3 CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE Adoro romances em e-book apresenta! A Dama e o Rebelde Christine Dorsey IRLANDA, 1747 DE DIA UM LORDE ... À NOITE, O HOMEM MAIS PROCURADO DA IRLANDA! Padraic Rafferty é forçado a adotar uma segunda personalidade para escapar da perseguição religiosa na Irlanda. Quando passa a viver como lorde Dunlanoe, supostamente protestante, ele é apresentado ao alto círculo social irlandês frequentado por seu primo, Edwin, um homem superficial e devasso cujas perversões são notórias. É nesse círculo que Padraic põe em ação o Rebelde, contrabandista e ladrão que tira dos ricos para dar aos pobres e burla as leis inglesas para taxar o comércio irlandês. Mas tudo muda quando ele conhece
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Adoro romances em e-book apresenta!
A Dama e o Rebelde Christine Dorsey
IRLANDA, 1747
DE DIA UM LORDE ... À NOITE, O HOMEM MAIS PROCURADO DA IRLANDA!Padraic Rafferty é forçado a adotar uma segunda personalidade para escapar
da perseguição religiosa na Irlanda. Quando passa a viver como lorde Dunlanoe, supostamente protestante, ele é apresentado ao alto círculo social irlandês frequentado por seu primo, Edwin, um homem superficial e devasso cujas perversões são notórias. É nesse círculo que Padraic põe em ação o Rebelde, contrabandista e ladrão que tira dos ricos para dar aos pobres e burla as leis inglesas para taxar o comércio irlandês. Mas tudo muda quando ele conhece Lilianne, uma mulher ao mesmo tempo doce e forte, que tem o poder tanto para destruí-lo como para transformar sua vida... e a dela própria... com um amor destinado a triunfar sobre o impossível...
TITULO ORIGINAL: THE REBEL AND THE LILY
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Capítulo Um
Junho, 1747,
Próximo da Costa Oeste da Irlanda
Ela ainda estava lá. Agarrado à escorregadia balaustrada, o
capitão Padraic Rafferty observava as velas infladas da nau que
perseguia a The Rebel´s Pride. Fizera de tudo para despistá-la, mas a
embarcação, inglesa, a julgar por sua bandeira, ainda os perseguia.
E os alcançava. Normalmente, já a teriam despistado, mas depois
da tempestade violenta que haviam enfrentado na travessia do canal,
tudo mudara. Uma das velas se rompera, o que representava acentuada
lentidão.
— O que acha disso, Paddy?
Padraic olhou para o amigo, Coyle Burns, co-proprietário do barco
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The Rebel's Pride.
— O que acho é que vamos ter de dar muitas explicações, caso
eles nos abordarem.
— E se não nos abordarem? Eles nos afundarão, sem sombra de
dúvida.
Coyle empalideceu, mas sua voz permaneceu firme.
— A nau traz muitas armas, então?
— Pelo que posso ver daqui, sim. E se esperarmos mais um
quarto de hora, verei não só as armas da embarcação inglesa, mas os
botões da casaca de seu capitão, também.
— Maldição! Não há nada que possamos fazer?
— Não, a menos que tenha um dos seus milagres escondido na
manga.
Padraic arrependeu-se imediatamente do comentário sarcástico.
Não tinha o direito de debochar da fé de um amigo a quem devia tanto,
e por tanto tempo. A dívida de gratidão era antiga, desde os tempos de
seus pais. E se ele queria acreditar em milagres, fadas duendes,
homenzinhos verdes, enfim... Que acreditasse. Desde que não tentasse
convencê-lo de suas crenças malucas...
E por que se preocupava com isso agora? Em breve não estariam
mais ali para discutir crenças e milagres.
Padraic tomou uma decisão.
— Aos postos de batalha, homens! — gritou, para a tripulação. —
E tentem parecer espertos!
— Vai lutar contra eles?
— O que espera que eu faça? Sabe o que nos espera se formos
capturados.
— Sim, eu sei, mas estou pensando em Alison e... Deus, daria
tudo para ser como você agora. Tão destemido...
Padraic sabia que o amigo o julgava inconsequente, um simples
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amante da aventura. Discutiram várias vezes por isso, e a discussão
ganhara intensidade depois de Coyle ter se casado com a bela jovem
irlandesa chamada Alison Regis.
Coyle tornara-se mais cauteloso. Quanto a Padraic, cautela era
uma palavra que não fazia parte de seu vocabulário. Não era amante do
perigo, longe disso, mas, em alguns momentos, era preciso enfrentá-lo
sem pensar nas eventuais consequências.
Infelizmente, dessa vez não tinham escolha.
— Coyle, vamos ter de... Coyle? Coyle!
O amigo estava de costas para ele, olhando para algum ponto no
horizonte.
— O que falávamos há pouco sobre um milagre, Paddy?
— Dizíamos que...— Padraic parou, olhando por cima do sócio.
Um sorriso iluminou seu rosto moreno.
— Baixem as velas e preparem-se para a abordagem — gritou
alguém da outra embarcação.
A escuna britânica estava muito próxima do The Rebel's Pride,
mas Padraic tinha os olhos azuis muito brilhantes.
— Ponha essa sua língua de advogado para funcionar, meu caro.
Comece a falar. Faça-os pensar que vamos nos render, mas tente obter
condições vantajosas para nós.
