mas mesmo quando ele não está em casa, às vezes

ouço um cão a ladrar e a rosnar ou até a farejar mesmo junto à porta

como se tentasse libertar-se.

É por isso que os Hursts o mantêm sempre trancado.

Acho que têm medo que possa sair de lá alguma coisa desagradável.

— No entanto, não sinto nada aqui dentro — disse a Alice. Não havia a

sensação de frio que me avisa quando algo do escuro está próximo. — O

Mago diz que Morgan é um necromante que usa os mortos. Fala com

eles e obriga-os a submeter-se à sua vontade.

— Mas onde ele vai buscar o poder? Não usa magia dos ossos ou do

sangue como uma bruxa — comentou Alice —, e também não tem um

familiar. Eu conseguiria cheirá-lo com certeza se tivesse um. Portanto o

que é, Tom? Encolhi os ombros.

— Talvez seja Golgoth, ou um dos Deuses Antigos. Ouviu o que o Mago

acabou de dizer sobre Morgan andar a escavar naquela elevação tumular

e que isso havia de ser a sua morte? Bem, é um mausoléu chamada

Round Loaf e fica lá em cima da charneca. Talvez ele esteja tentando

invocar Golgoth como faziam os antigos. Talvez Golgoth queira ser

invocado e esteja a ajudá-lo de alguma maneira. Mas Morgan ainda não

é capaz de o fazer porque o Mago tem algo de que ele precisa. Algo que

tornaria tudo mais fácil.

Alice anuiu pensativamente. — Deve ser isso, Tom, mas algumas das

coisas que eles disseram foram também intrigantes. Não vejo o Velho

Gregory e Mrs. Hurst juntos. Custa-me a acreditar que sejam um casal.

Também me custava a acreditar. Muito mesmo. De qualquer forma, não

havia muito mais que ver, por isso saímos do quarto e fechamos e

trancamos a porta. Havia mistérios a resolver — segredos no passado do

Mago — e estava a ficar cada vez mais curioso.

Morgan não voltou a aparecer em Moor View Farm, mas decorreu outra

semana antes de podermos regressar a casa do Mago. Shanks foi

Page 442: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

chamado, e efetuamos a viagem de volta com o Mago montado no

pequeno pônei e eu e Alice a pé atrás.

Shanks recusou-se a pôr os pés dentro de casa e voltou para Adlington,

deixando o Mago conosco. Entretanto, eu contara já ao meu mestre que

provavelmente as poções de Alice lhe tinham salvo a vida. Ele não disse

nada mas não se opôs quando o ajudamos ambos a subir até ao quarto.

Estava ainda muito debilitado e ia levar algum tempo a recuperar

plenamente. A viagem de regresso também o cansara. Mal se aguentava

nas pernas e ficou lá em cima uns dois dias.

Algo que me surpreendeu foi não mencionar sequer Meg de início.

Também não lhe recordei: não me agradava ter de descer as escadas

até à cave sozinho. Como ela passara todo o Verão a dormir lá em baixo,

mais alguns dias não teriam grande importância. Assim, tive de fazer a

maior parte das tarefas. Alice deu uma ajuda, mas não tanta quanta a

que eu teria gostado.

— Só porque sou uma garota isso não significa que tenha de ser só eu a

cozinhar! — resmungou quando lhe sugeri que o faria melhor do que eu.

— Mas eu não sei cozinhar, Alice — argumentei.

— Lá em casa era a Mãe que o fazia, o demônio do Mago encarregava-se

de tudo em Chipenden e aqui era Meg.

— Bem, vai ter oportunidade de aprender — redarguiu Alice com um

sorriso. — E quanto a Meg, aposto que não estaria disposta a cozinhar se

não fosse todo aquele chá de ervas!

Então, na manhã do terceiro dia, o Mago desceu penosamente as

escadas e sentou-se à mesa enquanto eu me esforçava por preparar o

desjejum. Cozinhar era uma tarefa bem mais dura do que se afigurava,

mas não tão dura quanto ficou o bacon.

Comemos em silêncio até que, passados alguns minutos, o Mago afastou

de si o prato.

— Ainda bem que estou sem apetite, rapaz — comentou, abanando a

cabeça. — Porque a fome me obriga-ria a comer tudo isso e não sei bem

se sobreviveria à experiência.

Alice desatou às gargalhadas, satisfeita por ver o meu mestre no bom

caminho para a recuperação. Quanto às tiras debacon, já comera

melhores, mas estava suficientemente faminto para devorar tudo e Alice

também. Comecei a animar porque parecia que o Mago sempre a ia

deixar ficar.

Page 443: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Na manhã seguinte, o Mago decidiu finalmente que chegara a altura de

ir acordar Meg. Ainda não tinha muita força nas pernas de modo que

desci as escadas com ele e ajudei-o a trazer Meg de volta para a cozinha

enquanto Alice aquecia água. O esforço revelou-se excessivo para ele, e

as suas mãos começaram a tremer tanto que teve de voltar para a

cama.

Ajudei Alice a preparar a banheira para Meg.

— Obrigada, Bily — disse Meg quando começamos a enchê-la de água

quente. — É um rapaz muito atencioso. E a sua linda amiga também é

muito útil. Como se chamas, querida?

— Chamam-me Alice. . — respondeu com um sorriso.

— Bem, Alice, tem família a viver aqui próximo? É

bom estar vivendo perto da família. Quem me dera ter.

Mas agora vivem tão longe.

— Eu agora não vejo a minha família. Não são boa companhia e estou

melhor sem elas — respondeu Alice.

— Não pode ser! — exclamou Meg. — Mas o que pode ter corrido mal,

querida?

— Eram bruxas — replicou Alice com um sorrisinho malvado de esguelha

na minha direção.

Fiquei muito irritado. Aquele tipo de conversa podia despertar a memória

de Meg. Alice estava a fazer de propósito.

— Em tempos conheci uma bruxa — comentou Meg, uma expressão

sonhadora nos olhos. — Mas foi há muitos anos...

— Acho que o seu banho já está pronto, Meg —

disse-lhe, agarrando o braço de Alice e afastando-a dali. —

Nós vamos para o gabinete de trabalho, para que ela possa ter alguma

privacidade.

Uma vez no gabinete de trabalho do Mago, insurgi-me contra Alice.

— Por que tinha de dizer-lhe aquilo? Podia começar a lembrar-se de que

ela própria era uma bruxa.

— Seria tão mau assim? — indagou Alice. — Não é justo, ser tratada

daquela maneira. Mais valia estar morta.

Já lhe fui apresentada, mas logo ela me esqueceu.

— Mais valia estar morta? Muito provavelmente acabaria num poço —

retorqui, furioso.

— Bem, por que não lhe dá simplesmente um pouco menos do chá de

ervas — para que ela possa ter uma vida melhor e não se esteja sempre

Page 444: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

a esquecer de tudo? Com a dose certa, ela não se lembraria de tudo mas

seria muito melhor para ela. Deixe-me fazê-lo, Tom. Não é muito difícil.

Dar-lhe-ei um bocadinho a menos todos os dias até acertarmos.

— Não, Alice! Não se atreva! — adverti-a. — Se o Mago descobrisse te

mandaria de volta para os Hursts num abrir e fechar de olhos. De

qualquer forma, não vale a pena o risco. Algo pode correr mal.

Alice abanou a cabeça.

— Mas não está certo, Tom. Tem de se fazer algo mais cedo ou mais

tarde.

— Bem, então mais tarde do que cedo. Você não vai fazer nada com o

chá de ervas, não é? Prometa-me.

Alice sorriu.

— Prometo, mas acho que devia falar do assunto com o Velho Gregory.

Fará isso?

— Agora não é o momento certo, pois ainda está doente. Mas farei

quando achar que a ocasião é propícia.

Ele não vai atender, porém. Sucede assim há anos. Por que haveria de o

mudar agora?

— Somente fale com ele, é tudo o que peço.

Então concordei, apesar de saber que estaria a perder o meu tempo e só

iria aborrecer o Mago escusada-mente. Mas Alice começava a preocupar-

me. Queria confiar nela, mas tinha sem dúvida uma cisma em relação a

Meg. O Mago desceu ao final da tarde e conseguiu comer um pouco de

caldo, depois passou o serão embrulhado num cobertor diante da lareira.

Quando fui me deitar, continuava lá, e Alice ajudava Meg a lavar as

panelas para o desjejum.

Na manhã seguinte, que era uma terça-feira, o Ma-go deu-me uma

breve lição de latim. Não parecia lá muito bem: cansava-se rapidamente

e voltou para a cama, de modo que fiquei sozinho no gabinete de

trabalho o resto do dia.

Depois, ao final da tarde, ouviu-se bater na porta de trás e encontrei

Shanks, o homem que fazia as entregas do Mago, ali à espera. Tinha

uma expressão muito nervosa e olhava constantemente por cima do

ombro esquerdo, como se esperasse que alguém aparecesse por detrás

de mim a qualquer momento.

— Trouxe a encomenda de Mr. Gregory — disse, indicando com a cabeça

o pônei atrás de si carregado de sacas castanhas. — E trago uma carta

Page 445: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

para você. Foi entregue na casa errada e estavam fora em negócios.

Acabaram de regressar, por isso deve ter mais de uma semana.

Olhei para ele, espantado. Quem me poderia mandar uma carta para

aqui? Levou a mão ao bolso do casaco, retirou um envelope amarrotado

e entregou-me. Fiquei apreensivo porque reconheci a caligrafia do meu

irmão Jack no envelope e soube que deveria ter custado uma pequena

fortuna enviar a carta pela mala-postal: tinha de ser algo grave. Eram na

certa más notícias.

Abri o envelope rasgando-o e desdobrei a carta, que era breve e concisa.

Caro Tom

O estado do nosso pai agravou-se novamente. Piora a olhos vistos.

Todos os filhos dele estão aqui, menos você, por isso é melhor vir

imediatamente para casa.

Jack

Jack sempre fora direto e aquelas palavras deixaram-me o coração

muito apertado. Não podia acreditar que o pai fosse morrer. Não

conseguia sequer imaginá-lo.

O mundo não seria o mesmo sem ele. E se a carta de Jack estava na

aldeia há uma semana, à espera de ser lida, eu podia chegar já tarde

demais. Enquanto Shanks descarregava as nossas provisões, corri lá

para dentro, subi ao quarto do Mago e, com mãos trêmulas, mostrei-lhe

a carta. Ele leu-a, depois soltou um suspiro profundo.

— Lamento saber as más novas — disse. — É

melhor ir imediatamente a sua casa. Numa altura desta a sua mãe vai

precisar de você a seu lado.

— E então o senhor? — inquiri. — Ficará bem?

— Não se preocupe comigo, não tarda ficarei bom.

Não, vá embora enquanto ainda resta alguma claridade.

Vai querer descer a charneca muito antes de a noite cair.

Quando desci à cozinha, Alice e Meg estavam ambas a cochichar. Meg

sorriu quando me viu.

— Esta noite vou preparar uma ceia especial para ambos — anunciou.

— Não vou estar aqui para a ceia, Meg — disse-lhe.

— O meu pai está doente e tenho de ir para casa por alguns dias.

— Lamento sabê-lo, Bily. A neve vem aí com certeza, por isso proteja-se

bem do frio. As queimaduras podem fazer-te cair os dedos.

— A situação é muito má, Tom? — perguntou Alice, parecendo

preocupada, de modo que lhe entreguei a carta e ela leu-a rapidamente.

Page 446: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Oh, Tom! Lamento muito — disse, avançando para me dar um abraço.

— Talvez não seja bem o que parece. . Mas quando os nossos olhos se

cruzaram, pude ver que ela só estava a tentar fazer-me sentir melhor.

Temíamos ambos o pior.

Preparei-me para partir. Não me preocupei com o meu saco — deixei-o

no gabinete de trabalho — mas levei o meu bordão; no meu bolso, para

além de um pedaço grande de queijo amarelo esboroado para a viagem,

tinha a caixa de mechas e um toco de vela. Nunca se sabia quando

poderiam vir a ser úteis.

Depois de me despedir do Mago, dirigi-me à porta de trás com Alice.

Para minha surpresa, em vez de se despedir ali, tirou o casaco do cabide

e vestiu-o.

— Vou com você até ao fim da ravina — anunciou, esboçando-me um

sorriso triste.

Descemos então juntos. Não falamos. Sentia-me atordoado e receoso,

ao passo que Alice se mostrou deveras submissa. Quando chegamos ao

fundo da ravina e me virei para Alice a fim de me despedir, para minha

surpresa, vi que havia lágrimas nos olhos dela.

— O que se passa, Alice?

— Não vou estar aqui quando regressar. O Velho Gregory vai me mandar

embora. Vou voltar para Moor View Farm.

— Oh, lamento, Alice. Ele não me falou nada a esse respeito. Pensei que

estivesse tudo bem.

— Ele me disse a noite passada. Acha que estou próximo demais de

Meg.

— Próximo demais?

— Penso que pode ser porque nos viu a conversar uma com a outra, é

tudo. Quem sabe o que vai dentro da cabeça do Velho Gregory. Achei

por bem te avisar. Para que saiba onde me encontrar quando regressar.

— Irei visitá-la assim que puder — disse-lhe. —

Antes mesmo de voltar para casa do Mago.

— Obrigada, Tom — respondeu Alice, pegando-me por um breve instante

na mão esquerda para a apertar afetuosamente.

Deixei-a então e continuei a descer, parando uma vez para olhar para

trás. Continuava lá a observar-me, de modo que lhe acenei. Alice não

me dissera quaisquer palavras finais de consolo. Não mencionara o meu

pai. Ambos sabíamos que não havia nada a dizer e receava o que fosse

encontrar em casa.

Page 447: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O crepúsculo chegou rapidamente, ajudado por uma camada de nuvens

espessas e carregadas vinda de norte. Escurecia já quando deixei as

alturas da charneca; não sei como, consegui desorientar-me e não

encontrei o trilho que tencionava tomar.

Lá em baixo havia um aglomerado de árvores e um muro baixo de pedra

seca com um pequeno edifício a alguma distância para lá dele — talvez

uma cabana de criado de lavoura, o que significava que muito

provavelmente haveria uma pequena estrada ou trilho que partia dela

descendo a colina. Subi o muro mas hesitei antes de descer para o outro

lado. Para começar, teria mais de um metro e oitenta de altura e

descobri que estava a olhar para um grande cemitério. Também não

havia uma cabana ao longe. Era uma pequena capela.

Encolhi os ombros e desci para o meio das lápides.

Até podia ter o seu quê de arrepiante, mas eu era o aprendiz do Mago e

tinha de me acostumar a lugares como este apesar de estar quase

escuro. Comecei a avançar por entre as sepulturas, sempre a descer, e

não tardou que os meus pés pisassem um caminho de gravetos que

seguia em direção à capela.

Devia ser sempre direto. O caminho passava ao lado da capela; para lá

dela, serpenteava por entre as lápides em direção a dois enormes teixos

que formavam um arco por cima de um portão. Deveria ter continuado a

caminhar, mas via-se um brilho de luz no vitral da capela, prova de uma

vela a tremular. Quando passei pela porta, reparei que estava

ligeiramente entreaberta e ouvi nitidamente uma voz lá dentro.

Uma voz que gritou uma única palavra: — Tom!

Era uma voz cava, uma voz masculina, uma voz que estava acostumada

a que lhe obedecessem. Não a reconheci.

Conquanto parecesse improvável, senti que me chamavam. E quem

poderia estar dentro da capela que sabia o meu nome, ou que eu

passava por ali no escuro naquele momento? Não deveria estar ninguém

na capela àquela hora da noite. Só seria usada esporadicamente, para

breves serviços antes dos funerais.

Quase antes de perceber o que fazia, aproximei-me da porta da capela,

abri-a e entrei. Para minha surpresa não havia ninguém lá, mas reparei

de imediato em algo realmente estranho na configuração interior. Em

vez de virados para o altar, com um corredor de permeio, os bancos

estavam em quatro longas filas encostados à parede e defronte para um

Page 448: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

único confessionário grande na parede à minha direita, com duas velas

enormes posicionadas como sentinelas de cada lado dele.

O confessionário tinha as duas entradas habituais, a do padre e a do

penitente. Um confessionário contém, na realidade, dois compartimentos

com uma divisória de modo a que, apesar de o padre poder ouvir as

confissões através de uma grelha, não consiga ver o rosto da pessoa que

se confessa. Mas havia ali algo de estranho. As portas tinham sido

retiradas, de modo que me encontrava defronte de dois retângulos da

mais completa escuridão.

Enquanto olhava para as portas, sentindo-me muito agitado, alguém

saiu do escuro pela entrada do padre à esquerda e avançou na minha

direção. Usava uma capa e um capuz tal como o Mago.

Era Morgan, apesar de a voz que me chamou não ter sido a dele. Estava

mais alguém na capela? Quando ele se aproximou, tive uma súbita

sensação de frio intenso.

Não o frio habitual que me dizia que algo do escuro estava próximo. De

certa forma, era diferente. Fez-me lembrar o frio que sentira quando

enfrentara em Priestown o espírito maléfico a que chamavam o

Destruidor.

— Voltamos a encontrar-nos, Tom — disse Morgan com um leve sorriso

escarninho. — Lamento saber a notícia do seu pai. Mas ele teve uma

vida boa. A morte acaba por bater à porta de todos nós.

O meu coração agitou-se no peito e parei de respirar. Como é que ele

soubera da doença do Pai?

— Mas a morte não é o fim, Tom — disse ele, dando outro passo na

minha direção. — E durante algum tempo podemos falar com aqueles

que amamos. Gostaria de falar com o seu pai? Eu podia invocá-lo agora

para você, se é isso que quer...

Não respondi. Só naquele instante comecei a compenetrar-me do que

ele dizia. Senti-me entorpecido.

— Oh, lamento, Tom. É claro que você não sabe não é? — prosseguiu

Morgan. — O seu pai morreu na semana passada.

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CAPÍTULO 11

O QUARTO DA MÃE

Morgan voltou a sorrir, mas o coração saltou-me para a boca e enchi-me

de pânico: o mundo girou à minha volta.

Sem pensar, virei-me e corri para a porta. Uma vez lá fora, continuei a

descer o caminho, os meus pés esmagando os gravetos. Quando cheguei

no portão, virei-me e olhei para trás. Viera até à entrada da capela. O

seu rosto estava no escuro pelo que não lhe pude ver a expressão, mas

levantou a mão e acenou-me. O tipo de aceno que se faria a um amigo.

Não correspondi. Limitei-me a abrir o portão e continuar a descer a

vertente, um misto de pensamentos e emoções às voltas na minha

cabeça. Ficara perturbado ao pensar que o meu pai podia encontrar-se

já morto. Estaria Morgan certo do que afirmara? Ele era necromante, por

isso invocara algum fantasma que lho dissera? Recusei-me a acreditar e

tentei remetê-lo para o meu subconsciente.

E por que desatara eu a fugir? Devia ter ficado e dito o que pensava a

seu respeito. Mas surgira-me um nó na garganta e as minhas pernas

tinham-me levado até à porta antes de ter sequer tempo de pensar. Não

podia afirmar que estava com medo dele, muito embora fosse arrepiante

ouvi-lo dizer semelhantes coisas na capela, com as velas a tremular

atrás dele. Era o fato de ser confrontado assim com aquela notícia.

Não me lembro muito do resto da viagem, para além do fato de parecer

estar a esfriar e a ventar mais. Na noite do segundo dia, o vento mudara

para nordeste e o céu parecia carregado de neve.

A neve só começou a cair quando me encontrava a cerca de meia hora

de casa. A luz principiara a diminuir, mas conhecia o caminho como a

palma da minha mão e isso não me impediu o progresso. Quando abri o

portão da fazenda um cobertor branco cobria tudo e fiquei gelado até

aos ossos. A neve torna sempre tudo mais tranquilo, mas parecia ter

descido um silêncio noturno especial sobre a casa. Entrei no pátio e o

silêncio cessou quando os cães começaram a ladrar.

Não havia ninguém por perto, muito embora uma luz tremulasse numa

das janelas do quarto das traseiras.

Chegara tarde de mais? Levava o coração já aos pés e temi o pior dos

piores.

Page 450: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Vi então Jack: avançou em grandes passadas pelo pátio na minha

direção. Vinha carrancudo, as sobrancelhas espessas unidas por cima do

nariz.

— Por que demorou? — inquiriu, furioso. — Não leva uma semana, não

é? Os nossos irmãos já partiram. E

James vive a meio caminho do Condado! Foi o único que não chegou.

— A sua carta foi para na morada errada. Recebi-a uma semana depois

— expliquei. — Mas como está ele?

Cheguei tarde demais? — perguntei, sustendo a respiração mas lendo já

a verdade no rosto de Jack.

Jack suspirou e baixou a cabeça como se não conseguisse encarar-me.

Quando tornou a levantar a cabeça, os seus olhos brilhavam com

lágrimas.

— Ele se foi, Tom — disse baixinho, toda a aspe-reza e a raiva

desaparecidas. — Morreu tranquilamente enquanto dormia fez ontem

uma semana.

Antes que percebesse, abraçava-me e chorávamos ambos. Nunca mais

ia voltar a ver o meu pai; nunca mais iria ouvir a sua voz, as suas velhas

histórias e adágios sábios; nunca mais apertaria a sua mão ou lhe

pediria um conselho; e a idéia era insuportável. Mas enquanto ali estava,

lembrei-me de alguém que sentiria essa perda ainda mais do que eu.

— Pobre Mãe — disse, quando consegui voltar a falar. — Como é que ela

tem passado?

— Mal, Tom. Muito mal — afirmou Jack, abanando a cabeça com pesar.

— Nunca antes vira a Mãe chorar e foi algo terrível de se ver. Ela ficou

fora de si, durante dias não comeu nem dormiu. E no dia seguinte ao

funeral, preparou um saco e partiu, dizendo que precisava de se afastar

por uns tempos.

— Para onde é que ela foi?

Jack abanou a cabeça, o seu rosto cheio de infelicidade.

— Quem me dera saber — disse.

Não comentei com Jack, mas lembrei-me do que o Pai uma vez me

dissera: que a Mãe tinha a sua própria vida para viver e que depois de

ele morrer e ser enterrado provavelmente regressaria ao seu próprio

país. E dissera que quando esse momento chegasse eu teria de ser forte

e deixá-la partir com um sorriso. Só esperava que não o tivesse feito já.

Partiria sem se despedir de mim? Esperava que não. Precisava mesmo

de voltar a vê-la, nem que fosse pela última vez.

Page 451: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Foi a pior ceia que alguma vez me lembro de tomar em casa.

Era tão triste não ter a Mãe e o Pai à mesa e olhava constantemente

para a cadeira vazia do Pai. A bebê estava lá em cima no berço, por isso

éramos apenas os três, Jack, Ellie e eu, sentados à mesa e a debicar

lentamente a comida.

Quando a olhei, Ellie sorriu com pesar mas estava muito calada. Tinha a

impressão de que queria me dizer algo mas esperava pela ocasião certa.

— O guisado está mesmo muito bom, Ellie — disse-lhe. — É uma pena

desperdiçar, mas não sou capaz de comer muito. Não tenho muita fome.

— Não se preocupe, Tom — respondeu-me com doçura. — Eu entendo.

Nenhum de nós está com apetite.

Coma apenas o que aguentar. É importante manter as forças numa

altura como esta.

— Provavelmente não será o momento certo, mas queria dar os

parabéns, aos dois. Da última vez que estive aqui, a Mãe contou-me que

está à espera de outro bebê e que vai ser um rapaz.

Jack sorriu, pesaroso, a sua voz embargada.

— Obrigado, Tom. Se ao menos o Pai tivesse vivido para ver o neto

nascer. . — Pigarreou como se fosse dizer algo importante. — Olha —

começou. — Por que não fica conosco alguns dias até o tempo melhorar?

Não precisa de voltar já amanhã, não é? A verdade é que seria bom uma

ajuda na fazenda. James ficou dois dias mas teve de voltar ao trabalho.

James, o meu segundo irmão mais velho; era ferreiro. Duvidei que ele

tivesse ficado depois do funeral, pois Jack precisava realmente de ajuda

no trabalho da fazenda. Não eram as sementeiras na Primavera, nem as

colheitas no Outono, em que toda a ajuda era bem-vinda.

Não, Jack queria que eu ficasse pela mesma razão que precisara de

James. Apesar de detestar os assuntos dos magos e não gostar de me

ter por perto, precisava que eu preenchesse o vazio, a solidão de estar

ali sem o Pai e a Mãe. — Vai ser bom ficar alguns dias — disse-lhe,

sorrindo. — Ainda bem que pode, Tom. Agradeço muito —

afirmou, afastando o prato muito embora mal tivesse comido um terço.

— Vou me deitar.

— Vou lá mais tarde, querido — disse Ellie a Jack.

— Não se importa que eu fique aqui um pouco a fazer companhia a Tom,

não é?

— De modo algum — respondeu.

Depois de ele sair, Ellie sorriu-me calorosamente.

Page 452: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Estava mais bonita do que nunca, mas tinha um ar cansado e triste, a

tensão da última semana sendo parcialmente responsável por isso.

— Obrigada por aceitar ficar um pouco, Tom —

disse-me. — Ele precisa falar dos velhos tempos com um dos irmãos. É

assim que se chora, falando sucessivamente do assunto. Mas acho

também que ele precisa de você porque acredita que se estiver aqui,

provavelmente a Mãe voltará. .

Não me ocorrera tal. A Mãe sentia as coisas. Saberia que eu estava na

fazenda. Podia realmente voltar para me ver.

— Espero que sim.

— Também eu, Tom. Mas escute, quero que seja paciente com Jack.

Sabe, há uma coisa que ele ainda não te contou. Havia uma surpresa no

testamento do seu pai.

Algo com que ele não contava. .

Fiquei intrigado. Uma surpresa? O que poderia ser?

A família inteira sabia que, com a morte do Pai, Jack, como filho mais

velho, herdaria a fazenda. Não valia a pena dividi-la entre os sete,

tornando-a cada vez menor. Era a tradição do Condado. Ia sempre para

o filho mais velho, com a garantia de a viúva lá poder ficar enquanto

fosse viva. — Uma surpresa agradável? — perguntei, na dúvida, sem

saber o que esperar.

— Não, não é dessa maneira que Jack o vê. Mas não quero que me

interprete mal, Tom. Ele só está pensando em mim e em Mary e, claro,

no filho que vai nascer

— disse-me, passando a mão pela barriga. — Sabe, Jack não herdou a

casa toda. Foi-te deixado um quarto. .

— O quarto da Mãe? — perguntei, adivinhando já a resposta. Era o

quarto onde a Mãe guardava as suas coisas particulares; onde guardara

a corrente de prata que me dera no Outono.

— Sim, Tom — afirmou Ellie. — Aquele quarto fechado mesmo por

debaixo do sótão. Aquele quarto e tudo o que está lá dentro. Muito

embora Jack possua a casa e a terra, será sempre permitido a você o

acesso àquele quarto e poderá ficar lá quando quiser. Jack empalideceu

quando foi feita a leitura do testamento. Significa que você pode mesmo

viver aqui, se for essa a sua intenção. Eu sabia que Jack não me queria

perto da casa não fosse dar-se o caso de eu trazer algo comigo; algo do

escuro. Não podia contra-argumentar porque tal já sucedera uma vez. A

Page 453: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

velha bruxa, Mãe Malkin, acabara por vir ter à nossa cave na Primavera

passada. Jack e a filha bebê de Elie, Mary, tinham corrido mesmo perigo.

— A Mãe fez algum comentário? — perguntei.

— Nem uma palavra. Jack ficou incomodado demais para falar do

assunto e depois ela foi embora no dia seguinte.

Não consegui deixar de pensar que, ao destinar-me o quarto, tal

significava que iria partir em breve; voltar para o seu próprio país e

deixar-nos para sempre. Isto se não se tivesse ido já embora.

Na manhã seguinte levantei-me muito cedo mas Ellie chegara à cozinha

antes de mim. Foi o cheiro de salsichas a fritar que me levou lá abaixo.

Apesar de tudo o que acontecera, o meu apetite começava a voltar.

— Teve uma boa noite de sono, Tom? — perguntou, brindando-me com

um grande sorriso.

Anuí mas era uma pequena mentira. Demorara muito a adormecer e

depois acordara diversas vezes. E

sempre que abria os olhos, a dor voltava-me, como se percebesse pela

primeira vez de que o Pai morrera.

— Onde está a bebê? — perguntei.

— Mary está lá em cima com Jack. Gosta de passar algum tempo com

ela todas as manhãs. Sempre é um bom pretexto para começar a

trabalhar um pouco mais tarde.

Hoje também não vai adiantar muito — disse-me, apontando para a

janela. Os flocos de neve desciam a rodopiar e a divisão estava mais

iluminada do que num dia de Verão pois a luz refletia-se da neve

acumulada no pátio.

Não tardei a atacar um prato de salsichas com ovos.

Enquanto comia, Jack desceu e me fez companhia à mesa.

Baixou-me a cabeça e começou a comer o seu desjejum; Ellie veio até a

divisão da frente, deixando-nos a sós. Ele debicava a comida,

mastigando-a devagar, e comecei a sentir-me culpado por estar a

saborear o meu desjejum.

— Ellie contou-me que já sabe do testamento —

falou por fim Jack.

Anuí mas não disse nada.

— Olhe, Tom, como filho mais velho, sou o executor do testamento e é

meu dever certificar-me de que as vontades do Pai são cumpridas, mas

gostaria de saber se poderíamos chegar a um acordo — disse. — E se eu

te comprasse o quarto? Se conseguisse arranjar o dinheiro, me

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venderia? E quanto às coisas da Mãe lá dentro, tenho certeza de que Mr.

Gregory te deixaria guardá-las em Chipenden. .

— Preciso de tempo para pensar, Jack — redarguiu-lhe. — Isto foi um

grande choque. Aconteceu coisas demais muito rapidamente. Não se

preocupe, não faço tenções de vir aqui constantemente. Estarei ocupado

demais. Jack levou a mão ao bolso das calças e retirou um molho de

chaves. Colocou-as na mesa à minha frente.

Havia uma chave grande e três mais pequenas: a primeira era da porta

do quarto; as outras três das caixas e arcas lá dentro. — Bem, aqui

estão as chaves. Quer sem dúvida ir lá em cima ver a sua herança.

Debrucei-me e empurrei de novo as chaves na direção dele.

— Não, Jack — disse-lhe. — Guarde-as por agora.

Não irei ao quarto sem antes ter falado com a Mãe.

Olhou-me, espantado.

— Tem certeza?

Anuí e ele voltou a enfiar as chaves no bolso, não se falando mais no

assunto.

O que Jack afirmara fazia bastante sentido. Mas eu não queria o dinheiro

dele. Para comprar a minha parte, ele teria de pedir um empréstimo e,

financeiramente, a situação seria bastante difícil visto ter de administrar

sozinho a fazenda. No que me dizia respeito, ele podia ficar com o

quarto. E tinha certeza de que o Mago me deixaria guardar as caixas e

arcas da Mãe em Chipenden. Mas desconfiava que era vontade da Mãe

que eu ficasse com o quarto, e só isso me impediu de concordar

prontamente.

Estava no testamento do Pai mas provavelmente a decisão fora dela. A

Mãe tivera sempre uma boa razão para tudo o que fazia, por isso não

podia decidir nada enquanto não falasse cara a cara com ela.

Naquela tarde, fui visitar o jazigo do Pai. Jack queria acompanhar-me,

mas consegui dissuadi-lo. Precisava de isolar-me. Uma hora ou mais

para pensar e chorar sozinho. E havia algo mais que precisava saber.

Algo que não poderia fazer se Jack me acompanhasse. Ele não teria

compreendido ou, quando muito, ficaria deveras transtornado.

Calculei o meu passeio de modo a chegar lá ao pôr do Sol, apenas com a

luz suficiente para encontrar a sepultura. Era um cemitério ermo,

coberto de neve, a cerca de oitocentos metros da igreja. O próprio adro

da igreja estava tão cheio que tinham consagrado mais aquele solo

sagrado. Na realidade, não passava de um pequeno campo delimitado

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por uma sebe de espinheiro com dois sicômoros a estabelecer os limites

ocidentais. Foi fácil encontrar a sepultura do Pai na primeira fila de

jazigos que avançavam mês a mês pelo campo. A sepultura dele ainda

não tinha pedra, contudo fora assinalada temporariamente com uma

cruz, o nome dele talhado fundo na madeira: JOHN WARD

ETERNO DESCANSO

Permaneci algum tempo junto daquela cruz de madeira, pensando em

todos os momentos felizes que tí-

nhamos passado em família; recordando a infância, com a Mãe e o Pai

felizes e atarefados e todos os meus irmãos a viverem em casa. Recordei

a última vez que falara com o Pai e de ele me ter dito que se orgulhava

de ter um filho tão corajoso e que, apesar de não ter quaisquer

preferidos, continuava a achar que eu saíra o melhor deles todos.

Vieram-me as lágrimas aos olhos e chorei alto junto à campa. Mas

quando escureceu, respirei fundo e fortaleci-me, concentrando-me no

que havia a fazer. Assuntos de magos. — Pai! Pai! — chamei na

escuridão. — Está aí?

Consegue ouvir-me?

Chamei três vezes exatamente da mesma maneira, mas a cada ocasião

os únicos sons que ouvi foram o vento a assobiar por entre a sebe de

espinheiro e um cão solitário a ladrar ao longe. Suspirei então de alívio.

O Pai não estava ali. O seu espírito não ficara preso ali. Não se apegara

à sepultura. Só esperava que tivesse ido para um lugar melhor.

Ainda não me decidira quanto a Deus. Talvez Deus existisse e talvez Ele

não existisse. Se Ele existisse, dar-se-ia ao incômodo de me escutar? Eu

não tinha por hábito rezar, mas tratava-se do Pai, de modo que abri uma

exceção.

— Por favor, Deus, dê-lhe paz — pedi, baixinho.

— Se for o que ele merece. Foi um homem bom e muito trabalhador e

eu amava-o.

Depois virei-me e, muito triste, regressei a casa.

Permaneci na fazenda cerca de uma semana.

Quando chegou a altura de partir, chovia, a neve meio derretida no

pátio.

A Mãe não regressara e perguntei-me se alguma vez o faria. Mas a

minha principal obrigação era voltar para Anglezarke e ver como estava

o Mago. Só esperava que continuasse a recuperar. Prometi a Jack e Ellie

que os viria visitar na Primavera e que falaríamos então a respeito do

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quarto. Empreendi a longa caminhada para sul, pensando no Pai e em

tudo o que mudara. Ainda há pouco tempo eu vivia lá em casa feliz com

os meus pais e seis irmãos, e o Pai estava forte e com saúde. Agora tudo

se alterara.

Tudo se desmoronara.

De certa forma, nunca poderia regressar ao lar porque ele já não existia.

Agora estava tudo muito diferente. Os edifícios podiam continuar a ser

os mesmos, assim como a vista da Colina do Carrasco da janela do meu

antigo quarto. Mas, sem o Pai e a Mãe não seria simplesmente o lar.

Sabia que perdera algo para sempre.

Page 457: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 12

NECROMANCIA

Quanto mais para sul viajava, mais esfriava, a chuva a transformar-se

gradualmente em neve. Estava cansado e queria seguir logo para casa

do Mago mas prometera a Alice que a iria visitar primeiro e tencionava

ser fiel à minha palavra.

Quando surgiu Moor View Farm, já estava escuro.

O vento amainara e o céu estava limpo. A lua aparecera e a neve

tornava tudo muito mais brilhante do que o costume; para lá da casa da

fazenda, o lago era um espelho escuro refletindo as estrelas.

