PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica Dissertação de Mestrado Cibercultura, Imaginário e Juventude A influência da Internet no imaginário de Jovens Brasileiros Lygia Socorro Sousa Ferreira Orientador: Prof. Dr. Eugênio Rondini Trivinho São Paulo 2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
Dissertação de Mestrado
Cibercultura, Imaginário e Juventude
A influência da Internet no imaginário de Jovens Brasileiros
Lygia Socorro Sousa Ferreira
Orientador: Prof. Dr. Eugênio Rondini Trivinho
São Paulo
2009
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LYGIA SOCORRO SOUSA FERREIRA
Cibercultura, Imaginário e Juventude
A influência da Internet no imaginário de Jovens Brasileiros
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Comunicação e Semiótica pelo
Programa de Estudos Pós-Graduados em
Comunicação e Semiótica, sob a orientação do
Prof. Dr. Eugênio Rondini Trivinho.
Área de Concentração:
Signo e Significação nas Mídias
Linha de Pesquisa: Cultura e Ambientes Midiáticos
São Paulo
2009
BANCA EXAMINADORA
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À minha Mãe.
Não poderia dedicar esta vitória a outra pessoa. Afinal, ela só foi possível porque
você esteve sempre ao meu lado. Nunca serei capaz de retribuir tudo o que tem feito por mim.
Mas, qual o filho que consegue retribuir integralmente o amor de uma mãe? Infelizmente,
todos nós somos impotentes diante dos gestos de cuidado e de carinho dispensados desde o
nosso nascimento. Com o passar dos anos, quando se pensa que os “laços” foram rompidos
com a chegada da rotina da vida adulta, qual a surpresa? Vemo-nos ainda mais ligados aos
ensinamentos da mãe. A ligação umbilical “física”, de fato, foi rompida. No entanto, os laços
sentimentais estão cada vez mais firmes, pois o tempo nos ensina a enxergar o quando a sua
presença é importante.
Então, minha mãe, Nazaré Ferreira, este Mestrado é para você. Ele representa a
conclusão de mais uma etapa de minha vida. Sei que ainda estou apenas no começo, tenho
muito a aprender. Porém tenha certeza de que é o meu exemplo de ser humano. Sua presença
ajuda a dar sentido em minha vida e seus ensinamentos são a base que fundamenta o meu
caminho.
Você soube transmitir suas qualidades na firmeza de sua atitude; na sabedoria de
suas palavras; nos seus gestos de carinho e de solidariedade; no silêncio dos seus
sofrimentos e preocupações; na beleza do seu sorriso e na grandiosidade do seu AMOR.
Neste instante, lembrei-me que há pouco tempo atrás, um poeta já dizia: “só as mães
são felizes!”. É verdade, são felizes, simplesmente, porque vivem para amar.
AGRADECIMENTO
São cinco horas manhã. Já começo a ver, timidamente, os primeiros
raios de sol em minha janela. Passei a noite acordada, terminando a Dissertação. Esta é a
última página que escrevo. Não por ser a menos importante, pelo contrário, quero
cuidadosamente, escrever nela os nomes das pessoas que me acompanharam ao longo deste
percurso acadêmico.
Meu primeiro agradecimento é a Deus por ter concedido o dom maior,
o DOM da VIDA. Vida cheia de presentes. Presentes representados em forma de experiências
e pessoas que me ensinam o quanto é maravilhoso viver.
No transcurso destes dois anos, como qualquer ser humano, deparei-
me com situações de alegria, mas também com dificuldades. Não foi fácil chegar ao fim.
Muitas vezes, até pensei em não ser capaz de conseguir. Porém, todos que citarei nesta folha,
direta ou indiretamente, ajudaram-me a concluir esta etapa. Peço desculpas àqueles que,
eventualmente, não serão citados. Acreditem, não foi por esquecimento ou ingratidão.
Simplesmente, porque é impossível; falta espaço para escrever todos os nomes das pessoas
que são especiais para mim. Mas saibam que tenho todos guardados em meu coração.
No entanto, não poderia deixar de lembrar minha irmã, Lourdes
Ferreira, companheira de todas as horas. Não tenho palavras para agradecer o carinho e o
apoio nas horas difíceis. Sem essa mão amiga, jamais seria capaz de superar os obstáculos
surgidos ao longo do tempo.
Outra pessoa igualmente importante, Prof. Dr. Eugênio Trivinho.
Educador na expressão máxima que o termo encerra. Exemplo de dedicação e de
competência. Como poderei agradecer a paciência com que me orientou? Sinto-me honrada
em ter como orientador e amigo, um dos maiores pesquisadores da área crítica
comunicacional da atualidade.
Agradeço a CAPES, pela bolsa de estudos de fundamental importância
para a conclusão deste meu percurso acadêmico;
Aos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Em especial a profª Lucrécia Ferrara, prof. Norval
Baitello e prof. Oscar Cezarotto, os seus conhecimentos e as suas experiências foram de
imenso valor;
A minha querida Cida Bueno (PEPGCOS-PUC/SP). Muito mais do que
uma secretária, é uma mulher de fibra que abraça o serviço com responsabilidade e amor. É,
também, uma amiga cuidadosa. Obrigada por tudo que fez por mim, durante estes dois anos.
Aos colegas do grupo de pesquisa CENCIB (PUC-SP), Edilson,
Heloísa, Michele e Ana, e aos colegas do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Comunicação e Semiótica, em especial ao Daniel, a Marlise e ao Romilson, pela partilha
intelectual de fundamental importância para o meu crescimento acadêmico;
Às irmãs do Pensionato Santa Marcelina, pelo carinho com que me
acolheram em “terra estranha”; e as colegas de pensionato Fabíola, Rosário, Shizuko,
Paula, Lívia e em especial a Maíra, que – assim como eu – vieram para São Paulo se
qualificar. Partilhamos as dificuldades, a saudade da família, as conquistas e as alegrias;
Aos meus amigos fiéis: Ruberval Oliveira, Débora Campos, Júlia
Na relação imaterial entre mercado e media, as transações comerciais e
o valor das mercadorias são ocultados. O que vem à tona é a utopia “sui generis” da
comunicação, denominada por Trivinho (2007) de “tecnoteleologias”. Elas são definidas pelo
autor como “utopias condicionadas pela tecnologia, fundadas na tecnologia e desenvolvidas
até a sua realização com base e por meio da tecnologia” (ibid., p. 380), com o interesse de
beneficiar as grandes corporações.
Ao contrário das metanarrativas modernas que eram propostas
ideológicas inalcançáveis e contraditórias, a tecnoteleologia revela-se plenamente possível de
ser realizada. Por meio da freqüente utilização dos aparatos tecnológicos, o indivíduo sente-se
parte integrante do processo de construção, de disseminação e de concretização de todas as
utopias tecnológicas. Até mesmo o sonho de emancipação humana torna-se real ao ser
mediado pela tecnologia. Diante do computador ou com o celular na mão, ambos conectados
a rede, o ente humano pode ingressar num espaço em que tudo é permitido, onde os limites
geográficos e temporais são facilmente ultrapassados e para singrar nesse mar de
possibilidades basta apenas apropriar-se da função mais complexa e completa do ser humano,
a imaginação.
Levando em consideração esse aspecto, Trivinho (2007) chama atenção
para o encantamento que os objetos infotecnológicos de tamanho mini estão causando
atualmente. Eles transformaram-se em fetiches sociais. Observados pelos consumidores com
alegria e deslumbramento, rapidamente, viram alvo de desejo e de “devoção silenciosa, mais
emocionalmente intensa” (TRIVINHO, 2001, p. 84). A sedução é alimentada pela promoção
publicitária, rica em detalhes e imagens que transformam um simples objeto em algo
espetacular. Os media tem poder de transformar a realidade em espetáculo. Eles encantam
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pela emoção e sutilmente promovem o aumento do consumo. Nessa escalada dos extremos, a
tecnologia e a comunicação convertem-se em instrumentos ideológicos de legitimação e
dominação do sistema capitalista renovado.
1.1.3. As significações imaginárias do fenômeno pós-moderno: transformações e
desafios
Como ressaltado anteriormente, cada momento histórico possui sua
própria rede simbólica composta por elementos que lhe são identitários. Essa rede é
constituída de significações imaginárias que só podem ser compreendidas dentro do contexto
no qual estão inseridas (CASTORIADIS, 1986). Justamente por causa disso, os projetos
ideológicos do passado são completamente incapazes de corresponder às necessidades da
atualidade.
Esse argumento serve como base para entender o movimento de
transição da modernidade para a pós-modernidade. À medida que o projeto iluminista caiu em
descrédito, outros característicos da época nascente ocuparam o seu lugar. Porém, as crenças
anteriores não desapareceram bruscamente. A transição aconteceu de forma gradual,
possibilitando às significações passadas deixarem marcas nas atuais, dentro de uma dinâmica
arbitrária. Por esse motivo, ainda hoje se presencia – mesmo sob outras bases – traços da
política de exclusão purificadora do passado. Antigamente, a exclusão constava na separação
do “povo eleito” de seus inimigos. O inimigo deveria ser punido por não ser capaz de
corresponder aos objetivos da elite dominante (o povo eleito), como é o caso dos “hereges”
para o cristianismo medieval; os burgueses para o marxismo/comunismo e os judeus para o
nazismo. Hoje, as experiências excludentes foram reescalonadas, passando a acontecer
também no plano simbólico. A principal delas é concebida por Trivinho (2001) como o
apartheid da civilização mediática. Ele configura o fosso existente entre os indivíduos que
possuem capital cognitivo e econômico necessário para o pleno domínio das linguagens
infotecnológicas e os indivíduos que, por inúmeros motivos, não conseguem acompanhar a
frenética transformação tecnológica. Esses, infelizmente, são condenados a viver à margem.
Tal fato serve para demonstrar que as significações imaginárias modernas ainda sobrevivem
na pós-modernidade, mas ao serem aplicadas num novo contexto sócio-histórico, elas têm os
seus sentidos alterados, tornado-se parte constitutiva da nova época.
Ao observar o quadro a seguir, é válido relembrar do tripé de
significações do imaginário moderno apresentado no primeiro item deste capítulo. Assim fica
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fácil de constatar na pós-modernidade, o mesmo sonho de liberdade que movimentou as ações
da era moderna. A diferença reside apenas na estratégia utilizada para atingir esse objetivo.
Na modernidade, acreditava-se totalmente nas potencialidades humanas. Na pós-
modernidade, a tecnologia comunicacional destitui a soberania do homem e assumi o status
messiânico, anteriormente ocupado pelo sujeito. Tal fato desencadeou a notável
transformação no imaginário da sociedade atual.
FIGURA 3: Imaginário moderno e imaginário pós-moderno: comparações
Como se pode perceber, as significações imaginárias da pós-
modernidade resultam na visão niilista dos modos de encarar a existência humana,
favorecendo o “neoindividualismo” 2, a fugacidade nas relações interpessoais, a busca pela
satisfação momentânea, a paixão por si mesmo (glamorização da autoimagem) e o narcisismo
militante (SANTOS, 2000, p. 87). Martín-Barbero (1996) ressalta que a identidade una da
modernidade fratura-se na pós-modernidade. Essa fratura, sobretudo, é resultado da crescente
utilização dos recursos tecnológicos.
Encontramo-nos diante de sujeitos dotados de uma elasticidade cultural que se
assemelha a uma falta de forma, é mais bem receptivas as mais diversas
formas, e de uma “plasticidade neural” que lhes permitem uma camaleônica
adaptação aos mais diversos contextos e uma enorme facilidade para os
idiomas da tecnologia. (Ibid., 1996, p.13).
2 Segundo Jair Ferreira dos Santos, o “neoindividualismo” trata-se de uma releitura do individualismo moderno
acrescido do forte consumismo e da distração provocada pelos meios.
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Essa ação “camaleônica” define bem a identidade plural e performática
da pós-modernidade. Enquanto a identidade moderna era fundamentalmente construída a
partir da linearidade dos discursos e da clareza dos valores, a identidade pós-moderna é
basicamente calcada no consumo, conforme exemplifica Silverstone (2002, p. 258): “Posso
ser homem pela manhã, mulher à tarde e talvez algo completamente diferente após o jantar, e
onde meus gostos, estilos e minha pessoa podem mudar com cada momento de consumo”. No
que tange a identidade pós-moderna, o autor ainda conclui:
Falamos da fatura de identidades numa era pós-moderna, das indeterminações
de etnias, classes, gêneros e sexualidade em torno dos quais as culturas se
formam, oferecendo-nos uma grande coisa agora, outra depois; aqui e acolá,
em toda parte, enquanto vagueamos nômades, pelo tempo e pelo espaço.
Somos vistos como foliões num carnaval sem fim; num baile de máscaras no
hiper-real, e cercados por ele. (Ibid., p.83)
No entanto, a comunicação de par com a tecnologia não apenas invade o
imaginário social, por meio de seu discurso persuasivo, incentivando o consumo, a moral
hedonista, os estilos e as tendências ecléticas, como “concretiza” todos os possíveis “sonhos”
dessa geração. Diante desse “poder” da comunicação tecnológica, Trivinho (1999) ressalta
que na transição da modernidade para a pós-modernidade houve um deslocamento do
significado das projeções ideológicas da humanidade. Elas deixaram de ser “aspirações”, para
transformarem-se em “ações” concretizadas no plano tecnológico.
A Filosofia, a Economia Política e as Ciências Sociais cedem lugar à
tecnologia e seus discursos comerciais (publicitários, jornalísticos, técnicos,
acadêmicos etc.); o que antes habitava o centro do cenário como parâmetro de
construção e de uma nova sociedade é desbancado pela tecnociência como
meio e fim em si, a mesma que, com efeito, pleiteia a realização de princípios
não muito diferentes dos de outrora. (Ibid., p. 381).
Além da efemeridade nas relações sociais, da pluralidade de identidades, do
íntimo relacionamento entre sociedade e tecnologia e, da mundialização da cultura, outra
característica do contexto da pós-modernidade é a individualidade. O sujeito pós-moderno
preza a liberdade, desconsidera as condições concretas disponíveis para o seu exercício e
concebe o “individualismo” como sendo “o valor pelo qual todos os outros valores vieram
ser avaliados e a referência pela qual a sabedoria a cerca de todas as normas e resoluções
supraindividuais devem ser medidas” (BAUMAN, 1998, p. 09). Se na modernidade a
humanidade abria mão de certo grau de liberdade em troca de relativa segurança; na pós-
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modernidade ela prefere a liberdade total em detrimento a qualquer estabilidade. Essa forma
de encarar a vida repercute, principalmente, nas relações interpessoais.
A excessiva busca pela liberdade acentua os sentimentos de insegurança, de
incerteza e de solidão. A afetividade passa a ser compreendida apenas como fonte de prazer
momentâneo, impossibilitando a solidificação dos sentimentos e causando, igualmente, um
vazio existencial. Planejar objetivos a serem realizados no futuro não é atitude atraente,
“qualquer oportunidade que não for aproveitada aqui e agora é uma oportunidade perdida”
(BAUMAN, 2001, p. 187). Laços e parcerias humanas não são “embalados” pelo utópico
sonho de completude, afinidade, ideais partilhados; pelo contrário, são estabelecidos
imediatamente pela lógica do consumo, lê-se de caráter utilitário. Assim, que “melhores
oportunidades” surgirem, as relações podem ser extintas. A satisfação individual é regra
maior, tornando as relações duradouras algo inviável diante de uma realidade constantemente
mutável, onde em cada “esquina”, em cada “mudança de canal” ou em cada “link”, um novo
produto – ou relacionamento – está pronto para ser consumido.
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1. 2. DOS MASS MEDIA AOS MEDIA INTERATIVOS: A TRAJETÓRIA
DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO NO IMAGINÁRIO SOCIAL
Como discorrido nos itens iniciais deste capítulo, a promoção da
comunicação tecnológica origina-se do lastro destrutivo deixado pela Segunda Guerra
Mundial. Com o descrédito nas grandes narrativas, ela passou a ocupar o centro da cena
sociocultural promovendo e articulando três modelos de culturas, como mostra a figura a
seguir.
FIGURA 4: As culturas articuladas pela comunicação tecnológica
Ao comparecer como epicentro impessoal e auto-organizado, a
comunicação, estruturada em bases da rede mediática, movimenta-se e ramifica-se no interior
de cada uma das culturas, atuando como vetor tecnológico totalitário de produção, ligação e
sedimentação das três culturas com a finalidade de atingir concretizar o velho sonho de
emancipação humana por meio da promoção de novos discursos ideológicos. Entre eles,
destaca-se o apelo à “globalização” (Matellard, 2000) e à “visibilidade total” (Trivinho,
2001). Ambos ligados ao “poder” comunicacional de ultrapassar os limites (temporal e
geográfico), obliterando o real convencional, o real cotidiano, da vida prosaica, em proveito
do real imagético, fantasioso, fabuloso, fugaz, originado da matrix tecnológica3.
3 Matrix, palavra latina, deriva de mater que quer dizer mãe. Em latim, Matrix é o órgão de reprodução onde o
embrião se desenvolve, o útero.
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Essa idéia de articulação e de “integração” do mundo, proporcionada
pela tecnologia, principalmente, pela comunicação informática, não é recente. Remonta à
concepção da teoria social de Nobert Wiener, a Cibernética4. No livro a “Cibernética e
sociedade: o uso humano dos seres humanos”, o autor afirma que a comunicação e o controle
colaboravam na tentativa de impedir a tendência entrópica, isto é, a degradação natural da
sociedade5. O empenho de Wiener era buscar alternativas de superação desse óbice,
relacionado à termodinâmica6. Ele aplica a lei da física com o intuito de adequá-la às relações
sociais. Para o autor, a circulação ininterrupta das informações evita a degradação e o caos
social. “Assim como a entropia é uma medida de desorganização, a informação conduzida por
um grupo de mensagens é medida de organização”. (WIENER, 1978, p. 21).
É impossível compreender o pensamento de Nobert Wiener sem
reescaloná-lo à dimensão sociopolítica. O imaginário da teoria cibernética consiste em manter
o desenvolvimento harmonioso dos laços sociais. Esse paradigma antropológico, vislumbrado
por Breton e Proulx (2000), estabelece a máquina como meio de reorganizar
“harmonicamente” a sociedade, transformando-a em sociedade da informação. Nela, o
humano comparece pulverizado em bits e em códigos genéticos vulneráveis a técnicas que
possibilitam até mesmo a reprodução em série (clonagem). O hommo communicans se despe
de conceitos clássicos, como a interioridade, para tornar-se um ser voltado essencialmente
para o que vem do exterior.
O valor atribuído à informação pela teoria cibernética contribuiu para a
proliferação incontrolável de técnicas e tecnologias comunicacionais que introduziram
aparelhos e objetos infotecnológicos em todos os setores da vida cotidiana (TRIVINHO,
2001). Essa proliferação surge na metade do século XX, mais precisamente, no período de
guerra, com a finalidade tática de aniquilamento do inimigo. “A comunicação possui
umbilicais relações com o campo bélico” (ibid. 2001) e, por isso, continua exercendo sua
finalidade prática de aniquilação. Desta vez, é a aniquilação da realidade em prol de uma
“hiper-realidade” (BAUDRILLARD, 1991, p. 20), uma realidade inexistente, vazia de
sentido.
4 Não se trata aqui de aprofundar a teoria cibernética, somente, de apresentar os alicerces lançados por Wiener e
analisar, de maneira geral, as respectivas repercussões no cenário social. 5 Argumentação inspirada na aula de Fundamentos da Comunicação, ministrada pelo Prof.Dr. Eugênio Trivinho,
em 29/03/2007, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP. 6 A segunda lei da termodinâmica diz que o universo e todos os sistemas físicos em menor escala evoluem
espontaneamente para a situação máxima de entropia, degradando-se pelo nivelamento absoluto de elementos.
Como há homogeneidade, não existem trocas de elementos e o sistema estanca e morre. (WIENER, 1978, p. 14).
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Segundo Kumar (1997), a humanidade já testemunhou duas grandes
revoluções. A Primeira, de acordo com o autor, foi à revolução causada pela utilização da
energia (vapor e eletricidade). A segunda, e mais atual, é a revolução da informação
(tecnologia e comunicação). Gestada há mais de um século, suas primeiras manifestações
assumiram diversas formas: telégrafo elétrico, cinema, rádio e televisão. Mas, é o computador
que simboliza o principal motor de transformação, colocando-se ao centro da sociedade da
informação. As experiências comuns da vida diária são suficientes para confirmar esse fato:
bancos em funcionamento 24 horas, o virtual desaparecimento do dinheiro na maioria das
transações bancárias, reservas em hotéis, compras de passagens aéreas, até mesmo check-in;
pesquisas em bibliotecas e consultas em catálogos e arquivos de bancos de dados de
instituições públicas, resultado de exames laboratoriais, sistemas de segurança monitorado por
microcâmeras conectado ao terminal de computador, são alguns dos exemplos de como a
tecnologia da informação invadiu o cotidiano.
No transcurso da história7, a comunicação, fincada em bases
tecnológicas, alcança o ápice no século XX. Mas, as primeiras sementes já se faziam
presentes ainda no século XIX8. Primeiro, na forma de telégrafo e, posteriormente, na
organização de grupos de imprensa (agências de comunicação), promovendo os primeiros
gêneros culturais de massa. Antes mesmo da Primeira Guerra, as indústrias de cinema e
música começavam a revelar seu potencial de exportação.
Contudo, as significativas transformações sociais promovidas pelos
meios de comunicação, realmente, só foram sentidas com maior efeito a partir da década de
20. O advento das programações de rádio contribuiu para o aparecimento de novos estilos
musicais e para o crescimento da indústria de discos e gramofones. A população,
principalmente, a elite acostumada a ouvir música erudita, passou a escutar melodias mais
ligeiras, estilo relacionado à agitação das cidades em crescimento. Claro que no início houve
resistências. Chegou-se a levantar hipóteses de que esse “modismo” não iria adiante. Porém,
rapidamente, o “novo estilo” atingiu as camadas populares e dominou a sociedade. Durante o
período de guerra, os programas radiofônicos foram utilizados como instrumento sutil no
processo de manipulação da opinião pública. As programações dividiam-se em transmissões
de propagandas do sistema de governo, músicas e as “campeãs de audiência”: as rádios
7 Não é o objetivo deste tópico, recontar a história dos mass media e a dos media interativos e, nem tão pouco,
aprofundar reflexões a respeito de sua função social. Devido entender que a temática já foi bastante
desenvolvida, esmiuçada e, por hora, superada. O contexto histórico dos meios de comunicação, a ser
brevemente abordados, será analisado sobre a ótica do imaginário. 8 Argumento baseado nas obras de Armand Matellard, “História da Utopia Planetária: da cidade profética à
sociedade global” (2002) e “A globalização da comunicação” (2002).
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novelas. Histórias românticas contadas pari passu em capítulos de curta duração, capazes de
unir a família em torno do rádio, aguçando o imaginário do ouvinte. Se o rádio deixava o
ouvinte “livre” para criar suas próprias imagens, o cinema passou a encantar o telespectador
ao dar vida às imagens, transformando a ficção em realidade.
O cinema surgiu no século XIX com os irmãos Lumière. Inicialmente
era mudo, tornou-se sonoro no final dos anos 20. Pouco tempo depois, as cores invadiram o
écran. A partir de então, o cinema transformou-se em uma indústria de entretenimento,
movimentando muito dinheiro e atraindo multidões fascinadas pelo mundo espetacular. Foi a
indústria cinematográfica que instituiu no imaginário do público o conceito de “star system”,
as estrelas e astros do universo ficcional da comunicação. Atores e atrizes transformados em
“modelos de seres humanos”. Imagens artificiais construídas pelo comércio comunicacional
para serem endeusadas e consumidas pelo imaginário. Os artistas ao se tornarem pessoas
públicas, passaram a dividir com os fãs, muitas vezes forçadamente, a sua privacidade. A vida
prosaica destas pessoas foi descortinada e virou objeto da mídia. Não são poucos os exemplos
de “famosos”, vítimas de invasão de privacidade em nome da “necessidade” de deixar o
público informado.
A televisão criada no período entre guerras, e melhor desenvolvida
depois de 1945, possui total conformidade com intentos da teoria cibernética. A manutenção
dos laços sociais é uma delas. Wolton é grande entusiasta desse pensamento.
O espectador, ao assistir à televisão, agrega-se a esse público potencialmente
imenso e anônimo que assiste simultaneamente, estabelecendo assim, como
ele, uma espécie de laço invisível [...]. Trata-se, portanto, de um laço social
tênue, menos forte e menos forte e menos limitador do que as situações
institucionais ou as interações sociais vêm justamente do seu caráter ao
mesmo tempo restritivo, lúdico, livre e espetacular. (WOLTON, 1996, p.
124).
O autor desenvolve suas argumentações sempre contrapondo a televisão
geralista à fragmentada. De maneira geral, a primeira corresponderia aos canais abertos e a
segunda aos fechados, à TV por assinatura. Wolton mostra-se claramente partidário da
generalista, acreditando ser o modelo apropriado para promover ligações entre indivíduos e
gerar a rede global. É válido ressaltar que a televisão geralista apesar de acessível, também
possui a funcionalidade de servir aos interesses de quem detém as concessões de transmissão,
reforçando não apenas a cultura mediática como também engendrando força ao sistema
capitalista. Um bom exemplo de empresas que fazem parte desta “rede global” é a Televisa
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(emissora mexicana) e a Rede Globo (emissora brasileira). Ambas exibem seus seriados e
suas telenovelas muito além de seus países de origem.
Com o crescimento dos media interativos, a televisão de modelo
centralizador, a TV analógica, começou a sofrer alterações quanto à forma de transmissão. O
mercado mediático, com a intenção de atender aos ideais de interatividade, apropria-se das
tecnologias digitais e cria a TV digital (HDTV).
A movimentação em torno da TV de alta definição começou em 1987,
nos Estados Unidos. No ano de 1991, as empresas européias produtoras de equipamento
eletrônico e os órgãos reguladores começaram a discutir a viabilidade do desenvolvimento da
televisão digital. Mas foi no Japão, em 1995, que ela concretizou-se. O governo japonês e as
principais redes de televisão investiram cerca de trinta milhões de dólares na digitalização das
transmissões televisivas do país. No Brasil, as primeiras experiências com os sinais digitais já
existentes foram iniciadas no segundo mandato de governo do presidente Fernando Henrique
Cardoso; em 2003, já na gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi baixado decreto
autorizando as universidades realizarem pesquisas com a finalidade de verificar a
possibilidade da construção de um padrão nacional da televisão digital. Em 2007 ocorreu à
inauguração da primeira transmissão com sinal digital e em 2008, iniciou-se a campanha em
prol da popularização da TV digital no país.
A televisão digital surge com as seguintes promessas de [1] alta
qualidade em imagem e som. Os primeiros aparelhos de TV tinham apenas 30 linhas de
vídeo. Enquanto um monitor analógico possui entre 480 a 525 linhas, um monitor digital
chega a 1080 linhas, possibilitando maior definição sonora e imagética; e de [2]
interatividade. O telespectador passa a ter a liberdade para interferir nos dados armazenados
no receptor ou estabelecer troca de informações por meio de uma rede à parte do sistema, no
caso a linha telefônica ou a rede de banda larga. Em outras palavras, é possível navegar na
internet, interagir com o comércio eletrônico e estabelecer contatos por meio dos
comunicadores instantâneos.
Não será realizada neste Trabalho, a análise das prováveis
transformações que a televisão digital poderá ocasionar. Mas com certeza, esta nova forma de
“fazer” televisão dividirá opiniões. Principalmente, no que tange à aquisição do produto, já é
possível vislumbrar mais uma forma de “estratificação sociodromológica cibercultural” 9.
(TRIVINHO, 2001, p. 226).
9 O conceito de “estratificação sociodromológica cibercultural”, segundo Trivinho (2001), refere-se à
desigualdade própria da civilização mediática atual. Em que se cria um fosso entre a elite, categoria social que
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Seja no modelo digital ou analógico, a televisão continua encantando o
telespectador por meio de programações variadas que simulam a vida real. Atualmente,
público tem acompanhado a novelização do cotidiano. Todos os fatos, desde os mais
prosaicos aos mais inusitados, são contatos e recontados pari passu, cena a cena,
exaustivamente, em todos os veículos de comunicação. Se as emissoras utilizam desse recurso
com a justificativa de serem promotoras do direito inalienável à informação, elas – na verdade
– promovem o crescimento do fenômeno hipertélico (BAUDRILLARD, 1996). As imagens e
informações veiculadas de maneira desordenada ultrapassam o sentido de sua existência e
perdem a funcionalidade. Por isso, não raramente, é possível observar a indiferença do
telespectador diante das notícias. Mesmo que a principio, elas causem impacto e comoção,
como é o caso do ataque às Torres Gêmeas (2001), acidente com o avião da TAM (2007),
assassinato de Isabela Nardoni (2008), os consecutivos erros nas ações policiais (2008),
escândalos políticos etc. Após algumas semanas, caem na rotina. Almoça-se assistindo aos
desfechos dos casos com tranqüilidade, como se fosse o último capítulo de uma telenovela.
Nos programas de entretenimento, a exposição da alteridade vira motivo de “chacota
pública”. Os segredos, a intimidade, o escuso, o ilegal, a obscenidade, o criminoso, tudo vem
a luz da visibilidade mediática.
O direito à informação aliada à ordem de que “nada deverá ficar
escondido” possibilita rumos incontroláveis ao ideal cibernético da transparência social. Não
é de estranhar que a exposição pública do universo privado cause tanto interesse ao
imaginário social. A possibilidade de desvendar os segredos alheios, de ver o escuso,
proporcionada pela tecnologia facilita ao ser humano concretizar o desejo de adentrar num
terreno íntimo e proibido. As câmeras escondidas, os paparazzi, os programas de auditório
que mostram diuturnamente a vida das pessoas, famosas ou anônimas, é a prova irrefutável da
realização de uma “barbárie” silenciosa e violenta que assassina a privacidade alheia sem a
menor chance de defesa, em prol de um ideal de verdade e de imparcialidade inatingível que
apenas mascara a vontade primária do homem de derrotar o seu semelhante, fortalecendo os
interesses do sistema.
Se o arranjamento mediático configurado pelos mass media foi
corrompido pelos ideais do mercado, frustrando o sonho de liberdade, os media interativos
surgem para transformar o sonho em realidade. A interatividade proporcionada pelas
possui capital econômico, cognitivo e informativo suficiente para acompanhar a lógica da mais-potência
proposto pelo mercado, a “nova miséria técnica”, os que vivem à margem por não ter condições de acompanhar
os avanços tecnológicos. Os temas relativos à “dromocracia”, suas características e conseqüências, serão
aprofundados nos itens posteriores.
34
tecnologias da informação pretende concretizar as promessas de democracia e liberdade não
cumpridas pelos meios de massa.
Os media interativos oferecem total flexibilidade em função do modelo
comunicacional descentralizado. Devido possuir uma estrutura infoeletrônica rizomática que a
possibilita não vincular-se a um controle central, a web proporciona ao usuário a interação
direta com os elementos constitutivos do espaço virtual. Os links, as janelas pop-up, os
domínios de endereçamento permitem os usuários interagirem facilmente com a máquina,
postando fotos, participando de bate-papos em chats ou nas inúmeras comunidades existentes
na rede. Desta forma, concretizando o ambicioso sonho humano de ultrapassar os limites
geográficos e temporais e transformar o planeta numa pequena aldeia global. Nessa aldeia, a
humanidade unida, vive plenamente a liberdade de expressão. Porém, sabe-se que isso não é
verdade. As questões de democracia e de liberdade precisam ser bem analisadas, já que o
pleno acesso à rede é prerrogativa de pouquíssimos. Para utilizar os objetos infotecnológicos,
sobretudo, o computador, é necessário acompanhar a “lógica da reciclagem estrutural” da
cibercultura. Aqueles que não acompanham, vivem à margem. Os indivíduos com receio de
serem discriminados fazem o possível para atender as exigências impostas pela tecnologia.
Um bom exemplo é a utilização das comunidades virtuais que tem proporcionado a inclusão
de milhares de pessoas no totalitário sistema dromocrático cibercultural (tema a ser
aprofundado no item 1.3.1. desta Dissertação).
Diante das relações efêmeras da pós-modernidade, as comunidades
virtuais surgem como possibilidade de unir aquilo que se distanciou. A carência humana
incentiva o imaginário a buscar formas de pertencimento na vida de outros. Muitas vezes, os
usuários nem se conhecem pessoalmente, tão pouco dividem o mesmo espaço geográfico, mas
agregam-se por meio da rede. Eles criam parâmetros de afinidades (gostam do mesmo estilo
musical, de filmes, novelas, escritores etc.), expõem sem receio algum os seus hábitos e a sua
imagem. Nessa busca pela superação de suas carências, o indivíduo também reflete a
necessidade própria de sua época, a exposição extrema de tudo o que é de fórum intimo. As
comunidades deixam vir à tona todos os desejos, os segredos ocultos e a “obscenidade do
excesso das aparências” em máquinas de dissimular. (BAUDRILLARD, 1996, p. 63).
Os meios de comunicação acostumaram o imaginário social a
sobreviver da ficção e do espetáculo. As novelas, os filmes, as transmissões esportivas, os
vídeoclip‟s, as propagandas, os sites, ou seja, todo o universo mediático encontra-se
subordinado aos efeitos “especiais” tecnológicos. A tecnologia se instalou no coração da
35
sociedade e institui uma nova época, composta de fenômenos híbridos, instigantes e
inusitados, a Cibercultura.
36
1. 3. CIBERCULTURA
A irradiação da cultura pós-moderna aliada ao domínio dos meios de
comunicação, à expansão absoluta de produção, circulação e consumo de objetos
infotecnológicos e a propagação da web nos últimos anos, são alguns dos fatores que
contribuíram para o aparecimento de um fenômeno de “longevidade indeterminada”, a
cibercultura (TRIVINHO, 2001, p. 59). Consolidada na segunda metade do século XX, o
fenômeno cibercultural se faz presente em todos os setores da vida humana, na medida em
que procedimentos e processos usuais do cotidiano dependem de alguma forma da tecnologia
informática. Em termos conceituais, a cibercultura pode ser definida como “modelo
tecnológico de cultura” e pela sua amplitude e flexibilidade acabou por construir um “mundo
próprio”. (Ibid., p. 60).
De acordo com Trivinho (2001), a cibercultura está implicada em tudo
“o que é de mais importante socialmente” na vida contemporânea. Ela impulsiona descobertas
na área das ciências biológicas (clonagem, conservação e experiências com células-tronco
embrionárias etc.). Sua maquinaria é requerida na área das ciências exatas e na área da
educação, servindo como ferramenta de apoio no processo ensino-aprendizagem. Faz-se
presente nos tratamentos estéticos, na segurança pública e também nas organizações
criminosas. Está inserida no ambiente de trabalho e até na esfera do tempo livre e do lazer. A
cibercultura modifica todas as formas de relacionamento e práticas sociais. Não por acaso,
essa “tecnocultura tem implicado em complexos debates de questões sobre direito e ética”.
(Ibid., p. 58).
Para melhor compreender o advento cibercultural, é preciso percorrer a
história da informática. A cibercultura deriva diretamente das implicações socioculturais do
desenvolvimento da microeletrônica. Segundo Breton (1991), o progresso informático não
depende somente de critérios científicos e técnicos. É necessário observar a confluência dos
avanços tecno-científicos associados aos fatores de transformação cultural, social e
ideológico, provocados desde o aparecimento dos primeiros computadores. O autor aponta
três fases importantes do desenvolvimento da informática: a primeira fase ocorre entre 1945 e
1960 e possui forte ligação com a teoria cibernética; a segunda fase, de 1960 até o final de
1970. Esta fase caracteriza-se pelo surgimento de sistemas centralizados, representantes
fidedignos da tecnocracia estatal, militar, científica e empresarial; a terceira e última fase, de
37
acordo com Breton, surgiu após 1970, é identificada pelo aparecimento dos
microcomputadores e das redes telemáticas.
Para Breton (ibidem), é no primeiro estágio que os princípios essenciais
se estabelecem e surgem as grandes inovações. As pesquisas embasadas na teoria cibernética
eram realizadas em universidades e patrocinadas por verbas militares. Além das inúmeras
empreitadas a favor da criação de tecnologia que servissem às Forças Armadas e, portanto, ao
Estado norte-americano, as atenções se voltavam para a tentativa de desenvolver “máquinas
pensantes”, dotadas de “inteligência artificial” que simulassem o funcionamento do cérebro e
o do comportamento comunicacional dos seres humanos. De acordo com o autor, o segundo é
caracterizado pela ruptura entre a informática e a cibernética. Enquanto esta se concentra no
desenvolvimento de máquinas simuladoras do comportamento humano em situações relativas
à comunicação no âmbito social, aquela se traduz em pura técnica de manipulação de
informação por meio do computador que, como o próprio nome indica, tinham o objetivo de
computar, de calcular, e controlar informações10. Também o fato da cibernética ter se tornado
abrangente demais, abarcando várias áreas distintas (matemática, física, psicologia, biologia
etc.), e não conseguir concretizar suas promessas iniciais permitiu que a informática rompesse
com ela. Nesse período, a informática necessitava de credibilidade do público para estabilizar-
se enquanto ciência, disciplina e paradigma, definindo sua identidade e seus limites.
Se na primeira informática os computadores eram praticamente restritos
aos interesses estatais e militares. Na segunda, apesar das pesquisas, majoritariamente, serem
fomentadas pelo escalão militar, havia interesse em popularizá-lo. Não por outro motivo, eles
foram introduzidos nos setores governamentais, até que as corporações empresariais
adotaram-no e financiaram o desenvolvimento do microcomputador. O microcomputador e,
conseqüentemente, a microinformática, foi um convite à ruptura com os sistemas burocráticos
e centralizadores, representantes de uma informática controlada e inacessível para a maioria
dos indivíduos. (BRETON, 1991).
Sabe-se que o microcomputador começou a ser comercializado na
metade da década de 70, mas a grande expansão só aconteceu no início de 80. Essa fase,
Breton caracteriza como terceira informática. Fase marcada pela fusão entre a informática, as
telecomunicações, a interação entre a microinformática e as grandes corporações
empresariais. Esse estágio possui marcos significativo como o aparecimento do IBC-PC
(personal computer – computador pessoal), em 1981, e a criação da Word Wide Web,
10
A primeira máquina de computador criada chamava-se ENIAC (Eletronic Numerical Analyzer and computer),
foi criada para auxiliar nos cálculos balísticos da Segunda Guerra Mundial.
38
interface gráfica multimedia que ampliou consideravelmente a utilização da internet a partir
de 1990. Então, o computador deixou a ser utilizado somente na esfera militar e passou a
ocupar a ambiente domiciliar. Sendo usado para fins de trabalho, lazer e entretenimento.
É na terceira fase que a informática assume o propósito de re-encantar o
mundo por meio do uso dos computadores pessoais e dos demais objetos infotecnológicos
possíveis de conexão de rede. Então, se as duas fases anteriores possuíam “ares” da
modernidade com a presença de ideais racionalistas técnico-científicos, na terceira, viceja o
espírito da pós-modernidade. Pode-se afirmar que o contexto pós-moderno é terreno fértil
para a cibercultura se desenvolver como novo esprit du temps, possuindo características
próprias que possibilita o surgimento de novas utopias.
A cibercultura invade implacavelmente o “coração” da civilização
contemporânea com discurso doce e fantástico, convidando o indivíduo a se adaptar às regras
estabelecidas, sob pena de sofrer exclusão. Para se viver nesta nova época, é necessário um
novo condicionamento psíquico e comportamental. O indivíduo deve possuir capital cognitivo
indispensável para agir no mundo virtual e/ou para utilizar os objetos infotecnológicos cada
vez mais sofisticadas. O fenômeno cibercultural vigora por meio de linguagens estruturadas,
sujeita a mudança constante, a qual implica em contínuo aprendizado, a ciberalfabetização. A
ciberalfabetização consiste na apreensão das senhas infotécnicas (linguagens/códigos) de
acesso compatíveis para sobrevivência na cibercultura. De acordo com essa afirmativa,
Trivinho (2001) enfatiza:
Se o pleno domínio das senhas infotécnicas promove inserções, a inexistência
desse domínio envolve uma exclusão em cadeia, uma hiperexclusão: exclusão do
mercado de trabalho, exclusão do lazer, exclusão do cyberspace, exclusão da
época, exclusão da vida. (Ibid. 2001, p. 225)
A revolução high tech implica em consideráveis transformações, tais
como: [1] a memória cultural e social desloca-se do cérebro humano para ser armazenada em
chip da “memória” tecnológica; [2] o conhecimento e a cultura se convertem em espectro e
passam a existir em códigos nos bancos de dados informáticos; [3] a vida humana é
desmaterializada e desterritorializada. Tudo se dobra a lógica da instantaneidade. A
velocidade supera o tempo e o espaço, tornando-se o motor principal que movimenta a
cibercultura.
39
1.3.1. O SISTEMA DROMOCRÁTICO CIBERCULTURAL
Os conceitos de dromocracia, dromologia e suas possíveis variações
[dromocrático, dromológico, dromocrata], devem ser creditadas as obras de Paul Virilio. Em
“Velocidade e Política”, de 1977, o autor apresenta as primeiras bases da categoria
epistemológica crítica que permite compreender a história humana pelo prisma da velocidade.
Dromos é um prefixo grego que designa rapidez, agilidade. Remete as
ações na urbis e está imbricado nos planos estratégicos e táticos com fins bélicos. O termo se
utilizado dentro do contexto empírico, pretende colaborar na compreensão de que o progresso
humano sempre esteve mais ligado à ditadura do movimento fomentado pela guerra, do que a
projetos herdeiros dos pensamentos tradicionais greco-clássico, cristãos, cartesianos e/ou
positivistas. (TRIVINHO, 2007).
No transcurso da história, o processo de dromocratização da vida
humana passou por diversas transformações até configurar-se como sistema que rege a vida
social na cibercultura. A relação humana com a dimensão dromológica da existência está
implicada desde a descoberta de “vetores de movimentação de corpos, objetos e valores
materiais e/ou simbólicos” (ibid., p. 71-72) presentes nos planos estratégicos de conquistas
por espaço geográfico nas sociedades nômades primitivas. Depois, passa pela dominação
“trans-histórica” do mar e do ar, até chegar ao estágio mais avançado quando apresenta-se
como parte constitutiva do “meio de transporte” mais veloz, a comunicação tecnológica.
De acordo com Virilio (1997), os meios de comunicação comparecem
no mesmo plano epistemológico dos meios de transporte. Afinal, eles não deixam de ser
autênticos produtores de velocidade. Se os meios de transporte são denominados de “veículos
metabólicos” [corpos vivos vocacionados à velocidade (humana e animais)], seguidos dos
veículos técnicos (canoa, jangada, caravela, bicicleta etc.) e dos tecnológicos (automatizados:
automóvel, avião, navio etc.), os de veículos de comunicação (de massa e interativos), devido
operar na velocidade da luz, podem ser denominados de “último veículo”. Seguindo essa
perspectiva, Trivinho (2007) conclui:
Os vetores de produção de movimento convencionais cedem espaço aos de
transmissão e circulação de produtos simbólicos (informação e imagens),
representativos ou não de referentes concretos. O secular império sucede o
último veículo, fadado a mais alta velocidade praticável, a velocidade da luz.
A subtração do território geográfico que se confunde com a diminuição
anuladora do planeta. (TRIVINHO, 2007, p. 57).
40
Os meios de comunicação revelam-se o principal vetor de
dromodratização da vida humana, ao ser capaz de ultrapassar os limites do tempo e do espaço,
romper com a lógica da partida e da chegada e transportar códigos e imagens. Vale ressaltar
que eles possuem procedimentos e princípios, mutatis mutandis, ligados as mesmas
características das táticas bélicas, da logística e da estratégia dos campos de guerra.
“Logística, pela qualidade de precisão adequada de meios e fins” e “estratégia, qualidade de
planejamento eficaz de ação” (ibid., p. 63). Então, velocidade e guerra são categorias
indissociáveis no modus operandi da dromocracia cibercultural e estão imbricadas na cultura
do controle resultante do processo de informatização das sociedades contemporâneas, o qual é
levado a cabo pela megatecnoburocracia, incontestável instância de ponta na promoção da
cibercultura. (TRIVINHO, 2001).
A dinâmica da dromocratização cibercultural converge para uma nova
forma de pressão social identificada por Trivinho (ibid., p. 223) como “gerenciamento
infotécnico da existência” que, acumulada a outras existentes, torna-se essencial para a
compreensão do processo de dromocratização da civilização mediática contemporânea. Há
algum tempo, especialmente a partir da segunda metade do século XX, o cenário mundial tem
sido configurado, sobretudo, pelas tecnologias digitais. Todos os âmbitos da experiência
humana, direta ou indiretamente, estão associados a processos interativos proporcionados
pelos media informáticos. Por isso, Trivinho (ibdem) lembra “[...] a cibercultura de par com
a dromocracia articula todos os poros, institui, portanto, um novo agenciamento sócio-
histórico do ser em sua integridade [...]”. Esse processo, coercitivo em sua natureza, denota o
quanto os indivíduos precisam e devem se subordinar – sem poder de escolha – a sua
existência e suas experiências aos padrões do mercado informático aliado a
megatecnoburocracia promovida pela cibercultura. Para viver a presente época, na medida do
possível, o indivíduo deve estar dromoapto. Precisa saber lidar com o ritmo e as exigências
específicas impostas pelo mercado. Essa (dromo) aptidão peculiar caracteriza-se pelo domínio
das chamadas “senhas infotécnicas de acesso à cibercultura”, a saber,
[...] o domínio pleno (tanto mais privado quanto possível), nomeadamente,
do objeto infotecnológico completo, do capital cognitivo-informático
conforme (língua inglesa pressuposta), da linha telefônica [ou de qualquer
outro meio recente para acessar a Internet, de preferência em banda larga],
do status de usuário teleinteragente e do potencial de acompanhamento
concreto das reciclagens estruturais (equipamentos e capital cognitivo) [ou
seja, do capital financeiro]. (Ibid., p. 221-222)
41
Na cibercultura, tais senhas correspondem à atualização mais fiel do
aforismo dromocrático: “a velocidade é o poder” (VIRILIO, 2000, p. 16). Assim, quem passa
a indicar a cadência a ser seguida são os que detêm essas chaves cognitivas de acesso.
Aqueles que não compõem a nova elite high tech encontram-se dromoinaptos, restando
alvitrados, tentam de todas as formas ganharem sobrevida à condição desfavorável. No
processo totalizante e irresistível de informatização sociocultural, comparece a estratificação
sociodromológica cibercultural. Uma estratificação social baseada nos parâmetros da
dromoaptidão própria da cibercultura. (TRIVINHO, 2001, p. 224).
Não por acaso as senhas infotécnicas, apontadas por Trivinho (2001),
são chamadas de “acesso”. Nas cidades desenvolvidas, o mercado de trabalho, a interação
social, a vida doméstica, o gozo do tempo livre e as atividades de lazer comparecem norteados
tecnologias informáticas. Claro, é preciso considerar que o fator econômico associado a
outros indicadores de diferenciação social (grau de escolaridade, sexo, etnia etc.) são aspectos
que aumenta, ainda mais, o abismo entre a “nova elite” e os “novos miseráveis”. No entanto, a
situação financeira favorável não garante a inserção social. É necessário que os indivíduos
tenham aptidão própria para lidar com as exigências da cibercultura. O cumprimento dessas
exigências, a posse do capital cognitivo adequado para apreensão das senhas infotécnicas,
assegura a participação ativa no âmbito societário da atualidade. O autor ainda lembra, a
participação social ocorre, efetivamente, através do “estado permanente de exclusão
iminente”, visto que na cibercultura vigora a “lógica da reciclagem estrutural” (ibid., p. 216),
ou seja, a necessidade de incessante atualização de produtos ciberculturais. “Esse fenômeno
diz respeito ao movimento inflexível e compulsivo da megatecnoburocracia no sentido de
firmar o imperativo da mais-potência como valor de mercado”. (Ibidem).
A movimentação em direção ao que há de mais potente no mercado
infotecnológico (maior velocidade de processamento e de transmissão de dados, maior
capacidade de armazenamento de informações, maior quantidade de recursos programáveis,
maiores recursos interativos, maior mobilidade [praticidade] é uma dinâmica angustiante e
obsessiva. O que se adquire hoje, amanhã já estará obsoleto. Essa é a lógica do consumo, a
lógica do sistema invisível, tão ou mais autoritário do que qualquer outro já existente, capaz
de massacrar, de excluir, de aniquilar o sujeito. Na verdade, em grande parte das aquisições,
principalmente, para o mercado doméstico, não é a finalidade (valor de uso) que conta, mas o
desejo compulsivo de se ter o novo, o potente, o avançado.
Trivinho (2001, p. 217) observa que nessa dinâmica de reciclagem há
um autoritarismo velado por parte da magatecnoburocracia.
42
Não só consumidores, mas também governos e empresas de ramos diferentes
dos do high tech no mundo inteiro são praticamente coagidos a se dirigir ao
mercado, com regularidade, para incrementar e atualizar seus pertences,
quando não para substituir o patrimônio inteiro. (Ibid., p. 217)
É uma cadeia recursiva sem fim – pelo menos evidente – que faz da
exclusão a regra da dinâmica cibercultural. Vale repetir: a lógica da reciclagem estrutural faz
com que todos os considerados incluídos em um determinado momento vivam em “estado
permanente de exclusão iminente”. (Ibid., p. 226).
1.3.2. FENÔMENO GLOCAL
O termo “glocal” também foi introduzido na área das ciências humanas
por Paul Virilio (1995). Trata-se da fusão de duas palavras global e local que, obviamente,
abarca profundas conseqüências semânticas (TRIVINHO, 2007, p. 242). A aglutinação das
palavras resulta na fusão de sentidos (nem o local, nem o global são reduzidos de sentindo) e
no aparecimento de outro, talvez o mais relevante, refere-se ao modo com que ocorre o
processo civilizatório na sociedade contemporânea.
Segundo Trivinho11, o fenômeno glocal é recente, pertence ao século
XX, mas as suas características básicas comparecem no primeiro media capaz de possibilitar
troca de informações emissor-receptor em tempo real, o telefone. O autor também lembra que
ainda no século XIX, já se faziam presentes todos os elementos básicos que servem de suporte
ao glocal na atualidade.
[...] no último quartel do século XIX, já estão presentes todos os elementos
básicos que sustentam a existência do glocal atual: equipamentos de
telecomunicações, infra-estrutura de rede (pressupostas aí as estações de
processamento, codificação e decodificação internacional), acoplamento entre
ser humano e máquina, procedimentos de emissão e recepção, tempo real,
fluxo (sonoro e/ou imagético) de sentido e não sentido, espectralização da
interação humana, desejo comunicacional (de abordagem da alteridade como
espectro, isto é, imagem, texto, ícone etc.) [...]. (Ibid, p. 246).
Essa nova configuração civilizatória tornou-se mais evidente após a
Segunda Guerra Mundial, quando a comunicação é elevada ao status de valor e passa a
11
Paul Virilio (1997) foi o primeiro autor a tratar do termo “glocal” no campo das ciências humanas.
Posteriormente, Trivinho (2001, 2007) alargou e aprofundou o termo, inserindo-o no contexto social, cultural e
político da sociedade mediática contemporânea. Então, o glocal passou a ser concebido como conceito analítico-
crítico que “mergulha no coração da cultura tecnológica imagética e informacional em sua configuração pós-
ideológica, transpolítica, despolitizada, inteiramente satelizada e planetária”, como define o próprio autor.
43
configurar como eixo dinamizador do mundo. Apesar do glocal se fazer presente nos meios
de massa, é no contexto das tecnologias digitais que ele mostra-se em sua fase mais avançada.
Não deixa de ser pitorescamente interessante o fato de o fenômeno glocal ter
sido mais amplamente percebido em relação ao cyberspace do que à rede
televisiva, e menos ainda em relação à rede de rádio e de telefonia.
(TRIVINHO, 2007, p. 245)
Fenomenologicamente, esse fenômeno acontece num contexto local
(casa, escritório, cybercafé, lan house) em exista um equipamento capaz de rede (televisão,
rádio, computador de base ou móvel, celular etc.), operando em tempo real por meio de fluxos
informacionais capturados por antenas, satélites, cabos etc. Observadas essas condições,
verifica-se a combinação indissociável entre a ambivalência local (corpos e subjetividade) e
os fluxos globais, numa hibridação que “pressupõe, necessariamente, uma clivagem
bidimensional do mundo vivido” (ibid., p. 254): a dimensão material/palpável e
imaterial/espectral. Porém, ao mesmo tempo essa clivagem é pressuposta, o processo de
glocalização trata de assimilar o hiato e, no limite, fazer constatar apenas a realidade do
contexto da experiência (“local”) concreta.
Trivinho (2001) esclarece que na imbricação entre local e global, os
contextos são indexados um pelo outro, ainda que o global pese mais sobre o local. Ao
considerar os mass media, por exemplo, pode-se afirmar que existe a indexação do global
pelo local quando há participação do receptor-consumidor na programação, seja radiofônica
ou televisiva. Essa intervenção é mínima e sempre vigiada pelo próprio emissor. Se formos à
direção oposta, o receptor ao consumir um produto mediático da rede, permite refundição do
contexto local no qual se encontra pelos conteúdos globais. É neste último que se manifesta a
plena potência do glocal:
[...] um implante tecnológico forjado no âmbito local, um esquema mediático
cavado de cada reduto imediato de ação do corpo, exatamente para dar
sustentação material à completa irradiação simbólica e imaginária do que
pertence à ordem global. (Ibid., 2001, p. 78).
Não se pode esquecer, o fenômeno glocal refunda a relação entre
homem e a máquina. Antes, essa relação era quase restrita à esfera do trabalho,
prioritariamente no setor industrial; hoje, ela está presente em várias outras situações do
cotidiano. Outrora, parecia evidente o domínio humano sobre a máquina por ele
instrumentalizada, agora essa evidencia é questionável. Já não é tão simples analisar em que
44
bases se fundam a relação. Os media interativos, de modo bastante diverso dos meios de
massa, exige um engajamento humano muito mais efetivo do que simplesmente ligar e/ou
desligar o aparelho eletrônico/informático; ou mudar de “canal”, ainda que se trate de zapping
(no caso da televisão). Vale ressaltar, o acoplamento vai além das sinergias entre “corpos”. O
que está em jogo são a conjuminação entre as subjetividades envolvidas, o imaginário
(individual e social) e os fluxos mediáticos da rede.
O glocal é “um fenômeno comunicacional de (con) fusões em cadeia”
(ibid., p.68). Ele não se reduz às questões técnicas. Em sentindo amplo, ele corresponde ao
arranjamento sociocultural sofisticado sobre teia comunicacional formada inicialmente pelos
meios de massa e, agora, acrescida e capitaneada pelos interativos. Sua finalidade não –
teleológica – hipertelia (BAUDRILLARD, 1996) – não é senão sua multiplicação
indeterminada para enredar indivíduos e máquinas até o esgotamento de todas as
possibilidades. É uma expansão avassaladora que busca integrar os media de massa, os
interativos, a telefonia (móvel e fixa) e, por reverberação, os impressos e os próprios corpos e
a subjetividade, para formar o grande glocal (informação verbal) 12. Esse é um dos efeitos da
realização (perversa) da utopia de Wiener: o humano transformado em máquina comunicante
condutora de fluxos informacionais a serviço do enraizamento mais radical da comunicação
como eixo articulador do atual processo civilizatório. “Como tal, o glocal é a fonte e, ao
mesmo tempo, a caixa de ressonância do modelo de cultura hegemonicamente produzida na
era mediática”. (TRIVINHO, 2001, p. 82).
Esse telos heterodoxo, o grande glocal, não se vincula ao por vir, mas se
apresenta como realizável aqui e agora. Em qualquer momento histórico ele comparece como
atual. Há, portanto, uma tendência e sua perpetuação.
12
Argumento inspirado nas aulas de Mídias e Impactos Socioculturais, ministrada pelo Prof. Dr. Eugênio
Trivinho, em 19/09/2007, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP.
45
CAPÍTULO II
IMAGEM E IMAGINÁRIO
“O imaginário que falo não é a imagem de. É criação incessante e essencialmente
indeterminada”.
(CASTORIADIS, 1986, p. 13)
As relações entre o imaginário e o real revelam a complexidade da condição
humana. As lembranças da infância, os desejos da vida adulta, a memória dos fatos passados,
as projeções do futuro, as manifestações folclóricas, a religiosidade, as demonstrações de
afeto são ações impulsionadas pelas forças imaginais. É impossível compreender as
experiências da vida limitando-se apenas em respostas fisiológicas e/ou materiais. Todas as
aptidões humanas e a interação com o mundo social obedecem a motivações “obscuras”
denominada por Castoriadis (1986) de “magma de significações”. Para o autor, o magma de
significações dá sentido ao imaginário. Ele age como catalisador de valores, costumes,
crenças e sonhos influenciando o comportamento individual e a ação coletiva dentro de uma
dinâmica em que o passado, o presente e o futuro permanecem emaranhados.
Castoriadis ainda enfatiza que o imaginário jamais pode ser concebido como
uma faculdade mental inferior, porque ele é a constante e indeterminada criação de imagens,
capazes de movimentar a realidade. Tudo o que se apresenta na esfera social está entrelaçado
no mundo simbólico. Certamente, nada se esgota nele (simbólico), mas sem ele não consegue
sobreviver.
Neste capítulo será aprofundada a discussão de todos os aspectos da ação
imaginante, levando em consideração a sua dimensão psíquica e social. A finalidade desse
“mapeamento do imaginário” é compreender as transformações pelas quais ele passou ao
inserir-se no contexto tecnológico.
46
A construção do quadro teórico fundamenta-se na semiótica da cultura
de Bystrina, Kamper, Belting e Baitello; na teoria do imaginário, de Castoriadis; na
psicanálise, de Freud, na teoria sociodromológica, de Virilio e na epistemologia crítica da
cibercultura, de Trivinho, entre outros teóricos e conceitos relevantes, os quais possibilitam
compreender que o imaginário é o agente mobilizador e articulador intrínseco da cibercultura.
47
2.1. O IMAGINÁRIO EM REPRESENTAÇÃO
2.1.1. AS IMAGENS: DEFINIÇÃO
Desde o início da história, filósofos e pesquisadores se debruçam sobre
a complexidade que une a imagem, o imaginário e a realidade. Mas antes de entender essa
relação, é necessário definir o sentido etimológico da palavra imagem.
No latim, “imago” – imagem – significa retrato de um morto. Na língua
portuguesa, segundo o Dicionário Aurélio (2004), ela é a “representação mental, gráfica,
plástica fotográfica de pessoa ou objeto; ou a impressão, lembrança, recordação de momentos
ou pessoas”. No grego antigo, o sentido dessa palavra está ligado ao termo eidos (idéia), cujo
conceito foi desenvolvido por Platão. Para ele, as idéias estão inseridas no mundo das
essências verdadeiras. Mas para seu discípulo Aristóteles, as imagens são apenas aquisições
mentais de um objeto real. Durante a Idade Média, a imagem era definida como “aliquid stat
pro aliquo”, ou seja, algo que está além da concretude do objeto e não possue sentido
definido. Na verdade, muitos significados vêm à tona, mas o verdadeiro sentido encontra-se
ocultado.
Segundo o semioticista Ivan Bystrina (1995), as imagens são
inextinguíveis, fazem parte de outra existência e ocupam o status semiótico da segunda
realidade13. Para o autor, elas possuem a capacidade de sobreviver independentemente de seus
suportes materiais, porque apropriam-se do imaginário humano. Diante disso, Baitello (1995)
ressalta que o envolvimento existente entre imagem e o imaginário ocorre primeiro no
inconsciente humano. Sabe-se que a mente é uma verdadeira usina de imagens construídas a
partir das experiências vividas. A dinâmica dessa construção se dá, essencialmente, por meio
da natureza perceptiva das informações envolvidas no processo do pensamento.
A complexidade das imagens está relacionada ao seu caráter mágico, o
qual permite, simultaneamente, representar algo presente ou ausente. Para serem percebidas
e/ou interpretadas, as imagens precisam obrigatoriamente de suportes. Eles permitem que a
imagem concretizada e classificada, levando em consideração a sua natureza e a sua
linguagem. Mas vale ressaltar, mesmo com ajuda dos suportes alguns significados
permanecem invisíveis aos olhos humanos. Isso ocorre devido os sentidos e sentimentos
serem imprevisíveis. Ao observar uma imagem, vêm à tona as lembranças presentes na
13
A segunda realidade é, de acordo com Bystrina (1995), “nitidamente um fenômeno psíquico”, construída após
o nascimento da linguagem.
48
memória, mas como as imagens penetram no íntimo do ser, elas não deixam de evocar as
histórias soterradas e “enraizadas nas profundezas invisíveis do esquecimento”. (BAITELLO,
1995).
2.1.2. ORIGEM DAS IMAGENS: O MITO DA CAVERNA
É impossível falar da origem das imagens sem lembrar-se da famosa
alegoria “O mito da caverna”. Para introduzir o tema tratado neste item será importante citar
um trecho do texto platônico14.
“Imagine uma caverna escura, separada por um muro bem alto. Entre
o muro e o chão, existe um fino feixe de luz, deixando a caverna em quase completa
escuridão. Os moradores daquele lugar, desde o nascimento, convivem com a ausência de
iluminação. Vivem acorrentados e de costas para o muro. Ali, não podem ou já se
acostumaram a não fazer movimentos bruscos e a olhar apenas a parede do fundo, sem
jamais terem visto o mundo exterior; nem a luz do sol. Sem jamais terem, efetivamente, visto
uns aos outros e nem a si mesmos. A visão era apenas das sombras. A vida que passa do lado
de fora é projetada como imagens sombrias nas paredes da caverna.
Os prisioneiros se comunicam, dando nomes as “coisas” que julgam ver e ficam atentos
escutando os sons vindos do lado de fora. Para eles, são as vozes das próprias sombras. Um
dos prisioneiros, inconformado com a condição em que se encontra, decide fugir. Fabrica
instrumentos com o qual quebra os grilhões. De início, sente dificuldades de se mexer.
Entretanto, enfrentando os caminhos e obstáculos, consegue fugir. Ao primeiro instante, fica
totalmente cego pela luminosidade do sol, com quais os seus olhos não estavam acostumados.
Após passar o mal-estar, vê, de fato, a realidade. Sente-se dividido entre a incredulidade e o
deslumbramento: incredulidade porque será – a partir de então – obrigado a decidir onde
“habita” a verdade: no que vê naquele momento, ou nas sombras que sempre conheceu; e
deslumbramento, porque seus olhos nunca tinham enxergado com “tamanha nitidez”.
Apenas esta parte inicial da alegoria platônica é suficiente para ilustrar a relação existente
entre a imagem e o imaginário.
O sociólogo e antropólogo Dietmar Kamper, inspirado no sentido da
palavra latina “imago”, define imagem como a “presença de uma ausência” (KAMPER, 2002,
p. 07). Para o autor, as imagens possuem características sombrias, próprias dos habitantes da
14
Trecho extraído, na íntegra, do livro: CHAUI, Marilena. Convite a filosofia. São Paulo: Ática, 2003. p. 11.
49
alimentando o famigerado imaginário, sedento por imagens vazias, assim como os moradores
das cavernas, ansiosos por sombras de algo inexistente.
Kamper (ibidem) afirma que no transcorrer da história, é possível
perceber a importância das imagens. Durante a Revolução Francesa, a tríade razão-ciência-
técnica ocasionou a derrubada da idolatria das imagens da Idade Média. Porém, o próprio
princípio da técnica e da superação científica contribuiu para a projeção de um mundo ideal
fonte somente de aparências. Durante a Segunda Guerra Mundial, a barbárie e a ditadura
conduziram o projeto das luzes e o sonho de progresso ao precipício. Com pessimismo tenaz,
Adorno e Horkheimer fazem a constatação da reintegração da razão no terreno fantástico das
imagens. No entanto, os autores revelam que “no mundo racionalizado, a mitologia invadiu o
domínio do profano” (in. KAMPER, 1974, p. 44). No contexto desencantado da pós-
modernidade, as imagens continuam conduzindo a vida humana. Elas apenas abandonaram o
campo religioso e místico da Idade Média, deixaram de constituir os sonhos iluministas e
passaram a ocupar o reduto da indústria cultural (o cinema, a imprensa, a publicidade etc.).
Por isso Kamper enfatiza, “não existe vida sem imagens”. (Ibidem).
De fato, as imagens fazem parte da essência e da existência humana.
Como já citado, elas nasceram na caverna da percepção do homem e transformaram-se num
“oásis de escuridão em meio à luz do dia” (KAMPER, 2002, p. 06). Depois, fizeram-se
presente no mundo das palavras, dando significado ao que é perceptivo, extrapolando os
limites fortes da razão, até mostrarem-se, despidamente, ao universo exterior, quando
finalmente romperam os grilhões e passaram a ser vistas do lado de fora da caverna humana.
O primeiro sinal dessa exteriorização remete-se ao Período Paleolítico, época em que homem
ainda vivendo no nomadismo, passou a construir instrumentos de auxílio para sua
sobrevivência e a desenvolver a arte rupestre. Desde então, as imagens foram sendo
projetadas em suportes. Mas mesmo assim, continuavam sendo fruto da introspeccção
humana. No entanto, com o passar dos anos, sobretudo, após o desenvolvimento da
tecnologia, as imagens proliferaram-se desordenadamente e deixaram de restringir-se a
criação humana e individual. A capacidade de reprodutibilidade proporcionada pelos meios
tecnológicos contribuiu para que elas perdessem a essência e a profundidade. A luz da
velocidade tecnológica, ao mesmo tempo em que ofusca o significado original das imagens,
torna evidente todo o seu poder de sedução.
Os homens hoje vivem no mundo. Não vivem nem na linguagem. Vivem na
verdade nas imagens do mundo, de si próprios e dos outros homens que
foram feitos, nas imagens do mundo, deles próprios e dos outros homens que
50
foram feitos para eles. E vivem mais mal do que bem nessa imanência
(permanência) imaginária. Morrem por isso. No ápice da produção de
imagens existem maciços distúrbios. Existem distúrbios das imagens que
tornam enormemente ambígua a vida das imagens e a morte das imagens.
(KAMPER, 2002, p 08).
Kamper (ibid., p. 09) afirma que o imaginário humano tornou-se refém
das imagens. Hoje, elas vigoram soberanas. O cotidiano está permeado de marcas, símbolos,
dígitos e ícones. Até mesmos os sentimentos são expressos por meio de códigos (emoticons,
avatares, buddy poker) no espaço virtual. A imagem tecnológica ofuscou a realidade,
permitindo o indivíduo enxergar somente as formas sombrias projetadas pela luz artificial dos
media no interior de “nossas” residências. Porém, evadir da caverna das imagens gera outra
dificuldade, nada que emerge somente do real consegue sobreviver. Afinal, é por meio da
relação imaginário e imagem que a vida movimenta-se. A dupla premissa diz: “como
imagens, os homens são imortais, sem imagens talvez pudessem ser mortais” (KAMPER,
2002, p. 03). Tal afirmativa leva a compreender que o ser humano nunca deixará de produzir
imagens. Elas movem o imaginário. E o imaginário é vida, é a ação imortalizadora do ser
humano.
2.1.3. A SEDUÇÃO DAS IMAGENS
De acordo com Baitello (1995), o ser humano possue a característica de
criar seres que atuam sobre seus criadores. Esses seres originam-se no imaginário e ganham
vida através das imagens. A história dessa ação aparece sob as figuras titânicas onipotentes.
Depois, sob a forma de “deuses justiceiros e reparadores” (HILMAN, 1995) e mais tarde, são
representados nas figuras políticas e nas relações entre dominadores e dominados, até todos
esses símbolos serem destronados pela tecnologia.
O semioticista Belting (in: BAITELLO, 1995) propõe a compreensão
da complexa atividade sedutora das imagens a partir das categorias operativas denominadas
de “imagens endógenas e imagens exógenas”. As endógenas possuem valores dominantes que
conduzem a força imaginativa à interiorização. Podem-se citar inúmeros exemplos
artisticamente produzidos pela cultura humana em diversas áreas na arquitetura, na pintura, na
fotografia, na literatura, no teatro, que conseguem remeter o indivíduo às profundezas íntimas
de seu ser. Opostamente, as imagens exógenas possuem valores exteriorizantes. Elas são
criadas e recriadas pela tecnologia e sobrevivem por meio do processo inflacionário. E essa
desmesurada proliferação das imagens provoca a perda de seus significados.
51
Diante do descontrole das imagens causado pelos aparatos tecnológicos, sobretudo, pelos
media, Flusser (1995) afirma que a invasividade e a onipresença da imagem é a terceira
catástrofe provocada pelo homem. Ainda de acordo com o autor, a primeira catástrofe seria a
transição da fase arborícola para o nomadismo. A segunda, o assentamento do nômade, a
posse e o cultivo da terra; e a terceira equivale à perda dos espaços de privacidade e de
projeção que são invadidos pelo “furacão da mídia”. (Ibid., p. 45)
Vilém Flusser foi um importante pensador tcheco que viveu no Brasil
por 31 anos e se ocupou em refletir sobre as densas possibilidades de construção de imagens
numa sociedade cada vez centralizada na tecnologia. Para ele, as imagens produzidas pelas
máquinas tecnológicas já estão programadas para essa finalidade. Elas estão previamente
inscritas na própria memória de funcionamento dos programas. Na verdade, os programas são
formalizadores de um conjunto de procedimentos conhecidos, onde parte do elemento
constitutivo de determinado sistema simbólico, bem como as suas regras de articulação são
inventariados, sistematizados e simplificados para serem colocadas às disposições de um
usuário genérico, preferencialmente leigo.
Flusser denomina de “funcionário” aquele que interage com os objetos
tecnológicos e extrai deles as imagens técnicas. Para o funcionário, as máquinas
infotecnológicas são “caixas pretas” cujo seu funcionamento e o seu mecanismo gerador de
imagens não são totalmente conhecidos. O usuário lida apenas com o canal produtivo, mas
não com o processo codificador interno. Porém, isso não importa, tais “caixas” tecnológicas
seduzem por meio de um discurso “amigável”. Ou seja, elas podem funcionar e colocar em
operação o programa gerador de imagens técnicas mesmo quando o indivíduo que as
manipula desconhece o que se passa em suas entranhas. O usuário deve dominar apenas o
input e o output das “caixas pretas” e saber como acionar os botões adequados, de modo a
permitir que o dispositivo ativasse as imagens desejadas. Assim, o sujeito escolhe, dentre as
categorias disponíveis no sistema, a mais adequada para construir o que deseja. O poder da
escolha faz com que o funcionário acredite estar exercendo a liberdade de criar as suas
próprias imagens.
As imagens criadas com o auxilio da tecnologia são muito mais livres e
enigmáticas. Por isso, exercem o poder de dominar, de “hipnotizar” os olhos humanos. No
que se refere à sedução, Baudrillard (1996) lembra que esse é um processo dual. “Ninguém
pode seduzir, se não estiver seduzido. Ninguém pode jogar sem o outro, é a regra
fundamental” (ibid., p. 92). Logo, as imagens não seduzem o imaginário humano sozinhas,
como revela o autor, o homem sempre esteve seduzido por elas.
52
O sujeito deseja, o objeto seduz. A relação existente entre sujeito e
objeto não é estabelecida por meio de trocas, mas pela lei da compensação. Em outras
palavras, as imagens seduzem compensando as carências íntimas do sujeito, causando-lhe
prazer, mesmo que momentâneo.
A sedução, como a paixão, alimenta-se da fome. Vive o excesso da falta.
Nutre-se da vertigem pelo nada. Alimenta-se de si mesma numa espiral de
gasto inútil e sem retorno [...]. (MACHADO, 2003, P. 27).
Vale ressaltar que o poder sedutor das imagens não está somente ligado
aos suportes tecnológicos. Os gregos, por exemplo, cultuavam os deuses, seres imortais com
capacidade de agirem na vida dos seres humanos15. Na tribo dos xamãs, a figura da serpente
possuía um significado especial, simbolizava a força da natureza sobre as ações humanas.
(BYSTRINA, 1995, p. 31). Os relatos bíblicos do cristianismo também revelam o poder das
imagens. Por exemplo, a figura da serpente também é mencionada. No entanto,
diferentemente da tribo xamânica, ela não é adorada, mas é utilizada como instrumento das
ações de divinas. A imagem da serpente exerce um simbolismo dual no cristianismo. No
contexto de Adão e Eva, aparece como símbolo da fraqueza humana. Assim como, revela-se
instrumento da “força divina” no momento em que Moisés precisa libertar seu povo da
escravidão no Egito16. Outra simbologia importante no cristianismo é a prática da ceia, ainda
repetida durante a missa nos dias de hoje. A partilha do pão e do vinho é a possibilidade do
homem estar mais próximo de Deus. O símbolo da aliança entre o ser divino e a humanidade,
concretiza-se na imagem da hóstia sagrada.
As imagens também estão presentes nos sonhos. Sabe-se que não é
apenas o homem que sonha outros animais também o fazem. Segundo Bystrina (ibid., p. 14),
o sonho humano acontece na fase REM do sono, porém não fica apenas nela. As imagens que
se produzem durante a noite, muitas vezes estão desconexas com a realidade física ou social
do sonhador. Apesar disso, conseguem causar sensações múltiplas (tristeza, alegria, impacto)
como se realmente tivessem ocorrido. O autor relata que em comunidades primitivas de
aborígines australianos, o sonho exercia a função criadora.
15
Na concepção greco-romana, os deuses eram seres supremos. Presidiam os fenômenos atmosféricos,
recolhiam e dispersavam as nuvens, comandavam as tempestades, criavam relâmpagos. Por outro lado,
mandavam chuva benéfica para fecundar a terra e endurecer os frutos. 16
De acordo com o relato bíblico, na época em que os israelitas estavam no Egito e queriam sair em busca da
terra prometida. Moisés atirou o seu cajado diante do faraó, mas os servos do faraó fizeram a mesma coisa. Os
cajados se transformaram em serpentes, porém, o cajado de Moisés devorou as outras serpentes.
53
[...] o sonho é o próprio momento de criação de tudo o que existe. Os
primórdios da criação, quando todos os seres surgiram, são designados por
esses aborígenes como o “Tempo dos Sonhos”. Na sua narrativa, os
primeiros seres sonhavam as plantas, os animais; depois desenhavam seus
sonhos e rochas e lhes davam a alma. A partir dos desenhos na rocha, os
seres adquiriram corpo, materialidade. (BYSTRINA, 1995, p. 14)
A narrativa aborígine faz recordar do “sonho criador de Deus”, quando,
em sete dias, povoa o planeta com a rica diversidade de plantas e animais, além de fazer o
homem a sua imagem e semelhança. A partir de então, o ser humano acredita ser “imagem e
semelhança de Deus”, mas convive com a imperfeição própria de sua natureza, é mortal. Por
isso, o indivíduo busca incessantemente as imagens. Elas agem como possibilidade de ofuscar
o medo da morte. Somente as imagens conseguem imortalizar o sujeito e fazê-lo atingir a
perfeição, característica dos seres divinos. (KAMPER, 1995).
Dentro ou fora dos sonhos, as imagens dão sentido ao mundo real. As
expressões artísticas, os mitos, as esculturas reverenciadas nas religiões ou em culturas
diversas revelam o quanto a imagem é importante na vida do ser humano. Baitello (1994)
lembra que, após algum tempo, as pinturas rupestres depositadas no interior das cavernas
pelos ancestrais humanos, contribuíram para a criação de objetos como adornos, utensílios,
apetrechos. Este deslocamento da imagem estática, existente apenas do plano imaterial, para o
mundo real com finalidades práticas no cotidiano, pode ser entendido como a primeira forma
de mobilidade das imagens.
[...] Objetos móveis passam a ser portadores dos registros antes circunscritos
aos espaços interiores ou de interioridade. Está dado o momento em que
encontramos as primeiras inscrições sobre pedras, sobre madeira, sobre os
ossos de animais, sobre a areia, sobre a argila fresca e sobre o papiro. São
materiais da luz do dia, não mais presos dentro das cavernas, mas móveis,
passíveis de transportes e de longos deslocamentos, como seus possuidores
ancestrais. (BAITELLO, 1995).
Primeiro, as imagens deixaram de existir apenas na imaginação humana
e passaram a habitar o interior das cavernas. Mas, não perderam a sua essência: serem figuras
representativas da introspecção humana. Ao deslocarem-se das paredes frias das cavernas
para o mundo real, as imagens libertaram-se do obscuro e passaram a viver sob a luz do dia.
Elas ganharam o espaço aberto e apoio dos suportes luminosos da tecnologia. Então, “ao
invés de imagens inscritas, o que passamos a ter são imagens sobrescritas numa fina película
de pigmentos que se colocam sobre uma superfície” (Ibidem).
54
Este mecanismo de sobreposição facilita uma característica (e talvez aquela
caracterização mais simples que nós teríamos da imagem): a de que toda
imagem é uma superfície. E, tendo-se transformado em superfície, a imagem
deu origem a todas as outras superfícies tecnicamente desenvolvidas para
receber imagens: o couro, a madeira, o papiro, o papel e depois as telas de
vidro, as telas de luz e suas variantes. A leveza da sobreposição já não
precisava mais cavar as entranhas materiais e do suporte. (BAITELLO,
18995, p. 53).
As imagens ao se sustentarem em suportes cada vez mais simples e
fáceis de reprodução em larga escalam, proliferam-se exacerbadamente e invadiram o
cotidiano. É impossível estimar quantas imagens externas atingem o imaginário dos
habitantes do planeta. Com certeza, a quantidade delas é tão grande que a capacidade da
imaginação humana jamais conseguiria mensurar. Principalmente, porque são construídas
pelas velozes “máquinas de fazer imagens”. (SFEZ, 1994, p. 34). A partir do momento em
que as imagens passaram a habitar o planeta, perderam a sua essência e tornaram-se referência
de si mesmas. (ibid., p.75). De acordo com Baudrillard (1996), o mundo real é cada vez mais
dispensável e distante para as imagens. Elas deixaram de ser vetor de mediação entre homens-
homens e entre homens-mundo para serem vetores de dispersão da realidade.
As imagens se tornaram seres auto-suficientes e independentes. Fizeram
um pacto com a luz dos media e cegaram os olhos humanos. Hoje, a sociedade encontra-se
numa situação bem parecida com aquela vivida pelo morador da caverna, sedento em se
libertar do mundo das imagens. Porém, a dificuldade é enxergar, de fato, o real. Afinal, os
olhos já estão acostumados a ver somente a superficialidade das imagens. É justamente na
superficialidade que reside à sedução das imagens. Ela desafia o imaginário a “descobrir os
seus segredos”, a enxergar além da superfície. Mas, isto não é possível. Nunca se consegue
atingir o âmago da imagem. Não existe meio de desvendar todos os mistérios dela. “Por mais
que olhemos, não penetramos, não atingimos nunca o dentro, a escuridão que é aquilo que
gerou a nossa vida e a nossa capacidade imaginativa, nossa capacidade de produzir imagens”
(BAITELLO, 2005, p.72).
55
2.2. CONTRIBUIÇÕES DO IMAGINÁRIO
2.2.1. DESVENDANDO O IMAGINÁRIO: CONCEITOS
Na alegoria platônica, os habitantes da caverna ao verem as sombras
(imagens) projetadas na parede, nomeavam as “coisas” que julgavam ver associando-as aos
sons vindos de fora. Para eles, aquele som era a “voz das imagens”. Mesmo não conhecendo a
realidade existente do lado de fora das paredes úmidas das cavernas, os moradores
“imaginavam”, davam sentido ao que viam. Enxergavam naquelas figuras mal definidas os
seus sonhos, seus medos e seus anseios. Elas ganhavam vida. Vida originada da força
imaginal e que acabou impelindo um dos moradores da caverna a procurar a liberdade. Essa
força impulsionada das ações concretas é o imaginário. Ele é o pensamento simbólico que
ativa os diferentes sentidos. Constrói os esquemas de reconhecimento social e dinamiza a
evolução de sua própria produção. E, justamente, pelo fato desse pensamento simbólico ser
um “mundo criador”, torna-se difícil de ser definido. Entender as estruturas do imaginário
remete a tautologia, uma vez que a única via de acesso depende do próprio pensamento
simbólico.
Por esse motivo, o termo imaginário está associado a uma infinidade de
outros termos, como: mito, imaginação, sonho, devaneio, fantasias etc. No entanto, todas
essas palavras, assim como o próprio conceito de imaginário está envolto num cenário
nebuloso, afinal ele é sombra que se movimenta nas paredes da mente humana. É impossível
dar apenas um significado ao imaginário. Ele pode ser tudo o que existe e o que não existe,
uma espécie de mundo oposto à realidade ou uma produção de devaneios de imagens
fantásticas que permitem a evasão para longe das preocupações cotidianas e também pode ser
resultado da força criadora radical dos indivíduos.
O imaginário parece resistir a todas as tentativas de definição precisa.
Apesar de ser da mesma natureza da racionalidade, o imaginário não admite fixar-se em
explicações racionais, pois, a própria razão está fixada em ações imaginárias. A máxima de
Descarte, “cogito ergo sun” ou “penso logo existo” que norteou todo o pensamento racional
moderno, não deixa de fazer referência a maior capacidade inerente do ser humano, o
imaginação. Ele funciona como a bússola orientadora da existência humana, conduzindo a
história e as realidades culturais, bem como, todos os processos subjetivos: os sentimentos, os
sonhos e racionalidade.
56
No entanto, durante algum tempo, o imaginário não era reconhecido.
Falava-se sobre mitos, razão, religiosidade, pensamento, impulsos, libido, mas nunca do
imaginário. A seguir, será relatado um pouco da história dos conceitos de imaginário, baseada
na obra descritiva de Barbier (1984).
2.2.1.1. FASE DE SUCESSÃO
A primeira fase do conceito de imaginário caracteriza-se pela
atualização do pensamento racional e pela potencialização da função imaginante do ser
humano. Após os pré-socráticos, o pensamento grego impôs o dualismo entre o real e o
imaginário, separando a sensação, a percepção, os sentimentos e as condutas da fantasia do
sonho e dos mitos. Détienne e Vernant (1978) afirmam que desde a epopéia homérica até o
século III a.C, os “poderes” do imaginário começaram a ser concebidos como ações do
sobrenatural e, por isso, foram marginalizados. Por volta de 432 a.C, em Atenas, transformou-
se delito misturar crenças sobrenaturais com os conhecimentos ligados à astronomia. Isso
porque os conhecimentos astronômicos começaram a representarem o primeiro contato com o
campo científico formalizado. Porém, as condições intelectuais da ciência, criadas a partir do
século IV, estavam distantes de triunfar. A própria filosofia de Platão, por exemplo, continuou
a fazer apelo ao mito e a justapor um grande rigor de raciocínio às concepções místicas ou
religiosas. Sócrates não hesitava em invocar o seu “demônio” quando necessitava executar
algum tipo de atividade. Esse “demônio” representava sua força interior que orientava as suas
condutas. Aristóteles acreditava nos sonhos premonitórios como representação dos desejos ou
do temor que suscitavam a representação onírica de um evento provável de acontecer ou de
algo a ser evocado pelo indivíduo logo em seguida.
Com o advento do cristianismo, a tendência religiosa prevaleceu sobre a
tendência científica grega, provocando confronto entre a religião revelada e as argumentações
racionais, causando certa elevação do imaginário. Sabe-se que as simbologias cristãs, sempre
estiveram carregadas de pulsões imaginais. Durante o Renascimento reapareceu a sucessão
grega. O abandono do ideal contemplativo colaborou para o surgimento da obrigação de criar
um pensamento ao mesmo tempo rigoroso e apropriado aos fenômenos vividos. A ação
passou a não ser antítese de conhecimento. Nada seria indigno de ser conhecido, embora,
fosse necessário o encontro dos métodos de conhecimento. Nesse momento, sobressaiu o
pensamento de rigor intelectual racionalista moderno de Descartes, o método cartesiano.
57
Após Descartes, os filósofos começaram a julgar severamente a
imaginação enquanto faculdade, modo de exercício de pensamento. O imaginário passou a ser
concebido como forma de mascarar o real. Nunca alguém poderia aprender algo por meio do
imaginário. Sartre (1971) afirma que cada ser humano possui a capacidade de dominar o
objeto real. Os objetos “fantasmas” alteram o real e tornam o sujeito inábil diante das
situações complexas da realidade. Para o autor, existe “um abismo que separa o real do
imaginário” (ibid., p. 168). A cada instante que o sujeito apropria-se do real, o EU imaginário
desaparece e passa a dar lugar ao EU real.
2.2.1.2. FASE DE SUBVERSÃO
A fase da subversão é caracterizada por uma nova concepção de
imaginário e pela potencialização do real/racional. Vale ressaltar que entre os gregos essa
ambivalência já era possível de ser notada. Para eles, existia uma espécie de impossibilidade
de se desfazer do imaginário e, por isso, era necessário reconhecer o seu valor positivo. Essa
posição de reconhecimento das “ações imaginais” tornou-se mais explícita no século XIX,
quando o imaginário transformou-se no único real.
A elevação do imaginário revela o abismo existente entre o real e o
imaginário. Na tentativa de resolver o problema, passou-se a acreditar que as força psíquica
do indivíduo, liberada dos entraves das urgências perceptivas, seria capaz de separar a
realidade exterior e ouvir as “possíveis vozes interiores” (BARBIER, 1984, p. 18). Tal
pensamento, apesar de ser uma proposta de união entre imaginação e realidade, reforça a
relação abismal existente entre eles. Por isso, o imaginário permaneceu potencialmente
subversivo mantendo-se ao mesmo tempo oculto e voluntariamente ignorado.
2.2.1.3. FASE DE AUTORIZAÇÃO
A fase da autorização iniciou-se no século XX e também caracteriza-se
pela busca de equilíbrio entre o imaginário e o real. Este período é rico em contribuições
intelectuais e alguns autores destacaram-se nesta fase, como Barchelard (1974), Durand
(1969) e Castoriadis (1986).
Barchelard (1974) considera a função do irreal tão útil quanto à função
do real. O autor afirma que o homem da ciência – o homem diurno – deve atuar no domínio
da consciência, no locus da técnica e da razão; e o homem da poiesis – o homem noturno –
58
enraizado nos domínios arcaicos, profundos e ainda desconhecido da psique, tem a
responsabilidade de atuar no locus da criação. Vale observar que Barchelard, ao mesmo
tempo em que potencializa a razão, também evidencia que ela é incapaz de atingir sozinha o
nível ontológico. Esse só pode ser atingido por meio da função psíquica fundamental, a
poiesis, criação.
Nesta fase, outro teórico que se destaca é Durand17 (1969). Em seus
estudos sobre o imaginário, o autor propôs-se “recensear” as imagens que constituem o
“capital homo sapiens” (ibid., p.12). Para ele, a coleta de imagens gera uma série de conjuntos
constituídos em torno de núcleos organizadores (constelações e arquétipos) com a finalidade
de servir como instrumento de normalização para estudo com fins científicos. Paralelamente
as compreensões ao novo espírito antropológico iniciado por Durand, Cornelius Castoriadis
(1986) também apresentou uma via de acesso para compreensão do imaginário, analisando as
ações provocadas por ele no contexto social.
Castoriadis foi antigo animador do grupo “Socialisme ou Barbarie”,
durante o período de 1949 a 1965. Economista do OCDE (Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico), psicanalista e sociólogo, esse intelectual heterodoxo se
interrogou sobre a experiência do movimento operário, as burocracias comunistas (partidos,
estados, sindicatos), os obstáculos do pensamento marxista, antes de abordar o lugar do
imaginário no processo (sócio-histórico) de auto-instituição da sociedade. O autor faz
rigorosas objeções às concepções de Marx. Para ele, as formas de associações dos
trabalhadores – decorrentes do socialismo – se tornaram ultrapassadas. O ritmo de trabalho
não é individual, como afirmam as teorias capitalistas de organização, mas ditado pelo ritmo
de trabalho do “conjunto” ao qual pertence. Tratando-se de um conjunto de operários, em
regime socialista somente este próprio conjunto deve determinar tal ritmo, o que transforma
um suposto problema de remuneração (fruto do “pensamento herdado” capitalista) em um
problema de gestão operária da economia – modo de pensar socialista.
Castoriadis adverte ainda que esta nova forma de dimensionar a questão
não resulta em solução mais fácil: o estabelecimento coletivo dos ritmos e das equivalências
entre desperdícios de energia em atividades diferentes pode conduzir a muitos erros a serem
permanentemente corrigidos até chegar às soluções ao menos provisórias. Esses erros, porém,
seriam fecundos para o desenvolvimento do socialismo, ao passo que “enquanto se colocar o
problema sob forma do „salário pelo rendimento‟ ou do „direito burguês‟, permaneceremos de
17
Durand foi fundador do Cantro de Pesquisa sobre o imaginário (C.R.I) em Grenoble, no ano de 1966.
59
imediato no âmbito de uma sociedade de exploração” (CASTORIADIS, 1986, p. 62). O autor
sugere que a idéia de “homem econômico” foi criada pela sociedade burguesa à sua própria
imagem e semelhança. Ou melhor, à imagem e semelhança do burguês na sociedade burguesa
e não a imagem do operário. Nesse sentido, o pensamento marxista deveria lutar para
desembaraçar-se da penetração do modo de pensar capitalista em suas problematizações,
teorias e ações revolucionárias, mesmo que tal modo de pensar provenha do próprio Marx.
A militância e o empenho nos estudos sobre a teoria marxista
impulsionou Castoriadis a romper com o trotskismo em nome das fontes vivas do marxismo,
mas levando igualmente a seus últimos limites. Após penetrar o cerne da teoria, pouco a
pouco vai abandonando o a teoria e avaliando que o prosseguimento (ou mesmo recomeço) do
projeto revolucionário demanda a destruição das bases doutrinárias vigentes. Em 1975, o
autor publicou a obra “A instituição imaginária da sociedade”, título que celebrizou todos os
termos empregados. Não é fácil explorar seus escritos. Os textos condensam anos de trabalho,
com vista não exatamente a uma nova teoria que tomasse o lugar do marxismo, mas a uma
elucidação inseparável de um projeto político. Abordado dentro das classificações
epistemológico-filosóficas habituais, não podem e não devem ser congelados em formatos já
instituídos. A teoria proposta por Castoriadis não é marxista, freudo-marxista, historicista,
hegeliana, fenomenológica, sartreana, heideggeriana ou estruturalista, embora faça menção a
todas essas vertentes. Analisada do ponto de vista das idéias (de que lança mão) é
extremamente poliforma: história como criação, imaginário social, autoinstituição da
sociedade, imaginário radical, instituinte e instituído, sócio-histórico, autoalienação,
sociedade heterônoma e autônoma, lógica conjuntiva-identitária, pensamento herdado e
magma de significações são algumas categorias originais investigadas e conceituadas pelo o
autor. É um desafio expor as idéias de Castoriadis sem recair no que ele tanto combate,
transformar a sua teoria na “busca pela lucidez em luz no fim do túnel”. (CASTORIADIS,
1986, p. 13).
2.2.1.4. AS SIGNIFICAÇÕES IMAGINÁRIAS: IMAGINÁRIO RADICAL E
IMAGINÁRIO SOCIAL
O termo imaginário leva imediatamente a pensar em psicanálise. Essa
afirmativa não está totalmente errada, mas, antes de tudo, vale lembrar que Castoriadis (1986)
não visava articulações e/ou conciliações entre Marx e Freud. O que o autor faz é
fundamentar-se em alguns conceitos psicanalíticos, em especial o imaginário, desviando-o de
60
seu sentido canônico e promovendo novos significados. Ele faz questão, no prefácio de seu
livro “A instituição imaginária da sociedade”, de distinguir seu trabalho de eventuais
construções de teoria no sentido herdado do termo. Ao invés de teoria, Castoriadis chama de
“elucidação”, ou seja, a procura por uma lucidez indispensável a um projeto político,
fundamentado nas transformações constantes da história e, conseqüentemente, da sociedade.
De acordo com o autor, o processo sócio-histórico é coletivo, anônimo,
humano e impessoal. Ele serve para localizar a sociedade e inseri-la nos mais variados
contextos, inscrevendo-a numa lógica de continuidade em que estejam presentes o “que não
existem mais, o agora e ainda o que está por nascer”. Sendo então, ao mesmo tempo,
estruturas dadas, instituições e obras materializadas (concretas ou não) e também “o que”
estrutura, institui e materializa. Ou seja, é a “união e a tensão da sociedade instituinte e da
sociedade instituída, da história feita e da história se fazendo”. (Ibid., p. 131).
Dessa forma, é fácil compreender porque a história pode ser definida
fundamentalmente como poiesis: uma criação constante capaz de proporcionar
transformações constantes. Nessa perspectiva, o social-histórico se auto-institui não como
ordem identitária ou dialética, nem como caos, mas na qualidade do que Castoriadis
denomina de magma de significações. O magma é uma diversidade em principio irredutível à
lógica conjuntista-identitária, sendo impossível dizer/representar o modo de ser daquilo que se
transforma em condição da lógica sem apelar, de algum modo, para esta própria lógica. Então,
do que trata a lógica conjuntista identitária? É tudo aquilo que possa ser reconhecido como
“marca” da sociedade. É a impressão deixada pelo passado, o qual influencia o modo de
pensar e agir no presente e colabora para construções de novas projeções no futuro.
Para compreender melhor, utilizaremos a linguagem como exemplo do
pensamento do autor. Toda a palavra é aberta e os seus significados (magma) ultrapassam os
limites da percepção humana (lógica conjuntista identitária). Ou seja, a palavra “mesa” refere-
se a um objeto concreto. A ligação indissociável entre objeto-nome é algo que já foi herdado
dos antepassados e por isso pode ser afirmado como parte da lógica conjuntiva-identitária da
sociedade. Porém, a constituição do objeto jamais vai reduzir os múltiplos sentidos que a
palavra proporciona. Uma única palavra pode reportar a infinitas “remissões”, mas nunca se
esgotará “no que seria a coisa em si”. (CASTORIADIS, 1986, p. 394). Essa impossibilidade
de esgotamento dos sentidos deve-se a movimentação constante do magma de significações.
Segundo Castoriadis, o motor que movimenta toda a existência humana
é o imaginário. Ele constitui o social-histórico, envolve a lógica conjuntiva-identitária, e
movimenta o magma de significações da sociedade. Para compreender a extensão da ação
61
imaginária, o autor classifica o imaginário em radical e social. O imaginário radical origina-se
no interior da mente humana; depois, passa a reinar como social-histórico e como “psique-
soma”. Como o sociol-histórico, absorve os significados coletivos e anônimos e como
“psique-soma” exerce funções no âmbito representativo, afetivo e intencional. Já o
imaginário social é posição, criação, fazer ser. Ele articula e dá sentido a sociedade instituinte,
impulsionando o movimento das significações sociais (magma).
O imaginário radical cria as significações e o imaginário social propaga,
modifica e a instala no cerne da sociedade. As contribuições imaginárias estão presentes em
todos os momentos da vida humana. Seja na descoberta do fogo, nas pinturas no interior das
cavernas primitivas, no modo de vida nômades, nas construções de apetrechos de guerra ou de
instrumentos para auxílio na caça e na pesca, na organização dos sistemas feudais, no
pensamento burguês, nas ações revolucionárias, nas críticas socialistas ao sistema capitalista,
no modo de sobrevivência durante os conflitos, nas batalhas sangrentas das guerras mundiais,
nos sofrimentos dos exilados nos campos de concentração nazistas, no terror das bombas que
devastaram Hiroshima e Nagasaki, nas matanarrativas emancipatórias, nas “tecnoteleologias
sui generis” da comunicação, bem como, no vestuário, nas gírias, na política, na economia,
nas relações afetivas e nas ideologias, enfim, tudo só tem sentido no e pelo imaginário. Por
isso, Castoriadis ressalta que “falar das significações imaginárias sociais quer dizer também
que essas significações são presentificadas e figuradas pela efetividade dos indivíduos, dos
atos e dos objetos que eles informam. (Ibid., p. 514).
O imaginário instituído na sociedade determina o que é “real‟ e o que
não é. Habita no que tem sentido e no que é desprovido dele. Uma sociedade não vive sem
mitos, lendas, crenças, utopias, sonhos e projetos. Elas estão inseridas no sistema de
interpretação do mundo para incentivar a sociedade a investir de significações o mundo.
62
2.3. O IMAGINÁRIO NA CIBERCULTURA
No domínio acadêmico, as palavras parecem ser difíceis de serem
definidas. Foi assim com o termo “pós-modernidade”, cuja popularidade entre os teóricos das
ciências sociais não cessou em ser investigado até meados da década de 90. Nesta época,
falava-se exaustivamente de “sociedade pós-moderna”, “sociabilidade pós-moderna”,
“estética pós-moderna” entre outras variações, mas todos os conceitos possíveis revelavam a
incerteza quanto o processo de transição da modernidade para a pós-modernidade. Algo
semelhante aconteceu com a palavra cibercultura que, hoje, desfruta de significativa
notoriedade nos meios acadêmicos. O termo quase sempre se refere ao contexto cultural
totalmente dominado pela tecnologia.
Segundo Davis (1999), toda cultura é desde sempre uma “tecnocultura”.
Porém, a cibercultura equivale a esfera da experiência contemporânea na qual a tecnologia
passa a ser pensada como fator central determinante das vivências sociais, das sensorialidades
e das elaborações estéticas. Ou seja, ela é muito mais do que uma tecnocultura. A cibercultura
representa o momento em que a tecnologia se coloca como vetor essencial de articulação da
sociedade.
Desde a Revolução Industrial, as experiências tecnológicas mantêm um
relacionamento paradoxal com a humanidade. Ao mesmo tempo em que impulsionam a
evolução da história, também se constituem em problemas explícitos para a humanidade. No
que tange às tecnologias comunicacionais, o surgimento dos meios de massa se convertem em
temática central desde meados da década de 40. Nesse sentido, “A dialética do
esclarecimento” (1947), de Adorno e Horkheimer, pode ser considerada uma obra
emblemática daqueles instantes iniciais em que a comunicação massiva se constituía como
força determinante. Os debates no campo das ciências humanas e sociais giravam em torno da
“ação alienadora” dos media, concebidos como “reprodutoras” das ideologias vigentes. A
“indústria cultural” (cinema, rádio, televisão) era concebida como instrumento de
padronização de comportamentos e como limitadora do senso crítico, visando o
fortalecimento do sistema. Atualmente, já é possível perceber que os meios de comunicação
(de massa ou interativos) não reproduzem e nem fortalecem o sistema, eles são o próprio
poder e o próprio sistema que conduz a sociedade.
Sabe-se que durante algum tempo os mass media reinaram absolutos.
Mas, na década de 90, começaram a perder espaço para os media interativos que rapidamente
63
caíram no gosto do usuário (consumidor tecnológico). Afinal, a comunicação passiva dos
meios de massa foi transformada em comunicação interativa. O indivíduo passou a atuar
como agente direto do processo comunicacional mediado pela máquina.
Não há como negar que se vive um momento de inaudito fascínio pela
tecnologia. A miniaturização das máquinas de comunicar, bem como sua crescente
mobilidade presente em aparatos como telefones celulares, palmtops e notebooks tornaram a
comunicação mediada num fenômeno ubíquo. O lema é “comunicar sempre, cada vez com
mais freqüência”. Nesse sentido, Sfez (1994) acrescenta que todas as tecnologias de
vanguarda se aliaram a comunicação. Assim a cibercultura pode ser definida como o instante
supremo de realização da comunicação tecnológica, mas também não se reduz a só isso. Na
verdade, ela é a uma nova configuração social e imaginária.
Felinto (2003) recorre à antropologia para lembrar que esta geração não
é a primeira a maravilhar-se com as rápidas e extraordinárias mudanças provocadas pela
comunicação. No entanto, a marca ontológica que diferencia a cibercultura de outros períodos
precedentes é a propalada passagem do paradigma “analógico” para o “digital”. O fenômeno
cibercultural assinala sua especificidade com base nesse novo modelo tecnológico, cujas
características ultrapassam todo e qualquer modelo anterior. A maior delas foi à
informatização do mundo. Toda natureza, inclusive a subjetividade humana pode ser
compreendida por padrões funcionais passíveis de digitalização em sistemas
computadorizados. Um dos melhores exemplos de processos de “informatização” é o
mapeamento do genoma humano em computadores que desfiam as seqüências genéticas
binárias.
Nesse sentido, o pós-humanismo representa o desdobramento direto da
“visão de mundo” cibercultural. Se o sujeito pode ser traduzido em partículas de informações
discretas, por que não seria possível aperfeiçoá-lo por meio da manipulação consciente dessa
mesma informação? Só não seria possível, como também já existem métodos (ou softwares)
capazes de duplicar ou modificar pessoas e/ou objetos (como o photoshop18, o processo de
rotoscopia digital19 dos cinemas, até a biotecnologia, a clonagem e a manipulação de células-
18
O photoshop é um software caracterizado como editor de imagens bidimensionais do tipo raster (imagens que
contém descrição em cada pixel). Foi desenvolvido pela Adobe Systems e é considerado o líder no mercado de
editores de imagens profissionais. Ele está disponível para sistemas operativos Microsolf Windows e Mac OS-X,
mas também pode ser rodado no Linux, através da camada de compatibilidade. 19
Rotoscópia é um dispositivo que permite os animadores redesenhar quadros de filmagens para serem usados
em animações. Pode ser utilizado para animar uma referência filmada ou com auxílio de outros aparatos
tecnológicos (motion tracking e onion-skinning), reproduzir (scanear) pessoas e objetos para serem
posteriormente manipulados por meio da computação gráfica. Esse método de animação é bastante utilizado nos
efeitos especiais do cinema. O primeiro a utilizá-lo foi Walt Disney, no filme “Branca de Neve e os sete anões”.
64
tronco). No universo cibercultural, cada átomo converte-se em informação e comunicação.
Logo, a informação pode ser compreendida como conceito-chave da cibercultura.
Diante desse panorama e de todos os elementos nele incluídos, como
explicar o fenômeno cibercultural? A explicação só poderia vir da categoria que possibilita
penetrar no interior de todos os sistemas e os obriga a afinar conceitos, quer trate do
simbólico, do estético, do conhecimento e de seus prolongamentos dirigiridos ao social. Ele se
encontra no centro de todos os dispositivos do saber. “Força central, condição inevitável da
vida em sociedade” (FELINTO, 2003, p. 20), o imaginário se encontra na fundação de todas
as formas de conhecimento, nas práticas e nas representações sociais.
Vale recordar que há algum tempo atrás, a categoria do imaginário
desfrutava de popularidade acadêmica. Principalmente na década de 70, a temática atingiu seu
ápice nos trabalhos de Durand e Castoriadis. Depois, os estudos sobre o imaginário passaram
por certo arrefecimento. Porém, no âmbito da cibercultura, o imaginário reaparece como
conceito importante, impondo-se no campo científico. Autores como Sfez (1996), Ferrer
(1996), Lemos (2002), Trivinho (2007) e Rüdiger (2002) denominam a força social que
projeta sobre a tecnologia determinadas imagens, expectativas e representações coletivas de
“imaginário tecnológico”. Dessa forma, a cibercultura poderia ser definida como imaginário
tecnológico fecundado a partir do paradigma digital. Esse imaginário tecnológico compreende
aos processos, projetos e sonhos que se plasmam em aparatos materiais e ao impacto que
esses objetos ensejam no cotidiano por meio do imaginário coletivo.
A cibercultura se manifesta como imaginário no qual o paradigma
digital chega para realizar um sonho imemorial da humanidade: a superação das limitações
humanas através do rompimento espaço-tempo, a manipulação da realidade convertida em
padrões de informação, “a conquista absoluta da natureza e das leis do cosmo – em uma só
palavra – a divinização do homo ciberneticus” (FELINTO, 2003, p. 32). As crenças (os
mitos, as metanarrativas etc.), aparentemente, superadas pelo conhecimento científico,
retornam – no contexto cibercultural – na forma de “fetichismo” tecnológico no qual
máquinas adquirem valor imanente e são pensadas como seres dotados de “inteligência
artificial”.
e depois se popularizou. Algumas produções destacam-se na utilização desse recurso: A trilogia “Guerra nas
Estrelas” (utilizado para construir os sabres luminosos), A trilogia “Matrix” e em especial “A scanner darkly”,
filme todo produzido por meio da técnica de rotoscópia, sendo utilizada para transformar os “seres reais” (atores)
em ilustrações simuladas de traço de linha e tinta. No campo da música, destaque para o vídeo clip da música
“Take on me” da banda norueguesa A-ha, na década de 80 e “Black or White” de Michael Jackson, em meados
de 90.
65
Além do fascínio pelas máquinas “inteligentes” e pela comunicação de
uma forma geral, a cibercultura também contribui para mudanças de comportamento e nas
relações sociais. Lemos (2002) recorda do aparecimento da atitude “cyberpunk”, a saber, um
estilo de vida (undergroud) inspirado no movimento homônimo de ficção cientifica que
associa “tecnologias digitais, psicodelismo, tecnomarginais, ciberespaço, ciborg e poder
midiático, político e econômico dos grandes conglomerados multinacionais” (ibid., p. 200).
Segundo o autor, “os cyberpunks são outsiders, criminosos, visionários da tecnologia. Eles
encarnavam, na ficção e na vida real, uma atitude de apropriação vitalista da tecnologia”,
orientada pelo tema “do it youself”. Esse undergroud hightech, direta ou indiretamente, é
herdeiro da contracultura tecnocrática das décadas de 60 e 70, contudo não há mais rejeição às
tecnologias, ao contrário, a apropriação e o desvio na lógica de produção, consumo e a
utilização delas abre uma possibilidade para escapar do controle social imposto pelos
tecnocratas. A libertação pretendida vai além de possíveis coerções sociais, abrange também a
superação das limitações do próprio corpo humano, seja por meio de próteses, de
manipulações biotecnológicas e até o uso de drogas. Tal fato é semente da utopia do corpo
perfeitamente saudável, lembra Sfez (1996).
A cibercultura revela um apelo à transcendência e ao misticismo (como
citado anteriormente). De acordo com Timothy Leary – um dos destaques da contracultura
dos anos 60 e, posteriormente, do movimento cyberpunk afirmam que o “computador pessoal
é o LSD dos anos 90” (aput. DERY, 1999, p.28). Se nos anos 60 falava-se de psicodelismo, a
partir dos anos 80 o que se destaca é a “ciberdelia” que “reconcilia os impulsos
transcendentais da contracultura dos anos 60 com a informania dos anos 90”. (Ibidem., p.29).
A apropriação das tecnologias informáticas pode, então, ser
compreendida em duas direções: uma pessoa, com o propósito de manter o corpo livre e
superpotencializado e a outra social. Neste caso, promove-se a “democratização” da
tecnologia: todos podem e devem usufruir dos benefícios gerados pelos avanços tecnológicos.
Esta era a ideologia propagada pelos cyberpunks, “computers for the people”.