— De quanto tempo precisa? — Coyle perguntou enquanto
esperava pelo autofalante em forma de cone.
— Todo que puder conseguir — Padraic respondeu correndo para
o outro lado do deque. — Impeça-os de atacar.
— Vamos desistir, capitão? — perguntou aborrecido lan Kelly, que
alé então havia manejado o timão, mas que agora cedia o lugar para
Padraic.
— Quando foi que o The Rebel's Pride se rendeu? Diga aos
homens para estarem preparados. Mande-os içar velas, mas que
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permaneçam no convés. Eles terão de ser rápidos quando eu mandar
baixá-las. E prepare as armas. Quero todos os canos voltados para
aquela nau. Quando eu der a ordem, vamos destruir suas velas. Espero
que o Sr. Burns consiga mantê-los ocupados por tempo suficiente para
que não notem o que estamos fazendo. Quando perceberem... será
tarde demais.
— Eles revidarão, por certo.
— Sim, mas então já teremos nos afastado. — A névoa densa já
começava a descer sobre a superfície da água, entre as duas
embarcações. Mesmo assim, ainda teriam de navegar um pouco antes
de mergulharem na parte mais densa da neblina.
Padraic movia o leme devagar, grau a grau, até tomar o curso da
névoa. A escuna inglesa mantinha as velas içadas para alcançá-los,
mas o piloto não se ajustava às mudanças promovidas por Padraic.
Excelente.
De onde estava, podia ouvir a troca de palavras entre o capitão da
embarcação britânica e Coyle. Pelo tom do perseguidor, o diálogo não
seria muito longo.
As velas estavam preparadas. O capitão da escuna inglesa já
ordenava a seus grumetes para lançarem ganchos, atrelando assim as
duas embarcações. Ele já preparava o momento da abordagem.
Era hora de agir.
— Fogo!
Um estrondo retumbante ecoou sobre o mar. The Rebel's Pride
balançou em consequência do solavanco provocado pelo tiro. Rápido,
ele conduziu a nau para o manto de névoa que seria sua proteção.
Ecos da madeira partida temperavam o ar acre e enfumaçado,
enquanto uma porção do mastro da escuna inglesa caía sobre seu
deque. O tiro de resposta foi imediato. Padraic conteve o fôlego,
esperando para descobrir onde seriam atingidos. Um jato de espuma
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lavou o convés, sinal de que as balas de canhão haviam mergulhado no
mar.
A névoa os envolvia e escondia.
— Graças a Deus pela neblina — Coyle murmurou ao entrar na
cabine de comando. — Deus nos deu uma bênção.
Por mais grato que fosse, Padraic duvidava de que o Senhor
houvesse mesmo enviado a neblina só por eles. A menos que se
importasse mais com ladrões e saqueadores do que se pensava
comumente.
— O Príncipe o está incomodando, Paddy?
Padraic riu e balançou a cabeça. A mão buscou a coxa direita,
exatamente no local onde recebera uma bala de mosquete em batalha
nos pântanos perto de Culloden.
— A maldita bala não me deixa em paz.
— É uma questão de tempo — Coyle opinou, seguindo o caminho
que ligava a enseada protegida ao topo dos penhascos. Padraic ia na
frente e mancava.
— Tempo? Já faz mais de um ano!
— E você não descansou mais de quinze dias desde que foi
ferido, nem mesmo quando foi vencido pela febre.
— Coyle, Alison o transformou em enfermeiro?
— Estou apenas dizendo a verdade. Precisa descansar, Paddy.
Todos nós precisamos.
— Descansar? E quem agitaria o país?
— Ninguém vai esquecer o Rebelde, se ele desaparecer alguns
dias.
— Não estou preocupado com isso.
— Então...? Temos suprimentos de sobra. Amanhã mesmo
tentarei vender o excedente.
— E eu? O que devo fazer? Acha ficar sentado olhando para o
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céu?
— Faça o que quiser. Leia, fique na cama...
— Como uma dama enferma?
— Paddy, só quero ajuda-lo, está bem? É só uma sugestão. Faça
como quiser.
Quando concluíram a subida acidentada e dificil, Coyle estava
ofegante e teve de apoiar as mãos nos joelhos para recuperar o fôlego.
Os dois homens começaram a rir.
— Talvez tenha me dado uma boa idéia. Ficar na cama
descansando...
— Não brinque. Nada vai mantê-lo na cama por muito tempo.
O Rebelde estará cavalgando pelos pântanos antes de a lua desa-
parecer.
— Não tenha tanta pressa. Gostaria mesmo de me livrar desta
dor...
Numa brincadeira entre amigos, haviam dado ao ferimento o nome
do príncipe Charles, que unira muitos clãs escoceses e alguns
aventureiros irlandeses, também, em torno de seu plano de reclamar o
irono inglês para seu pai. Mas o ferimento em si não era motivo para
riso. Era debilitante, e Padraic não estava habituado a ser incomodado
com tanta frequência.
Mas, apesar do que acabara de dizer a Coyle, sabia que não
ficaria na cama.
Gostava de ser o Rebelde. Nesse momento, ansiava por cobrir o
rosto com sua máscara, vestir suas roupas pretas e fazer uma visita
noturna a algum rico latifundiário inglês. Não era suficiente ter criado
uma fama temível ou levar o dinheiro confiscado aos bolsos dos pobres.
Queria os ingleses fora da Irlanda.