A própria fazenda estava às escuras. A maior parte dos agricultores do

Condado recolhia-se cedo, por isso era algo com que já estava a contar.

Esperava, no entanto, que Alice tivesse dado pela minha aproximação e

escapulido para se vir encontrar comigo. Subi a vedação limite e

atravessei um campo em direção ao aglomerado de edifícios dilapidados.

Apareceu um estábulo à minha frente, e ouvindo um som invulgar,

estaquei junto à porta aberta.

Alguém chorava.

Aproximei-me da ombreira da porta e os animais lá dentro agitaram-se

nervosamente. Senti imediatamente o cheiro. Não era o habitual odor

adocicado a animais, acrescido de umas quantas saudáveis bostas de

vaca. Era disenteria, uma doença digestiva a que o gado e os porcos

estão sujeitos. Tem tratamento, mas aquele gado estava doente e

negligenciado. A situação piorara consideravelmente desde a última vez

que eu lá estivera.

Foi então que percebi que alguém me vigiava. A minha esquerda,

iluminado por um raio de luar, Mr. Hurst estava sentado acocorado num

banco de ordenha. Escorriam lágrimas pelas faces do velho e olhava

para mim, a infelicidade estampada no seu rosto. Recuei um passo

quando ele se pôs em pé.

— Desapareça daqui! Deixe-me em paz! — gritou, brandindo o punho na

minha direção, tremendo da cabeça aos pés.

Fiquei chocado e incomodado. Sempre fora tão tímido e plácido, nunca

dirigindo a mim nem a Alice uma palavra irada. Naquele momento

parecia desesperado e no limite das suas forças. Afastei-me, cabisbaixo.

Page 458: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Sentia muita pena dele. Morgan devia tê-lo tratado muito mal: por isso

ficara fora de si. Não sabia o que fazer mas pensei que o melhor seria

ter uma conversa com Alice.

Continuei a avançar até chegar ao pátio. A casa mantinha-se às escuras

e não sabia bem o que fazer. Alice devia estar dormindo profundamente,

não percebendo que eu estava perto. Esperei um momento, a minha

respiração fazendo vapor no ar frio.

Aproximei-me da porta de trás e bati duas vezes.

Nem precisei bater de novo. Passados alguns instantes a porta abriu-se

lentamente, chiando nas dobradiças e Mrs.

Hurst enfiou a cabeça, piscando os olhos ao luar.

— Preciso falar com Alice — disse-lhe.

— Entre, entre — convidou, a sua voz fraca e rouca.

Havia um tapete do lado de dentro da porta, de modo que entrei logo

para o pequeno corredor e, depois de sorrir e agradecer-lhe

cortesmente, sacudi a neve das botas o melhor que pude. Lá à frente

ficavam as duas portas interiores. A da direita estava fechada; mas a

porta do quarto de Morgan encontrava-se parcialmente aberta e vi luz de

vela a tremular do outro lado.

— Entre — disse ela, apontando para lá.

Ainda hesitei, perguntando-me o que faria Alice no quarto de Morgan,

mas entrei mesmo assim. O ar estava carregado do fedor de sebo e, por

alguma razão, a primeira coisa em que reparei foi numa vela grossa feita

de cera preta, que fora colocada num enorme castiçal de latão.

Estava posicionada no meio da comprida mesa de madeira com as duas

cadeiras uma defronte da outra, em cada extremo.

Esperara ver ali Alice mas enganara-me. Sentada na extremidade mais

próxima da mesa, e a olhar na direção da vela, estava uma figura

encapuzada. Virou-se para mim e vi uma barba e um sorriso escarninho.

Era Morgan.

Mais uma vez, o meu instinto foi fugir dali, mas ouvi dois sons atrás de

mim. O primeiro foi a porta fechando-se com firmeza.

O segundo foi o pesado ferrolho a ser corrido. À

minha frente estava a janela coberta com um cortinado pesado e

nenhuma outra porta. Encontrava-me trancado no quarto com Morgan.

Relanceei a divisão, olhando para as lajes de pedra à mostra, depois

para a cadeira vazia à espera. O quarto estava frio e senti arrepios.

Havia uma lareira mas estava cheia de cinzas apagadas.

Page 459: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Sente-se, Tom — disse Morgan. — Temos muito o que conversar.

Não me mexi, de modo que ele me indicou a cadeira defronte de si.

— Vim aqui para falar com Alice — respondi-lhe.

— Alice foi embora — referiu Morgan. — Partiu há três dias.

— Embora? Embora para onde? — inquiri.

— Ela não disse. Não era uma garota muito faladora, aquela Alice. Nem

se deu ao incômodo de dizer que ia embora. Agora, Tom, a última vez

que entrou neste quarto foi sem ser convidado, como um ladrão no meio

da noite, com aquela garota a seu lado. Mas vamos esquecer isso porque

agora é muito bem-vindo. Por isso, volto a dizer. Sente-se.

Cheio de receio, sentei-me, mas conservei o bordão erguido na mão

esquerda, agarrando-o com firmeza. Como soubera que tínhamos

entrado no quarto dele? E estava muito preocupado com Alice. Para

onde poderia ter ido? Certamente não para Pendle? O meu olhar cruzou-

se com o de Morgan. Subitamente, com um sorriso, puxou o capuz para

trás expondo a sua cabeleira rebelde. Estava muito mais grisalha do que

da última vez. A luz da vela, o seu rosto parecia irregular e as rugas

bastante mais profundas.

— Ofereceria vinho — disse —, mas não bebo quando estou trabalhando.

— Não costumo beber vinho — respondi-lhe.

— Mas come sem dúvida queijo — comentou, um sorriso escarninho no

rosto.

Não lhe respondi e o seu semblante ficou sério. De repente, debruçou-

se, franziu os lábios e soprou com força. A vela tremulou e apagou-se,

mergulhando o quarto na mais absoluta negrura, ao mesmo tempo que o

cheiro de sebo se intensificava.

— Somos só você, eu e o escuro — referiu Morgan. — Consegue

aguentar? Está apto a ser meu aprendiz?

Tinham sido as palavras exatas que o Mago me dissera na cave da casa

assombrada em Horshaw, o lugar onde me levara logo no primeiro dia

do meu aprendizado.

Fizera-o para avaliar se eu tinha ou não fibra para me tornar mago. As

palavras que proferira no momento em que a vela se apagara.

— Aposto que quando desceu pela primeira vez as escadas da cave, ele

estava sentado no canto e levantou-se no momento em que se

aproximou — prosseguiu Morgan. — Nada muda. Você, eu e duas dúzias

de outros ou mais. Absolutamente previsível. Velho tolo! Não admira que

ninguém aguente ficar muito tempo com ele.

Page 460: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Você ficou três anos — respondi baixinho no escuro.

— Já encontrou a língua, Tom? Isso é bom — afirmou Morgan. — Vejo

que ele esteve a falar de mim.

Disse algo de bom?

— Nem por isso.

— O que não me surpreende. E contou por que desisti do aprendizado de

mago?

Nesta altura, os meus olhos tinham-se adaptado ao escuro e conseguia

de fato distinguir a forma da cabeça dele a olhar para mim do outro lado

da mesa. Podia ter lhe contado que o Mago dissera que lhe faltava

disciplina e não estava à altura da tarefa, mas decidi fazer-lhe antes

algumas perguntas da minha lavra.

— O que pretende de mim? E por que a porta foi trancada? — inquiri.

— Para que não possa voltar a fugir — respondeu Morgan. — Para que

não tenha outra escolha senão ficares e enfrentar o que tenho para te

mostrar. Constou-me que é um bom aprendiz. Tanto você como eu

sabemos que o seu mestre não aprecia isso. Portanto, esta é a primeira

lição do seu novo aprendizado. Já terá tido alguns encontros com os

mortos, mas agora vou aumentar os seus conhecimentos. E aumentá-los

significativamente.

— Por que haveria você de querer fazer isso? —

desafiei-o. — Mr. Gregory está me ensinando tudo o que preciso saber.

— Primeiro o mais importante, Tom — replicou Morgan. — Primeiro

vamos falar de fantasmas. O que sabe sobre eles?

Decidi fazer-lhe a vontade. Talvez se o deixasse por para fora tudo o que

ele queria, pudesse ir embora e regressar a casa do Mago.

— A maior parte dos fantasmas está presa aos ossos; outros, ao lugar

onde sofreram ou cometeram algum crime terrível enquanto ainda na

terra. Não são livres de vaguear à vontade.

— Muito bem, Tom — afirmou Morgan, uma pontinha de escárnio por

detrás da sua voz. — E aposto que escreveu também tudo no seu livro

de notas, como um bom pequeno aprendiz. Bem, aqui vai algo que o

velho tolo não te ensinou. Não o terá mencionado porque não gosta de

pensar no assunto. Aqui vai a grande pergunta.

Para onde vão os mortos depois da morte? E não estou a falar de

fantasmas e imagens fantasmagóricas aprisionados. Refiro-me aos

outros mortos. A esmagadora maioria.

Pessoas como o seu pai.

Page 461: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Ante a menção ao meu pai endireitei-me e olhei com dureza para

Morgan.

— O que sabe sobre o meu pai? — indaguei, furioso. — Como soube que

ele morreu?

— Tudo a seu tempo, Tom. Tudo a seu tempo.

Tenho poderes que o seu mestre apenas pode imaginar.

Mas não respondeu à minha pergunta. Para onde vão os mortos depois

da morte?

— A Igreja diz o Céu, o Inferno, o Purgatório ou Limbo — respondi. —

Não tenho certeza de tudo isso e Mr. Gregory nunca fala do assunto. Mas

acredito que a alma sobrevive à morte.

— O Purgatório é um lugar para onde as almas iam a fim de se

limparem, sofrendo até serem dignas de entrar no Céu. O Limbo era

mais misterioso. Os padres pensavam que aqueles que não foram

batizados iam para lá.

Supostamente, estaria destinado às almas que não eram propriamente

más mas, sem terem culpa própria, não eram dignas de entrar no Céu.

— O que sabe a Igreja? — indagou Morgan, o tom de escárnio a entrar

na sua voz. — Isso é talvez a única coisa em que o Velho Gregory e eu

estamos de acordo.

Mas sabe, Tom, dos quatro lugares que acabou de mencionar, o Limbo é

de longe o mais útil para alguém como eu. O seu nome vem da palavra

latina Umbus, que significa

«orla» ou «franja». Repare, para onde quer que se dirija, a maioria dos

mortos tem primeiro de passar pelo Limbo, que fica na orla deste

mundo, e alguns têm muita dificuldade em fazê-lo. Uma parte dos

fracos, dos timoratos e dos culpados recua, voltando a este mundo para

se tornar fantasmas, juntando-se aos apegados, que já estão presos à

terra. São os mais fáceis de controlar. Mas até os fortes e bons têm de

se esforçar e lutar para transporem o Limbo.

É um processo demorado, e enquanto são retardados, tenho o poder de

alcançar ali a alma que eu quiser. Posso impedi-la de prosseguir. Posso

fazer dela o que quiser. Se necessário, fazê-la sofrer.

— Os mortos tiveram as suas vidas. Para eles acabou. Mas nós

continuamos vivos e podemos usá-los. Podemos lucrar com eles. Quero

aquilo que Gregory me deve. Quero a sua casa em Chipenden com

aquela enorme biblioteca cheia de livros que contêm tanto

conhecimento.

Page 462: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

E depois há algo mais. Algo muito mais importante.

Algo que ele me roubou. Ele tem um grimoire5, um livro de fórmulas e

rituais, e vai ajudar-me a recuperá-lo.

Em troca, pode continuar o seu aprendizado, comigo a preparar-te. E

ensinarei coisas que ele nunca imaginou.

Colocarei o verdadeiro poder nas pontas dos seus dedos!

— Não quero que me ensine — ripostei, furioso.

— Estou satisfeito com as coisas tal como estão!

— O que te faz pensar que tem voto no assunto?

— perguntou Morgan, a sua voz subitamente fria e ameaçadora. — Acho

que chegou a hora de te mostrar do que sou capaz. Agora, para a sua

própria segurança, quero que fique sentado sem se mexer e escute com

atenção. Aconteça o que acontecer, não tente sair dessa cadeira!

O quarto tornou-se muito silencioso e obedeci. O

que mais podia fazer? A porta estava trancada e ele era maior e mais

forte do que eu. Podia usar o meu bordão contra ele, mas sem

verdadeira garantia de sucesso. Por ora, o melhor era alinhar no jogo

dele, até conseguir fugir e voltar para o Mago.

Ouviu-se um som tênue no escuro. Algo entre um roçar e um ruído

surdo de passos. Era um pouco como ratos a correrem debaixo das

tábuas do soalho. Mas não 5 O termo encontra-se sempre em francês no

original. (NT) havia tábuas, apenas lajes pesadas de pedra, e senti o

quarto começar a arrefecer. Normalmente, teria sido um sinal de que

algo se aproximava; algo que não pertencia a este mundo. Mas, mais

uma vez, este frio era diferente, tal como sucedera quando tínhamos

falado na capela.

De repente, um sino tocou algures no ar lá muito por cima das nossas

cabeças. Era cavo e pesaroso, como se chamasse os enlutados para um

funeral, e tão forte que a mesa vibrou. Senti-o ressoar através das lajes

por debaixo dos meus pés. O sino tocou nove vezes ao todo, cada

repique mais fraco do que o que o antecedera. Seguiram-se

imediatamente três pancadas sonoras na mesa.

Conseguia distinguir o vulto de Morgan e não parecia estar a mover-se.

As pancadas repetiram-se, mais fortes do que nunca, e o pesado castiçal

de latão tombou, rebolou pelo tampo da mesa e caiu no chão.

No quarto escurecido, o silêncio que se seguiu foi quase doloroso e tive a

sensação de que os meus ouvidos iam rebentar. Sustinha a respiração e

Page 463: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

apenas ouvia o latejar dentro da minha cabeça, o bater rápido do meu

coração.

O estranho frio intensificou-se e depois Morgan falou no escuro.

— Irmã minha, aquiete-se e escute bem! — ordenou. Ouvi então o

barulho de água a pingar. Parecia haver um buraco no teto e estar a

escorrer para o centro do tampo da mesa, onde estivera a vela.

Seguidamente uma voz respondeu. Parecia vir da boca de Morgan.

Conseguia apenas distinguir o contorno da cabeça dele e era capaz de

jurar que o seu maxilar se movia, mas era uma voz de menina e não

havia como um homem adulto poder imitar o timbre e a intensidade.

— Deixe-me em paz! Dê-me descanso! — exclamou a voz.

O ruído de água a pingar aumentou e ouviu-se um leve chapinhar, como

se se tivesse formado uma poça no tampo da mesa.

— Obedeça-me e te darei descanso — gritou Morgan. — É com outro que

desejo falar. Traga-o a este lugar e depois pode voltar para o lugar de

onde veio. Está um rapaz comigo neste quarto. Consegue vê-lo?

— Sim, vejo-o — respondeu a voz da garota. — Ele acaba de perder

alguém. Sinto a sua tristeza.

— O nome do rapaz é Thomas Ward — disse Morgan. — Chora o pai.

Traga-nos já o espírito do pai dele!

O frio começou a diminuir e a água deixou de pingar. Não podia

acreditar no que acabara de ouvir. Morgan ia mesmo invocar o espírito

do Pai? Senti-me ultrajado.

— Não está ansioso por falar mais uma vez com o seu pai? — demandou

Morgan. — Já falei com ele e disse-me que todos os seus irmãos o

visitaram no leito de morte para se despedirem menos você, e que nem

sequer foi ao funeral dele. Isso o deixou triste. Muito triste. Agora vão

poder ambos remediar a situação.

Fiquei atônito. Como podia realmente Morgan saber o que sucedera? A

menos que tivesse de fato estado em contacto com o espírito do Pai. .

— Eu não tive culpa! — protestei, irritado e incomodado. — Não recebi a

mensagem a tempo.

— Bem, agora vai ter oportunidade de lhe dizer isso pessoalmente. .

Começou de novo a esfriar. Depois uma voz falou-me do outro lado da

mesa. O maxilar de Morgan movia-se de novo mas, para meu desalento,

foi a voz do pai que lhe saiu pela boca. Não havia a menor dúvida.

Ninguém poderia ter imitado com tanta perfeição a voz de outrem. Até

parecia que o Pai estava sentado à minha frente na cadeira oposta.

Page 464: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Está escuro — exclamou o Pai —, e não consigo sequer ver um palmo

diante do nariz. Acendam uma vela para mim, por favor. Acendam uma

vela para que eu possa ser salvo.

Senti-me pessimamente ao imaginar o Pai sozinho e com medo no

escuro. Tentei gritar e tranqüiliza-lo mas Morgan falou primeiro.

— Como pode ser salvo? — disse, a sua voz cava, poderosa e cheia de

autoridade. — Como pode um pecador como você ir para a luz? Um

pecador que sempre trabalhou no dia do Senhor?

— Oh, perdoe-me! Perdoe-me, Senhor! — exclamou o Pai. — Eu era

agricultor, e havia tarefas a fazer. Trabalhei que me fartei mas nunca

havia horas suficientes num dia. Tinha uma família para sustentar. Mas

sempre paguei os dízimos, não guardei nada que pudesse pertencer à

Igreja. Sempre fui crente, de verdade que fui. E ensinei os meus filhos a

distinguir o bem do mal. Fiz tudo o que um pai deveria fazer.

— Um dos seus filhos está agora aqui — disse Morgan. — Gostaria de

falar com ele pela última vez?

— Por favor. Por favor. Sim. Deixe-me falar com ele. É

Jack? Houve coisas que gostaria de lhe ter dito em vida. Coisas por dizer

que gostaria de falar agora!

— Não — retorquiu Morgan. —Jack não está aqui.

É o seu filho mais novo, Tom.

— Tom! Tom! Está aí? É realmente você?

— Sou eu, Pai. Sou eu! — exclamei, sentindo um nó começar a formar-

se na garganta. Não suportava a i-déia de o Pai a sofrer assim naquela

escuridão. O que fizera ele para o merecer? — Lamento não ter chegado

a casa a tempo. Lamento não ter ido ao seu funeral. Recebi a mensagem

tarde demais. Se tem algo a dizer a Jack, fale comigo. Transmitir-lhe-ei

a sua mensagem — disse, as lágrimas começando a picar-me por detrás

dos olhos.

— Tenho de falar com Jack por causa da fazenda, filho.

Lamento não ter deixado ela toda. Ele é o meu mais velho e tinha

o direito de primogenitura. Mas dei ouvidos à sua mãe. Diga-lhe

que lamento ter deixado aquele quarto.

As lágrimas desciam-me agora pelo rosto. Fora um choque saber que a

Mãe e o Pai não tinham estado de acordo sobre o quarto. Queria

prometer ao Pai que o re-mediaria dando o quarto a Jack, mas não podia

porque tinha de tomar em consideração os desejos da Mãe. Precisava

Page 465: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

falar primeiro com ela. Mas procurei tranquilizar o Pai. Era o máximo que

podia fazer.

— Não se preocupe, Pai! Tudo vai se resolver. Falarei com Jack sobre o

assunto. Não haverá quaisquer problemas na família. Nenhum mesmo.

Não se preocupe.

Vai ficar tudo bem.

— É um bom rapaz, Tom — disse o Pai, a sua voz cheia de gratidão.

— Um bom rapaz! — interrompeu Morgan. — Ele é tudo menos isso. Foi

este o filho que entregou a um mago! Sete filhos teve e não ofereceu

nenhum à Igreja!

— Oh! Lamento! Lamento muito! — exclamou a voz do Pai, angustiada.

— Mas nenhum dos meus moços tinha vocação. Nenhum quis ser padre.

Esforcei-me por encontrar um oficio para cada um deles, e quando

chegou ao último dos meus filhos, a mãe dele quis que fosse aprendiz de

mago. Opus-me fortemente e discutimos por causa disso mais do que

alguma vez discutimos antes.

Mas acabei por ceder, porque a amava e não podia negar-lhe o que ela

tanto queria. Perdoe-me! Fui fraco e pus o amor terreno acima do meu

dever para com Deus!

— Realmente o fez! — exclamou Morgan em voz alta. — Não existe

perdão para alguém como você, e agora terá de sofrer as dores do

Inferno. Sente as chamas começarem a te lamber a carne? Sente o calor

começar a aumentar?

— Não, Senhor! Por favor! Por favor! A dor é insuportável! Por favor,

poupe-me. Farei tudo! Tudo!

Pus-me em pé, cheio de raiva. Morgan estava a fazer isto ao Pai. A levar

o Pai a acreditar que estava no Inferno. A fazê-lo sentir uma dor terrível.

Não podia permitir que continuasse.

— Não lhe dê ouvidos, Pai! — gritei. — Não existem chamas. Não existe

dor. Vá em paz! Vá em paz! Procure a luz! Procure a luz!

Dei quatro passos rápidos para a esquerda da mesa e, com todas as

minhas forças, levantei o bordão na direção da figura encapuzada e

desferi-lhe um golpe terrível.

Sem articular uma palavra, caiu para a direita e ouvi a cadeira tombar

nas lajes. Rapidamente, tirei do bolso a caixa de mechas e o toco de

vela. Momentos depois, conseguira acender a vela. Levantei-a e olhei à

minha volta. A cadeira tombara de lado e havia uma capa preta sobre

Page 466: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

ela que chegava às lajes. Mas nem sinal de Morgan! Espetei com o meu

bordão mas estava tão vazia quanto parecia. Ele eclipsara-se!

Reparei então em algo em cima da mesa. A madeira estava seca como

um osso e não havia qualquer vestígio da água que parecera escorrer e

empoçar ali, mas estava um envelope preto no lugar onde se encontrara

o castiçal de latão.

Pousando a vela na borda da mesa, estendi o braço e peguei no

envelope. Estava lacrado, mas podiam ler-se as palavras:

Ao Meu Novo Aprendiz, Tom Ward

Rasguei o envelope e desdobrei a folha de papel lá dentro.

Bem, já viu do que sou capaz. E o que acabei de fazer, posso

perfeitamente repetir. Aprisionei o seu pai no Limbo. Assim, posso

alcançá-lo sempre que me aprouver e fazê-lo acreditar em tudo o que eu

quero. Não existe limite para a dor que posso lhe infligir.

Se quer salvá-lo disso, obedeça a minha vontade. Primeiro, preciso de

algo da casa de Gregory. Lá em cima no sótão, fechado dentro da sua

escrivaninha, há uma caixa de madeira e dentro dela um grimoire, que é

uma espécie de livro de fórmulas e rituais poderosos. Está encadernado

em couro verde e tem um pentagrama prateado gravado na capa. É

meu. Traga-o.

Segundo, não conte a ninguém o que viu. Terceiro, tem que aceitar que

agora você é meu aprendiz, obrigado a me servir por um período de

cinco anos a partir deste dia senão o seu pai sofrerá.

Em sinal da sua aceitação, bata três vezes no tampo da mesa.

A porta está aberta e, seja qual for a sua decisão, é livre para ir. A

escolha é sua.

Morgan G.

Não suportei a idéia do espírito do Pai em tormento. Mas também não

queria ser aprendiz de Morgan. Tive relutância em bater na mesa, mas

sempre podia ganhar algum tempo. Morgan iria pensar que eu aceitara

as suas exigências e pouparia o Pai ao sofrimento por ora, enquanto

consultava o Mago. Ele saberia qual a melhor atitude.

Respirei fundo e bati três vezes na mesa. Sustive a respiração e pus-me

à escuta, mas não houve qualquer reconhecimento. O quarto estava

absolutamente silencioso. Experimentei a porta e ela abriu-se. Não dera

por isso, mas o ferrolho fora recolhido. Voltei à mesa, peguei na minha

caixa de mechas, apaguei a vela e guardei ambas nos bolsos. Depois,

agarrando no meu bordão, saí do quarto e abri a porta da frente.

Page 467: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Quase caí de espanto. Era pleno dia! O sol ofuscava, refletindo-se na

neve e passavam pelo menos duas horas da alva! Parecia que estivera

apenas uns quinze minutos no quarto com Morgan, no entanto,

decorrera o mesmo número de horas.

Não encontrava explicação para tal. O Mago dissera-me que Morgan era

um homem perigoso que lidava com o escuro. Mas o Mago não referira

que ele era capaz daquilo que eu vira. Morgan era um esconjurador

poderoso e perigoso com verdadeiros poderes mágicos e estremeci só de

pensar em ter de voltar a enfrentá-lo. Momentos depois arrastava-me

pela neve funda o mais depressa que podia, subindo a colina em direção

a casa do Mago.

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CAPÍTULO 13

CILADA E TRAIÇÃO

A casa não tardou a surgir mesmo lá à frente, a fumaça castanha que se

elevava dos tubos da chaminé a dizer-me que lá dentro me esperavam

acolhedoras lareiras.

Bati na porta de trás. A minha chave abriria a maior parte das

fechaduras, mas não a usei. Como estivera fora algum tempo, pareceu-

me mais respeitoso esperar que me convidassem a entrar. Bati três

vezes antes de a porta finalmente ser aberta por Meg, que me sorriu

antes de se afastar para me receber.

— Sai depressa da neve, Tom! — exclamou. — É

bom te ver de volta.

Uma vez lá dentro, retirei a capa e o casaco de pele de borrego, encostei

o bordão ao canto e sacudi a neve das botas.

— Sente-se — disse Meg, conduzindo-me pelas lajes até à chaminé. —

Está tremendo de frio. Vou trazer uma tigela de sopa quente para te

aquecer os ossos. Terá de servir por ora — mais tarde prepararei uma

bela refeição.

Eram mais tremedeiras do que arrepios, incomodado pelo que

acontecera no quarto de Morgan, mas, aos poucos, consegui acalmar.

Obedeci, vindo aquecer as mãos na chaminé, vendo as minhas botas

começarem a fumegar.

— É bom ver que ainda tem todos os dedos! —

comentou Meg.

Sorri.

— Onde está Mr. Gregory? — indaguei, perguntando-me se fora

chamado a resolver algum assunto de mago. Esperava que tivesse, pois

isso significaria que estava de novo em forma.

— Ainda está de cama. Ele agora precisa repousar o máximo possível.

— Mas ainda não se notam grandes melhoras?

— Vai melhorando aos poucos — respondeu Meg.

— Mas ainda demorará o seu tempo. Estas coisas não podem ser

apressadas. Tente não o incomodar ou sobre-carregar demais. Ele

precisa descansar e dormir o mais que puder.

Page 469: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Trouxe uma tigela fumegante com canja de galinha, de modo que lhe

agradeci e a bebi devagar, sentindo que começava a aquecer por dentro.

— Como está o seu pobre pai? — perguntou-me subitamente, quando se

sentou na cadeira de balanço. —

Já está melhorando?

Fiquei surpreendido por se ter lembrado, e a pergunta fez-me vir de

novo as lágrimas aos olhos.

— Ele morreu, Meg — informei-a. — Mas esteve muito doente.

— É pena, Tom. Lamento muito. Sei o que é perder a família. .

Senti a dor de perder o Pai apertar-me o estômago e pensei no que

Morgan fizera ao espírito dele. O Pai não merecia aquilo. Não podia

deixar que voltasse a acontecer. Tinha de agir. Meg remeteu-se ao

silêncio e olhou para as chamas.

Passado um tempo, fechou os olhos e começou a canta-rolar uma

melodia muito baixinho entre dentes. Quando terminei a sopa, fui

colocar a tigela em cima da mesa.

— Obrigado, Meg. Estava muito boa — disse-lhe.

Não respondeu e pareceu dormitar. Era algo que fazia com frequência,

adormecer na cadeira de balanço perto da chaminé.

Não sabia o que fazer de seguida. Tivera esperança de falar com o meu

mestre a respeito de Morgan, mas ele não estava suficientemente bem

para ser incomodado com o assunto. Não queria perturbá-lo e fazê-lo

piorar. Talvez enquanto ele estivesse a dormir eu pudesse ir procurar o

seu grimoire; ver se estava onde Morgan dissera. Talvez al-go nele me

ajudasse a decidir o que fazer. Uma coisa era certa: com o meu mestre

tão doente e Alice desaparecida, estava por minha conta, e cabia-me

tomar a atitude certa em relação ao meu pai. Ele era o mais importante,

e tinha de fazer algo para acabar com o seu sofrimento às mãos de

Morgan. Começaria por procurar o grimoire.

O Mago estava lá em cima a dormir e podia não ter melhor oportunidade

de o fazer. Uma parte de mim sentia-se mal só de pensar em levá-lo

sem avisar o Mago. Mas as explicações teriam de ficar para mais tarde.

O Pai era tudo o que importava naquele momento. Não suportava a idéia

de ele voltar a ser torturado por Morgan.

Mas quando ia sair da cozinha, Meg abriu de repente os olhos e

debruçou-se para espevitar o fogo.

— Vou num instante ver Mr. Gregory — comuniquei-lhe.

Page 470: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Não, Tom, por enquanto não podemos incomodá-lo — disse-me. —

Fique aí sentado e aqueça-se depois da longa caminhada que fez no frio.

— Bem, primeiro vou buscar o meu livro de notas no gabinete de

trabalho — referi.

Mas dirigi-me à sala de visitas e não ao gabinete de trabalho. Se o Mago

continuava de cama, Meg ainda não tomara o chá de ervas. Precisava

que ela dormisse um pouco a fim de poder ir à procura do grimoire, e o

chá de ervas era a maneira mais fácil de fazê-lo. Retirei então a garrafa

de vidro castanho do armário e enchi dois centímetros da bebida na

xícara. Depois fui à cozinha e comecei a aquecer a água.

— O que é isto? — perguntou Meg com um sorriso, quando estendi a

xícara na sua direção.

— É chá de ervas, Meg. Beba-o. Impedirá o frio de se lhe entranhar nos

ossos.

O único aviso que tive foi quando o sorriso lhe desapareceu do rosto.

Meg sacudiu-me a xícara da mão e ela desfez-se em pedaços nas lajes

da cozinha. Depois levantou-se, agarrou-me o pulso e arrastou-me para

junto de si.

Tentei afastar-me mas ela era forte demais. Senti que podia me partir o

braço sem grande esforço.

— Mentiroso! Mentiroso! — gritou, o rosto dela a escassos centímetros

do meu. — Esperava mais de você, mas não é melhor do que John

Gregory! Não diga que não te dei uma oportunidade. Revelou-se tal e

qual ele.

Também queria me tirar a memória, não queria, rapaz?

Mas agora lembro-me de tudo. Sei o que era e sei o que sou! Com os

nossos rostos quase a tocarem-se, Meg cheirou-me ruidosamente.

— Também sei o que você é — disse, a sua voz agora pouco mais do que

um murmúrio. — Sei o que está pensando. Conheço os seus mais negros

segredos, aqueles que nem à sua própria mãe contaria.

Os seus olhos estavam cravados nos meus. Não eram pontos de fogo

como os de Mãe Malkin quando tínhamos estado frente a frente na

Primavera, mas pareciam estar a aumentar de tamanho. Ela era uma

bruxa lâmia e o seu corpo mais forte do que o meu, e agora a sua mente

começava a controlar-me também.

— Sei o que podia vir a ser um dia, Tom Ward —

murmurou —, mas esse dia ainda vem muito longe. Não passa de um

rapaz, enquanto que eu ando nesta terra há mais anos do que me

Page 471: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

consigo lembrar. Por isso não me venha com nenhum dos truques de

John Gregory, porque os conheço todos. Cada um deles!

Virou-me, de modo que fiquei sem a poder encarar e largou-me o braço,

transferindo rapidamente a mão para o meu pescoço.

— Por favor, Meg! Não fiz por mal — supliquei.

— Queria ajudaá-la. Falei do assunto com Alice. Ela também a queria

ajudar.

— É fácil falar neste momento. Dar-me de beber aquela mistura imunda

era uma forma de me ajudar? Não me parece. Acabaram-se as mentiras,

senão vai ser pior para você!

— Mas não são mentiras, Meg. Lembre-se — Alice vem de uma família

de bruxas. Ela compreendeu-a e sentiu muita pena do que estava a

acontecer. Eu ia falar com Mr. Gregory sobre você e. .

— Pois sim, rapaz! Já ouvi desculpas de sobra! —

proferiu com brusquidão. — Mexa-se para a cave. Vamos ver

se você gosta de estar lá em baixo. É exatamente o que merece. Quero

que saiba aquilo por que passei. Não dormia o tempo todo, sabe.

Acordava constantemente e passava longas horas a pensar, sozinha no

escuro. Fraca demais fraca para me mexer, fraca demais para me pôr

em pé — a tentar desesperadamente lembrar-me de tudo o que você e

John Gregory gostariam que eu esquecesse —

ainda conseguia pensar e sentir, sabendo que iriam ser uns longos

meses tediosos e solitários antes de alguém vir abrir a porta e me deixar

sair. .

A princípio debati-me, esforçando-me ao máximo por resistir, mas em

vão: ela era forte demais. Continuando a prender-me pelo pescoço, fez-

me descer as escadas da cave, os meus pés mal tocando no chão, até

chegarmos ao portão de ferro. Ela tinha a chave e não tardamos a

transpô-lo e descer mais ao subterrâneo.

Não se preocupara com uma vela e, apesar de conseguir dar com o

caminho no escuro muito melhor do que a maioria das pessoas, a cada

esquina ia escurecendo e era mais difícil ver. A idéia da cave lá em baixo

apavorava-me.

Lembrei-me da irmã dela, a bruxa lâmia selvagem, ainda aprisionada no

poço; não queria nem por sombras estar perto dela. Para meu alívio,

quando viramos a terceira esquina, ela obrigou-me a parar junto às três

portas.

Page 472: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Com outra chave, abriu a porta da esquerda, enfiou-me lá dentro e

trancou-a depois. A seguir ouvi-a abrir a cela ao lado da minha e entrar.

Não se demorou muito tempo. Não tardou que a porta batesse ao ser

fechada e começou a subir as escadas. Alguns instantes depois ouviu-se

o som do portão de ferro a fechar-se ruidosamente; mais passos,

tornando-se cada vez mais sumidos; e depois silêncio.

Aguardei alguns minutos para o caso de ela voltar atrás por alguma

razão, depois remexi nos bolsos à procura do coto de vela e da caixa de

mechas. Segundos depois a vela estava acesa e observei a minha cela.

Era pequena, não teria mais de oito passos por quatro, com um monte

de palha ao canto a servir de cama. As paredes eram feitas de blocos de

pedra e a porta fora construída em carvalho forte, com um ralo quadrado

perto do cimo fechado com quatro barras verticais de ferro.

Sentei-me no chão de pedra ao canto a pensar na minha situação. O que

acontecera durante a minha ausência? Tinha a certeza de que o Mago se

encontrava agora na cela ao lado da minha, aquela onde Meg passava os

verões. Que outro motivo levara Meg a entrar ali? Mas como acabara o

Mago sob o poder de Meg? Ainda não se encontrava bem quando eu

saíra de casa. Teria talvez esquecido de dar o chá de ervas a Meg e ela

recuperara a memória? Talvez ela colocasse algo na comida ou na

bebida dele — muito provavelmente a mesma substância que ele usara

todos aqueles anos para a manter dócil.

Mas não era tudo — houvera a influência de Alice.

Estivera a conversar com Meg, a dizer-lhe que provinha de uma família

de bruxas. Por vezes cochichavam as duas.

Do que tinham falado? Se Alice conseguira levar a sua por diante, a dose

do chá de ervas de Meg teria sido reduzida.

Bem, não culpei Alice pelo que sucedera, mas a sua presença em casa

do Mago certamente não ajudara em nada a situação.

Quando eu regressara, Meg limitara-se a fingir estar confusa e a

enganar-me. Dera-me realmente o que chamara «uma oportunidade»?