Vale ressaltar, essa utopia democrática da informatização não atingiu o
seu objetivo. Apenas uma minoria conseguia dominar os conhecimentos técnicos específicos.
Para rebelar-se contra a “exclusão” provocada pela tecnologia, jovens chamados harckers
passaram a usar a tecnologia contra os infotecnocratas. Passando algum tempo, os jovens da
“era higtech” ao perceberem que o mercado tecnológico cresceu e tornou-se rentável,
transformaram-se em poderosos empresários da microinformática. É o caso de Bill Gates,
presidente de fundador da Microsoft, Steve Jobs e Steve Wozniak, fundadores da Apple e
66
inventores do famoso Macintosh. Ou seja, os jovens idealistas “hippies” tornaram-se
“yuppies”, executivos infotecnocratas bem sucedidos.
O imaginário cibercultural não é somente alimentado pelos ideais
libertadores propagados pela tecnologia. Mas, principalmente, mantido pela
magatecnoburocracia da informatização, virtualização e ciberespacialização das sociedades
contemporâneas, a qual Trivinho (2001) define como “rede institucional internacional
responsável pela produção e circulação de bens ciberculturais (hardware, solftware e netware,
em seja qual formato for) e pela fomentação acelerada do cyberspace”. (TRIVINHO, 2001, p.
214).
É importante lembrar que a informatização aconteceu. Porém, não
atingiu o objetivo inicial (a democratização), livre acesso a todos. O que houve foi um
reescalonamento da infotecnocracia. A atitude socialista transgressora transformou-se numa
atitude conservadora de perpetuação do status quo. A reprodução infinda das estruturas
sociais e culturais e das dinâmicas políticas e econômicas, pretendidas pela
megatecnoburocracia para alimentar o capitalismo cibernético, estabelecem a cibercultura
como cultura de controle velada, escondida por trás das promessas de interatividade,
velocidade e informação
2.3.1. A DITADURA DO IMAGINÁRIO: O IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO
Segundo Castoriadis (1986), o imaginário “é a introjeção do real, a
aceitação inconsciente de um modo de ser partilhado com os outros” (ibid., p. 67). Para o
indivíduo penetrar no interior da caverna do imaginário social é necessário compreender,
aceitar e participar de suas regras. Ao apropriar-se mentalmente dessas regras, o sujeito
consegue criar novos procedimentos que dão origem a novas ações imaginárias. Este processo
de construção e reconstrução é natural e acontece devido o imaginário sair de sua condição
original (imaginário radical) e passar para a dimensão social.
Especificamente no contexto da cibercultura, as manifestações podem
continuar sendo compreendidas a partir da “diagnose” de Castoriadis. No entanto, o
imaginário tecnológico, diferentemente das “ações imaginais” vivenciadas no passado, está
fincado em processos complexos e efêmeros. Apesar de ainda possuir umbilicais ligações
com o patrimônio afetivo, imagético, simbólico, individual e grupal, o imaginário tecnológico
infiltra dois novos elementos capazes de sustentar todos os outros já citados: a velocidade e a
informação. Eles passam a constituir o “magma de significações”, agindo como grandes
67
estimuladores das atividades concretas do cotidiano e assim, produzindo sentido “no viver na
ciberrcultura”.
[...] o imaginário era fruto puro das relações interpessoais, sem mediação
maquínica, sem meio, finalidade em si (teatro, poesia oral, “causos”, contos,
fábulas). O pecado original estabeleceu-se com a mediação. A tela entrou na
vida do homem como um divisor de águas. Passou-se da fluência à fruição,
da conjunção à intermediação e do troco ao meio. Aos poucos, tudo virou
meio. O meio se tornou fim [...]. (MACHADO, 2003, p. 75)
Durante muito tempo, a voz do imaginário foi calada e relegada a uma
posição secundária e até mesmo marginal, sendo concebida como parte maldita do espírito
humano. Na modernidade, por exemplo, foram cortados os laços com as fontes vitais da
imaginação em detrimento da supremacia da razão. Agora, parece que a humanidade tenta
recuperar o tempo perdido. Durand (1970) destaca a irônica situação contemporânea, na qual
a vitória da ciência e da técnica (anteriormente inimigas da imaginação) conduz
paradoxalmente ao ressurgimento do imaginário como força vital. A civilização da imagem
dos meios de comunicação reinstala no mundo o domínio do imaginário. A sociedade passa
de um extremo ao outro: da exclusão absoluta do imaginário ao desejo da substituição do
racional pela imaginação. Por isso, Felinto (2003) enfatiza: “quando o imaginário está por
toda a parte, quando o seu poder é ubíquo, sem centro e inteiramente pervasivo torna-se tão
perigoso quanto à razão totalitária”. (Ibid., p. 28)
Essa afirmação possibilita reportar a Freud (1971) – que na pista de Le
Bon (1895) pretende explicar a “alma das massas” e a sua capacidade de “invetividade”. Logo
na introdução do texto “Psicologia das massas e a análise do eu”, Freud afirma:
O individuo nas relações com os pais, com os irmãos e irmãs, com a pessoa
amada, com os amigos com o médico, cai sob a influência de apenas uma só
pessoa ou de um número bastante reduzido de pessoas, cada uma das quais se
torna importante para ele. Ora quando se fala de psicologia social ou de grupo,
costuma-se deixar essas relações de lado e isolar como tema de indagação o
influenciamento de um indivíduo por grande número de pessoas
simultaneamente, pessoas com quem se acha ligado por algo, embora, sob
outros aspectos e em muitos respeitos, possam ser-lhes estranhas. (FREUD,
1970)
Para o psicanalista, o indivíduo ao se inserir num grupo adquire um
poder invencível, o qual permite render-se a instintos que, se estivesse sozinho, com certeza
teria mantido reprimido. Dentro do grupo, todos os membros tornam-se anônimos,
favorecendo que o “espírito de responsabilidade” desapareça inteiramente. (LE BON, in.
FREUD, 1970, p. 90). O autor ainda lembra que o grupo é conduzido pela “voz da
68
fascinação”. Ela conduz o grupo pela sua ação hipnótica. Por isso, todos os sentimentos e
pensamentos inclinam-se na direção determinada pelo “hipnotizador”. Sob a influência de
apenas uma sugestão, serão realizados atos com irresistível impetuosidade. Essa
impetuosidade é ainda mais irresistível porque a “voz de comando” é a mesma para todos os
membros do grupo, favorecendo assim, a aceitação imediata.
Vemos então que o desaparecimento da personalidade consciente, a
predominância da personalidade inconsciente, a modificação por meio da
sugestão e do contágio de sentimentos idéias sugeridas em atos, estas, vemos,
são características principais do indivíduo que faz parte de um grupo. Ele não é
mais ele mesmo, mas, transformou-se num autômato que deixou de ser dirigido
pela vontade. (Ibidem)
A análise de Le Bon e de Freud sobre o comportamento das massas, de
certa forma, reforça o sentido de imaginário social proposto por Castoriadis, quando o autor
afirma que o imaginário é o modo de ser partilhado inconscientemente com os outros.
Seguindo a lógica desses argumentos e relacionando com a atuação do imaginário tecnológico
nos dias de hoje, é possível compreender que o imaginário tecnológico atua na esfera social,
mudando comportamentos, modificando os valores e implantando novos meios de relações
sociais, devido “convocarem” a massa, ou melhor, os usuários a corresponderem a voz de
comando da tecnologia da informação.
Esse “inconsciente tecnológico” dos usuários é alimentado por meio de
discursos devotados que anuncia o surgimento de um novo tipo de consciência, capaz de
expandir-se sem limites pela rede (TURKLE, 1997). Nessa expansão, o corpo torna-se
maleável, podendo, inclusive, romper os limites do espaço e do tempo (numa ação mais
complexa que o estado de bilocação) ou até mesmo, desaparecer, já que o corpo deixa de ser
matéria para converter-se em códigos padrões da informatização. A narrativa organizadora em
torno da qual se desenrolam todas as ações do imaginário tecnológico, implica na idéia de
desaparição de todo o obstáculo ou materialidade envolvendo as noções de imediatez e de
transparência. Essa narrativa ou utopia sem a qual o imaginário tecnológico não poderia
sobreviver é denominada de “fenômeno glocal”.
69
2.4. UTOPIAS DO IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO: O FENÔMENO
GLOCAL
O fenômeno glocal equivale à produção imaginária que conduz o
fazer/ser da sociedade tecnológica. Ele age como a “voz de comando” da tese freudiana,
conduzindo e controlando as “massas”, principalmente, introduzindo no imaginário social a
“alma” da cibercultura.
Teoricamente, Trivinho (2007) define o fenômeno glocal como a
mescla “inextricável” entre o conteúdo global da rede e o espaço local de socialização e
reprodução da existência cotidiana. Segundo o autor, esse fenômeno é recente, pertence ao
século XX. No entanto, as suas sementes já eram possíveis de serem notadas a partir do
telégrafo elétrico, como mencionado no primeiro Capítulo deste Trabalho.
O glocal trata-se da junção das palavras local e global. O que pertence
ao local e ao global passa a existir em via única no imaginário social tecnológico. O vetor de
articulação das ações glocais imaginárias é a velocidade e a interatividade. Esses dois
processos constituem o que atrevo chamar de “utopias do imaginário tecnológico”. Eles
colocam em prática o processo de “planetarização” do mundo por meio da capacidade de
desterritorialização e imaterialidade eletromagnética, possibilitando o condicionamento de
toda a vida humana ao estado dromocrático. Ou seja, dominam os discursos institucionais e
corporativos, interferem na cultura e no contexto do trabalho, mediam relações sociais e
destacando-se como entretenimento na hora do lazer.
A seguir serão apresentadas algumas das principais significações
imaginárias promovidas pelas utopias do “fenômeno da glocalização da existência”.
2.4.1. O FASCÍNIO PELAS PRÁTICAS GLOCAIS INTERATIVAS
A interatividade é o processo comunicacional em que agentes com igual
poder de decisão e de ação relacionam-se de maneira direta dentro de um ambiente
imaginário, o espaço virtual. As relações interativas equivalem ao principal paradigma
cibercultural, desafiando todas as elementares teorias da comunicação existentes. Até pouco
tempo, a comunicação era dominada pelos modelos tradicionais, modelo ponto-a-ponto
(ligação telefônica) e um-todos (impressos em geral, rádio e televisão).
70
Com o advento da tecnologia da informação, a interatividade surgiu
para “desbancar” e “reconfigurar” todos os modelos já existentes. A interatividade representa
o esquema “todos-todos”, cuja característica principal é permitir que os usuários tornem-se
emissores e receptores simultaneamente. Quando um computador está conectado à internet, o
usuário pode A rede oferece infinitas possibilidades de ação do usuário. Esse parece ser o
ponto mais fascinante e sedutor; dá a sensação de poder e de domínio da situação. O usuário
sente-se autônomo para fazer as suas escolhas e acessar o que desejar. Afinal, ele está
protegido pelo bunker tecnológico. O bunker, segundo Trivinho (2007) significa:
[...] nomeia redutos ou, muitas vezes, cinturões fortificados, erigidos ou
sulcados no solo ou construídos em patamar totalmente subterrâneo, para
cumprir objetivos logísticos de proteção, resistência ou defesa contra
investidas inimigas em contextos de guerra ou guerrilha e, como tal, para
oferecer, simultaneamente, retaguarda a processo progressivo de contra-
ataque. (Ibid., p. 307)
Nesse sentido, o usuário protegido pela a sua parafernália tecnológica
sente-se livre para “deixar” o corpo material e “penetrar” na rede com seu corpo imaterial. O
autor enfatiza que o “emissor e, em especial, o receptor, meramente distintos no processo real,
obliteram-se para ressurgir como usuários teleinteragentes”. (TRIVINHO, 2001, p. 124). O
conceito de usuário teleinteragente pressupõe um grau de participação e intervenção mais
pleno o que de um receptor num processo de comunicação de massa. É diferente ligar um
rádio ou a televisão e receber sinais de emissoras apresentado conteúdos pré-estabelecidos e
acessar um site e interagir com os hiperlinks, traçando caminhos de leitura e/ou pesquisa de
acordo com os próprios interesses, tendo a possibilidade imediata de construir e emitir novos
conteúdos a partir do que foi consultado e apreendido.
A comunicação interativa desafia o ente humano, anteriormente
identificado como protagonista do processo comunicacional. O indivíduo sempre foi o
sujeito-agente da comunicação e a máquina figurava apenas como meio ou “canal”. Porém a
interatividade exige um novo redimensionamento dos esquemas teóricos de comunicação e
também da compreensão das relações sociais, visto que a própria máquina tornou-se
alteridade no processo social e comunicacional. Essa condição revela a extrema dependência
do ente humano em relação à máquina. Na modernidade, o sujeito “construía” sua identidade
e exercitava sua autonomia a partir da relação EU-TU (pessoa-pessoa). Acreditava-se que o
“EU” (res cogitan) diferia-se do “OBJETO” (res extensa). Então, o sujeito só poderia manter
71
diálogo existencial com o seu semelhante20. Hoje, essa concepção sofreu modulações devido
as máquinas passarem a materializar funções humanas. Esse processo é notado na relação
com os objetos infotecnológicos, sobretudo, os celulares e os computadores pessoais
(principalmente se conectados à rede), atuam como um “segundo eu” (TRIVINHO, 2001,
p.83), capaz de condicionar o sujeito a percebê-lo como extensão do próprio corpo.
2.4.2. A MÁQUINA COMO ALTERIDADE
A tecnologia tornou-se mais marcante no final do século XVII, com a
Revolução Industrial. No século XX, ela se intensificou, principalmente, com o
desenvolvimento da microeletrônica. Na Revolução Industrial as máquinas tecnológicas
estavam presentes exclusivamente no âmbito do trabalho e eram utilizadas para auxiliar o
desenvolvimento das atividades humanas. Esse tipo de máquina é o Santaella (1997, p. 35)
chama de “máquinas musculares”. Ou seja, aquelas que auxiliam o trabalho humano somente
naquilo que é puramente mecânico e físico. A autora também classifica outros tipos de
máquinas com o intuito de mostrar que, de alguma forma, as máquinas sempre estão
associadas ao auxilio dos indivíduos.
Sob o pretexto inicial de auxiliar os indivíduos, a máquina acabou
substituindo as faculdades humanas e, em alguns casos, os próprios indivíduos acabam
cedendo as suas facilidades e capacidades. Principalmente, após a nova configuração
sociocultural deste século que aponta para a onipresença das máquinas do cotidiano. Portanto,
as máquinas inteligentes, instrumentos de irradiação do imaginário glocal, condicionam o
modo de ser, de estar, de pensar, de agir e de existir. Elas introduzem o sistema dromocrático
em todas as relações por elas estabelecidas. Por isso, merecem certa desconfiança. A sua
facilidade e praticidade de uso criam dependência no indivíduo. Inclusive, tornam-se
indispensáveis até para executar as tarefas mais corriqueiras.
Independente de juízos de valor sobre a relação homem-máquina, elas
figuram literalmente como alteridades na cibercultura. No passado, as máquinas dependiam
integralmente dos indivíduos para funcionar. Hoje, em alguns casos, elas funcionam sozinhas,
somente, por meio de um comando de voz.
As máquinas se autolegitimaram como alteridade demonstrando sua
utilidade e seu poder. Vigoram como sujeitos das ações. Le Breton (2003) afirma que os
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Argumento inspirado na obra de Martin Buber “EU e TU”, 1979.
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“computadores transformaram-se em parceiros da vida, em companheiros, em abertura para o
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