— Tenha cuidado, Paddy — Coyle pediu quando emergiram no
território que cercava Dunlanoe. — Se alguém o vir por aí esta noite, vai
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ser difícil comprovar que é o honrado e correto sir Padraic Rafferty,
décimo segundo barão de Dunlanoe.
—Acha mesmo?—Padraic riu. Estava sujo, barbado e cansado
demais para desfilar como o almofadinha que era. — Dê-me uma boa
noite de sono, um pouco de pó e seda, e o bom e velho lorde Dunlanoe
beberá chá inglês com os melhores membros da nobreza.
— Não duvido disso. Mas, no momento, você está parecido
demais com o Rebelde.
— Nesse caso, é bom que tenhamos voltado para casa sob o
manto da noite.
— Sim. Bem, já vou indo. Mande minhas lembranças a seu pai.
Em um ou dois dias irei prestar meus respeitos pessoalmente.
Os dois se separaram, Coyle para percorrer os cinco quilômetros
até o vilarejo de Kilroyne, onde Alison o esperava, e Padraic para
penetrar sigilosamente em Dunlanoe. Ele parou um instante para
admirar o castelo e suas muralhas de pedra envoltas na densa névoa.
Era como se a fortaleza se erguesse dos penhascos com suas torres
normandas. O lugar pertencia a sua família há séculos.
Seu lar.
Padraic passou os dedos pelos cabelos negros. Tudo ali era dele.
Pelo menos aos olhos da lei britânica.
Porque as Leis Penais comandavam a terra. E não era bom ser
irlandês na Irlanda, especialmente para quem seguia a religião católica,
como ele, seu pai e os pais dele haviam seguido. Homens haviam
perdido terras, fortunas... tudo, simplesmente por seguirem suas
crenças.
Mas Padraic via a Igreja de forma mais cínica e prática. Na sua
opinião, a religião era o martelo que os ingleses empunhavam para pôr
de joelhos os irlandeses. E era a pobreza e a ignorância que os
mantinha assim.
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Era impossível lutar abertamente contra a Inglaterra e vencer. Se
insistisse, tudo lhe seria tomado. A propriedade. O título. Há muito
decidira que era melhor representar seu papel.
Mas só se pudesse jogar à sua maneira.
No interior do castelo, Padraic passou pela porta dos aposentos do
pai na esperança de encontrá-lo acordado, mas o silêncio profundo o
demoveu da idéia de vê-lo àquela hora da noite. Ele já havia dado
alguns passos além da porta, quando o ruído das dobradiças
enferrujadas o deteve.
Padraic virou-se esperando ver o pai, e por isso se assustou com
a imagem da mulher no longo vestido branco. Por um momento, chegou
a acreditar na lenda sobre as almas que assombravam o castelo.
— Quem é você?
— Eu poderia fazer a mesma pergunta. — A desconhecida tinha
um ar cansado, mas firme. Não era tão frágil quanto poderiam sugerir os
finos cabelos loiros e os olhos grandes e vivos.
— Poderia — ele reconheceu embaraçado. Não era comum
encontrar uma mulher na alcova de seu pai. Por outro lado, se ele
encontrava felicidade nos braços da visitante, que a acolhesse em sua
cama quando e como quisesse.
Mas ela parecia jovem demais, e embora não pudesse criticar o
gosto paterno... Bem, quanto menos falasse, melhor.
— Vou me recolher. Diga a meu pai... Não, não se incomode.
Eu o verei pela manhã.
— Por favor, espere! Você é o filho de Oliver?
— Sim, sou eu.
— Meu nome é Lilianne.
— Encantado, senhora. E agora, se me der licença...
— Não, por favor... Parece que ainda não sabe...
— Não sei o quê?
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— Não sei como dizer... Peço que me desculpe, senhor.
Assustado com o tom aflito da mulher, Padraic entrou no quarto
envolto pela penumbra.
— Pai? Pai!
— Ele não esta aí.
— Então onde...?
— Seu pai está morto.
— Morto...? — Padraic a encarou pálido. — Como pode ser? Eu o
deixei há duas semanas, e ele estava bem!
— Sim, eu sei.
— Sabe?
— Sim. Seu pai me contou.
— Quem é você, afinal? O que faz aqui? E o que houve com meu
pai?
— Sei que está muito perturbado, mas...
— Fale de uma vez! O que aconteceu?
— Não sei ao certo. Ele saiu cedo há seis dias e... e um dos
colonos o encontrou naquela mesma noite. Ele havia sido alvejado por
um tiro.
— Quem foi?
— Não sei. O fazendeiro que o encontrou chama-se Regis Kelly,
mas não creio que possa contar muito. Seu pai já estava morto. Não
sabíamos quando voltaria... Quero dizer, não podíamos esperar. Seu pai
foi sepultado ao lado de sua mãe.
Padraic olhou para a janela e tentou se conformar com a cruel-
dade da notícia. Seu pai estava morto. Nunca mais o veria. Nunca! mais
ouviria sua voz.
Seu punho encontrou a vidraça com assustadora violência.
— Maldição! Encontrarei quem fez isso — ele gritou.
— Entendo o que sente. Também perdi minha mãe há pouco
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tempo. Ela adoeceu repentinamente e... Bem, não pude fazer nada.
