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PSICOLOGIA, Vol. XXV (1), 2011, Edies Colibri, Lisboa, pp.
113-157
COGNIO SOCIAL: FUNDAMENTOS, FORMULAES ACTUAIS E PERSPECTIVAS
FUTURAS1
Margarida Vaz Garrido2 3 Catarina Azevedo2 Toms Palma2 Resumo: A
Cognio Social emergiu em meados dos anos 70 como uma aborda-gem
conceptual genrica com o objectivo de compreender e explicar como
que as pessoas se percebem a si prprias e aos outros, e como que
essas percepes permitem explicar, prever e orientar o comportamento
social. Esta nova aborda-gem constituiu-se com base na vasta tradio
terica e de investigao da Psicolo-gia Social, e integra ideias e
metodologias da Psicologia Cognitiva na explorao dos fundamentos
cognitivos dos fenmenos sociais. Inicialmente, apoiada no paradigma
do processamento da informao, a abordagem scio-cognitiva procu-rou
explorar as estruturas e os processos cognitivos subjacentes
percepo e comportamento social. Mais recentemente, a disciplina tem
vindo a integrar novos contributos, que enfatizam os
constrangimentos emocionais, motivacionais, corpo-rais e os efeitos
situacionais na cognio e comportamento humanos, e a beneficiar dos
desenvolvimentos tericos e tecnolgicos das neurocincias
scio-cognitivas. Da reviso de literatura realizada constata-se
ainda um interessante paradoxo que resulta da oposio entre o esforo
de integrao da cognio social situada e a natureza simplificadora
das abordagens das neurocincias. Palavras-chave: Cognio Social;
Cognio Situada; Neurocincia Scio-Cognitiva Social cognition:
Foundations, current formulations and future perspectives
(Ab-stract): Social Cognition emerged in the mid 70s as a generic
conceptual ap-proach to understand and explain how people make
sense of themselves and of others and how such perceptions explain,
predict and shape their social behavior.
1 A preparao deste artigo foi parcialmente apoiada por uma bolsa
da Fundao para a
Cincia e Tecnologia PTDC/PSI/PSO/099346/2008, atribuda ao
primeiro e terceiro auto-res, e por uma bolsa de doutoramento da
Fundao para a Cincia e a Tecnologia SFRH/BD/43448/2008, atribuda ao
terceiro autor.
2 CIS/ISCTE Instituto Universitrio de Lisboa 3 Endereo para
correspondncia: Margarida Vaz Garrido, ISCTE, Instituto
Universitrio de
Lisboa, Departamento de Psicologia Social e das Organizaes, Av.
das Foras Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. Email:
[email protected]
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114 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
This new approach was based on a well-established theoretical
research tradition in Social Psychology and integrates ideas and
methods from Cognitive Psychology to elucidate the cognitive
determinants of social phenomena. Adopting a social
information-processing paradigm, socio cognitive approaches
explored the cogni-tive structures and processes that underlie
social perception and social behavior. More recently, this
discipline has integrated new contributions which emphasize the
emotional, motivational, bodily and situational constrains to
cognition and behavior and has benefited from theoretical and
technological developments in social cognitive neuroscience. The
literature reviewed here also highlights an interesting paradox
that results from the integrative efforts of socially situated
cognition and the simplifying nature of the neurosciences.
Keywords: Social Cognition, Situated Cognition, Social Cognitive
Neuroscience
Introduo
How do we make sense of other people and of ourselves? What do
we know about the people that we encounter in our daily lives and
about the situations in which we encounter them, and how do we make
sense of this knowledge when we attempt to understand, predict or
recall their behavior? Are our social judgments fully determined by
our social knowledge, or are they influenced by our feelings and
desires (Kunda, 1999, p. 1).
Estas so as questes centrais que orientaram a emergncia de
uma
abordagem relativamente recente a Cognio Social. Assente na
vasta tra-dio terica e de investigao da psicologia social, e
revigorada pela inte-grao de ideias e metodologias da psicologia
cognitiva, a abordagem da cognio social introduziu valiosos
contributos para a compreenso de mui-tas das questes e problemas
clssicos da psicologia social, empenhando-se igualmente em reas
ainda no exploradas de investigao. Esta perspectiva tem sido palco
de vrios desenvolvimentos tericos que, inicialmente parti-lharam o
pressuposto bsico de que, para compreender e explicar o
compor-tamento social, preciso considerar as estruturas e os
processos cognitivos que medeiam a relao entre um estmulo externo e
as respostas comporta-mentais observveis (e.g., Hamilton, Devine,
& Ostrom, 1994). Mais recen-temente, a disciplina tem vindo a
integrar novos contributos, nomeadamente aqueles que enfatizam os
constrangimentos emocionais, motivacionais, cor-porais e os efeitos
situacionais na cognio, que so considerados como reguladores
fundamentais da cognio e no, apenas, informao adicional a ser
processada (Smith & Semin, 2004). Paralelamente, a disciplina
tem vin-do a beneficiar dos desenvolvimentos tericos e tecnolgicos
das neurocin-
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Cognio Social 115
cias, que actuam enquanto ferramenta conjunta na compreenso dos
proces-sos psicolgicos e neuropsicolgicos subjacentes (Lieberman,
2010).
Embora o principal objectivo do presente artigo seja apresentar
uma breve reviso histrica dos fundamentos tericos da cognio social,
caracte-rizar o estado da arte e especular sobre as possveis
direces futuras desta abordagem, a uma reflexo crtica e integradora
sobre a literatura no escapa um interessante paradoxo. Este
paradoxo que tem caracterizado a disciplina desde os seus
antecedentes filosficos e histricos at aos actuais debates
epistemolgicos, resulta em parte do nvel de anlise a utilizar na
abordagem cognio e comportamento humanos (e.g., Doise, 1982; ver
tambm Semin, Garrido, & Palma, 2012).
Por um lado, e fruto de tradies filosficas elementaristas e,
sobretu-do, das teorias cognitivas do processamento da informao, o
estudo da cog-nio humana em geral, e da cognio social em
particular, tem adoptado uma abordagem mais microscpica, elementar,
individual e simblica da cognio tentando isolar os seus componentes
mais bsicos de forma a com-preender processos cognitivos mais
complexos. Mais recentemente, a natu-reza algo simplificadora e
localizacionista da abordagem das neurocincias cognitivas parece
contribuir novamente para este elementarismo descontex-tualizado.
Por outro lado, abordagens recentes defendem que o fluxo de
informao entre a mente e o mundo to denso e contnuo que no estudo
da natureza da actividade cognitiva a mente no constitui, por si s,
uma unida-de de anlise com significado. Por esse motivo, o estudo
da cognio exige um nvel macroscpico de anlise, na medida em que os
processos cogniti-vos emergentes possuem uma natureza diferente dos
processos cognitivos mais elementares (ou da sua combinao) que
alegadamente lhes do ori-gem. Assim, a cognio s poder ser
compreendida como um fenmeno emergente das interaces do indivduo
com o seu meio fsico e social envolvente, que constrange e/ou
expande os seus processos cognitivos. No entanto, e como veremos
mais frente, esta emergncia a partir de contextos infinitamente
variveis poder limitar o poder preditivo das teorias situa-das da
cognio.
Neste contexto, o paradoxo que resulta da oposio entre o esforo
de integrao da cognio social situada e a natureza simplificadora
das abor-dagens mais cognitivas e das neurocincias configuram um
cenrio que parece aproximar-se de uma dicotomia terica. No entanto,
as dicotomias tericas, embora teis investigao psicolgica, tendem a
fundamentar-se na explicao e classificao de fenmenos isolados, so
dificilmente refut-veis e limitam muitas vezes o progresso
cientfico (ver Garcia-Marques & Ferreira, 2011). Neste sentido,
ao longo do presente artigo e sempre que pertinente, procuramos
identificar em que medida determinados pressupos-
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116 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
tos filosficos, modelos tericos, ou abordagens metodolgicas
fundamen-tam ou reflectem o paradoxo anteriormente enunciado.
Fundamentos da Cognio Social
A cognio social emergiu em meados dos anos 70 e representa uma
abordagem conceptual e emprica genrica (e no apenas uma
sub-disciplina da cincia psicolgica) que procura compreender e
explicar como que as pessoas se percebem a si prprias e aos outros,
e como que essas percep-es permitem explicar, prever e orientar o
comportamento social. Um dos aspectos mais idiossincrticos desta
abordagem o facto do estudo dos fenmenos sociais ser realizado
atravs da investigao das estruturas e pro-cessos cognitivos pelos
quais operam (e.g., Hamilton et al., 1994; Sherman, Judd, &
Park, 1989). Decorrente da estreita relao que mantm com a cha-mada
revoluo cognitiva, esta abordagem ficou conhecida como cogni-o
social (McGuire, 1986), perspectiva cognitiva (Markus & Zajonc,
1985) ou paradigma do processamento de informao (Duveen, 2000),
sendo este, inicialmente, o modelo de processamento que orientou a
abordagem dos fundamentos cognitivos dos fenmenos sociais (Hamilton
et al., 1994).
Historicamente, e no mbito da psicologia, a compreenso que as
pes-soas tm do mundo social foi estudada, em primeiro lugar, sob
uma perspec-tiva fenomenolgica (Heider, 1958), preocupada em
descrever de forma sistemtica o modo como a generalidade das
pessoas afirmam experienciar o seu mundo. Paralelamente, surgiu
tambm a preocupao com as teorias do senso comum, ou seja, com as
teorias que as pessoas tm acerca umas das outras. As abordagens
scio-cognitivas actuais incorporaram estas problem-ticas mas foram
mais alm na sua explorao. O reconhecimento da impor-tncia de
estudar os processos cognitivos para explicar o comportamento
social levou muitos autores a tentar integrar os pressupostos
tericos e meto-dolgicos da psicologia cognitiva relativos percepo,
memria e pensa-mento, procurando adapt-los s problemticas da
psicologia social (Fiske & Taylor, 1991), nomeadamente a formao
de impresses (ver Garcia--Marques & Garcia-Marques, 2004;
Garrido, 2006; Hastie et al., 1980) e os esteretipos (ver
Garcia-Marques & Garcia-Marques, 2003; Hamilton, 1981) e ainda
a questes de personalidade (Cantor & Kihlstrom, 1981; Devine,
Hamilton, & Ostrom, 1994), atribuio social, comunicao, afecto,
proces-sos de julgamento e o self (Higgins, Herman, & Zanna,
1981; Wyer & Srull, 1984).
O poder explicativo dos modelos cognitivos adoptados em cognio
social prende-se, principalmente, com a sua capacidade em descrever
de forma precisa os mecanismos gerais da aprendizagem e do
pensamento, sub-
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Cognio Social 117
jacentes a uma variedade de reas. Os primeiros desenvolvimentos
da cogni-o social ficaram assim marcados pela investigao dos
fundamentos cogni-tivos dos fenmenos sociais atravs do modelo do
processamento da infor-mao, assumindo que o indivduo no contexto
social algum que se encontra virtualmente embrenhado nalguma forma
de processamento de informao. Isto aplica-se quer a pessoa esteja a
formar uma impresso, a dirigir uma reunio, a pensar na sua escola
primria, a lidar com uma doena ou a decidir que marca de
desodorizante comprar. Em qualquer uma destas circunstncias a
pessoa d ateno e codifica informao do contexto social, interpreta e
elabora essa informao atravs de processos avaliativos,
infe-renciais e atribucionais e representa esse conhecimento em
memria para que mais tarde possa ser recuperado e, subsequentemente
utilizado, em pro-cessos de pensamento e julgamento, e para guiar o
comportamento (Hamil-ton et al., 1994).
Para melhor compreender esta abordagem e os pressupostos em que
assenta importante perceber os antecedentes filosficos e histricos
que a sustentam e as concepes do percepiente social que preconizam.
Estes aspectos fundamentam ainda hoje perspectivas emergentes no
mbito da abordagem scio-cognitiva.
Antecedentes filosficos
Os fundamentos filosficos que marcaram a emergncia da aborda-gem
da cognio social so manifestos em duas grandes perspectivas: a
ele-mentarista e a holstica (Fiske & Taylor, 1991). A compresso
destas duas abordagens torna-se relevante na medida em que os seus
pressupostos bsi-cos fundamentam orientaes tericas e metodolgicas
distintas cujos ele-mentos centrais se podem facilmente distinguir
nos vrios desenvolvimentos tericos e metodolgicos que a abordagem
scio-cognitiva tem vindo a apre-sentar.
A perspectiva elementarista, que remonta aos filsofos britnicos
dos sculos XVII e XVIII (Hume, 1739/1978; Locke, 1690/1979),
caracteriza-se pela segmentao e anlise dos problemas cientficos nos
seus vrios com-ponentes, que s posteriormente sero combinados.
Segundo esta abordagem da mente, as ideias surgem da sensao e
percepo e constituem elementos que podem ser associados entre si. A
demarcao da psicologia como cincia autnoma da filosofia, aliada s
preocupaes de cientificidade e generali-zao dos estudos
laboratoriais, conduziram s primeiras tentativas de teste emprico
das concepes elementaristas. neste contexto que surgem os esforos
pioneiros de psiclogos como Wundt (1897/1907) e Ebbinghaus
(1885/1913) de observar os seus prprios processos de pensamento e
mem-ria atravs da introspeco controlada. Fortemente influenciados
pela abor-
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118 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
dagem elementarista, estes e outros investigadores procuravam
analisar a experincia nos seus vrios elementos, determinar como
estes se ligam, e identificar as leis que presidem a tais
associaes. Curiosamente, estas con-cepes elementaristas continuam
bem presentes na abordagem mais tradi-cional da cognio social onde
se procura isolar e explorar os elementos estruturais e as regras
subjacentes aos processos cognitivos. No entanto, a ideia de que o
isolamento dos elementos constituintes de um fenmeno e do modo como
estes elementos se combinam, assegura a sua adequada com-preenso no
se encontra isenta de crticas como veremos mais frente.
Contrastando com a perspectiva elementarista, a abordagem
holstica caracteriza-se pela anlise dos fenmenos no seu contexto,
incidindo sobre-tudo na configurao global de relaes entre eles.
Esta abordagem da mente tem origem nas teorias do filsofo alemo
Emanuel Kant (1781/1969) que, numa crtica s posies filosficas
vigentes, defende que os fenmenos mentais so inerentemente
subjectivos e sugere que a mente constri activa-mente a realidade,
indo alm do estmulo original. Kant atribui, assim, um papel mais
activo e construtivo ao percepiente social na percepo e
inter-pretao dos objectos experienciados. nestes pressupostos que
vai assentar a teoria da gestalt (Koffka, 1935, Kohler, 1976) que,
contrastando com as anlises elementaristas, se foca na experincia
imediata da percepo e, adoptando uma abordagem fenomenolgica,
procura descrever de forma sistemtica as experincias perceptivas e
o pensamento. Kurt Lewin (1951) importa as ideias da psicologia da
gestalt para a psicologia social e, em lti-ma anlise, para a cognio
social. Lewin centra-se nas interpretaes sub-jectivas que os
indivduos fazem do seu mundo social. Segundo o autor, seria
necessrio considerar o equilbrio dinmico da pessoa (com as suas
necessidades, crenas, capacidades perceptivas) e da situao, para
perceber como este conjunto de factores actua na construo da
realidade social. Para alm disso, havia que considerar a cognio, ou
seja, a interpretao que o percepiente faz do mundo, e a motivao,
que constituiria o motor do seu comportamento. Como veremos mais
frente estas ideias convergem com concepes mais situadas da cognio,
isto , com a ideia de que a cognio emerge da interaco entre o
indivduo e o seu mundo fsico e social.
Contudo, a abordagem da cognio social no se fundamenta apenas em
pressupostos filosficos gerais tendo integrado tambm, ao longo do
seu desenvolvimento, contributos mais especficos de diversas
disciplinas cient-ficas, que se sistematizam na seco seguinte.
Contributos de outras disciplinas cientficas
A Cognio Social uma abordagem relativamente recente mas que foi
rapidamente incorporada, quer terica, quer metodologicamente,
em
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Cognio Social 119
vrios domnios da psicologia. No entanto, as suas formulaes
remontam aos primrdios da psicologia, e a diversidade que
actualmente a caracteriza decorre de vrios contributos que tem
vindo a absorver ao longo do seu desenvolvimento. De uma forma
integradora, Barone, Maddux e Snyder (1997) sugerem que a cognio
social actual evoluiu a partir de quatro gran-des tradies em
psicologia: a tradio gestaltista, a teoria social da aprendi-zagem,
o construtivismo e a teoria do processamento de informao. A an-lise
dos fundamentos tericos fornecidos por esta vasta herana poder
aju-dar-nos a compreender as actuais formulaes scio-cognitivas.
A tradio gestaltista, fortemente enraizada na Alemanha, foi uma
das linhas de desenvolvimento que conduziram actual teoria social
cogniti-va, nomeadamente devido aos esforos desenvolvidos por
investigadores como Lewin (1951), Asch (1946) e Heider (1958) em
aplicar a teoria percep-tiva da gestalt ao estudo de processos
cognitivos num contexto social. Com-binando o interesse da gestalt
na percepo, com um interesse psicanaltico na motivao, Lewin (1951)
efectua pesquisas ao nvel do desenvolvimento da personalidade,
conflito, nvel de aspirao e interesse intrnseco, formu-lando a
teoria de campo que coloca a construo do self e do seu ambiente
como fenmeno psicolgico central. Contudo, esta ideia de que o mundo
social percebido pelo indivduo no independente das suas
caractersticas, conhecimentos, atitudes e motivaes no foi
imediatamente incorporada nos primeiros esforos da abordagem
scio-cognitiva. No entanto, a conside-rao destas variveis
constitui, actualmente, um dos pressupostos funda-mentais da teoria
e investigao em cognio social. Paralelamente, Asch aplica a teoria
da gestalt ao estudo da percepo interpessoal, explicando a formao
de impresses como um processo de construo de todos unifica-dos. As
suas investigaes, demonstrando que determinados aspectos cen-trais
da informao organizam a impresso em todos globais, aliadas aos
contributos de Kelley (1950) sobre a influncia das pr-concepes na
inte-raco social, constituem, ainda hoje, leituras obrigatrias na
investigao em cognio social. Finalmente, as contribuies de Heider
(1958), designa-damente a sua concepo do cientista ingnuo, reforam
a ideia de que as pessoas no so receptores passivos, mas que
interpretam activamente a informao. Efectivamente, as propostas
deste autor sugerindo que a previ-so e o controlo se obtm
atribuindo os eventos a propriedades estveis das pessoas e dos
contextos, constituem os alicerces da teoria da atribuio que
assumiu um papel proeminente na investigao inicial em cognio
social.
A aprendizagem social constitui, igualmente, uma linha de
desenvol-vimento onde se podem encontrar algumas razes da abordagem
scio--cognitiva. Esta proposta terica combina a aprendizagem animal
com for-mulaes clnicas acerca da personalidade e psicoterapia,
especialmente da psicanlise. Ao sugerir que a aprendizagem tem
lugar durante o desenvolvi-
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120 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
mento da personalidade, e que mediada por processos cognitivos e
afecti-vos (e.g., Dollard, Doob, Miller, Mower, & Sears, 1939),
esta proposta con-traria teorias mais reducionistas da aprendizagem
(e.g., Skinner, 1953; Wat-son, 1913). Adicionalmente, integrando a
teoria da aprendizagem e da ges-talt na teoria da aprendizagem
social, Rotter (1966) prope que o comporta-mento mediado por
expectativas e valores, e pelo reforo das atribuies acerca do locus
de controlo, sugerindo uma formulao cognitivo-comporta-mental mais
completa do que a formulao puramente comportamentalista na previso
do comportamento.
Estas duas teorias ofereceram alternativas fenomenologia e ao
com-portamentalismo, contribuindo para o enriquecimento de uma
cincia psico-lgica durante muito tempo dominada por prescries
objectivas, elementa-ristas, mecanicistas e reducionistas. A cognio
social actual combina as tradies cognitivas mais recentes com estas
duas perspectivas mais tradi-cionais: a sua vertente da psicologia
social, influenciada pela gestalt social, e a sua rea da
personalidade pela aprendizagem social (Barone et al., 1997).
A tradio construtivista assumiu, igualmente, um papel importante
no desenvolvimento de algumas formulaes da cognio social. Esta
tradi-o assenta nos trabalhos de Piaget (1952) sobre o
desenvolvimento cogniti-vo, mostrando que as crianas no so
percepientes passivos mas que cons-troem activamente o seu
conhecimento com base na experincia sensorial e motora quotidiana.
A epistemologia gentica Piagetiana combina, assim, o construtivismo
e a teoria do desenvolvimento, colocando os esquemas num lugar
central ao conhecimento e ao desenvolvimento. Os esquemas seriam,
ento, construes simblicas que representam eventos que orientam o
fun-cionamento psicolgico, e que mudam em resposta experincia.
Paralela-mente, a teoria cognitiva da personalidade de Kelly (1955)
reconstruiu a personalidade como cognio social, sugerindo a
existncia de um sistema de construtos pessoais que diferem de
pessoa para pessoa, e ao longo do tempo no indivduo, que so
utilizados pelas pessoas para interpretar a sua experincia. So
vrias as investigaes que apoiam esta ideia de que o mundo no
encontrado mas construdo. Este pressuposto est bem patente nos
trabalhos do new look em percepo (Bruner & Goodman, 1947;
Bruner & Postman, 1949) e nas investigaes de Hastorf e Cantril
(1954) sobre as percepes divergentes que indivduos diferentes podem
ter sobre a mesma realidade. A teoria construtivista encontra ainda
suporte na teoria esquemti-ca da recordao de Bartlett (1932), que
sugere a existncia de esquemas de construo de dados que so
codificados e depois reconstrudos e actualiza-dos em cada acto de
recordao. Apoio adicional a esta teoria pode ainda ser encontrado
nos trabalhos de Bruner (1982) que, tal como Piaget, salienta o
envolvimento de categorias ou esquemas na percepo e, tal como
Vygotsky (1962, 1978), o envolvimento de outras pessoas na aquisio
da linguagem.
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Cognio Social 121
Finalmente, investigaes na rea da linguagem e da aprendizagem
(e.g., Luria, 1976; Vygotsky, 1962, 1978) apontam para uma noo de
inteligncia como uma construo social resultante de ferramentas
culturais, e o conhe-cimento como a negociao de uma realidade
virtual.
As ideias da teoria construtivista, e a sua nfase na concepo de
esquemas como representaes simblicas da experincia passada que
orien-tam o funcionamento cognitivo, surgem assim como um dos
pilares da cog-nio social actual. Todavia, quer a investigao da
gestalt social em forma-o de impresses, quer as teorias
construtivistas que sugerem que os indiv-duos vo alm da informao
dada, foram inicialmente negligenciadas por esta abordagem.
A teoria do processamento de informao, associada revoluo
cog-nitiva na psicologia, recorre utilizao do computador como
metfora te-rica e ferramenta metodolgica para simular processos
cognitivos. A inteli-gncia artificial simulada em programas de
computador que reproduzem as diferentes fases de processamento da
informao, desde o estmulo inicial que codificado, ao modo como
representado e posteriormente recupera-do. Note-se ainda que estas
simulaes exploram o modo como a informao processada no s atravs da
aplicao das regras formais da lgica e da matemtica, mas tambm pela
aplicao de estratgias heursticas (Newell & Simon, 1961). neste
contexto que Simon (1997) desenvolve a teoria da racionalidade
limitada, chamando a ateno para as limitaes dos processa-dores
humanos de informao e dos constrangimentos que a quantidade e
diversidade da informao e as capacidades de computao limitadas
impem tomada de deciso. Note-se que esta proposta veio estabelecer
determinados limites s concepes scio-cognitivas sobre os
processadores humanos de informao, supostamente dotados de
racionalidade e de infini-tas capacidades de processamento.
Independentemente da relevncia e da influncia que as tradies da
gestalt social, da aprendizagem social e do construtivismo possam
ter tido, enquanto herana terica na cognio social, foi sem dvida a
teoria de pro-cessamento de informao que, de forma mais evidente,
marcou quer em termos de modelos tericos, quer metodolgicos a
emergncia da cognio social. Foi tambm esta ltima abordagem terica
que durante algum tempo impulsionou o estudo da cognio e dos
processos cognitivos como repre-sentaes e operaes simblicas
isoladas no crebro humano. Todavia, e como veremos mais frente,
ideias decorrentes da abordagem gestltica viriam a fundamentar o
pressuposto de que os processos psicolgicos consti-tuem unidades de
anlise qualitativamente diferentes da mera associao dos seus
elementos. Tambm alguns contributos decorrentes da teoria da
apren-dizagem social, nomeadamente os que colocam os processos
afectivos e motivacionais como mediadores da cognio, estaro na
origem de uma
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122 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
reformulao da abordagem s estruturas de conhecimento, que deixam
de ser vistas como estticas e imutveis mas como flexveis e
responsivas aos objectivos do percepiente numa dada situao.
Finalmente, tambm alguns dos pressupostos da teoria construtivista
nomeadamente os que sublinham a importncia dos processos
sensrio-motores na cognio e a relevncia de outros agentes sociais
nas aquisies cognitivas, inspiraram abordagens que sugerem que a
cognio humana emerge da interaco do indivduo (e do seu prprio
corpo) com o meio fsico e social que o rodeia.
Concepes do Percepiente Social
Quer os antecedentes filosficos em que se apoia, quer os
contributos das vrias disciplinas que a cognio social tem vindo a
integrar, reflectem--se nas propostas explicativas do modo como as
pessoas chegam sua pr-pria construo do mundo social (Bless,
Fiedler, & Strack, 2004; Devine, et al., 1994; Moskowitz,
2005). Consequentemente, as concepes do indiv-duo como percepiente,
pensador e agente social tm vindo a evoluir e a modificar-se ao
longo dos anos e, segundo Leyens e Dardenne (1996), podem ser
sistematizadas em cinco grandes perspectivas.
Numa primeira abordagem, o percepiente social foi encarado como
um ser racional e consistente, ou seja, algum que se apoiava na
racionali-zao e na procura de consistncia para reduzir o estado de
desconforto psi-colgico provocado pela inconsistncia entre as suas
cognies. Esta ideia foi alvo de vrias conceptualizaes tericas,
estando bem evidente na teoria do equilbrio cognitivo (Heider,
1958) e na teoria da dissonncia cognitiva (Festinger, 1957).
Os trabalhos de Asch (1946) sobre a formao de impresses e a
cons-tatao de que, mesmo com base em pouca informao, os indivduos
conse-guem formar uma impresso global sobre os outros, sugeriram
que as pes-soas tm ao seu dispor um conjunto de teorias acerca dos
dados, formulam hipteses e possuem teorias implcitas da
personalidade (e.g., Bruner & Tagiuri, 1954) que vo determinar
a forma como processam a informao do seu mundo social. Embora
admitindo que o percepiente social no total-mente insensvel aos
dados, esta concepo apoia-se sobretudo num proces-samento holstico
da informao e corresponde metfora do cientista ing-nuo, segundo a
qual as pessoas processam informao, recorrendo sobretudo s suas
teorias e no a um processamento mais elementar que exige o exame
detalhado e objectivo da informao.
Contestando esta abordagem, Anderson (1981) defende a primazia
dos dados sobre as teorias, conceptualizando o percepiente social
como um pro-cessador de dados que aborda os factos de forma
objectiva na ausncia de preconcepes. De acordo com Anderson, a
avaliao da personalidade de
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Cognio Social 123
um alvo resulta no de uma impresso geral ou de um teoria
implcita da personalidade mas de uma integrao algbrica das avaliaes
atribudas a cada trao de personalidade.
No decorrer das duas ltimas dcadas, a percepo social foi muitas
vezes concebida como uma tarefa de resoluo de problemas que o
perce-piente social consegue desempenhar com o mnimo esforo
cognitivo poss-vel. Neste mbito ficou conhecida a metfora do
cognitive miser aludindo relutncia com que as pessoas utilizam as
suas capacidades para perceber os outros de forma precisa. Esta
perspectiva encerra uma viso algo negativa do percepiente social ao
centrar-se sobretudo nas limitaes, erros e envie-samentos em que
este incorre na resoluo dessas tarefas. Neste contexto, vrias
investigaes salientaram a importncia da economia cognitiva
(Nis-bett & Ross, 1980), presente na utilizao de heursticas que
embora rpi-das e econmicas conduzem a erros frequentes, no
processamento de infor-mao saliente (Taylor & Fiske, 1978), na
relutncia em reconsiderar factos (Anderson, Lepper, & Ross,
1980) e na confiana e utilizao de crenas, expectativas e teorias no
processamento de informao.
Actualmente parece ser consensual que embora aparentemente
indo-lentes e crdulas, as pessoas quando motivadas podem ser
pensadores sociais eficazes. Esta ideia traduz-se na metfora do
percepiente como um estratega social motivado que dispe de vrias
formas de pensar que selecciona e uti-liza com base nos seus
objectivos, motivos e necessidades (Fiske & Taylor, 1991).
Neste sentido, e salvo as devidas excepes, o percepiente social no
procura a verdade absoluta mas sim a verdade suficiente para gerir
as suas interaces. De acordo com esta perspectiva sugere-se que os
agentes sociais so percepientes suficientemente bons (Fiske, 1992;
Funder, 1987; Swann, 1984).
Saliente-se uma vez mais que encarar o percepiente como um ser
racional que procura consistncia cognitiva ou como um processador
simb-lico de dados humanos, implica isolar a cognio finitude do
crebro humano. Em contraste, quando se considera o conhecimento
anterior, os objectivos e motivaes do percepiente num determinado
contexto fsico ou social, abre-se caminho a uma abordagem da cognio
como fenmeno emergente desta interaco entre o indivduo e a
situao.
Formulaes Actuais da Cognio Social: uma histria recente
Os eventos cognitivos subjacentes percepo, julgamento e tomada
de deciso receberam pouca ateno at aos anos 60. Durante cerca de
meta-de do sculo XX, a psicologia experimental foi dominada pela
abordagem comportamentalista e pela convico de que a cincia deveria
lidar apenas
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124 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
com variveis observveis e fisicamente mensurveis como os
estmulos e as respostas (Skinner, 1963; Thorndike, 1940; Watson,
1930). Neste sentido, o objectivo da pesquisa psicolgica seria o de
identificar as leis que orientam o modo como o comportamento
influenciado pelos eventos do ambiente, em particular, eventos que
funcionam como reforos e punies. Segundo as teorias da
aprendizagem, estes reforos e punies levariam, respectivamen-te, o
organismo a repetir ou a evitar determinado comportamento. Durante
este perodo, a investigao sobre sensao e percepo apoiou-se
sobretudo na psicofsica e o estudo da aprendizagem fundamentou-se
frequentemente, em paradigmas sem significado afectivo ou
experiencial para os participan-tes (Gilbert, 1998). Durante este
perodo, o medo do mentalismo foi uma constante e os eventos mentais
que intervinham entre o estmulo percebido no ambiente e a resposta
a que dava origem eram considerados irrelevantes a mente era
tratada como uma caixa negra que os psiclogos no poderiam nem
deveriam investigar (Skinner, 1963).
A psicologia da gestalt era, na altura, a mais permevel e
receptiva a conceitos mais mentalistas ou cognitivos. No entanto,
os processos cogniti-vos inicialmente investigados centravam-se,
sobretudo, nas leis do processo perceptivo, considerado isomorfo s
propriedades dos estmulos. Tal como referido anteriormente, com
excepo de Lewin, Asch e Heider, que elabora-ram os princpios da
psicologia da gestalt de forma consistente com a psico-logia
social, o quadro tradicional bem estabelecido do
comportamentalismo, psicofsica e gestaltismo clssico constituram um
forte travo emergncia de uma abordagem cognitiva dos fenmenos
sociais.
Todavia, o estudo da cognio teve um passado na psicologia,
nomea-damente nos primeiros trabalhos empricos que, com objectivos
claramente cognitivos, recorriam introspeco como forma de
compreender o pensa-mento humano. O interesse na cognio foi,
contudo, adiado e a introspec-o abandonada como metodologia, na
medida em que o estudo de processos internos no se coadunava com os
padres cientficos de objectividade e rigor, emergentes numa
psicologia ainda preocupada em demarcar-se como disciplina
cientfica.
O estudo dos processos cognitivos
Nos finais dos anos 50 e no incio dos anos 60 com o
estabelecimento do paradigma cognitivo assistiu-se a uma reformulao
radical na forma de definir e abordar o objecto da psicologia, da
sua epistemologia e mtodos e a um novo posicionamento no quadro
geral das cincias. A importncia da cognio foi novamente
reconsiderada propondo-se que a explicao do comportamento humano
exigia a identificao do contedo e formato das representaes mentais
e dos respectivos processos cognitivos subjacentes.
-
Cognio Social 125
Este movimento foi impulsionado pelas crticas da psicolingustica
aos esforos dos comportamentalistas para explicar a linguagem,
cujos comple-xos aspectos simblicos no poderiam ser facilmente
elucidados pelas abor-dagens comportamentais (Chomsky, 1959). Um
segundo aspecto, que levou importncia renovada colocada na cognio
em psicologia, foi o desenvol-vimento do campo do processamento de
informao, que permitiu segmentar as operaes mentais em estdios
sequenciais, especificando os processos internos que,
presumivelmente, intervinham entre a apresentao do estmu-lo e a
resposta observada (Fiske & Taylor, 1991). O computador
tornou-se, assim, numa ferramenta metodolgica que permitia simular
os processos cognitivos (Anderson, 1976; Newell & Simon 1972;
Schank & Abelson, 1977), nomeadamente ao nvel da formao de
impresses e da memria social (e.g., Hastie, 1988; Linville, Ficher,
& Salovey, 1989; Smith, 1988) e, simultaneamente, numa metfora
para descrever esses processos, falando-se de input e output,
armazenamento, processamento e recuperao da informa-o na cognio
humana.
A ideia de que a mente poderia ser entendida e discutida de
forma anloga a um computador processador de informao levou exploso
de teorias e investigao com o objectivo de explorar as estruturas e
processos mentais utilizados pelos processadores de informao
humanos. O recurso metfora do computador minimizou, contudo, e numa
fase inicial, o papel do contexto social, da motivao e do afecto,
que dificilmente seriam passveis de simular, o que durante alguns
anos conferiu psicologia cognitiva, e mais tarde cognio social,
aquilo que muitos consideraram uma natureza meca-nicista e
redutora.
Psicologia Social e Cognio
A psicologia social foi rpida a reconhecer a relevncia das
aborda-gens cognitivas para explorar as suas preocupaes
tradicionais. Por um lado, a psicologia social sempre teve
subjacente uma nfase na cognio (e.g., Berkowitz & Devine, 1995;
Markus & Zajonc, 1985). A prpria defi-nio clssica de Allport
(1954) que descreve o objectivo da psicologia social como uma
tentativa de compreender e explicar como os pensamen-tos, os
sentimentos e os comportamentos dos indivduos so influenciados pela
presena, real, imaginada ou implcita de outros seres humanos
encerra um cunho cognitivo que no contempla apenas a realidade
social mas tam-bm esta realidade enquanto representao mental. A
perspectiva cognitiva na psicologia social pode, assim, ser vista
como uma explicao do compor-tamento humano baseada na compreenso da
natureza das representaes mentais subjacentes a esse comportamento
(Garcia-Marques, 2001). Adicio-nalmente, muitas das questes com que
a psicologia social se vinha preocu-
-
126 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
pando desde o incio como formamos impresses acerca dos outros;
como explicamos o seu comportamento; como que as nossas atitudes se
relacio-nam com as nossas aces; como resolvemos conflitos entre
crenas; como que as nossas reaces podem ser manchadas pelo
preconceito focalizam--se no estudo de elementos cognitivos, como
crenas e inferncias. Parale-lamente, a prpria linguagem da
psicologia social sempre incluiu conceitos referentes a estruturas
cognitivas (e.g., atitudes, crenas, esteretipos) e pro-cessos
cognitivos (e.g., mudana de atitudes, formao de impresses,
com-parao social, atribuio, tomada de deciso; Devine et al., 1994).
Embora durante algum tempo estes conceitos tenham sido utilizados
como variveis mediadoras que ajudavam a explicar os julgamentos,
sentimentos e compor-tamentos, gradualmente estas estruturas e
processos se foram constituindo como o cerne da investigao. Por
exemplo, o estudo da formao de impresses no se limita a avaliar se
um indivduo gosta ou no de uma pes-soa alvo, mas investiga como que
a sua impresso se encontra mentalmente representada e que aspectos
dessa impresso so utilizados para fazer deter-minado julgamento
avaliativo. O mesmo tipo de raciocnio pode ser vlido para outras
reas (Devine et al., 1994).
Efectivamente, a concluso a que vrios investigadores chegaram
foi que ao excluir as representaes e os processos cognitivos da
investigao em psicologia social, se estaria a adoptar uma
perspectiva bastante redutora e empobrecida do comportamento humano
(Fiedler, 1996). Embora o pleno desenvolvimento da abordagem
cognitiva da psicologia social fosse travado pelas tradies
conservadoras do comportamentalismo e do reducionismo fisiolgico,
as preocupaes da psicologia social requeriam inevitavelmente um
conjunto de pressupostos acerca da estrutura e dos processos
cognitivos. Pressupostos herdados da gestalt social, do
construtivismo, da teoria da aprendizagem social, e do
processamento de informao comearam a ser integrados, convergindo na
ideia de que os acontecimentos no so recebidos passivamente por
registos perceptivos, mas so sim organizados em catego-rias,
interpretados em termos de estruturas internas de processamento de
informao, e moldados em funo da experincia individual e cultural,
adquirindo significado atravs de um processo activo e construtivo
de lidar com a realidade.
Assim, na dcada de 60, com o ressurgir do interesse pelo estudo
dos processos mentais, a psicologia cognitiva transborda para a
psicologia social a vrios nveis. A partir da psicologia cognitiva a
psicologia social formula novos problemas, abraa novos mtodos e
constri novas teorias, adoptando o interesse por modelos de
processo, procurando especificar a organizao mental e identificar
as etapas exactas dos processos cognitivos internos sub-jacentes a
fenmenos psicossociais. Deste modo, embora a psicologia social j
encerrasse um carcter eminentemente cognitivo, a sistematizao
desse
-
Cognio Social 127
pendor cognitivo permitiria um maior desenvolvimento terico
(Hamilton, et al., 1994).
Todavia, a permeabilidade da psicologia social a uma abordagem
scio-cognitiva tornou por vezes a fronteira entre as duas
abordagens um pouco tnue (Higgins, 2000). Uma possvel soluo para
demarcar estas perspectivas foi fazer corresponder a cognio social
a um determinado con-tedo particular da psicologia social. De
facto, a cognio social foi durante algum tempo equiparada rea da
percepo de pessoas, preocupada com as impresses, julgamentos,
explicaes e previses acerca da personalidade e do comportamento dos
outros. Esta constituiu uma soluo historicamente popular
frequentemente adoptada nos manuais de psicologia social. No
entanto, esta soluo no satisfez os psiclogos sociais dos finais dos
anos 70, entusiasmados com a importncia da cognio social para as
mais varia-das reas da psicologia social, tais como a mudana de
atitudes, a comunica-o interpessoal, a tomada de deciso em grupo,
entre outros (ver Fiske, Gilbert, & Lindzey, 2010; Higgins
& Kruglanski, 1996; Markus & Zajonc, 1985). Deste modo, no
se pode distinguir a cognio social da psicologia social fazendo da
primeira apenas uma rea de contedo da ltima.
Uma soluo alternativa seria reconhecer que a cognio social
enfati-za o nvel de anlise cognitivo na psicologia social. Contudo,
nem toda a psicologia social cognio social porque nem toda a
psicologia social enfa-tiza o nvel de anlise cognitivo. A cognio
social social porque enfatiza o carcter interpessoal,
inter-subjectivo e reflexivo da cognio, e cognitiva porque enfatiza
o nvel de anlise cognitivo na psicologia social.
Por outro lado, a adopo da perspectiva cognitiva por parte da
psico-logia social no se traduziu de forma linear em avanos
significativos tanto ao nvel do conhecimento dos fundamentos
sociais dos processos cognitivos como dos fundamentos cognitivos do
comportamento social. Segundo Gar-cia-Marques (2001), grande parte
das teorias do comportamento social foram desenvolvidas na ausncia
de pressupostos relativos arquitectura cognitiva subjacente a esse
comportamento, e sem preocupaes relativas plausibili-dade cognitiva
dos mecanismos propostos. Segundo o mesmo autor, esta negligncia
levou a um excessivo proliferar de mecanismos psicolgicos avanados
para explicar domnios comportamentais especficos, ao invs de, com
base nos mesmos processos psicolgicos bsicos, se explicarem
diver-sas funes cognitivas (Abelson & Black, 1986). Por ltimo,
a psicologia social nem sempre adoptou metodologias de investigao
orientadas para o estudo dos processos cognitivos, persistindo na
utilizao de paradigmas e instrumentos que visavam a compreenso dos
seus produtos finais (e.g., escalas de atitudes, listas de traos;
Fiske & Taylor, 1991; Ostrom, 1984).
Neste sentido, a cognio social demarca-se da psicologia social
cons-tituindo-se como uma abordagem conceptual e emprica genrica e
no ape-
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128 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
nas uma sub-disciplina da cincia psicolgica. Esta abordagem
permite assim abrir novas perspectivas no estudo dos problemas
clssicos da psico-logia social, mas tambm no estudo de outras reas
de investigao ainda por explorar.
Cognio Social
O exponencial desenvolvimento da cognio social resultou de uma
reaco ao anterior domnio do comportamentalismo, e ao pressuposto de
que as representaes e os processos internos no observveis no se
pode-riam constituir como objecto de investigao cientfica. Os
investigadores em cognio social foram capazes de aproveitar os
novos modelos tericos e as novas ferramentas metodolgicas
desenvolvidas na psicologia cognitiva, e utiliz-los para abordar
problemas e questes clssicas da psicologia social a partir de uma
nova perspectiva e com novas estratgias experimentais (Devine et
al., 1994). A adopo desta abordagem obrigou a um conjunto de
mudanas na metodologia de investigao e ao estabelecimento de
medidas desenhadas para lidar com os processos psicolgicos,
inferindo-os e demons-trando-os atravs de protocolos de recordao,
medidas de tempos de reac-o, julgamento, entre outros.
Teorias e mtodos desenvolvidos para examinar como que conceitos
como pssaro ou ma se encontram representados, poderiam ser
utili-zados para estudar a representao de conceitos sociais como
extrovertido ou bibliotecrio. Metodologias experimentais, revelando
que a exposio a uma palavra como banco automaticamente trazia
memria palavras rela-cionadas como dinheiro, poderiam ser
utilizadas para compreender como que a exposio a um membro de um
grupo estereotipado activa automati-camente traos associados com o
esteretipo desse grupo. A investigao sobre as regras inferenciais
que as pessoas usam para fazer julgamentos acerca de eventos
incertos (e.g., arremesso de moedas) poderia ser aplicada aos
julgamentos acerca de eventos sociais incertos, como a
probabilidade de outro indivduo exibir determinado comportamento
(Kunda, 1999).
Neste contexto a cognio social constitui-se como uma abordagem
prpria que, em meados dos anos 70, se encontrava em pleno
desenvolvi-mento. Durante esta dcada e nas seguintes assistiu-se ao
ressurgir da explo-rao detalhada do papel dos processos cognitivos
na compreenso de fen-menos to diversos como as atitudes, as
atribuies, e os processos intergru-pais e ainda a memria de
pessoas, o desenvolvimento de esquemas, e o papel da cognio na
persuaso e na inferncia social (Hogg & Cooper, 2003). A
perspectiva da cognio social atingiu o seu auge em 1984 com a
publicao do livro Social Cognition de Susan Fiske e Shelley Taylor.
Defi-nindo a cognio social como o estudo da forma como as pessoas
se com-
-
Cognio Social 129
preendem umas s outras e a si prprias este livro, reeditado em
1991 e novamente em 2008, espelha o desenvolvimento de todo o
domnio de inves-tigao em cognio social.
Contributos e Crticas Abordagem Scio-Cognitiva
A cognio social tornou-se numa abordagem geral aplicvel a quase
todos os domnios da psicologia social, cuja receptividade e produo
terica e metodolgica se encontra bem visvel na quantidade de
investigao e literatura produzida ao longo das ltimas quatro
dcadas. A adopo de uma abordagem cognitiva permitiu um bom
enquadramento para vrios assuntos, incluindo alguns dos mais
proeminentes na psicologia social, nomeadamente a atribuio (e.g.,
Gilbert, Pelham, & Krull 1988), as atitudes (e.g., Eagly &
Chaiken, 1993), os esteretipos (e.g., Hamilton, 1981), as relaes
interpes-soais (e.g., Fletcher & Fincham, 1991), os grupos
(e.g., Hinsz, Tindale, & Vollrath, 1997), a memria para
informao social (e.g., Wyer & Srull, 1986), entre outros.
Contudo, e embora a herana cognitiva tenha permitido aos
investiga-dores da abordagem scio-cognitiva fazer uso efectivo das
teorias e tcnicas da psicologia cognitiva para explorar estruturas
mentais e criar modelos de processo, o compromisso com o paradigma
do processamento de informao levou, na opinio de muitos autores, a
que se tenham perdido de vista os fenmenos do mundo real que,
provavelmente, motivaram inicialmente a investigao (e.g., Neisser,
1980, 1982; Forgas, 1983; Graumann & Som-mer, 1994), removendo
muito do que era social na investigao gerada e isolando o indivduo
na sua actividade cognitiva.
Os modelos de processamento de informao centrais cognio social
foram assim criticados por estudarem processos cognitivos
desprovi-dos do seu contedo e do seu contexto. Especificamente,
estas crticas foram dirigidas perspectiva individualista que
orientou a teoria e a investigao, e ao modo como negligenciaram o
facto dos contedos da cognio terem origem num contexto fsico e
social de interaco e comunicao humanas. Efectivamente, o facto de a
cognio social ter como unidade de anlise o indivduo que percebe,
deixando de parte a importncia do outro e do con-texto nos
processos cognitivos, acabou por incentivar a individualizao do
social e a dessocializao do indivduo (Graumann, 1986). Assim, uma
das principais crticas apontadas cognio social mais tradicional que
esta perpetua a diviso ontolgica cartesiana entre sujeito e objecto
e assenta em concepes individualistas do conhecimento (Farr, 1996).
Por outro lado, a democratizao da experimentao que atravs de
sofisticadas manipulaes procurou demonstrar as mais recentes criaes
tericas, controlando delibe-rada e propositadamente potenciais
variveis contaminadoras do mundo
-
130 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
real, fizeram questionar em que medida este ambiente idealizado
poderia permitir reais progressos na tarefa de construir um corpo
de conhecimento que de alguma forma se aproximasse da experincia
social humana (Augous-tinos & Walker, 1995). Estas e outras
questes levaram a que se discutisse at que ponto social seria um
termo prprio para definir a disciplina uma vez que, na perspectiva
de alguns crticos, o nico aspecto social da cogni-o social seriam
os prprios objectos sociais pessoas, grupos, aconteci-mentos.
Convm contudo salientar que esta individualizao tem um contexto
histrico onde se situam, simultaneamente, as foras da experimentao
e do positivismo que integraram a disciplina e a dotaram de
respeitabilidade cien-tfica. Como resposta a algumas destas
crticas, alguns autores (e.g., Bode-nhausen & Wyer, 1988)
recuperaram os pressupostos bsicos, sumariados por Wyer (1980), que
orientaram a teoria e investigao em cognio social no fim dos anos
70. O resultado destas reflexes sugere que os princpios tericos
suportados pela investigao de laboratrio acerca dos processos
scio-cognitivos fazem tambm importantes previses acerca dos
fenmenos do mundo real. Ainda como resposta ao alegado esvaziamento
social das investigaes conduzidas em cognio social, Devine e
colaboradores (1994) revem teoricamente as vrias reas da abordagem
scio-cognitiva e especi-ficam o modo como os principais domnios e
preocupaes da psicologia social tm sido abordados, pela cognio
social, ao longo das ltimas dca-das. Tambm Leyens e Dardenne (1996)
defendem que a investigao em cognio social mais do que uma aplicao
particular da psicologia cogni-tiva a objectos sociais,
nomeadamente porque tem um objecto social, tem uma origem social
que criada e reforada atravs da interaco social, e porque
socialmente partilhada, sendo comum a diferentes membros de uma
sociedade ou grupo. Para alm disso, Forgas em 1981, acentua
explicitamen-te os aspectos sociais da cognio, sugerindo que a
cognio mais do que o processamento da informao, na medida em que
socialmente estruturada e socialmente transmitida, e moldada por
valores, motivaes e normas sociais. Finalmente, e numa recente
reflexo sobre a cognio social, tam-bm Higgins (2000) defende a sua
natureza social na medida em que aquilo que se aprende relativo ao
mundo social e o mundo social onde esta aprendizagem tem lugar. A
cognio social por isso diferente da cognio no-social no modo como
revela a natureza interpessoal essencial da cogni-o.
Com base nestas reflexes saliente-se ainda que a cognio social
difere dos princpios gerais da cognio em alguns aspectos:
comparativa-mente aos objectos, as pessoas so agentes causais que
percepcionam e so percepcionadas. As pessoas, ao contrrio dos
objectos, possuem crenas, desejos, emoes e traos de personalidade e
a nossa percepo dos outros
-
Cognio Social 131
pode afectar o seu comportamento. As pessoas so alvos difceis de
cognio porque se ajustam ao facto de serem percebidas, sendo que
muitos dos seus atributos tm que ser inferidos e podem
inclusivamente mudar (Ostrom, 1984).
Efectivamente, e se at final dos anos 80 a maior parte da teoria
e investigao em cognio social focou-se em cognies relativamente
frias, envolvidas na representao de conceitos sociais e no retirar
de infe-rncias a partir delas, no final desta dcada e embora
mantendo o interesse em elementos cognitivos, o campo comeou a
orientar a sua ateno para outras dimenses fazendo ressurgir um
interesse histrico em dois outros sistemas motivao e afecto (Cook,
Fine, & House, 1995). A noo de que os nossos motivos podem
influenciar as nossas crenas assenta numa das mais importantes
teorias da psicologia social, a teoria da dissonncia cogni-tiva,
que se baseia no pressuposto de que a motivao para reduzir a tenso
desconfortvel entre crenas em conflito pode provocar tentativas de
modifi-cao de uma das crenas discordantes (Festinger, 1957). Uma
outra linha de investigao importante em psicologia social, a
investigao das atitudes e o seu impacto no comportamento,
posicionou, igualmente, o afecto como cen-tral ao conceito de
atitudes (Eagly & Chaiken, 1993). Mais recentemente, a
investigao especificamente direccionada s reas afectivas da cognio
levou a esforos tericos renovados para integrar a cognio, a motivao
e o afecto (Kunda, 1999). Mais concretamente, comeou a ser aceite
que os organismos actuam no sentido da satisfao das suas
necessidades de sobre-vivncia (Fiske, 1992; Simpson & Kenrick,
1997) e, como tal, a motivao e a cognio estabelecem uma relao
bidireccional de mtua influncia (Kru-glanski, 1996). Paralelamente,
a estreita ligao entre a emoo e a cognio ainda ilustrada, por
exemplo, em estudos que demonstram que quando a emoo afectada se
regista um decrscimo drstico na tomada de deciso racional (Damsio,
1994). Actualmente, a teoria e a investigao convergem assim no
reconhecimento de que os processos cognitivos, motivacionais e
emocionais estabelecem uma relao de interdependncia, em que os
ltimos regulam o primeiro (Singer & Salovey, 1988) e que todos
so partes indisso-civeis e fundamentais de um sistema
auto-regulador que apoia a aco adaptativa (Smith & Semin,
2004). Este interesse renovado nas cognies quentes levou explorao
da forma como os nossos objectivos, desejos e sentimentos
influenciam o modo como nos comportamos e damos sentido ao mundo
social (Kunda, 1999) e a estudar o modo como o prprio corpo, o
contexto fsico e a situao social influenciam a cognio e,
consequente-mente o comportamento, de organismos que procuram a
melhor adaptao possvel ao ambiente que os rodeia (Smith &
Semin, 2004).
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132 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
Cognio Social: Desenvolvimentos e Perspectivas Futuras
Decorrente das crticas anteriormente mencionadas e de um esforo
de integrao terica e metodolgica dos desenvolvimentos de reas
adjacentes, os psiclogos sociais e scio-cognitivos comearam a
alargar o seu foco de ateno para alm dos processos cognitivos
simblicos e individuais. Actualmente so cada vez mais aqueles que
orientam os seus esforos de investigao de modo a incluir o estudo
da motivao e afecto, relaes pes-soais, pertena grupal, contexto
fsico e social e diferenas culturais. Parale-lamente a estes
desenvolvimentos, reas como a psicologia cognitiva (Barsa-lou,
1999), a robtica (Brooks, 1999), a antropologia cognitiva
(Hutchins, 1995) e a psicologia do desenvolvimento (Thelen &
Smith, 1994), contribu-ram de forma decisiva para a emergncia de
uma nova abordagem a Cog-nio Social Situada.
Por outro lado, a constante preocupao em identificar os
mecanismos internos inerentes cognio e ao comportamento conduziu a
um redobrado interesse na utilizao de medidas complementares s
medidas comporta-mentais tradicionais da cognio social.
Referimo-nos especificamente a um conjunto de metodologias que
permitem localizar e empreender uma avalia-o compreensiva dos
processos cerebrais subjacentes cognio e compor-tamento social e
que fundamentaram uma nova rea de estudo as Neuro-cincias
Scio-Cognitivas.
A Cognio Social Situada
A perspectiva da cognio social situada questiona as concepes
individualistas da cognio social, defendendo o carcter situado da
cogni-o e, consequentemente, da aco (Smith & Semin, 2004, 2007;
para uma reviso ver Semin et al., 2012). Esta perspectiva sustenta
assim que os pro-cessos scio-cognitivos so permeveis aos objectivos
do percepiente social (Sinclair & Kunda, 1999), ao seu estado
emocional na situao (DeSteno, Dasgupta, Bartlett, & Cajdric,
2004), ao contexto comunicativo (Norenzayan & Schwarz, 1999), e
aos constrangimentos do prprio corpo (e.g., Barsalou, 1998).
Contrariando a diviso cartesiana assumida pela perspectiva mais
tradicional em cognio social, que separa sujeito e objecto (Farr,
1996), todos estes aspectos contextuais so equacionados como
reguladores funda-mentais da cognio e no, apenas, como informao
adicional a ser proces-sada (Smith & Semin, 2004). Esta
proposta implica, assim, uma alterao paradigmtica dos pressupostos
inerentes relao estabelecida entre a cog-nio e a aco, assumindo um
papel fundamental na mudana da metfora computacional cognitivista
para a metfora biolgica que sustenta que a cognio e a aco
constituem um processo regulador adaptativo que serve,
-
Cognio Social 133
em ltima instncia, necessidades de sobrevivncia (Fiske, 1992;
Simpson & Kenrick, 1997). Assim, por questes de sucesso
adaptativo (e.g., evitar pre-dadores ou caar), a cognio humana tem
razes no processamento sens-rio-motor e orientada para agir de
acordo com a especificidade do contexto (para uma discusso, ver
Wilson, 2002). Ao assumir que a cognio actua enquanto agente
regulador adaptativo, a cognio social situada questiona que as
representaes mentais sejam simblicas, abstractas e estveis e que
sejam activadas e aplicadas por processos relativamente automticos
e inde-pendentes do contexto, tal como geralmente postulado pelas
cincias cogni-tivas (Smith & Semin, 2007). Passa, ento, a ser
considerada a natureza modal da cognio humana, que flexvel e
baseada em processos percepti-vos e sensoriais (e.g., Barsalou,
1999; Clark, 1997; Smith & Semin, 2004).
A cognio social situada encarna, deste modo, um projecto de
mudana epistemolgica da prpria construo e definio do conhecimento
que, ao retomar e adequar ideias passadas da psicologia social,
promove a redefinio e reenquadramento da investigao e anlise da
cognio e da aco humana. Desta nova concepo emergem os seguintes
pressupostos: 1) a cognio para a aco; 2) a cognio socialmente
situada; 3) a cog-nio distribuda; 4) a cognio corporalizada
(embodied) (Semin & Smith, 2002; para uma reviso ver Smith
& Semin, 2004).
O primeiro pressuposto sugere que a cognio no um fim em si
mesmo, mas um processo regulador adaptativo que moldado pelos
objec-tivos sociais e pelos requisitos da aco (Smith & Semin,
2004). Assim, a inteligncia percebida enquanto interaces
adaptativas com outros agentes e com o contexto e as estruturas
cognitivas so consideradas no s como receptores passivos mas tambm
como operadores no mundo. Por exemplo, as atitudes so
automaticamente activadas e influenciam os julgamentos e
comportamentos em torno do objecto (Fazio, Sanbonmatsu, Powell,
& Kar-des, 1986), e as impresses, que integram informao dos
sistemas visual, verbal, afectivo e de aco (Carlston, 1994), ditam
um comportamento adap-tado e moldado s caractersticas da pessoa
percebida.
Outro dos pontos de anlise da cognio situada a sua natureza
socialmente situada (Semin & Smith, 2002; Smith & Semin,
2004). Se con-siderarmos que os processos cognitivos no so
construdos nem constrangi-dos pela situao, como a perspectiva
mentalista preconiza, ento, o agente lida com um mundo anlogo ao
inscrito na sua cabea e o conhecimento remetido para um conjunto de
descries de como o mundo aparenta ser e de comportamentos adequados
a certas situaes (Clancey, 1997). Como con-traponto, a cognio
situada defende o poder da situao, ou seja, a influncia de um
ambiente significativo cujas caractersticas so recursos ou
constrangimentos cognio (Gibson, 1966) e s interaces entre os
indiv-duos (Semin & Smith, 2002). Estas ideias so sustentadas
por evidncias que
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134 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
demonstram que as atribuies (Norenzayan & Schwarz, 1999), as
auto--atribuies (Rhodewalt & Augustsdottir, 1986), a
auto-estima (Crocker, 1999), o auto-conceito (McGuire &
McGuire, 1988) e os esteretipos sociais (Schaller & Convey,
1999; Garcia-Marques, Santos, & Mackie, 2006), pro-cessos
cognitivos normalmente considerados automticos e estveis, so afinal
influenciados por pistas derivadas da situao social imediata.
Adicio-nalmente, existe uma resposta adaptativa dos processos
comunicativos, cog-nitivos e avaliativos s propriedades situadas da
comunicao (Higgins & Semin, 2001); o conhecimento conceptual no
representado de forma abs-tracta mas sim organizado por situaes
especficas (Barsalou, 2000; Yeh & Barsalou, 2006); e, uma vez
que o ambiente faz parte dos nossos processos cognitivos,
aprendemos a geri-lo para aceder de forma mais rpida e eficaz
memria (Clark, 2008; Kirsh, 1995).
O terceiro pressuposto da cognio situada refere que a cognio
distribuda espacial e temporalmente pelo ambiente, pessoas e grupos
(e.g., Garcia-Marques, Garrido, Hamilton, & Ferreira, 2012;
Garrido, Garcia--Marques, & Hamilton, 2012a; Garrido,
Garcia-Marques, & Hamilton, 2012b; Levine, Resnick, &
Higgins, 1993; Wegner, 1986; Weldon & Bellin-ger, 1997; para
uma reviso ver Rajaram & Pereira-Pasarin, 2010). A evolu-o da
sociedade humana em geral e o funcionamento individual em
socie-dade no podem ser percebidos sem uma compreenso do
conhecimento como um processo cumulativo que distribudo e
preservado atravs de ferramentas (e.g., compassos, calculadoras,
computadores), da estruturao do meio ambiente (e.g., sinais de
trnsito, marcos de correio) e da distribui-o do conhecimento por
pessoas e grupos (mecnicos, navegadores, pro-gramadores, ver
Hutchins, 1995). Os agentes devem conseguir aceder, coor-denar e
sincronizar este conhecimento distribudo para resolver problemas
especficos e utilizar ferramentas (e.g., linguagem) que permitam a
ligao social (Semin, 2000).
A ltima considerao da cognio situada sustenta que a cognio
corporalizada. Os sistemas nervosos desenvolveram-se para controlar
os corpos, para que os organismos adaptem o seu comportamento a um
ambien-te de rpida mudana. Neste sentido, as arquitecturas
envolvidas no nosso corpo e crebro constituem fontes de
regularidade ou de constrangimento cognio, afecto, motivao e
comportamento (Smith & Semin, 2004). No que diz respeito
corporalizao dos processos cognitivos, estudos recentes ilustram
por exemplo que os estados emocionais e os julgamentos avaliati-vos
podem ser induzidos por actividades corporais. Por exemplo, foi
de-monstrado que a execuo de movimentos verticais com a cabea
enquanto se escuta uma mensagem persuasiva, promove avaliaes mais
positivas dessa mensagem, do que quando o movimento da cabea
horizontal (Wells & Petty, 1980). No mbito da formao de
impresses, verificou-se tambm
-
Cognio Social 135
que a congruncia entre a valncia dos comportamentos de um alvo
social (e.g., positiva) e a localizao espacial onde estes so
apresentados (e.g., em cima) facilita o processo de formao de
impresses e a sua posterior recu-perao (Palma, Garrido, &
Semin, 2011). Outros estudos mostram ainda que a adopo de expresses
faciais correspondentes a estados emotivos (induzidas lingustica ou
mecanicamente) promove a emoo correspondente (e.g., Duclos et al.,
1989; Laird, 1974) e influencia tarefas de julgamento avaliativo
(e.g., Foroni & Semin, 2009; Strack, Martin, & Stepper,
1998; para uma reviso ver Niedenthal, 2007). Esta ligao dos
programas afecti-vo-motores imediata, automtica, impulsiva e no
deliberada (e.g., Neu-mann & Strack, 2000). A corporalizao da
cognio igualmente demons-trada pela ligao entre a percepo e o
comportamento, j reconhecida por William James (1890/1950). Por
exemplo, estudos experimentais mostram que a activao do conceito
bem-educado promove comportamentos de boa educao (Bargh, Chen,
& Burrows, 1996; Chartrand & Bargh, 1999) e a activao do
esteretipo idoso, leva a que os participantes andem mais devagar
(Bargh et al., 1996). Estes e outros estudos sugerem que o corpo
estabelece uma relao estreita com o processamento de informao
social e emocional. No entanto, s as recentes teorias da cognio
corporalizada, que interpretam a aquisio e utilizao do conhecimento
como processos fun-damentados nos sistemas de modalidades
especficas do crebro, conseguem explicar tais evidncias ou, pelo
menos, predizer os efeitos explcitos e a priori (Barsalou,
Niedenthal, Barbey, & Ruppert, 2003; Smith & Semin,
2004).
Contributos e Crticas abordagem da Cognio Social Situada
Apesar da cognio social situada ter vindo a granjear um amplo e
crescente apoio, em parte decorrente das crticas que aludem
descontextua-lizao da anlise dos processos cognitivos por parte da
cognio social mais tradicional, as propostas desta abordagem so
tambm caracterizadas pela controvrsia que suscitam. Alguns autores
(e.g., Wilson, 2002) defendem por exemplo, que sugerir que toda a
cognio situada implica excluir uma grande parte do processamento
cognitivo humano nomeadamente, a activi-dade cognitiva realizada
offline. Como exemplo salientam-se actividades como planear,
recordar ou sonhar acordado que podero ocorrer em contex-tos no
directamente relevantes para o contedo dessas actividades. Ou seja,
segundo Wilson, um dos aspectos mais caractersticos da cognio
humana precisamente o facto de que pode ocorrer dissociada de
qualquer interaco com o ambiente fsico e social.
No entanto, e se a interaco com o contexto influencia as
actividades supracitadas, tornando a cognio situada, ento a
inexistncia dessa interac-
-
136 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
o torna-a igualmente situada, na medida em que a presena ou
ausncia de determinados contedos, facilita ou constrange a
actividade cognitiva. Este argumento encontra apoio nas propostas
das grounded theories (e.g., Bar-salou, 1999; para reviso ver
Barsalou, 2008) que sugerem que mesmo quando a cognio realizada
offline, so reactivadas as respectivas modali-dades activadas na
cognio online, levando o indivduo a simular a expe-rincia como na
presena da situao ou evento. Este argumento dificilmente deixa
espao para a noo de existncia de uma cognio no situada.
Por outro lado, a ideia de que a actividade cognitiva no se
restringe ao que se passa na cabea dos indivduos mas que distribuda
por outros agentes sociais e situaes com as quais o indivduo
interage tambm no fica isenta de crticas. Segundo Wilson, o estudo
do indivduo na situao como um sistema unificado no se justifica.
Para esta autora, a definio das fronteiras de um sistema constitui
uma questo de julgamento e depende dos objectivos particulares da
anlise realizada. Neste sentido, preciso decidir que sistema ser
mais natural e mais cientificamente produtivo: a mente, ou a mente,
o corpo e certos aspectos da situao. Recordando como objectivo da
cincia o estabelecimento de princpios e regularidades e no a
explicao de acontecimentos especficos, ento a natureza facultativa
da cognio dis-tribuda torna-se um problema.
Em resumo, a transio de uma abordagem elementar, simblica e
descontextualizada da cognio para uma abordagem marcadamente
contex-tual, dinmica, e sistmica tem os seus perigos. Tal como
reconhece Clancey (2009), uma das dificuldades em articular uma
viso situada da cognio tem sido e continua a ser o facto de, para
algumas pessoas, esta abordagem suge-rir um certo relativismo
cultural da cincia (Slezak, 1989; Bruner, 1990). Estas objeces
cognio situada decorrem assim da preocupao de que sistemas abertos
possam ser arbitrrios e da necessidade de impor um con-trolo
externo para manter os sistemas complexos organizados (Lakoff;
2002). Por outro lado, uma viso da cognio como infinitamente
flexvel, distribuda e responsiva ao contexto fsico e social carece
de poder preditivo. Torna-se assim difcil prever exactamente como
que um contexto infinita-mente varivel afecta o nosso pensamento e
comportamento. Para contornar esta limitao ser necessrio um
acrescido esforo terico e emprico, no sentido de explorar as
caractersticas do contexto que so mais importantes na determinao da
cognio (Smith & Conrey, 2009).
No sendo uma teoria unificada, nem constituindo uma ruptura com
as temticas historicamente estudadas na cognio social, a cognio
social situada pode ser perspectivada como uma continuao das
trajectrias tradi-cionais, com novas metodologias, novas
ferramentas conceptuais, e, por vezes novos objectivos, chamando a
ateno para a importncia de se desen-volverem abordagens tericas que
coloquem a interdependncia entre o ser
-
Cognio Social 137
social e o contexto em primeiro plano, e que especifiquem no s
os proces-sos psicolgicos envolvidos mas tambm as suas fronteiras
(Smith & Semin, 2004; Wilson, 2002).
A Abordagem das Neurocincias Scio-Cognitivas: O que se faz de
novo em Cognio Social
As neurocincias scio-cognitivas (NSC)4, tal como a sua designao
deixa antever, constituem uma rea interdisplicinar que combina
mtodos da neurocincia cognitiva com teorias da cognio social,
economia, cincias polticas, antropologia, entre outras, de forma a
estudar os mecanismos men-tais que criam, enquadram, regulam e
respondem nossa experincia no mundo social (Lieberman, 2010). Para
tal, recorrem medida de correlatos neurolgicos, que expressam uma
relao entre um estmulo e uma resposta especfica, suficientemente
estveis para serem psicologicamente interpreta-dos, constituindo,
por isso, uma ferramenta potencialmente til de investiga-o em
psicologia.
A receptividade da cognio social s neurocincias cognitivas
deveu--se sobretudo ao potencial desta abordagem para colmatar
algumas limita-es tericas mas sobretudo metodolgicas, nomeadamente
no que diz res-peito identificao das estruturas e processos
cognitivos. Tal como referido anteriormente, muitos dos paradigmas
que permitiram retirar inferncias quanto influncia dos processos
cognitivos nas respostas comportamentais observveis basearam-se em
medidas dependentes como a latncia da res-posta, a taxa de erros e
em avaliaes da memria dos indivduos (e.g., recordao). Apesar de
estas medidas comportamentais contriburem indis-cutivelmente para o
desenvolvimento de paradigmas e teorias em cognio social, no deixam
de ser limitadas quanto s inferncias que podem ser extradas. Por
exemplo, as medidas comportamentais expressam o resultado da
combinao de processos cognitivos, afectivos e motores (Coles,
Smidt, Scheffers, & Otten, 1995), no sendo todos de interesse
terico para as ques-tes em estudo. Mais especificamente, as medidas
comportamentais repre-sentam um conjunto de processos cumulativos
relativos ao estmulo de inte-resse, mas no constituem em si mesmas
medidas directas desses processos. Assim, devem ser ponderadas as
inferncias extradas destas medidas, uma vez que dificilmente
conseguem separar a influncia dos vrios componentes do sistema de
processamento de informao, no localizam os processos psicolgicos no
crebro (o que no permite diferenciar mecanismos psicol-
4 Tendo em conta o propsito deste artigo debruamo-nos apenas
sobre as neurocincias
scio-cognitivas (para reviso ver Lieberman, 2007b), e sobre os
seus contributos e limita-es para o desenvolvimento da investigao
em cognio social.
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138 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
gicos, aparentemente semelhantes, que so afinal diferentes e
identificar processos que afinal ocorrem nas mesmas regies
cerebrais), no avaliam os processos psicolgicos em tempo real, e
apresentam limitaes em revelar especificamente a estrutura da
cognio social (e.g., Bartholow, 2010).
A NSC procura, deste modo, estudar os mecanismos neuronais que
esto subjacentes aos processos scio-cognitivos (e.g., Blakemore,
Winston, & Frith, 2004) atravs da combinao de trs nveis de
anlise: o nvel social, relativo aos factores sociais e
motivacionais que influenciam o com-portamento e a experincia; o
nvel cognitivo, que diz respeito aos mecanis-mos do processamento
de informao que levam aos fenmenos de nvel social; e o nvel
neuronal, centrado nos mecanismos cerebrais que levam aos processos
de nvel cognitivo (Ochsner & Lieberman, 2001). Assim, esta
abordagem pretende estudar os mecanismos neurocognitivos implcitos
que suportam a cognio social, em vez de focar a ateno nos efeitos
psicofisio-lgicos posteriores resultantes da cognio social
(Lieberman, 2005).
Note-se contudo que nem sempre foi este o caso. At h bem pouco
tempo, os estudos nesta rea centravam-se sobretudo na utilizao de
tcni-cas farmacolgicas e psicofisiolgicas para relacionar variveis
scio--cognitivas com padres de resposta imune tais como nveis
hormonais, batimento cardaco, respirao ou outras medidas
fisiolgicas perifricas (e.g., Cacioppo et al., 1998; Cacioppo,
Tassinary, & Berntson, 2000; Toma-ka, Blascovich, Kelsey, &
Leitten, 1993). No entanto, estas medidas s reflectem
indirectamente as operaes do sistema cerebral, no se podendo
retirar inferncias directas sobre o sistema neurocognitivo. Nos
ltimos anos, o aumento e melhoria das populaes neuropsicolgicas e
das tcnicas de neuroimagem permitiram relacionar directamente as
funes sociais e afec-tivas com os sistemas neurocognitivos e testar
novas hipteses quanto natureza da cognio social (ver Ochsner &
Lieberman, 2001).
A NSC conheceu um exponencial desenvolvimento na dcada de 90, a
partir de um conjunto de estudos que, recorrendo a sofisticadas
metodolo-gias, procuraram estudar o crebro para testar questes
sobre o tipo de pro-cessos envolvidos na cognio social normal, em
vez de se focarem em descrever o que est danificado no crebro dos
pacientes com leses (Lie-berman, 2007a). Por exemplo, a utilizao
dos ERP5 (Event Related Poten-tials) permitiu identificar as regies
do crtex que esto diferencialmente
5 Os ERP so respostas elctricas neuronais associadas a eventos
sensoriais, cognitivos e
motores especficos e significativos que podem ser extradas
atravs de um Electroencefa-lgrafo (EEG). Mais especificamente, os
ERP so a classe geral de potenciais que estabe-lece relaes estveis
no tempo com um evento de referncia definvel, fazendo-se, por isso,
a mdia das respostas associadas no tempo a um certo estmulo, atravs
de vrios ensaios (Luck, 2005).
-
Cognio Social 139
envolvidas em crenas avaliativas e no avaliativas, sugerindo que
diferentes tipos de cognio apoiam estes dois tipos de atitudes
(e.g., Cacioppo, Crites, & Gardner, 1996). De facto,
actualmente reconhece-se que os ERP so bas-tante teis para
determinar em que medida cada condio dos estmulos influencia
diferentes aspectos do processamento de informao, separando a
influncia dos vrios componentes do sistema de processamento de
informa-o; a ordem temporal relativa desses processos em tempo
real; e como que esses processos do origem s respostas
comportamentais observveis, indexando directamente as respostas
neuronais inerentes a processos cogni-tivos e
afectivo-motivacionais de interesse (ver Bartholow, 2010; Bartholow
& Amodio, 2009; Bartholow & Dickter, 2007, para
reviso).
No entanto, foi a introduo da fMRI6 (Functional Magnetic
Reso-nance Imaging), enquanto tcnica das neurocincias aplicada
cognio social, que catalisou a NSC, conferindo-lhe a coerncia
necessria enquanto rea de estudo (Lieberman, 2005). Os primeiros
estudos a utilizar esta tcni-ca abordaram temas como os
esteretipos, verificando, por exemplo, uma maior activao da amgdala
perante a apresentao de faces de pessoas pertencentes a um outgroup
(Hart et al., 2000; Phelps et al., 2000); o auto--conhecimento, ao
propor que recordamos melhor informao sobre ns prprios do que outro
tipo de informao semntica, porque o processamento relativo ao self
ocorre numa zona do crtex funcionalmente diferente da de outro tipo
de processamento (Kelley et al., 2002), e a teoria da mente, ou
seja, a capacidade da mente pensar sobre a mente, no mbito da qual
foram revelados os vrios substratos cerebrais envolvidos neste tipo
de processa-mento (Baron-Cohen, Ring, Moriarty, Shmitz, &
Costa, 1994; Frith & Frith, 1999). Estudos mais recentes
abordam vrios domnios da psicologia social como a auto-conscincia
(Gusnard, Akbudak, Shulman, & Raichle, 2001; Keenan, Nelson,
OConnor, & Pascual-Leone 2001); julgamento e tomada de deciso
(De Quervain et al., 2004; Sanfey, Rilling, Aronson, Nystrom, &
Cohen, 2003); a cooperao (Kosfeld, Heinrichs, Zak, Fischbacher,
& Fehr, 2005; Rilling, Sanfey, Aronson, Nystrom, & Cohen,
2004); os auto--esquemas (Lieberman et al., 2004); a excluso social
(Eisenberger, Lieber-man, & Williams, 2003); a avaliao
atitudinal (Cunningham, Johnson, Gatenby, Gore, & Banaji, 2003;
Wood, Romero, Knutson, & Grafman, 2005); a regulao dos
esteretipos (Amodio, Harmon-Jones, & Devine, 2003; Lieberman,
Hariri, Jarcho, Eisenberger, & Bookheimer, 2005; Riche-son et
al., 2003); os efeitos das expectativas (Petrovic, Kalso,
Petersson, &
6 A utilizao da fMRI pressupe que quando o sangue flui para uma
regio activa mais
oxigenado do que qualquer outro tipo de sangue. O sangue
oxigenado tem propriedades magnticas diferentes do sangue no
oxigenado, que so detectadas pela fMRI, permitindo localizar
espacialmente para onde que o sangue est a fluir (Lieberman,
2010).
-
140 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
Ingvar, 2002; Wager et al., 2004); a cognio relacional (e.g.,
Aron et al., 2005; Iacoboni et al., 2004); a empatia (Carr,
Iacoboni, Dubeau, Mazziotta, & Lenzi, 2003; Singer et al.,
2004), entre outros.
O contributo para a cognio social dos estudos que recorrem a
fMRI pode ser apreciado a trs nveis. Por um lado, permitem
clarificar situaes em que ocorrem dois processos psicolgicos que
experiencialmente se sentem de forma idntica e produzem resultados
comportamentais semelhantes, mas que na verdade dependem de
diferentes mecanismos subjacentes. Por outro lado, permitem
observar processos que, ao contrrio do que se pensa, dependem dos
mesmos mecanismos. Em ambas as situaes esses mecanismos podem ser
reconhecidos ao ser identificada a sua localizao no crebro. Por
fim, medi-da que se vai sabendo mais sobre as funes de diferentes
regies do crebro, comea a tornar-se possvel inferir alguns
processos mentais, apenas atravs da observao da actividade cerebral
(Lieberman, 2007a).
Em resumo, na sequncia de importantes desenvolvimentos
tecnolgi-cos, as ferramentas utilizadas em neurocincias foram
importadas e desen-volvidas para estudar a cognio social. Entre
estas destacamos as tcnicas de neuroimagem como a ressonncia
magntica funcional (fMRI), a tomo-grafia de emisso de positres
(PET)7, os potenciais evocados (ERP), a esti-mulao magntica
transcranial (TMS)8, e as tcnicas neuropsicolgicas do estudo de
leses cerebrais (e.g., Lieberman, 2007a; Lieberman, 2010). Como
vrios autores referem (e.g., Ochsner & Lieberman, 2001), o
importante perceber estas tcnicas como ferramentas adicionais e
complementares s medidas tradicionais de investigao em cognio
social, e no como um fim em si mesmo, que retire a nfase da
compreenso dos processos afectivo--sociais e o coloque na sua
localizao.
Contributos e Crticas s Neurocincias Scio-Cognitivas
Mas quais so ento as consequncias para a cognio social desta
aparente exploso das neurocincias? Qual o papel da neurocincia
scio--cognitiva no desenvolvimento de modelos e teorias
psicolgicas? Num bre-ve olhar pela literatura podem encontrar-se
pelo menos trs perspectivas distintas sobre estas questes.
7 A PET a primeira forma de neuroimagem funcional,
posteriormente substituda em
importncia pela fMRI. Os participantes so injectados ou inalam
marcadores radioactivos que vo fixar-se a molculas biologicamente
activas. Os raios Gamma destes marcadores podem, ento, ser
detectados com a PET, permitindo identificar por onde os marcadores
esto a viajar no crebro durante diferentes tipos de actividade
mental (Lieberman, 2010).
8 A estimulao magntica transcraniana uma tcnica no-invasiva que
utiliza campos magnticos para estimular ou atrasar actividade
cerebral em reas especficas ou na totali-dade do crebro (e.g.,
Pulvermller, Hauk, Nikulin, & Ilmoniemi, 2005).
-
Cognio Social 141
De um lado do extremo situam-se aqueles que afirmam que a
investi-gao em neurocincia cognitiva ainda no possui dados que
possam ser utilizados para testar e distinguir entre teorias que
concorrem pela explicao do mesmo fenmeno psicolgico (e.g.,
Coltheart, 2006; Henson, 2005).
Com uma posio mais moderada encontram-se aqueles que,
reconhe-cem as neurocincias como uma rea importante, e que apesar
de recente apresenta j um desenvolvimento considervel.
Especificamente, admitem que o mapeamento das reas cerebrais de
alguns processos cognitivos sim-ples permitido pelas neurocincias
poder ser til para informar e diferenciar entre modelos
psicolgicos. No entanto, reconhecem tambm o limitado potencial de
aplicao dos dados obtidos na investigao em neurocincia aos modelos
actualmente existentes em cognio social. Estas limitaes decorrem da
complexidade dos prprios processos psicossociais que dificil-mente
permitem uma exacta localizao (e.g., Lieberman, 2007a; Mitchell,
2008; Willingham & Dunn, 2003). De facto, a complexidade da
mente humana coloca problemas neurocincia cognitiva9. A mente
humana possui um carcter hierrquico com diferentes nveis de
complexidade e de integri-dade terica. Na base desta hierarquia
esto as representaes e os processos cognitivos. No nvel seguinte
encontram-se os construtos de primeira ordem (e.g., percepo, ateno,
memria), constitudos por representaes e pro-cessos. Seguem-se os
construtos de segunda ordem (e.g., esteretipos, for-mao de
impresses, conformidade), construdos a partir de construtos de
primeira ordem mas que podem tambm incluir representaes e
processos. Enquanto que a psicologia cognitiva tende a centrar-se
nos construtos de primeira ordem, a cognio social , por definio,
uma disciplina cujo nvel de anlise incide nos nveis mais elevados
da hierarquia, o que coloca desde logo o problema da sua localizao
no crebro. no entanto possvel argu-mentar que muitos dos modelos
contemporneos da cognio social so compostos por construtos de
segunda ordem que apesar de no serem pass-veis de localizao
cerebral directa podem ser decompostos em construtos mais bsicos
que so eventualmente localizveis (Willingham & Dunn, 2003).
Contudo, ser que, por exemplo, o processo de categorizao inicial,
comum em muitos dos actuais modelos de formao de impresses (e.g.,
Brewer, 1988; Fiske & Neuberg, 1990), no ele prprio composto
por vrios sub-processos recrutados consoante o tipo de categorizao
a efectuar (e.g., raa, sexo)? Qual assim a pertinncia deste nvel de
detalhe para os actuais modelos de formao de impresses? Ser que
estes modelos ganham poder explicativo se incorporarem em si este
nvel de preciso? Estas questes levam, precisamente, a outra crtica
feita introduo das
9 Para uma discusso detalhada sobre as limitaes da NSC, ver
Willingham e Dunn (2003).
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142 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
medidas das neurocincias cognitivas na cognio social. At que
ponto que os contributos feitos por ambas as reas (NSC e cognio
social) resul-tam em benefcios mtuos e contribuem para um
desenvolvimento recpro-co? Segundo Lieberman (2005) pode
considerar-se que a NSC retira muito mais da investigao em cognio
social do que aquilo que d em troca, na medida em que os conceitos
e teorias em cognio social so usados para identificar a funo
scio-cognitiva de determinadas regies no crebro, no sendo claro at
que ponto a compreenso destas relaes de facto um con-tributo para a
cognio social. Alm disso, algumas das metodologias utili-zadas em
NSC impedem os participantes de falar, de se mexerem, de
intera-girem e, muitas vezes necessria a sucessiva repetio de
ensaios para extrair sinais detectveis do rudo. Assim, ao suprimir
a importncia do con-texto, dos agentes e das suas interaces, poder
questionar-se at que ponto esta viso no se torna redutora, e em que
medida enfatizar a localizao dos processos psicolgicos, poder
contribuir para a compreenso dos fenme-nos sociais e afectivos que
consideram o indivduo inserido num contexto social. Efectivamente,
a complexidade dos indivduos e dos prprios fen-menos sociais est
presente em qualquer tipo de investigao em cognio social.
Acrescentar qualquer contribuio cognio social usando qualquer
metodologia difcil, uma vez que os nossos participantes so alvos em
movimento que tentam perceber o propsito das nossas experincias e
as nossas experincias devem ser ecologicamente vlidas dentro de
limites ticos aceitveis, e ainda assim avaliarem as variveis
dependentes adequa-das (Lieberman, 2010).
Por ltimo, do outro lado do extremo, temos aqueles que defendem
que a NSC uma rea vibrante que tem contribudo grandemente para o
conheci-mento sobre o ser humano social com novas descobertas e
ideias que desafiam muitas teorias existentes em cognio social
(e.g., Lieberman, 2007a; Mit-chell, 2008; Ochsner & Lieberman,
2001). Segundo esta perspectiva, sendo a cognio social uma
disciplina que coloca o seu nfase nos processos cogniti-vos
envolvidos nos fenmenos psicossociais, a localizao das reas
cerebrais onde esses processos ocorrem poder ser potencialmente
interessante. Para alm disso, uma vez que os processos cognitivos
so implementados pelo crebro, parece fazer sentido explorar a
possibilidade de que as medidas da actividade cerebral possam
fornecer insights sobre a sua natureza (Rugg & Coles, 1995, p.
27). Neste sentido, as recentes tcnicas de neuroimagem e os
desenvolvimentos da NSC podero constituir contributos importantes
para a compreenso do funcionamento cognitivo. No entanto, o facto
de muitos investigadores consideram que saber onde os processos
cognitivos ocorrem o mesmo que saber como ocorrem, levou a que as
contribuies dos estu-dos de neuroanatomia funcional para a cognio
social fossem precedidos por uma m reputao. Contudo, e apesar de o
onde por si s deixar em aberto
-
Cognio Social 143
muitas questes, por vezes, estes estudos de mapeamento cerebral
levam a outros estudos que contribuem realmente para o
desenvolvimento de teorias em cognio social (Lieberman, 2010).
Deste ponto de vista, a utilidade da investigao em NSC emerge
quando a questo onde (no crebro) apenas um preldio para as questes
quando, porqu e como. H muito mais na neurocincia cognitiva para
alm da neuroanatomia funcional, da localizao dos processos
psicolgicos, da resposta pergunta onde. O facto de se saber onde
certos fenmenos ocorrem leva a que, por vezes, se saiba como
ocorrem, quando ocorrem e porque ocorrem. Assim, se a resposta
pergunta onde no for interpretada enquanto um fim em si mesmo,
podemos considerar que as medidas da NSC podem contribuir para
desvendar as estruturas e os proces-sos inerentes aos fenmenos
sociais (Lieberman, 2007a).
Neste sentido, um dos benefcios da abordagem NSC a melhor
pre-ciso na caracterizao do fenmeno scio-emocional (Ochsner &
Lieber-man, 2001). Ao estudar-se as estruturas neurocognitivas
subjacentes podem ser capturadas comunalidades existentes entre
fenmenos sociais aparente-mente heterogneos. A NSC pode ainda
esclarecer algumas destas relaes ao mapear as bases neuronais das
diferentes formas de cognio social. Se as mesmas reas cerebrais
forem activadas para diferentes formas de cognio social, ser
razovel concluir que as mesmas reas esto a ser recrutadas para
diferentes processos (Lieberman, 2000). Para alm disso, a informao
rela-tiva ao funcionamento do crebro pode se utilizada para
diferenciar fenme-nos aparentemente semelhantes e dissecar fenmenos
complexos nos seus componentes mais simples, o que no poderia ser
feito recorrendo s medi-das comportamentais tradicionais (Ochsner
& Lieberman, 2001). Um bom exemplo disto a investigao em
memria, que indagava se diversos tipos de memria eram fruto de um
nico sistema de memria a operar de diferen-tes formas, ou de
sistemas de memria distintos a operarem de forma concer-tada. Esta
questo foi recentemente ultrapassada recorrendo a dados
neurop-sicolgicos e provenientes da neuroimagem que apontam para a
existncia de mltiplos sistemas de memria (e.g., Schacter &
Tulving, 1994; Squire, 1992). Por ltimo, a neuroimagem permite
tambm a avaliao das contri-buies independentes de processos que
ocorrem simultaneamente como, por exemplo, os componentes
automticos e controlados de um dado proces-so (Ochsner &
Lieberman, 2001).
No entanto, de notar que a juno de mltiplas reas do
conhecimen-to e de vrios mtodos e tcnicas que constitui um real
contributo para o desenvolvimento das teorias em cognio social.
Enquanto que os neurocien-tistas cognitivos usaram, historicamente,
metodologias minimalistas para estu-dar fenmenos elementares,
compreendendo o fenmeno social segundo uma perspectiva bottom-up,
os psiclogos sociais estiveram mais interessados em analisar um
vasto conjunto de fenmenos sociais complexos e socialmente
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144 Margarida Vaz Garrido, Catarina Azevedo e Toms Palma
relevantes, integrando uma perspectiva top-down. Nos ltimos
anos, comeou a considerar-se, cada vez mais, que ambas as
perspectivas no podem ser investigadas independentemente e, como
tal, ambas tm a ganhar com os con-tributos recprocos (Ochsner &
Lieberman, 2001). Efectivamente, uma das premissas desta abordagem
respeita ao facto de as diferentes questes impos-tas pelos
psiclogos sociais e pelos neurocientistas cognitivos no serem
inde-pendentes ou mutuamente exclusivas, mas podem sim servir e
enriquecer ambas as reas (e.g., Miller & Keller,