Se não tivesse tentado impingir o chá de ervas, haveria me tratado de

forma diferente?

E depois fez-se luz. Quando voltara para Anglezarke, viera tão

embrenhado nos meus pensamentos sobre Morgan e o Pai, que fora

completamente cego às evidências —

sinais que via naquele momento com clareza. Meg chamara-me «Tom»,

e não «Billy», pela primeira vez na vida.

Page 473: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

E lembrara-se do meu pai. Por que eu não percebera na altura? Deveria

ter ficado de pé atrás. Deixara que o meu coração mandasse na cabeça,

e agora o Condado inteiro corria perigo. Uma bruxa lâmia novamente

livre para vaguear, e nem um mago nem um aprendiz para a impedirem.

O que estava feito estava feito, mas de certa forma conseguia perceber.

Havia boas e más notícias, mas a maior parte era má. Meg cheirara-me

usando os seus poderes de bruxa.

Sabia muito a meu respeito mas esquecera-se de me revistar, senão

teria encontrado a caixa de mechas e a vela. Teria descoberto também a

chave — a chave que podia abrir a maior parte das portas desde que não

fossem muito complexas. Essa era a boa notícia. Podia sair da minha

cela. Podia abrir também a porta da cela do Mago.

A má notícia era que a chave não seria suficiente para me permitir

transpor o portão. De outro modo o Mago não teria uma especial

guardada em cima da estante na biblioteca. E, naquele momento, a

chave estava na posse de Meg. Mesmo que conseguisse tirar-nos das

celas, continuávamos encurralados na cave. Por conseguinte, o que eu

tinha a fazer naquele momento era pensar com clareza. Precisava falar

com o Mago. O meu mestre saberia qual a melhor atitude a tomar.

Usei então a chave para abrir a porta da minha cela.

Não fez muito barulho, mas a porta da cela parecia presa e, não

obstante os meus esforços, abriu-se com barulho, que ecoou para cima e

para baixo nas escadas. Esperava que Meg estivesse lá em cima junto à

lareira da cozinha e não tivesse ouvido. Pegando na vela, vim em bicos

de pés até ao corredor e aproximei-a das grades da cela do Mago.

Espreitei lá para dentro mas não consegui ver muito. Havia uma cama

ao canto e um monte escuro em cima dela.

Era o Mago?

— Mr. Gregory! Mr. Gregory! — chamei através das grades, imprimindo

urgência à minha voz ao mesmo tempo que tentava manter o seu

volume o mais baixo possível.

Veio um gemido cavo da trouxa e moveu-se lentamente. Parecia sem

dúvida o Mago. Ia precisamente chamar de novo quando ouvi um som

súbito vindo lá de baixo nas escadas. Virei-me e escutei. Por um

momento houve silêncio. Depois ouvi-o de novo. Algo vinha subindo as

escadas na minha direção.

Uma ratazana? Não, parecia grande demais para tal.

Page 474: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Subitamente, parou. Teria me enganado? Imaginara simplesmente o

som? O medo consegue pregar peças na mente. Como costumava dizer

o Mago, é importante reconhecer a diferença entre estar acordado e a

sonhar.

Sem me dar conta, sustivera a respiração. Então, quando expirei, o

movimento pelas escadas acima recomeçou. Não conseguia ver para lá

da esquina, de modo que só podia avaliar pelos sons que emitia. Não me

parecia algo a arrastar-se, por isso não podia ser uma bruxa morta que

de alguma maneira conseguira libertar-se. Não era o som de botas, por

isso também não podia ser uma imagem fantasmagórica ou um

fantasma a subir as escadas, ou sequer um ser humano que estivera

escondido lá em baixo por alguma razão. Era um som que nunca antes

na vida escutara.

Algo se movia, depois parava; voltava a mover-se e a seguir estacava

com igual rapidez. Algo que subia a correr em mais do que duas pernas!

Que outra coisa podia ser? Tinha de ser a bruxa lâmia selvagem! Após

anos naquele poço, teria uma necessidade frenética de sangue humano.

E vinha diretamente para mim!

Em pânico, sem pensar, voltei correndo para a minha cela, fechei a porta

e tranquei-a rapidamente. A seguir apaguei a vela — caso contrário ela

veria a luz e seria atraída para ela. Mas estaria ainda assim seguro

dentro de uma cela trancada? Se a bruxa conseguira escapar do poço,

devia ter sido capaz de dobrar as grades. Percebi então de que Meg

podia simplesmente ter libertado a irmã do poço, e por um momento

senti-me um pouco melhor. Mas não tive sequer tempo de suspirar de

alívio. Sabem, lembrei-me de algo que o Mago dissera a respeito do

portão:

«O ferro conseguiria impedir a maior parte deles de passar daqui. .»

A bruxa lâmia era a coisa mais perigosa na cave.

Portanto, se estivesse decidida a escapar, talvez nem o portão de ferro

entrelaçado fosse suficiente para impedi-la por muito tempo! Quanto às

grades de ferro da minha cela, era bom nem pensar. A minha única

esperança era que a bruxa continuasse relativamente fraca depois de

tanto tempo no poço.

Mantive-me perfeitamente imóvel e à escuta, esforçando-me por respirar

silenciosamente. Ouvia-a aproximar-se, correndo e parando, correndo

até ficar cada vez mais perto. Comprimi-me ao canto e parei mesmo de

respirar.

Page 475: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Algo tocou de leve na porta. O contato seguinte com a madeira foi mais

forte e houve um som de arranhar, como se garras afiadas se

estivessem a cravar, tentando firmar-se. Era como se algo estivesse a

marinhar pela porta apoiando-se nas garras. Correra para a minha cela

sem pensar e agora desejava ter-me trancado na outra cela com o

Mago. Talvez o conseguisse acordar e perguntar-lhe o que fazer.

Estava escuro. Muito escuro. Tão escuro que, dentro da minha cela, não

sabia dizer onde terminava a porta e começavam as paredes de cada

lado. Mas o retângulo, cortado pelas quatro barras verticais, era

ligeiramente mais pálido do que as imediações, pelo que tinha de vir

alguma luz das escadas, projetando uma tênue iluminação da parede do

lado de fora da minha cela.

Uma forma deslocou-se através do retângulo. Era em silhueta mas

conseguia vê-la o suficiente para dizer que se tratava de algo

semelhante a uma mão. Ouvi-a agarrar as grades. Mas não dava a

impressão de carne e músculo a entrarem em contato com elas. Ouviu-

se um ruído áspero, quase como se uma lima a raspar no ferro, seguida

de um silvo explosivo de raiva e dor. A bruxa lâmia tocara no ferro e

devia estar a sentir fortes dores. Só a sua vontade a mantinha ali. A

seguir, algo grande deslocou-se pela frente das grades, como o disco de

uma lua escura a eclipsar a luz pálida do outro lado. Só podia ser a

cabeça da bruxa. Espreitava-me através das grades mas estava escuro

demais para lhe ver os olhos!

Outro ruído áspero e a porta gemeu e chiou. Tremi de medo. Sabia o

que estava acontecendo. Ela tentava dobrar as grades ou arrancá-las da

porta de madeira.

Se tivesse comigo o bordão de sorveira, teria batido na bruxa através

das grades e talvez a afastasse. Mas não tinha nada. A minha corrente

de prata encontrava-se no meu saco, mas não me seria útil ali. Não

dispunha de nada que pudesse usar para me defender.

A porta gemeu e chiou quando a pressão sobre ela aumentou e ouvi-a

começar a ceder. A bruxa voltou a bufar e emitiu um som fungoso,

resmungado. Estava ansiosa por lá entrar, desesperada por beber o meu

sangue.

Mas, para meu alívio, ouviu-se um súbito ressoar de metal vindo lá de

cima das escadas e a lâmia largou as grades e desapareceu de vista.

Ouvi o eco de passos em aproximação e a luz de uma vela tremulou na

parede do outro lado das grades.

Page 476: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Para trás! Para trás! — ouvi Meg gritar do lado de fora da porta,

seguido do som da lâmia selvagem a correr pelas escadas abaixo.

Depois houve um tremular da luz da vela e o ruído de sapatos bicudos

seguindo a criatura até lá abaixo. Fiquei onde estava, acocorado ao

canto. Dali a um tempo os passos voltaram a aproximar-se, ouvi um

balde ser pousado no chão e uma chave a rodar na fechadura da minha

cela.

Mesmo a tempo, antes de Meg abrir a porta, voltei a guardar o toco de

vela e a caixa de mechas nos bolsos.

Ainda bem que não me trancara na cela do Mago senão ela teria sabido

da minha chave.

Meg surgiu enquadrada pela ombreira, segurando a vela. Com a outra

mão, fez-me sinal para me aproximar dela. Não me mexi. Estava

assustado demais.

— Venha aqui, rapaz — disse-me, rindo para si mesma. — Não tenha

medo. Não vou te morder!

Ajoelhei-me, mas as minhas pernas estavam vacilantes demais para me

aguentar de pé.

— Quer vir aqui, rapaz? Ou tenho de te ir buscar?

— perguntou Meg. — Olhe que a primeira é mais fácil e menos dolorosa.

.

Desta vez, o terror fez-me levantar. Até podia ser

«doméstica», mas Meg continuava a ser uma bruxa lâmia cujo alimento

preferido provavelmente era o sangue. O

chá de ervas fizera-a esquecê-lo. Mas naquele momento sabia

exatamente o que era. E sabia o que queria. Havia compulsão na sua

voz; uma energia que me sugou a vontade e fez atravessar a cela até à

porta aberta.

— Sorte a sua eu ter decidido alimentar Mareia antes — referiu,

apontando para o balde.

Olhei para lá. Estava vazio. Não sei o que contivera, mas via-se uma

película de sangue no fundo.

— Por pouco não ficava para depois, mas lembrei-me então de quão

desesperada ela estava por te apanhar, sendo você tão jovem. John

Gregory não tem nem metade do atrativo — disse-me com um sorriso

fraco e cruel, indicando com a cabeça a cela ao lado e confirmando-me

que o Mago estava realmente lá.

Page 477: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Ele gosta muito de você — apelei a Meg, em desespero. — Sempre

gostou. Por isso, peço-lhe que não o trate desta maneira! Na realidade,

ele ama-a. Ele ama-a.

de verdade! — afirmei, repetindo as palavras. — Ele chegou mesmo a

escrevê-lo num dos seus livros de notas.

Não era suposto eu descobri-lo, mas descobri e até o li. É

mesmo verdade.

Lembrava-me palavra por palavra do que ele escrevera. . «Como podia

colocá-la no poço, quando percebi que a amava mais do que a minha

própria alma.»

— O amor! — escarneceu Meg. — O que sabe um homem destes sobre o

amor?

— Foi quando se viram pela primeira vez e ele estava para a meter num

poço porque era o seu dever. Ele não foi capaz, Meg! Não conseguiu

fazê-lo porque a amava demais. Contrariava tudo o que lhe tinham

ensinado e em que acreditava, mas ele salvou-a do poço! Ele só lhe deu

o chá porque não havia outra escolha. O poço ou o chá — ele escolheu o

que lhe pareceu melhor, porque gosta muito de você.

Meg bufou de raiva e olhou para o fundo do balde como se quisesse

lambê-lo até ficar limpo.

— Bem, isso foi há muito tempo e ele tem sem dúvida uma forma

curiosa de o mostrar — disse. — Talvez agora consiga entender o que é

estar trancada aqui embaixo metade do ano. Porque agora não há

pressa. Vou demorar muito tempo a pensar no que fazer exatamente

com ele. Quanto a você, não passa de um rapaz e não te culpo assim

tanto. Não pode saber, porque foi assim que ele te ensinou. E é uma

vida dura. Um ofício difícil.

«Até te deixaria partir — prosseguiu ela. — Mas você não conseguiria

ficar quieto, não é? Está na sua natureza. Na maneira como foi educado.

Iria pedir ajuda.

Haveria de querer salvá-lo. As pessoas daqui não gostam muito de mim.

Talvez eu lhes tenha dado boas razões no passado, mas a maior parte

merecia o que lhes aconteceu.

Viria uma turba atrás de mim. Muitos para eu poder fazer alguma coisa.

Não, se te deixasse sair, seria o meu fim.

Mas vou prometer-te uma coisa. Não te darei à minha irmã. Não o

merece.

Page 478: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Dito aquilo, fez-me sinal para voltar lá para o fundo; depois fechou a

porta e trancou-a de novo.

— Mais tarde trago algo que comer — disse-me através das grades. —

Talvez nessa altura já tenha pensado no que é melhor fazer com você.

Passaram horas e horas antes de ela regressar e nesse intervalo tive

chance de pensar num plano.

Pus-me à escuta com muita atenção e ouvi Meg começar a descer as

escadas. Lá fora devia estar precisamente a começar a escurecer.

Imagino que viesse me trazer uma ceia antecipada. Só esperava que não

fosse a última. Ouvi-a destrancar o portão e o som metálico dele a abrir-

se. Concentrei-me então ao máximo, registrando o tempo que decorria

entre a segunda pancada do portão a ser fechado e o retomar do tic,

tic dos seus sapatos bicudos.

Tinha dois planos. O segundo estava cheio de riscos, por isso só

esperava que o primeiro funcionasse.

Vislumbrei luz de vela através das grades e Meg pousou alguma coisa do

lado de fora da minha cela, correu a fechadura da porta e abriu-a. Era

um tabuleiro com duas tigelas de sopa fumegante e duas colheres.

— Estive pensando, Meg — disse-lhe, experimentando o meu primeiro

plano, que era persuadi-la com palavras. — Algo que poderia tornar tudo

muito melhor pa-ra ambos. Por que não me entrega o governo da casa?

Eu podia acender as lareiras e ir buscar a água. Podia ajudar muito. E o

que fará quando Shanks vier entregar as mercearias? Se for a Meg a

abrir a porta, ele saberá que está livre. Mas se for eu a abrir, ele nunca

suspeitará. E se vier alguém para resolver assuntos de mago, eu podia

simplesmente dizer que ele ainda está doente. Se me deixasse ir abrir a

porta, levaria muito tempo até que alguém soubesse que está em

liberdade. Teria muito tempo para decidir o que fazer com Mr. Gregory.

Meg sorriu.

— Coma a sua sopa, rapaz.

Baixei-me, tirei a tigela do tabuleiro e peguei numa das colheres.

Quando me endireitei, Meg mandou-me recuar e começou a fechar a

porta da cela.

— Uma bela tentativa, rapaz — disse —, mas quanto tempo passaria

antes de tentar libertar o seu mestre? Não muito, aposto!

Meg trancou a porta. O meu primeiro plano falhara. Não tinha outra

alternativa senão tentar o segundo.

Page 479: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Pousei a tigela da sopa no chão e retirei a minha chave do bolso. Ouvia

já Meg a rodar a sua chave na fechadura da cela do Mago. Esperei,

arriscando, não perdendo ainda a esperança.

Eu tinha razão! Ela entrara na cela do Mago. Calculei que estivesse fraco

demais ou grogue para conseguir se levantar e aproximar da porta. Ela

podia ter mesmo de alimentá-lo. Por isso, sem perder tempo. Abri a

fechadura da minha porta, empurrando-a cuidadosamente e saí cá para

fora. Felizmente não prendeu nem fez barulho desta vez.

Ponderara tudo cuidadosamente, pesando os riscos na minha mente.

Uma opção teria sido ir direito à cela do Mago e tentar enfrentar Meg.

Em circunstâncias normais, juntos, o meu mestre e eu teríamos estado à

altura dela, mas desconfiava que o Mago se encontrava fraco demais

para ajudar. E não tínhamos nada com que lutar contra ela: nem bordão

de sorveira nem corrente.

Resolvi então tentar ir buscar a corrente de prata ao meu saco no

gabinete de trabalho e tentar aprisionar Meg.

Para o conseguir, contava com duas coisas. Uma era que a lâmia

selvagem não subisse as escadas correndo e me apanhasse antes de eu

ter tempo de transpor o portão de ferro. A segunda era Meg não ter

chegado a trancar o portão. Daí a minha enorme concentração. O portão

abrira-se com ruído e os saltos tinham começado quase de imediato a

fazer barulho ao descerem. Não tivera tempo de trancá-lo. Ou pelo

menos assim me parecia!

Avancei primeiro na ponta dos pés, um passo de cada vez, e olhava

constantemente por cima do ombro: para a cela, a fim de ver se Meg

vinha a sair; depois para a esquina das escadas, a fim de ver se a lâmia

selvagem Márcia me seguia. Tinha esperança de que estivesse

demasiado empanturrada depois da refeição da manhã. Ou que não

subisse da cave enquanto Meg ali estivesse. Talvez receasse a irmã.

Descera sem dúvida rapidamente as escadas an-te a ordem de Meg.

Alcancei finalmente o portão e agarrei o ferro frio.

Estava trancado? Para meu alívio, cedeu e abri-o, tentando que o

movimento fosse o mais suave possível. Mas o Mago soubera o que fazia

quando o mandara colocar nas escadas. Houve um ruído e a casa inteira

lá em cima pareceu repicar como um sino.

Imediatamente Meg abandonou a cela do Mago e subiu as escadas

correndo na minha direção, os braços erguidos, os dedos abertos e

arqueados como garras. Por um momento fiquei estático. Nem queria

Page 480: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

acreditar na rapidez com que ela se movia. Mais dois segundos e teria

sido tarde demais, mas corri também. Corri e corri sem olhar para trás.

Até ao topo das escadas, depois atravessando a cozinha, consciente de

que Meg vinha mesmo atrás de mim, ouvindo os seus passos em

perseguição e esperando sentir a qualquer instante as unhas dela

cravarem-se na minha pele. Não havia tempo para ir buscar o meu saco

ao gabinete de trabalho. Teria sido impossível abri-lo e retirar a corrente

de prata a tempo. Junto à porta de trás, arrebanhei a minha capa, o

casaco e o bordão, destranquei a porta e saí disparado para o frio gélido.

Não me enganara. Era crepúsculo, mas havia ainda muita luz para ver.

Olhava constantemente para trás mas nem sinal de perseguição. Desci a

ravina o mais depressa que consegui, mas não foi tarefa fácil. A neve

começava a ficar dura sob os pés e havia-a com abundância.

Quando cheguei ao fundo da vertente, estaquei e olhei de novo para

trás. Meg não me seguira. Fazia um frio de rachar e o vento soprava de

norte com rajadas, de modo que vesti o meu casaco de pele de carneiro,

coloquei a capa por cima. Depois parei para pensar, a respiração saindo-

me em vapor no ar frio.

Senti-me um covarde por deixar assim o Mago à mercê de Meg, e tinha

de compensar o que fizera. Impunha-se salvar o Mago e arrancá-lo das

garras dela. Mas pa-ra isso precisava de ajuda. E essa estava perto: o

irmão do Mago, Andrew, vivia e trabalhava em Adlington, e já me

ajudara antes em Priestown. Era o serralheiro que fizera uma chave para

o Mago abrir o Portão de Prata que aprisionara o Destruidor. Seria bem

mais fácil fazer uma chave para o portão de ferro na cave do Mago. E

era exatamente disso que eu necessitava.

Ia ter de voltar a entrar sorrateiramente na casa de Inverno, transpor o

portão e tirar o Mago da cela, o que era mais fácil dizer do que fazer.

Havia uma lâmia selvagem à solta — já para não falar de Meg.

Tentando não pensar muito nas dificuldades pela frente, arrastei-me pela

neve em direção a Adlington. Era sempre a descer. Mas em breve teria

de regressar.

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CAPÍTULO 14

PRESOS PELA NEVE

As ruas empedradas da aldeia de Adlington estavam cobertas por quinze

centímetros ou mais de neve. Na luz que desaparecia, as crianças

tinham saído em força, encantadas, rindo, guinchando e berrando,

deslizando ou atirando bolas de neve umas às outras. Os adultos

estavam menos felizes. Passaram por mim duas mulheres todas

embrulhadas em xales, pisando nervosamente o passeio coberto de

neve, cabisbaixas, vendo onde punham os pés.

Levavam cestos vazios e desciam em direção a Babylon Lane para

algumas compras de última hora. Segui na mesma direção até chegar à

loja de Andrew.

Quando levantei a tranca e empurrei a porta, tiniu uma campainha. A

loja estava vazia mas ouvi alguém aproximar-se vindo da parte de trás.

Soou o tic, tic, tic de sapatos bicudos e, para meu espanto, Alice entrou

e aproximou-se do balcão, um enorme sorriso no rosto.

— Que bom te ver, Tom! Estava curiosa quanto ao tempo que demoraria

a me encontrar. .

— O que faz aqui? — inquiri, espantado.

— Trabalho para Andrew, claro! Deu-me trabalho e casa — retorquiu

com um sorriso. — Olho pela loja para ele poder estar mais tempo na

oficina. Faço a maior parte da comida e das limpezas também. Andrew é

um bom homem.

Permaneci um momento em silêncio e Alice deve ter percebido a

expressão no meu rosto porque o sorriso desapareceu rapidamente e

pareceu preocupada. — O seu pai. . — disse.

— Quando cheguei lá, o Pai já tinha falecido. Foi tarde demais, Alice.

Não consegui dizer mais nada porque me embargou a voz e fiquei com

um nó na garganta. Mas logo Alice se aproximou e colocou a mão no

meu ombro.

— Oh, Tom! Lamento muito — disse-me. — Vamos lá para trás e se

aqueça na lareira.

A sala de estar era confortável, com um sofá, duas poltronas cômodas e

um generoso fogo de carvão aceso na grelha.

Page 482: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Gosto de uma boa lareira — afirmou Alice, toda feliz. — Andrew é

mais cuidadoso com o carvão do que eu, mas foi fazer um serviço e só

voltará muito depois de escurecer. Patrão fora. .

Apoiei o meu bordão no canto antes de me afundar no sofá, que ficava

defronte da lareira. Em vez de se sentar ao meu lado, Alice ajoelhou

junto à lareira, os joelhos no carpete, pelo que o seu perfil esquerdo

estava virado para mim.

— Por que deixou a casa dos Hursts? — indaguei.

— Tive de ir embora — referiu Alice, carregando o cenho. — Morgan não

parava de insistir para que o ajudasse de uma certa maneira, mas não

queria explicar bem como. Guarda ressentimentos. Tinha um plano

qualquer para se vingar do Velho Gregory.

Pensei que provavelmente saberia do que ela estava a falar mas decidi

não lhe dizer nada. Prometera a Morgan que não contaria a ninguém os

seus planos. Ele era um necromante que usava os espíritos para

descobrir as coisas. Não podia correr o risco. Não podia contar a Alice

não fosse ele descobrir e voltar a fazer o Pai sofrer.

— Ele não me deixava em paz — continuou Alice.

— Foi por isso que vim embora. Não suportava vê-lo nem mais um

minuto. Então lembrei-me de Andrew. Mas chega de falar de mim, Tom.

Lamento saber do seu pai.

Quer falar do assunto?

— Foi difícil, Alice. Nem sequer pude ir ao funeral do Pai. E a Mãe

desapareceu e ninguém sabe onde ela está. É capaz de ter voltado para

a sua própria terra e nunca mais vou tornar a vê-lar. Sinto-me tão

sozinho. .

— Olha que tenho estado sozinha a maior parte da minha vida, Tom. Por

isso conheço a sensação. No entanto, temos um ao outro, não temos? —

perguntou, debruçando-se para me pegar na mão. — Estaremos sempre

juntos. Nem sequer o Velho Gregory o conseguirá impedir!

— O Mago não está em posição de fazer nada de momento — afirmei. —

Quando regressei, Meg é que levava vantagem. Ele é que está trancado

agora. Preciso que Andrew me faça uma chave para poder tirar o Mago

dali. Preciso da sua ajuda. Você e Andrew são as únicas pessoas a quem

posso recorrer.

— Parece-me que ele teve finalmente o que merecia — comentou Alice,

retirando a sua mão da minha, um leve sorriso a fazer-lhe subir os

cantos da boca. — Provou uma boa dose do seu próprio veneno!

Page 483: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Não posso simplesmente deixá-lo ali — apelei a Alice. — E então a

outra lâmia? A selvagem? A irmã de Meg? Ela saiu do poço e vagueia

pelas escadas do outro lado do portão. E se ela consegue sair da casa?

Poderia vir até aqui, à aldeia. Ninguém estaria seguro e vivem aqui

muitas crianças.

— E então Meg? — perguntou Alice. — Não é tão simples assim, não é?

Não merece ir para um poço. Também não merece passar o resto da

vida a beber chá de ervas! Dê lá por onde der, isso tem de acabar.

— Isso quer dizer que não vai ajudar?

— Eu não disse isso, Tom. Só que tem de ser muito bem pensado, é

tudo.

Pouco depois de escurecer, Andrew regressou. Eu estava à espera dele

na loja quando entrou.

— O que foi desta vez, Tom? — perguntou, sacudindo a neve das botas e

esfregando as mãos uma na outra para que o sangue voltasse a circular

devidamente. — O

que quer aquele meu irmão agora?

Andrew fazia-me sempre lembrar um espantalho bem vestido, os

membros desengonçados e estranhos, mas era simpático e bonacheirão

e realmente muito bom no seu ofício.

— Ele está de novo em apuros — contei a Andrew. — Preciso que me

faça uma chave para o podermos tirar de lá. E é muito urgente.

— Uma chave? Uma chave para o quê?

— O portão nas escadas da cave em casa dele. Meg aprisionou-o lá em

baixo.

Andrew abanou a cabeça e deu um estalido com a língua.

— Não posso dizer que me surpreenda. Mais dia menos dia tinha de

acontecer. Só me espanta que tenha demorado tanto tempo! Sempre

achei que Meg acabaria por levar a melhor sobre ele. Ele preocupa-se

demais com ela, sempre foi assim. Deve ter baixado a guarda.

— Mas vai ajudar?

— Claro que vou. Ele é meu irmão, não é? Mas andei no frio a maior

parte do dia e não consigo fazer nada enquanto não aquecer os ossos e

aconchegar o estômago com alguma comida quente. Vai contar-me tudo

depois de comermos.

Não provara muito os cozidos de Alice, à exceção dos coelhos

preparados nas brasas de uma fogueira ao ar livre, mas a avaliar pelo

Page 484: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

cheiro apetitoso a guisado que vinha da cozinha, preparava-me para um

verdadeiro petisco. Não fiquei decepcionado.

— Isto está mesmo muito bom, Alice — disse, atacando logo.

Alice sorriu.

— Sim, melhor do que a porcaria que me deu para comer em

Anglezarke.

Rimos, depois comemos em silêncio até não restar uma migalha de

comida. Foi Andrew quem falou primeiro.

— Não tenho uma chave daquele portão — disse-me. — A fechadura e a

chave foram feitas por um serralheiro de Blackrod há uns bons quarenta

anos ou mais.

Entretanto já morreu mas nenhum se lhe compara na fama, por isso

estamos perante um mecanismo muito complexo. Teria de ir lá na casa

ver a fechadura. A maneira mais fácil seria tentar arrombá-la para você

poder transpor o portão.

— Podemos lá ir esta noite? — inquiri.

— Quanto mais depressa, melhor — disse-me. —

Mas gostaria de saber exatamente o que vamos enfrentar.

Onde é mais provável Meg estar?

— Ela costuma dormir numa cadeira de balanço junto à lareira na

cozinha. Mas mesmo que conseguíssemos passar por Meg em segurança

e transpor o portão, há outro problema. .

Falei-lhe então da bruxa lâmia selvagem à solta na cave. Ele abanava

constantemente a cabeça como se não pudesse acreditar ao ponto a que

as coisas haviam chegado. — Como pensa tratar dela? Vai usar aquela

sua corrente de prata?

— Não a tenho comigo — informei-o. — Está no meu saco. E

provavelmente o saco continuará no seu lugar habitual no gabinete de

trabalho do Mago. Mas tenho o meu bordão. É feito de madeira de

sorveira e se tiver sorte manterá uma lâmia à distância.

Andrew abanou a cabeça e não pareceu muito satisfeito.

— Não se lhe pode chamar um plano, Tom. É perigoso demais. Não

consigo arrombar uma fechadura enquanto você repele duas bruxas,

mas existe outra maneira

— disse-me. — Podíamos pedir a uma dúzia de homens da aldeia ou

mais para nos acompanharem e tratarem de Meg de uma vez por todas.

— Não — insurgiu-se Alice. — Assim não dá. É

Page 485: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

cruel demais. Sabia que estava se lembrando da altura em que a turba

de Chipenden atacara a casa onde ela vivia com a tia, Lizzie dos Ossos.

Alice e a tia tinham-nos pressentido e fugido mesmo a tempo, mas

ardera tudo e tinham perdido todos os seus pertences.

— Mr. Gregory não havia de querer isso, tenho certeza — afirmei.

— Lá isso é verdade — concordou Andrew. — É a maneira mais segura,

mas provavelmente John nunca me perdoaria. Pronto, parece que

voltamos ao primeiro plano.

— Está se esquecendo de uma coisa — referiu Alice. — Uma bruxa

daquelas não consegue cheirá-lo à distância, Tom. Não funciona com o

sétimo filho de um sé-

timo filho, não é? Muito provavelmente eu também escaparia — isto é,

se decidir ir com você. Mas com Andrew é diferente. Mal ele se aproxime

da casa ela cheirá-lo-á e estará à espera.

— Se ela estiver dormindo, talvez consigamos passar — alvitrei, mas não

me sentia muito confiante.

— Mesmo que adormecida, continua a ser um risco muito grande —

frisou Alice. — Só devíamos ir nós dois, Tom. Podíamos encontrar a

chave e não seria sequer preciso arrombar a fechadura. Onde é que o

Mago a costuma guardar?

— Normalmente em cima da estante, mas Meg pode perfeitamente tê-la

consigo.

— Bem, se não estiver lá, vamos buscar o seu saco no gabinete de

trabalho e a aprisionamos com uma corrente de prata para podermos lhe

tirar a chave. De qualquer forma, não vamos precisar de você, Andrew.

Eu e Tom damos conta do recado.

Andrew sorriu.

— Seria muito bom — disse. — Gosto de manter distância daquela casa

e da sua cave. Mas não posso permitir que vocês vão sozinhos sem

algum apoio. O melhor é eu dar-lhes algum avanço e seguir mais tarde.

Se não aparecerem à porta dentro de meia hora, então volto a Adlington

e trago uma dúzia de matulões da aldeia. John terá depois de enfrentar

as consequências disso.

— Está bem — acedi. — Mas quanto mais penso no assunto, mais me

convenço que entrar pela porta de trás é arriscado demais — comentei

com Alice. — Conforme disse, à noite Meg dorme na cozinha, numa

cadeira junto à chaminé. Vai ouvir-nos e teremos de passar por ela para

chegar ao gabinete de trabalho. A porta da frente seria ligeiramente

Page 486: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

melhor mas continua a ser um grande risco acordá-la. Podíamos entrar

pela janela de um dos quartos da parte de trás. O melhor fica no piso

logo abaixo do sótão, onde a escarpa está muito perto do parapeito.

Os fechos das janelas dos quartos estão quase todos enferrujados ou

partidos. Acho que conseguiríamos chegar lá, forçar a janela e entrar.

— Isso é uma loucura — protestou Andrew. — Já estive naquele quarto e

vi o intervalo entre a escarpa e a saliência. É largo demais. Além disso,

se está preocupado em enfiar uma chave na fechadura da porta de trás,

imagina só o barulho que faria a arrombar uma janela!

Alice sorriu, como se eu tivesse dito alguma tolice, mas logo lhe fiz

desaparecer o sorriso do rosto.

— Meg não nos ouviria se alguém batesse com força n porta de trás no

preciso instante em que eu forçasse a janela. . — sugeri.

Vi a boca de Andrew abrir-se ao perceber lentamente da minha

sugestão.

— Não — disse —, você não pode estar a querer. .

— Por que não, Andrew? — perguntei-lhe. — Afinal, é o irmão de Mr.

Gregory. Tem motivos suficientes para ir lá a casa de visita.

— Sim, e podia acabar na cave, prisioneiro com John!

— Não me parece. O meu palpite é que Meg nem sequer abrirá a porta.

Ela não quer que ninguém da aldeia saiba que está livre senão poderia

atrair uma turba. O senhor podia bater à porta quatro ou cinco vezes

antes de se ir embora, dando-me todo o tempo de que preciso para

entrar pela janela.

— Acho que é capaz de funcionar — corroborou Alice. Andrew afastou de

si o prato e não falou por muito tempo.

— Há uma coisa que continua a preocupar-me —

afirmou por fim. — O intervalo entre a escarpa e o parapeito da janela.

Não te vejo a vencê-lo. Estará também escorregadio.

— Vale a pena tentar — disse-lhe —, mas se eu não conseguir, podíamos

voltar mais tarde e arriscar entrar pela porta de trás.

— Talvez fosse mais fácil usando uma tábua — alvitrou Andrew. —

Tenho uma lá atrás que poderia servir.

Alice só teria de firmá-la com o pé no parapeito enquanto você se

arrasta. Não seria fácil, mas tenho também um pequeno pé-de-cabra

muito apropriado para o trabalho —

acrescentou.

Page 487: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Sempre vale a pena tentar — disse-lhes, procurando aparentar maior

coragem do que sentia.

Ficou decidido, e Alice pareceu determinada em ajudar. Andrew foi

buscar a tábua ao pátio. Quando abrimos a porta da frente para sair,

soprava lá fora uma tempestade de neve. Andrew abanou a cabeça.

— Seria uma loucura irem agora — referiu. — Aquela tempestade de

neve é digna do próprio Golgoth. A neve se acumulará e será perigoso lá

em cima na charneca.

Podiam perder-se e morrer gelados. Não, o melhor é esperarem até

amanhã de manhã. Não se preocupe — disse, batendo-me no ombro. —

Aquele meu irmão é um sobrevivente, como muito bem sabe. Senão não

teria durado tanto. Havia apenas dois quartos por cima da loja; um pa-

ra Andrew e um para Alice, de modo que dormi no sofá na sala de estar,

embrulhado num cobertor. O fogo apagara-se na grelha e primeiro a sala

arrefeceu, depois ficou gélida. Perdi a conta ao número de vezes que

acordei durante a noite. Na última ocasião, a luz da alvorada brilhava

por detrás das cortinas, de modo que decidi levantar-me.

Bocejei, espreguicei-me e andei de um lado para o outro a fim de tirar a

rigidez das articulações. Foi então que ouvi um barulho vindo da frente.

Parecia que alguém batera três vezes na vitrine.

Quando entrei na loja, estava cheia de luz refletida da neve. Tinha-se

sem dúvida acumulado durante a noite e vinha até à base da janela. E

ali, encostado ao vidro, estava um envelope preto. Fora posicionado de

forma a eu poder ver o que estava escrito nele. Vinha dirigido a mim! Só

podia ser de Morgan.

Uma parte de mim queria ir embora dali. Mas percebi depois de que as

ruas começariam a ficar movimentadas e qualquer um de passagem o

veria. Podiam pegar nele e lê-lo, e não estava nada interessado em que

um desconhecido soubesse dos meus assuntos.

Havia tanta neve amontoada junto à porta da frente que não a consegui

abrir e tive de sair pela porta de trás, abrir o portão do pátio e dar a

volta. Só quando me preparava para me enfiar na neve é que me dei

conta de algo muito estranho. Não havia pegadas. A minha frente estava

um monte enorme de neve sem qualquer marca na sua superfície. Como

fora lá parar a carta?

Apanhei-a e, ao fazê-lo, abri um sulco fundo na neve. Tornei a dar a

volta por trás, entrei na cozinha, abri a carta e li-a.

Page 488: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Estarei no átrio da igreja de St. George, bem a oeste da aldeia. Se quer

o melhor tanto para o seu pai como para o seu velho mestre, não me

faça esperar. Não me obrigue a ir procurá-lo, Não irá gostar.

Morgan G.

Não reparara na assinatura da sua última carta, mas naquele momento

chamou-me a atenção. Teria mudado de nome? A inicial do seu apelido

deveria ter sido H de Hurst. Intrigado, dobrei a carta e guardei-a no

bolso. Pensei ir acordar Alice e mostrar-lhe a carta. Talvez devesse levá-

la comigo. Mas a última pessoa que ela quereria ver agora era Morgan.

Referira já que abandonara Moor View Farm porque não o suportava

nem mais um minuto. E, na realidade, sabia que não podia contar a Alice

ainda que quisesse: temia Morgan e o que ele pudesse fazer ao Pai.

Para ser sincero, estava também com medo do que ele me pudesse

fazer. Com tamanho poder, era realmente perigoso: não se lhe podia

desobedecer. Então, coloquei a minha capa, peguei no meu bordão e saí,

encaminhando-me logo para o átrio da igreja.

Era uma velha igreja, quase escondida pelos teixos antigos aglomerados

à sua volta. Algumas das pedras assinalavam as sepulturas dos

habitantes locais que tinham morrido séculos antes. Vi Morgan ao longe,

sua silhueta no céu cinzento, apoiado no seu bordão, o capuz puxado

sobre a cabeça por causa do frio. Estava na parte mais nova do átrio,

onde eram sepultados os que tinham morrido recentemente.

A princípio, não deu pela minha presença. A sua cabeça estava inclinada

na direção de uma sepultura, os olhos fechados como se rezasse. Olhei

também para baixo, de espanto. O átrio tinha alguns centímetros ou

metros de neve, resultado do vento da noite anterior, mas esta sepultura

estava completamente limpa dela, apenas um retângulo de solo úmido.

Quase parecia ter sido aberta recentemente. Olhei à minha volta mas

não vi sinais de uma pá ou de qualquer outra ferramenta que pudesse

ter sido usada para remover a neve.

— Leia a inscrição na pedra! — ordenou Morgan, olhando-me pela

primeira vez.

Fiz o que me mandavam. Tinham sido sepultados quatro corpos na

mesma tumba, empilhados uns por cima dos outros segundo o costume

do Condado, a fim de poupar espaço no átrio da igreja e garantir que os

familiares ficavam juntos na morte. Três eram crianças mas o último

fora a mãe delas. As crianças tinham morrido há cinquenta anos ou

mais, com dois, um e três anos de idade, respectivamente. A mãe

Page 489: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

falecera recentemente e o seu nome era Emily Burns, a mulher com

quem em tempos o Mago se envolvera. A mulher que ele roubara a um

dos próprios irmãos, o Padre Gregory.

— Ela teve uma vida dura — afirmou Morgan. —

Viveu a maior parte dela em Blackrod, mas quando soube que estava

morrendo, veio aqui passar os últimos meses com a irmã. Perder assim

três filhos destroçou-lhe o co-ração, e mesmo depois de todos os anos

que passaram nunca se recuperou plenamente. No entanto, os outros

quatro sobreviveram. Dois trabalham em Horwich e constituíram família.

O mais velho abandonou o Condado há dez anos e nunca mais soube

nada dele desde então. Eu fui o sétimo e último. .

Demorei alguns momentos até que tudo se começasse a encaixar.

Recordei o que o Mago lhe dissera no quarto em casa dos Hursts:

«Eu gostava de você e gostava da sua mãe. Amei-a em tempos, como

muito bem sabe.. »

Lembrei-me também de como assinara a carta para mim com a inicial

«G».

— Sim — disse-me. — Pouco depois de eu nascer, o meu pai abandonou

o lar pela última vez. Nunca casou com a minha mãe. Nunca nos deu o

nome. Mas eu assumi-o mesmo assim.

Olhei para ele, espantado.

— Sim — afirmou com um sorriso sinistro. —

Emily Burns era a minha verdadeira mãe. Sou filho de John Gregory.

Morgan olhou para longe quando falou.

— Ele nos abandonou. Deixou os filhos. Não é coisa que um pai deva

fazer, não é?

Quis defender o Mago mas não sabia o que dizer.

Então mantive-me calado.

— No entanto, ele proveu financeiramente o nosso sustento — disse

Morgan. — Devo-lhe isso. Durante uns tempos aguentamos, mas depois

a minha mãe teve um esgotamento e não suportou. Cada um de nós foi

acolhido por uma família. Coube-me tirar a palha mais pequena e acabei

nos Hursts. Mas quando fiz dezessete anos, o meu pai veio me buscar e

aceitou-me como seu aprendiz.

«Durante uns tempos, fui bastante feliz. Há muito que queria um pai e

agora tinha um, por isso esforçava-me por lhe agradar. De início, dei

tudo por tudo, mas acho que não conseguia esquecer o que ele fizera à

minha mãe, e aos poucos comecei a não me deixar enganar. Ao fim de

Page 490: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

três anos ele começou a repetir-se. Já sabia tudo o que ele fazia e até

mais. Sabia que podia ser melhor e mais forte do que ele. Sou o sétimo

filho de um sétimo filho de um sétimo filho. Um três vezes sete.

Notei o tom de arrogância na sua voz e isso aborreceu-me.

— Foi por isso que não escreveu o seu nome na parede do quarto em

Chipenden como todos os outros aprendizes? — proferi de repente. — É

por se achar melhor do que o resto de nós? Melhor do que o Mago?

Morgan sorriu afetadamente.

— Não o vou negar. Foi por isso que vim embora para seguir o meu

caminho. Sou principalmente um auto-didata mas continuo a aprender. E

sou capaz de fazer coisas que nem passam pela cabeça daquele velho

tolo. Coisas que ele tem medo de experimentar. Pense só! Conhecimento

e poder como os meus — e a garantia de que o seu pai descansa em

paz. É o que estou a oferecer em troca de uma pequena ajuda. .

Estava abismado com tudo o que Morgan me dizia.

E, a ser verdade, dava uma imagem muito má do Mago.

Sabia já que ele trocara Emily Burns por Meg. Mas acabara de descobrir

que ele também era pai, que tivera sete filhos dela mas que os

abandonara a todos. Sentia-me magoado por dentro e decepcionado.

Não parava de pensar no meu próprio pai, que ficara com a família e

toda a sua vida trabalhara arduamente. E podia agora sofrer por causa

do capricho de Morgan. Estava transtornado e furioso. O cemitério

pareceu saltar para o céu e quase caí.

— Então, meu jovem aprendiz, trouxe-o?

A minha expressão deve ter parecido atrapalhada.

— O grimoire, claro. Pedi que me trouxesse. Tinha esperança de que me

obedecesse senão o seu pobre pai iria sofrer bastante.

— Não consegui ir buscá-lo. Mr. Gregory observa tudo — respondi,

baixando a cabeça.

Claro que não ia contar a Morgan que o meu mestre estava à mercê de

Meg. Se ele sonhasse que o Mago estava fora do caminho podia ir

pessoalmente buscar o grimoire. Sim, o meu mestre podia ter alguns

terríveis segredos obscuros, mas eu continuava a ser seu aprendiz e

respeitava-o. Precisava de mais tempo. Tempo para resgatar o meu

mestre e contar-lhe tudo sobre Morgan. Juntos, havíamos derrotado um

arremessador de pedras; certamente juntos conseguiríamos também

impedir Morgan.

Page 491: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Preciso de mais tempo — disse-lhe. — Sou capaz de fazê-lo mas terei

de esperar por uma oportunidade.

— Bem, não leve muito tempo. Traga-me o livro na próxima terça-feira à

noite, logo a seguir ao pôr do Sol.

Lembra-se da capela no cemitério?

Anuí.

— Bem, é lá que estarei à espera.

— Não creio que o consiga fazer assim tão depressa.

— Arranje uma maneira! — falou com rispidez. —

E faça sem que Gregory se dê pela sua falta.

— E o que irá fazer com ele? — inquiri.

— Bem, Tom, quando mo trouxer irá descobrir, não é? Não me desiluda!

Se começar a vacilar, pense no seu pobre pai e no que ele pode vir a

sofrer. .

Sabia até onde podia ir a crueldade de Morgan. Vira como ele fizera o

pobre Mr. Hurst chorar; ouvira o relato de Alice em como ele arrastara o

velho para o seu quarto e o trancara lá dentro. Se Morgan pudesse fazer

mal ao meu pai, não hesitaria, disso não tinha a menor dúvida.

E depois, enquanto eu estava ali a tremer, ouvi novamente dentro da

minha cabeça a voz angustiada do meu pai enquanto, a toda a minha

volta, o ar estremecia e se agitava.

«Por favor, filho, suplico-lhe, faça o que ele pede senão serei torturado

para toda a eternidade. Por favor, filho, traga-o logo.»

Enquanto a voz se afastava, Morgan sorriu sinistramente.

— Bem, ouviu o que disse o seu pai. Por isso é melhor ser um filho

obediente..

E continuando a sorrir sinistramente, deu meia volta e abandonou o

cemitério.

Sabia que não estava nada certo roubar o grimoire para Morgan, mas ao

vê-lo afastar-se, percebi que não tinha outra escolha. De certa forma,

teria de o conseguir enquanto resgatávamos o Mago.

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CAPÍTULO 15

A DESCIDA À CAVE

Quando voltei ao estabelecimento de Andrew, Alice estava na cozinha

preparando o desjejum. Era presunto com ovos e cheirava

deliciosamente.

— Saiu cedo esta manhã, Tom — observou ela.

— Estava dolorido depois de dormir no sofá —

menti. — Precisava esticar um pouco as pernas.

— Bem, sentirá muito melhor depois do desjejum.

— Não posso, Alice. É melhor jejuar quando vamos enfrentar o escuro.

— Não acredito que algumas bocadas vão te fazer grande mal! —

protestou.

Não me dei ao trabalho de contestar. Havia coisas que ela me contara

sobre bruxaria que eu aceitava com reservas; ao passo que havia coisas

em que o Mago acreditava piamente que a deixavam com um sorriso de

escárnio. Assim, guardei silêncio e vi-a e a Andrew comerem enquanto

eu salivava.

Depois do desjejum partimos logo para casa do Mago. A manhã ia pela

metade mas a luz diminuía rapidamente, o céu carregado de nuvens

escuras. Parecia que vinha aí mais neve.

Deixamos Andrew na base da ravina. Esperaria dez minutos para nos dar

tempo de chegar à charneca por cima da casa. Mais tarde, depois de

termos batido à porta, afastar-se-ia e ficaria a vigiar de longe,

aguardando que nós aparecêssemos e assinalássemos o nosso sucesso.

— Boa sorte, mas não me façam esperar muito tempo — pediu Andrew

—, senão morro congelado!

Acenamos em despedida e, levando a tábua e o meu bordão, e com o

pequeno pé-de-cabra enfiado no bolso de dentro do meu casaco,

comecei a subir a vertente da charneca. Enquanto nos arrastávamos por

ela acima, eu na frente e Alice logo atrás de mim, a neve era esmagada

pelos nossos pés e principiava a ficar mais gelada. A descida até à casa

deixava-me preocupado. Seria escorregadia e perigosa.

Em breve começamos a seguir por um caminho para a ravina. Este

caminho tornou-se então um carreiro, com a escarpa à nossa esquerda e

uma queda a pique à nossa direita.

Page 493: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Olhe bem onde põe os pés, Alice! — avisei. —

É um longo caminho até lá embaixo. Um deslize e precisaríamos escavar

com uma pá.

Alguns momentos depois avistamos a casa; então estacamos. Conforme

o combinado, aguardamos o som de Andrew a aproximar-se pela frente.

Decorreram cinco minutos antes de ouvirmos botas a pisar a neve gélida

lá em baixo. Em algum lugar por ali, um Andrew muito nervoso estaria a

contornar a lateral da casa e a dirigir-se à porta de trás. Rapidamente,

levantei-me e comecei a levar a tábua para a casa. Quando chegamos à

retaguarda, de frente para a janela de trás, ajoelhei e tentei posicionar a

tábua. Consegui assentar a outra extremidade no parapeito da janela

logo à primeira. O que me preocupava era o rebordo não ser muito

largo. Receava que a tábua pudesse deslizar quando estivesse a

atravessar e eu caísse lá em baixo no pátio. Por isso era importante que

Alice a firmasse na beira da escarpa.

— Apóia aí o pé! — murmurei, indicando a extremidade mais próxima da

tábua. Entregando o meu bordão a Alice, ajoelhei na tábua e preparei-

me para rastejar por ela. A distância não era muita mas estava nervoso

e de início os meus membros recusaram obedecer-me. A distância até às

lajes cobertas de neve lá em baixo era grande.

Comecei finalmente a engatinhar, tentando não olhar para a grande

caída lá em baixo. Em breve estava ajoelhado próximo do parapeito da

janela; uma vez lá, tirei o pequeno pé-de-cabra do bolso do meu casaco

e posicionei-o por debaixo do caixilho da janela. Naquele preciso

instante, Andrew bateu com força à porta da parte de trás quase

diretamente por baixo de mim.

Ecoaram três pancadas ruidosas pela ravina abaixo.

A cada pancada, ia aplicando o pé-de-cabra, tentando levantar a janela

de guilhotina. Na pausa que se seguiu, mantive-me perfeitamente

imóvel.

Truz! Truz! Truz!

Voltei a forçar a janela, mas sem qualquer indício de sucesso. Começava

a perguntar-me quantas vezes teria Andrew de bater antes de a

coragem lhe faltar. Talvez o fecho fosse mais forte do que eu previra.

Quantas oportunidades teríamos? Talvez a bruxa acabasse por vir abrir a

porta. Se sim, não quereria estar na pele de Andrew.

Truz! Truz! Truz!

Page 494: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Desta vez, finalmente, consegui. Levantei a janela e, mal houve um

intervalo suficiente, subi-a com ambas as mãos.

Truz! Truz! Truz! veio o som lá debaixo. Se tivesse olhado, poderia ter

visto Andrew, mas fixei o olhar no parapeito da janela e entrei no quarto

antes de voltar a guardar o pé-de-cabra no bolso. Alice debruçou-se e

entregou-me o bordão, depois atravessou a tábua mais depressa do que

eu o fizera. Uma vez lá dentro recolhi-a, para o caso de Meg vir ao pátio

e vê-la lá de baixo. A seguir fechamos a janela.

Feito isso, sentamo-nos os dois no chão, às escuras, escutando com

atenção. Não se houve mais pancadas na porta da frente. Não a ouvira

abrir-se por isso esperava que Andrew se tivesse afastado em

segurança. O som que temia agora era o de Meg a subir as escadas.

Teria ouvido a janela ser forçada?

Combinara já com Alice que, se conseguíssemos entrar na casa em

segurança, esperaríamos quinze minutos ou mais antes de avançarmos.

O primeiro passo seria ir buscar o meu saco ao gabinete de trabalho do

Mago. Assim que a corrente de prata estivesse nas minhas mãos, as

nossas chances de sucesso seriam muito maiores.

Mas não contara a Alice o que Morgan queria que eu fizesse. Não lhe

falara do grimoire porque sabia que me diria que era um tolo em dar-

lho. Mas ela podia falar à vontade. Não era o pai dela que eventualmente

sofreria. A sua voz a suplicar no escuro voltava constantemente para me

atormentar. Era por demais insuportável.

Se conseguisse resgatar o Mago e de alguma forma aprisionar Meg,

precisaria subir no sótão. Tinha de fazê-lo.

Estava a trair o Mago mas não podia deixar o Pai sofrer mais. Então não

tivemos outro remédio senão esperar, escutando nervosamente cada

ruído da velha casa.

Passado cerca de um quarto de hora, bati de leve no ombro de Alice,

levantei-me com cuidado, peguei no meu bordão e avancei

cautelosamente em direção à porta do quarto.

Não estava trancada e abri-a, saindo para o patamar. Estava ainda mais

escuro nas escadas, com uma mancha de negrura à nossa espera lá em

baixo. Comecei a descer, um passo lento, parando para escutar antes de

arriscar dar um segundo. Adotei aquele padrão: passo, pausa e escutar;

passo, pausa e escutar. A dada altura, um degrau chiou sob os meus

pés. Estacamos e esperamos pelo menos cinco minutos, pensando que

podíamos ter despertado a bruxa. E quando os pés de Alice provocaram

Page 495: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

um segundo chiado, tivemos de repetir o processo! Demorou uma

eternidade, mas chegamos finalmente ao térreo.

Momentos depois, tínhamos entrado no gabinete de trabalho do Mago.

Estava mais claro ali dentro, e consegui ver o meu próprio saco ainda no

canto onde o deixara, mas nem sinal do saco do Mago. Tirei a corrente

de prata e enrolei-a à volta da mão e do pulso esquerdo, a postos para a

lançar. Fazia-o com aquele braço: quando treinara no jardim do Mago,

conseguira lançar a corrente sobre um poste à distância de dois metros e

quarenta, nove vezes em dez. Por isso, agora, frente a frente quer com

a lâmia selvagem quer com Meg, tinha uma boa chance de sucesso. Um

ataque de ambas simultaneamente seria uma outra história e não me

agradava pensar nisso.

A seguir, debrucei-me e encostei os lábios ao ouvido de Alice.

— Veja se a chave está em cima da estante —

murmurei, apontando para o local.

Havia uma chance de Meg ter a chave do portão à cintura, mas

recordava-me de algo que o Mago uma vez me dissera sobre ela: que

era metódica e guardava sempre tudo no devido lugar. Estivera a referir-

se a tachos e panelas, facas e garfos. Sucederia o mesmo com a chave?

Valia bem a pena verificar.

Por isso, enquanto Alice ia buscar uma cadeira e a posicionava junto à

estante, fiquei de guarda junto à porta aberta, com a corrente a postos.

Ela subiu para a cadeira e tateou cuidadosamente a superfície superior

da última prateleira antes de esboçar um largo sorriso e exibir a chave.

Não me enganara! Tínhamos a chave do portão!

Continuando a agarrar a corrente, peguei no meu bordão e saí

cautelosamente do gabinete de trabalho em direção às escadas para a

cave. Esperara que Meg estivesse acordada mas ouvia o som da

respiração dela na cozinha, o ar a sair-lhe pela boca ao expirar. Dormia

profundamente, e até não nos podíamos queixar da nossa sorte.

Uma opção seria ter ido diretamente à cozinha e aprisionar Meg

enquanto ainda estava dormindo, mas precisava da corrente para

enfrentar a ameaça da lâmia selvagem na cave. Descemos lentamente

as escadas, Alice agora na frente, até chegarmos ao portão. Era um

momento perigoso e explicara já que um ruído do portão ressoaria pela

casa toda. Mas Alice inseriu a chave muito cuidadosamente e rodou-a

sem um som. Conseguiu fazer o mesmo ao deslocar o portão, que

deixamos aberto para o caso de termos de sair rapidamente da cave.

Page 496: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Estava muito escuro lá em baixo e bati de leve no ombro de Alice, o sinal

para parar. Enfiei a corrente no bolso, encostei o bordão cuidadosamente

à parede e, usando a minha caixa de mechas, acendi um toco de vela e

entreguei-o a Alice. Mais uma vez, seguia um passo atrás dela, a

corrente e o bordão a postos. A vela era um risco calculado porque,

apesar de as escadas descerem em espiral, sempre poderia chegar um

brilho de luz à cave e alertar a lâmia selvagem. Mas precisávamos

mesmo de alguma luz para cuidar do Mago como devia ser e tirá-lo da

cela.

Acabou por se revelar a decisão certa. .

De repente, Alice arfou, estacou subitamente e apontou para baixo.

Vinha uma corrente de ar frio da cave, fazendo a chama da vela dançar

e tremular, e avistei à sua luz um vulto escuro a mover-se rapidamente

pelas escadas na nossa direção. Por um momento, o meu coração bateu

disparado, julgando que era a lâmia selvagem: desci para junto de Alice,

ergui a mão esquerda e preparei-me para lançar a corrente de prata.

Mas quando a corrente de ar lá em baixo cessou, a luz firmou-se e vi

que o movimento rápido do vulto escuro fora uma ilusão causada pelo

tremular da chama. Al-go se movia mesmo pelas escadas, mas

rastejava; arrastando-se com uma lentidão tão incrível que teria

demorado uma eternidade a alcançar o portão.

Era Bessy Hill, a outra bruxa viva — aquela que estivera no poço ao lado

da lâmia selvagem. O cabelo grisalho era comprido, gorduroso e estava

carregado de pequenos insetos pretos, ao passo que o vestido andrajoso

estava manchado de bolor e com laivos de visco. Arrastava lentamente o

corpo pelas escadas, mas apesar de ter conseguido libertar-se da

sepultura, anos a sobreviver com uma dieta de lesmas, vermes e outras

criaturas rastejantes prenunciava uma fraca força. Claro que o caso

mudaria de figura se tivéssemos dado assim de caras com ela no escuro.

Paramos. Se ela conseguisse agarrar um dos nossos tornozelos seria

difícil arrancá-la. Estava desesperada por sangue e ferraria os dentes em

qualquer carne quente que se aproximasse. Uma bocada de sangue

torná-la-ia de imediato muito mais forte e perigosa. Era assustador, mas

tínhamos de passar por ela.

Continuei a descer nervosamente, fazendo sinal a Alice para me seguir.

As escadas eram largas e foi possível passar a uma distância confortável

da bruxa. Estranhei que ela tivesse conseguido fugir do poço. Uma

possibilidade era a lâmia selvagem ter afastado as grades para ela. Ou

Page 497: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

talvez fosse Meg que a libertara. Quando passamos, olhei-a

rapidamente. A cabeça estava virada para nós mas os olhos firmemente

fechados. No entanto, a boca estava aberta, e a comprida língua

purpúrea pendente sobre o degrau, como se lambesse algo da pedra

úmida. Cheirou, fungou, virou a cabeça para cima e tentou levantar a

mão.

Quando abriu os olhos eram como dois pontos de fogo acesos no escuro.

Descemos rapidamente, deixando-a para trás.

Quando chegamos ao patamar com as três portas, entreguei o meu

bordão a Alice. Esta aceitou-o com um esgar.

Não gostava de pegar em madeira de sorveira. Mas eu tirava já a minha

própria chave do bolso e não tardaria a abrir a porta da cela do Mago.

Até então, preocupava-me que ele pudesse não se encontrar lá. Pensei

que Meg o tivesse mudado para outro qualquer lugar, até metê-lo num

poço na cave. Mas lá estava ele, sentado na cama com a cabeça nas

mãos. Quando a luz da vela tremulou na cela, ele olhou na nossa

direção, mas a sua expressão era de perplexidade. Depois de olhar para

as escadas e escutar com atenção para me certificar de que a lâmia não

vinha subindo, entrei na cela com Alice e ajudamos o Mago a levantar-

se. Não ofereceu resistência quando o puxamos na direção da porta. Não

pareceu reconhecer nenhum de nós e calculei que Meg lhe tivesse dado

recentemente uma dose forte da poção.

A minha corrente encontrava-se agora de novo no bolso — não o melhor

lugar para ela se a lâmia atacasse, mas não tinha alternativa. O

progresso pelas escadas era lento enquanto o Mago arrastava os passos,

Alice e eu amparando-o pelos cotovelos. Eu olhava constantemente para

trás mas não vinham sons ameaçadores lá de baixo.

Quando chegamos à bruxa nas escadas, estava dormindo, os olhos

ligeiramente fechados, ressonando sonoramente com a boca aberta.

Naquele momento estava esgotada de subir as escadas.

Não tardamos a alcançar o portão. Uma vez transposto, Alice voltou a

fechá-lo cuidadosa e silenciosamente e tirei-lhe a chave e guardei-a no

meu bolso. Continuamos a subir até chegarmos ao térreo. O som da

respiração de Meg vinda da cozinha garantiu-me que também ela

continuava dormindo, pelo que tinha naquele momento uma decisão

importante a tomar. Ou ajudava Alice a tirar o Mago da casa ou entrava

na cozinha e aprisionava Meg com a corrente de prata.

Page 498: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Se conseguisse aprisionada, acabaria tudo e a casa voltaria para as

nossas mãos. Mas a tentativa envolvia muitos riscos. Meg podia acordar

de repente — e nove vezes em dez não era o mesmo que dez em dez!

Eu podia falhar e Meg era incrivelmente forte. O Mago não estava em

condições de ajudar, e nós os três ficaríamos à mercê de Meg. Então

apontei pelo corredor para a porta da frente. Momentos depois a porta

fora aberta e ajudei Alice a levar o Mago lá para fora. A seguir, tirei-lhe a

vela, aproximando-a do meu corpo para não se apagar.

— Tenho algo a fazer lá dentro de casa — disse-lhe. — Não demorarei

muito, mas leva Mr. Gregory daqui. Andrew deve estar à espera mais

abaixo na ravina.

— Não seja tolo, Tom! — exclamou Alice, o seu rosto cheio de

preocupação. — O que poderia ser tão importante para querer voltar ali?

— Confie em mim, Alice. Tem de ser feito. Nos encontramos na casa de

Andrew.

— Há algo que ainda não me contou — queixou-se Alice. — O que é?

Não confia em mim?

— Vá, Alice, por favor. Faça o que te digo. Mais tarde explicarei tudo.

Relutantemente, Alice começou a descer a colina, conduzindo o Mago

pelo cotovelo. Não olhou para trás e percebi que estava realmente

furiosa comigo.

Page 499: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 16

A SUBIDA AO SÓTÃO

Uma vez lá dentro, fechei a porta atrás de mim e comecei a subir as

escadas. Na minha mão direita segurava a vela; na esquerda levava o

bordão de sorveira. A corrente de prata continuava no bolso esquerdo do

meu casaco de pele de carneiro. Subi mais depressa do que havíamos

descido mas continuei a ter cuidado. Não queria acordar Meg. Tinha

também outra preocupação. A minha chave seria grande demais para a

fechadura na escrivaninha do Mago. Ia ter de forçá-la com o pé-de-cabra

e provavelmente isso faria mais do que apenas algum barulho.

Enquanto ia subindo as escadas, comecei a sentir-me cada vez mais

inquieto. Meg continuava a dormir, mas poderia acordar a qualquer

instante. Se me seguisse escadas acima, eu tinha sempre hipótese de

reposicionar a tábua e efetuar a fuga pela janela do quarto das traseiras.

Mas aperceber-me-ia a tempo da chegada dela? Alice tinha razão. Em

face de tal, era mesmo uma tolice. Mas continuava a pensar no Pai e

obriguei as minhas pernas a continuarem a subir as escadas.

Não tardei muito a encontrar-me perto da porta do sótão. Preparava-me

para a abrir e entrar quando ouvi um leve som. Parecia uma espécie de

raspadelas...

Escutei cheio de nervosismo com o ouvido esquerdo colado à porta e

ouvi de novo o som de raspadelas. O que poderia fazer um ruído assim?

Não tinha outra alternativa senão ignorar e tentar obter o que Morgan

queria. Comecei a rodar a maçaneta. Só então, ao entrar devagar na

divisão, percebi que devia ter fugido com Alice e o Mago enquanto ainda

tinha chance.Devia ter contado ao meu mestre tudo o que acontecera

com Morgan e seguido o conselho dele. O Mago teria sabido qual a

melhor maneira de ajudar o Pai.

Todos os meus instintos me diziam naquele momento que fugisse. Era

como se uma voz gritasse «Perigo!

Perigo! Perigo!» sucessivamente dentro da minha cabeça.

Quando entrei, quase fechei a porta atrás de mim. Senti um forte

impulso para fazê-lo mas de certa forma consegui resistir. Estava escuro

de modo que levantei a vela acima da minha cabeça a fim de ver

Page 500: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

melhor; houve então uma explosão súbita de ar frio que se extinguiu

gradualmente.

Via lá em cima o contorno pálido da clarabóia. Estava escancarada e

uma brisa fria desceu na direção do meu rosto. Havia seis pequenas

aves empoleiradas na borda da clarabóia. Mantinham-se caladas, como

se aguardando pacientemente algo. E, por debaixo delas, estava patente

o horror daquela divisão.

As tábuas do soalho encontravam-se cheias de penas, salpicadas de

sangue e sujas de fragmentos de aves mortas. Parecia que entrara uma

raposa num galinheiro.

Viam-se asas, patas, cabeças e centenas e centenas de penas. Desciam

penas pelo ar, rodopiando à volta da minha cabeça, agitadas pela brisa

gélida que soprava pela clarabóia. Quando vi algo muito maior, não

fiquei surpreendido. Mas a sua visão enregelou-me até aos ossos.

Acocorada ao canto, perto da escrivaninha, estava a lâmia selvagem, de

olhos fechados, as pálpebras superiores grossas e pesadas. De certa

forma, o seu corpo parecia menor mas o rosto estava maior do que da

última vez que o vira. Já não descarnado mas pálido e inchado, as faces

quase duas bolsas. Enquanto olhava, a boca abriu-se ligeiramente e

escorreu um fio de sangue pelo queixo que começou a pingar para o

soalho. Lambeu os beiços, abriu os olhos e fitou-me como se tivesse

todo o tempo do mundo.

Estivera a alimentar-se. A alimentar-se das aves.

Abrira a clarabóia e depois atraíra as aves às suas mãos férreas com

garras, obrigando-as a voar até onde aguardava sentada. Depois, uma

por uma, começara a beber-lhes o sangue, mantendo-as ainda vivas por

perto com uma fórmula de compulsão. Tinham asas mas haviam perdido

a vontade de voar.

Eu não tinha asas, no entanto tinha pernas. Mas elas não queriam me

obedecer e fiquei pregado ao chão com medo. Avançou para mim muito

lentamente. Talvez fosse por estar pesada, de tão empanturrada de

sangue.

Talvez sentisse que não havia pressa.

Se tivesse corrido pelo chão direto a mim, seria o fim. Nunca conseguiria

sair do sótão. Mas ela avançava lentamente. Muito lentamente. E o

horror de a ver aproximar-se foi suficiente para quebrar o feitiço. De

repente fiquei livre. Podia mover-me. Mover-me mais depressa do que

alguma vez antes o fizera.

Page 501: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Não pensara usar nem a corrente nem o bordão. As minhas pernas

agiram mais rápidas do que o meu pensamento. Enquanto a lâmia

rastejava pelo soalho, virei-me e corri. E enquanto corria, houve um

bater de asas atrás de mim: a minha fuga libertara as aves aprisionadas

da fórmula. Aterrorizado, com o coração em sobressalto, desci as

escadas fazendo barulho suficiente para despertar os mortos. Mas não

queria saber. Tinha de sair e afastar-me da lâmia. Nada mais importava.

Toda a minha coragem desaparecera.

Mas alguém estava à minha espera nas sombras ao fundo das escadas.

Meg.

Por que não virará das escadas para o quarto da parte de trás? Devia

ter-me concentrado. Pensado cuidadosamente. Mas entrara em pânico e

perdera a minha oportunidade de escapar. A lâmia selvagem estava

empanturrada demais de sangue para se mover com rapidez. Teria

conseguido abrir a janela, posicionar a tábua e atravessá-la até à

segurança. E agora os meus passos pesados escadas abaixo haviam

despertado Meg.

Lá estava ela, entre mim e a porta da frente. Enquanto em algum lugar

atrás de mim, provavelmente já a descer as escadas, encontrava-se a

lâmia selvagem. Meg olhou para mim, o seu rosto belo alargando-se

num sorriso. Havia luz suficiente para ver que não era um sorriso

amigável. Subitamente, debruçou-se sobre mim e cheirou-me

ruidosamente três vezes.

— Disse antes que não te daria à minha irmã —

referiu. — Mas isso agora mudou. Sei o que fez. Há um preço a pagar

por isso. Um preço de sangue!

Não respondi porque recuava já lentamente pelas escadas acima.

Continuava a segurar o toco da vela de modo que o enfiei no bolso das

calças. Feito isso, transferi o meu bordão para a mão direita e retirei a

corrente de prata do bolso esquerdo do meu casaco de pele de borrego.

Ela deve ter visto ou sentido a corrente, porque subiu rapidamente as

escadas direto para mim, as mãos estendidas como se quisesse

arrancar-me os olhos. Entrei em pânico, fiz pontaria e arremessei-lhe

diretamente a corrente. Não me concentrei e falhou-lhe por completo a

cabeça. Mas felizmente para mim, bateu-lhe no ombro e no flanco

esquerdo. Ao tocar-lhe, ela gritou de agonia e foi de encontro à parede.

Vendo a minha oportunidade, passei a correr por ela e cheguei ao fundo

das escadas antes de me virar para enfrentá-la. Pelo menos agora não

Page 502: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

teria a ameaça da irmã dela atrás de mim. A corrente continuava nos

degraus de cima. Só me restava o bordão de madeira de sorveira. Era a

madeira mais poderosa de todas para usar contra uma bruxa. Mas Meg

não era do Condado; era uma bruxa lâmia de uma terra estrangeira.

Seria eficaz contra ela?

Meg recuperou o equilíbrio e virou-se para mim.

— O toque da prata é agonia para mim, rapaz —

disse, o seu rosto contorcido de fúria. — Gostaria de sentir uma dor

assim?

Desceu um degrau, e quando o fez, arrastou deliberadamente as costas

da mão esquerda pela parede junto ao corpo. Enquanto observava,

raspou as unhas pelo estuque, deixando nele sulcos profundos. O

estuque era velho e muito rijo. Estava a mostrar-me o que as suas

unhas poderiam fazer à minha carne. Quando Meg deu outro passo,

preparei o meu bordão, apontando-o para cima, pronto a atingir-lhe a

cabeça e os ombros. Mas agora eu estava a usar a cabeça. A concentrar-

me. E quando ela atacou, precipitando-se pelas escadas para mim,

baixei rapidamente o bordão, atirando-lhe aos pés. Os olhos dela

arregalaram-se quando viu o que eu estava a tentar fazer, mas a sua

aceleração era excessiva: as pernas emaranha-ram-se no bordão e caiu

de cabeça pelas escadas. O bordão foi-me arrancado das mãos, mas

agora tinha oportunidade de recuperar a corrente e saltei por cima dela

e subi as escadas correndo.

Apanhei a corrente, enrolei-a em volta do pulso esquerdo e preparei-me

para a lançar de novo. Desta vez estava decidido a não falhar.

Ela sorriu-me, o rosto cheio de escárnio.

— Já falhou uma vez. Não é tão fácil quanto arremessá-la àquele poste

no jardim de Gregory, não é? As suas mãos estão a suar, rapaz?

Começam a tremer? Só tem mais uma oportunidade. E depois será meu.

.

Sabia que ela estava apenas tentando destruir a minha confiança e

aumentar as probabilidades de eu falhar.

Então, respirei fundo e recordei a minha preparação. Nove vezes em

dez, conseguia atingir o poste. E nunca falhara duas vezes seguidas. Só

o medo conseguiria me impedir naquele momento. Só a dúvida. Então,

respirei fundo e concentrei-me. Quando Meg se levantou, fiz pontaria

com cuidado.

Page 503: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Estalei a corrente no ar como um chicote antes de a arremessar

diretamente à bruxa. Caiu numa espiral perfeita às avessas a envolver-

lhe a cabeça e o corpo. Soltou um grito, que foi cortado subitamente

quando a corrente de prata lhe apertou a boca e ela caiu pesadamente

no chão.

Com muita cautela, desci as escadas e olhei-a de perto. Para meu alívio,

ficara bem aprisionada. Olhei-a nos olhos e vi ali a dor. Mas, apesar de a

corrente de prata a estar machucando, havia também desafio no seu

olhar. De repente, a expressão dela mudou e percebi que olhava pa-ra lá

de mim, para as escadas. Simultaneamente, ouvi passos em corrida e

virei-me, vendo Márcia, a lâmia selvagem, descer as escadas direto para

mim.

Mais uma vez, o fato de estar já saciada de sangue salvou-me.

Continuava inchada e lenta. Caso contrário, haveria atacado antes

mesmo de eu ter sequer uma chance de pestanejar. Então, peguei no

meu bordão de sorveira e subi as escadas ao encontro dela. O ódio ardia

nos seus olhos de pálpebras pesadas, e os quatro membros finos por

debaixo do seu corpo ficaram tensos, prontos a saltar.

A princípio, não tive tempo de sentir medo e ataquei com o bordão na

direção do seu rosto inchado. Não suportou o toque da madeira de

sorveira e arfou de dor quando a minha terceira estocada a atingiu logo

por debaixo do olho esquerdo. Bufou de fúria e começou a recuar, o

cabelo preto comprido e gorduroso a roçar nos degraus de ambos os

lados e a deixar um rasto viscoso úmido.

Não sei quanto tempo lutei com ela. O tempo parecia ter parado. O suor

escorria-me da testa e tinha dificuldade em respirar, o meu coração a

bater ruidosamente tanto do esforço como do medo. Sabia que a

qualquer momento ela poderia penetrar a minha guarda ou então eu

podia tropeçar — caso esse em que ela me alcançaria num ápice, os

seus dentes afiados a ferrar-me nas pernas. Mas obriguei-a finalmente a

recuar para a porta do sótão, depois estoquei-a freneticamente para a

enfiar lá dentro.

Feito isso, fechei a porta com força e tranquei-a, usando a minha chave.

Sabia que a porta não a deteria por muito tempo, e enquanto descia as

escadas, ouvi as garras dela já a começar a desfazer a porta de madeira.

Estava na hora de fugir. Seguiria os outros até à loja de Andrew. Quando

o Mago recuperasse poderíamos regressar e resolver tudo.

Page 504: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Mas quando abri a porta da frente, uma intensa tempestade de neve

fustigava lá fora, a neve atingindo-me no rosto. Podia dar com o

caminho até à orla da ravina, mas seria loucura avançar para lá dela.

Mesmo que descesse a charneca em segurança, morreria congelado ao

tentar alcançar Adlington. Fechei rapidamente a porta. Só me restava

uma outra opção.

Meg não era maior do que eu nem muito pesada.

Decidi então levada para a cave e colocá-la no poço. Feito isso, podia

trancar-me por detrás do portão com ela e ficar relativamente a salvo da

lâmia selvagem. Ou pelo menos por um bocado. Nem mesmo o portão

impediria eterna-mente Marcia.

Todavia, tinha ainda que me preocupar com a outra bruxa, Bessy Hil .

Deixei então Meg no topo das escadas da cave e procurei rapidamente o

saco do Mago. Encontrei-o por fim na cozinha e, com celeridade, enchi

os bolsos de sal e ferro. Feito isso, levei Meg para a cave, segurando-a

no ombro direito pelas pernas. Na minha mão esquerda levava

simultaneamente o bordão e uma vela.

Demorei algum tempo a colocá-la lá e tive o cuidado de trancar o portão

atrás de mim. Mais uma vez, mantive-me bem afastado de Bessy Hil ,

que continuava a ressonar nas escadas.

Depois de tudo o que acontecera, queria arrastar Meg pelos pés e deixar

que a cabeça dela batesse em cada degrau. Mas não o fiz.

Provavelmente estaria já a sofrer bastante por causa da corrente de

prata que a prendia com força. E, de qualquer forma, apesar de tudo, o

Mago haveria de querer que ela fosse tratada o melhor possível.

Por conseguinte, tive cuidado com Meg.

Mas quando a enfiei pela borda do poço, não resisti ao comentário que

se segue.

— Sonhe com o seu jardim! — disse-lhe, conferindo à minha voz o tom

mais sarcástico possível. Depois deixei-a e, agarrando no meu toco de

vela, voltei a subir as escadas. Estava agora na altura de ir tratar da

outra bruxa, Bessy Hil . Devo tê-la acordado ao descer porque fungava e

bufava ao subir de novo lentamente em direção ao portão. Levei as

mãos aos bolsos das calças e retirei uma mão-cheia de sal e uma mão-

cheia de ferro. Mas não os atirei; cerca de três degraus acima dela,

espalhei uma linha de sal de parede a parede, depois polvilhei por cima

com ferro. E a seguir desloquei-me ao comprimento do degrau e

Page 505: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

misturei-os cuidadosamente para formar uma barreira que a bruxa não

conseguisse transpor.

Por fim, aproximei-me do portão e sentei-me três degraus abaixo dele,

para o caso de a lâmia selvagem descer e tentar alcançar-me através

das grades.

Fiquei ali sentado vendo a vela arder até ficar cada vez mais pequena.

Muito antes de ameaçar extinguir-se, senti pena do que dissera a Meg. O

meu pai não teria gostado que eu fosse sarcástico àquele ponto. Ele não

me educara assim. Meg não podia ser má de todo. O Mago amava-a e

ela amara-o em tempos. E como se iria sentir quando visse que eu a

metera no poço? Que eu fizera algo que pessoalmente ele nunca tivera

coragem de fazer?

Dali a um tempo a vela apagou-se de vez e fiquei no escuro. Chegavam

tênues murmúrios e arranhadelas lá do fundo da cave onde as bruxas

mortas se agitavam e, de tempos a tempos, o som da bruxa viva

enfraquecida, cheirando e fungando de frustração, sem conseguir

atravessar a barreira de sal e ferro.

Estava quase a dormir quando a lâmia selvagem chegou de repente,

tendo finalmente aberto caminho através da porta do sótão. A minha

visão noturna é boa, mas estava escuro nas escadas da cave e só ouvia

a investida das suas pernas avançando em corrida e depois uma

pancada quando um vulto escuro se arremessou contra o portão e

começou a arranhar o metal. O coração saltou-me para a boca. Parecia

estar de novo esfomeada de modo que peguei no meu bordão de

sorveira e ataquei-a, desesperado, através das grades.

A princípio, não afetou o frenesi dela, e ouvi a grade gemer quando o

metal dobrou e cedeu. Mas depois tive sorte. Devia tê-la atingido num

ponto nervoso, provavelmente um olho, porque ela guinchou

estridentemente e afastou-se do portão, subindo de novo as escadas

lamuriando-se.

Quando a tempestade de neve passasse e o Mago ficasse

suficientemente forte, voltaria para resolver a situação — tinha certeza

disso. Só não sabia quando. Ia ser uma longa tarde e uma noite ainda

mais longa depois daquilo. Podia ter de passar dias ali nas escadas. Não

sabia quantas vezes Márcia atacaria o portão.

Mais duas vezes o fez, e depois de a ter expulsado uma terceira, retirou-

se pelas escadas acima e desapareceu de vista. Perguntei-me se teria

voltado para o topo da ca-sa. Talvez andasse à caça de ratazanas ou

Page 506: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

ratos. Passado um tempo, tive de me esforçar para me manter

acordado.

Não podia permitir-me adormecer porque o portão estava já

enfraquecido. Se não me encontrasse a postos para a repelir, ela não

demoraria muito a abrir caminho à força.

Encontrava-me em sérios apuros. Se ao menos não tivesse vindo buscar

o grimoire, estaria são e salvo com o Mago e Alice na casa de Andrew.

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CAPÍTULO 17

UMAS QUANTAS VERDADES

Os degraus eram desconfortáveis e muito frios. Passado um tempo, de

acordo com os meus cálculos, a noite voltaria a dar lugar ao dia. Tinha

fome e a minha boca estava ressecada da sede.

Quanto tempo teria de passar ali em baixo? Quanto tempo antes de o

Mago aparecer? E se o meu mestre não recuperasse devidamente e

estivesse doente demais para vir? Depois comecei a preocupar-me com

Alice. E se ela voltasse à casa à minha procura? Julgaria que a lâmia

estava aprisionada na cave. Não sabia que estivera no sótão; que

andava agora à solta pela casa.

Ouvi finalmente ruídos em algum lugar lá em cima.

Não pernas a correr mas o murmúrio bem-vindo de vozes humanas e as

pancadas de botas a descer e depois o som de algo pesado a ser

arrastado pelas escadas. A luz de uma vela tremulou ao contornar a

esquina e pus-me em pé.

— Bem, Andrew! Parece que afinal não vai ser preciso — disse uma voz

que reconheci imediatamente.

O Mago aproximou-se do portão. Arrastava atrás de si a lâmia selvagem,

firmemente aprisionada com uma corrente de prata. A seu lado estava

Andrew, que o acompanhara para arrombar a fechadura.

— Bem, rapaz, não fique aí embasbacado — disse-me o Mago. — Abra o

portão e deixe-nos entrar.

Fiz rapidamente o que me mandavam. Queria contar ao Mago o que

sucedera com Meg, mas quando abri a boca para falar, ele abanou a

cabeça e assentou uma mão no meu ombro.

— Primeiro o mais importante — redarguiu, a sua voz simpática e

compreensiva, como se soubesse exatamente o que eu tinha feito. —

Tem sido difícil para todos nós e há muito que conversar. Mas ficará para

mais tarde.

Primeiro o trabalho que é preciso fazer. .

Dito aquilo, com Andrew na dianteira erguendo a vela alto, partimos

escadas abaixo. Quando nos aproximamos da bruxa viva, Andrew

estacou e a vela começou a tremer na sua mão.

— Andrew, dê a vela ao rapaz — pediu o Mago. —

Page 508: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

É melhor ir para cima e esperar na porta que cheguem o pedreiro e o

ferreiro. Depois pode dizer-lhes que estamos aqui em baixo.

Com um suspiro de alívio, Andrew entregou-me a vela, e depois de

acenar na direção do Mago voltou a subir as escadas. Continuamos a

descer até chegarmos à cave, com o teto baixo carregado de espessas

teias de aranha. O

Mago avançou direto para o poço da bruxa lâmia, onde as grades tinham

sido dobradas, com espaço de sobra para a atirar para o escuro — e o

Mago não perdeu tempo a preparar-se para fazer exatamente isso.

— Bordão a postos, rapaz! — ordenou.

Coloquei-me então a seu lado, a vela na mão direita para iluminar a

lâmia e o poço, o bordão de sorveira posicionado para repeli-la.

O Mago segurou a lâmia por cima das grades afastadas e, com um

esticão súbito, torceu a corrente de prata para a direita, dando-lhe um

golpe súbito. Ela desenrolou-se e, com um grito estridente, a lâmia caiu

no escuro.

Imediatamente o Mago ajoelhou ao lado do poço e começou a passar a

corrente de prata de uma barra à outra por cima da abertura para criar

uma barreira temporária que a lâmia não conseguisse transpor. Lá de

baixo das sombras, a lâmia bufou na nossa direção, furiosamente, mas

não esboçou qualquer tentativa de subir correndo; passados alguns

momentos o trabalho estava concluído.

— Pronto, aquilo deve aguentá-la até o pedreiro e o ferreiro chegarem —

disse o meu mestre, pondo-se em pé. — Agora vamos ver como está

Meg..

Abeirou-se do poço de Meg e eu segui-o, levando a vela. Ele abanou a

cabeça, contristado. Meg estava deitada de costas a olhar para cima, os

olhos arregalados e furiosos, mas a corrente prendia-a ainda firmemente

e não conseguia falar.

— Peço desculpa — disse-lhe. — Muitas desculpas.

Não tive. .

O Mago ergueu a mão para me silenciar.

— Guarde as suas palavras para mais tarde, rapaz.

Custa-me tanto ver isto. .

Ouvi a voz do Mago ficar embargada e captei um vislumbre de dor no

seu rosto. Desviei rapidamente o olhar. Seguiu-se um longo silêncio,

mas finalmente ele soltou um suspiro profundo.

— O que está feito está feito — disse, com pesar

Page 509: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

—, mas nunca pensei que fosse chegar a este ponto. Não ao cabo de

todos estes anos. Adiante, vamos tratar da outra. . Subimos de novo as

escadas até chegarmos à bruxa viva, Bessy Hil .

— A propósito, foi bem pensado, rapaz! — exclamou o Mago, indicando a

linha de sal e ferro. — É bom ver que tem iniciativa.

Bessy Hil virou a cabeça lentamente para a esquerda e pareceu querer

tentar falar. O Mago abanou a cabeça com pesar e apontou para os pés

dela.

— Olhe, rapaz. Pegue no pé direito, que eu pegarei no esquerdo. Vamos

descê-la devagar. Delicadamente, agora! Não queremos que ela bata

com a cabeça. .

Fizemos exatamente isso, e foi um trabalho desagradável: o pé direito

de Bessy estava frio, úmido e pegajoso, e quando a arrastamos ela

começou a fungar e a bufar. No entanto, não foi por muito tempo e em

breve ela estava de volta ao poço. Agora só era necessário substituir as

grades dobradas e ela ficaria segura por um longo tempo. Durante um

tempo não falamos e calculei que o Mago estivesse a pensar em Meg,

mas não tardou que ouvíssemos o som distante de vozes masculinas e

botas pesadas.

— Bem, rapaz, devem ser o ferreiro e o pedreiro.

Tinha pensado em te pedir que tratasse de Meg, mas não está certo e

não me furtarei ao que tem de ser feito. Por isso suba essas escadas e

prepare uma boa lareira em todas as divisões do térreo. Fez um bom

trabalho — falaremos mais tarde.

Ao subir, cruzei-me com o ferreiro e o pedreiro.

— Mr. Gregory está lá em baixo — disse-lhes.

Anuíram e continuaram a descer. Nenhum parecia satisfeito. Era um

trabalho sinistro mas tinha de ser feito.

Mais tarde, quando voltei à cave para dizer ao Mago que acendera as

lareiras, Meg continuava no poço mas a minha corrente de prata estava

em segurança na posse dele e entregou-a sem dizer uma palavra. A

cobertura de pedra e ferro fora arrastada para a posição e presa com

pernos de metal cravados fundo no solo.

Agora ela estava tão firmemente aprisionada debaixo de grades de ferro

quanto as outras bruxas. O Mago devia ter ficado realmente triste por

ter de fazer aquilo, mas não deixara de fazê-lo. Levara quase uma

eternidade, mas Meg estava finalmente aprisionada.

Page 510: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

A tarde ia já bastante adiantada quando o trabalho ficou concluído e o

pedreiro e o ferreiro finalmente foram embora. O Mago virou-se para

mim quando fechou a porta e cofiou a barba.

— Só falta mais uma coisa antes de comermos, rapaz. Agora já podia ir

até lá acima limpar aquela porcaria no sótão.

Mesmo depois de tudo o que acontecera eu não esquecera

o grimoire. Não esquecera o que Morgan podia fazer ao Pai. E ali estava

a minha oportunidade! Então, com as mãos a tremer ante a idéia de ir

trair o Mago e roubar o grimoire, levei um balde e um esfregão até ao

só-

tão. Depois de fechar a clarabóia, comecei a limpar o chão o mais

depressa que podia. Uma vez concluída a tarefa, bastariam alguns

momentos para forçar a fechadura da escrivaninha e esconder

o grimoire no meu quarto. Nunca vira o Mago ir ao sótão. Por isso podia

entregá-lo a Morgan sem que ele percebesse que desaparecera.

Tendo limpo as penas e o sangue do chão, convergi a minha atenção

para a escrivaninha. Apesar de ser uma peça bem feita, trabalhada mas

maciça, não iria demorar muito tempo a abri-la. Retirei o pequeno pé-

de-cabra do bolso do casaco e introduzi-o na fenda entre as portas.

Naquele momento ouvi passos atrás de mim e dei um pulo, atrapalhado,

ao ver o Mago de pé à porta, uma expressão de raiva e incredulidade no

rosto.

— Bem, rapaz! O que temos aqui?

— Nada — menti. — Estava apenas limpando esta velha escrivaninha.

— Não minta, rapaz. Não há nada pior neste mundo do que um

mentiroso. Então foi por isto que voltou à casa. A garota estranhou. .

— Morgan mandou-me vir buscar o grimoire na sua escrivaninha no

sótão! — deitei tudo para fora e baixei a cabeça de vergonha. — Era

para levar-lhe na terça-feira à noite na capela do cemitério. Peço

desculpa, peço mil desculpas. Nunca o quis trair. Só não suportava a

idéia do que ele podia fazer ao Pai se eu não o levasse.

— Ao seu pai? — O Mago ficou carrancudo. —

Como pode Morgan fazer mal ao seu pai?

— O meu pai morreu, Mr. Gregory.

— Sim, a garota contou-me a noite passada. Lamento sabê-lo.

— Bem, Morgan invocou o espírito do Pai e aterrorizou-o. .

O Mago levantou a mão.

Page 511: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Acalme-se, rapaz. Acaba com essa algaraviada e fale mais devagar.

Onde foi que tudo isto aconteceu?

— No quarto dele na fazenda. Ele invocou primeiro a irmã e ela trouxe o

Pai. Era mesmo a voz do Pai e Morgan o fez pensar que estava no

Inferno. Voltou a fazê-lo em Adlington — ouvi nitidamente a voz do Pai

dentro da minha cabeça — e Morgan disse que continuaria a fazê-lo se

eu não lhe obedecesse. Voltei para buscar o grimoire, mas quando

cheguei ao sótão, a lâmia selvagem estava lá a alimentar-se das aves.

Desci as escadas a correr, em pânico e encontrei Meg ali à espera. O

meu primeiro lançamento da corrente não lhe acertou e julguei que

estava acabado.

— Sim, podia ter-te custado a vida — observou o meu mestre, abanando

a cabeça de reprovação.

— Estava desesperado — disse-lhe.

— Isso não me interessa, rapaz — redarguiu o Mago, cofiando a barba.

— Não disse que se mantivesse afastado dele? Devia ter me contado

tudo, não vir aqui sorrateiro roubar algo a mando daquele tolo do

Morgan.

Fiquei ofendido com o uso da palavra «roubar». Era inegável que teria

sido um roubo, mas ouvi-lo usar aquela palavra magoou-me

profundamente.

— Não pude. Meg tinha-o prisioneiro. De qualquer forma, o senhor não

me contou tudo — redargui, irado. —

Por que não me disse que Morgan era seu filho? Como posso confiar em

você quando faz segredo de semelhantes coisas? Contou-me que ele era

filho de Mr. e Mrs. Hurst

— mas não, era seu filho. O sétimo filho que teve com Emily Burns. Fiz o

que fiz porque amo o meu pai. Mas o seu filho nunca faria o mesmo por

você. Ele quer destru-

í-lo. Diz que é um velho tolo!

Sabia que tinha ido longe demais, mas o Mago limitou-se a sorrir

sinistramente e a abanar a cabeça.

— Acho que não existe maior tolo do que um velho tolo, e certamente

algumas vezes o fui, mas quanto ao resto. .

Fitou-me com dureza, os seus olhos verdes brilhando intensamente.

— Morgan não é meu filho! É um mentiroso! —

disse-me, dando de repente um murro em cima da escrivaninha, o seu

rosto lívido de raiva. — Foi, é e sempre será. Só está tentando lhe

Page 512: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

confundir e manipular. Eu não tenho filhos — algumas vezes me

arrependi, mas se tivesse um filho, acha que o renegaria? O seu pai teria

renegado? Abanei a cabeça.

— Gostaria de ouvir a história toda, se é assim tão importante para

você?

Anuí.

— Bem, não vou negar que roubei Emily Burns do meu próprio irmão.

Ou que isso magoou muito a minha própria família. Em particular o meu

próprio irmão.

Nunca o neguei e tenho pouco a alegar em minha defesa a não ser que

era jovem. Desejava-a, rapaz, e tinha de ser minha. Um dia perceberá o

que quero dizer, mas só metade da culpa foi minha. Emily era uma

mulher forte e também me desejava. Mas não tardou a fartar-se de

mim, tal como se fartara do meu irmão. Acabou por arranjar outro

homem.

— Edwin Furner, assim se chamava e, apesar de ser o sétimo filho de

um sétimo filho, trabalhava como curtidor. Nem todos os habilitados a

fazê-lo seguem o nosso ofício. Durante dois anos correu tudo bem, e

eram felizes juntos. Mas logo depois de o segundo filho nascer, ele

ausentou-se durante quase um ano, deixando-a com duas crianças

pequenas.

«Seria preferível que se tivesse mantido longe, mas volte e meia

aparecia, como uma erva daninha. De cada vez que se tornava a ir

embora, ela ficava à espera de outro filho dele. Ao todo foram sete.

Morgan foi o sétimo de Furner. Depois disso, ele nunca mais voltou.

O Mago abanou a cabeça, pesaroso.

— Emily teve uma vida dura, rapaz, e continuamos amigos. Então,

ajudava-a conforme podia. Umas vezes com dinheiro, outras arranjando

trabalho para os moços dela mais crescidos. Como não havia um pai que

cuidasse deles, o que mais podia eu fazer? Quando Morgan tinha

dezesseis anos, arranjei-lhe trabalho em Moor View Farm.

Os Hursts gostaram tanto dele que acabaram por adotá-lo.

Não tinham um filho homem e teria acabado por herdar a fazenda. Mas

ele não gostava do trabalho, e a coisa começou a azedar. Não aguentou

nem um ano.

«Como te disse, eles tiveram uma filha. Era mais ou menos da mesma

idade e chamava-se Eveline. Jovens como eram, Morgan e Eveline

apaixonaram-se. Os pais não aceitaram porque queriam que eles fossem

Page 513: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

irmão e irmã, de modo que batiam nos dois; tornaram a vida deles um

inferno. Por fim, não aguentando mais, Eveline afogou-se no lago.

Depois disso, Emily suplicou-me que afastasse Morgan de lá e o

aceitasse como meu aprendiz.

Na altura, pareceu-me uma solução razoável, mas tinha as minhas

dúvidas e constatei que estava certo. Aguentou três anos, até que

finalmente voltou para Emily, mas não conseguia se manter afastado de

Moor View Farm. Ainda vai lá às vezes — pelo menos quando não anda a

fazer maldades em outros lados.

«A irmã deve ser uma apegada, alguém que não consegue atravessar

para o outro lado. E por causa disso, ele tem-na em seu poder. E não há

dúvidas de que está ficando mais forte. Parece sem dúvida ter exercido

algum poder sobre você. É melhor me contar exatamente o que se

passou entre vocês os dois.

Assim fiz, e enquanto falávamos, o Mago pedia-me constantemente

pormenores. Comecei pelo meu encontro com Morgan na capela do

cemitério à beira da charneca e terminei com a nossa conversa junto à

campa de Emily Burns. — Estou entendendo — disse o Mago quando

terminei. — Agora está bastante claro. Conforme te disse antes, Morgan

sempre sentiu fascínio pela antiga elevação tumular na charneca. Se for

escavando sucessivamente, acabará por encontrar algo. Bem, quando

ele era meu aprendiz, acabou por encontrar uma arca selada com

o grimoire lá dentro. E esse grimoire contém um ritual que é a única

maneira de invocar Golgoth. Foi então o que ele tentou fazer. Felizmente

cheguei antes do ritual ter ido longe de mais e pus-lhe fim.

— O que teria acontecido se ele conseguisse? —

inquiri.

— Nem é bom pensar nisso, rapaz. Um erro no ritual e ele teria morrido.

Antes isso do que concluí-lo com êxito. Sabe, ele seguiu as instruções à

letra e desenhou um pentagrama no chão do seu quarto em Moor View

Farm, uma estrela de cinco pontas dentro de três círculos concêntricos.

Por isso, se acertasse no resto, estaria suficientemente seguro lá dentro.

Mas Golgoth teria se materializado no exterior do pentagrama e andaria

à solta pelo Condado. Não foi em vão que lhe chamaram o Senhor do

Inverno. Podiam passar anos antes de o Verão regressar.

A morte pelo frio gélido e a fome poderiam ter sido o nosso destino.

Morgan ofereceu o cão da fazenda em sacrifício. Golgoth nunca lhe tocou

mas o pobre animal morreu de susto.

Page 514: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

«Portanto, como disse, impedi Morgan a tempo.

Terminei o aprendizado dele e tirei-lhe o grimoire. Depois, a mãe dele e

eu o obrigamos a prometer que deixaria Golgoth em paz e não tentaria

invocá-lo de novo. Ela acreditou na sua promessa, e por causa dela dei-

lhe todas as oportunidades e sempre tive esperança de que a sua fé nele

se justificasse. Mas, apesar de lhe ter interrompido o ritual, algum do

poder de Golgoth fora já despertado e ligou-se a ele. A sua mãe estava

certa — este vai ser um Inverno muito, muito rigoroso. Estou convencido

de que tem a ver com Golgoth e Morgan. Quando Morgan deixou de

estar sob a minha alçada, virou-se para o escuro e os seus poderes têm

vindo a aumentar. E está convencido de que o grimoire lhe conferirá o

derradeiro poder.

— Ele já consegue fazer coisas que um homem não deveria. Algumas

são pouco mais do que truques de magia, como mudar a temperatura

numa divisão para impressionar os crédulos. Mas parece que agora ele

consegue também submeter os mortos à sua vontade — não apenas os

fantasmas mas outros espíritos que pairam no Limbo entre esta vida e o

outro lado. Custa-me dizer isto, mas a situação parece muito sinistra.

Temo sinceramente que Morgan tenha a capacidade de fazer mal ao

espírito do seu pobre pai. .

O Mago olhou para a clarabóia, depois para a escrivaninha. Abanou a

cabeça, contristado.

— Bem, rapaz, vá lá para baixo e falaremos um pouco mais do assunto. .

Quinze minutos depois, o meu mestre estava ali sentado em silêncio na

cadeira de balanço de Meg e uma sopa de ervilha fervia numa panela.

— Tem muito apetite, rapaz? — perguntou.

— Não como desde ontem — respondi-lhe.

Ao ouvir aquilo sorriu, expondo o intervalo onde o demônio lhe partira o

dente da frente, levantou-se, colocou duas tigelas em cima da mesa e

serviu a sopa quente com uma concha. Em breve eu deitava pão na sopa

fumegante. O Mago dispensou o pão mas esvaziou a sua tigela.

— Lamento muito que o seu pai tenha falecido —

disse, afastando de si a malga vazia. — Não deveria ter nada a temer

depois da morte. Infelizmente, Morgan está usando o poder de Golgoth

para lhe fazer mal e lhe atingir através dele. Mas não se preocupe,

rapaz, vamos pôr fim a isto assim que pudermos. E quanto ao outro

disparate, Morgan não é meu filho nem nunca foi. — Voltou a olhar-me

nos olhos. — Então, acredita em mim?

Page 515: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Anuí, mas não devo ter sido suficientemente convincente porque o Mago

suspirou e abanou a cabeça.

— Bem, rapaz, ou é ele o mentiroso ou então sou eu. Convém decidir

qual de nós o é. Se não existir confiança entre nós, é inaceitável

continuar como meu aprendiz. Mas uma coisa é certa, não deixaria você

ir para o lado dele. Antes disso, agarraria você pela nuca, lhe devolveria

à sua mãe e deixaria que ela te metesse algum juízo nessa cabeça dura.

O tom dele foi áspero e, apesar de tudo o que acontecera, senti-me

realmente atrapalhado.

— Não me poderia devolver à minha mãe — respondi-lhe com azedume.

— Cheguei tarde demais ao funeral e nem sequer a consegui ver. Logo

depois ela partiu para algum lugar — talvez a sua própria terra. Não

creio que ela vá voltar. .

— Bem, dê-lhe espaço, rapaz. Ela acabou de perder o marido e precisa

de tempo para chorar e pensar. Mas você vai voltar a vê-la e não tardará

muito, tenho certeza.

E isto não é uma profecia. É o bom senso a falar. Se ela for, que seja,

mas antes de tal irá querer despedir-se como deve ser de todos os seus

filhos.

«Seja como for, o que Morgan tem estado a fazer é uma coisa terrível,

mas não se preocupe — irei encontrá-lo e impedi-lo de uma vez por

todas.

Sentia-me cansado demais para dizer fosse o que fosse, pelo que me

limitei a acenar com a cabeça. Só esperava que ele tivesse razão.

Page 516: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 18

A CAPELA DOS MORTOS

Apesar de todas as promessas do Mago, não foi possível tratar logo de

Morgan. Durante as duas semanas seguintes o tempo esteve tão mau

que quase nunca saímos de casa.

As tempestades de neve sucediam-se sobre a ravina, atirando os flocos

a rodopiar contra as janelas e enterrando a parte da frente da casa

quase até ao nível dos quartos do primeiro andar. Começava a acreditar

que Golgoth fora efetivamente despertado e fiquei grato por Shanks ter

tido a idéia de entregar provisões extra. Quando chegou a terça-feira

indicada por Morgan para o nosso encontro, fiquei nervoso e esperei em

parte vê-lo aparecer lá em casa.

Mas as tempestades de neve eram tão fortes que ninguém conseguiria

atravessar a charneca. Mesmo assim, cada hora fechado naquela casa

era uma tortura. Estava desesperado por sair e ir procurar Morgan para

pôr fim ao sofrimento do meu pai.

O meu mestre impôs-nos a rotina habitual de dormir, comer e lições

enquanto durou a tempestade de neve, mas acrescentou um elemento

novo. Todas as tardes ele descia as escadas da cave para conversar com

Meg e dar-lhe algum alimento. Normalmente eram apenas algumas

bolachas mas por vezes ele levava para baixo os restos do nosso

almoço. Fiquei curioso se os dois falariam quando ele estava lá em

baixo, apesar de saber que era desnecessário perguntar. Tínhamos

combinado não haver mais segredos entre nós mas percebi que o Mago

contava ainda com alguma privacidade.

As duas outras bruxas teriam de se aguentar o melhor que pudessem,

mastigando minhocas, lesmas e tudo o mais que conseguissem retirar da

terra úmida, mas Meg continuava a ser um caso especial. Esperara em

parte que, muito em breve, o Mago voltasse a dar o chá de ervas a Meg

e a trouxesse da cave. Ela era sem dúvida muito melhor cozinheira do

que qualquer um de nós, mas depois de tudo o que acontecera não

conseguia deixar de me sentir mais seguro com ela lá em baixo no poço.

No entanto, o Mago preocupava-me. Apiedara-se? Depois de todos os

avisos para não confiar nas mulheres, ei-lo que voltava a quebrar as

Page 517: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

suas próprias regras. Quis dizer-lhe, mas como podia fazer tal coisa se o

via tão transtornado por causa de Meg?

Ainda não comia como devia ser e uma manhã tinha os olhos vermelhos

e inchados como se os tivesse esfregado. Perguntei-me mesmo se

estivera a chorar e isso me fez pensar na minha reação numa situação

semelhante.

E se eu fosse o Mago, com Alice lá em baixo no poço?

Teria feito o mesmo? Perguntava-me também como estaria Alice.

Decidira já que, se o tempo alguma vez melhorasse, perguntaria ao meu

mestre se podia ir fazer uma visita à loja de Andrew para vê-la de novo.

Então, inesperadamente, uma manhã o tempo mudou de fato. Não

parava de pensar na ameaça ao Pai, na esperança de que, na primeira

oportunidade, fôssemos atrás de Morgan. Mas tal não iria acontecer.

Com o sol vieram os assuntos de magos. O meu mestre e eu fomos

chamados para Platt Farm, que ficava mais para leste.

Eram problemas com um demônio, ou pelo menos assim parecia.

Passou uma hora ou mais antes de nos pormos a caminho porque

primeiro o Mago talhou para si um novo bordão de madeira de sorveira,

e quando finalmente chegamos, após uma caminhada difícil de duas

horas pela neve funda, nem sinal do demônio que estivera nas

proximidades e o agricultor desfez-se em desculpas por se ter

equivocado, atribuindo as culpas à mulher, que era dada a

sonambulismo. Contou que ela mudara as coisas na cozinha e fizera

barulho com os tachos e panelas, incomodando a família inteira,

acordando na manhã seguinte sem qualquer lembrança de tal. Ficou

embaraçado por nos ter chamado para nada e quase ansioso demais por

pagar o Mago pelo incômodo.

Fiquei furioso por termos perdido tempo precioso e disse-o ao Mago no

regresso. Ele concordou.

— Aqui há gato — respondeu. — Ou muito me engano, rapaz, ou viemos

numa caçada inútil. Já tinha visto alguém tão interessado em levar a

mão ao bolso e pagar? Abanei a cabeça e estugamos o passo, o Mago na

frente, ansioso por chegar a casa. Uma vez lá, encontramos a porta de

trás já aberta. A fechadura fora forçada.

Depois de ir verificar se a porta e o portão da cave continuavam seguros,

o Mago mandou-me esperar na cozinha e foi lá acima. Passados cinco

minutos desceu, abanando a cabeça, furioso.

Page 518: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— O grimoire desapareceu! — anunciou. — Bem, rapaz, sabemos

perfeitamente de quem isto é obra! Quem mais poderia ser senão

Morgan? Ele tem Golgoth sob o seu poder o suficiente para parar a neve,

e depois arranja uma artimanha para nos roubar.

Pareceu-me estranho que Morgan não tivesse tentado antes roubar

o grimoire. Teria sido bastante fácil durante os verões, quando Meg

estava trancada na cela nas escadas da cave e a parte de cima da casa

se encontrava vazia. Mas depois lembrei-me do que o Mago me dissera

— a promessa que Morgan fizera à mãe de não voltar a tentar invocar

Golgoth. Talvez tivesse cumprido a sua palavra até a mãe morrer;

depois de a chorar, era agora livre de fazer o que lhe conviesse.

— Bem, hoje pouco podemos fazer senão ir a Adlington e pedir ao meu

irmão que venha arrumar a porta

— disse o Mago. — Mas não mencione o grimoire. Eu mesmo lhe contarei

quando achar oportuno. E no caminho, vamos fazer uma visitinha a Moor

View Farm. Sem dúvida encontrarei lá Morgan mas há umas perguntas

que quero fazer aos Hursts.

Fiquei curioso quanto à razão de não querer falar a Andrew

do grimoire, mas deu para perceber que ele não estava com disposição

para perguntas.

Partimos logo para Moor View Farm. Quando chegamos, o Mago foi

sozinho falar com os Hursts e me mandou esperar no pátio. Nem sinal de

Morgan. O meu mestre demorou-se algum tempo na casa da fazenda e

saiu de lá carrancudo. De lábios cerrados, encaminhou-se para a loja de

Andrew.

O Mago agiu como se se tratasse simplesmente de uma visita fraterna,

fazendo com que eu ficasse de novo curioso quanto à razão por que não

mencionava nada do que acontecera. No entanto, foi bom voltar a ver

Alice.

Ela preparou-nos uma ceia tardia e aquecemo-nos defronte da enorme

lareira na sala de estar antes de nos sentarmos à mesa. Quando

terminamos de comer, o Mago virou-se para Alice.

— Foi uma boa ceia, minha jovem — disse, sorrindo-lhe ligeiramente —,

mas agora tenho assuntos particulares a tratar com o meu irmão e Tom.

Por isso é melhor ir se deitar!

— Por que haveria eu de ir me deitar? — perguntou, eriçando-se de

raiva. — Eu vivo aqui, o senhor não.

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— Por favor, Alice, faça o que diz John — pediu Andrew com delicadeza.

— Tenho certeza de que existe uma razão muito boa para não querer

que ouça o que vai contar.

Alice deitou um olhar fulminante a Andrew, mas a casa era dele e

obedeceu, quase batendo com a porta e subindo ruidosamente as

escadas.

— Quanto menos ela souber, melhor — referiu o Mago. — Acabei de ir

visitar os Hursts e tive uma conversinha com a mulher sobre a razão da

partida da jovem Alice. Parece que discutiu com Morgan e foi-se embora

furiosa, mas dois dias antes disso, eles tinham andado muito chegados e

passaram muito tempo no quarto dele no térreo. Pode não ser nada. Mas

também pode perfeitamente suceder que ele tenha tentado aliciá-la

assim como procurou fazer aqui com o rapaz — referiu, indicando-me

com a cabeça. — Tentou e falhou. Mas, de qualquer forma, é melhor que

ela não ouça isto. Esta manhã, Morgan ar-rombou-me a casa e roubou

o grimoire.

Andrew ficou realmente preocupado e abriu a boca para falar, mas eu

antecipei-me-lhe.

— Isso não é justo! — protestei com o Mago. —

Alice odeia Morgan. Ela mesma me disse. Por que outra razão iria

embora? De modo algum ela o ajudaria.

O Mago abanou a cabeça, irado.

— Algumas lições custam mais a entrar nessa sua cabeça tola do que

outras! — ripostou. — Ao fim de todo este tempo, ainda não aprendeu

que não se pode confiar plenamente naquela garota. Ela precisa ser

sempre vigiada.

Por isso me certifiquei de que a tinha por perto. Para além disso, não a

permitiria a menos de quinze quilômetros de você. — Bem, esperem lá

— interrompeu Andrew. —

Disse que Morgan roubou o grimoire! Como pode ser tão tolo, John?

Devia ter queimado aquele livro infernal enquanto teve oportunidade! Se

ele tentar de novo aquele ritual, tudo pode acontecer. Tinha esperança

de ver mais alguns verões antes de o meu tempo terminar. Ele devia ter

sido destruído. Só não entendo por que o guardou todos estes anos!

— Olhe, Andrew, isto só a mim diz respeito e vai ter de confiar no que te

digo. Respondo-te que tive as minhas razões.

— Emily, hein?

O Mago ignorou-o.

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— O que está feito está feito e desejo que Morgan nunca tivesse levado

o grimoire e que este se encontrasse seguro fechado a sete chaves.

— Também eu! — respondeu Andrew, subindo a voz e ficando mais

furioso a cada segundo. — A sua obrigação é para com o Condado.

Disse-o vezes sem conta.

A sua atitude de conservar aquele livro em vez de o queimar resume-se

a uma incúria no cumprimento desse dever!

— Bem, irmão, agradeço a sua hospitalidade mas não essas palavras

duras — redarguiu o Mago, com uma pontinha de raiva na sua voz. — Eu

não interfiro no seu ofício e você deveria confiar que faço o que é melhor

para todos. Só aqui vim para te pôr a par da situação, mas foi um dia

longo e difícil e está na hora de irmos nos deitar antes que digamos algo

de que nos venhamos realmente a arrepender!

Sem mais delongas, deixamos à pressa a casa de Andrew. Quando

vínhamos descendo a rua, lembrei-me da razão por que lá tínhamos ido

antes de mais.

— Não chegamos a pedir a Andrew que arranjasse a fechadura —

lembrei-lhe. — Quer que volte lá correndo e o faça?

— Nem pense nisso, rapaz — respondeu o Mago, irado. — Nem que ele

fosse o último serralheiro no Condado! Preferia arranjá-la eu mesmo.

— Bem, agora que o tempo melhorou — inquiri

—, podíamos começar a procurar Morgan amanhã? Estou muito

preocupado com o Pai. .

— Deixe isso comigo, rapaz — afirmou o Mago, a sua voz mais suave. —

Pensei em alguns lugares onde Morgan possa estar escondido. O melhor

é eu partir amanhã bem antes da alvorada.

— Posso ir com você? — perguntei.

— Não, rapaz. Sozinho tenho mais chances de apanhá-lo dormindo.

Confie em mim. É melhor assim.

Confiei no Mago. Apesar de encontrar algum sentido no que ele dizia,

continuava a querer ir com ele. Tentei persuadi-lo mais uma vez mas

percebi que só estaria a gastar saliva. Quando se mete uma coisa na

cabeça do Mago, o melhor é aceitar e deixá-lo levá-la por diante.

Na manhã seguinte, quando desci à cozinha, nem sinal do Mago. A capa

e o bordão dele tinham desaparecido e, conforme o prometido, saíra de

casa muito antes da alvorada em busca de Morgan. Quando terminei o

desjejum, o meu mestre ainda não regressara e percebi que a sua

ausência me proporcionava uma ocasião boa demais para ser

Page 521: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

desperdiçada. Estava curioso em relação a Meg e decidi fazer-lhe uma

visita à cave para ver como estava.

Então, fui buscar a chave em cima da estante, acendi uma vela e desci

as escadas.

Atravessei o portão e tranquei-o atrás de mim, continuando a descer em

direção à cave, mas quando cheguei ao patamar com as três portas uma

voz chamou subitamente da cela do meio:

— John! John! É você? Reservou a nossa passagem?

Estaquei subitamente. Era a voz de Meg. Libertara-a do poço e metera-a

na cela onde estaria mais confortável. Afinal sempre se apiedara. Não

tardaria que nos próximos dias ela estivesse de volta à cozinha. Mas o

que quisera ela dizer com «reservou a nossa passagem»? Iria ela viajar?

Acompanhá-la-ia o Mago?

Subitamente ouvi Meg cheirar ruidosamente.

— Então, rapaz, o que faz aqui em baixo? Aproxime-se da porta para

que eu possa te ver melhor.

Ela cheirara-me, por isso era impossível afastar-me subindo

sorrateiramente as escadas. Iria sem dúvida contar ao Mago onde eu

estivera. Então, aproximei-me da porta da cela e espreitei lá para

dentro, tendo o cuidado de não me aproximar demais.

O rosto belo de Meg sorriu-me através das grades.

Não era o sorriso sinistro que me deitara quando tínhamos lutado. Para

minha surpresa, foi quase simpático.

— Como está, Meg? — perguntei cortesmente.

— Já estive melhor e já estive pior — respondeu Meg. — Não graças a

você. Mas o que está feito está feito e não te culpo por isso. Você é o

que é. Você e John têm muito em comum. Mas vou te dar um conselho

— isto é, se estiver disposto a escutar.

— Claro que escutarei — disse-lhe.

— Nesse caso, preste atenção ao que tenho a dizer.

Trate bem a garota. Alice gosta de você. Trate-a melhor do que John me

tratou e não se arrependerá. Não é necessário acabar desta maneira.

— Gosto muito de Alice e farei o meu melhor.

— Veja se faz mesmo.

— Ouvi-a perguntar por «reservar uma passagem»

— disse-lhe, virando-me para vir embora. — O que queria dizer?

— Não é da sua conta, rapaz — replicou Meg. —

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Podia perguntar a John mas não creio que se desse ao in-cômodo porque

iria obter dele a mesma resposta. E não me parece que ele quisesse

você a andar por aqui sem a sua permissão, não é?

Ante o que murmurei «adeus» e subi as escadas, tendo o cuidado de

trancar o portão depois de sair. Pelo visto, parecia que o Mago tinha os

seus segredos, e desconfiava que sempre haveria de ter. Assim que

coloquei a chave no lugar certo ele regressou.

— Encontrou Morgan? — perguntei, desapontado.

Já sabia a resposta. Se tivesse encontrado, Morgan acompanhá-lo-ia,

amarrado como um prisioneiro.

— Não, rapaz, lamento dizer que não. Julguei que o pudesse encontrar

escondido na torre abandonada em Rivington — referiu o Mago. — Ele

esteve lá recentemente, porém, sem dúvida a tramar alguma. Mas

parece-me que nunca pára muito tempo num lugar. Mesmo assim, não

se preocupe, voltarei a procurá-lo amanhã logo pela manhã.

Bem, entretanto, pode fazer-me um favor. Esta tarde, vá dar uma volta

até Adlington e peça àquele meu irmão para vir consertar a porta de trás

— afirmou o Mago. — E diga-lhe que lamento termos trocado palavras

azedas e que um dia ele irá compreender que fiz tudo com a melhor das

intenções.

As lições vespertinas prolongaram-se até mais tarde do que o costume e

faltavam menos de duas horas para escurecer quando, levando o meu

bordão de sorveira, parti finalmente para Adlington.

Andrew recebeu-me bem e o seu rosto rasgou-se num sorriso quando

lhe transmiti o pedido de desculpas do Mago: aceitou logo ir arranjar a

porta dentro de um dia ou dois. Depois, passei quinze minutos a

conversar com Alice, apesar de ela me parecer um pouco distante.

Provavelmente seria por a terem mandado para a cama na noite

anterior. Depois de me despedir, parti em direção à casa do Mago,

ansioso por regressar antes que escurecesse por completo.

Não estava caminhando há mais de cinco minutos quando ouvi um ruído

leve atrás de mim. Virei-me e vi alguém a seguir-me pela colina acima.

Era Alice, de modo que esperei que ela me alcançasse. Trazia vestido o

casaco de lã e quando se aproximou, os seus sapatos bicudos tinham

deixado pegadas nítidas na neve.

— Estão tramando alguma, estão — afirmou Alice com um sorriso. — O

que foi que eles não quiseram que eu ouvisse a noite passada? Pode me

Page 523: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

contar, não pode, Tom? Entre nós não existem quaisquer segredos.

Passamos por muito juntos, se passamos.

O Sol já se pusera e começava a escurecer.

— É muito complicado — disse-lhe, impaciente por partir. — Não tenho

muito tempo.

Alice inclinou-se e agarrou-me o braço.

— Anda, Tom, pode me contar!

— Mr. Gregory não confia em você — expliquei-lhe. — Acha que se

aproximou demais de Morgan.

Mrs. Hurst contou-lhe que você e Morgan passaram muito tempo juntos

no quarto dele no térreo...

— Não é novidade nenhuma o Velho Gregory não confiar em mim! —

exclamou Alice com um sorriso escarninho. — Morgan estava planejando

algo grande. Um ritual, disse, que ia torná-lo rico e poderoso. Queria a

minha ajuda, pois queria, e insistiu e insistiu até eu já não suportar vê-lo

à minha frente. Foi tudo o que aconteceu.

Por isso, Tom, diga-me o que se passa. Pode me contar...

Finalmente, percebendo que ela não iria desistir nunca, cedi, e Alice

caminhou a meu lado enquanto relutantemente lhe explicava o que

sucedera. Falei-lhe do grimoire e de Morgan querer que eu o roubasse e

que andava torturando o espírito do Pai. Depois contei-lhe que tínhamos

sido roubados e íamos agora à procura de Morgan.

Alice não ficou nada satisfeita com o que lhe contei, é o mínimo que

posso afirmar.

— Está dizendo que fomos nós dois à casa do Velho Gregory sem

mencionar o que tinha planejado? Nada de nada! Tencionava ir ao sótão

e não me disse. Não está certo, Tom. Olha que arrisquei a minha vida, e

merecia mais consideração. Muito mais!

— Desculpe, Alice. Peço mil desculpas. Mas só conseguia pensar no Pai e

no que Morgan estava lhe fazendo. Não raciocinava direito. Sei que devia

ter confiado em você.

— Agora já é um pouco tarde. Mesmo assim, acho que sei onde poderias

encontrar Morgan esta noite..

Olhei-a, espantado.

— É terça-feira — referiu Alice —, e nas noites de terça-feira ele faz

sempre a mesma coisa. Tem feito desde o final do Verão, sim. Há uma

capela na colina. Fica dentro do cemitério. Vêm pessoas de muito longe

e ele cobra-lhes dinheiro. Fui lá com ele uma vez. Ele faz os mortos

Page 524: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

falar. Não é padre mas tem uma congregação de fazer inveja a muitas

igrejas.

Lembrei-me da primeira vez que o encontrara —

quando recebera notícias sobre o Pai e ia a caminho de casa. Fora

também numa terça-feira. Eu trilhara pelo cemitério e ele saíra de

dentro da capela. Devia ter estado à espera de que a sua congregação

chegasse. Mandara-me também trazer-lhe o grimoire numa terça-feira

logo a seguir ao pôr do Sol. Mas onde é que eu tinha a cabeça? Por que

não somara dois e dois?

— Não acredita em mim? — perguntou Alice.

— Claro que acredito em você — disse-lhe. — Sei onde fica a capela. Já

estive lá antes.

— Nesse caso, por que não passa por lá a caminho de casa? — alvitrou

Alice. — Se eu estiver certa e ele se encontrar lá, pode ir avisar o Velho

Gregory. Talvez consiga chegar a tempo de apanhá-lo! Mas não se

esqueça de mencionar que fui eu que te disse onde ele estava. Talvez

isso o faça mudar de impressão a meu respeito. Não que tenha muita

esperança, porém.

— Venha comigo, sugeri-lhe. — Podia ficar vigiando enquanto eu iria

avisar o Mago. Assim, se não voltarmos a tempo saberemos para onde

ele foi.

Alice abanou a cabeça.

— Não, Tom. Por que haveria de fazê-lo depois do que aconteceu? Não

me agrada que não confiem em mim.

Não é bonito. De qualquer forma, você tem o seu trabalho e eu tenho o

meu. A loja tem estado com muito movimento. Trabalhei o dia todo, se

trabalhei, e agora vou aquecer-me à lareira, não passar o tempo a bater

o dente aqui no frio. Faça o que tem a fazer e deixe que o Velho Gregory

trate de Morgan. Mas não me meta nisto.

Dito aquilo, Alice deu meia volta e começou a descer a colina. Fiquei

desapontado e um pouco triste, mas não podia realmente culpá-la. Se eu

tivera segredos para com ela, por que haveria de me ajudar?

Entretanto, estava quase escuro e as estrelas começavam a brilhar no

céu. Então, sem perder mais tempo, escolhi um percurso que me levou

ao topo da charneca e dei a volta até no muro de pedra seca, no local

exato da mata onde o escalara naquela terça-feira à noite em que ia a

caminho da minha casa. Encostei-me no muro baixo e olhei na direção

Page 525: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

da capela. A luz de velas tremulava no vitral. Depois reparei em algo

muito para lá do cemitério.

Pontos dispersos de luz subiam a vertente na minha direção.

Lanternas! Os membros da congregação de Morgan aproximavam-se.

Apesar de não ter certeza, provavelmente ele estaria lá dentro, à espera

de que chegassem.

Virei-me então e segui por entre as árvores tomando imediatamente a

direção da casa do Mago. Tinha de ir buscar o meu mestre e trazê-lo a

tempo de apanhar Morgan. Mas não dera nem uma dúzia de passos

quando saiu alguém das sombras à minha frente. Uma figura

encapuzada com uma capa preta. Estaquei quando avançou para mim.

Era Morgan.

— Desiludiu-me, Tom — disse, a sua voz cruel e dura. — Pedi que me

trouxesse algo. Desiludiu-me tanto que tive de ir lá buscá-lo

pessoalmente. Não foi pedir muito, não é? Não quando estava tanto em

jogo.

Não respondi e ele aproximou-se mais um passo.

Virei-me para fugir, mas antes que me conseguisse mover, ele agarrou-

me pelo ombro. Debati-me por um instante e tentei erguer o meu

bordão para atingi-lo mas levei subitamente um soco forte na têmpora

direita. Ficou tudo escuro e senti-me cair.

Quando abri os olhos, encontrei-me na capela. Doía-me a cabeça e

sentia vontade de vomitar. Estava sentado na última fila de bancos com

as costas apoiadas na parede de pedra fria, virado para o confessionário.

De cada lado dele encontravam-se duas velas enormes.

Morgan estava sentado em frente do confessionário, virado diretamente

para mim.

— Bem, Tom. Tenho assuntos a tratar primeiro.

Mas falaremos disto depois.

— Tenho de regressar — disse-lhe, sentindo dificuldade em formar as

palavras. — Se não o fizer, Mr.

Gregory se perguntará onde estou.

— Deixe-o perguntar. Que importância tem o que ele pensa? Nunca mais

vai voltar. . Agora é meu aprendiz e tenho um trabalho para você fazer

esta noite.

Com um sorriso de triunfo, Morgan entrou no confessionário, usando a

entrada do padre à esquerda. Já não conseguia vê-lo. As velas

Page 526: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

projetavam a sua luz na direção da capela mas as duas entradas eram

retângulos completamente escuros.

Tentei levantar-me e fugir mas sentia-me fraco demais e as minhas

pernas ainda não funcionavam bem.

Sentia a cabeça a latejar e a visão turva depois do soco na cabeça, pelo

que só me restava permanecer ali sentado, a tentar dominar-me e

esperançado de que não fosse vomitar. Passados alguns momentos,

chegaram os primeiros membros da congregação de Morgan. Entraram

duas mulheres, ouvi o tinir de metal sobre metal. Não reparara antes,

mas havia uma bandeja de coleta em cobre do lado esquerdo da porta e

cada pessoa depositava nela uma moeda antes de ir ocupar o seu lugar.

Depois, sem um olhar na minha direção, mantendo as cabeças baixas,

sentaram-se num dos bancos da frente.

Os bancos começaram a encher-se mas reparei que todos os que

entravam na capela deixavam lá fora a sua lanterna. A congregação era

sobretudo constituída por mulheres — os poucos homens presentes

eram relativamente idosos. Ninguém falava. Aguardávamos em silêncio

à exceção do tinir das moedas e do ruído da bandeja. Por fim, quando a

maior parte dos lugares foi ocupada, a porta pareceu fechar-se sozinha.

Ou isso, ou alguém lá fora a puxara.

Agora a única luz provinha das velas de ambos os lados do

confessionário. Houve algumas tossidelas, alguém na frente pigarreou e

depois reinou um silêncio expectante em que não se ouvia sequer uma

mosca. Sucedeu exatamente o mesmo que no quarto escuro em Moor

View Farm. Tive a sensação de que os meus ouvidos iam arrebentar. De

repente, senti um arrepio. Avançava para mim uma friagem vinda do

confessionário. Morgan recorria ao poder que alcançara ao tentar invocar

Golgoth.

No silêncio, a voz de Morgan soou subitamente muito alto.

— Irmã minha! Irmã minha, está aí?

Em resposta, ouviram-se três pancadas sonoras no chão da capela, tão

fortes que todo o edifício pareceu estremecer, seguidas de um longo

suspiro entrecortado que veio do escuro da entrada do penitente.

— Deixe-me em paz! Dê-me descanso! — ouviu-se a súplica lamurienta

de uma garota. Pouco mais foi do que um murmúrio, mas cheio de

angústia, a origem da voz da garota novamente naquela entrada escura

do confessionário.

Page 527: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

A irmã de Morgan era uma apegada e encontrava-se sob o domínio dele.

Estava ali contrariada.

Ele estava a fazê-la sofrer mas a congregação não o sabia, e senti o

nervosismo, a expectativa e a excitação das pessoas à minha volta,

enquanto aguardavam que Morgan invocasse familiares e amigos que a

morte levara.

— Obedeça-me primeiro. Depois pode descansar!

— atroou a voz de Morgan.

Como se em resposta àquelas palavras, avançou do escuro uma forma

branca ficando emoldurada pela entrada da porta do penitente.

Conquanto Eveline se tivesse afogado por volta dos dezesseis anos, o

espírito dela parecia pouco mais velho do que Alice. O rosto, as pernas e

os braços à mostra eram tão brancos quanto o vestido que usava.

Colava-lhe ao corpo como se saturado de água e tinha o cabelo escorrido

e molhado. Provocou uma onda de espanto entre a congregação, mas o

que mais me atraiu foram os olhos dela. Eram grandes, luminosos e

absolutamente tristes. Nunca olhara para um rosto tão cheio de dor

como o do fantasma de Eveline.

— Estou aqui. O que quer?

— Há outros com você? Outros que desejem falar com alguém aqui

presente?

— Há alguns. Aqui perto está um espírito de criança que dá pelo nome

de Maureen. Gostaria de falar com Matilda, sua querida mãe..

Ante aquilo, uma mulher no banco da frente pôs-se em pé e estendeu os

braços em súplica. Parecia estar tentando falar mas o seu corpo tremia

de emoção e apenas soltou um gemido dos lábios. A figura de Eveline

retro-cedeu para o escuro e algo mais avançou.

— Mãe? Mãe? — exclamou uma nova voz feminina do compartimento do

penitente. Desta vez, pertencia a uma criança muito jovem. — Venha

aqui, Mãe. Por favor, por favor! Sinto tanto a sua falta. .

Então, a mulher saiu do seu lugar e começou a cambalear em direção ao

confessionário, ainda de braços estendidos. Houve uma súbita aspiração

de ar da congregação, e percebi imediatamente porquê. Via-se um vulto

pálido no escuro à direita da porta. Parecia uma menina, não mais de

quatro ou cinco anos de idade, com cabelo comprido a cair-lhe pelos

ombros.

— Dê-me a mão, Mãe! Por favor, dê-me a mão! — exclamou a criança e

uma pequena mão branca saiu do escuro da porta. Estendeu-se para a

Page 528: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

mulher, que caiu de joelhos e a agarrou, levando-a ansiosamente aos

lábios.

— Oh, a sua mãozinha está tão fria, tão gelada! —

exclamou a mulher e começou a chorar, os soluços e lamentos

angustiados enchendo toda a capela. Prolongou-se por longos minutos,

até finalmente a mão recuar para a entrada e a mãe voltar vacilante ao

seu lugar.

Depois, seguiu-se mais do mesmo. Umas vezes adultos, outras crianças,

materializaram-se na escuridão da porta do penitente. Houve vislumbres

de sombras de vultos, rostos pálidos e, mais raramente, uma mão

estendida para a vela. E registrou-se quase sempre uma forte reação

emocional do parente ou amigo que estabelecia contato.

Passado um tempo, comecei a sentir-me nauseado com o espetáculo,

desejando que terminasse. Morgan era um homem inteligente e

perigoso, usando o poder de Golgoth para aprisionar estes pobres

espíritos à sua vontade. Enquanto escutava a angústia dos vivos e o

tormento dos mortos, veio-me à idéia o tilintar do dinheiro ao cair na

bandeja de cobre da coleta.

Finalmente terminou. A congregação abandonou a capela em fila e a

porta fechou-se com força atrás deles, como se impelida por uma mão

invisível.

Morgan não deixou logo o confessionário, mas o frio começou

gradualmente a diminuir. Quando saiu e se abeirou de mim, havia

pérolas de suor na sua testa.

— Como está aquele meu pai depois de mandá-lo numa caçada inútil? —

perguntou Morgan com um sorriso cínico. — O velho tolo gostou do

passeio até Platt Farm?

— Mr. Gregory não é seu pai — afirmei com muita calma, levantando-

me, trêmulo. — O nome do seu verdadeiro pai é Edwin Furner, um

curtidor local. Todo mundo sabe a verdade mas você não a consegue

encarar.

Só diz mentira atrás de mentira. Vamos até Adlington perguntar a

algumas pessoas. Vamos perguntar à irmã da sua mãe — ela ainda vive

lá. Se todos afirmarem o mesmo, talvez então eu comece a acreditar em

você. Mas não creio que o façam. Você também é pai — o pai das

mentiras! E contou tantas que agora começa a acreditar nelas!

Lívido de raiva, Morgan desferiu um soco na minha direção. Procurei

esquivar-me mas continuava ainda meio grogue e as minhas reações

Page 529: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

eram lentas demais. O punho dele atingiu-me novamente a têmpora,

quase no mesmo lugar que da última vez. Caí, batendo com a nuca nas

pedras.

Desta vez não cheguei a perder a consciência, mas fui levantado do chão

e o rosto dele aproximou-se demais do meu. Senti o gosto a sangue na

minha boca e um dos meus olhos estava quase fechado, tão inchado que

mal conseguia ver por ele. Mas a expressão,no rosto de Morgan era

suficientemente explícita e não me agradou o que vi. Tinha a boca

torcida, os olhos brilhantes e furiosos.

Parecia mais o rosto de um animal selvagem do que de um homem.

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CAPÍTULO 19

ROUND LOAF

— Teve a sua oportunidade mas deixou-a escapar! No entanto, já

arranjei outra utilidade para você. De que não irá gostar! Vamos, leve

estas coisas! — resmungou Morgan, atirando algo na minha direção.

Era uma pá. Ainda mal a agarrara já estava me entregando um saco

volumoso, tão pesado que teve de me ajudar a pô-lo ao ombro. Depois

empurrou-me na direção da porta da capela e a seguir para o frio. Fiquei

ali a tiritar, procurando aguentar-me sob o peso do saco, sentindo-me

doente demais e fraco para fugir. Mesmo que o fizesse, tinha certeza de

que ele me alcançaria em segundos e seguir-se-ia outra sova. O vento

começava a soprar com força de nordeste com nuvens a acumular-se

para encobrir as estrelas. Parecia que ia nevar de novo.

Deu-me outro empurrão para que eu começasse a caminhar, depois veio

atrás, levando uma lanterna. Não tardamos a subir até ao topo da

charneca erma coberta de neve, deixando muito para trás as últimas

árvores dispersas. Não tinha outra escolha senão continuar a subir. Se

não me deslocasse com rapidez suficiente, receberia um empurrão nas

costas. Uma vez escorreguei e caí de bruços, largando o saco. Por causa

disso, levei um soco nas costelas, com tanta força que fiquei com pavor

de voltar a cair.

Ordenou-me que pegasse no saco e lá fomos subindo a custo pela neve

até eu perder qualquer noção do tempo. Mas, por fim, chegados ao alto

da charneca, mandou-me parar. Não muito lá à frente havia uma colina

demasiado lisa e arredondada, a sua cobertura de neve brilhando branca

à luz das estrelas que restava. Reconheci então o que era. Round Loaf, a

cripta que o Mago me indicara quando tínhamos ido tratar do demônio a

Owshaw Clough. O monte de terra de onde Morgan desenterrara

o grimoire.

Morgan fez um gesto para leste e empurrou-me à sua frente. A mais ou

menos uns duzentos passos havia um pequeno pedregulho. Quando lá

chegamos, ele mediu rapidamente dez passos para sul dele, enquanto

eu me perguntava quais as chances de conseguir agredi-lo com a pá e

tentar a fuga. Mas sentia-me ainda fraco e ele era maior e muito mais

forte do que eu.

Page 531: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Cave além! — ordenou, apontando para a neve.

Obedeci e não tardei a atravessar a camada de neve e a alcançar a terra

escura. O solo por debaixo da neve estava congelado e o avanço era

difícil. Perguntei-me se me estaria a obrigar a cavar a minha própria

sepultura, mas ainda não tinha chegado aos trinta centímetros quando a

pá bateu subitamente em pedra.

— Sucessivamente, os tolos têm escavado aquela cripta — referiu,

apontando na direção de Round Loaf. —

Mas nunca descobriram o que eu descobri. Existe uma câmara no fundo,

aqui por debaixo mas a entrada fica muito mais distante do que alguma

vez se desconfiaria. A última vez que desci lá foi na noite a seguir à

morte da minha mãe e tenho estado a tentar recuperar o meu livro

desde então! Agora limpe a pedra — temos muito trabalho pela frente!

Estava aterrado porque suspeitava agora que Morgan tencionava invocar

Golgoth naquela mesma noite.

Mas fiz o que ele me ordenou, e quando terminei, tirou-me a pá e,

usando-a como alavanca, esforçou-se por desencaixar a pedra e desviá-

la para o lado. Levou muito tempo, e quando finalmente conseguiu, a

neve começava a cair, o vento assobiando sobre a charneca e soprando

com cada vez maior intensidade. Vinha aí outra tempestade de neve.

Ergueu a lanterna por cima do buraco, e à sua luz vi degraus que

conduziam à escuridão lá em baixo.

— Comece a descer! — disse-me, erguendo o punho ameaçadoramente.

Estremeci e fiz o que me mandavam, Morgan segurando a lanterna

enquanto eu descia com cuidado, o peso do saco a dificultar-me o

equilíbrio. Eram ao todo dez degraus. Ao fundo deles, encontrei-me num

túnel estreito. No topo dos degraus, Morgan pousara a lanterna e estava

de novo a colocar a pedra. A princípio pensei que fosse ter dificuldade

em consegui-lo, mas acabou por voltar a assentar no lugar com uma

pancada surda, fechando-nos lá dentro como uma lápide encerra os

mortos.

Desceu os degraus trazendo a lanterna e a pá e mandou-me seguir na

frente, ao que obedeci.

Segurava a lanterna alto atrás de mim e ela projetava a minha sombra

lá à frente no túnel, que seguia em linha reta. O chão, as paredes e o

teto eram de terra e fora usada madeira em intervalos para escorar o

teto. Em dado ponto desabara, quase nos obstruindo o caminho, e tive

de tirar o saco antes de me comprimir para passar e arrastá-lo pelo

Page 532: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

estreito intervalo atrás de mim. O estado do túnel deixou-me nervoso.

Se o teto desabasse, seríamos enterrados vivos ou ficaríamos

aprisionados para sempre no subterrâneo. Tinha uma forte sensação do

peso enorme da terra por cima de nós.

Finalmente, o túnel desembocou numa grande câmara oval. Era imensa,

com as dimensões generosas de uma igreja razoável e as paredes e o

teto tinham sido construídos em pedra. Mas o mais extraordinário de

tudo era o chão. À primeira vista, julguei que fosse ladrilhado, mas

percebi depois que era um elaborado mosaico descrevendo todo o tipo

de criaturas monstruosas através do posicionamento cuidadoso de

milhares e milhares de pequenas pedras coloridas. Alguns eram seres

míticos sobre os quais lera no Bestiário do Mago, outros que vislumbrara

apenas em pesadelos: híbridos grotescos como o minotauro, metade

touro, metade homem; gigantescos vermes com longos corpos tortuosos

e mandíbulas vorazes; e um basilisco, uma serpente com patas, uma

cabeça em crista e olhos assassinos penetrantes. Cada um destes era

em si suficiente para disputar a minha atenção, mas havia algo mais que

de imediato prendeu o meu olhar. .

E que, mesmo no centro do chão, construído com pedras negras,

estavam três círculos concêntricos e dentro deles uma estrela de cinco

pontas. Soube imediatamente o que era e vi os meus piores receios

confirmados.

Tratava-se de um pentagrama, um dispositivo usado por um

esconjurador de onde lançava fórmulas ou invocava demônios malignos

do escuro. Mas este fora construído pelos primeiros homens que tinham

chegado a Anglezarke a fim de invocarem Golgoth, o mais poderoso dos

Deuses Antigos. E agora Morgan ia usá-lo.

Morgan parecia saber exatamente o que tencionava fazer e logo me pôs

a trabalhar, ordenando-me que limpasse o chão até reluzir, em

particular a seção central do mosaico que representava o pentagrama.

— Não deve haver nem a menor partícula de terra, senão pode correr

tudo mal! — advertiu-me.

Não me dei ao incômodo de perguntar o que queria dizer porque já

percebera tudo. Ele tencionava seguir o ritual mais mortífero

no grimoire. Ia invocar Golgoth enquanto nós ficávamos protegidos no

seu centro. A limpeza era vital porque a terra podia servir para

atravessar as suas defesas.

Page 533: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Existiam várias tinas grandes no fundo da câmara e uma delas continha

sal. No saco que eu carregara, entre outros artigos, incluindo

o grimoire, estava um frasco grande com água e uns panos. Servindo-

me de um pano molhado, teria de esfregar o mosaico com sal, depois

limpá-lo até ele se dar por satisfeito.

Pareceu-me ter levado horas naquilo. De tempos em tempos, olhava à

minha volta, tentando ver se haveria algo na câmara que viesse a

revelar-se útil para vencer Morgan e fugir. Mas ele devia ter abandonado

a pá no túnel porque nem sinal dela na câmara; também não havia mais

nada que eu pudesse usar como arma. Reparei então numa argola

grande de ferro na parede junto ao chão e perguntei-me qual a sua

utilidade. Parecia algo para amarrar um animal.

Quando terminei de limpar o chão, para meu horror, Morgan agarrou-me

de repente, arrastou-me para a parede, amarrou as minhas mãos com

força atrás das costas e prendeu o restante da corda à argola. Depois

dedicou-se com afinco aos preparativos. Senti o meu estômago às

voltas, ao perceber subitamente o que ia acontecer.

Morgan agiria do interior do pentagrama, protegido de algo que

aparecesse na câmara, ao passo que eu ficaria amarrado àquela argola

na parede sem qualquer defesa possível. Iria realizar-se alguma espécie

de sacrifício? Fora essa a finalidade inicial da argola? Depois lembrei-me

do que o Mago dissera a respeito do cão da fazenda. Quando Morgan

experimentara o ritual no seu quarto, o animal morrera de susto. .

Retirou do saco cinco velas pretas grossas que colocou mesmo na

extremidade de cada uma das pontas da estrela do pentagrama. Abriu

então o grimoire e, ao acender cada vela, leu no livro uma breve fórmula

encantatória.

Feito isso, sentou-se de pernas cruzadas mesmo no centro do

pentagrama e, mantendo o livro aberto, olhou diretamente para mim.

— Sabe que dia é hoje? — perguntou.

— É terça-feira — respondi.

— E a data?

Não falei e ele respondeu por mim.

— É o dia vinte e um de Dezembro. O Solstício de Inverno. O meio exato

do Inverno antes de os dias começarem gradualmente a aumentar. Por

isso vai ser uma noite longa. A noite mais longa de todo o ano. E quando

terminar, só um de nós sairá desta câmara — afirmou Morgan. — A

minha intenção é invocar Golgoth, o mais poderoso dos Deuses Antigos.

Page 534: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

E vou fazê-lo aqui no preciso lugar onde foi executado pelos antigos.

Esta cripta foi construída num ponto de enorme energia onde as linhas

convergem. Nada mais nada menos do que cinco delas intersectam-se

mesmo no centro do pentagrama onde estou sentado.

— Não será perigoso despertar Golgoth? — perguntei. — O Inverno pode

durar anos.

— E se durar? — inquiriu Morgan. — O Inverno é o meu tempo.

— Mas as sementeiras não crescerão. As pessoas morrerão de fome!

— E daí? Os fracos morrem sempre — respondeu Morgan. — Os fortes

herdam a terra. Com o ritual de invocação Golgoth não terá outra

escolha senão obedecer.

E ficará aprisionado aqui, dentro desta câmara, até eu o libertar.

Aprisionado até me dar o que quero.

— E o que é que quer? — perguntei. — O que pode justificar fazer mal a

tanta gente?

— Quero poder! O que mais dá valor à vida? O

poder que Golgoth me dará. A capacidade de gelar o sangue nas veias

de um homem. Matar com um olhar. Todos os homens me temerão. E,

nas profundezas de um longo e frio Inverno, quando eu matar, quem

saberá que tirei uma vida? E quem poderá prová-lo? John Gregory será o

segundo a morrer, mas não o último. E você morrerá antes dele. —

Morgan riu baixinho. — Você servirá de isca.

De engodo para atrair Golgoth aqui. Tive de me contentar com um cão

da última vez mas um ser humano é muito melhor. Golgoth roubará a

pequena centelha de vida do seu corpo e a acrescentará à dele. A sua

alma também. O

seu corpo e a sua alma se apagarão ambos num instante.

— Tem realmente certeza de que o pentagrama o protegerá? —

indaguei, tentando não pensar no que ele dissera, procurando lançar

alguma dúvida na sua mente.

— Os rituais têm de ser exatos. Se omitir algo ou pronunciar mal uma só

palavra que seja, pode não funcionar. E nesse caso, nenhum de nós

alguma vez sairá desta câmara.

Seremos ambos destruídos.

— Quem te disse isso? Aquele velho tolo do Gregory! — escarneceu

Morgan. — Seria de esperar. E sabe porquê? Porque lhe falta a coragem

para experimentar algo verdadeiramente ambicioso. Ele só sabe obrigar

aprendizes crédulos a abrir poços inúteis antes de voltá-los a encher!

Page 535: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Durante anos, tentou afastar-me disto. Até me obrigou a jurar à minha

mãe que nunca mais voltaria a tentar o ritual. O amor a ela manteve-me

preso a essa promessa, até a sua morte acabar por me libertar e ser

finalmente possível apoderar-me do que é meu! O Velho Gregory é meu

inimigo.

— Por que o odeia tanto? — demandei. — O que pode ele ter feito para

magoá-lo? Tudo o que ele fez foi com as melhores intenções. E de longe

muito melhor pessoa do que você e generoso demais também. Ele

ajudou a sua mãe quando o seu verdadeiro pai foi embora.

Ele deu-lhe um aprendizado e mesmo quando você se virou para o

escuro, poupou-o ao que realmente merecia.

Uma bruxa malévola não é pior do que você, e ela é aprisionada viva

num poço!

— Ele até pode ter feito isso, é verdade — contrapôs Morgan, a sua voz

calma e perigosa. — Mas agora é tarde demais. Tem razão. Odeio-o.

Nasci com um fragmento de escuridão na minha alma. Que foi crescendo

até eu ser o que vê hoje diante de si. O Velho Gregory é um servo da

luz, ao passo que agora eu pertenço completamente ao escuro. Por

causa disso, ele é meu inimigo natural. O escuro detesta a luz. Sempre

foi assim!

— Não! — exclamei. — Não precisa ser assim.

Você tem uma escolha. Pode ser o que quiser. Você amava a sua mãe. É

capaz de amar. Não tem de pertencer ao escuro, não entende? Nunca é

tarde demais para mudar!

— Poupe as suas palavras e cale-se! — retrucou Morgan, furioso. — Já

falamos demais. Está na hora de começar o ritual. .

Por um tempo fez-se silêncio e tudo o que ouvia era o bater do meu

próprio coração. Por fim, Morgan começou a entoar do grimoire, a sua

voz subindo e descendo de um modo rítmico, monótono que me fez

lembrar muito a forma como os padres por vezes rezam perante uma

congregação. A maior parte era em latim mas havia também palavras de

pelo menos uma língua que não reconheci. Continuou sem parar; não

parecia estar acontecendo nada. Comecei a alimentar esperanças de que

o ritual não fosse funcionar ou que ele cometesse um erro e Golgoth não

aparecesse. Mas não tardei a sentir que algo ia mudando.

Estava a ficar ligeiramente mais frio na câmara. A mudança era muito

lenta e gradual, como se algo muito grande estivesse se aproximando

mas tivesse uma boa distância a percorrer. Era aquele frio especial que

Page 536: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

sentira anteriormente ao redor de Morgan. O poder que retirara de

Golgoth.

Comecei a perguntar-me quais as minhas chances de ser salvo. Não

demorei muito a perceber que eram muito reduzidas. Ninguém tinha

conhecimento da entrada para o túnel. Apesar de eu ter escavado a

terra e posto a pedra a descoberto, as condições atmosféricas tinham-se

agravado e uma tempestade de neve não tardaria a cobri-la de novo. O

Mago não me encontraria, mas ficaria suficientemente preocupado para

vir à minha procura durante uma tempestade de neve? Se fosse à loja

de Andrew, talvez Alice lhe dissesse para onde eu tinha ido. Mas mesmo

que se dirigisse à capela, quais as chances de encontrar o meu bordão?

Ficara na mata do lado de fora da vedação; nesta altura estaria coberto

de neve.

Constatei que podia mover um pouco as mãos. Daria para alargar a

corda o suficiente para libertá-las? Comecei a tentar, unindo-as e

afastando-as, torcendo os pulsos e os dedos. Pelo menos Morgan não

conseguia detectar as minhas manobras. Estava ocupado demais a

entoar as palavras do ritual, mal fazendo sequer uma pausa quando

virava uma página do grimoire. Depois, quando olhei para ele, percebi

algo mais. Parecia haver sombras novas na câmara. Sombras que não

podiam ser explicadas pela posição das cinco velas. E a maioria das

sombras movia-se. Algumas eram como fumaça negra, outras né-

voas cinzentas ou brancas, contorcendo-se na orla exterior do

pentagrama, como se tentassem entrar.

O que eram? Tratar-se-iam de apegados, acidental-mente apanhados

pela força do ritual e trazidos até este lugar contra a sua vontade? Ou

talvez os espíritos daqueles que tinham sido enterrados na cripta e suas

proximidades. Qualquer das hipóteses era provável, pois era um ritual de

compulsão. E se reparassem em mim? Não poderiam alcançar Morgan:

ele estava protegido. E se percebessem a minha presença?

Mal aquele pensamento entrara na minha cabeça quando comecei a

ouvir tênues murmúrios a toda a minha volta. Era difícil captar o

significado do que proferiam, mas havia ênfase numa ou noutra palavra.

Ouvi duas vezes «sangue» e também a palavra «osso» e depois,

perfeitamente, o meu próprio sobrenome, «Ward».

Comecei a tremer de forma descontrolada. Estava com medo mas

combatia-o intensamente. O Mago dissera-me muitas vezes que o escuro

se alimentava do terror: o primeiro passo para derrotá-lo era enfrentar e

Page 537: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

derrotar o nosso próprio medo. Então tentei; seriamente que tentei, mas

era muito difícil porque não enfrentava o escuro munido das técnicas que

aprendera. Não me encontrava de pé, a agarrar um bordão de sorveira

ou a arremessar sal e ferro. Fora amarrado e feito prisioneiro,

completamente indefeso, enquanto Morgan realizava talvez o ritual mais

perigoso que um esconjurador alguma vez tentara.

E eu fazia parte desse ritual, uma centelha de vida que era oferecida a

Golgoth, para prendê-lo a este lugar. E

segundo Morgan, assim que aparecesse, se apoderaria não só da minha

vida mas também da minha alma. Sempre me convencera de que viveria

após a morte. Poderia tal ser-me negado? Conseguiria algo matar a

nossa própria alma?

Mas depois os murmúrios diminuíram gradualmente, as sombras

dissolveram-se e pareceu até ficar um pouco mais quente. As minhas

tremuras abrandaram e soltei um suspiro de alívio, mas Morgan

continuava a entoar e a virar as páginas. Comecei a pensar que a dada

altura ele cometeria um erro e falharia; rapidamente percebi que estava

enganado.

Em breve o frio voltou e com ele os espectros de fumaça, contorcendo-

se e agitando-se nos limites do pentagrama. E desta vez foi pior porque

reconheci um dos espectros. Tinha a forma de Eveline, com olhos

enormes e cheios de medo.

Os murmúrios intensificaram-se e estavam carregados de um ódio tão

intenso que quase lhe senti a amargura; coisas invisíveis rodopiavam em

volta da minha cabeça, passando tão perto que senti correntes de ar

baterem-me no rosto, levantando-me os cabelos no couro cabeludo. Em

breve a ameaça tornou-se mais substancial.

Dedos invisíveis puxavam-me o cabelo ou beliscavam-me a pele do rosto

e do pescoço, e um bafo frio e fedorento deslizou pela minha testa, nariz

e boca.

Novamente tudo se aquietou. Mas foi por pouco tempo. Mais uma vez, a

friagem aumentou e os espectros reuniram-se. E assim continuou,

minuto após minuto, hora após hora durante aquela noite mais longa do

ano.

Mas os períodos de paz e calma eram cada vez mais pequenos; os

tempos de medo maiores. Havia um ritmo no que estava a acontecer. O

ritual ia ganhando poder. Era como as ondas de uma maré a subir vindo

rebentar numa praia rochosa e íngreme. Cada onda era mais furiosa e

Page 538: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

intensa do que a que a precedera. Cada uma avançava mais pelos

seixos. E, a cada pico de atividade, o tumulto intensificava-se. As vozes

gritavam nos meus ouvidos e círculos sinistros de luz purpúrea andavam

agora de roda do pentagrama próximo do teto da câmara. E então,

finalmente, após o que pareceram horas de Morgan a entoar

do grimoire, lá conseguiu o que se propusera fazer.

Golgoth obedecera ao seu chamado.

Page 539: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 20

GOLGOTH

Por longos minutos aterradores ouvi Golgoth aproximar-se. O próprio

solo começou a tremer e parecia que algum gigante furioso subia em

direção a nós das entranhas da terra. Um gigante com garras imensas

que dilacerava rocha sólida na sua ansiedade de abrir caminho à força

até à câmara.

Se eu estivesse na pele de Morgan, teria ficado apavorado,

simplesmente petrificado do susto, incapaz de articular outra palavra. Ou

teria suspenso o ritual porque era uma loucura prosseguir. Mas ele não o

fez. Morgan continuou simplesmente a ler do grimoire. Rendera-se ao

escuro, procurando o poder por que ansiava, fosse a que custo fosse.

Apesar dos ruídos ameaçadores lá das profundezas, deixara de soprar

qualquer vento, mas as cinco velas pretas começaram a tremular e

quase se apagaram. Perguntei-me qual a sua importância para o ritual.

Eram uma parte vital das defesas do pentagrama? Parecia muito

provável: se se apagassem, ele ficaria tão inseguro quanto eu.

As velas voltaram a tremular, mas nem o menor sinal de medo da parte

de Morgan. Estava completamente absorto no ritual e ia entoando

do grimoire, alheio ao perigo.

O solo começou a tremer com maior violência e vinham mais sons altos

e perturbadores lá de baixo. Nesta altura, havia tantos espectros

reunidos à volta do pentagrama que se fundiam numa névoa

turbilhonante cinzenta e branca e as suas formas individuais já não se

distinguiam. Um vórtice de energia pressionava a barreira invisível que

assinalava o perímetro do pentagrama e ameaçava ceder a qualquer

momento.

Mais alguns momentos e tal teria sucedido — tenho certeza. Mas ocorreu

algo que expulsou os espectros da câmara e provavelmente para o lugar

de onde vinham.

Ao começarem a cair pequenas pedras do teto, ouviu-se um ronco,

juntamente com uma cacofonia de som tangente e triturante, e olhei

para a minha direita, na direção do túnel que nos trouxera até à câmara.

Vi uma avalanche de terra quando o teto desabou, fechando-nos lá

dentro, lançando uma profusão de detritos e poeira para o lado de fora.

Page 540: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Desânimo dos desânimos, o túnel estava agora completamente

bloqueado. Acontecesse o que acontecesse então, ficaria aprisionado ali

para sempre.

Naquele momento, a morte quase teria sido bem-vinda: pelo menos

assim a minha alma sobreviveria.

Porque eu sabia que, muito em breve, Golgoth chegaria e o meu corpo e

a minha alma seriam ambos destruídos. Eu seria aniquilado. E o medo

que senti então deixou todo o meu corpo a tremer.

Mas, muito subitamente, registrou-se uma mudança. Sem aviso, Morgan

parou de entoar e pôs-se em pé.

Os seus olhos arregalaram-se de terror e largou o livro.

Dirigiu-se para a beira do pentagrama: deu um passo na minha direção

e escancarou a boca. Os seus olhos estavam cheios de medo.

A princípio, convenci-me de que tentava falar ou gritar. Agora entendo.

Refletindo, percebo que estava simplesmente a tentar respirar.

Tinham se formado cristais de gelo dentro dos seus pulmões e aquele

passo foi o último que deu. Abrir a boca foi o derradeiro movimento

consciente que fez. Ficou imobilizado à minha frente. Literalmente

congelado, coberto da cabeça aos pés de uma película branca de gelo.

Depois tombou para a frente e, no momento em que a testa, os braços e

os ombros dele bateram no solo, partiu-se como uma estalactite de gelo.

Era como vidro frágil a desfazer-se em estilhaços. Morgan partira-se,

pulverizara-se, mas não brotou sangue porque estava congelado mesmo

até ao âmago do seu ser. Agora estava morto.

Morto e bem morto.

Presumo que tenha cometido um erro caro durante o ritual e Golgoth

materializara-se dentro do pentagrama para matar o necromante ali

mesmo. Por ora, registrava-se uma presença latente dentro dos três

círculos concêntricos. Apesar das cinco velas a tremular não a conseguia

ver mas sabia que estava ali, e sentia olhos frios hostis a me fitar do

pentagrama logo na minha direção.

Senti o desespero de Golgoth em sair. Uma vez fo-ra dele, ficaria livre

para impor a sua vontade ao Condado; livre para o mergulhar em

décadas de Inverno gélido. As chamas das velas voltaram a dançar como

se estivessem a ser bafejadas por um sopro invisível mas eu não podia

fazer nada. Estava apavorado. O que podia eu fazer para salvar o

Condado? Absolutamente nada: estava amarrado à argola de ferro à

espera do meu próprio destino.

Page 541: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Naquele momento, Golgoth dirigiu-se a mim do pentagrama. .

— Jaz um tolo morto à minha frente. É também tolo?

A voz dele encheu a câmara, ecoando de cada canto seu. Era como um

vento agreste, enchendo de neve as sinistras alturas de Anglezarke.

Não respondi e a voz de Golgoth voltou a ouvir-se, desta vez mais baixa

e áspera, como uma lima grossa a raspar num balde de metal.

— Tem uma língua, mortal? Fale, senão congelo-a e parto-a como fiz ao

tolo!

— Não sou tolo — respondi, os meus dentes começando a bater de medo

e frio.

— Apraz-me ouvir isso. Porque se é de fato abençoado com a sabedoria,

então, antes desta noite terminar, elevar-te-ia para lá do ponto mais alto

desta terra.

— Sou feliz como estou — repliquei.

— Sem a minha ajuda, perecerá aqui. É a morte que pretende? Isso te

fará feliz?

Não respondi.

— Só tem de retirar uma vela do círculo. Apenas uma vela.

Faça isso e eu serei livre e você viverá.

Preso à argola, encontrava-me a vários metros da vela mais próxima,

por isso não sabia como queria ele que eu a alcançasse. Mesmo que

fosse possível, não o teria feito. Não podia salvar a minha vida a custa

das milhares de pessoas que sofreriam no Condado.

— Não! — disse. — Não o farei.

— Apesar de aprisionado nos limites deste círculo, ainda posso te

alcançar. Deixe-me mostrar. .

O frio começou a irradiar do pentagrama, o mosaico embranquecendo

com o gelo. Foi-se formando um padrão de cristais de gelo até que

comecei a sentir o frio a subir do chão pela minha carne, principiando a

entorpecer-me até aos ossos. Recordei o aviso de Meg quando saíra de

casa: «. .proteja-se bem do frio. As queimaduras podem fazer cair os

dedos.»

O frio mais intenso atacava-me as costas, junto às minhas mãos, no sítio

onde estavam presas à argola e, à medida que o frio me atacava a

carne, imaginei os meus dedos gelados com o sangue já sem circular, a

ficar enegrecidos e quebradiços, prontos a partir-se como os ramos

mortos de um tronco moribundo. Senti a minha boca abrir-se para

Page 542: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

gritar, o ar frio a arranhar-me a garganta por dentro. Pensei na Mãe.

Agora nunca mais a voltaria a ver.

Mas, subitamente, tombei para o lado, afastando-me da argola de ferro.

Olhei para trás e vi que estava em pedaços no fundo da parede. Golgoth

congelara-a e fragmentara-a a fim de me libertar. Fizera-o para que eu

pudesse cumprir a sua ordem. Voltou a falar comigo do pentagrama,

mas desta vez a sua voz pareceu-me mais fraca.

— Retire a vela. Faça-o agora senão roubarei mais do que a sua vida.

Destruirei também a sua alma. .

Aquelas palavras encheram-me de um gelo maior do que o frio que

partira a argola de ferro. Morgan não se enganara. A minha própria alma

estava em risco. Mas, pa-ra salvá-la, bastava obedecer. Continuava com

as mãos amarradas atrás das costas e não tinha qualquer tato. Mas

podia ter-me levantado, avançado para a vela mais próxima e derrubá-

la. Mas pensei naqueles que sofreriam por causa do que eu fizesse. O

próprio frio intenso do Inverno mataria primeiro os velhos e os jovens.

Os bebês morreriam nos berços. Mas a ameaça seria ainda maior. As

sementeiras não cresceriam e não haveria colheitas no próximo ano. E

por quantos anos mais? Não haveria nada para alimentar o gado.

Grassaria a fome. Milhares perece-riam. E a culpa seria toda minha.

Derrubar a vela salvaria a minha própria vida. Salvaria também a minha

alma. Mas o meu primeiro dever era sempre para com o Condado. Podia

nunca mais tornar a ver a Mãe, mas se libertasse Golgoth, alguma vez

conseguiria voltar a encará-la? Sentiria vergonha de mim e eu não

suportaria isso. Custasse o que custasse, tinha de fazer o que estava

certo. Mais valia não ser nada do que viver com a culpa!

— Não o farei — disse a Golgoth. — Prefiro morrer aqui do que libertá-lo.

— Então morra, tolo! — respondeu Golgoth, e imediatamente o frio

começou a intensificar-se. Então fechei os olhos e esperei pelo fim,

enquanto sentia o meu corpo ficar entorpecido. Curiosamente, já não

tinha medo. Enchi-me de resignação. Aceitei o que estava prestes a

acontecer.

O frio deve ter-me feito desmaiar porque depois só me lembro de abrir

os olhos.

Reinavam o silêncio e o sossego na câmara e o ar estava muito mais

quente. Para meu alívio, Golgoth fora embora. Já não sentia a presença

dele. Mas por que não levara por diante a sua ameaça?

Page 543: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

O pentagrama estava intacto e as cinco velas continuavam todas acesas.

Conseguia ver lá dentro uma figura deitada de bruços. Reconheci Morgan

pela capa. Desviei rapidamente o olhar. O branco fora substituído por

vermelho. Os pedaços de Morgan tinham começado a descongelar.

Para meu espanto, continuava vivo. Mas por quanto tempo? Estava

preso. Em breve as velas chegariam ao fim e se apagariam e ficaria

mergulhado na escuridão para sempre.

Queria viver e, de repente, comecei a lutar desesperadamente com a

corda. Já não me encontrava preso à argola de ferro mas mantinha as

mãos amarradas atrás das costas. Sentia-as dormentes mas a circulação

retomava-se.

Se ao menos as conseguisse soltar, poderia usar as velas uma de cada

vez. Isso me daria horas de luz de vela para trabalhar. A passagem

estava bloqueada mas podia escavar com as próprias mãos. Valia a pena

tentar. A terra estaria mole. E talvez nem todo o túnel se encontrasse

obstruído.

Até podia acabar por encontrar a pá!

Durante alguns momentos enchi-me de esperança.

Mas a corda não cedia e as minhas tentativas de libertação pareciam

deixá-la ainda mais apertada. A minha lembrança recuou vários meses,

até à Primavera, quando me tornara aprendiz do Mago. Lizzie dos Ossos

amarrara-me num poço tencionando matar-me e usar os meus ossos

para a sua magia negra. Também me debatera, mas não conseguira

escapar. Fora Alice quem me salvara, usando uma faca para me libertar.

Como desejava poder chamar por Alice naquele momento! Mas não

podia. Estava sozinho e ninguém sabia sequer onde eu me encontrava.

Dali a um tempo, cessei o meu esforço frenético para me libertar. Deitei-

me, fechei os olhos e tentei reunir forças para um derradeiro esforço. Foi

então, enquanto permanecia deitado, completamente imóvel, a minha

respiração quase normal, que me lembrei de repente das velas do

pentagrama. Podia usar a chama de uma delas para queimar a corda

que me amarrava! Por que não pensara nisso antes? Sentei-me

rapidamente. Tinha agora uma chance concreta de ficar livre. Mas foi

nesse momento que ouvi um ruído vindo da direção do túnel bloqueado.

O que poderia ser? Teria afinal o Mago tomado conhecimento e vindo em

meu socorro? Mas não me parecia uma pá. Era mais um ruído de

arranhar, como se algo a cavar na terra caída. Poderia ser uma

ratazana? O

Page 544: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

ruído estava a aumentar. Poderia ser mais do que uma?

Uma família de ratazanas que vivia nas profundezas da cripta? Dizia-se

que as ratazanas comiam tudo. Havia até histórias de ratazanas que

roubavam bebês recém-nascidos dos berços. E se sentissem o cheiro de

carne humana? Quereriam comer os pedaços do corpo morto de

Morgan? E depois? Se virariam para mim? Me ataca-riam enquanto ainda

estava vivo?

O ruído tornou-se mais forte. Algo escavava no túnel bloqueado em

direção à câmara. Algo abria caminho através da terra. O que poderia

ser? Observei, fascinado mas aterrorizado, quando apareceu um

pequeno buraco mais ou menos na metade entre o teto e o chão da

câmara e a terra resvalou dele, caindo para a beira do chão de mosaicos.

Senti uma corrente de ar que fez tremular as velas. Apareceram duas

mãos mas não eram humanas. Vi dedos alongados e, em vez de unhas,

dez garras curvas que tinham aberto caminho pela terra até à câmara.

Por isso, antes mesmo de a cabeça aparecer, sabia exatamente quem

era.

Não sei como, a lâmia selvagem fugira da cave do Mago e cheirara-me.

Marcia Skelton viera atrás do meu sangue.

Page 545: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 21

A ARMADILHA

A lâmia selvagem puxou o corpo pelo buraco e desceu correndo para o

chão de mosaico. Ouvi-a farejar duas vezes, mas não olhava para mim.

Correndo nos quatro membros com a cabeça baixa e o cabelo preto

comprido e gorduroso a arrastar pelo chão, avançou até à beira do

pentagrama, as garras provocando um ruído agudo ao rasparem no

mármore. Estacou e ouvi-a farejar sonoramente ao mesmo tempo que

olhava para o que restava de Morgan.

Mantive-me muito quieto, quase não conseguindo acreditar que ela não

me atacasse logo. Morgan acabara praticamente de morrer, mas tudo

me levava a crer que ela fosse preferir o sangue fresco de uma pessoa

viva. E ouvi então outro barulho vindo do túnel. Algo mais se

aproximava. . Apareceram de novo duas mãos mas estas tinham dedos

humanos com unhas em vez de garras afiadas.

Quando surgiu a cabeça, bastou um olhar para saber quem era. Vi os

malares salientes, os olhos azuis vivos e o cabelo cinza-prateado. Era

Meg.

Saiu de lá, sacudiu-se e avançou na minha direção.

Devia ter deixado os sapatos bicudos do outro lado, mas o som dos pés

descalços ao aproximar-se era assustador.

Não admirava que a lâmia selvagem tivesse mantido a distância. Meg

queria-me só para si, e depois de tudo o que acontecera, não podia

esperar qualquer misericórdia.

Ajoelhou a uma distância alcançável e os seus lábios alargaram-se num

sorriso sinistro.

— Está apenas a um passo da morte — referiu Meg, aproximando-se

mais e escancarando a boca até eu lhe conseguir ver os dentes alvos,

ávida por me morder.

Senti o seu hálito no meu rosto e pescoço e comecei a tremer. Mas

depois ela baixou-se e, para minha surpresa, roeu a corda que me

prendia as mãos.

— Poucos humanos estiveram tão perto de uma bruxa lâmia e

escaparam com vida — disse-me, antes de se levantar. — Considere-se

um sortudo!

Page 546: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Fiquei ali sentado a olhá-la, boquiaberto. Sentia-me fraco demais para

me mexer.

— Levante-se, rapaz! — ordenou. — Não temos a noite toda. John

Gregory está à sua espera. Ele vai querer saber o que estava

acontecendo aqui em baixo.

Pus-me em pé, tremulo, e fiquei ali durante alguns momentos, sentindo-

me fraco e nauseado, receando desfalecer. Por que haveria ela de me

ajudar? O que acontecera entre o Mago e Meg? Levara-lhe comida.

Tinham tido longas conversas. Estaria a fazê-lo porque o Mago lhe

pedira? Haviam voltado a ser amigos?

— Vá buscar o grimoire — mandou Meg, apontando na direção do

pentagrama. — Eu não posso entrar naquele círculo, nem tão pouco

pode Marcia...

Dei um passo em direção ao pentagrama mas estaquei ao ver o livro.

Estava em cima de uma poça de sangue. Não suportava pegar-lhe e de

qualquer forma ficara estragado. Vislumbrei então os restos de Morgan e

o meu estômago agitou-se. Baixei a cabeça, tentando apagar a imagem

da minha mente. Não queria voltar a vê-lo num pesadelo.

— Faça o que te digo, vá buscar o grimoire! — ordenou Meg, levantando

ligeiramente a voz. — John Gregory não te agradecerá por o deixar aqui

para que mais alguém o encontre um dia.

Fiz o que mandavam e entrei no pentagrama. Baixei-me e apanhei o

livro. Estava úmido e pegajoso de sangue. Senti o cheiro e o meu

estômago agitou-se e nauseou-se mais uma vez. Fiz um esforço enorme

para não vomitar e abandonei o pentagrama, pegando na vela mais

próxima. Não me agradava a idéia de voltar a entrar no túnel escuro

acompanhado de duas bruxas lâmia.

Provavelmente, a remoção da vela quebrara o poder do pentagrama e

pensei que Marcia fosse entrar nele para se alimentar. Mas pouco depois

de farejar na direção do corpo, afastou-se. Meg seguia na dianteira com

Marcia em algum lugar atrás de mim. Só esperava que não estivesse

próximo demais dos meus calcanhares. Saímos para a luz pálida que

antecede a alvorada. A tempestade passara, mas continuava a nevar

ligeiramente. O Mago aguardava precisamente do lado de fora da

entrada e baixou-se, estendendo-me a mão. Atirei a vela preta para a

neve e agarrei a sua mão esquerda com a minha; puxou-me lá para

fora. Logo a seguir apareceu a lâmia selvagem, que saiu para a neve.

Page 547: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Abri a boca para falar mas o meu mestre levou um dedo aos lábios a

impor silêncio.

— Tudo a seu tempo. Pode me contar depois —

disse ele. — Morgan está morto?

Anuí e baixei a cabeça.

— Bem, esta pode ser a sua tumba — referiu o Mago.

Com aquelas palavras, afastou-se e agarrou na extremidade da pedra,

posicionando-a. Equilibrou-a sobre a entrada do buraco e quando se deu

por satisfeito, deixou-a cair. Feito isso, ajoelhou e, usando as mãos,

começou a cobrir a pedra com terra solta e neve. Dando-se por

satisfeito, pôs-se em pé.

— Dê-me o livro — ordenou o Mago.

Entreguei-lho, satisfeito por me livrar dele. O Mago pegou nele e olhou

para a capa. Quando o transferiu para a outra mão, ficaram manchas de

sangue nos seus dedos.

Abanando a cabeça, triste e cansado, começou a afastar-se das

elevações da charneca rumando para sua casa de Inverno. Sempre que

eu olhava por cima do ombro via que as duas bruxas lâmia vinham logo

atrás.

Uma vez em casa, o Mago conduziu-me à cozinha, alimentou a lareira

com carvão e, enquanto as chamas ganhavam vida, começou a preparar

o desjejum. Ainda me ofereci para ajudar mas ele indicou-me a minha

cadeira.

— Recupere as suas forças, rapaz — disse-me. —

Passou por muita coisa. Mal senti o cheiro dos ovos a serem cozinhados

e do pão a torrar fiquei muito melhor.

Meg e a irmã tinham-se retirado para a cave mas não queria falar delas.

Era melhor o Mago contar-me o sucedido quando entendesse. Em breve

estávamos ambos à mesa a devorar pratadas de ovos e torradas. Por

fim, sentindo-me reconfortado, limpei o prato com o pão e recostei-me

na cadeira.

— Bem, rapaz, sente-se em condições de falar? Ou deixamos para mais

tarde?

— Gostaria de resolver isto já — respondi. Sabia que mal lhe contasse

tudo o que acontecera me sentiria muito melhor. Seria o primeiro passo

para tirar todo o peso dos ombros.

— Nesse caso, comece pelo princípio e não omita nada! — afirmou o

Mago.

Page 548: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Segui à risca as instruções dele, começando pela conversa que tivera

com Alice na colina, em que ela me dissera onde encontrar Morgan, e

terminando no clímax do ritual — a chegada de Golgoth e as ameaças

que ele me fizera depois da morte de Morgan.

— Calculo que Morgan tenha cometido um erro —

referi. — Golgoth apareceu dentro do pentagrama.

— Não, rapaz — respondeu o Mago, abanando a cabeça, pesaroso —, ele

deve ter recitado o ritual palavra por palavra. Sabe, a culpa foi minha.

Tenho o sangue de Morgan nas minhas mãos.

— Não entendo. O que quer dizer? — perguntei.

— Eu devia ter tratado dele antes, quando tentou invocar Golgoth em

todos aqueles anos — disse o Mago.

— Já nessa altura Morgan era muito perigoso e irrecuperavelmente

perdido mesmo. Eu sabia e devia tê-lo metido num poço, mas a mãe

dele, Emily, pediu-me e suplicou-me que não o fizesse. Ele queria poder

e mostrava-se amargo e distorcido pela raiva, mas ela acreditava que

isso se devia ao fato de a vida ter sido má com ele e lhe ter faltado um

pai para o orientar. Senti uma certa pena do rapaz e cuidei da mãe dele,

deixando que o coração mandasse na minha cabeça. Mas, lá no fundo,

sabia que ele não sentia a falta de um pai. Tanto Mr. Hurst como eu

tentamos sê-lo para ele. Não, o que lhe faltava realmente era a

disciplina para ser um mago, a coragem e a perseverança para dedicar a

vida a uma arte que traz muito pouco em termos de recompensas

mundanas. Mas, ao invés de castigá-lo por tentar invocar Golgoth, pus

simplesmente fim ao seu aprendizado e obriguei-o a jurar-me e à mãe

que não iria atrás de Golgoth nem do grimoire.

«Expulso e sem ofício, Morgan procurou poder e riqueza através da

necromancia e virou-se para o escuro.

Sabia que todos os invernos a tentação do poder de Golgoth aumentaria,

acabando por se tornar avassaladora para ele. Então, preparei-lhe uma

armadilha, mas só se ele tentasse realmente invocar o Senhor do

Inverno é que essa armadilha seria ativada.

— Armadilha? Qual armadilha? Não entendo.

— Ele sempre foi preguiçoso no que tocava aos estudos — contou o

Mago, cofiando pensativamente a barba. — A língua era o seu ponto

fraco e nunca aprendeu cuidadosamente o vocabulário de latim. Era pior

ainda nas outras línguas. Começou a aprender a Prosa Antiga no terceiro

ano. Era a língua falada pelos primeiros homens que chegaram ao

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Condado, aqueles que construíram Round Loaf e veneraram Golgoth.

Aqueles que escreveram o grimoire. Ele não foi muito longe. Sabia

pronunciá-la, ler a Prosa Antiga em voz alta, mas havia graves lacunas

nos seus conhecimentos.

«Sabe, rapaz, eu não podia correr quaisquer riscos.

O nosso primeiro dever é sempre para com o Condado.

Então, há alguns anos, mandei copiar o grimoire. O texto original foi

destruído e a nova versão encadernada dentro da capa original. Houve

várias trocas de palavras no livro para tornar os rituais inúteis. Mas só

foi efetuada uma mudança no ritual de Golgoth. A palavra wioutan, que

significa «fora» ou «exterior», foi substituída por wioinnan, que significa

«dentro»...

— Então foi por isso que Golgoth apareceu dentro do pentagrama —

afirmei, espantado com a armadilha do Mago. Guardara aquele segredo

durante anos.

— Não confiava em Morgan, de modo que lhe preparei um ardil por via

das dúvidas. Deu-me muito trabalho mandar copiar e alterar

o grimoire, mas, como te disse, o nosso dever é proteger o Condado.

Emily sabia o que eu fizera, mas tinha muito mais fé nele do que eu.

Achava que mudaria de atitude e nunca mais tentaria invocar Golgoth.

Ele jurou-lhe, e eu fui testemunha desse juramento. Nunca escondi onde

estava o grimoire. Aquela escrivaninha esteve sempre à vista e Morgan

sabia onde vir, e acabei por constatar que eu tinha razão. Teria vindo

buscá-lo há anos mas o juramento à mãe impedia-o. Assim que soube

que ela morrera, temi o pior e percebi por que Morgan me contatara lá

em Chipenden. .

Seguiu-se um longo silêncio e o Mago voltou a co-fiar a barba,

meditando.

— O que aconteceu no fim? — inquiri. — Por que Golgoth não me

matou? Por que foi simplesmente embora?

— Depois de ser invocado, o seu tempo dentro do pentagrama era

limitado. Cada momento que permanecesse ali estaria a enfraquecer.

Acabou por ter de partir.

Claro, se o tivesse deixado sair, as coisas seriam muito diferentes. Ele

seria livre de vagar pelo Condado, que teria sido assolado por um

Inverno sem fim. Portanto, agiu bem, rapaz. Fez a sua obrigação e não

se pode exigir mais do que isso.

— Como foi que me encontrou? — indaguei.

Page 550: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Nesse aspecto, os seus primeiros agradecimentos devem ir para a

garota. Como vi que não regressava, vim falar com Andrew e soube a

que horas tinha saído da loja. Foi a sua amiga Alice que me contou onde

havia ido.

Ela queria vir ajudar a te procurar, mas eu não a deixei.

Trabalho melhor sozinho — dispenso uma garota a seguir-me os passos.

Quase tivemos de amarrá-la a uma cadeira para não vir atrás de mim.

Quando cheguei, soprava uma tempestade de neve de nordeste e a

capela estava deserta. Ainda procurei em volta do cemitério, mas não

me demorei muito. Só havia uma pessoa a quem recorrer então. A única

que te poderia encontrar naquelas condições.

«Meg não tardou a lhe farejar. Encontrou o seu bordão na mata no topo

da colina e seguiu o seu rastro até à cripta. Não tardou muito a

encontrar a entrada, mas quando levantei a pedra, o túnel estava

bloqueado. Então, foi Marcia que abriu caminho até você. Já são três a

merecer os seus agradecimentos.

— Três bruxas — frisei.

O Mago ignorou-me.

— De qualquer forma, Alice irá voltar para casa de Andrew, conforme

esperava. Quanto a Meg e à irmã, a partir de agora permanecerão lá em

baixo nas escadas da cave, por detrás do portão — mas não ficará

trancado.

— Nesse caso, o senhor e Meg voltaram a ser amigos? — Não, a situação

não é a mesma que quando nos conhecemos. Gostaria de fazer voltar o

tempo atrás, mas isso não é de todo possível. Sabe, rapaz, chegamos a

um acordo. A situação não pode ficar como está, mas falaremos mais do

assunto depois de descansar.

— E o Pai? — perguntei. — Ele ficará bem agora?

— Ele foi um bom homem e agora que Morgan morreu e o seu poder se

quebrou, o seu pai não deveria ter nada a temer. Absolutamente nada.

Ninguém sabe exatamente o que acontece depois de morrermos —

afirmou o Mago, soltando um suspiro. — Se soubéssemos, não existiriam

tantas religiões diferentes a dizerem todas coisas diferentes e a julgarem

todas que têm razão. A meu ver não interessa qual delas siga. Ou

mesmo se caminha sozinho e toma o seu próprio rumo. Desde que viva

a vida como deve ser e respeite a crenças dos outros como o seu pai te

ensinou, decerto não estará muito longe da verdade. Ele irá encontrar o

caminho através da luz, sim. Não há necessidade de se preocupar com

Page 551: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

isso. E, por agora, chega de conversa. Teve uma noite longa e difícil, por

isso vá se deitar algumas horas.

Mas fiquei na cama mais do que algumas horas.

Desenvolvera uma febre muito alta e o médico veio três vezes de

Adlington antes de ficar finalmente satisfeito por eu estar em vias de

melhorar. Na verdade, decorreu mais outra semana antes de me

encontrar em condições de ir novamente lá abaixo, com a maior parte

das horas do dia passadas embrulhado num cobertor diante da lareira do

gabinete de trabalho.

O Mago também não exigiu muito de mim nas lições, e decorreu mais

uma semana inteira depois disso até me encontrar de fato apto a descer

a Adlington e ver Alice. Estava sozinha na loja. Como não havia

fregueses, tivemos tempo para uma longa conversa. Falamos na loja,

encostados ao balcão de madeira vazio.

Enquanto estivera doente, o Mago fora lá de visita e ela estava a par de

quase tudo o que sucedera. Portanto, eu só tinha de preencher os

pormenores e pedir mais uma vez desculpa por ter ocultado os fatos.

— De qualquer forma, Alice, obrigado por dizer ao Mago que eu tinha ido

à capela. Caso contrário, nunca teriam me encontrado — afirmei,

chegando então ao fim na minha história.

— Só gostaria que tivesse confiado mais em mim, Tom. Devia ter me

contado muito antes o que Morgan andava a fazer ao seu pai.

— Desculpe — disse-lhe. — No futuro não lhe esconderei nada. .

— Nunca irei cair nas boas graças do Velho Gregory, não é? Ele não

confia nem um pouco em mim!

— Ele tem muito melhor opinião de você do que antes — referi. — Dê-

lhe tempo, é tudo.

— Mas, na Primavera, quando voltar para Chipenden, vou ter de ficar

aqui. Quem me dera ir com você...

— Julguei que gostasse de trabalhar na loja de Andrew.

— Podia ser pior — redarguiu Alice —, mas Chipenden é muito melhor.

Gosto de estar naquela casa grande com o seu jardim. E vou sentir a sua

falta, Tom.

— Também vou sentir a sua, Alice. Mas pelo menos não está em Pendle.

De qualquer forma, no próximo Inverno voltaremos e tentarei vir visitar-

te mais vezes.

— Isso seria bom — afirmou Alice.

Page 552: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Daí a um tempo animou-se e finalmente, quando me preparava para

sair, ela pediu-me que fizesse algo.

— Na manhã em que partir para Chipenden, pedirá ao Velho Gregory se

me leva também?

— Pedirei. Mas não creio que vá servir de nada, Alice.

— Mas vai lhe pedir, não vai? Ele não se vai irritar com você, não é?

— Não se preocupe. Vou lhe pedir.

— Promete?

— Prometo — respondi com um sorriso. Antes, já me metera em

confusão por fazer promessas a Alice, mas desta vez não haveria grande

mal. Na pior das hipóteses, o Mago podia simplesmente recusar.

Page 553: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

CAPÍTULO 22

É MELHOR ASSIM

Apesar de ter sido um Inverno frio, decorridas três semanas sobre a

morte de Morgan o tempo estava muito mais quente e iniciou-se o

degelo. Deste modo, foi possível a Shanks efetuar a primeira entrega

desde há uma eternidade. Como sempre, ajudei-o a descarregar, mas

quando foi embora, o Mago seguiu-o por um bom tempo pela ravina

abaixo e tiveram os dois uma longa conversa.

Passados alguns dias, logo a seguir ao desjejum, Shanks veio entregar

um caixão à nossa porta, o pequeno pônei quase cambaleando sob o seu

peso. Depois de ajudá-lo a desamarrá-lo, descemos ele cuidadosamente.

Não era tão pesado quanto parecia mas tinha umas dimensões

avantajadas, e nunca vira um caixão tão bem feito. Tinha duas pegas de

transporte em latão de cada lado e era feito de madeira escura

envernizada. Não o levamos para dentro de casa, preferimos deixá-lo

junto à porta de trás.

— Para que é isto? — perguntei ao Mago, quando Shanks desapareceu

ao longe.

— Saber eu sei, mas terá de descobrir por si mesmo

— respondeu-me, batendo de lado no nariz. — Pense e venha me

procurar quando tiver encontrado a solução.

A hora do almoço chegou sem que visse as minhas suspeitas

confirmadas.

— Vou estar fora alguns dias, rapaz. Acha que consegue se virar

sozinho?

Tinha a boca cheia, de maneira que anuí e continuei a devorar o guisado

de carneiro.

— Não me pergunta onde vou?

— Assuntos de mago? — sugeri.

— Não, rapaz. Isto são assuntos de família. Meg e a irmã vão regressar

à sua terra. Partirão de Sunderland Point e vou acompanhá-las em

segurança durante a viagem.

Sunderland Point ficava a sul de Heysham e era o maior porto no

Condado. Barcos de todo o mundo subiam o rio Lune para ancorar ali.

Soube então que o meu palpite sobre o caixão estava certo.

Page 554: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Nesse caso, Marcia irá no caixão — afirmei.

— Acertou de primeira, rapaz — disse o Mago com um sorriso. — Uma

dose particularmente grande de chá de ervas deveria mantê-la

sossegada. Não conseguiria embarcar da maneira habitual. Poderia

incomodar os passageiros. No que se refere ao capitão do porto, a irmã

de Meg morreu e ela vai levá-la para ser enterrada no seu país. Para

todos os efeitos, como te disse, irei com elas até ao porto só para ver se

embarcam em segurança. Claro que iremos viajar de noite.

Pernoitaremos sem dúvida numa estalagem e Meg passará as horas do

dia escondida.

Terei pena de vê-la partir, mas é melhor assim.

— Uma vez ouvi-o conversar com Meg sobre um jardim que tinham

partilhado. Era o seu jardim em Chipenden?

— Era sim, rapaz. O jardim ocidental, como deve calcular. Passamos

muitas horas felizes sentados naquele mesmo banco onde agora te dou

com frequência lições.

— Nesse caso, o que aconteceu? — inquiri. — Por que trouxe Meg para

Anglezarke e a colocou na cave? Por que teve de lhe ministrar chá de

ervas?

— O que se passou entre mim e Meg só a nós diz respeito! — retrucou o

Mago, deitando-me um longo olhar inquiridor. Por um momento, pareceu

realmente zangado e percebi que a minha curiosidade me fizera ir longe

demais. Mas depois suspirou e abanou a cabeça penosamente.

— Como sabe, Meg ainda é uma mulher extrema-mente bela e deu fez a

cabeça de muitos homens. Era grande o meu ciúme e discutimos vezes

sem conta. Mas isso não foi tudo. Ela era voluntariosa e fez muitos

inimigos no Condado. Os que a aborreceram aprenderam a temê-la. E

aqueles que vivem com medo durante tempo demais tornam-se

perigosos. Ela acabou por ser acusada de bruxaria e foram apresentados

relatos ao Xerife de Caster. Foi um caso muito sério e mandaram um

polícia prendê-la.

— Ela estaria segura na sua casa de Chipenden, não estaria? O demônio

teria impedido o polícia de se aproximar dela.

— Teria sim, rapaz. E os teria também matado!

Mas ele só estava fazendo o seu trabalho e, apesar de amar Meg, não

queria a perda da vida daquele jovem policial a pesar-me na consciência,

de modo que tinha de me certificar de que Meg desaparecia. Desci à

Page 555: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

aldeia e encontrei-me com ele lá e, com a ajuda do ferreiro como

testemunha, consegui convencê-lo de que ela fugira do Condado.

— Consequentemente, trouxe-a para cá e tem passado os verões

trancada na cela nas escadas da cave e os invernos metida dentro de

casa. Era isso ou vê-la a balançar na extremidade de uma corda — como

sabe, em Caster as bruxas são enforcadas. A dada altura, anos depois,

ela saiu e aterrorizou alguns dos habitantes locais. Para apaziguá-los,

tive de prometer que a aprisionaria num poço na cave. Foi por isso que

Shanks ficou tão aflito quando a viu naquela manhã. De qualquer forma,

agora ela vai finalmente regressar à sua terra. É algo que deveria ter

feito há anos mas não conseguia simplesmente deixá-la partir. —

Portanto, ela quer regressar?

— Acho que ela sabe que é melhor assim. Além disso, Meg já não sente

por mim o mesmo que sinto por ela — afirmou, parecendo mais velho e

triste do que alguma vez o vira antes. — Vou sentir saudades dela,

rapaz.

Muitas saudades mesmo. A vida não será igual sem ela.

Era a única coisa que tornava os invernos aqui suportáveis... Ao pôr do

Sol, vi o Mago selar a irmã de Meg, Marcia, no caixão. Depois, quando o

último parafuso de latão foi apertado, ajudei-o a transportá-lo pela

ravina. Era pesado e cambaleávamos um pouco sob ele, esforçando-nos

por manter os pés no solo macio e lamacento, enquanto Meg seguia

atrás levando a sua bagagem. Enquanto descíamos em solene silêncio

até à escuridão do vale, lembrei-me de um funeral real.

O Mago combinara de estar uma carruagem à nossa espera na estrada.

Os quatro cavalos ficaram nervosos quando nos aproximamos, dilatando

as narinas, a respiração a sair em vapor ao luar, e o cocheiro esforçou-

se por controlá-los. Assim que se acalmaram, desceu, parecendo

também muito nervoso, aproximou-se do Mago e levou a mão ao boné

em deferência. Os maxilares tremiam-lhe e parecia pronto a saltar da

própria pele.

— Não há nada a temer e, conforme prometi, lhe pagarei bem. Agora me

ajude a levantar isto — pediu o Mago, batendo no caixão de Marcia.

Içaram-no para o bagageiro na traseira da carruagem e o Mago

observou com atenção enquanto o cocheiro o prendia com uma corda.

Enquanto estavam ocupados, Meg aproximou-se e sorriu-me

sinistramente, mostrando os dentes.

Page 556: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— É um rapaz perigoso, Tom, um rapaz muito perigoso — disse,

aproximando-se mais. — Tenha cuidado, não arranje inimigos demais...

Não soube o que responder.

— Faz-me um favor, rapaz? — murmurou ao meu ouvido.

Anuí, constrangido.

— Ele não é tão frio quanto faz crer a todos — referiu, indicando o meu

mestre. — Cuide dele por mim. —

Então sorri e acenei com a cabeça.

Quando o Mago se reuniu a nós, ela esboçou-lhe um sorriso simpático e

caloroso que me fez pensar que lá no fundo ainda gostava um pouco

dele. E depois pegou-lhe na mão e apertou-a. Ele abriu a boca como se

fosse dizer algo mas as palavras não saíram. Brilhavam lágrimas nos

seus olhos e pareceu sufocado pela emoção.

Embaraçado, virei-lhes as costas e afastei-me alguns passos.

Murmuraram entre si durante alguns momentos, depois encaminharam-

se juntos para a carruagem. Enquanto o cocheiro mantinha a porta

aberta e lhe esboçava uma ligeira vênia, o Mago ajudou Meg a subir.

Depois veio ter comigo.

— Bem, rapaz, nós vamos andando. Volte para a casa — disse o Mago.

— Ajudaria se eu fosse com você? — inquiri.

— Não, rapaz, mas obrigado mesmo assim. Há algumas coisas que

preciso fazer sozinho. Um dia, quando for mais velho, acho que irá

compreender. Mas espero que nunca tenha de passar por nada assim. .

Mas eu já compreendia: lembrei-me de tê-lo visto com Meg na cozinha,

as lágrimas nas suas faces. Sabia o que ele sentia. E conseguia também

imaginar-me no lugar do Mago e a ter de me despedir de Alice pela

última vez.

Era assim que eu e Alice iríamos acabar?

Alguns momentos depois o Mago entrou, e assim que se sentou ao lado

de Meg o cocheiro aplicou o chicote nos dorsos dos quatro cavalos. A

carruagem afastou-se e começou a ganhar velocidade. Seguiram para

norte, rumo a Sunderland Point, enquanto eu regressava lentamente

pela ravina em direção à casa.

Uma vez lá dentro, aqueci sopa de ervilhas para a minha ceia e instalei-

me junto à lareira. O vento não soprava lá fora e não podia deixar de

ouvir os chiados e os gemidos na velha casa. As tábuas do soalho a

assentar, um degrau a ranger, um rato a correr por detrás da parede. E

Page 557: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

imaginei até que conseguia ouvir, lá em baixo na cave, muito para lá do

portão de metal, os murmúrios dos mortos e dos quase mortos no fundo

dos poços.

Foi então que me dei conta do ponto onde chegara.

Eis-me ali, sozinho numa casa enorme com uma cave cheia de demônios

e bruxas aprisionados, e não sentia nem um pouco de medo. Era o

aprendiz do Mago e na Primavera completaria o meu primeiro ano de

preparação.

Dali a quatro, eu próprio seria um mago!

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CAPÍTULO 23

O REGRESSO A CHIPENDEN

Uma manhã, já mesmo no final de Abril, quando ia buscar água no

regato, o Mago seguiu-me até lá fora. O sol acabara de se erguer por

cima da extremidade da ravina e ele sorriu na direção do seu tênue

calor. Na escarpa por detrás da casa, as estalactites de gelo derretiam

rapidamente, a água a escorrer para as lajes.

— Este é o primeiro dia de Primavera, rapaz —

disse-me —, por isso vamos voltar para Chipenden!

Há semanas que eu ansiava ouvir aquelas palavras.

Desde que regressara sem Meg, o Mago andava muito calado e retraído,

e a casa parecia mais tristonha e deprimente do que nunca. Estava

desesperado por ir embora dali. Então, na hora que se seguiu, andei

numa roda-viva a efetuar todas as tarefas necessárias: limpar as grelhas

e lavar todos os pratos, xícaras e panelas para nos facilitar a vida

quando regressássemos no Inverno seguinte. Por fim, o Mago fechou à

chave a porta de trás e começou a descer a ravina em grandes

passadas, comigo atrás todo satisfeito, levando os dois sacos do

costume assim como o meu bordão de sorveira.

Não esquecera a minha promessa a Alice — perguntar se podia vir

conosco para Chipenden — mas só estava à espera do momento certo,

quando percebi que, em vez de seguirmos o percurso mais direto para o

norte, tínhamos tomado o rumo de Adlington. Apesar de ele ter ido lá no

dia anterior, calculei que o Mago quisesse despedir-se mais uma vez do

irmão. Continuava a hesitar em mencionar Alice quando avistamos a

loja.

Para minha surpresa, tanto Andrew como Alice vieram nos receber na

rua empedrada. Alice trazia uma pequena trouxa com os seus pertences

e parecia a postos para uma viagem. Sorria e mostrava-se

entusiasmada.

— Tenha um bom e próspero Verão, Andrew —

gritou o Mago, animado. — Nos vemos em Novembro!

— Para você também, irmão! — respondeu Andrew acenando. Depois,

para meu enorme espanto, o Mago virou costas e começou a afastar-se

Page 559: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

e, quando me voltei para segui-lo, Alice acertou o passo comigo sorrindo

de orelha a orelha.

— Oh, esqueci-me de te dizer, rapaz — falou o Mago por cima do ombro

—, Alice irá ficar conosco em Chipenden nas mesmas condições de

antes. Tratei de tudo ontem com Andrew. Ela precisa estar num lugar

onde eu a possa vigiar atentamente!

— Grande surpresa, não é, Tom? Está satisfeito por me ver, não está? —

inquiriu Alice.

— Claro que estou satisfeito por te ver e muito contente mesmo por ir

regressar conosco a Chipenden. É

a última coisa que esperava. Mr. Gregory não me disse nada. — Oh! Ele

fez isso? — Alice soltou uma gargalhada. — Bem, agora já sabe o que

sente quando as pessoas escondem segredos e não te dizem coisas que

devia saber!

Isso é para aprender!

Também me ri. Não levava a mal o sarcasmo de Alice. Eu merecia-o.

Devia ter-lhe contado tudo sobre a minha intenção de roubar

o grimoire. Se o tivesse feito, ela poderia ter metido algum juízo na

minha cabeça. Mas isso já passara e caminhamos os dois felizes no

nosso tão esperado regresso a Chipenden.

No dia seguinte houve outra surpresa. O caminho de regresso a

Chipenden levou-nos a cerca de seis quilômetros e meio da nossa

fazenda. Ia perguntar se podia ir fazer uma visita mas o Mago

antecipou-se.

— Acho que devia ir visitar a sua família, rapaz.

Pode ficar a saber se a sua mãe voltou; se sim, estará à espera de te

ver. Eu vou andando, e aproveito para ir ver um cirurgião.

— Um cirurgião? Está doente? — indaguei, começando a ficar

preocupado com ele.

— Não, rapaz. O homem em questão também é dentista. Tem uma

grande variedade de dentes de mortos e deve haver alguma coisa que

me sirva — disse, esboçando-me um largo sorriso pelo que pude ver o

intervalo que ficara no sítio onde o demônio lhe partira o dente da

frente.

— Onde é que ele os vai arranjar? — perguntei, abismado. — Aos

ladrões de sepulturas?

Page 560: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— A maior parte vem de antigos campos de batalha — explicou o Mago,

abanando a cabeça. — Ele vai fazer-me uma dentadura e em breve

estarei como novo.

Tem também uma bela variedade de botões de osso. Meg costurava

todos os seus vestidos e era uma das suas melhores clientes — referiu o

Mago, pesaroso.

Fiquei satisfeito ao ouvir aquilo. Pelo menos os botões dela não tinham

vindo das suas antigas vítimas, como suspeitara inicialmente.

— Bom, vá lá então — disse o Mago —, e leve a garota com você para te

fazer companhia no caminho de regresso.

Adorei obedecer. Era óbvio que o Mago não queria Alice a segui-lo. Mas

eu teria o problema de sempre. Jack não a queria um passo para lá dos

limites da fazenda e, como a Fazenda do Cervejeiro agora lhe pertencia,

nem valia a pena discutir.

Uma hora ou mais depois de Alice e eu termos avistado a fazenda,

reparei em algo muito estranho. Para norte, mesmo a seguir ao limite da

fazenda, ficava a Colina do Carrasco, onde uma pluma de fumaça escura

se elevava agora das árvores no seu topo. Alguém acendera uma

fogueira ali. Quem faria semelhante coisa? Nunca ninguém lá ia porque

era assombrada pelas imagens fantasmagóricas dos homens que tinham

sido enforcados durante a guerra civil que grassara no Condado gerações

antes. Até os cães da fazenda a evitavam.

Instintivamente, soube que era a Mãe. Não entendia por que se

encontrava ali, mas quem mais ousaria fazê-lo? Então, nos desviamos

para leste da fazenda e, uma vez transposto o seu limite norte, subimos

as colinas por entre as árvores. Nem sinal das imagens fantasmagóricas

e a Colina do Carrasco estava silenciosa e sossegada, os ramos despidos

brilhando ao sol naquele fim de tarde. As árvores estavam a rebentar

mas faltaria ainda uma semana ou mais para as folhas aparecerem. A

Primavera viera muito tarde este ano.

Assim que alcançamos o seu topo, tive a confirma-

ção. A Mãe estava sentada diante de uma fogueira olhando para as

chamas. Estava abrigada debaixo de um refúgio de troncos, ramos e

folhas mortas que a protegiam do sol.

Tinha o cabelo empastado de terra e parecia não se lavar há muito

tempo. Perdera também peso e o rosto estava descarnado, o semblante

triste e cansado, talvez da própria vida.

Page 561: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

— Mãe! Mãe! — exclamei, sentando-me ao lado dela na terra úmida. —

Está bem?

Não me respondeu logo e notava-se uma expressão distante no olhar.

Cheguei a pensar que não tivesse me ouvido. Mas depois, continuando a

fitar a fogueira, colocou a mão esquerda no meu ombro.

— Ainda bem que voltou, Tom — disse por fim.

— Há dias que estou à sua espera. .

— Por onde andou, Mãe?

Não respondeu, mas, após uma longa pausa, ergueu o olhar e encarou-

me.

— Em breve seguirei o meu caminho mas precisamos conversar antes de

eu partir.

— Não, a Mãe não está em condições de ir a nenhum lugar. Por que não

desce à fazenda e se alimenta?

Precisa também de uma boa noite de sono. Jack sabe que está aqui?

— Sabe, filho. Jack vem me ver todos os dias e me pede que faça o que

acaba de dizer. Mas é doloroso demais descer até lá agora sem o seu pai

na casa. Fiquei muito abalada, Tom, e tenho o coração destroçado. Mas

agora que finalmente chegou, farei um esforço para ir lá em baixo pela

última vez antes de abandonar em definitivo o Condado.

— Não vá, Mãe! Por favor não nos abandone! —

supliquei. A Mãe não respondeu, limitando-se a fitar as chamas.

— Pense no seu primeiro neto, Mãe! — continuei, desesperadamente. —

Não o quer ver nascer? Não quer também ver a pequena Mary crescer? E

então eu? Preciso de você! Não quer que eu conclua o meu aprendizado

e me torne mago? A Mãe salvou-me no passado e posso precisar

novamente da sua ajuda para conseguir chegar lá...

A Mãe continuou sem responder e, de repente, Alice sentou-se de modo

a ficar logo de frente para ela do outro lado da fogueira.

— Não tem certeza, não é? — perguntou à Mãe, os seus olhos intensos à

luz da fogueira. — Não sabe realmente o que quer fazer.

A Mãe levantou a cabeça, os olhos marejados de lágrimas.

— Que idade tem, minha jovem? Treze, não é? —

perguntou. — Não passa de uma criança. Como pode saber dos meus

assuntos?

— Posso só ter treze anos — retorquiu Alice em tom de desafio —, mas

conheço a vida. Mais do que alguns que a viveram inteira. Algumas

Page 562: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

coisas aprendi. Outras sei apenas. Talvez já nascesse a sabê-las. Não

imagino porquê. É assim, pronto. E sei o que se passa com você.

Algumas coisas, pelo menos. Sei que está dividida entre partir e ficar.

Não é assim? É verdade, não é?

A Mãe baixou a cabeça e depois, para meu espanto, anuiu. — O poder do

escuro aumenta, isso é mais do que evidente, e é algo que já disse antes

a Tom — referiu a Mãe, virando-se de novo para mim, os seus olhos

brilhando mais intensamente do que os de qualquer bruxa que eu

alguma vez enfrentara. — Sabe, é o mundo inteiro que está a

desmoronar sob o poder do escuro, não apenas o Condado. Preciso de

combatê-lo no meu próprio país.

Se eu regressar agora, talvez consiga fazer algo antes que seja tarde

demais! E há outras coisas que deixei por resolver.

— Que coisas, Mãe?

— Muito em breve saberá. Não me pergunte agora.

— Mas estaria sozinha, Mãe. O que pode fazer sozinha?

— Não, Tom, não estaria sozinha. Há outros que me ajudariam — muito

poucos, devo confessar.

— Fique aqui, Mãe. Fique aqui e deixe que ele venha até nós —

supliquei. — Vamos enfrentá-lo juntos na minha terra, não na sua. .

A Mãe sorriu com pesar.

— Esta é mesmo a sua terra?

— É sim, Mãe. Este é o Condado, onde eu nasci. A terra a que vim para

poder defendê-la do escuro. Foi o que a Mãe me contou. Disse que eu

seria o último aprendiz do Mago e depois me caberia manter tudo em

segurança.

— Isso é verdade e não o vou negar — afirmou a Mãe, com ar cansado,

fitando as chamas.

— Então fique e vamos enfrentá-lo juntos. O Ma-go está me preparando.

Por que não me prepara também?

Há coisas que a Mãe consegue fazer e ele não. A forma como silenciou

as imagens fantasmagóricas aqui na Colina do Carrasco. Ele disse que

não se podia fazer nada em relação às imagens fantasmagóricas; que

elas com o tempo acabavam simplesmente por sumir. Mas a Mãe

conseguiu.

Ficaram silenciosas por muitos meses! E herdei também outras coisas.

«Avisos de morte», foi o que lhe chamou.

Page 563: COLEÇÃO AS CRÔNICAS DE WARDSTONE

Eu soube quando o Mago esteve recentemente às portas da morte. E,

vendo bem, soube também quando estava a recuperar. E da próxima

vez saberei quando alguém conseguir vencer a doença. Não vá, por

favor. Fique comigo e ensine-me.

— Não, Tom — afirmou a Mãe, pondo-se em pé.

— Lamento, mas já tomei a minha decisão. Ficarei aqui mais uma noite,

mas amanhã partirei.

Soube que já argumentara o suficiente e seria egoísmo continuar.

Prometera ao meu pai que a deixaria partir quando chegasse a altura e

ela tinha chegado. Alice estava certa: a Mãe sentia-se dividida, mas

sabia que não me cabia tomar a decisão por ela.

A Mãe virou-se para Alice.

— Percorreu um longo caminho, minha jovem.

Mais do que alguma vez pude esperar. Mas ainda terá de enfrentar

testes maiores. Vão ambos precisar unir forças contra o que aí vem. A

estrela de John Gregory começa a perder o brilho. Vocês dois são o

futuro e a esperança do Condado. Ele precisa ter ambos a seu lado.

A Mãe olhava-me quando terminou de falar. Fitei por um momento a

fogueira e senti um arrepio.

— A fogueira está quase apagada, Mãe — disse, sorrindo-lhe.

— Tem razão — respondeu a Mãe. — Vamos até à fazenda. Os três.

— Jack não vai gostar de ver Alice — recordei-lhe.

— Pois terá de aguentar — respondeu a Mãe, num tom que me disse que

não toleraria quaisquer interferências de Jack.

E de fato, na felicidade de ver a Mãe de volta, Jack quase não pareceu

dar pela presença de Alice.

Depois de tomar um banho e mudar de roupa, apesar da insistência de

Elie para que descansasse, a Mãe fez questão de preparar o guisado da

ceia. Fiquei entretanto com ela na cozinha e contei-lhe quase tudo o que

acontecera em Anglezarke. Só não lhe disse que Morgan torturara o

espírito do Pai. Conhecendo a Mãe, não me surpreenderia se descobrisse

que ela já o sabia. Mas mesmo que fosse esse o caso, continuaria a ser

muito doloroso para ela. Já sofrerá bastante.

Quando terminei, ela pouco mais fez para além de me abraçar e dizer

que a deixara orgulhosa. Era bom estar em casa. A pequena Mary

dormia que nem um anjinho lá em cima, a vela de cera de abelha estava

no castiçal no centro da mesa, ardia um fogo quente na grelha e a

comida da Mãe fora posta na mesa.

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Mas por debaixo da superfície tudo mudara e iria continuar a mudar.

Todos nós o sabíamos.

A Mãe sentou-se à cabeceira da mesa, no lugar que fora em tempos do

Pai, e quase parecia igual a si própria.

Alice e eu sentamo-nos diante de Jack e Ellie. Claro que nesta altura

Jack já se recompusera e eu podia afirmar que não se sentia confortável

com a presença de Alice ali, mas não havia nada a fazer.

Falou-se pouco à mesa naquela noite, mas quando terminamos o

guisado, a Mãe afastou o prato e levantou-se. Olhou para cada um de

nós à vez antes de falar.

— Esta pode muito bem ser a última ceia que partilharemos juntos —

anunciou. — Amanhã à noite irei abandonar o Condado e é possível que

nunca mais volte.

— Não, Mãe. Não diga isso — suplicou Jack, mas ela impôs-lhe silêncio

levantando a mão esquerda.

— Agora todos vocês vão ter de olhar uns pelos outros — referiu com

pesar. — É o que o seu pai e eu desejaríamos. Mas tenho algo a lhe

dizer, Jack. Por isso ouça bem. O que está no testamento do seu pai não

pode ser mudado porque reflete também a minha vontade. O

quarto debaixo do sótão pertencerá a Tom para o resto da sua vida.

Mesmo que você morra e o seu filho o herde, continuaria a ser assim.

Não posso te explicar as minhas razões, Jack, porque não iria gostar do

que eu lhe dissesse.

Mas estão em causa muito mais coisas do que apenas os seus

sentimentos. O meu último desejo, antes de partir, é que aceite

integralmente o que tem de ser feito. Então, filho, aceita?

Jack anuiu e baixou a cabeça. Ellie pareceu assustada e senti pena dela.

— Muito bem, Jack, fico satisfeita por isto se resolver. Agora vá buscar

as chaves do meu quarto.

Jack foi à parte da frente da casa e voltou quase de imediato. Havia ao

todo quatro chaves. As três mais pequenas eram das arcas dentro do

quarto. Jack colocou-as na mesa diante da Mãe, que pegou nelas com a

mão esquerda.

— Tom e Alice — disse a Mãe —, venham os dois comigo. — Dizendo

isto, afastou-se da mesa, saiu da cozinha e começou a subir as escadas.

Dirigiu-se sem hesitações ao seu quarto privado. Aquele que estava

sempre fechado.

A Mãe abriu a porta e segui-a até lá dentro. O

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quarto estava igual ao que recordava, cheio de arcas, caixas e baús. No

Outono, levara-me ali e dera-me a corrente de prata que estava na arca

maior, mais próxima da janela.

Sem aquela corrente, estaria agora novamente prisioneiro de Meg ou,

muito provavelmente, teria sido dado a comer à irmã dela. Mas o que

mais haveria dentro das três arcas maiores? Começava a sentir-me

realmente curioso.

Naquele momento olhei para trás de mim. Alice continuava do lado de

fora do quarto, uma expressão nervosa e hesitante no rosto. Fitava o

limiar.

— Entre e feche a porta, Alice — pediu a Mãe, delicadamente. Quando

Alice entrou no quarto, a Mãe esboçou-lhe um grande sorriso e

entregou-me as chaves. —

Tome, Tom, agora são suas. Não as dê a mais ninguém.

Nem sequer a Jack. Conserve-as sempre consigo. Agora este quarto lhe

pertence.

Alice observava tudo, de olhos arregalados. Sabia que ela adoraria

começar a remexer naquelas caixas, descobrir todos os seus segredos.

Tenho de admitir que sentia a mesma vontade.

— Posso ver agora o que está nas arcas, Mãe? —

perguntei.

— Lá dentro encontrará as respostas para muitas coisas que te têm

andado a intrigar; coisas sobre mim que nunca contei, nem mesmo ao

seu pai. O meu passado e o meu futuro estão dentro dessas caixas. Mas

vai precisar de lucidez e astúcia para perceber tudo. Passou por muita

coisa e está cansado e abalado, por isso é melhor esperar que eu tenha

partido, Tom. Volte no final da Primavera e faça-o então, quando estiver

cheio de esperança e os dias forem maiores. Seria o ideal.

Fiquei desapontado, mas sorri e anuí.

— Como queira, Mãe — disse-lhe.

— Há mais uma coisa que preciso lhe dizer. Este quarto é mais do que

apenas a soma do seu conteúdo.

Uma vez trancado, nada de mal conseguirá entrar aqui. Se for corajoso e

a sua alma pura e boa, este quarto é um re-duto, uma fortaleza contra o

escuro, melhor protegida do que até a casa do seu mestre em

Chipenden. Use-o apenas quando algo muito algo terrível te perseguir e

as sua própria vida e alma correrem perigo. É o seu último refúgio.

— Só para mim, Mãe?

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A Mãe olhou para Alice e depois de novo para mim. — Alice está aqui

neste momento, por isso, sim, Alice também poderá usá-lo. Foi por isso

que a trouxe aqui agora, só para ter certeza. Mas nunca traga mais

ninguém. Nem Jack, nem Ellie, nem sequer o seu mestre.

— Porquê, Mãe? — inquiri. — Por que Mr. Gregory não pode usá-lo?

Não acreditava que o Mago não pudesse usá-lo em caso de extrema

necessidade.

— Porque há um preço a pagar por usar este quarto. Vocês dois são

jovens e fortes e o seu poder está a crescer. Sobreviverão. Mas, como te

disse, o poder de John Gregory está a diminuir. Ele está a apagar-se

como uma vela. Usar este quarto lhe retiraria o resto das forças.

E, se a necessidade surgir, tem de lhe dizer exatamente isso. E diga-lhe

também que fui eu que o afirmei.

Manifestei a minha concordância e foi tudo. Alice e eu passamos lá a

noite, mas assim que o Sol nasceu, após um bom desjejum, a Mãe nos

mandou partir para Chipenden. Jack ia arranjar uma carroça para vir

buscar a Mãe ao crepúsculo e levá-la a Sunderland Point. Dali partiria

para a sua terra atrás de Meg e da irmã dela.

A Mãe despediu-se de Alice e disse-lhe que fosse andando e esperasse

por mim junto no portão do pátio.

Sorrindo, Alice acenou e afastou-se.

Quando nos abraçamos pelo que sabia ser a última vez, a Mãe tentou

dizer algo, mas as palavras ficaram-lhe presas na garganta e desceu-lhe

uma lágrima pela face.

— O que é, Mãe? — perguntei de mansinho.

— Desculpe, filho — disse-me. — Estou tentando ser forte mas é tão

difícil que já não aguento. Não quero dizer nada que piore a situação

para você.

— Diga-o, por favor, diga o que precisa dizer —

supliquei, agora as lágrimas também nos meus olhos.

— É que o tempo passa tão rapidamente e fui tão feliz aqui. Ficaria se

pudesse, de verdade que sim, mas é minha obrigação partir. Fui tão feliz

com o seu pai. Nunca houve homem mais honesto, sincero e afetuoso. E

a minha felicidade ficou completa quando você e os seus ir-mãos

nasceram. Nunca mais irei conhecer tamanha alegria. Mas agora acabou

e tenho de me libertar do passado.

Está desaparecendo tão rapidamente que mais parece um breve sonho

feliz. .

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— Por que tem de ser assim? — perguntei, cheio de amargura. — Por

que tem a vida de ser tão curta, com todas as coisas boas a passarem

rapidamente? Vale sequer a pena vivê-la?

A Mãe olhou-me com tristeza.

— Se alcançar tudo aquilo que espero, então outros irão considerar que

a sua vida valeu a pena ser vivida, filho, mesmo que você não. Nasceu

para servir o Condado.

E é isso que tem de fazer.

Abraçamo-nos com força pela última vez e pensei que o meu coração

não fosse aguentar.

— Adeus, meu filho — murmurou e roçou os lábios na minha face. Foi

dificílimo suportá-lo e afastei-me imediatamente. Mas após alguns

passos virei-me para acenar e vi a mãe acenar também das sombras do

lado de dentro da porta. Quando me virei de novo pouco depois, ela já

voltara para a cozinha.

Então, acabrunhado, rumei a Chipenden com Alice, o último beijo da

minha mãe na face. Ainda só tinha treze anos mas sabia que a minha

infância já terminara.

* * *

Estávamos de novo em Chipenden: as campainhas tinham finalmente

aberto, as aves cantavam e o sol ficava mais quente a cada dia que

passava.

Alice nunca se sentira tão feliz mas estava muito curiosa em relação ao

conteúdo das arcas no quarto da Mãe. Não a posso levar comigo à

fazenda porque isso deixaria Jack e Ellie perturbados demais, mas estou

planejando ir lá no mês que vem e prometi lhe contar tudo o que

encontrasse nelas.

O Mago parece ter recuperado por completo a saúde e todos os dias leva

horas a caminhar pelas extensões rochosas para aumentar a sua

resistência. Nunca o vi tão magro e rijo, mas algo parece ter mudado

dentro da sua cabeça. Por vezes há longos silêncios durante as lições em

que parece esquecer-se da minha presença ali. E olha muito para o

espaço com uma expressão preocupada no rosto. Apesar do fato de

parecer mais forte do que nunca, disse-me que sente que o seu tempo

na terra está chegando ao fim.

Há coisas que quer fazer antes de morrer. Coisas que andou anos e anos

a adiar. Em primeiro lugar, fala em ir para leste de Pendle para acabar

de uma vez por todas com os três agrupamentos de bruxas. São ao todo

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trinta e nove bruxas! Parece-me uma tentativa muito perigosa e não

vejo como possa realizá-la. Mas não tenho palavra no assunto e seguirei

o meu mestre para onde quer que ele escolha ir. Continuo a ser o

aprendiz e ele é o Mago.

Thomas J. Ward.

Fim

By anjo_high_tech

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