— Sinto muito. — Padraic a encarou e foi tomado de assalto por
uma onda de ternura, como se a dor daquela mulher tão frágil
amenizasse a sua. Mas não queria esse consolo. Queria a revolta, o
desejo de vingança. — A morte nunca é fácil de ser aceita. Nem é o que
esperamos.
— E, no entanto, é a única coisa de que podemos ter absoluta
certeza.
— Sim, é verdade. Quem é você?
Mais uma pergunta que ela preferia ter evitado. A resposta cer-
tamente o incomodaria.
— Lilianne Rafferty.
— Uma prima distante?
— Não, eu... sou a viúva de seu pai. Um silêncio mortal invadiu o
quarto.
Alguns instantes se passaram antes que Padraic reagisse.
— Eslá dizendo que se casou com meu pai. Oliver Rafferty?
— Sim.
— Francamente, mulher! Se a piada não fosse tão infame a
momento tão impróprio, acho que rira de tamanha tolice. Mas, como não
sinto vontade de rir, peço que se retire.
— Entendo que considere tudo isso estranho, mas asseguro que...
que...
-— Por favor! Estive fora por menos de quinze dias, e quer me
convencer de que meu pai se casou?
—- Foi muito rápido.
— Rápido? Foi fulminante!
— Quero que saiba que gostava muito de seu pai.
— Gostava? É uma maneira estranha de descrever seus
sentimentos mentos por um... marido. E meu pai? Também gostava de
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você?
— Acredito que sim.
— Quantos anos tem?
— Completarei vinte e três no natal.
— Vinte e três! Quatro menos que eu!
— Sim, eu sei. Seu pai falava muito a seu respeito.
— Mas nunca falou de você para mim.
— Ele não me conhecia.
— E você também não devia conhecer meu pai, ou saberia que
seu ato foi inútil. Não há nada a herdar como viúva de meu pai.
Dunlanoe me pertence. E o título também é meu.
— Eu sei disso. E não espero nada.
— Ótimo! Pois é exatamente exatamente isso que vai ter. Nada!
Tem uma casa para onde possa voltar? Um pai?
— Meu pai está... — Lily deteve-se a tempo. Não havia motivo
para falar sobre seu passado com esse homem. — Não precisa se
preocupar. Entrarei em contato com ele amanhã.
— Ótimo. Estava dormindo nos aposentos... que foram de meu
pai?
— Sim, mas posso encontrar outro.
— Não se incomode. Já está quase amanhecendo, mesmo.
— De fato. Notei que está mancando. Feriu sua perna?
— É um velho ferimento.
— Espero que não o incomode muito.
— Quase nada. Bem, até amanhã — Padraic despediu-se.
Lily fechou a porta e, sozinha, deixou cair as lágrimas que ardiam
em seus olhos. Não sabia se chorava por Oliver ou por ela mesma.
— Paddy, pelo amor de Deus! Acorde! Padraic esfregou os olhos.
— Coyle?
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— Sim, sou eu. Levante-se, vamos! Onde está Shamus?
— Na última vez em que o vi, ele dormia. Que horas são? E o que
faz aqui? — Havia passado a noite no divã da biblioteca, e agora sentia
dores pelo corpo todo.
— São quase nove horas, e estou aqui porque minha presença é
necessária, obviamente. Andou bebendo?
Padraic olhou para a garrafa vazia sobre a mesa.
— Meu pai está morto, Coyle.
— Eu sei. Alison me contou. Teria vindo antes, mas achei melhor
não despertá-la ontem à noite, quando chegamos.
— Ela sabe quem o matou?
— Não, mas não conversamos por muito tempo. Vim assim que
soube, e tive de forçar entrada para encontrá-lo. O mordomo insistia em
dizer que você não estava em casa.
— Não acordei ninguém quando cheguei e... Por que está me
puxando pelo braço?
— Você precisa se banhar e vestir roupas limpas. Quem vai
acreditar que é o belo lorde Dunlanoe?
— Não me incomodo com isso.
— Paddy, eu soube de uma outra coisa.
— Sobre a esposa de meu pai?
— Então já sabe. Não disse que entrou sem acordar ninguém?
— E não acordei.
— Então, como sabe sobre a esposa de seu pai? Pensando bem,
como sabe sobre seu pai?
— Eu a conheci ontem à noite, quando me dirigia ao quarto.
— Quer dizer que a viu? E ela também o viu?
— Exatamente.
— Exatamente? Só isso?
Bem, não foi um encontro planejado. Ela saiu do quarto de meu
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pai quando eu passava por lá. Não me dei ao trabalho de perguntar
quem era. Deve ser filha de algum camponês, apesar de sua rara
beleza, e já disse a ela vai ter que deixar o castelo. A jovem viúva vai
entrar em contato com o pai ainda hoje e em breve estará partindo.
— Paddy... Disse que ela vai entrar em contato com o pai?
— Sim, é isso mesmo. E ela também me disse que enterrou meu
pai ao lado do corpo de minha mãe.
— Foi o que Alison me contou. Mas... há algo que você precisa
saber.
— Não pode esperar? Quero me lavar - Sentia dores na perna e
na cabeça, mas a expressão de Coyle sugeria grande urgência. — Vejo
que não. O que é?
— A viúva de seu pai vai mandar noticias para Lorde Robert
Tinsley.
— Por que ela faria tal coisa?
— Bem, foi o que você ordenou que ela fizesse.
— Coyle, pode ser mais claro, por favor?
— Não creio que seja necessário. Você entendeu...
— Está dizendo... que meu pai se casou com a filha do duque de
Westbury?
— Isso mesmo.
— Mas... isso é ridículo! Robert Tinsley é um dos mais ferrenhos
difamadores da Irlanda na Câmara dos Lordes. Ele defendeu a emenda
que taxou nossa lã. Meu jamais se casaria com a filha desse homem.
— Mas ele se casou com ela. Não há nenhum engano nisso.
Alison esteve presente no casamento.
— Mas... por quê? Ele deve ter dado alguma explicação.
— Não para Alison. Seu pai chamou minha esposa para vir até
aqui na última quinta-feira e servir de testemunha.
— E foi morto dois dias depois.
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— Acha que existe alguma ligação entre os dois fatos?
— Não sei, mas vou descobrir.
— O que vai fazer com relação à filha de Tinsley?
— Não sei. Mas não vou mandá-la de volta à casa do pai,
certamente. Não agora.
— E como ela poderia ficar aqui? E se ela quiser ficar?
— Ela não terá escolha. Não posso permitir que volte para a casa
de Tinsley. Não sei se meu pai disse, ou se ela descobriu alguma coisa
nesses dias em que esteve sozinha no castelo.
— E sobre ontem a noite?
— Ela não meu viu em melhor forma, isso é certo.
— Ainda não está em boa forma. Parece... Você sabe quem,
— Sim, eu sei. Mas quando conhecer melhor lorde Dunlanoe, a
jovem viúva esquecerá o que viu ontem à noite.
— Espero que saiba o que está fazendo. Esse seu jogo é
perigoso.
Padraic sabia que o amigo estava certo. Estava habituado ao
perigo, sem dúvida, mas isso era diferente. Lady Lilianne Tinsley vivia
sob seu teto sob o nome de Lilianne Rafferty. E com uma só palavra, ela
poderia mandá-lo para a prisão.
CAPÍTULO II
Lilianne não sabia o que esperar depois da noite anterior, mas não
contava com nada daquilo.
Da noite para o dia, lorde Dunlanoe parecia ter passado por uma
completa metamorfose. O rosto, antes barbudo, agora se apresentava
coberto por um pó quase tão branco quanto o de sua peruca, e
passamanarias douradas adornavam sua cintilante casaca de seda azul.
Ele ainda era alto e forte, mas agora lembrava um poodle, não o
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lobo selvagem em que ela pensara ao vê-lo na noite anterior. Não fosse
pelos olhos azuis e impressionantes, ela teria questionado a identidade
do filho de Oliver.
— Por Deus... — Padraic levou um dedo aos lábios pintados de
carmim. Esperava encontrar a sala de jantar vazia naquela manhã, mas
lá estava ela com seu rosto delicado emoldurado pelos cabelos loiros e
cacheados. Os olhos eram ainda mais verdes à luz do dia, e ela o
estudava como se soubesse seus mais sombrios segredos.
A idéia nao era nada confortável.
Padraic respirou fundo e manteve o sotque britânico afetado e
acentuado.
— Como devo tratá-la, minha querida? Não pode esperar que a
chame de... mãe.
— Não. — Lily deixou a xícara sobre o pires de porcelana. —
Lilianne seria mais apropriado.
— Sim, é claro, Lilianne. — Ele se sentou à mesa. — Soa doce
como uma flor. Lily... lírios!
Qual era o problema com esse homem? Por que mudara tão
radicalmente a forma de tratá-la?
— Não quer morangos, Lilianne?
— Não, obrigada. Estou sem apetite.
— Entendo. Deve ser o luto. — Ele suspirou dramático.
Lilianne bebeu mais um gole do chocolate quente. Ouvira rumores
sobre certos desentendimentos entre pai e filho. Diferenças religiosas,
certamente, agravadas pela decisão do jovem Rafferty de reclamar para
si o título e a propriedade. Tudo perfeitamente legal, mas nada familiar.
Mas Oliver sempre falara bem do filho. E lorde Dunlanoe se
mostrara genuinamente perturbado na noite anterior, ao tomar
conhecimento da morte do pai.
Mas agora era como se estivesse diante de outra pessoa.
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— Quero pedir desculpas por meu comportamento ontem à noite
— ele disse com um sorriso pálido.
— Estávamos muito perturbados, por certo.
— Sim, quando se recebe a notícia da morte do próprio pai... —
Padraic tentou conter as emoções. Não era famoso por seu amor pelo
pai, católico fervoroso. Destituíra o homem de seu título e de sua
propriedade, como bom protestante que era. Mas, é claro, esse homem
era só um mito criado por Padraic e por seu pai para manterem
Dunlanoe na família... e encobrir as nefandas atividades do Rebelde.
Normalmente, Padraic se divertia representando o afetado lorde
Dunlanoe, mas não nesse momento. Tudo que queria era poder chorar
em paz... e descobrir quem tirara a vida de seu pai. Infeliz mente, uma
coisa excluía a outra.
— De qualquer maneira, fui muito rude ontem à noite. Espere que
me desculpe — ele disse.
— Não pense mais nisso. Apenas lamento que tenha retornado de
sua viagem a...
— Londres. Desembarquei do navio em Cork e tomei uma car-
ruagem, mas uma das rodas se partiu no caminho e... Bem, foi horrível.
Tive de caminhar por aquelas estradas sujas e poeirentas, e por isso
cheguei naquele estado lamentável.
— Que horror! E ainda chegou em casa e recebeu a notícia sobre
seu pai...
Padraic viu os olhos de Lilianne se encherem de lágrimas e
admirou-a em silêncio por seu talento dramático.
— Disse a mim mesma que seria forte.
— Por mim? Que maternal!
Maldição! O que estava fazendo? Devia conquistar a confiança da
madrasta, convencê-la a ficar no castelo. Só assim saberia se ela tinha
informações sobre o assassinato de seu pai. Ou sobre o Rebelde. Só
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então a deixaria voltar para casa. Era um jogo, e não podia se esquecer
disso. Lilianne cumpria seu papel, o da viúva enlutada. Ele tinha de ser o
filho afetado, superficial e egoísta. Enfurecê-la não fazia parte de seus
planos.
Lilianne não sabia se o rapaz estava brincando, ou se pretendia
mesmo insultá-la. De qualquer maneira, não tinha interesse em discutir
com ele. Estava cansada e triste, e apesar de ter decidido anteriormente
não pensar em si mesma, não conseguia deixar de se preocupar com o
próprio destino.
Houve um tempo em que chegara a ter esperanças de terminar
sua vida ali, em Dunlanoe. Era tranquilo e seguro, e sentia-se aceita,
contente. Por alguns dias. Mas tudo mudara. O jovem lorde não parecia
ser muito semelhante ao pai.
— Por favor, peço mais uma vez que me desculpe. Estou sendo
rude novamente. Deve ser a dor causada pela irreparável perda... —
Conquistaria a simpatia de Lilianne a qualquer custo. Ela podia ter nas
mãos sua vida e a de muitas outras pessoas, e não queria correr o risco
de desperdiçá-las.
— Nós dois estamos muito abalados. Sendo assim, se me der
licença, creio que vou me retirar para os meus aposentos. Devo redigir
uma carta para meu pai e...
— Não se incomode com isso.
— Como não? Ontem à noite disse...
— Disse muitas coisas, eu sei. Minha jornada foi terrível.
— Sim, eu sei que foi, mas...
— Não é necessário que deixe Dunlanoe.
Era tudo que ela queria. Ficar no castelo. Sabia o que significara
retornar à casa paterna. E, no entanto, não sabia o que pensar do
sorriso gelado que via nos lábios do lorde.
— Pode ficar aqui, certamente, ao menos por algum tempo — ele
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prosseguiu. — Esse teria sido o desejo de meu pai.
Era verdade. Oliver a acolheria em seu lugar, um paraíso seguro e
por isso, provavelmente, perdera a vida. Lilianne tentou não pensar
nisso.
— Como quiser. Obrigada. E agora, se me der licença...
— Fique, por favor. Gostaria de saber mais sobre você. Lilianne
decidiu suportar a incômoda companhia do lorde por mais algum tempo.
— O que deseja saber?
— Como se casou com meu pai, por exemplo.
— Como acontecem todos os casamentos, presumo. Nós nos
conhecemos e decidimos que combinávamos um com o outro.
— Só isso? É essa a bela história de amor?
Lilianne decidiu que não gostava muito do filho de Oliver.
— Nós nos casamos e viemos morar aqui. E então ele foi morto.
O tom de lorde Dunlanoe sugeria uma ligação entre os dois
eventos. Uma relação que ela não podia negar.
— Sim, ele foi morto...
— Ah, isso não importa. Devo dizer que meu pai sempre teve bom
gosto para escolher suas mulheres.
— Muito obrigada, mas duvido que a decisão de Oliver tenha sido
influenciada por esse... bom gosto.
Talvez não, mas ninguém podia negar a beleza de Lilianne.
— Nesse caso, o que promoveu a decisão de meu pai?
— Bondade — ela resumiu. — E era isso que eu mais admirava
nele. E agora, se me der licença, gostaria de me retirar.
Padraic a viu sair da sala e também se levantou para ir à cozinha.
— Ah, então está mesmo em casa, meu lorde. Tenho aqui pão e
presunto para alimentá-lo — disse a sra. Ferguson, sua cozinheira. Ela
colocou um prato sobre a mesa da cozinha.
— Obrigado, Sra. Ferguson, mas acho que não tenho muita fome.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Precisa comer alguma coisa. Deve manter suas forças.
— Há quantos anos diz a mesma coisa, sra. Ferguson?
— Desde que você aprendeu a andar e adquiriu o hábito de vir
visitar minha cozinha, sempre seguido por um ou dois cães. Antes de
partir.
— Meu pai e eu tivemos muita sorte por contarmos com seus
serviços.
— Não. A sorte foi toda minha.
— O que sabe sobre essa mulher que se casou com meu pai?
Estou absolutamente surpreso!
— Sim, também ficamos surpresos. Um belo dia ele a trouxe aqui,
e no dia seguinte eles se casaram diante do padre Samuel.
— Sem nenhuma explicação?
— Não, e não cabia a mim questionar a decisão do patrão.
A sra. Ferguson nunca questionava,as ocorrências em Dunlanoe.
Aceitava as idas e vindas de Padraic, seu comportamento inconsistente,
suas esquisitices, e nunca fazia comentários ou perguntas. Era uma das
poucas pessoas com quem Padraic podia ser autêntico. Seu pai
confiava inteiramente na velha cozinheira, como ele. Mesmo assim,
jamais havia revelado sua identidade secreta. O Rebelde.
A sra. Ferguson serviu chá com mel, e Padraic bebeu um gole da
bebida quente e doce.
— Vou sentir falta dele, sra. Ferguson.
— Todos nós sentiremos, lorde Paddy. Ainda não consigo
acreditar que ele tenha partido.
— Ou que tenha deixado uma viúva.
— Pobrezinha.
— Como ela é?
— Bem, ela me parece bastante doce, para alguém com o toque.
Padraic levantou a cabeça, mas a sra. Ferguson estava de costas
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
para ele, debruçada sobre uma panela.
— Toque?
— Ah, sim... Dizem que ela o tem. E eu acredito nisso.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Mas o que é... o toque?
— A capacidade de cura. Dizem que ela foi tocada por fadas.
Padraic teve de se esforçar para não rir. Respeitava todas a
crenças, mesmo as mais absurdas, mas fadas...
— Ria o quanto quiser, meu lorde, mas ouvi a história.
— Sobre o toque?
— Sobre sua capacidade de curar. A prima de meu marido
Mauve, de Dublin, ouviu dizer que ela ajudou uma mulher no parto.
Todos acreditavam que o bebê havia nascido morto, porque estava
azul como o mar... — Ela ia baixando a voz enquanto falava como
se temesse despertar as fadas e ser castigada por revelai segredos
tão sérios.
— E...?
— E ela o tocou.
— Continue.
— E trouxe o bebê de volta à vida.
— E a prima de seu marido viu tudo isso?
— Não exatamente, senhor.
— Entendo.
— Mas ela ouviu o relato de alguém que viu tudo. E tem de
admitir que lady Lilianne tem a aparência das fadas.
Ela era linda, realmente. Mas nem por isso Padraic acreditava
nessa conversa sobre poder de cura.
Irritado, ele desejou um bom dia à cozinheira e saiu para ir
procurar padre Samuel.
O velho clérigo estava na capela. Construída em uma alcova
em uma das alas do castelo, a pequena capela cheirava a incenso
e sempre despertava nele um sentimento de opressão. Pouco
iluminada e protegida por espessas paredes de pedra, ela havia
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
sido construída para suportar os ataques de bandos de salteadores
e inimigos dos antigos barões de Dunlanoe. O restante do castelo
passara por várias reformulações, mas a capela permanecia como
no início, uma relíquia do passado.
Padraic a visitava raramente.
— Padre Samuel. Gostaria de falar sobre...
O sacerdote o silenciou com um gesto, movendo as mãos
para Instruí-lo quanto às atitudes que devia tomar dentro da igreja.
Era evidente que o homem não percebia que ele havia deixado de
ser católico. Padraic renunciara à Igreja. Sim, tudo era apenas um
disfarce para enganar os ingleses, mas essa era uma parte do
disfarce que não o incomodava em nada. Apesar de ter sido
instruído secretamente na religião católica, sua mente, ou seu
coração, ou qualquer que fosse o órgão responsável pela crença
religiosa de uma pessoa, registrara muito pouco desses
ensinamentos.
Era um protestante declarado, um homem que se empenhava
o máximo, a ponto de arriscar a vida, para ajudar os católicos
perseguidos, mas, pessoalmente, não se sentia inclinado a
nenhuma dessas religiões.
Padraic esperou que o padre concluísse suas orações e se
levantasse.
Os dois se sentaram em um banco perto da porta.
— Veio por seu pai, é claro.
— Sim, padre. Tenho muitas dúvidas.
— Primeiro, deixe-me dizer que ele teve um funeral bastante
adequado.
Católico, certamente.
— onversamos muitas vezes sobre o assunto, e segui todos
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
os desejos de seu pai. Pode ficar tranquilo quanto a isso.
— Eu estou. E também sou muito grato por seu empenho.
Mas esperava que pudesse me dizer alguma coisa sobre como ele
morreu.
— Ora, ele foi alvejado por um tiro. A bala penetrou bem perto
do coração, pelo que ouvi dizer. Não sei quem atirou. Não pude
sequer administrar os últimos sacramentos antes de sua morte.
— Tenho certeza de que suas boas ações o ajudarão a
chegar o Céu.
O padre assentiu e suspirou, e Padraic sentiu uma onda de
ternura pelo religioso. Ele havia sido amigo e confidente de seu pai
por muitos anos, desde que podia se lembrar.
— Há um outro assunto que gostaria de discutir. A esposa de
meu pai...
— Por favor, não posso falar sobre isso.
— Mas deve saber...
— Não devo comentar o que me foi dito no segredo do
confesionário, sir Padraic. Sabe disso.
Bem, por um lado, Padraic se sentia grato por esse dever de
segredo. Tinha certeza de que o padre sabia sobre o Rebelde. Se
pai devia ter confessado.
— Mas se o casamento teve alguma relação com sua morte
então...
— Ele foi encontrado por um de seus colonos. Duvido que a
jovem tenha tido alguma relação com a morte de seu pai.
— Sim, mas por que ele a desposou?
A resposta foi um silêncio gelado.
— Não pode ao menos me dizer o que tem contra ela? É
evidente que não aprecia essa jovem.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Eu mal a conheço. O que me faz lembrar, lorde Dunlanoe
que há muito não ouço sua confissão.
Padraic decidiu que era hora de deixar a capela. Antes disso,
porém, padre Samuel falou mais uma vez sobre o funeral realizado
ao lado do túmulo de sua mãe. A mãe que ele jamais conhecera.
O colono, Regis Kelly, não tinha nada de novo a dizer. Ele
conduzia seu rebanho por um caminho quando se deparou com o
corpo de Oliver Rafferty. Um tiro no peito tirara sua vida.
No final da tarde, sozinho em seu quarto, Padraic removeu a
peruca e a casaca de seda, lavou o rosto e olhou para o espelho
sobre o toucador. Lorde Dunlanoe e o Rebelde o encaravam,
unidos apenas pela dor.
Naquela noite, Coyle e Alison foram visitá-lo. Todos se
sentaram no salão para tomar chá, e o desconforto da reunião fez
Padraic perceber como seria sua vida, caso não se livrasse logo de
Lilianne Tinsley, ou Lilianne Rafferty, como se chamava agora.
Queria conversar com o casal de amigos, mas a formidável
viúva se recusava a deixar o salão. Assim, Coyle e a esposa
anunciaram o momento de partir sem que houvessem trocado uma
única palavra franca.
Depois de acompanhá-los até a porta, Lilianne se retirou para
seus aposentos.
Passava da meia-noite, quando Padraic abriu a passagem
secreta que ligava seu quarto à cozinha, e a cozinha ao estábulo.
Vestido inteiramente de negro e com a cabeça coberta pelo capuz
do manto e o rosto oculto por um lenço de seda negra, ele pôs a
sela em Raven, o garanhão que, de acordo com rumores, não
aceitava ser montado por ninguém. Essa era outra cortina de
fumaça, uma farsa para a afastar eventuais curiosos. Cavaleiro e
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
montaria se entendiam muito bem e, juntos, tomaram a direção do
continente, afastando-se do litoral com seus rochedos escarpados.
A lua iluminava os caminhos. Não era uma noite ideal para o
Rebelde estar vagando por ali, mas pedira a Coyle para ir encontra-
lo, e tinha perguntas demais para ficar em casa esperando por uma
noite sem luar.
Padraic desmontou numa região protegida por árvores
frondosas. Ali, as folhas impediam a penetração da luz da lua.
Coyle já já o esperava no local de costume.
Paddy, quando é que vai me deixar dormir uma noite inteira?
— Oh, entendo... eu o tirei dos braços da mulher amada!
Alison está se queixando?
— Não. Às vezes me pergunto se não devia ser ela a estar
aqui tramando com você. Alison tem fortes sentimentos com relação
aos ingleses.
— E você não?
— Paddy, você sabe que sim. Estou apenas reclamando um
pouco, quando devia estar tentando consolá-lo.
— O que descobriu sobre a morte de meu pai?
— Ouvi rumores de que sir Edwin tenta culpar o Rebelde.
— O quê? E por que o Rebelde mataria meu pai?
— Ele era rico, e talvez o Rebelde quisesse atingir você, não
ele. Quem sabe? Eu não disse que a história fazia sentido. Mas
você conhece o clima. Tudo que acontece por aqui é culpa do
Rebelde. Por que dessa vez seria diferente? Além do mais... de
acordo com Alison, sir Edwin está muito abalado por conta da viúva
Rafferty, e você sabe o que ele pensa sobre o Rebelde.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Por que ele se incomoda tanto com Lilianne?
— Parece que tinha planos de desposá-la, mas seu pai o
superou.
— É difícil acredita nisso. Tão difícil quanto aceitar o que a
sra. Ferguson me contou hoje pela manhã. Dizem que a tal mulher
é... Como foi que ela disse? Ah, sim, ela foi tocada pelas fadas.
— Nunca ouvi nada parecido, mas devo reconhecer que ela
tem uma aparência típica...
— Aparência típica? Por Deus, homem, não me diga que
acredita nisso!
— Não sei se acredito ou não... e não importa. O que vai
fazer? Temos contrabando para vender e...
— Vou deixar esses assuntos com você e os outros, pelo
menos por enquanto.
— E você...?
Boa pergunta. Padraic tinha certeza de que Coyle já
imaginava a resposta.
— Acho que chegou a hora de fazer uma visita a Edwin.
— Talvez esteja certo. Sir Edwin sempre foi um grande amigo
de lorde Dunlanoe. Se souber de alguma coisa, ele certamente lhe
dirá.
— Certamente, e para isso pretendo visitá-lo amanhã
mesmo... como lorde Dunlanoe. Mas eu me referia a uma visita do
Rebelde.
Coyle o encarou como se estivesse diante de uma aparição. A
noite clara, a lua ia alta, e a idéia de se dirigir a winston Hall para
fazer uma visita noturna a sir Edwin White era perigosa, para dizer o
minímo. Mas, no momento, a idéia enchia Padraic de entusiasmo.
Além do mais, por ser tão audaciosa e arriscada, tal visita
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
seria inesperada. E plantaria em Edwin a semente do terror, razão
mais do que suficiente para Padraic levar a idéia adiante. Além do
mais quando lorde Dunlanoe fosse visitá-lo, haveria muito sobre o
que conversar.
Decidido, Padraic montou. O vento agitava seus cabelos e
sua capa negra enquanto ele cavalgava para Winston Hall.
Que descuido de sir Edwin.
Padraic sorriu ao abrir a porta. Sem trancas ou vigias, sem
nenhum tipo de obstáculo a ser superado. