Coisa Julgada Erga Omnes e Eficcia Vinculante
Coisa Julgada Erga Omnes e Eficcia Vinculante
Luiz Guilherme MarinoniTitular de Direito Processual Civil da
UFPR. Ps-Doutorado na Universidade Estatal de Milo. Visiting
Scholar na Columbia University. Advogado em Curitiba e em
Braslia.
A diferena entre coisa julgada, eficcia erga omnes e eficcia
vinculante est em suas essncias.[footnoteRef:1] Quando se fala em
eficcia erga omnes, pretende-se tratar, em verdade, dos efeitos
diretos da deciso. interessante analisar, para bem situar a questo,
as chamadas coisa julgada erga omnes e ultra partes, peculiares
disciplina da tutela processual dos direitos difusos e coletivos.
[1: No sistema americano, a coisa julgada divide-se em dois tipos:
res judicata e collateral estoppel, no se confundindo, em nenhuma
de suas verses, com o stare decisis. Conforme assinala Heinsz, ao
contrrio do stare decisis, ambas as teorias exigem no apenas
identidade das causas, mas tambm das partes envolvidas nos
processos. A res judicata envolve a noo de precluso do pedido
[claim preclusion], enquanto a collateral estoppel traz consigo a
idia de precluso de fato [issue preclusion]. A res judicata previne
que uma pessoa renove a discusso acerca de um pedido se (1) h um
julgamento final em ao anterior, (2) as matrias levantadas num caso
subseqente so as mesmas ou poderiam ter sido demandadas na ao
anterior, e (3) os pedidos na segunda ao envolvem a mesma parte ou
interessados. A collateral estoppel impede que uma parte renove a
discusso sobre um fato se (1) o fato no litgio subseqente o mesmo
que aquele da ao anterior, (2) o fato foi objeto de litgio e
necessrio a uma deciso final, (3) a pessoa contra a qual a
collateral estoppel afirmada era parte ou interessada na ao
anterior, e (4) a parte preclusa teve total e justa oportunidade de
discutir o fato (No original: Res judicata and collateral estoppel
are related but distinct concepts in the law of judgments. Unlike
stare decisis, both of these theories require not only identity of
issues, but also of parties involved in the actions. Res judicata
involves the notion of claim preclusion, whereas collateral
estoppels entails the idea of issue preclusion. Res judicata bars a
person from relitigating a claim if (1) there is a final judgment
from prior litigation, (2) the matters raised in the subsequent
case either are the same or could have been litigated in the prior
action, and (3) the claims in the second action involve either the
same party or persons in privity with that party. Collateral
estoppel prevents a party from relitigating an issue if (1) the
issue in the subsequent litigation is the same as that raised in
the prior litigation, (2) the issue was actually litigated and
necessary to a final adjudication, (3) the person against whom the
doctrine of collateral estoppel is asserted was a party to or in
privity with a party to the prior action, and (4) the party
precluded had a full and fair opportunity to litigate the issue)
(Timothy J. Heinsz, Grieve it again: of stare decisis, res judicata
and collateral estoppels in labor arbitration. Boston College Law
Review, v. 38, mar./1997, p. 275-300).]
De acordo com o art. 103, I, do Cdigo de Defesa do Consumidor, a
coisa julgada, em relao s aes que tratam de direitos difusos, erga
omnes - salvo quando o pedido for julgado improcedente por falta de
provas. O direito difuso definido pelo mesmo Cdigo como
transindividual, indivisvel, de sujeito indeterminado, pertencente
a toda a coletividade. Ora, se o direito pertence a todos - ou ao
menos a um complexo indeterminado e indeterminvel de sujeitos -, a
deciso acerca da situao litigiosa que envolve o direito -
transindividual - deve abranger a todos, tornando-se imutvel, em
princpio, para as partes do processo (autor legitimado
extraordinariamente e ru) e para as partes em sentido material -
para se utilizar da nomenclatura de Carnelutti.[footnoteRef:2] Bem
vistas as coisas, esta disciplina da coisa julgada no tem qualquer
particularidade exceto, obviamente, no que diz respeito
possibilidade de propositura da mesma ao com base em outras provas.
Em essncia, no a coisa julgada que opera efeitos erga omnes, mas os
efeitos diretos da sentena. Note-se que, para quem no est
catalogado como legitimado propositura da ao - art. 82 do CDC e
art. 5. da Lei 7.347/85 , a imutabilidade da deciso no decorre da
coisa julgada, mas da impossibilidade de discusso judicial da
situao jurdica por falta de legitimidade para agir. [2: Francesco
Carnelutti, Istituzioni del processo civile italiano, Roma: Foro
Italiano, 1955, v. 1, p. 56.]
Somente em relao aos co-legitimados para a ao coletiva
verifica-se a extenso da coisa julgada para alm dos limites das
partes. Porm, isto tambm ocorre naturalmente, porque o trnsito em
julgado abarca o efeito declaratrio da sentena[footnoteRef:3], que
se torna imutvel em face da relao jurdica exposta no pedido
formulado. Ora, se os co-legitimados - extraordinrios, porque o
direito postulado no lhes pertence, porm a toda coletividade, ou,
ao menos, a um plexo indeterminado de sujeitos - podem expor em
juzo apenas uma nica relao jurdica material, o trnsito em julgado
da sentena torna imutvel a declarao sobre essa relao jurdica s
partes materiais e tambm aos legitimados extraordinrios - que,
afinal, nada mais so que longa manus dos titulares do direito, com
autorizao legal para agirem em seus nomes. Para melhor esclarecer,
equipare-se o fenmeno com a hiptese em que o titular do direito
possui, para a tutela de seus interesses em juzo, dois ou mais
substitutos processuais. A propositura da ao por qualquer um deles,
com o seu julgamento, acarreta a incidncia da coisa julgada no
apenas quele que props a ao, mas tambm aos demais co-legitimados.
que a relao jurdica material foi julgada. [3: A coisa julgada no
constitui eficcia nem efeito da sentena. , sim, qualidade que pode
se agregar aos efeitos sentenciais. A eficcia da sentena, enquanto
mera virtualidade, no pode ser abarcada pela imutabilidade
decorrente da coisa julgada, j que no existe concretamente. Os
efeitos que, em tese, podem ser acobertados pela indiscutibilidade
caracterstica da coisa julgada. Todavia, dentre esses efeitos h
aqueles que dependem de agentes externos, e por isso no podem ser
atingidos pela imutabilidade da coisa julgada, pois podem vir a no
operar efetivamente. Assim, por exemplo, a execuo pode no ser
requerida, quando o efeito executivo da sentena condenatria no ser
atuado. Por outro lado, ocorrendo o pagamento voluntrio, evidente
que o efeito executivo ser inibido. Mas isso, como bvio, no retira
o selo de imutabilidade relativo declarao contida na sentena; ou
seja, ningum poder negar, depois de passada em julgado a sentena,
aquilo que foi declarado. Essa declarao (eficcia declaratria) gera
um efeito declaratrio que, no caso de sentena capaz de produzir
coisa julgada, imunizado. De modo que apenas o efeito declaratrio
pode, efetivamente, tornar-se imutvel em decorrncia da coisa
julgada. Deixe-se claro, porm, que todas as sentenas tm algo de
declaratrio. Ou melhor, quando se diz que a coisa julgada material
incide sobre o efeito declaratrio, deseja-se afirmar que a coisa
julgada material toca no elemento declaratrio das sentenas
declaratrias, condenatrias, constitutivas, executivas e
mandamentais e no apenas na declarao prpria sentena declaratria ,
projetando para fora do processo um efeito declaratrio imutvel. Ver
Luiz Guilherme Marinoni e Srgio Cruz Arenhart, Curso de Processo
Civil, Processo de Conhecimento, v. 2, So Paulo: Ed. RT, 2010, 8.
ed., Parte III, cap. 4.]
Por sua vez, o art. 103, II, do Cdigo de Defesa do Consumidor,
trata da ao coletiva para a defesa de direitos coletivos (stricto
sensu). Estes direitos so ditos pela lei (art. 81, II, CDC)
transindividuais, de natureza indivisvel, mas com sujeito
determinado, representado por um grupo, categoria ou classe de
sujeitos, ligados entre si ou com a parte contrria por uma relao
jurdica base. De acordo com o art. 103, II, a coisa julgada, nesta
hiptese, opera ultra partes ressalvada a hiptese de improcedncia
por falta de provas; opera alm das partes do processo, atingindo a
todo o grupo, categoria ou classe a quem pertence o direito
discutido. Assim, igual objeo pode ser oposta: no a coisa julgada
que se estende para alm das partes do processo. o efeito direto da
sentena que incide, de maneira imutvel, sobre os titulares do
direito. E isto pela singela circunstncia de que eles no detm
legitimidade ad causam para discuti-la. De outro lado, no que diz
respeito aos demais legitimados, ocorre exatamente o mesmo do que
se disse em relao tutela dos direitos difusos.[footnoteRef:4] [4:
Ver Luiz Guilherme Marinoni e Srgio Cruz Arenhart, Curso de
Processo Civil, Processo de Conhecimento, v. 2, cit., Parte III,
cap. 4; Luiz Guilherme Marinoni e Srgio Cruz Arenhart, Curso de
Processo Civil, Procedimentos Especiais, v. 5, So Paulo: Ed. RT,
2010, 2. ed., Parte VI, cap. 8. ]
Porm, at por comodidade de linguagem, a doutrina costuma
atribuir coisa julgada eficcia erga omnes. Entretanto, interessante
constatar que o art. 28, pargrafo nico, da Lei n. 9868/99, diz que
a declarao de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade,
inclusive a interpretao conforme a Constituio e a declarao parcial
de inconstitucionalidade sem reduo de texto, tm eficcia contra
todos e efeito vinculante em relao aos rgos do Poder Judicirio e
Administrao Pblica federal, estadual e municipal. No mesmo sentido,
o art. 102, 2, da Constituio Federal, afirma que as decises
definitivas de mrito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas
aes diretas de inconstitucionalidade e nas aes declaratrias de
constitucionalidade produziro eficcia contra todos e efeito
vinculante, relativamente aos demais rgos do Poder Judicirio e
administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual
e municipal. O art. 102, 2, expresso e claro no sentido de que a
eficcia contra todos (erga omnes) deriva das decises do Supremo
Tribunal Federal e no da coisa julgada. De qualquer forma, antes da
Emenda Constitucional n. 3/93 no existia norma legal ou
constitucional a regular os efeitos derivados das decises
proferidas no controle abstrato de constitucionalidade. Foi a
jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal que, paulatinamente,
construiu a tese dos efeitos erga omnes da deciso de
inconstitucionalidade. luz da Emenda Constitucional n. 1/69, o
Supremo Tribunal Federal inicialmente submetia a deciso de
inconstitucionalidade proferida em controle abstrato ao Senado
Federal, para que este determinasse a suspenso da execuo da lei.
Porm, ainda antes da Constituio Federal de 1988, o Supremo Tribunal
Federal passou a entender que as suas decises, proferidas em
controle abstrato de constitucionalidade, produziam efeitos erga
omnes, e, por isto, dispensavam a atuao do Senado Federal. Assim,
na Representao n. 1016-3, o Ministro Moreira Alves proferiu voto,
seguido unanimidade, em que se observa a seguinte passagem: Para a
defesa de relaes jurdicas concretas em face de leis ordinrias em
desconformidade com as Constituies vigentes na poca em que aquelas
entraram em vigor, h a declarao de inconstitucionalidade incidenter
tantum, que s passa em julgado para as partes em litgio (conseqncia
estritamente jurdica), e que s tem eficcia erga omnes se o Senado
Federal houver por bem (deciso de convenincia poltica) suspend-la
no todos ou em parte. J o mesmo no ocorre com referncia declarao de
inconstitucionalidade obtida em representao, a qual passa em
julgado erga omnes, com reflexos sobre o passado (a nulidade opera
ex tunc), independentemente de atuao do Senado, por se tratar de
deciso cuja convenincia poltica do processo de seu desencadeamento
se fez a priori, e que se impe, quaisquer que sejam as conseqncias
para as relaes jurdica concretas, pelo interesse superior da
preservao do respeito Constituio que preside ordem jurdica
vigente.[footnoteRef:5] [5: STF, Representao n. 1016-3, Pleno,
Relator Min. Moreira Alves, julgado em 20.09.79.]
De modo que se entende, h muito tempo, que a deciso de
inconstitucionalidade produz efeitos contra todos. Entretanto, a
atribuio de eficcia erga omnes s decises definitivas de
inconstitucionalidade teve como premissa a coisa julgada que lhes
qualifica. Muito embora a eficcia direta da deciso no se confunda
com a coisa julgada, a primeira necessita da segunda para permitir
a indiscutibilidade e a estabilidade da deciso transitada em
julgado. Embora no processo de controle abstrato de
constitucionalidade no se fale em partes, muito menos em partes
materiais ou em terceiros juridicamente interessados, evidente que
a ideia de alcanar a todos deriva da necessidade de no permitir, a
quem quer que seja, opor-se declarao de inconstitucionalidade.
Nesta dimenso, a prtica constitucional brasileira passou a acatar a
tese de que a coisa julgada material qualifica a parte dispositiva
da deciso de inconstitucionalidade. Entendeu-se que o dispositivo
da deciso de inconstitucionalidade, isto , a declarao de que a
norma x inconstitucional, tornar-se-ia imutvel e indiscutvel, e que
tal dispositivo alcanaria a todos. Perceba-se que importaram, de
forma isolada e autnoma, a coisa julgada material e a eficcia da
deciso em relao a todos. No bastaria apenas a coisa julgada nem
somente a eficcia erga omnes.Diante disto, discute-se se o Supremo
Tribunal Federal pode voltar a tratar da norma que j declarou
constitucional. Mas a discusso tem sido desvirtuada.
Considerando-se a eficcia preclusiva da coisa julgada, tambm vista
como o princpio do deduzido e do dedutvel, chega-se a afirmar que
possvel propor outra ao de inconstitucionalidade, desde que fundada
em outra causa de pedir. Objeta-se sob o argumento de que, na ao de
inconstitucionalidade, o tribunal deve analisar a norma impugnada
luz da Constituio, e, assim, no pode ficar adstrito aos fundamentos
invocados na petio inicial. A adoo da ltima tese impediria a
propositura de outra ao para a impugnao da norma. O Supremo
Tribunal Federal, na Medida Cautelar na Ao Direta de
Inconstitucionalidade n. 1896-8, afirmou que da jurisprudncia do
Plenrio o entendimento de que, na Ao Direta de
Inconstitucionalidade, seu julgamento independe da causa petendi
formulada na inicial, ou seja, dos fundamentos jurdicos nela
deduzidos, pois, havendo, nesse processo objetivo, argio de
inconstitucionalidade, a Corte deve consider-la sob todos os
aspectos em face da Constituio e no apenas diante daqueles
focalizados pelo autor. de se presumir, ento, que, no precedente,
ao menos implicitamente, hajam sido considerados quaisquer
fundamentos para eventual argio de inconstitucionalidade, inclusive
os apresentados na inicial da presente ao. Sendo assim, est
prejudicado o requerimento de medida cautelar, j indeferida, por
maioria de votos, pelo Tribunal, no precedente
referido.[footnoteRef:6] Em sede de controle difuso, o Supremo
Tribunal Federal no conheceu de recurso extraordinrio pelas mesmas
razes. Decidiu-se, neste Recurso Extraordinrio, que, tendo o Pleno
da Corte, ao julgar a ADI 2.031, relatora a eminente Ministra Ellen
Gracie, dado pela improcedncia da ao quanto ao artigo 75, 1 e 2,
introduzido no ADCT pela Emenda Constitucional n. 21/99, isso
implica, em virtude da causa petendi aberta em ao dessa natureza, a
integral constitucionalidade desses dispositivos com eficcia erga
omnes.[footnoteRef:7] [6: STF, MC ADI n. 1896-8, Pleno, Relator
Ministro Sydney Sanches, julgado em 18.02.99.] [7: STF, REx n.
357.576-7, 1. Turma, Rel. Ministro Moreira Alves, julgado em
17.12.2002.]
No entanto, a relao entre o efeito preclusivo da coisa julgada e
a ideia de causa de pedir aberta constitui uma manipulao lgica e
terica. Se h eficcia preclusiva da coisa julgada, todos os
fundamentos dedutveis, desde que integrantes da causa de pedir,
presumem-se deduzidos. O princpio do deduzido e do dedutvel faz
precluir todos os fundamentos que fazem parte da causa de pedir
invocada na ao que deu origem deciso qualificada pela coisa julgada
material. Ora, falar em causa de pedir aberta significa pr de lado,
para no incomodar, o princpio do deduzido e do dedutvel. Nesta
hiptese, pouca importa se determinado fundamento poderia ter sido
deduzido ou era integrante da causa petendi invocada. Como todos os
fundamentos poderiam ser livremente analisados pelo tribunal,
presume-se que todos tenham sido - ou possam ter sido - deduzidos.
Porm, a ideia de causa de pedir aberta, bem vistas as coisas,
liga-se natureza especfica do controle abstrato de
constitucionalidade, e, assim, no deve ser vista como uma resposta
eficcia preclusiva da coisa julgada. Ou melhor, preciso ter
conscincia de que o instituto da eficcia preclusiva da coisa
julgada incompatvel com a ao direta de (in)constitucionalidade.
Basta indagar os motivos pelos quais se pensa na possibilidade de
rediscutir a declarao judicial de que a norma constitucional, ou,
em outros termos, as razes pelas quais se pode insistir em que a
declarao de constitucionalidade, mesmo que envernizada pela coisa
julgada material, no constitui obstculo rediscusso da especfica
norma. interessante perceber que tais motivos so exatamente os
mesmos que abrem oportunidade para a Suprema Corte americana
realizar o overruling de um precedente. [footnoteRef:8] Assim, a
alterao da realidade social e dos valores da sociedade, a evoluo da
tecnologia e a transformao da concepo jurdica geral acerca de
determinada questo. De qualquer forma, ainda que a constatao desta
identidade seja interessante, o que realmente obriga a tratar a
revogao da deciso de inconstitucionalidade como hiptese de superao
de precedente, e no de desconsiderao da coisa julgada, a
circunstncia de que, no controle abstrato de constitucionalidade, a
coisa julgada material proporciona estabilidade ordem jurdica e
previsibilidade aos jurisdicionados e no segurana jurdica s partes.
[8: Ver Neil Duxbury, The Nature and Authority of Precedent. New
York: Cambridge University Press, 2008; Melvin Aron Eisenberg, The
Nature of the Common Law. Cambridge: Harvard University Press,
1998. ]
Acontece que a estabilidade da ordem jurdica e a previsibilidade
no podem ser obstculos mutao da compreenso judicial da ordem
jurdica. Lembre-se do que disse o Juiz Wheeler, em Dwy vs
Connecticut Co.: A Corte que melhor serve ao Direito aquela que
reconhece que as normas jurdicas criadas numa gerao distante podem,
aps longo tempo, mostrarem-se insuficientes a outra gerao; aquela
que descarta a antiga deciso ao verificar que outra representa o
que estaria de acordo com o juzo estabelecido e assente da
sociedade e no concede qualquer privilgio antiga norma por conta da
confiana nela depositada. Foi assim que os grandes autores que
escreveram sobre o common law descobriram a fonte e o mtodo do seu
desenvolvimento e, em seu desenvolvimento, encontraram a sade e a
vitalidade de tal Direito. Ele no nem deve ser estacionrio. A
mudana desse atributo no deve ficar a cargo do
Legislativo.[footnoteRef:9] [9: Cf. Benjamin N. Cardozo. The Nature
of Judicial Process. New Haven: Yale University Press, 1921, p.
150-152.]
Nas aes concretas, em que a sentena outorga tutela jurisdicional
parte formal ou s partes em sentido material, a funo da coisa
julgada dar segurana parte, permitindo-lhe usufruir da tutela
jurisdicional que lhe foi outorgada sem medo que ela possa ser
contestada ou usurpada. Nas aes abstratas, ao se decidir pela
constitucionalidade, nenhum direito ou vantagem deferido
diretamente a alguma parte. Como dito, o benefcio da coisa julgada,
em tais aes, teria relao com a estabilidade da ordem jurdica e com
a previsibilidade. Porm, como os fatores que autorizam a revogao de
um precedente militam em favor da prpria oxigenao e do
desenvolvimento da ordem jurdica, a nica restrio para a rediscusso
de norma j declarada inconstitucional estaria no prejuzo que ela
poderia trazer previsibilidade. Contudo, a previsibilidade no s no
valor que pode se sobrepor necessidade de desenvolvimento da
jurisprudncia da Corte, como tambm naturalmente perde consistncia
diante de fatores que apontam para a provvel e necessria revogao do
precedente.Ademais, o benefcio trazido pela previsibilidade, ao
refletir sobre posio jurdica que se consolidou com base no
precedente que se quer revogar, deve ser preservado mediante a adoo
de modulao adequada dos efeitos da deciso de inconstitucionalidade.
Existindo situaes que se consolidaram sob a gide da deciso de
constitucionalidade, os efeitos da deciso de inconstitucionalidade
no podem apanh-las, devendo ser modulados em ateno particularidade
de a deciso estar declarando inconstitucional norma antes declarada
constitucional. De qualquer forma, se poderia dizer que, bem ou
mal, a deciso de constitucionalidade produziu coisa julgada
material. Porm, quando se passa a compreender que as decises do
Supremo Tribunal Federal devem ser obrigatoriamente respeitadas
pelos demais rgos do Poder Judicirio, a funo da coisa julgada,
diante das decises de constitucionalidade, perde utilidade. Na
verdade, falar em coisa julgada, neste caso, instituir problema
terico para a incontestvel necessidade de revogao de precedentes,
que, uma vez perpetuados, impediriam o adequado desenvolvimento da
ordem constitucional. No obstante, como a relao entre deciso de
constitucionalidade e coisa julgada material est arraigada na
cultura jurdica, torna-se importante tambm explicar a questo sob o
enfoque do instituto da coisa julgada. No h dificuldade em admitir
a revogao da deciso de constitucionalidade, a partir das bases que
viabilizam a revogao de precedente, ainda que se entenda que a
deciso de constitucionalidade produziu coisa julgada material e que
todos os fundamentos que poderiam ser alegados para evidenciar a
inconstitucionalidade esto preclusos.A coisa julgada reflete estado
de fato e jurdico que existia em determinado instante naquele em
que a deciso foi proferida -, razo pela qual a modificao do estado
de fato e do direito faz surgir outra causa de pedir e, por
conseqncia, outra ao, sem que seja violentada ou desconsiderada a
deciso e a coisa julgada anteriormente formadas a partir de outros
fatos e de outro panorama jurdico, ainda que semelhantes. Lembre-se
que a alterao da situao financeira do ru de ao de alimentos que j
transitou em julgado, formando coisa julgada que guarda deciso que
declarou a inexistncia de direito de perceber alimentos diante da
ausncia de condio financeira do demandado, constitui nova causa de
pedir, e, assim, abre oportunidade a nova ao de alimentos. Isto no
significa, porm, que a ao de alimentos no forma coisa julgada
material. A ao de alimentos produz coisa julgada material como
qualquer outra destinada a resolver litgio que deve ser
definitivamente resolvido. Falta apenas perceber, com clareza, que
a deciso que se estabilizou, em virtude da coisa julgada, convive
harmonicamente com outra que eventualmente se forma a partir de
nova situao ftica, dando origem a outra coisa julgada material. que
cada uma das decises e coisas julgadas reflete um respectivo estado
de fato, ou seja, uma particular causa de pedir.O mesmo ocorre
quando h alterao do ordenamento jurdico. Depois do trnsito em
julgado podem sobrevir no apenas novos fatos, mas tambm novas
normas. Alm de fatos capazes de alterar a situao jurdica
preexistente, podem surgir normas que abroguem as que foram
aplicadas na primeira ao, e, assim, dem situao ftica anterior uma
nova conformao jurdica. De modo que uma circunstncia de direito
posterior tambm d origem a uma nova causa de pedir, e, portanto, a
uma outra ao e a uma outra deciso.Para no fugir do exemplo da ao de
alimentos, suponha-se que, ao invs da alterao da situao financeira,
tenha surgido nova norma, segundo a qual a relao de parentesco, que
dava origem ao dever alimentar reconhecido na sentena transitada em
julgado, no mais obriga o condenado a pagar
alimentos.[footnoteRef:10] O fato anteriormente reconhecido,
segundo a nova lei, no mais fato constitutivo do dever
alimentar.[footnoteRef:11]Assim, o devedor de alimentos pode propor
ao inversa uma nova ao - contra o autor da ao anterior. A nova lei
uma nova circunstncia, e, assim, no est coberta pelo princpio do
deduzido e do dedutvel. Portanto, gera uma nova causa de pedir e,
assim, oportuniza outro julgamento, outra deciso e outra coisa
julgada. [10: Remo Caponi, Lefficacia del giudicato civile nel
tempo. Milano: Giuffr, 1991, p. 29. ] [11: La duplicit dei
possibili eventi sopravvenuti non che la conseguenza del duplice
condizionamento che determina la durata limitata della situazione
giuridica dedotta in giudizio (la temporalit della fattispecie e
della norma giuridica) (Remo Caponi, Lefficacia del giudicato
civile nel tempo, cit., p. 29). ]
A alterao do ordenamento jurdico modifica a relao entre as
partes no plano substancial, mas no pode alterar a declarao de que
o primitivo ru, no instante em que a sentena foi proferida, devia
alimentos ao autor. O j condenado, mediante ao calcada na alterao
da ordem jurdica, pode obter sentena que o exonere de pagar
alimentos. Neste sentido, a nova lei, ao dar origem a nova ao e a
outro julgamento, no infringe a coisa julgada.A nova lei tambm no
retira do primitivo autor o benefcio que a sentena pretrita lhe
gerou, uma vez que essa sentena lhe outorgou direito aos alimentos
com base na lei ento existente. Mas a sentena, proferida sob a
vigncia da lei antiga, no pode continuar a gerar benefcios ao autor
que, a partir da alterao do ordenamento jurdico, deixou de ter
direito aos alimentos. Raciocnio inverso significaria desconsiderao
do efeito das novas leis sobre as relaes em curso. Tomar em conta
uma nova lei, assim como um novo fato, simplesmente admitir a
existncia de relaes continuativas. Na realidade, a percepo de que
uma nova lei pode fazer cessar um benefcio at ento outorgado pela
coisa julgada um reflexo da estrutura marcadamente temporal do
prprio direito.[footnoteRef:12] [12: Remo Caponi, Lefficacia del
giudicato civile nel tempo, cit., p. 31. ]
Tudo tambm muito simples quando se pensa na mutao da Constituio.
evidente que, neste caso, as leis pretritas dependem da sua
compatibilidade com a nova ordem constitucional. Assim, eventual
sentena que tenha declarado a constitucionalidade de norma
certamente pode ter a sua eficcia limitada no tempo edio da nova
Constituio. O verdadeiro problema que a surge diz respeito ao
cabimento da ao declaratria de inconstitucionalidade. Melhor
explicando: argumenta-se que se a norma pretrita, para permanecer
eficaz, depende de estar em compatibilidade com a nova Constituio,
no haveria razo para admitir ao para declarar a sua
inconstitucionalidade; a hiptese no seria de norma
inconstitucional, porm de norma no recepcionada. Na Ao Direta de
Inconstitucionalidade n. 2, o Supremo Tribunal Federal, por maioria
de votos, endossou a orientao de que, tratando-se de norma editada
luz de Constituio pretrita, descabe a ao declaratria de
inconstitucionalidade. Nesta ocasio, o Tribunal no admitiu a ao sob
o fundamento de impossibilidade jurdica do pedido[footnoteRef:13].
[13: Por maioria de votos, o Tribunal no conheceu da ao, por
impugnar leis anteriores Constituio de 1988 (impossibilidade
jurdica do pedido), vencidos os Ministros Marco Aurlio, Seplveda
Pertence e Nri da Silveira, que rejeitavam essa preliminar (STF,
ADI n. 2, Pleno, Relator Ministro Paulo Brossard, julgado em
06.02.92).]
A ementa do acrdo proferida na Ao Direta de
Inconstitucionalidade n. 2 afirma que o vicio da
inconstitucionalidade congnito lei e h de ser apurado em face da
Constituio vigente ao tempo de sua elaborao. Lei anterior no pode
ser inconstitucional em relao Constituio superveniente; nem o
legislador poderia infringir Constituio futura. A Constituio
sobrevinda no torna inconstitucionais leis anteriores com ela
conflitantes; revoga-as. [footnoteRef:14] [14: STF, ADI n. 2,
Pleno, Relator Ministro Paulo Brossard, julgado em 06.02.92.]
O relator, Ministro Paulo Brossard, argumentou que norma
anterior Constituio pode no ser recepcionada, mas no pode ser dita
inconstitucional; inconstitucional pode ser apenas a norma
posterior Constituio. O problema da norma anterior Constituio seria
de direito intertemporal; no de direito constitucional. De acordo
com o voto do relator, no h como admitir ao direta de
inconstitucionalidade para tratar de normas que podem estar
revogadas, mas no so inconstitucionais (...) O pedido juridicamente
impossvel. A ao direta para declarar a inconstitucionalidade de lei
ou ato normativo; no para declarar revogada tal ou qual lei por
fora de Constituio superveniente. [footnoteRef:15] [15: STF, ADI n.
2, Pleno, Relator Ministro Paulo Brossard, julgado em
06.02.92.]
O Ministro Seplveda Pertence, divergindo da maioria, no apenas
ponderou que, no caso, nada impediria que se pensasse em
inconstitucionalidade superveniente, como advertiu para o mal que
adviria do rigor na admisso da tese da revogabilidade, qual seja, a
impossibilidade do uso da ao direta. Reduzir o problema s dimenses
da simples revogao da norma infraconstitucional pela norma
constitucional posterior se alvitre que tem por si a seduo da
aparente simplicidade -, redunda em fechar-lhe a via da ao direta.
E deixar, em conseqncia, que o deslinde das controvrsias suscitadas
flutue, durante anos, ao sabor dos dissdios entre juzes e tribunais
de todo o pas, at chegar, se chegar, deciso da Alta Corte, ao fim
de longa caminhada pelas vias freqentemente tortuosas do sistema de
recursos. (...) Perdero com tudo isso, inevitavelmente, no s a
rapidez, mas a uniformizao dos resultados da tarefa jurisdicional
de conformao do direito velho s novas diretrizes da Lei
Fundamental, com patente perda da efetividade desta e da segurana
jurdica dos jurisdicionados. Ao contrrio, se se entende que o
conflito cogitado se traduz em inconstitucionalidade superveniente
chame-se, embora, de revogao sua conseqncia jurdica abre-se-lhe a
via do controle abstrato, hoje generosamente ampliada pela
desconcentrao da legitimidade ativa. [footnoteRef:16] [16: STF, ADI
n. 2, Pleno, Relator Ministro Paulo Brossard, julgado em
06.02.92.]
certo que o parmetro para a aferio da inconstitucionalidade h de
ser o texto constitucional existente poca da elaborao da norma
contrastada. Assim, se uma norma no se compatibiliza com a nova
ordem constitucional, h revogao. Neste caso, porm, h tambm um
objeto que serve de parmetro para a aferio da revogao. A norma
confrontada com a nova Constituio, e, assim com acontece na relao
(norma x Constituio) que tem por fim a formao de juzo de
constitucionalidade, nem sempre h certeza acerca da recepo ou no da
norma pela nova ordem constitucional. Bem por isto, inegvel a
imprescindibilidade de ao direta para estas situaes. O acrdo
proferido na Ao Direta de Inconstitucionalidade n. 2 - antes
referido disse no ter conhecido a ao por falta de possibilidade
jurdica do pedido. No conhecer da ao, na dico do acrdo, est em no
admitir a ao direta para declarar, em abstrato, a
inconstitucionalidade da norma revogada. Porm, mais do que saber se
o pedido era possvel ou se o procedimento era adequado espcie de
tutela jurisdicional pretendida, necessrio perceber que, assim como
o controle concentrado importante para a norma considerada em face
da Constituio do seu tempo, ela imprescindvel para a norma pretrita
diante da nova Constituio. Lembre-se, alis, que a Lei 9.882/99 que
regulamenta o processo e o julgamento da argio de descumprimento de
preceito fundamental - afirma em seu art. 1, pargrafo nico, I, que
tambm cabe argio de descumprimento de preceito fundamental quando
for relevante o fundamento da controvrsia constitucional sobre lei
ou ato normativo federal, estadual ou municipal, includos os
anteriores Constituio. H situao diversa quando se tem em conta a
alterao dos fatos, capaz de tornar norma, ainda que j declarada
constitucional, inconstitucional. certo que a alterao da realidade
social e dos valores da sociedade, assim como a evoluo da
tecnologia, podem fazer com que norma, j declarada constitucional,
transforme-se em inconstitucional[footnoteRef:17]. Trata-se de
razes que so adotadas, de forma costumeira, para a revogao de
precedentes no common law. Porm, ainda que neste instante se pense
em coisa julgada material e no em stare decisis[footnoteRef:18] ou
eficcia obrigatria dos precedentes, tais razes constituem novas
circunstncias, aptas a fazer surgir nova causa de pedir obviamente
diferente daquela que fundou a anterior ao direta de
constitucionalidade -, e, assim, outra coisa julgada material, em
tudo distinta da anterior. Por serem coisas julgadas diferentes,
suas eficcias temporais no se sobrepem. Uma cessa para a outra
brotar. [17: Como diz Teori Albino Zavascki, a relao de harmonia
entre a norma constitucional e as normas ordinrias poder ficar
comprometida pro fatos sobrevindos, que alterem a realidade social.
(...) No de se estranhar, assim, a ocorrncia do fenmeno da
inconstitucionalidade superveniente, acima referido: uma norma
nascida em harmonia com a Constituio pode tornar-se com ela
incompatvel em face de substanciais mudanas da realidade social em
que atua. (Teori Albino Zavascki, Eficcia das sentenas na jurisdio
constitucional, So Paulo: Ed. RT, 2001, p. 114). ] [18: De regra, o
termo stare decisis significa tanto a vinculao, por meio do
precedente, em ordem vertical (ou seja, como representao da
necessidade de uma Corte inferior respeitar deciso pretrita de
Corte superior), como horizontal (a Corte respeitar deciso anterior
proferida no seu interior, ainda que a constituio dos juzes seja
alterada). Esta a posio adotada, entre outros, por Neil Duxbury e
Melvin Aron Eisenberg. Em outra senda, h aqueles que optam por
distinguir o termo stare decisis de precedent, como Frederick
Schauer, para quem [t]ecnicamente, a obrigao de uma corte de seguir
decises prvias da mesma corte dita como sendo stare decisis (...),
e o termo mais abrangente precedente usado para se referir tanto
stare decisis, quanto obrigao de uma corte inferior de seguir
decises de uma superior. Ver Neil Duxbury, The Nature and Authority
of Precedent, cit., p. 12-13; Melvin Aron Eisenberg, The Nature of
the Common Law, cit., p. 48 e ss; SCHAUER, Frederick. Why precedent
in law (and elsewhere) is not totally (or even substantially) about
analogy. Disponvel em . ltimo acesso em 01/10/2009.]
A deciso declaratria de inconstitucionalidade, diante das relaes
continuativas, no retroage sobre a coisa julgada, mas limita a sua
eficcia temporal.[footnoteRef:19] A coisa julgada antes formada,
espelhando a realidade ftica e jurdica legitimamente interpretada
pelo Tribunal, permanece vlida e intacta. Ela limitada em virtude
de circunstncia posterior, expressa na declarao de
inconstitucionalidade. [19: O problema relativo a se saber se a
coisa julgada, nas relaes continuativas, infringida ou tocada pela
declarao de inconstitucionalidade muito discutido na Alemanha. A
posio majoritria no sentido de que se pode proteger a coisa julgada
sem se deixar de atender superveniente declarao de
inconstitucionalidade (Cf. Rui Medeiros, A deciso de
inconstitucionalidade. Lisboa: Universidade Catlica Ed., 1999, p.
571).]
Sem retroagir sobre a coisa julgada, a declarao de
inconstitucionalidade incide imediatamente sobre as relaes em
trnsito, dando-lhes a regulao constitucional prpria ao momento em
que se desenvolvem. Frise-se que, embora atribuir efeito a uma
deciso que aplicou uma lei posteriormente declarada
inconstitucional no signifique o mesmo que atribuir efeito a uma
lei inconstitucional[footnoteRef:20] - e, portanto, a deciso de
inconstitucionalidade no deva retroagir sobre a coisa julgada -, no
h racionalidade em admitir que uma deciso continue a produzir
efeitos, regulando uma relao que se desenvolve no tempo, depois de
a lei por ela aplicada ter sido declarada inconstitucional pelo
Supremo Tribunal Federal. [20: Humberto Theodoro Jr. e Juliana
Cordeiro de Faria parecem no ter compreendido o que pretendo
demonstrar quando digo que atribuir efeito a uma deciso que aplicou
uma lei posteriormente declarada inconstitucional no signifique o
mesmo que atribuir efeito a uma lei inconstitucional. Contestando o
que escrevi em outro lugar (O princpio da segurana dos atos
jurisdicionais, Revista de Direito Processual Civil, v. 31, p.
147), assim argumentam: estranhvel, ab initio, atribuir-se lei
menor relevncia que sentena, quando o que se tem a coibir a
inconstitucionalidade. Esta pode invalidar uma simples lei mas nada
pode contra a sentena passada em julgado. No parece razovel esta
estranha hierarquia de inconstitucionalidades (Humberto Theodoro
Jr. e Juliana Cordeiro de Faria, A coisa julgada inconstitucional e
os instrumentos processuais para o seu controle, Coisa julgada
inconstitucional, Rio de Janeiro, Amrica Jurdica, 2002, p. 209).
Ora, no se est atribuindo lei menor relevncia que sentena. Apenas
se est demonstrando que atribuir efeitos a uma sentena fundada em
lei inconstitucional no o mesmo do que admitir efeitos a uma lei
declarada inconstitucional. bom lembrar que a teoria da nulidade
tem sido relativizada, de modo a se ressalvarem os atos pretritos
deciso de inconstitucionalidade. Portanto, somente uma aplicao
muito rigorosa e completamente inadequada da teoria da nulidade
poderia explicar a desconstituio da coisa julgada como conseqncia
direta e inarredvel da declarao de inconstitucionalidade. Theodoro
Jr. e Juliana no percebem que a sentena que aplica lei
posteriormente declarada inconstitucional , em si, uma deciso ou um
juzo constitucional. A declarao de inconstitucionalidade da lei no
gera a inconstitucionalidade da sentena que na lei se fundou. No h,
portanto, qualquer hierarquia de inconstitucionalidades, mas sim a
necessria ressalva da coisa julgada diante da declarao de
inconstitucionalidade. Em vez de se adotar a polmica lio do jurista
portugus Paulo Otero, basta dar maior ateno ao texto da prpria
Constituio da Repblica portuguesa (art. 282, 3) para se perceber a
possibilidade de se ressalvar a coisa julgada diante da deciso de
inconstitucionalidade, ou melhor, para se detectar a diferena entre
lei declarada inconstitucional e sentena, transitada em julgado,
fundada em lei posteriormente declarada inconstitucional. oportuno
reafirmar que o defeito da tese de Paulo Otero est em ver a deciso
que aplica lei posteriormente declarada inconstitucional como uma
deciso que viola de forma flagrante uma norma inconstitucional, o
que, inclusive, constitui contradio com o seu argumento de que o
juiz no pode mais ser visto como mero aplicador da lei. Ora,
exatamente porque o juiz no mais um executor das leis, mas deve
decidir interpretando a lei de acordo com a Constituio, que a sua
deciso constitui um juzo constitucional, mesmo quando aplica lei
mais tarde declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal.
Afirmam Theodoro Jr. e Juliana, ainda, que no se compreende como
possa a injustia da sentena afastar a coisa julgada, fundada em
simples ilegalidade na hiptese da ao rescisria, e tenha que ser
tida como irrelevante quando o contraste se trave entre o ato
decisrio e a Constituio (Humberto Theodoro Jr. e Juliana Cordeiro
de Faria, A coisa julgada inconstitucional..., cit., p. 209).
preciso esclarecer, em relao a este ponto, que a deciso que aplica
lei posteriormente declarada inconstitucional no contrasta com a
Constituio. Fosse assim, toda e qualquer deciso tomada por juiz ou
tribunal em controle difuso da constitucionalidade inevitavelmente
poderia, um dia, contrastar com a Constituio, deixando sem qualquer
explicao o trabalho da jurisdio e a expectativa de confiana legtima
gerada aos vencedores das demandas encerradas. A simples
ilegalidade, de que falam os autores, a violao literal de lei. Ora,
a deciso que viola frontalmente a Constituio ou que aplica lei j
declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal obviamente
no irrelevante, podendo igualmente ser rescindida com base no art.
485, V, do Cdigo de Processo Civil. Sustenta-se, aqui, a
no-assimilao destas decises por deciso que aplicou em poca em que
se controvertia sobre a questo constitucional lei posteriormente
declarada inconstitucional. Theodoro Jr. e Juliana, assim como
outros que pregam a relativizao da coisa julgada, simplesmente
ignoram o efeito desta tese sobre o sistema de controle difuso da
constitucionalidade. A lgica da argumentao dos tericos da
relativizao da coisa julgada, em vez de tutelar a plenitude da
Constituio, faz apenas com que a voz do Supremo Tribunal Federal
tenha o efeito perverso de destruir as decises judiciais,
desvalorizando os juzes e os tribunais e tornando o processo civil
um objeto ainda mais inexplicvel ao cidado. Ver Luiz Guilherme
Marinoni, Coisa Julgada Inconstitucional. 2. Ed. So Paulo: Ed. RT,
2010.]
Problema difcil posto quando se olha para a mutao da compreenso
geral acerca de determinada questo constitucional, pretendendo-se
equipar-la, para o efeito de constituir nova circunstncia ou nova
causa de pedir, com a mudana do estado de fato. Todos sabem que a
modificao da interpretao do direito no permite a correo da deciso
qualificada pela coisa julgada material. Por igual razo, no h como
admitir que, em virtude de nova compreenso do direito
constitucional, desconsidere-se a coisa julgada e, assim, a
garantia constitucional da segurana jurdica.A questo importante,
particularmente por demonstrar que se est diante do problema da
eficcia temporal dos efeitos obrigatrios dos precedentes e que esta
eficcia temporal no se confunde com a eficcia temporal da coisa
julgada. indiscutvel que uma Corte Constitucional no pode ficar
presa a entendimentos jurisprudenciais passados. Porm, isto
obviamente no quer dizer que a Corte possa abandonar as suas posies
diante de qualquer tese, nova doutrina ou interpretao discrepante.
O abandono de um precedente constitucional, neste caso, depende da
mutao da compreenso geral portanto, na academia e nas Universidades
a respeito da questo de direito em que o precedente se baseou. Por
compreenso geral preciso entender a compreenso pacfica, clara,
sobre a questo jurdica, capaz de evidenciar que a manuteno do
precedente configuraria a perpetuao de um equvoco.O motivo pelo
qual fcil racionalizar a alterao de precedente constitucional e no
a paralisao da eficcia temporal da coisa julgada material se liga
aos diferentes resultados que se almejam atravs desta ltima e da
eficcia obrigatria dos precedentes. Do ponto de vista subjetivo, a
eficcia obrigatria dos precedentes garante a previsibilidade dos
jurisdicionados[footnoteRef:21], enquanto a coisa julgada garante
parte a segurana de que o resultado que lhe foi conferido pela
jurisdio no ser alterado. [21: Ver Evan H. Caminker, Precedent and
Prediction: The Forward-Looking Aspects of Inferior Court
Decisionmaking. Texas Law Review, 1994, v. 73, p. 1-82.]
Ora, fcil perceber que a previsibilidade perde fora quando a
compreenso geral acerca de questo de direito contraria o fundamento
de determinado precedente. H previsibilidade em sentido inverso, no
sentido de que o precedente ser revogado. De modo que a garantia de
previsibilidade, oriunda da fora obrigatria dos precedentes, no
constitui obstculo revogao de precedente com base em alterao da
compreenso geral sobre questo de direito. Porm, algo completamente
diferente se passa em relao garantia de imutabilidade, peculiar
coisa julgada. Neste caso, como bvio, no apenas no se supe, como,
em verdade, no se admite ou tolera a revogao da coisa julgada em
virtude da alterao da compreenso geral do direito. Note-se que, no
primeiro caso, a segurana se realiza pela previsibilidade, ao passo
que, na hiptese de coisa julgada, a segurana jurdica est na
imutabilidade e na indiscutibilidade.Quando, no momento da revogao
judicial do precedente, ainda existia certo grau de confiana nele
depositado, o Tribunal deve modular os efeitos retroativos da
deciso de inconstitucionalidade em ateno a este fator. No o caso,
assim, de estabelecer uma simples relao lgica entre a alterao da
compreenso geral do direito e a retroatividade da deciso, mas de
compatibilizar a retroatividade da deciso com o momento em que
ganhou corpo a previsibilidade de que, em virtude de tal alterao, o
precedente deveria ser revogado. De qualquer forma, a coisa julgada
material, diante das relaes continuativas, no afetada pela ao que
se funda em nova circunstncia. Assim, admitindo-se ao de
inconstitucionalidade baseada em nova concepo geral acerca da
questo de direito, no se estaria ferindo a garantia de segurana
proporcionada pela coisa julgada. Mas a nova concepo geral sobre a
questo de direito seria alada ao patamar de nova circunstncia,
capaz de dar origem a ao de inconstitucionalidade dirigida a
inverter o resultado anteriormente obtido com a ao de
constitucionalidade.Embora nova concepo geral de direito no possa
permitir a propositura de ao de exonerao de obrigao alimentar por
aquele que foi vencido na ao de alimentos, a natureza do controle
abstrato de constitucionalidade impe soluo diversa. Se a deciso
oriunda de ao ancorada em nova concepo jurdica produz efeitos para
o futuro, no h porque manter eficaz no tempo a coisa julgada erga
omnes proveniente da deciso abstrata de constitucionalidade calcada
em conscincia jurdica no mais aceitvel pela comunidade.Diante desta
concluso cabe perguntar se o jurisdicionado pode propor ao
concreta, para buscar a realizao de pretenso que tenha como
pressuposto a inconstitucionalidade de norma j declarada
constitucional, com base nas novas circunstncias antes referidas,
vistas como hbeis a permitir a propositura de ao direta de
inconstitucionalidade. Considerando-se unicamente a coisa julgada
diante das relaes continuativas, no haveria razo para estranhar tal
possibilidade, j que a coisa julgada nunca afetada por ao baseada
em nova causa de pedir. Assim, ao fundada em nova circunstncia,
ainda que dirigida realizao de pretenso individual, no viola a
coisa julgada erga omnes. O problema, em verdade, no est na coisa
julgada erga omnes como obstculo ao concreta, mas na anlise de se
outro tribunal, alm do Supremo tribunal Federal, pode aferir a
presena de nova circunstncia como fundamento ao estancamento dos
efeitos temporais da coisa julgada erga omnes.A soluo deste
problema exige que seja agregada discusso a questo dos efeitos
obrigatrios dos precedentes ou dos efeitos vinculantes. Sabe-se que
as decises proferidas em ao de constitucionalidade tm eficcia erga
omnes e efeito vinculante em relao aos demais rgos do Poder
Judicirio e administrao pblica direta e indireta, nas esferas
federal, estadual e municipal (art. 102, 2, CF). De modo que, se os
demais rgos do Poder Judicirio so obrigados a respeitar as decises
tomadas em ao direta pelo Supremo Tribunal Federal, apenas a
constatao de que a ao concreta baseada em novas circunstncias no
afeta a coisa julgada erga omnes no bastante para definir se os
tribunais estaduais ou regionais federais, por exemplo, podem fazer
cessar os efeitos temporais da coisa julgada. Torna-se evidente,
diante desta encruzilhada, que a coisa julgada erga omnes no se
confunde com a eficcia vinculante. Ao decidir de forma contrria ao
Supremo Tribunal Federal, o tribunal estadual ou regional federal
no viola a coisa julgada erga omnes, mas desconsidera a eficcia
vinculante. Seria possvel argumentar, em contrrio manuteno da
eficcia vinculante diante do surgimento de nova circunstncia, que o
tribunal estadual ou regional federal, nesta situao, no viola a
autoridade do Supremo Tribunal Federal. Mas este argumento correto
apenas na poro que no tem significado resistncia. Realmente, ao
decidir outra demanda, estruturada sob nova causa de pedir, o
tribunal federal regional ou estadual no viola a autoridade da
coisa julgada e do Supremo Tribunal Federal. Porm, estes tribunais,
ao chamarem a si o poder de fazer cessar, ainda que apenas em relao
parte da ao concreta, os efeitos da coisa julgada erga omnes,
evidentemente negam a eficcia vinculante. No cabe a qualquer outro
rgo do Poder Judicirio dizer que uma nova circunstncia suficiente
para fazer cessar a eficcia da coisa julgada erga omnes - derivada
de deciso proferida pelo Supremo Tribunal Federal em ao direta de
constitucionalidade. Apenas o Supremo Tribunal Federal tem poder
para revogar os seus precedentes.Frise-se o fundamento desta
concluso: ao se admitir uma nova circunstncia, ainda que no se
volte a tratar da mesma questo j resolvida pelo Supremo Tribunal
Federal, afirma-se que o precedente no mais presta a definir a
interpretao da questo constitucional. Outro rgo do Poder Judicirio,
que no o Supremo Tribunal Federal, estaria a dizer que houve
alterao da realidade social etc., capaz de permitir a revogao do
precedente firmado em ao direta de constitucionalidade. Porm, o
fato de a eficcia vinculante incidir em relao aos demais rgos do
Poder Judicirio significa exatamente que apenas o Supremo Tribunal
Federal pode revogar os seus precedentes. No calha argumentar que,
diante de nova circunstncia, no se revoga o precedente, mas apenas
se diz que o precedente no se aplica a uma nova situao. Ora, se
necessrio dizer que o precedente no se aplica, h, para o efeito que
aqui interessa, revogao do precedente. Ou melhor, h exerccio de
poder deferido unicamente ao Supremo Tribunal Federal. No obstante,
de se pontuar. O fato de nenhum outro rgo judicial, que no o
Supremo Tribunal Federal, poder revogar os precedentes relativos a
decises tomadas em ao direta de constitucionalidade, no significa
excluir a possibilidade de exerccio de ao concreta. possvel admitir
a incoao do controle difuso para se chegar ao Supremo Tribunal
Federal, j que o jurisdicionado no dispe de qualquer outro meio
para fazer valer o seu direito enquanto o precedente no for
revogado.Contudo, para no se concluir que sempre imprescindvel
chegar ao Supremo Tribunal Federal, possvel admitir, em hipteses
excepcionais, de notria e incontestvel perda de substrato do
precedente, uma espcie de revogao antecipada, nos moldes do que
ocorre no common law mediante o que se denomina de antecipatory
overruling.[footnoteRef:22] [22: Robert S. Summers, Precedent in
the United States (New York State). In: Interpreting Precedents: A
Comparative Study. London: Dartmouth, 1997, p. 394 e ss.]
De qualquer maneira, a coisa julgada da declarao de
constitucionalidade no impede a considerao de novas circunstncias,
inclusive a alterao da concepo geral acerca de questo de direito,
em sede de recurso extraordinrio. No haveria racionalidade em
admitir a invocao destas circunstncias em ao de
inconstitucionalidade e, ao mesmo tempo, impedir o Supremo Tribunal
Federal de as enxergar ao se defrontar com recurso extraordinrio.
Em caso de recurso extraordinrio, h necessidade de no violar a
segurana jurdica daquele que se comportou de acordo com a deciso de
constitucionalidade. No se pode esquecer que, no caso de relaes
continuativas, a deciso opera para o futuro porque a prpria ao,
tendo que se fundar em nova circunstncia, no objetiva alcanar seno
as situaes que esto por vir. Assim, no h como admitir ao direta de
inconstitucionalidade ou ao concreta para negar situao jurdica
formada com base na deciso de constitucionalidade, pois isto seria
violar a coisa julgada. Alis, mesmo que no haja deciso proferida em
ao direta, mas apenas precedente decorrente de deciso tomada em
recurso extraordinrio, a situao jurdica que se consolidou com base
no precedente no pode ser atingida pela posterior deciso que
declarou a inconstitucionalidade.Ou seja, a deciso proferida na ao
direta de inconstitucionalidade no pode apanhar situaes pretritas e
no apenas a coisa julgada material.[footnoteRef:23] Do mesmo modo,
a deciso tomada em recurso extraordinrio, alm de obviamente no
poder atingir a coisa julgada, no pode alcanar situao anterior que
se formou a partir de precedente. [23: No Estado Constitucional
brasileiro, em que o juiz tem o dever de interpretar a lei de
acordo com a Constituio e de realizar o controle da
constitucionalidade no caso concreto, no h como sustentar que a
jurisdio atua a vontade da lei, na linha proposta por Chiovenda, ou
mesmo se limita a criar a norma concreta, nos termos da teoria de
Kelsen e das doutrinas de Carnelutti e Calamandrei. Nas teorias
clssicas, o juiz declara a lei ou cria a norma individual a partir
da norma geral. Atualmente, cabe ao juiz o dever-poder de elaborar
ou construir a deciso, isto , a norma jurdica do caso concreto,
mediante a interpretao de acordo com a Constituio e o controle da
constitucionalidade. A deciso transitada em julgado, assim, no pode
ser invalidada como se constitusse mera declarao ou aplicao da lei,
mais tarde pronunciada inconstitucional. A deciso judicial o
resultado da interpretao de um juiz dotado de dever de controlar a
constitucionalidade no caso concreto, e, portanto, no pode ser
pensada como uma deciso que se limita a aplicar uma lei
posteriormente declarada inconstitucional. Como oberva Proto
Pisani, possvel dizer que a coisa julgada material opera como lex
specialis, separando a disciplina do direito feito valer em juzo da
norma geral e abstrata, da decorrendo a inoperatividade do ius
superveniens retroativo sobre a fattispecie concreta de que deriva
o direito objeto da coisa julgada, e ainda a inoperatividade da
superveniente declarao de inconstitucionalidade da norma geral e
abstrata sobre a qual se decidiu (Andrea Proto Pisani, Appunti sul
giudicato civile e sui suoi limiti oggettivi, Rivista di Diritto
Processuale, 1990, p. 389). A sentena que produziu coisa julgada
material, por constituir uma norma elaborada por um juiz que tem o
dever de realizar o controle difuso da constitucionalidade, no pode
ser invalidada por ter se fundado em lei posteriormente declarada
inconstitucional. Note-se que isto equivaleria nulificao do juzo de
constitucionalidade e no apenas nulificao da lei declarada
inconstitucional. Impedir que a lei declarada inconstitucional
produza efeitos muito diferente do que negar efeitos a um juzo de
constitucionalidade, legitimado pela Constituio. Proteger a coisa
julgada no significa permitir que, no plano substantivo, um ato
inconstitucional produza efeitos. Ver Luiz Guilherme Marinoni,
Coisa Julgada Inconstitucional, cit.]
A deciso proferida em recurso extraordinrio, considerando
inconstitucional a norma antes afirmada constitucional pelo
precedente tambm derivado de recurso extraordinrio, no deve ter
efeitos retroativos em relao prpria situao litigiosa sob
julgamento. Em todos os casos em que a revogao do precedente no s
conduzir a uma nova deciso acerca da questo de constitucionalidade,
mas puder apanhar situao jurdica que se formou em benefcio do
recorrido, os efeitos retroativos da deciso proferida no recurso
extraordinrio devero ser limitados ou mesmo inibidos. No h dvida
que, em tal hiptese, poder haver deciso favorvel sem quaisquer
efeitos concretos benficos. Mas isto prprio de um sistema em que
mesmo as decises proferidas em controle difuso assumem a natureza e
a funo de precedentes constitucionais com fora vinculante,
independentemente de suas repercusses nos casos concretos que os
oportunizaram. certo que esta ideia ainda no faz parte da prtica do
Supremo Tribunal Federal. Porm, trata-se de questo que tem grande
importncia para o adequado desenvolvimento do sistema de
precedentes. A confiana depositada pelo jurisdicionado no
precedente no pode ser desconsiderada pelo Supremo Tribunal
Federal. O responsvel pela legitima expectativa criada em favor do
jurisdicionado deve zelar para que as situaes que se pautaram no
precedente sejam efetivamente respeitadas, sem deixar de
considerar, igualmente, os fatores que possam fazer crer que a
confiana no precedente j teria esmorecido. No direito
estadunidense, a prtica judicial dos efeitos retroativo e
prospectivo variada. Em caso de revogao de precedente, caminha-se
entre a eficcia geral meramente prospectiva e a eficcia geral
plenamente retroativa, admitindo-se, em determinados casos, a
irretroatividade da deciso em relao ao prprio caso sob julgamento.
[footnoteRef:24] [24: Ver Melvin Aron Eisenberg, The Nature of the
Common Law, cit, p. 89 e ss. ]
De outro lado, conveniente ressaltar, desde j, que no apenas a
deciso de constitucionalidade que se sujeita s chamadas novas
circunstncias, mas tambm a deciso que, proferida em recurso
extraordinrio, reconhece a inconstitucionalidade de norma. A norma,
no caso, no retirada do ordenamento jurdico, embora os motivos
determinantes da deciso fiquem acobertados pela eficcia vinculante,
atingindo todos os outros rgos do Poder Judicirio, bem como a
administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal, estadual
e municipal. Assim, certamente possvel que a deciso que reconheceu
a inconstitucionalidade de dada norma um dia seja contrariada,
pelas mesmas razes que autorizam a revogao de precedente
constitucional ou que do ao Supremo Tribunal Federal a
possibilidade de declarar inconstitucional uma norma que antes
pronunciou constitucional.Esta questo oportuniza a anlise dos
efeitos vinculantes da deciso, uma vez que faz ver que a
estabilidade da proclamao da inconstitucionalidade no decorre da
coisa julgada material, mas de os fundamentos determinantes ficarem
acobertados pela eficcia vinculante. O verdadeiro motivo para se
pensar em eficcia vinculante est na preocupao com a estabilidade
dos fundamentos determinantes da deciso.[footnoteRef:25] Assim,
equivocado imaginar que os efeitos vinculantes acobertam apenas a
parte dispositiva da deciso. O objetivo da eficcia vinculante no
tornar indiscutvel ou imutvel o dispositivo da deciso, nem tornar
indiscutveis ou imutveis os fundamentos da deciso em relao s
partes, sejam formais ou materiais. [25: Como escreve Michael
Sachs, o prprio Tribunal Constitucional Federal defendeu, em
jurisprudncia constante e de longa data, a concepo de que essa fora
vinculante de suas decises vai alm do respectivo dispositivo i.e.,
vai alm da deciso normalmente encontrada acerca do objeto do
processo para tambm abranger os fundamentos determinantes de suas
decises. Com isso, essa eficcia vinculante tambm atinge as concepes
jurdicas que sejam determinantes para as decises (Michael Sachs,
Verfassungsprozessrecht, 2. ed. Frankfurt am Main: Verlag Recht und
Wirtschaft, 2007, p. 186). No original: Das BVerfG selbst hat in
stndiger Rechtsprechung lange Zeit die Auffassung vertreten, dass
diese Bindungskraft seiner Entscheidungen sich ber den jeweiligen
Tenor bzw. die regelmig darin getroffene Entscheidung ber den
Entscheidungsgegenstand hinaus auch auf die tragenden Grnde seiner
Entscheidungen erstreckt. Damit beansprucht es diese
Bindungswirkung auch fr die Rechtsauffassungen, die fr seine
Entschediungen jeweils mageblich sind (Michael Sachs,
Verfassungsprozessrecht, 2. ed. Frankfurt am Main: Verlag Recht und
Wirtschaft, 2007, p. 186).]
A eficcia vinculante almeja isolar os fundamentos determinantes
da deciso, impedindo que os rgos pblicos que aplicam o direito
possam neg-los. Assim, alm de no se limitar ao dispositivo, a
eficcia vinculante no se volta a dar segurana s partes, e,
portanto, est muito distante da coisa julgada. certo que na ao
abstrata no existe partes e ainda assim se fala, inclusive no plano
normativo, em coisa julgada. Trata-se, porm, de distoro do fenmeno
da coisa julgada, que se popularizou por fora da sua aceitao
perante a comunidade jurdica. Quando primitivamente se concebeu a
coisa julgada na ao abstrata, pensou-se, em verdade, em eficcia
vinculante limitada ao dispositivo da deciso. Embora exista
discusso acerca dos limites objetivos da eficcia vinculante, a sua
razo de ser ou a sua essncia afastam completamente a idia de v-la
limitada ao dispositivo da deciso. Isto porque a eficcia vinculante
vista como eficcia obrigatria em relao aos rgos pblicos incumbidos
de aplicar o direito e, se bastasse obrigar-lhes a se curvar aos
dispositivos das decises, seria suficiente a tal coisa julgada erga
omnes. Ou melhor, embora a eficcia vinculante destine-se a conferir
segurana jurdica aos jurisdicionados, ela no se preocupa em
garantir a indiscutibilidade ou a imutabilidade da precisa soluo
dada ao objeto litigioso, mas em tutelar a estabilidade da ordem
jurdica, a previsibilidade e a igualdade.Como est claro, a eficcia
vinculante tem o mesmo objetivo da eficcia obrigatria dos
precedentes e, nesta dimenso, do stare decisis. O precedente apenas
garantido quando os rgos judiciais esto a ele vinculados. Porm, a
parte dispositiva no capaz de atribuir significado ao precedente;
esse depende, para adquirir contedo, da sua fundamentao, ou, mais
precisamente, da ratio decidendi[footnoteRef:26] ou dos fundamentos
determinantes da deciso. Na verdade, a eficcia obrigatria dos
precedentes , em termos mais exatos, a eficcia obrigatria da ratio
decidendi. Da a razo bvia pela qual a eficcia vinculante no pode se
limitar ao dispositivo da deciso. S h sentido e razo para falar em
eficcia vinculante quando se pretende dar estabilidade e fora
obrigatria ratio decidendi. Afinal, a sua aplicao uniforme e no o
respeito exclusivo parte dispositiva - que garante a
previsibilidade e a igualdade de tratamento perante a jurisdio,
dando-se efetividade ao postulado de que casos semelhantes devem
ser tratados de igual modo. [26: Sobre o conceito de ratio
decidendi, ver Geoffrey Marshall, What is binding in a precedent.
In: Interpreting Precedents: A Comparative Study. London:
Dartmouth, 1997, p. 503 e ss; Julius Stone, Precedent and Law: The
Dynamics of Common Law Growth. Sydney: Butterworths, 1985, p. 123 e
ss.]
De forma que pretender que a eficcia vinculante seja limitada ao
dispositivo , antes de mais nada, no ter conscincia de que a
eficcia vinculante tem o objetivo de preservar a coerncia da ordem
jurdica, assim como a previsibilidade e a igualdade. Mas no se
pense, apressadamente, que a eficcia vinculante pode obstaculizar o
desenvolvimento do direito ou congelar as decises do Poder
Judicirio, impedindo a sua renovao e adequao aos novos tempos. O
art. 102, 2, da Constituio Federal expresso no sentido de que a
eficcia vinculante no atinge o Supremo Tribunal Federal.
Objetiva-se, ao imunizar o rgo que prolatou a deciso da eficcia
vinculante da ratio decidendi, exatamente permitir a revogao do
precedente.No h dvida que o Supremo Tribunal Federal, como qualquer
tribunal que profira decises que obriguem outros rgos judiciais,
pode revogar os seus precedentes. No pode revog-los em virtude de
simples alterao pessoal na compreenso do direito ou da mera alterao
na composio do Tribunal, com a sada de um ou alguns Ministros e a
entrada de outro ou outros. Se isto fosse possvel como
patologicamente chega a ocorrer no common law -, a coerncia da
ordem jurdica ficaria na dependncia de meras vontades, alterando-se
a todo instante. Como bvio, no se quer dizer com isto que novas
posies pessoais no possam ou devam ser ouvidas, ou que a composio
do Tribunal no expresse vontades morais diferenciadas. O que se
deseja evidenciar que, para se alterar um precedente, qualquer
membro do Tribunal, seja recente ou antigo, deve expressar
fundamentao capaz de evidenciar que o precedente perdeu a sua razo
de ser em face da alterao da realidade social, da modificao dos
valores, da evoluo da tecnologia ou da alternncia da concepo geral
do direito. Neste caso, o Juiz assume um nus de evidenciar que tais
motivos no s esto presentes, como so consistentes e fortes o
bastante para se sobreporem s razes determinantes antes adotadas.
Caso a maioria do Tribunal no consiga vencer o nus de alegar,
demonstrar e evidenciar que boas razes impem a revogao do
precedente, esse dever ser mantido.[footnoteRef:27] [27: Gilmar
Mendes, em sede doutrinria, afirma que de um ponto de vista
estritamente material tambm de se excluir uma autovinculao do STF
aos fundamentos determinantes de uma deciso anterior, pois isto
poderia significar uma renncia do prprio desenvolvimento da
Constituio, tarefa imanente aos rgos de jurisdio constitucional.
Todavia, parece importante, tal como assinalado por Bryde, que o
Tribunal no se limite a mudar uma orientao eventualmente fixada,
mas que o faa com base em uma crtica fundada do entendimento
anterior, que explicite e justifique a mudana. Quem se dispe a
enfrentar um precedente, fica duplamente onerado pelo dever de
justificar-se (Gilmar Ferreira Mendes, Inocncio Mrtires Coelho e
Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional, So
Paulo: Saraiva, 2009, p. 1.338)]
Porm, no h dvida que o Supremo Tribunal Federal pode revogar os
seus precedentes. Isto indicado, como j se disse, pela prpria
Constituio Federal. Trata-se, hoje, de algo absolutamente natural,
inclusive nos sistemas de common law. Na realidade, desconhece-se,
na atualidade, sistema de eficcia absolutamente vinculante, ou
seja, sistema que proba a Corte Suprema de um pas de revogar os
seus precedentes. Lembre-se que a particularidade da eficcia
absolutamente vinculante a proibio de o tribunal revogar a sua
prpria deciso, ainda que tenha bons fundamentos para tanto. o que
acontecia na Cmara dos Lordes da primeira metade da Inglaterra do
sculo XX. No final do sculo XIX, a House of Lords decidiu, em
London Tramways, que no poderia revogar os seus precedentes, tendo
esta deciso constitudo espcie de imunidade contra o
overruling[footnoteRef:28]. Tal precedente constituiu o ponto
culminante de uma evoluo em direo vinculao absoluta da Cmara dos
Lordes s suas decises[footnoteRef:29]. Apenas em 1966 a House of
Lords declarou que, diante de certas circunstncias, poderia revogar
as suas prprias decises.[footnoteRef:30] Antes disso, a House
estava absolutamente vinculada aos seus julgados, ainda que
estivesse convicta de que em certos casos, ao reiter-los, estaria
perpetuando uma deciso injusta.[footnoteRef:31] [28: Neil Duxbury,
The Nature and Authority of Precedent, cit., p. 125.] [29: Jim
Evans, Precedent in the nineteenth century. In: GOLDSTEIN, L. (Ed.)
Precedent in Law. Oxford: Clarendon Press, 1987, p. 58.] [30: Em
1966, um Statement autorizou a House of Lords a revogar os seus
precedentes. Eis parte da justificativa para o overruling: os
Lordships consideram o uso do precedente uma base indispensvel para
decidir o que o direito e para aplic-lo aos casos concretos.
Fornece um grau mnimo de certeza perante o qual os indivduos podem
pautar suas condutas, bem como uma base para o desenvolvimento
ordenado de regras jurdicas. Os Lordships, no obstante, reconhecem
que uma aderncia muito rgida aos precedentes pode levar injustia em
um caso concreto e tambm restringir excessivamente o devido
desenvolvimento do direito. Eles propem, portanto, modificar a
presente prtica e, embora tratando as antigas decises como
normalmente vinculantes, deixar de lado uma deciso anterior quando
parecer correto faz-lo. Segundo Neil Duxbury, o Practice Statement
de 1996 prova de que a Corte podia voltar atrs em sua palavra, algo
que ela de fato fez. (Neil Duxbury, The Nature and Authority of
Precedent, cit., p. 126).] [31: V. Neil MacCormick, Can stare
decisis be abolished? Judicial Review, 1966, p. 198. ]
Isto est muito longe de poder acontecer no Brasil. No fosse a
Constituio Federal, a dizer que a eficcia vinculante no atinge o
Supremo Tribunal Federal, a racionalidade impediria a nossa mais
Alta Corte de reiterar decises quando consciente do seu equvoco.
Reafirme-se, porm, que o Supremo Tribunal Federal est, em outro
sentido, obrigado diante das suas prprias decises, pois apenas pode
revog-las quando for capaz de expressar fundamentao suficiente a
evidenciar que o precedente perdeu a sua razo de ser em face da
alterao da realidade social, da modificao dos valores, da evoluo da
tecnologia ou da alternncia da concepo geral do direito.Ademais, no
h dvida que o Supremo Tribunal Federal vinculado coisa julgada das
suas decises, no podendo, em hiptese alguma, desconsider-las.
Note-se, agora com maior facilidade, que a questo da possibilidade
de declarar inconstitucional norma j declarada constitucional ou de
declarar constitucional norma declarada inconstitucional em recurso
extraordinrio, sem dvida revela hiptese em que se trata da
admissibilidade da revogao de precedente e no de descaso com a
coisa julgada. No caso de norma declarada constitucional em ao
direta, a revogao do precedente no retroage, e, no caso de norma
declarada constitucional em ao concreta, a revogao do precedente no
retroage sobre a coisa julgada desta especfica ao. Em caso de norma
declarada inconstitucional em recurso extraordinrio, evidente que
posterior declarao de constitucionalidade no retroage sobre a coisa
julgada que se formou. Alm disto, e esta outra estria, a revogao do
precedente nem sempre retroage quando no h coisa julgada material.
Ou seja, no porque no h coisa julgada que a deciso de revogao do
precedente est liberada para produzir efeitos retroativos, como se
no houvesse que se garantir a segurana jurdica decorrente da
previsibilidade ento gerada pelo precedente que at ento sobrevivia.
A existncia de coisa julgada e a inexistncia de eficcia vinculante
em relao ao Supremo Tribunal Federal apenas um dos pontos que
evidenciam a distino entre coisa julgada e eficcia vinculante.
Olhando-se no sentido inverso, a diferena entre os institutos ainda
mais bvia. Ora, os demais rgos do Poder Judicirio no esto
vinculados apenas s decises que produzem coisa julgada erga omnes,
mas tambm ratio decidendi das decises proferidas em recurso
extraordinrio, o que demonstra que a eficcia vinculante tambm anda
de mais separadas da coisa julgada quando analisada em relao aos
demais tribunais. Quando deciso do Supremo Tribunal Federal produz
coisa julgada erga omnes e possui eficcia vinculante, os tribunais
de justia, por exemplo, esto duplamente submetidos mesma deciso,
porm por razes diversas e autnomas. Devem respeito coisa julgada
erga omnes e ratio decidendi. Na hiptese de relaes continuativas,
embora em tese possam considerar novas circunstncias para fazer
cessar a eficcia temporal da coisa julgada, no podem tomar em conta
aquelas que so capazes de permitir a revogao do precedente
constitucional, negando a sua ratio decidendi. Nesse caso, o que os
impede de fazer cessar a coisa julgada no a coisa julgada erga
omnes, mas a eficcia vinculante. Fora tudo isto, no demais lembrar
que decises que sequer so aptas a produzir coisa julgada material
so capazes de conter eficcia vinculante. Basta atentar s decises
que concedem medida liminar em aes direta de constitucionalidade e
de inconstitucionalidade. Estas decises, por no terem carga
declaratria suficiente, no produzem coisa julgada material.
Entretanto, tais decises podem ter eficcia vinculante, ainda que no
produzam coisa julgada. Neste caso, as razes de decidir sero
provisrias, ou melhor, existiro motivos determinantes de uma deciso
provisria ou, simplesmente, uma ratio decidendi provisria como
natural a todo e qualquer juzo sobre o mrito proferido no curso de
um processo. Porm, ainda que provisria, a ratio decidendi tem fora
obrigatria ou eficcia vinculante em relao aos demais rgos judiciais
e administrao pblica direta e indireta, nas esferas federal,
estadual e municipal. No haveria porque conferir eficcia vinculante
s decises definitivas e negar igual fora s decises provisrias,
proferidas em aes de constitucionalidade e inconstitucionalidade. A
menos que se pretenda dar vazo ao controle difuso durante o tempo
de processamento das aes voltadas ao controle abstrato. Porm, no
parece que seja esta a inteno do sistema estruturado sob o binmio
controle concentrado-controle difuso. Se o processo objetivo foi
instaurado, abrindo-se oportunidade ao exerccio da jurisdio
constitucional, no h razo para negar eficcia s decises provisrias
do Supremo Tribunal Federal. Perceba-se que, ao se negar eficcia
vinculante s decises liminares proferidas em aes diretas de
constitucionalidade e inconstitucionalidade, o exerccio da jurisdio
constitucional, em sede de juzo provisrio, torna-se um flatus
vocis. O Supremo Tribunal Federal vem decidindo no sentido de que
as suas decises liminares tm eficcia vinculante. Assim, por
exemplo, na Reclamao n. 2.256, de relatoria do Ministro Gilmar
Mendes, decidiu-se, por maioria, vencido o Ministro Marco Aurlio,
que a deciso liminar concedida na ADI n. 1.730/RN tinha eficcia
vinculante, de modo a desautorizar deciso proferida pelo Tribunal
de Justia do Rio Grande do Norte, que a
desobedecera[footnoteRef:32]. [32: O Tribunal, por maioria, julgou
procedente a reclamao para cassar o acrdo do Tribunal de Justia do
Estado do Rio Grande do Norte, que deferiu o mandado de segurana,
vencido o Senhor Ministro Marco Aurlio, que no a conhecia. Votou o
Presidente, o Senhor Ministro Maurcio Corra. Ausentes,
justificadamente, os Senhores Ministros Celso de Mello e Carlos
Velloso e, neste julgamento, o Senhor Ministro Seplveda Pertence.
(STF, Rcl. n. 2.256, Plenrio, Relator Min. Gilmar Mendes, julgado
em 11.09.2003).]
No obstante, tratando-se especificamente da ratio decidendi,
importa advertir que, embora esta, nas decises concessivas de
liminar, tenha natureza provisria, isto no significa que se possa
descurar da sua precisa delimitao. que a importncia da definio da
ratio decidendi tem relao com a circunstncia de a deciso ter
eficcia vinculante, e no com a cognio se sumria ou exauriente -
emprestada deciso, ou melhor, com o fato desta produzir ou no coisa
julgada material. De outro lado, nos termos do artigo 102, I, l, da
Constituio Federal, cabe Reclamao ao Supremo Tribunal Federal para
a preservao de sua competncia e garantia da autoridade de suas
decises. A Lei n. 8.038/90 que institui normas procedimentais para
os processos que especifica, perante o Superior Tribunal de Justia
e o Supremo Tribunal Federal -, regula a Reclamao em seu Captulo
II, estabelecendo que, ao julgar procedente a reclamao, o Tribunal
cassar a deciso exorbitante de seu julgado ou determinar medida
adequada preservao de sua competncia (art. 17).A Reclamao, enquanto
instituto processual, no depende da eficcia
vinculante[footnoteRef:33]. Antes da Emenda Constitucional n. 3/93,
que introduziu o efeito vinculante, j se admitia a Reclamao diante
do controle abstrato de constitucionalidade, porm adstrita ao autor
da ao direta de inconstitucionalidade e ao rgo que editou a norma,
alm de limitada ao desrespeito parte dispositiva da deciso e no sua
ratio decidendi. Porm, admitindo-se que a ratio decidendi ou os
motivos determinantes da deciso de inconstitucionalidade ou de
constitucionalidade ficam cobertos pela eficcia vinculante, no h
como limitar a Reclamao ao dispositivo da deciso de
(in)constitucionalidade. Se os fundamentos determinantes tm eficcia
vinculante, a proibio que atinge os demais rgos judiciais e os rgos
da administrao pblica logicamente mais extensa. Assim, por exemplo,
os juzes esto proibidos de desrespeitar as razes essenciais que
levaram deciso de inconstitucionalidade e no somente de adotar a
norma que foi declarada inconstitucional. Por simples conseqncia,
no h porque restringir a Reclamao ao autor da ao direta e ao rgo
que editou a norma. Em virtude da eficcia vinculante, legitimados
Reclamao so os eventuais beneficiados pela deciso e os que
desrespeitarem a sua ratio decidendi, ou melhor, qualquer um deles.
[33: A Reclamao constitui forma de cassar deciso que desrespeitou a
autoridade de tribunal hierarquicamente superior, a qual no depende
da eficcia vinculante. Ou seja, se a Reclamao instrumento
tcnico-processual destinado a impedir o desrespeito autoridade do
Tribunal, ela em tese pode ser utilizada ainda que a deciso
desrespeitada no tenha eficcia vinculante. Porm, deixe-se claro,
apenas para cassar a deciso que desrespeitou o dispositivo da
deciso e no a sua ratio decidendi.]
Lembre-se que, na Reclamao n. 1987, o Supremo Tribunal Federal
deixou claro o cabimento de Reclamao para ressuscitar a autoridade
dos fundamentos determinantes de deciso prolatada em ao direta de
inconstitucionalidade.[footnoteRef:34] Na ocasio, disse o relator
da Reclamao, Ministro Maurcio Correa, que a questo fundamental que
o ato impugnado no apenas contrastou a deciso definitiva proferida
na ADI n. 1662, como, essencialmente, est em confronto com os seus
motivos determinantes.[footnoteRef:35] [34: Ausente a existncia de
preterio, que autorize o seqestro, revela-se evidente a violao ao
contedo essencial do acrdo proferido na mencionada ao direta, que
possui eficcia erga omnes e efeito vinculante. A deciso do
Tribunal, em substncia, teve sua autoridade desrespeitada de forma
a legitimar o uso do instituto da reclamao. Hiptese a justificar a
transcendncia sobre a parte dispositiva dos motivos que embasaram a
deciso e dos princpios por ela consagrados, uma vez que os
fundamentos resultantes da interpretao da Constituio devem ser
observados por todos os tribunais e autoridades, contexto que
contribui para a preservao e desenvolvimento da ordem
constitucional. (STF, RCL n. 1987, Pleno, Rel. Min. Maurcio Corra,
DJ de 21.05.2004).] [35: STF, RCL n. 1987, Pleno, Rel. Min. Maurcio
Corra, DJ de 21.05.2004.]
Por fim, no h dvida que, tratando-se de deciso com eficcia
vinculante, a sua no observncia no pode deixar de caracterizar
grave violao de dever funcional, abrindo oportunidade para medidas
de ordem administrativa, criminal e civil.[footnoteRef:36] Os rgos
judiciais e autoridades administrativas vinculados obviamente no
podem deixar de observar as decises. Bem por isto, caso o faam,
devem responder por suas aes.[footnoteRef:37] [36: De acordo com
Gilmar Mendes, a no-observncia da deciso caracteriza grave violao
de dever funcional, seja por parte das autoridades administrativas,
seja por parte do magistrado (Gilmar Ferreira Mendes, Inocncio
Mrtires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito
Constitucional, cit., p. 1.339)] [37: Ver Roger Stiefelmann Leal, O
efeito vinculante na jurisdio constitucional, So Paulo: Saraiva,
2006, p. 167-168.]
Caso um rgo judicial se negue a adotar deciso com eficcia
vinculante, desrespeitando os seus fundamentos determinantes, estar
caracterizado o ilcito suficiente propositura de ao de
ressarcimento contra o Estado. Neste caso, dificuldade haver,
apenas, para se determinar a extenso do dano provocado parte que,
litigando na ao concreta, injustamente submeteu-se arbitrariedade
do juiz ou do tribunal. Igual raciocnio, como bvio, aplica-se
hiptese em que rgo da administrao pblica comete a ilicitude.Para
concluir este tpico, destinado a demonstrar a relevncia da eficcia
vinculante diante da eficcia erga omnes da coisa julgada, importa,
fundamentalmente, destacar que a eficcia vinculante se liga eficcia
dos precedentes e no ao significado da deciso para as partes ou
mesmo eficcia que naturalmente decorre das decises que realizam o
controle abstrato de normas. Com a eficcia vinculante no se quer
garantir uma tutela jurisdicional parte ou quele que diretamente
afetado pela deciso em controle concentrado. A eficcia vinculante
se destina a dar fora obrigatria ratio decidendi ou aos fundamentos
determinantes da deciso, impedindo que eles sejam desconsiderados
em quaisquer decises de rgos judiciais inferiores.[footnoteRef:38]
[38: De lado, obviamente, a obrigatoriedade acarretada aos rgos da
administrao pblica, que, neste momento, no importa.]
A eficcia vinculante garante aos jurisdicionados a coerncia da
ordem jurdica, assim como a previsibilidade e a igualdade, o que
nada tem a ver com os objetivos da coisa julgada e da eficcia erga
omnes. A eficcia vinculante enfatiza a obrigatoriedade do respeito
aos precedentes. Alis, no haveria motivo para pensar em ratio
decidendi e obiter dicta se os precedentes no contassem com o
respeito dos rgos judiciais.