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LEGALIZADO O ILEGAL:
propriedade e usurpao no
Brasil(*)
James Holston
Como podemos pensar o direito se o sistema jurdico no objetiva
resolver os conflitos, se um meiode perpetuar e obscurecer as
disputas em vez de resolv-las? Neste ensaio, revelarei o poder de
umatradio desestabilizadora: o sistema jurdico brasileiro no
objetiva nem resolver os conflitos de terra demaneira justa, nem
decidir sobre seus mritos legais atravs de procedimentos judiciais.
Meus argumentosenfatizam a norma e a inteno pelas quais, no Brasil,
a lei da terra, nos seus prprios termos, to confusa,indecisa e
disfuncional. E possvel suspeitar que as causas dessas
caractersticas no sejam somenteincompetncia e corrupo, mas a fora
de um conjunto de intenes subjacentes s suas construo eaplicao,
intenes essas bem diferentes daquelas voltadas para as resolues das
disputas. Assim,argumento que a lei brasileira produz regularmente,
nos conflitos de terra, procedimentos e confusoirresolveis; que
essa irresoluo jurdico-burocrtica s vezes d incio a solues
extrajudiciais; e que essasimposies polticas, inevitavelmente,
terminam por legalizar algum tipo de usurpao. Em suma, a lei de
terrano Brasil promove conflito, e no solues, porque estabelece os
termos atravs dos quais a grilagem legalizada de maneira
consistente. , por isso, um instrumento de desordem calculada,
atravs do qualprticas ilegais produzem lei, e solues extralegais so
introduzidas clandestinamente no processo judicial.Nesse contexto
repleto de paradoxos, a lei um instrumento de manipulao, complicao,
estratagema eviolncia, atravs do qual todas as partes envolvidas -
dominadoras ou subalternas, o pblico e o privado -fazem valer seus
interesses. A lei define, portanto, uma arena de conflito na qual
as distines entre o legal eo ilegal so temporrias e sua relao
instvel.
Para clarear essas questes, analisarei um caso de fraude de
terra na formao da periferia de SoPaulo.(1) Meus objetivos nessa
anlise so, em primeiro lugar, oferecer uma etnografia de um
conflito deterra notvel por suas muitas dimenses; em segundo lugar,
entender a relao entre a lei e a sociedade queele revela; e, em
terceiro lugar, tecer consideraes a respeito de aspectos da
antropologia da lei que eleproblematiza. Esse caso ilustra o
significado fundamental da ilegalidade nas ocupaes de terras no
Brasil,bem como os caminhos que ligam as complicaes legais
legitimao dos direitos sobre a terra usurpada.Ele tambm nos mostra
as razes histricas dessas prticas, j que sua complexidade, titnica
mas singular,nos leva atravs de nada menos que 400 anos de histria
que do sentido s disputas atuais. Desse modo,encontramos as relaes
estruturantes entre terra e lei, que sustentam os conflitos, desde
o desenvolvimentoda poltica fundiria portuguesa, pensada para ser
um instrumento de colonizao, at as tentativas imperiais
erepublicanas de utilizar a reforma da propriedade da terra para
trazer imigrantes europeus livres para oBrasil.(2) Essa investigao
tambm revela que as grilagens de terras atuais repetem velhos
esquemas, com
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Brasil.(2) Essa investigao tambm revela que as grilagens de
terras atuais repetem velhos esquemas, comuma diferena: os pobres
hoje competem regularmente nas arenas legais das quais eles tinham
sido excludos-no porque a lei est agora mais preocupada com a
justia ou com solues, mas porque eles aprenderam,muito em funo das
disputas de terra, a usar as complicaes da lei para obter vantagens
extralegais.
A razo para desenterrar essa histria complexa no somente
analtica. Os conflitos de terra sotambm, explicitamente, disputas
sobre o sentido da histria, porque opem interpretaes divergentes
arespeito da origem dos direitos de propriedade. O centro nevrlgico
desses casos a busca por um ttulo, abusca pelas origens que
justificam ou desqualificam alegaes. Assim, logo descobri que a
disputa emquesto no fazia sentido a menos que fosse retraada ao
longo do tempo. Litigantes, advogados, juzes,moradores e grileiros:
todos estudam a genealogia do conflito para basear seus argumentos
atuais sobre aautoridade da histria - que, neste caso, comea em
1580. Eles operam segundo uma premissa, bsica paraos direitos de
propriedade em muitas sociedades, que diz o seguinte: precedentes
histricos conferemlegitimidade. Todavia, no necessariamente. Uma
posio alternativa, adotada, por exemplo, por muitosmilitantes da
Igreja Catlica nas disputas de terra, argumenta que a necessidade
presente desqualificaprecedentes. No entanto, como veremos, as
partes em disputa adotam mais comumente uma
estratgiahistoricizante: elas se utilizam da lei para conferir s
suas alegaes origens histricas crveis. Na maioria dasvezes,
contudo, elas emergem de maneira altamente ambgua, e muitas so
deliberadamente falsas.
Se a procura por origens tem o objetivo de descobrir precedentes
capazes de justificar um conjuntode alegaes que subvertem um outro
conjunto de alegaes, ento minha pesquisa sobre origens tambmtem l
suas intenes corrosivas. Mostro o quanto esto tomados por uma fico
jurdica, no somente paradesqualificar o apelo histria que neles
feito, mas tambm para questionar aquilo que ainda umprincpio, na
antropologia jurdica, e que rege a idia de lei e sua explicao como
funo: a lei, comoinstituio, est baseada na sua funo de manter as
condies necessrias vida social. Seja considerando-a em termos de
coeso, como consta na literatura mais antiga, seja, por outro lado,
em termos de hegemoniae resistncia, como aparece nos escritos mais
recentes, a lei responde a necessidades sociais
principalmenteresolvendo conflitos e reforando a conformidade s
normas, no mais das vezes segundo noes do que direito, justo e bom;
e sua inaptido para tanto o resultado de algum fator estranho sua
natureza, comoincompetncia, corrupo ou poltica.(3) Neste ensaio,
estou especialmente atento a esse ltimo ponto e sconseqncias
tericas implicadas na excluso de tudo o que desagregador do modelo
explicativo.
Para lembrar um exemplo clssico, Schapera (1985: xxv) explica
por que ele exclui, de seu manualda lei de Tswana, as violaes,
abusos, e "muitos subterfgios utilizados para evitar a lei",
alegando que osnativos talvez ficassem ressentidos com "a incluso
daquilo que constitui, no final, abusos e no partes da lei". claro
que antroplogos das mais diversas filiaes tericas tm descrito esses
aspectos dos sistemasjurdicos chamados extrnsecos ou latentes (ver
Nader 1965, pp.18-21 para exemplos de um tipo deetnografia mais
antiga). No entanto, numa observao sagaz, vlida at hoje, Nader
(1965, p. 21) escreve:"Na maior parte das vezes, a incluso dessas
funes extralegais na literatura antropolgica tem sidomeramente
anedtica. (Essas funes extralegais) no devem ser tomadas como sendo
ilustrativas da lei;mais que isso, elas so exemplo do que deve ser
includo em qualquer estudo etnogrfico da lei que mereaesse
nome".(4) Estudos antropolgicos mais recentes rejeitam essas vises
essencialistas e funcionalistas dalei e focalizam conflitos, a
poltica e os discursos.(5) Todavia, apesar desses estudos acertarem
na nfasedada maneira pela qual o poder move os sistemas jurdicos,
eles no problematizaram a prpria idia de leiatravs de uma reflexo
sobre o seu lado mais obscuro, qual seja, a sua. relao com os
fatores utpicoscontidos nas idias de justia, harmonia e resistncia.
Assim, numa discusso sobre a lei brasileira, Shirley(1987, p. 89)
atribui suas disfunes a um "fosso entre a lei formal e a lei
aplicada". Tal dicotomizao no privilgio da antropologia, e tem
conseqncias importantes. O ensino brasileiro do direito geralmente
atribuio caos da lei, evidente e paralisador, ao fosso que Shirley
elevou condio de conceito analtico.Estudantes de direito so
ensinados a considerar a lei formal do Brasil como sendo baseada em
valores
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transcendentais, prprios de uma cultura jurdica liberal,
corrompidos por interesses concretos, de classe edo Estado. No que
segue, no ponho em dvida o fato de que princpios utpicos possam
existir na lei, oumesmo que eles sejam desejveis. Minha dvida recai
sobre o carter externo dos percalos da lei comrelao sua prpria
estrutura.
A periferia fora da lei
Desde a dcada de 40 deste sculo, a maioria dos trabalhadores de
So Paulo enfrenta um duplodilema de moradia. Por falta de opes,
eles tm que construir suas prprias casas; mas, para encontrar
umlote que seja acessvel, eles precisam ir cada vez mais para a
periferia - "para dentro do mato", como dizem -, onde a nica
infra-estrutura a estrada de terra que especuladores das
imobilirias e companhias detransporte que atuam na rea construram
para vender as terras. Na medida que os especuladores abrem
aperiferia para milhes de trabalhadores, a fora dessa dupla
necessidade eleva a taxas altssimas a expansoda periferia
urbana.(6) No esquema clssico de autoconstruo, os moradores
primeiro levantam barracosde blocos de concreto ou madeira, e ento,
durante dcadas, vo transformando-os em casas acabadas,decoradas e
mobiliadas (ver Holston, 1991). Como resultado desse processo, a
casa prpria quase umanorma na periferia, sendo uma realidade para
60 por cento das famlias, ao passo que 30 por cento delasalugam
suas moradas, e 10 por cento vivem em casas emprestadas pelos
proprietrios - muitas vezes, seusparentes (Metr 1990, p. 30). Salvo
raras excees, as pessoas iniciam a autoconstruo de duas
maneiras:comprando ou simplesmente invadindo os lotes. No entanto,
ambas as opes acabam, quase queinvariavelmente, levando a alguma
forma de residncia ilegal.(7) Aqueles que ocupam um terreno
invadidono tm direitos sobre ele, embora haja na Justia uma
tendncia em reconhecer a propriedade daconstruo nele erguida.
Aqueles que compram os lotes, e que teriam assim suas propriedades
assentadassobre alguma base legal, normalmente constatam que os
mtodos ilegais de venda dos empreendedoresimobilirios - desde a
grilagem at a no instalao, obrigatria por lei, dos servios urbanos
- terminam porprejudicar o reconhecimento jurdico do contrato. De
fato, a Secretaria de Planejamento de So Paulorecentemente estimou
que nada menos do que 65 por cento do total da populao residem
violando seja leisde propriedade, seja leis de moradia (Rolnik et
al, 1990, p. 95)! Invadindo ou comprando a terra, a maioriadas
pessoas parece entender o paradoxo central de sua situao: a
ilegalidade de seus lotes faz com que aterra seja acessvel queles
que no tm como pagar pelos preos mais altos, de aluguel ou venda,
dasresidncias legais. Mais significativo ainda, essa ilegalidade,
eventualmente, incita confrontao comautoridades legtimas, em meio
qual, depois de uma longa batalha, os moradores normalmente
conseguemlegalizar as suas precrias reivindicaes pela propriedade.
A moradia ilegal uma maneira comum e seguraatravs da qual a classe
trabalhadora pode ganhar o acesso legal terra e moradia, acesso
esse que, deoutro modo, no seria possvel. Assim, uma relao
fundamental entre usurpao e legalizao caracteriza odesenvolvimento
da periferia: a usurpao inicia o povoamento e desencadeia o
processo de legalizao dapropriedade da terra.
importante acrescentar que essa relao se cristalizou no comeo da
colonizao brasileira comouma estratgia das elites fundirias e dos
especuladores imobilirios, que dela se serviram para arrancarganhos
incalculveis. Durante sculos eles a usaram no somente para ampliar
seus negcios comerciais, mastambm para consolidar uma enorme
concentrao de propriedades. Na verdade, um dos objetivos
desteensaio demonstrar que a lei da terra brasileira foi montada
para ser cmplice dessa prtica, e no umobstculo a ela. Assim, por
toda parte no Brasil, e especialmente entre as melhores famlias,
encontramospropriedades que, apesar de serem legalmente assentes,
so, no fundo, usurpaes legalizadas.
O carter legal da propriedade depende, inicialmente, de como ela
foi alienada ou adquirida, o quequer dizer, basicamente, atravs de
venda ou de invaso. Segundo a lei, parcelas do territrio urbano
spodem ser legalmente definidas depois de subdivididas em lotes. As
legislaes Federal e Municipal regulam
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os loteamentos urbanos (especialmente a Lei Federal 6766/1979),
estabelecendo caractersticas fsicas, asquais incluem o tamanho
mnimo do lote, ligaes com servios pblicos, e espaos livres para a
circulaodo trfico e para atividades comunitrias. Estabelecem tambm
normas burocrticas, que estipulam osprocedimentos para o registro
das subdivises e alienaes da terra. Essas normas, por sua vez,
estofundadas numa dinmica de aquisio da terra que envolve,
necessariamente, uma srie de procedimentosburocrticos,
estabelecidos no Cdigo Civil Brasileiro (Cdigo Civil, 1990, art.
530), atravs do qual apropriedade adquirida "pelo registro do ttulo
de transferncia no Cartrio de Imveis". Desse modo, todasas transaes
relacionadas com a propriedade devem ser registradas a fim de serem
obtidos os direitos legaisrelevantes. Esses registros so regulados
pela Lei dos Registros Pblicos (6015/1973), a qual define
asformalidades que constituem o sistema brasileiro de cartrios -
sistema privado, labirntico e corrupto.(8)Seuenorme poder
burocrtico vem do Cdigo Civil (art. 533), o qual afirma que as
transaes envolvendo bensimveis no transferem a propriedade, ou os
direitos sobre ela, a no ser a partir da data na qual soregistradas
nos livros dos cartrios; ou seja, como diz o ditado, "quem no
registra, no possui". A possedefinitiva da terra urbana, portanto,
depende de um documento legalmente registrado - a escritura - de
umlote num loteamento legalmente registrado. Qualquer coisa a menos
compromete a posse.
As pessoas compram lotes em quatro tipos de loteamentos, que
geralmente aparecem lado a lado namesma vizinhana: o legal, o
irregular, o clandestino, e o grilado. O mais raro dos quatro
tipos, o loteamentolegal, est de acordo com todas as especificaes
fsicas e burocrticas. O loteamento irregular - oumelhor, parece
ser-legitimamente adquirido e registrado por seu empreendedor
imobilirio, mas viola, dealguma maneira, as regras de parcelamento
da terra. O loteamento clandestino no registrado no cartriode
imveis, apesar de a terra poder ser de posse legtima de seu
empreendedor. J o loteamento grilado vendido por um grileiro, que
se diz o titular da terra, e o faz atravs de uma srie de
artimanhas. A negociataenvolvendo a terra, nessa situao, chamada de
grilagem, e a terra, dessa maneira vendida ou adquirida,um grilo(9)
Apesar do loteamento ilegal freqentemente combinar vrios desses
aspectos, ele classificadosegundo a sua mais grave infrao. Assim,
enquanto todos os outros tipos de loteamento estoprovavelmente
violando os cdigos de planejamento urbano, o loteamento grilado
enfrenta problemas a maisporque no s negociado, mas at registrado,
na base de documentos fraudados.
As pessoas que compram um terreno num loteamento clandestino no
podem obter o registro legalenquanto a infrao no for solucionada.
Contudo, a descoberta dos problemas pode levar dcadas, j queo
pedido da escritura definitiva - outra formalidade burocrtica que
favorece muitos grileiros - s pode serfeito depois da quitao das
prestaes. Quando os moradores finalmente percebem as
complicaesjurdicas, eles tambm ficam sabendo que todo seu
investimento est correndo perigo, que seus processosno conseguem
romper as ,teias burocrticas, e que suas famlias podem ser
despejadas. Em 1979, Caldeira(1984, p. 70) constatou que, entre as
famlias que haviam comprado terrenos no Jardim das Camlias -
obairro da periferia de So Paulo que tambm estudei -, 57 por cento
tinham completado o pagamento,embora somente 16 por cento
declararam possuir o registro definitivo de seus lotes. Todavia,
mesmo essasdeclaraes no podem ser tomadas como reflexo perfeito dos
fatos, j que um bom nmero de moradoressimplesmente se recusa a
admitir que suas propriedades, adquiridas com tanto sacrifcio, no
esto em diacom a Justia. Ouvi muitas vezes dessas pessoas que
"havia alguns-problemas por perto, mas com o meulote tudo est em
ordem", o que era confirmado com documentos que me eram
apresentados. A dificuldadeest no fato de o grileiro sempre
fornecer calhamaos de documentos genunos s suas vtimas -
porexemplo, recibos de venda, impostos, especificaes do lote,
protocolos de registro. Eles resultam detransaes baseadas em
irregularidades ainda no resolvidas, que por sua vez podem se
transformar na basede documentos que, por isso mesmo, no so
legtimos.(10)
Esses subterfgios exemplificam a estratgia fundamental utilizada
por todo tipo de grileiro de terra:complicar para enganar.
Inspirados nasintrincadas formalidades das leis nos seus
desdobramentos
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burocrticos - assinaturas, carimbos, selos e reconhecimentos de
firma -, eles modelam seus truques a partirdas mesmas leis que
violam. Tentam dar s suas operaes todo tipo de fachada burocrtica e
jurdica noobjetivo de conferir-lhes um ar de legalidade, e isto s
vezes to bem feito que, se mesmo advogados ejuzes so enganados, o
mesmo ocorre com os mais humildes, muitas vezes intimidados com
documentos deaspecto oficial. O resultado disso que, geralmente,
fica muito difcil determinar o carter legal da terracomprada na
periferia, ou a distribuio das propriedades num dado bairro, sem
uma exaustiva pesquisasobre todo e qualquer ttulo de lote. Os
grileiros contam com essa dificuldade, e sabem que no s aspessoas
so facilmente enganadas e as informaes sobre as terras pouco
confiveis, mas tambm que amaior parte das pesquisas sobre os ttulos
no chega a nada porque - e s como um exemplo - umdocumento
legalmente registrado em um cartrio pode, ele mesmo, estar baseado
em documentos falsos eirregulares de um outro cartrio.
O caso a seguir ilustra esse estratagema. Invasores h muito
ocupam uma rea de 29 hectares aolongo de uma margem do rio Tiet, na
periferia do norte de So Paulo. Em 1987, y vendeu a terra para
z,que registrou a transao no 7 Cartrio de Notas de So Paulo. Esse
cartrio lavrou a escritura detransferncia com base no registro de
propriedade feito naquele mesmo ms no 17 Cartrio de Imveis deSo
Paulo. Esse ltimo registro afirma que a terra pertenceu a um casal
nascido na dcada de 1860, casadoem 1890 em Santos, que morava em
1986 em Guarulhos, e que a vendeu naquele mesmo ano, atravs
deprocurao judicial, para y. O problema que, em 1986, o casal j
estava morto havia muitas dcadas, deacordo com as certides de bito.
Cavando mais fundo, encontramos a fraude original: 0 17
Cartriobaseou seu registro num documento lavrado em 1986 no cartrio
de uma pequena cidade do estado do.Paran, o qual atesta que um
certo x apresentou-se como portador de uma procurao judicial do
casal paravender a terra para y - que era, por sinal, um advogado.
Creio que os processos levaro muitos anos paraconcluir que z e a
herana do casal foram fraudados porx e y, que com isso ganharam
muito dinheiro; tudoisso, claro, contanto que z no fizesse parte da
fraude ou que as alegaes do velho casal no se revelemilegtimas - as
quais, devo dizer, no configuram possibilidades muito remotas. Em
todo caso, aposto que,dadas as complicaes jurdicas embutidas em
todas essas possibilidades, os invasores terminaro com aposse da
rea - isto se puderem mobilizar-se em torno do pedido de legalizao
da ocupao alegando"interesses sociais", como previsto na
Constituio.
Mesmo que o intrpido pesquisador sobreviva caa dos papis, muitas
vezes difcil determinar,em meio s muitas camadas de complicaes,
quem o proprietrio do que. por isso que, como apareceno prximo
exemplo, essas disputas so impossveis de serem resolvidas nos
Tribunais. Ao contrrio, ficamcirculando sem parar atravs do sistema
burocrtico, esperando impossveis evidncias mais conclusivas.No
preciso repetir: a confuso vai ao encontro dos interesses dos
grileiros, j que esses casos so muitasvezes resolvidos atravs de
manobras polticas e extrajudiciais - como acordos peridicos -
atravs das quaisas instituies executivas ou legislativas do governo
intervm para declarar que o sistema jurdico est emcheque e, assim,
desqualificam certas alegaes de propriedade em favor de outras.
Essas intervenesterminam inevitavelmente legalizando usurpaes e,
dessa forma, evidenciam prticas ilegais e extralegais nosprprios
domnios da lei. Alm disso, sua ocorrncia por demais freqente na
histria dos povoamentos noBrasil vem inspirando muitas operaes de
terras ilegais. Como um deputado da assemblia constituinte deSo
Paulo de 1935 lembrou aos seus colegas, durante o debate em torno
da emenda que daria ttulo legtimoqueles que tivessem pago impostos
da propriedade ao Estado, h uma velha correlao entre fazer
etransgredir a lei: "A poltica de terras de So Paulo", alertou ele,
"tem sempre sido a de tentar evitar futurasgrilagens legalizando
grilagens anteriores" (Estado de So Paulo 1935, 2, p. 228),
apontando assim para ocarter pouco conceitual, no-categrico e
temporrio, da distino entre o legal e o ilegal nesse campo demuitas
conseqncias sociais. Suas observaes, todavia, talvez porque
simplesmente expunham o que erade costume, no tiveram qualquer
efeito nas deliberaes do congresso.
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Um caso de grilagem
Para compreender a vitalidade dessa poltica de terras e sua
importncia na formao da periferia,analiso, a seguir, um exemplo de
grilagem no Jardim das Camlias, bairro com cerca de 7 mil
pessoas,situado no distrito de So Miguel Paulista, na periferia do
extremo nordeste da cidade de So Paulo. Essebairro, que s veio a se
desenvolver intensamente depois de 1969, caso tpico das reas mais
novas epobres da periferia urbana, nas quais os migrantes (ou os
filhos dos migrantes), geralmente empregados nasocupaes mais
mal-remuneradas dos setores de servios e comrcio, constroem suas
prprias casas.(11) Apartir de uma minuciosa pesquisa de domiclio
realizada em 1979, Caldeira (1984, pp. 60-70) estimou. asseguintes
condies de moradia para um total de aproximadamente 900 domiclios e
4.650 pessoas: 60 porcento desses domiclios erguiam-se em lotes
comprados, 26 por cento alugavam suas acomodaes, 12 porcento
moravam em casas emprestadas (geralmente por seus parentes), e 3
por cento ocupavam lotescedidos. Os ltimos so geralmente os
capangas das imobilirias, que recebem material de construo e
umterreno em troca de seus servios de segurana. Quando fiz meu
trabalho de campo, quase dez anos depois,uma mudana significativa
nas condies de moradia tinha ocorrido: se em 1979 no havia qualquer
terrainvadida, em 1988 centenas de pessoas tinham ocupado
ilegalmente vrias reas no Jardim das Camlias.Essa "invaso" no
bairro, como muitos a chamavam, desencadeou uma srie de
hostilidades entre aquelesque compraram seus terrenos e aqueles que
simplesmente os ocuparam - conflitos que evidenciaram aimportncia
da titularidade da propriedade como categoria de auto-estima, e
cujas conseqncias polticasdividiram os pobres segundo faces
antagnicas.
O caso envolveu 207 famlias que compraram seus lotes entre 1969
e 1972 mas nunca conseguiramseus ttulos legais definitivos porque
esses lotes tinham sido vendidos de maneira fraudulenta. Isso
constitui,nunca demais lembrar, apenas pequena parte de toda
grilagem e de suas complicaes legais queatormentam mais de meio
milho de famlias da periferia da zona leste de So Paulo. Exponho, a
seguir, acronologia da disputa de terras desde a poca em que os
moradores se viram nela enleados, e depois analisoas vrias alegaes
de propriedade, cujas contradies tornaram-nas judicialmente
insolveis. Ascomplicaes remontam ao sculo XVI.
Em 1969, um homem chamado Rafael Garzouzi, "o turco", ou "o
libans", como era chamado pelosmoradores, apareceu no ento pouco
habitado Jardim das Camlias. Atravs de sua imobiliria, a
AdisAdministrao de Bens S.A., ele abriu uma srie de estradas de
terra, construiu no local um escritrio, dividiua terra em onze
lotes de 6+20m, e comeou a vend-los. Ele exibia aos interessados um
plano deurbanizao do bairro e documentos que comprovavam o registro
das terras no cartrio competente. Umcontrato muito atraente era
oferecido por ele aos compradores: estipulava prestaes mensais
duranteperodo que variava de dois a dez anos; obrigava a imobiliria
a fornecer, alm de cada recibo dasprestaes, documento de quitao
depois do ltimo pagamento. Com esses recibos e o documento dequitao
em mos, o comprador podia ento registrar sua compra e transferir a
titularidade do imvel para oseu nome. No entanto, uma das muitas
coisas que a Adis no disse a seus clientes foi que, embora
asassinaturas do contrato fossem reconhecidas em tabelionato, seu
plano de arruamento e loteamento no tinhasido aprovado pelas
autoridades competentes - e nem poderia. O plano no s violava as
posturasmunicipais de planejamento, mas tambm - o que constitui
fato mais grave - subvertia outro plano para amesma rea, aprovado
desde 1924 em nome de Jos Miguel Ackel.
No incio de 1970, os herdeiros de Nadime Miguel Ackel, irmo de
Jos Miguel, moveram processocontra a Adis para reaver os lotes que
a ltima dizia serem seus. A Adis contra-atacou com uma ao naqual
afirmava que ela tinhas todos os direitos legtimos de propriedade
desde 1958, e seus predecessores,desde 1890, devido a um grande
tratado de terra que inclua os referidos lotes. A Adis entrou com
pedidode indenizao, alegando que a empresa de Ackel tinha de fato
usurpado seus direitos, no s ao se basear
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no plano de loteamento de 1924, como tambm ao vender cerca de 70
lotes. Ardilosamente, a Adis jogoucom a burocracia judiciria, tanto
que as acusaes e as contra-acusaes ficaram circulando pelo
sistemajurdico por muitos anos sem qualquer resultado. Todo esse
tempo, no entanto, no foi desperdiado: aempresa apropriou-se do
restante da rea e ainda vendeu 233 lotes, parte dos quais rebatizou
com o nomede Vila Tirol. E no parou nisso. A Adis tambm vendeu duas
grandes reas para scios que, por sua vez, assubdividiram para a
venda sob o nome de Jardim Oriental e Jardim Eliane. A rea tinha
agora quatro nomese quatro planos de loteamento diferentes, os
quais desdobravam-se em distintos planos de localizao delotes, ruas
irregulares e tamanhos de lote abaixo do padro - tudo isso
facilitando a venda do mesmo terrenoa mais de um interessado. O
plano de 1924 j estava completamente desfigurado. Coexistiam
muitascamadas de planejamentos contraditrios entre si, alm de um
nmero crescente de terceiros quereivindicavam a mesma propriedade.
E havia mais. Para fazer frente s queixas de Ackel, a Adis e
seusassociados deflagraram campanha de intimidao: capangas foram
contratados, no s para demolirconstrues, desmanchar cercas e
remarcar os lotes segundo suas medidas, mas tambm para
desencorajaro acesso daqueles que no tinham negociado com seus
patres.
Os moradores reagiram de muitas maneiras. Muitos contrataram
advogados que estavam no bairrooferecendo seus servios e que, no
raro, desapareciam assim que recebiam o adiantamento. Alguns
foramenganados por ambulantes que se diziam representantes das
imobilirias ou mesmo da Prefeitura. Outrossimplesmente ignoraram a
situao, acreditando que seus lotes estavam em dia com a lei. E,
finalmente, haviacerca de oitenta pessoas que, percebendo as muitas
irregularidades por todo lado, organizaram em 1972 aSociedade
Amigos de Bairro para coletivamente defender seus direitos. Um
grupo de advogados daUniversidade de So Paulo, a Igreja Catlica e
partidos polticos de esquerda, todos conhecidos por suasatuaes
junto a organizaes populares, foram procurados pela associao para
darem suas orientaes.Essa ao conjunta mostrou-se duradoura, como o
atesta o fato de um desses advogados estar, at hoje,envolvido com o
caso.
A partir do momento em que a disputa se tornou jurdica, o estado
de So Paulo interveio, afirmandoque a terra era de fato sua, e com
base nisso exigiu, em 1972, a devoluo dos onze lotes
seqestrados.Com isso, Ackel moveu em 1973 novo processo, desta vez
contra a Adis e o Estado, exigindo todos os 207lotes sobre os quais
julgava ter direito. A resposta do Estado veio em 1975, quando
simplesmente osseqestrou. Segundo essa mesma ao de seqestro, e at
que fosse resolvida a disputa sobre aspropriedades, os moradores
eram obrigados a depositar o restante das prestaes em juzo. Isso
implicavaque, ao final das prestaes, no lhes era dado qualquer
comprovante de propriedade, o que, alm de osimpedir de vender
legalmente seus terrenos, tambm impedia a regularizao dos
loteamentos e dasconstrues. No entanto, no tive notcia de qualquer
morador que tivesse interrompido o pagamento desuas prestaes.(12)
Muito pelo contrrio, todos aqueles que conheci pessoalmente
saldaram suas dvidasem juzo.
Em conseqncia da ao do Estado, a Adis no estava mais recebendo
as prestaes. No entanto,como a ao de seqestro de maneira alguma a
restringia, a Adis comeou a mandar avisos de despejo aosmoradores,
numa tentativa de receber deles grandes somas de dinheiro vista.
Foi nesse perodo que aassociao dos moradores e seus representantes
aprenderam a manipular o sistema jurdico, antecipando-ses aes de
despejo e mesmo complicando as atividades da Adis no Jardim das
Camlias, chegando aoponto de anular suas iniciativas. At ento
nenhum advogado representando os moradores tinha conseguidovencer
os grileiros. No melhor dos casos, eles encontravam sadas
extralegais atravs das quais seus clientes,tomados pelo pnico,
pagavam para cancelar as aes de despejo; no pior dos casos seus
clientes eram defato despejados. Contrastando com essa situao, o
advogado da associao tinha convencido seusmembros a conter seus
receios at o dia de seu comparecimento no Tribunal. E ento, em cada
audincia,ele desafiava a Adis a provar definitivamente a
propriedade das terras, o que era impossvel de ser feito em
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qualquer instncia. Ele tambm argumentava que os moradores no
tinham desonrado seus contratos ouinvadido as terras, mas eram
compradores bem-intencionados, que estavam em dia com suas dvidas,
e que,mesmo em juzo, pagavam suas prestaes. O resultado dessa e de
outras tticas foi que a Adis se viuforada a adiar e at mesmo a
retirar seus processos. No fim, e depois de gastar uma considervel
quantiade dinheiro com taxas judiciais, ela foi derrotada em todos
os casos. Ademais, em 1983, a associaodenunciou a Adis Prefeitura
por ter deturpado o plano de loteamento de 1924; a administrao
municipalento exigiu da empresa que custeasse um novo levantamento
da rea e um plano de regularizao damesma. Como previsto pela
associao, o novo plano foi regularizado, mas no pde ser registrado
emnome da Adis. Esse fato comprometeu publicamente os argumentos de
propriedade da Adis. Alm disso, aregularizao desmembrou, para
efeito de cobrana de impostos, cada lote segundo suas mais
precisasmedidas e localizao - o que constituiu importante
reconhecimento dos direitos e deveres dos moradores.Resultou desses
priplos jurdicos que a associao aprendeu no s a desarmar seus
inimigos atravs demanobras legais como tambm a construir um
impressionante dossi com documentos oficiais que sustentamsuas
reivindicaes.
Essa habilidade com as regras do jogo foi, para aqueles
protagonistas vindos das classes mais baixas,conquista fundamental.
Serviu para contrariar a norma segundo a qual, mesmo quando bem
representados,os pobres perdem as disputas com especuladores
imobilirios e com os bares da terra. O sucesso daassociao, nesse
caso, deveu-se muito s habilidades de seu presidente e de seu
advogado, sobretudo desua inovadora concepo tanto da lei - como uma
fonte de estratgias -quaneo do sistema legal-tomadocomo um jogo de
tticas a ser dominado e explorado. A partir dessa abordagem, eles
conseguiram superaruma srie de posturas essencialistas que vm, h
muito, caracterizando a atitude reverente, alienada esubordinada
dos pobres diante da lei. Essas posturas aceitam a evidente
explorao do sistema legal,praticada pelas elites e pela burocracia,
como algo acidental, deturpao daquilo que , em si mesmo, umcorpo de
princpios de justia a ser venerado, de procedimentos definidos e de
relaes sacramentadas quedevem ser seguidos risca, de um
conhecimento complexo e de axiomas morais feitos para as elites
letradase compreendidas somente por elas, ou mesmo - no caso de
movimentos revolucionrios ou milenaristas - deideologias polticas a
serem prontamente rejeitadas.(13) Apesar de no constituir uma
vitria definitiva, osucesso da associao at aqui conseguido denota
uma nova relao perante a lei daquelas suas vtimastradicionais, uma
relao que podemos definir como oportunismo estratgico, j que
considera a justia umrecurso que funciona, no de acordo com
princpios fixos, mas segundo as circunstncias. De fato, esseinovao
redistribui para as classes mais baixas a estratgia jurdica
utilizada pela elite brasileira durante operodo colonial.
A interveno do governo federal no Jardim das Camlias completou o
imbrglio jurdico da disputa.Ele tambm se dizia o proprietrio das
terras, que considerava patrimnio federal, alm de no reconhecer
alegitimidade das transaes e dos procedimentos judiciais relativos
rea nos quais no tivera participao.O governo federal, dessa
maneira, negava a maior parte da histria do conflito ao longo dos
ltimos sculos.Sua interveno obstruiu e tornou confusa toda a ao
judicial anterior que objetivava deixar clara atitularidade das
terras: seguindo suas deliberaes, foram interrompidas as demarcaes
e todos osprocessos jurdicos em andamento, alm de proibida toda
expropriao, legalizao e regularizao dasterras atravs das
administraes municipal e estadual. At que, em 1975, o caso chegou
ao SupremoTribunal Federal (STF), o nico tribunal com poderes para
julgar o conflito entre os governo federal eestadual. Para iniciar
o processo, todavia, o STF tinha que, antes de mais nada, avaliar
cada alegaoseparando os interesses de propriedade pblicos daqueles
privados. O fato que, com isso, o caso aindahoje se arrasta no STF
por falta de evidncias, fontes e, provavelmente, iniciativa para
decidir qual, entre asmuitas alegaes de propriedade, a mais
fundamentada.
Com o passar dos anos, as partes envolvidas optaram por
estratgias extrajudiciais. Em 1983, a Adis
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e a empresa de Nadime Miguel Ackel assinaram um acordo para a
anulao dos processos em que seacusavam. Ackel concedeu os 207 lotes
em disputa para a Adis, a qual, por sua vez, concedeu um
nmeroequivalente para Ackel em outras reas do Jardim das Camlias.
As lideranas do bairro consideram oacordo nada mais que um pacto de
ladres, que visa estabelecer uma frente unida contra as cada vez
maisintensas atividades dos invasores na rea. Mesmo assim, e um ano
depois, a Sociedade Amigos de Bairroassinou um acordo com ambos.
Ela aceitava os termos de seu acordo de 1983 se, em troca, a Adis e
Ackelsuspendessem as ameaas de "despejo", prometessem no mais
processar os membros da associao,concordassem que aqueles que
tinham completado seus pagamentos em juzo haviam cumprido seu
contrato,e aceitassem uma srie de outras exigncias que asseguravam
um mnimo de tranqilidade aos moradores.Baseadas nessas concesses,
as trs partes concordaram sobre a viabilidade da sada
extrajudicial, achamada soluo amigvel. E por que cada parte aceitou
o acordo? A Adis e Ackel queriam o mximopossvel de reconhecimento
de suas alegaes de propriedade, enquanto que os moradores queriam
definir,de maneira inequvoca, os donos da terra para os quais
pudessem pagar suas prestaes e, em troca,receber o ttulo de
propriedade definitivo. Os moradores queriam pagar; de fato, sua
moralidade assim exigiae, para eles, os distinguia dos invasores. A
questo era: pagar para quem?
O acordo reconhecia que a soluo amigvel implicava que tanto o
governo do Estado quanto 0Federal renunciassem aos seus interesses
de propriedade na disputa. Todavia, o Estado negou o pedido
eaproveitou a oportunidade para instruir o procurador geral a
formar uma comisso como objetivo de analisaro problema das disputas
de terra em toda a periferia da zona leste da cidade. Essa comisso
deprocuradores do Estado reuniu-se periodicamente durante todo o
ano de 1986, concluindo, segundo osdizeres do procurador geral, que
"a j catica situao jurdica da rea, abandonada por tantos anos
aosmpetos dos "grileiros", tornou-se praticamente insolvel dada a
sua complexidade processual, caracterizadapelo simples fato de que
um nmero enorme de antigos reivindicantes e seus descendentes
alegam ter asevidncias jurdicas que comprovam suas alegaes". Dada a
impossibilidade da sada judicial, a comissoprops uma soluo atravs
de "aes poltico-administrativas" regidas por um decreto
presidencial, no qualo governo federal renunciaria aos seus
interesses em favor do Estado de So Paulo. O Estado, por sua vez,
equando possvel, renunciaria aos seus direitos em favor dos
"acordos amigveis", como aqueles do Jardimdas Camlias; e, quando
tal atitude no fosse possvel, desapropriaria a terra em disputa e a
concederia aosseus moradores.(14)
Apesar dos governadores Montoro e Qurcia terem assinado o
compromisso de formar umacomisso estadual e federal para tratar dos
detalhes dessa proposta, no houve qualquer ao, partindo dequalquer
instncia, no sentido de implement-la. Quando perguntados a esse
respeito, os moradoreslamentam a falta de vontade poltica e a
corrupo. No entanto, no parecem muito surpresos, sobretudodepois de
vinte anos de confuso. A associao dos moradores continua tentando
acordos amigveis entrenovos grileiros e novos habitantes da regio,
alm, claro, de lanar mo de outras estratgias. Enquantoisso, por
toda So Paulo, e de fato por todo o pas, as transaes fraudulentas
sobrevivem sob a proteodas complexidades processuais, o que implica
dizer, sob a proteo da lei.
Uma histria de origens dbias
Casos similares a esse sugerem que a lei brasileira est
carregada de muitas irresolues. Apesar defocalizar, neste ensaio, a
lei de terra e sua burocracia, minha experincia no Brasil mostra
que essa umacaracterstica fundamental de todo o sistema jurdico.
Infelizmente, no encontrei pesquisas sobre esseproblema conceituai
em outras reas do direito, apesar da insistncia de DaMatta sobre a
importncia crucialque tem a ambigidade na sociedade brasileira.(15)
Em todo caso, quero deixar claro o seguinte: apesar deestar
tratando de questes advindas especificamente de conflitos de terras
concretos, pretendo dar umcarter mais amplo s minhas concluses.
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O sistema jurdico brasileiro apresenta irresolues ad hoc atravs
das quais todo tipo de pessoa,das mais diversas reputaes, procura
vantagens utilizando-se de estratagemas para interferir na
burocraciaque facilmente manipulvel. Todavia, como uma construo do
direito, esse sistema, em seus prpriostermos, por demais
inoperante, contraditrio e confuso para ser fruto somente da
corrupo,incompetncia e manipulaes individuais. Essas disfunes
previsveis, a meu ver, indicam um modo deirresoluo mais sistmico.
Isso nos sugere que o sistema jurdico incorpora habilmente intenes
deperpetuar as irresolues judicirias atravs de complicaes legais.
por essa razo que a lei facilita osestratagemas e a fraudulncia. No
entanto, como j vimos, no somente o mau uso, ou a
utilizaoinescrupulosa da lei, que gera essa complicao. O uso
correto da lei tambm cria "complexidade processualpraticamente
insolvel" e de fato invariavelmente o faz em conflitos
importantes.
Apesar dessa irresoluo jurdica certamente promover e beneficiar
a corrupo, creio que ela trazconseqncias mais profundas para a
sociedade brasileira: a irresoluo tambm um instrumento dedominao
atualizado pelo sistema jurdico; ou seja, os princpios da lei no
Brasil produzem,sistematicamente, irresolues para uma sociedade na
qual a irresoluo um princpio de ordem. Claro queessa ambigidade
jurdica no leva necessariamente incerteza administrativa. H pases
mais ou menos bemgovernados que tambm tm sistemas jurdicos - como
so os casos da cornnzon law americana e britnica- que produzem
irresolues.(l6) Alm disso, h no Brasil outros meios de dominao e as
solues judiciaisno so de todo desconhecidas. Todavia, no caso
brasileiro, quanto mais importante a disputa,especialmente quando h
terras envolvidas, menor a possibilidade de tais solues. As classes
dominantesutilizam-se da lei para evitar as decises dos tribunais,
sempre sujeitas s incertezas da justia. Seuprocedimento segue o
caminho das manobras jurdico-burocratas, as quais so elaboradas no
sentido demanter os conflitos sob o controle das teias da
burocracia at que uma soluo extrajudicial, poltica eoportuna possa
ser garantida. O julgamento, no Tribunal, de um impasse entre
elites, seria considerado umato de desespero, de conseqncias muito
temidas por elas, j que significa que suas redes de poderes
efavores se esgotaram - ou seja, que no foi possvel dar um jeitinho
- e, sendo assim, estariam sujeitos derrota. No entanto, a ida ao
Tribunal contra aqueles que a elite domina uma oportunidade para
estamostrar seu poder de controle sobre o processo judicial, que,
geralmente, humilha os pobres ao for-los aaceitar julgamentos ou
procedimentos orquestrados de antemo. O fato de os moradores do
Jardim dasCamlias e seu advogado terem aprendido a manipular esse
processo, a fim de evitar decises e desenvolversadas
extrajudiciais, significa nada mais, nada menos, que eles esto
redefinindo a arena jurdica. No estomudando as regras do jogo, mas
simplesmente utilizando-as para fazer frente exclusividade que
delastinham os participantes mais poderosos. Assim, as complicaes
da lei no so evocadas exclusivamentepara fins fraudulentos, mas
tambm com o intuito de trazer o conflito para a arena jurdica, numa
tentativa demant-lo irresoluto mas contido, e dessa maneira
controlando-o, embora de maneira frgil, at que seconstitua a
vontade poltica necessria soluo. Ao perpetuar o conflito, portanto,
a irresoluo jurdico-burocrtica pode ser considerada politicamente
funcional - embora sem qualquer conotao funcionalista.(l7)
Para demonstrar a fora da irresoluo dentro da lei, tentarei
separar os fios do enleado conjunto dealegaes de propriedade de
terra no Jardim das Camlias. Suas histrias nos levam s fundaes
coloniaisdo Brasil e revelam o grau impressionante segundo o qual
tanto a ocupao territorial quanto a lei da terradesenvolveram-se a
partir da necessidade de legalizar direitos usurpados - primeiro
para avolumar asfortunas dos colonos brasileiros em detrimento
daqueles ligados a Portugal, e mais tarde, aps aindependncia, para
consolid-las. medida que retraamos no passado os argumentos dos
prprioslitigantes, percebemos que o assim chamado grileiro no a
nica parte envolvida que utiliza a lei paraconstruir origens
histricas. Tornase, desta maneira, extremamente difcil determinar
que origem, entre todasaquelas apresentadas, a menos
questionvel.(18)
Os fundamentos do direito propriedade do governo federal:
sesmarias e ndios
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O governo federal afirma que as terras do Jardim das Camlias lhe
pertencem porque esto dentro dasfronteiras do antigo aldeamento
indgena de So Miguel e Guarulhos, estabelecido a partir de uma
concessode terra real em 1580 e oficialmente extinto em 1850.
Encontrei dois argumentos que embasam a afirmao.Um deles diz que a
Lei de Terras imperial de 1850 e a legislao seguinte incorporaram
os aldeamentosindgenas ao patrimnio nacional. Todas as Constituies
Federais, exceo da primeira, de 1891,reafirmam essa incorporao. A
Constituio Republicana de 1891 anexa as terras indgenas ao
patrimniode cada estado, deciso revertida em 1934. O segundo
argumento do governo federal reconhece que aprimeira Constituio
transferiu aos estados a partir de 1891 direitos sobre os antigos
aldeamentos indgenas,declarados abandonados - e por isso
constituindo "terra devoluta" -; no entanto, tambm afirma que as
terrasem questo nunca pertenceram a essa categoria. Ao contrrio, o
argumento estabelece que o governo federalmanteve a propriedade
porque, desde o sculo XVII, e pautado por uma srie de intervenes
executivas ejurdicas, vem arrendando essas terras a no-ndios.
Muitos argumentos contrrios foram apresentados. Alguns afirmam
que os estados adquiriramdireitos reais sobre as terras indgenas em
1891, o que no pode ser anulado por Constituies posteriores.Outros
sustentam que o governo federal, apesar de ter interesses nas
propriedades, no tem de fato osdireitos sobre elas porque, afinal,
ele nunca discriminou, como exigido, as terras indgenas
remanescentes daspropriedades privadas. Seja como for, o importante
a ser notado nessa situao que todas as partesenvolvidas tm
argumentos juridicamente plausveis, o que vem dificultando 0
trabalho at mesmo doSupremo Tribunal Federal. O impasse uma
conseqncia direta do caos jurdico que o Brasil ps-colonialherdou do
sistema portugus de concesses de terras reais. O aldeamento indgena
de So Miguel partedessa herana. Assim, a fim de compreender o poder
das complicaes jurdico-burocrticas e o conjuntode alegaes no Jardim
das Camlias, temos que investigar essa herana.
Uma das premissas fundantes do colonialismo portugus est no ato
de descobrimento ou conquistado emissrio real, o qual incorporou a
terra ao patrimnio pessoal do rei. Essa incorporao estabeleceu
asbases legais para a poltica imperial de dominao da Colnia,
constituda a partir da criao de uma elitefundiria. Dessa maneira
ficaram definidos os poderes e os direitos do Rei, que deveria
distribuir as terrasaos seus sditos com o duplo objetivo de
explorao econmica e cristianizao. Esse ltimo projeto foraassumido
pela Coroa quando o Papa ordenou Dom Joo Ill Mestre da Ordem de
Cristo em 1522, fazendodele o responsvel pela propagao da f entre
os povos descobertos ao longo das exploraes martimaseuropias.
Resultou disso que a Coroa portuguesa apossou-se de todo o
territrio descoberto por Cabralem 1500 e estabeleceu uma organizao
jurdico-poltica atravs do Regimento de Tom de Souza, de
1548,segundo o qual distribui terras para empreendimentos
comerciais e religiosos.
A fim de regular essa distribuio, os portugueses empregaram um
sistema medieval de concesso deterras conhecido como sesmarias. No
final do sculo XIV, a Coroa tinha elaborado uma srie demecanismos
legais para forar o cultivo de terras inabitadas, improdutivas ou
abandonadas. Tais medidasforam consolidadas nas sesmarias e
incorporadas nas ordenaes nas quais, por sua vez, pautavam
osgovernos tanto de Portugal quanto de suas colnias. O objetivo
central da Coroa era conciliar a ocupaodas terras com sua utilizao
agrcola. Por esse motivo, a legislao imperial autorizava a
expropriao dasterras improdutivas, tornando-as concesses
no-hereditrias em troca de uma quantia equivalente a umsexto da
produo anual. O tamanho das concesses era limitado capacidade de
cultivo dos colonos; e otempo de usufruto dos direitos sobre elas
era limitado, findo o qual as sesmarias no cultivadas retornavam
Coroa. Ambas restries estavam destinadas a causar muito conflito no
Brasil.
Essa poltica, vinda para as Amricas com as instrues reais de
1548, tornou-se o nico meio legalde fixar pessoas na terra. Essas
pessoas eram fundamentais para os projetos de lavouras comerciais
einstruo religiosa, ambos baseados na agricultura sedentria, a qual
constitua alternativa crist aos hbitos
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nmades dos brbaros pagos. Por esses motivos, a Coroa autorizou
seus representantes no Novo Mundo adistribuir sesmarias somente
queles que tinham condies de desenvolv-las segundo essas
orientaes.Isso, todavia, introduziu uma mutao na poltica. A fim de
atrair tais colonizadores e, em especial, parainiciar as plantaes
de cana-de-acar movidas a trabalho escravo, a Coroa ofereceu
generosos incentivose extinguiu as restries hereditrias e os
pagamentos anuais (exceto, claro, o dzimo divino) que incidiamsobre
as concesses de terras. Alm disso, e apesar das lavouras ainda
serem fundamentais, seu sentidomodificou-se. No Brasil colonial, a
terra tinha pouco valor. Contribua para tanto no s a abundncia,
mastambm, e sobretudo, a enorme quantidade de capital que era
necessrio sua explorao lucrativa, j queesta dependia do
fornecimento de escravos que era, por sua vez, dispendioso e
complexo. A produo deacar, gado, e mais tarde caf, dependia da
constante incorporao de novos escravos e terras. Por essemotivo a
Coroa muitas vezes utilizou suas concesses de sesmarias para
garantir futuros investimentos naproduo destinada exportao, em vez
de assegurar sua efetiva ocupao. Assim, a terra podia
serlegitimamente possuda sem ser imediatamente cultivada ou
ocupada, bastando, para tanto, que fossefuturamente utilizada- o
que, obviamente, constituaumaperverso dos objetivos originais da
lei da sesmaria.
A partir dessas mudanas, os representantes da Coroa
utilizaram-se das concesses reais pararepartir o Brasil em enormes
latifndios. As concesses usuais de 10, 20 e at 100 lguas
(quecorrespondem aproximadamente a 432, 868 e 4.342 quilmetros
quadrados, respectivamente), de acordocom um observador da poca,
eram to grandes que era possvel nelas "perder de vista Itlia"
(citado emLima 1988, p. 58). Essa distribuio consolidou seus
beneficiados, que se tornaram uma classe dominantearistocrtica,
escravagista e orientada para o comrcio. Em 1822, no ano da
independncia, a instituio dassesmarias j havia produzido uma
perverso: depois de trs sculos de colonizao, o pas era uma terra
sempovo e um povo sem terra.(19)
Alm disso tudo, o sistema de sesmarias tinha muitas conseqncias
jurdicas que persistiram por umbom tempo. A primeira era com relao
ao papel do governo, que legitimava a propriedade privada comoalgo
subtrado do domnio pblico. Esse papel foi se modificando medida que
tambm ia se transformandoa noo da propriedade das sesmarias.
Inicialmente parte do patrimnio real, elas foram cedidas
aosinteressados sob a forma de concesses administrativas com
direito de usufruto. No havia mercadoimobilirio porque a terra no
podia ser nem vendida e nem comprada. O historiador das leis de
terra RuyCirne Lima argumenta que a posse das sesmarias pela Coroa
comeou a ser vista sob um prisma distintodepois que exigiu, em
1695, um imposto anual, o foro, baseada na lei de propriedade comum
(1988, pp. 41-43). Depois disso, as sesmarias foram gradativamente
sendo pensadas menos como restriesadministrativas sobre a apropriao
da terra por indivduos privados ou por entidades pblicas e mais
comoalienaes de propriedades subtradas do domnio real, sobre as
quais os beneficiados tinham direitos depropriedade comuns,
direitos que eram simbolizados na sua obrigao de pagar os impostos
da propriedade.Essa transformao conceitual no foi completada at que
a Constituio de 1824 garantiu a propriedadeprivada e a Lei de Terra
de 1850 consolidou seus fundamentos jurdicos e de mercado. Os
ltimosestabeleciam, primeiro, que os beneficiados pelas concesses
poderiam requerer ao governo oreconhecimento de sua condio de
proprietrios; e, segundo, que daquele momento em diante as
terraspblicas s poderiam ser adquiridas mediante a compra.
A segunda conseqncia do sistema de sesmarias foi a confuso
jurdica, a qual tornou-se umaestratgia de dominao dos dois lados do
Atlntico. A Coroa distribuiu muitas concesses de terra
semfronteiras definidas, o que produziu infindveis litgios e
violncia em torno de direitos contestados.2 Osdebates no Congresso
em 1824 a respeito da legislao da terra nos mostram que alguns
juristassuspeitavam que a Coroa deliberadamente concedia sesmarias
pouco definidas no por ignorncia nem porfalta de mapas precisos do
territrio e muito menos devido carncia de tcnicas de pesquisa, mas
paramanter os agricultores "nervosamente brigando entre si, em vez
de brigar contra a Coroa" (Dean,1971, p.
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607). Mas no ficou s nisso. Os prprios brasileiros desenvolveram
mais ainda as estratgias de confusojurdica, atingindo nveis de
elaborao nunca dantes vistos. Tendo se apossado das melhores
terras, a eliterural atravessou o sculo XVIII no somente aumentando
suas riquezas, mas tambm aprendendo a dominaro sistema de
distribuio de terras, tornando o seu acesso cada vez mais difcil
para os outros. Sem dvida,seus meios no excluam de forma alguma a
violncia. No entanto, e talvez mais importante, ela controlou
adistribuio da terra criando tamanha complexidade na legislao sobre
as sesmarias que somente aquelesque j estavam no poder podiam
domin-la. Sua estratgia no foi a de negar a lei - como
freqentementeassumido nas afirmaes de que "o Brasil sempre foi
terra sem lei". Ao contrrio, o intuito era criar umexcesso de leis,
de modo a aplicar minuciosamente o fundamento jurdico Teuto-Romano
segundo o qual "alei no tem lacunas".(21) Essas mesmas elites
mandavam seus filhos para a Universidade de Coimbra, emPortugal,
onde estudavam Direito. Ao retornarem, iam completar os alto
escales das carreiras polticas ejurdicas, o que ocorreu tanto antes
quanto depois da Independncia.22 Como juzes, legisladores,
polticos,administradores e dirigentes de Estado, essas elites
formavam os quadros dos governos locais e dostribunais, arranjavam
leis para impor perdas s propriedades de seus oponentes,
manipulavam as regras queincidiam sobre a herana, obtinham
concesses a mais atravs de discretos e longnquos contatos
familiares -atravs dos quais tambm arranjavam casamentos - e
apossavam-se de terras, fossem elas devolutas,estivessem elas sob
disputa. Em suma, a elite tinha aprendido a complicar o sistema
jurdico e disso tirarvantagens. Lima (1988, p. 46) conclui que,
depois de um sculo subordinando as transferncias de terra srestries
jurdicas e aos procedimentos administrativos, essa eli te criou,
com sucesso, uma "trama invencvelda incongruncia dos textos, da
contradio dos dispositivos, do defeituoso mecanismo das reparties
eofcios de governo, tudo reunido num amontoado constrangedor de
dvidas e tropeos".
O destino do aldeamento indgena de So Miguel um caso
ilustrativo. Formado pelos nativosGuaianases por volta de 1560, ele
foi logo transformado pelos jesutas em um modelo de aldeia, de
acordocom as propostas contidas nas Regras de Governo. Em 1580, os
jesutas obtiveram uma sesmaria para aaldeia de mais ou menos 270
quilmetros quadrados, transformando a rea numa reserva oficial de
ndioscristianizados. Suas intenes eram no s separar os convertidos
e demarcar as terras necessrias agricultura - fundamental para o
ensino civilizatrio -, como tambm obter a garantia legal da Coroa
para quea concesso protegesse os ndios da escravido e suas terras
da invaso por colonos da vila de So Paulo,que rapidamente se
expandia. Intenes somente no bastaram: os ndios acabaram perdendo
tanto sua terraquanto sua liberdade. Essas perdas, no
surpreendentemente, ocorreram sob a cobertura da lei.Aprendemos,
atravs desse episdio, de que maneira as complicaes e as ambigidades
jurdicas servem sprticas ilegais e ainda como essas prticas
redundam em mais leis.
A escravizao dos ndios cristianizados foi um travestimento
jurdico. O governo local arrogou a si ocontrole sobre suas
atividades seculares e depois criou ambigidades jurdicas e
complicaes processuaiscom relao s responsabilidades sobre o
trabalho coletivo, complicaes e ambigidades estas queterminaram
permitindo sua efetiva servido.(23) Motivado pelo ouro, pela
ganncia e expanso, o governotambm usurpou terras indgenas atravs da
legalizao de atos ilegais. Primeiro vieram os
confiscosgeneralizados de terra. Depois, no comeo do sculo XVII, o
governo local cedeu sesmarias legalmente acolonizadores, sesmarias
estas, todavia, que incluam ilegalmente terras indgenas. Tais
"irregularidades",como eram descritas pelos funcionrios do governo,
ficaram sem soluo durante meio sculo at 1660,quando a Cmara
Municipal conseguiu autorizar-se a distribuir terra dentro das reas
proibidas aoscolonizadores "desde que estes no fossem prejudicados"
(Bomtempi, 1970, p. 64). Apesar dessacontradio, estavam assim
juridicamente regularizadas as concesses irregulares e sendo
criadas maisalgumas. Em 1679, o desembargador sindicante e ouvidor
geral Joo da Rocha Pitta veio a So Paulo "emdiligncia de correio" -
como era chamado o procedimento - para tratar de descompassos entre
a lei daletra e a lei da prtica. A fim de resolver o problema de
terra, ele simplesmente reescreveu a primeira paraencaixar a
segunda. Para tanto, foi oficialmente reconhecido aquilo que a
Cmara Municipal j tinha
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usurpado, ou seja, sua autoridade sobre a aldeia indgena e o
direito de distribuir a terra nela contida semqualquer restrio
estavam agora juridicamente assentadas. O desembargador ainda
ordenou que a Cmararecolhesse um imposto anual de todos os
invasores da aldeia. Ficavam assim regularizados os sequestros
deterras pblicas, tornados desse modo arrendamentos, e transformada
a condio dessas pessoas, de simplesinvasores, em arrendatrios
juridicamente reconhecidos. Esses arrendamentos, os chamados
aforamentos,conferiam aos beneficiados o pleno gozo do imvel,
tornando-o alienvel e transmissvel aos herdeiros.Como eram muito
mais facilmente arranjados do que as concesses reais, e alm disso,
como deram incio aum mercado privado de direitos sobre a terra,
eles possibilitaram ao Conselho dispor, rpida e judicialmente,do
restante das terras indgenas - todas, vale lembrar, supostamente
inviolveis pelo ttulo de sesmaria que,ento, ainda valia.
De tempos em tempos a Coroa atentava para essa contradio
aparente, mas sempre protelavasolues a favor de medidas temporrias
que indiretamente reconheciam a validade desses aforamentos.
Suadeclarao de 1703, decretando que somente seus representantes
tinham a autoridade para recolher osforos, um exemplo disso.
Quando, em 1733, a Coroa finalmente anulou o controle da Cmara
Municipalsobre a reserva e ordenou que a terra fosse devolvida aos
aborgenes, a Cmara apelou dizendo que aolongo de mais de um sculo
ela havia acumulado suporte jurdico para sua poltica de terras
junto anumerosas administraes regionais, coloniais e reais. Como
todo bom grileiro, a Cmara apresentou seudossi de documentos
(ttulos de sesmarias, recibo de impostos, levantamento de terra,
aforamentos eoutros) para sustentar sua posio e atravs de
complicaes processuais conseguiu travar o litgio at 1745.Foi quando
deu um desfecho sua causa, afirmando que a apropriao de terras
indgenas era irrevogvelporque havia poucos ndios remanescentes para
reav-las.
Durante o regime de sesmarias, a elite brasileira desenvolveu
habilidades para usar a lei, o governo ea burocracia, a fim de
criar "uma trama invencvel" de regulaes da terra (Lima, 1988, p.
46). Esseimbrglio paralisou as aes judiciais da Coroa no conflito
de terras, permitindo a efetiva legitimao, porparte das autoridades
locais, de prticas ilegais que iam ao encontro de seus interesses.
Dessa maneira, acomplicao jurdica se tornou uma arma contra as
imposies portuguesas, alm de constituir um meioeficaz de assalto ao
patrimnio real. Portanto, quando, em 1822, o Conselho de Apelaes no
Rio deJaneiro aboliu a poltica de sesmarias e suspendeu o
aforamento de terras da Coroa, ele estava apenasformalizando a
extino daquilo que j estava havia muito subvertido e usurpado.
O fundamento do direito propriedade de Ackel: posse e direitos
do invasor
A ancestralidade das alegaes de famlia Ackel sobre o Jardim das
Camlias pode ser retraadadesde o conturbado perodo marcado pela
abolio das sesmarias. Para uma gerao inteira, e at a Lei deTerras
de 1850, no houve acordo possvel a respeito de um substituto legal
para a alienao de terraspblicas. Na sua ausncia, o efeito da deciso
do Conselho de Apelaes foi o de obscurecer mais ainda ocarter das
ocupaes com mais uma grossa camada de complicaes: ela no s tornou a
invaso ilegal onico meio de obter terra, como tambm automaticamente
transformou aquisies posteriores em atos deusurpao. Desde os
primrdios da colonizao, as invases de terras da Coroa constituam
prticas comunsde colonos que, se por um lado no tinham os recursos
exigidos para pleitear sesmarias, por outroconseguiam sobreviver
com culturas de subsistncia e em meio s circunstncias mais
adversas. Dadas asdimenses continentais do pas e as vastas faixas
de terra no cultivadas e em disputa no interior das reasreservadas
s plantaes, as invases eram uma alternativa sempre presente,
tolerada, e at ignorada- a noser quando algum conseguia uma
concesso que inclua a terra invadida. As posses, assim,
tornavampossvel a condio de colonos livres queles que no podiam
participar da economia comercial, e aindaserviam de trunfo para os
imigrantes mais pobres-os habitantes das fronteiras, os meeiros e
os pequenosagricultores-contra o regime dos latifundirios.(24)
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Durante o perodo colonial, a invaso de terras tinha um status
jurdico ambguo. Apesar de seremconsideradas ilegais, as posses
eram, segundo costume, reconhecidas como legtimas se fossem
cultivadasintensamente durante um longo perodo de tempo - e
conquanto apresentassem uma produo evidente eregular. Desta
maneira, os invasores produtivos gozavam de certos direitos
consuetudinrios. 25 Estesderivam da idia j presente na Lei das
Sesmarias de Portugal medieval, segundo a qual toda propriedadetem
uma funo social e todo proprietrio tem a obrigao de produzir algum
benefcio social, seja na formade alimentos, seja atravs de
colonizao. Apesar dessa justificativa explicar o interesse do
governo por darum ttulo legal queles que ocupavam a terra ilegal
mas produtivamente, em especial as terras pblicas, emesmo se isso
ameaava os direitos daqueles que as ocupavam legal mas
improdutivamente, at hojepersistem ambigidades a respeito do que
seja uma posse produtiva ou improdutiva, invaso e propriedade.Essas
ambigidades se manifestam segundo vrias formas jurdicas e culturais
as quais, nunca demaislembrar, vo constituindo o solo frtil sobre o
qual vicejam os perenes conflitos de terra. Os Tribunaiscoloniais
geralmente determinavam que os direitos dos invasores sobre as
terras cultivadas podiam serconcretizados se seus pedidos fossem
registrados e os impostos e taxas pagos dentro de um
perodoespecificado. A essncia dessa deciso era converter a posse
numa sesmaria ou num aforamento. Todavia,para muitos invasores,
tais despesas eram proibitivas; ocorria ento que procedimentos
favorveisfreqentemente tinham efeitos perversos: os invasores eram
expulsos das terras ou, no mnimo, viam-sedefinitivamente na
ilegalidade. Era por isso que os invasores mais modestos
dificilmente almejavam alegalizao de suas posses. As elites
latifundirias, por sua vez, no encontravam dificuldades em bancar
aconverso, o que, numa estratgia efetiva para aumentar suas
propriedades, as encorajava a invadir maisterras pblicas. Elas
podiam assim tirar vantagens das ambigidades contidas nos
incentivos ao cultivo dasterras, anexando grandes reas s suas
propriedades, as quais eram posteriormente legalizadas.
Antecipandodessa maneira um novo mecanismo de legalizao, posterior
extino das sesmarias, os invasores da elitereivindicavam posses
enormes, maiores at que as concesses reais, e marcavam seu empenho
nasatividades agrcolas com uma carroa e um curral, quando muito.
Nas terras mais afastadas, os invasoresreivindicavam o quanto sua
imaginao permitia; nas reas mais povoadas, a pretenso ia at
ondeconseguiam lev-la.(26) Esses invasores da elite assim
consagraram uma estratgia fundamental e duradourade aquisio de
terra no Brasil: como ausurpao geralmente dava incio legalizao,
elas confirmaram ainvaso de terra como uma maneira segura de obter
direitos legais de propriedade.
Expanso econmica, avidez e ambio familiar moviam o arrebatamento
de terras, o qual se tornouuma batalha campal quando novos piratas
de terras apareceram para competir com os latifundirios
jestabelecidos. As reas no vigiadas estavam sujeitas a invases: com
isso, todas as partes envolvidascontratavam capangas para defender
suas posies e anexar outras. Os pequenos proprietrios que de
fatohaviam se estabelecido em suas posses eram ameaados como
intrusos e delas expulsos. Completando ocrculo vicioso, os
destitudos eram recrutados como capangas. Na ausncia de qualquer
meio legal paraestabelecer ttulos de propriedade, os assassinatos
tornaram-se rotina na mesma proporo em que asreivindicaes de terras
conflituosas permaneciam sem qualquer tipo de apreciao.(27)
Durante esse perodo, os arrebatadores de terra refinaram suas
tcnicas de manipulao da lei, o queidentifiquei acima como sendo a
marca registrada da grilagcm: envolvendo as terras invadidas no
quepareciam ser transaes legtimas, davam a elas uma fachada de
legalidade. O objetivo duplo dessa tcnica montar um dossi de
documentos que atestam, em cada caso, o que seria uma transao legal
se fossebaseada em direitos de propriedade legtimos e, desse modo,
envolver o maior nmero possvel de pessoasnesse aparente
reconhecimento das alegaes do usurpador. A quantidade de verses
desse estratagema to grande quanto a variedade de dispositivos a
respeito da terra. Para envolver a propriedade numa teia detransaes
legtimas, o invasor pode pagar os impostos da sua posse, vender uma
de suas partes, doar umafrao a uma organizao religiosa, pedir seu
levantamento, us-la como garantia em um emprstimo, deix-la como
herana, ou d-Ia como dote. Seus herdeiros e scios continuariam a
honrar essa transaes,
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tomando o cuidado de pagar em dia os impostos e taxas. Mais
importante ainda, eles devero sem demoraregistr-las nos livros da
parquia mais prxima, a qual em muitos lugares servia de cartrio.
Todos ospapis acumulados nessas transaes - recibos, promissrias,
procuraes, levantamentos, acordos,contabilidade etc. - eram
utilizados para provar que o Estado e a Igreja as haviam
sancionado. umatcnica, como vemos, que requer um conhecimento
jurdico considervel. Sua utilizao dissimula, no interiorde uma teia
de alegaes legtimas, a usurpao e a fraude. O objetivo sobrecarregar
essa teia comrelaes sociais a tal ponto que, e mesmo com a passagem
do tempo, seu desmantelamento se tornaimpossvel, de maneira tal que
a legitimao, por um decreto do executivo ou um ato do legislativo,
se tornainevitvel. Nesse tipo de complicao, a fraude encontra na
lei seu cmplice.
Entre 1822 e 1850, os pais de Gabriela Fernandes estabeleceram
uma grande posse dentro da aldeiaindgena de So Miguel. Quando
Gabriela se casou com Felisbino Santana, recebeu deles 243
hectaresdessa rea como dote. Desde 1886, quando Gabriela morreu,
essa propriedade constava do registro daparquia local e estava
legalizada segundo os termos da Lei de Terras de 1850.(28) Seus
quatro filhosherdaram, cada um, uma parte igual do todo. Em 1924 um
deles vendeu sua parte de 60,73 hectares a JosMiguel Ackel e seu
scio. No mesmo ano, o primeiro comprou a parte do segundo,
desenvolveu um planopara lotear a terra em cerca de mil lotes,
registrou o loteamento aprovado como Jardim das Camlias, ecolocou
os terrenos venda. O empreendimento no deu certo. Com certeza,
poucos compradores foramatrados, j que na poca So Miguel Paulista
era um subrbio de So Paulo, distante e isolado, semempregos e
transporte. Foi somente na dcada de 1930 que a situao mudou.
Indstrias por ali seinstalaram e linhas de trem e nibus foram
criadas. Nesse perodo de crescimento do local, Jos Miguelvendeu 207
de seus lotes ao seu irmo Nadime Miguel, o que foi registrado em
1935 no 7 Cartrio deImveis de So Paulo.
Percebemos assim como, na origem da propriedade de Ackel, est a
venda de terras indgenasinvadidas e a legitimao das alegaes dos
invasores. Sua histria demonstra que, apesar de seus ttulos
eregistros, as alegaes de Ackel no diferem daquelas dos outros
litigantes, j que revela uma estratgiaperante a lei que, na sua
essncia, compartilhada por todos: uma mistura de costume, fraude e
complicaojurdica que torna a mera posse da terra - resultante de
concesso, arrendamento, invaso, proclamao, eat mesmo compra - uma
propriedade. Se a histria de Ackel evidencia a importncia do
costume nessaestratgia, a que exponho a seguir revela a fraude.
Os fundamentos do direito de propriedade da Adis e do Estado de
So Paulo
As origens das alegaes da Adis no Jardim das Camlias, comuns s
outras reivindicaes noestado de So Paulo, constituem o centro
nevrlgico de um dos casos de terra mais notrios e complexos
nahistria brasileira, o que, de fato, no deixa de ser uma distino.
Frente sua complexidade sem limites, noposso afirmar que o entendo
por inteiro, tampouco seria prudente dirimir de erros e distores a
anlise deseus contornos que a seguir exponho e analiso. Todavia,
uma coisa certa: no h verso isenta dedistoro, j que essas mesmas
distores estruturam o uso da lei ao longo dos processos. As
manipulaesda lei foram buriladas no intuito de criar verses
mltiplas e plausveis, apesar de incompletas e discordantesentre si.
com relao a essas mesmas verses que tanto a noo de verdade jurdica
desaparece, quanto apossibilidade de resoluo surge dependente de
imposies polticas conjunturais. A exemplo dos outroslitigantes, o
argumento principal da Adis de fundo genealgico: ela justifica sua
alegao apresentando umarvore genealgica, supostamente legtima, que
remonta a 1890 atravs de sete geraes de direitos depropriedade,
cada qual asseverado por documentos registrados, os quais, por sua
vez, referem-se a outrosdocumentos mais antigos que dariam origens
legtimas s suas alegaes. No entanto, quando examinamosessa
genealogia de propriedade, torna-se evidente que a Adis e seus
predecessores vm desde h muitocriando origens as quais, apesar de
nunca inteiramente falsas, so sempre ilcitas.(29)
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Quando o governo imperial promulgou a primeira lei detalhada de
terra no Brasil, em 1850, suainteno era no s estabelecer os meios
legais para regular os ttulos de terras e prevenir invases
doterritrio pblico como tambm utilizar a poltica de terras para
atrair imigrantes europeus para o Brasil, deincio como
trabalhadores livres para substituir os escravos nas plantaes e
mais tarde como colonos livresproprietrios de suas terras. Com essa
finalidade, em 1890 0 primeiro governo republicano concedeu
aoengenheiro Ricardo Medina 50 mil hectares de terras devolutas,
divididas em duas partes iguais, cada qualem uma das margens do rio
Tiet, no leste de So Paulo. A parcela meridional dessa enorme
concessoinclua So Miguel Paulista e, de fato, o que hoje a Zona
Leste da cidade. O contrato de Medinaapresentava uma srie de
condies: ele tinha que fundar, num perodo de dois anos, uma colnia
agrcolacom 500 famlias de cada lado do rio Tiet; fazer um
levantamento da rea a fim de discriminar as terrasdevolutas
daquelas j adquiridas por outros e sobre as quais ele no tinha
direitos; e pagar um preo fixopelas primeiras, as quais podia
revender aos imigrantes. O no cumprimento de qualquer uma
dessascondies rescindia contrato. Nesse caso, todavia, o
beneficiado ficaria com a metade das terras cedidassegundo os
termos do contrato e a outra metade seria restituda ao governo. Em
1891, Medina transferiu suaconcesso, com todas as suas condies,
para o Banco Evolucionista - do qual era o fundador e que era umdos
muitos precrios bancos de empreendimentos imobilirios que pipocaram
com a nova poltica de terra.O banco no conseguiu colonizar as reas
no tempo exigido e com isso perdeu o contrato. Ele conseguiu,
noentanto, fazer um levantamento da parcela mais ao sul e chegou a
oferecer pagamento por ela, mas nodiscriminou, dentro dessa
parcela, e muito significativamente, as terras devolutas daquelas
que no 0 eram.Nessas condies, em 1892 o governo republicano
concedeu ao banco o ttulo de 25 mil hectares. Apesardisso
estabelecer os direitos de propriedade do banco, estes ficavam
subordinados a todas as condiesestipuladas na concesso
original.
Um ano mais tarde, o Banco Evolucionista hipotecou esse ttulo
condicional ao Banco de CrditoReal do Brasil, o qual ficou
definitivamente com o ttulo quando o primeiro foi falncia em 1900.
Apesar doBanco de Crdito Real tambm ter falido em 1909, seu
presidente, Eugnio Hanold, comprou o ttulo emleilo realizado
durante a liquidao do banco. Vendeu-o em 1917 para a Predial, uma
companhiaimobiliria. Nesse interregno, todavia, outros credores do
Banco Evolucionista entraram com processospedindo as partes das
propriedades do banco que lhes cabiam. O estado de So Paulo tambm
interveio,alegando que ele, e no o banco falido, e de acordo com a
Constituio de 1891, detinha as terras devolutasem questo. O caso
foi para o Supremo Tribunal Federal. Todavia, sua deciso, em 1928,
mais pareceucomplicar do que resolver a disputa: apesar de o
Supremo reafirmar a validade dos direitos do BancoEvolucionista,
negando que a Constituio os havia esvaziado, contudo, ela
estabeleceu, com base naclusula da reaquisio, constante no contrato
inicial de 1890, que o estado de So Paulo tinha direitos sobrea
metade dos 25 mil hectares. A Corte definiu o Estado, e no a Unio,
o beneficiado com a devoluo dapropriedade, argumentando, para
tanto, que na poca em que o banco rompeu o contrato j estava em
vigora Constituio que determinava que as terras devolutas eram dos
estados. Assim, o Supremo TribunalFederal reconhecia que o banco e
o Estado tinham, cada um, direito sobre 12.500 hectares, os
quaisestavam sujeitos mesma condio original, qual seja, a
discriminao das terras devolutas daquelas que noo eram.
A sentena gerou, entre outros, dois efeitos importantes.
Primeiro, ela deu o fundamento originrioaos interesses de
propriedade do estado de So Paulo em lugares como o Jardim das
Camlias. Segundo, oreconhecimento do ttulo do banco por parte do
Supremo, e apesar desse ficar valendo apenas para ametade da rea
total anteriormente compreendida, permitiu aos seus herdeiros
continuar a usar esse mesmottulo em transaes bancrias e comerciais.
Porque as terras nunca foram claramente discriminadas e porquehavia
muitos herdeiros, o ttulo foi envolvido - sempre de maneira ambgua,
s vezes de modo fraudulento -em inmeras transaes. Assim, em 1958,
quando a Predial vendeu-o para Nagib Jafet, um ex-presidente
daAdis, constava no contrato uma clusula que dizia o seguinte: o
vendedor "no responsvel por qualquer
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perda de direitos". Nesse mesmo esprito, em 1966 Jafet vendeuo
para Garzouzi, que por sua vez, em 1968,e assim que se tornou seu
nico acionista, transferiu-o para a Adis.
Dessa maneira, ao longo de todo um sculo, um sem-nmero de
bancos, firmas imobilirias eterceiros estiveram utilizando-se desse
ttulo para completar vrias transaes de propriedades -
algumasenvolvendo o prprio ttulo juntamente com outras tantas
terras de fato, mas todas, fundamentalmente,comprometidas por sua
natureza condicional. Os negociantes desse quase fetiche dependeram
de duascoisas para levar adiante sua transao: seu acmulo de
complicaes e fraudes. A fora desse ttulo vem desua complexidade, a
qual impossibilita aos Tribunais resolver uma das disputas sem
resolver todas as outras.Como isso praticamente impossvel, nunca
declaram o esgotamento da validade do ttulo. dessa maneiraque se
multiplicam as oportunidades para a prtica da grilagem. A nica
soluo regularizar, atravs deinterveno extrajudicial, todo hectare
citado no ttulo, de tal forma que esse mesmo ttulo perde seu poder
jque, assim, ficam sem objeto, a saber, terras devolutas ou de
posse duvidosa. A comisso de procuradoresdo Estado convocada em
1986 para examinar o problema chegou exatamente a essa concluso
-recomendando nada menos que um decreto presidencial para resolver
as disputas de terras no Jardim dasCamlias.
Ao investigar a perpetuao do ttulo do Banco Evolucionista,
encontrei dezesseis tipos diferentes defraudes. Algumas so
gritantes, como a falsificao de documentos, adulterao de marcas de
divises,corrupo de funcionrios e destruio de registros. Outras so
sutis, estratagemas de longo prazo que seutilizam da lei para
estabelecer precedentes a favor do grileiro. Por exemplo, um
grileiro se utiliza dedocumentos falsos, relativos a um pedao de
terra, para abrir um processo para reaver sua posse; umcmplice,
todavia, faz as vezes de ocupante ilegal. Ele se defende de maneira
pouco convincente e expulsoda terra. Resultam disso tudo muitas aes
no Tribunal e uma srie de precedentes constituindo uma espciede
jurisprudncia, a qual o grileiro apresentar mais tarde para
sustentar suas alegaes de propriedade. Afraude mais impressionante,
contudo, talvez tenha ocorrido justamente quando tudo comeou. Ao
executar ahipoteca do Banco Evolucionista, o Banco de Crdito Real
alegou ter adquirido com isso um imvelespecificado em uma "carta de
adjudicao" extrajudicial. O problema que a hipoteca s podia se
referir apossveis direitos sobre hectares ideais, e no a direitos
reais sobre terras discriminadas - um detalhe que, deminha
perspectiva, condena tanto as alegaes de propriedade da Unio quanto
as do Estado. No entanto, areferida "carta" inclua um levantamento
que definia uma rea de 21.600 hectares. Essa transformao mgicado
ideal em real um exemplo de um tipo de trapaa envolvendo a hipoteca
um tanto quanto comum entregrileiros bem relacionados. De um jeito
ou de outro, o grileiro acaba obtendo documentos que lhe do
direitosobre terras ideal ou vagamente definidas. Ele ento as
hipoteca a um parceiro como garantia de umemprstimo que,
deliberadamente, no cumprido. Como a execuo da hipoteca requer um
inventrio debens, o parceiro contrata um inspetor para produzir um
levantamento da propriedade hipotecada, o qual,todavia, impossvel
de ser verificado em funo de sutis omisses tcnicas. Esse
levantamento torna-separte de uma carta de acordo privado ou de
leilo para a liquidao da dvida, a partir da qual a negociao
resolvida juridicamente. Como os documentos so agora parte de um
procedimento judicial, os grileirostm pouca dificuldade para obter
a escritura das terras - terras estas que talvez nem existam mas
que forampor eles definidas a partir de uma rede de operaes
perfeitamente legais. Nos documentos da Adis e deseus
predecessores, esse tipo de alquimia envolvendo hipotecas, cartas
de acordos e levantamentos aparecesistematicamente na origem de
suas alegaes.
Tornando legal o ilegal
Passados 400 anos de colonizao, uma coisa certa: no Jardim das
Camlias no h ningum quetenha um ttulo de propriedade isento de
ambigidades - o que, alis, ocorre em muitas reas do Brasil.Resulta
disso, e apesar das vrias alegaes contrrias, que no h um nico,
indiscutvel proprietrio de
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quem os moradores podem receber uma escritura incontestvel para
qualquer um desses 207 lotes de cujahistria de disputa aqui nos
ocupamos. Cada litigante no conflito, no intuito de encontrar uma
origem quesustente sua alegao, utilizou-se da lei para criar uma
verso dessa histria. Essas origens so invenes delei; literalmente:
fices jurdicas. O governo central de incio criou para os ndios de
So Miguel um santuriolegalmente inviolvel e depois, atravs de suas
vrias encarnaes - colonial, imperial e federal -, legalizousua
usurpao. Parece indiscutvel que, apesar de ~o governo federal ter,
com isso, adquirido interessesdominiais na rea, tais interesses no
so legtimos porque ele nunca chegou a discriminar as terras
indgenasresiduais de outros tipos de propriedade. Assim o governo
federal no tem o ttulo registrado e com isso -numa dessas
reviravoltas da histria que nos surpreendem de maneira agradvel -
no pode provar suatitularidade nos termos de sua prpria Lei dos
Registros Pblicos. A situao do estado de So Paulo parecida: seus
interesses permanecem presos s condies no cumpridas no contrato de
1890 de Medina,o que tambm o deixa sem um registro. Apesar de as
alegaes da famlia Ackel e da Adis estarem calcadasem ttulos e
registros, estes tm procedncia duvidosa. As alegaes dos Ackel advm
da venda de terrasindgenas invadidas e da legalizao das posses dos
invasores. Ironicamente, estes ltimos so os que maistm
reconhecimento oficial, que aparece nos recibos de impostos,
registros pblicos e documentos detribunais - tudo porque esses
invasores so, afinal, os fraudadores mais hbeis e ambiciosos. A
pergunta,todavia, persiste: que alegao tem mais mritos legais?
Uma resposta definitiva parece ser impossvel, no s por causa da
importncia da ilegalidade emcada uma das alegaes, mas tambm devido
relao instvel que h entre o legal e o ilegal. De fato, sepor um
lado nosso estudo histrico mostrou que a usurpao uma das principais
foras motrizes daocupao territorial brasileira, por outro lado ele
tambm revelou que a prpria lei da terra se desenvolveu,em grande
medida, a partir da necessidade de legalizar invases. Esse
desenvolvimento redundou numadensa massa de complexidades jurdicas,
por sua vez gerada como uma estratgia para iniciar
manobrasextrajudiciais visando precipitar a legalizao das invases,
e tambm para, ao longo desse processo,interferir em outras reas da
lei e da burocracia. Durante o perodo colonial, os direitos sobre a
terratornaram-se arena de contestao da dominao portuguesa, na qual
esses mesmos direitos eramcomplicados ao ponto de torn-los
inativos. Era, pois, um meio de atingir a autonomia da colnia.
Noentanto, essa forma de resistncia tambm era de hegemonia local:
as complicaes jurdicas sustentavam osconflitos de terra para a
elite que tinha todas as vantagens extrajurdicas e que podia
legalizar o ilegal. Assimcomo ocorre hoje, as invases ajudavam os
mais pobres a ganhar acesso terra, j que, de acordo com osdireitos
consuetudinrios, eram reconhecidos como proprietrios legtimos se
fossem produtivos. Apesardessa mistura de lei e costume ajudar os
mais humildes, ela tambm permitia, e numa proporo maior,
aosgrileiros camuflar suas fraudes dentro de uma rede de transaes
legtimas. A apropriao ilegal, assim,tornou-se um meio bsico de
aquisio de terras; a ilegalidade, uma dimenso fundamental da
organizaosocial brasileira, perpassando-a por inteiro.
Ao longo destes sculos, portanto, as irresolues orquestradas
pela prpria lei incentivaram asinvases de terras, j que tambm
criaram a confiana na sua legalizao. No decorrer desse
processo,prticas ilegais produzem lei, solues extralegais so
incorporadas no processo judicial, e a lei confirmadacomo um canal
de desordem estratgica. Resultou disso que a ilegalidade e a
irresoluo jurdico-burocrticatornaram-se a norma nos casos
envolvendo terras. Nessas circunstncias, a lei difere completamente
dasnoes americanas de regulao neutra e imperativa, ou de separao da
lei e da sociedade, na qual asegunda produz a primeira mas ,
todavia, controlada por ela. No contexto brasileiro, a lei assegura
umanorma diferente: a manuteno do privilgio para aqueles que
possuem poderes extralegais para manipular apoltica, a burocracia e
a prpria histria. Nesse sentido, a irresoluo jurdica um meio de
dominaoefetivo, embora perverso. Atualmente, o campo jurdico
modifica-se, no atravs de reformas legais - arespeito das quais,
infelizmente, h pouco a dizer -, mas atravs de movimentos sociais
populares. Suasaes coletivas, durante as duas ltimas dcadas,
produziram um crescimento generalizado, apesar de
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instvel, da idia do direito a direitos - acesso Justia -, o qual
est transformando, numa freqncia cadavez maior, os brasileiros
pobres em estrategistas jurdicos. No lapso de uma gerao, alguns
aprenderam ausar as complicaes da lei para intricar os conflitos de
terras a seu favor. Sem dvida, tais iniciativaspovoam com novas
foras ticas, polticas e mesmo pessoais uma instituio antiga e
opressiva. Esses novosatores, no entanto, esto mais propensos a
reproduzir o sistema do que a mud-lo. Se os moradores doJardim das
Camlias ganham a causa, isso se dar porque tero derrotado 0 mestre
do jogo. Em muitossentidos, eles j foram vitoriosos ao utilizar a
lei em vez de serem vtimas dela. Contudo, ao aprender a
gerarirresoluo legal, eles aceitam a premissa do jogo segundo a
qual a irresoluo permite aos mais poderosostransformar o ilegal em
legal - um poder que ainda lhes falta. Eventualmente o sistema
jurdico podertransformar-se, pressionado por esse tipo de
engajamento: uma participao ampliada, ou mesmo universal,talvez
dificulte demais as solues extra judiciais para os conflitos
judiciais, fazendo com que esse usoprivilegiado da legalizao do
ilegal, e o tipo de dominao que se atualiza junto com ele, termine
de vez. Ese existe a esperana de que tal transformao j esteja em
curso, os seus desdobramentos so aindaincgnitos: as duradouras
distopias da lei so tanto constitutivas quanto sintomas de um
interregno mrbido.
otas
(*)Este artigo foi previamente publicado como "The misrule of
law: land and usurpation in Brazil." Comparative Studies inSociety
and History. 33 (4) pp. 695-725, 1991. 1. Parte de um estudo mais
amplo sobre a terra, trabalho, lei e movimentos sociais no Brasil,
este ensaio baseia-se numtrabalho de campo e de arquivos de dois
anos, realizado entre 1987 e 1990, financiado por um Fullbright
Hays FacultyResearch Award, um CIES Fullbright Regional Award, e
pela University of Southern California. Agradeo s pessoas doJardim
das Camlias por sua inestimvel ajuda na coleta e anlise dos dados
apresentados neste artigo. A AntnioBenedito Margarido, advogado da
associao de bairro, Jos Nogueira Souza, seu presidente durante meu
trabalho decampo, e a Teresa Caldeira, colega antroploga, meus
agradecimentos especiais. 2. Em outras publicaes, mostro com mais
detalhes que as periferias urbanas brasileiras devem sua formao s
polticasde terra elaboradas para regular o fornecimento de
trabalho, o que era feito atraindo, fixando e disciplinando um
tipodesejado de fora de trabalho (Holston 1989: caps. 6-8; e
Holston s.d.) Esse regulamento estabelece no somente padresbsicos
de migrao e assentamento, mas tambm as condies nas quais ocorrem os
conflitos de terras, e que constituemo foco deste ensaio. 3. Muitos
estudos antropolgicos reiteram esse princpio. Ele aparece ao longo
do espectro terico, tpico e regional, comouma nfase, por exemplo,
na manuteno do controle social atravs do costume ou da coero
(Malinowski 1926, Radcliffe-Brown 1933), na resoluo de desarranjos
sociais (Llewllyn e Hoebel 1941), para refrear abusos (Gluckman
1955), naproduo de coerncia social atravs do conflito (Gluckman
1956), na mediao de disputas (Gulliver 1963), no incentivo
aocompromisso e ao equilbrio (Nader 1969), e na eliminao da
ambigidade (Leach 1977). Uma exceo o polmico masnegligenciado
artigo de Leach (1963), no qual ele argumenta, contra os
funcionalistas malinowskianos e os
funcionalistasanti-malinowskianos, que na sociedade primitiva a lei
serve para proteger privilgios. 4. Mesmo Barnes (1961, pp. 193), em
um de seus primeiros estudos da "lei como algo politicamente
ativo", conclui queapesar de as "instituies jurdicas (onde no h
tribunais) ... de fato fornecerem as regras atravs das quais
ocorrem asdisputas (polticas) ... a lei, todavia, pode ser vista
como um conjunto duradouro e consistente de regras
aplicadasimparcialmente". 5. Por exemplo, ensaios recentes sugerem
que os sistemas jurdicos criam conflitos (Starr e Collier 1988);
que a legislao uma arena de disputas entre faces, e que a lei
nativa contesta a dominao colonial (Vincent 1989); que a assim
chamadalei dos costumes uma inveno do colonialismo (Cohn 1989 e
Moore 1989); que as disputas podem ser dirigidas eutilizadas para a
promoo da harmonia, por uma estratgia poltica especfica (Nader
1989); e que o discurso jurdico podeintroduzir hierarquia em relaes
a princpio iguais (Greenhouse 1989); ver tambm Santos 1988 sobre a
lei como discurso). 6. Apesar das caractersticas geogrficas e
demogrficas da periferia estarem em constante mutao, estimo sua
populaoatual em 5,5 milhes de pessoas, o que corresponde a um pouco
mais da metade do total de moradores do municpio de SoPaulo (Seade
1989: tabela 12.15). A intensidade da taxa de expanso da periferia
pode ser captada nos seguintes dados: area urbana da Grande So
Paulo cresceu 53 por cento entre 1977 e 1987 (Metr 1990, p. 16),
enquanto a populao daregio perifrica de So Miguel Paulista, nas
dcadas de 1950, 1960 e 1970, registrou taxas de crescimento anual
de 15,2 por
24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade
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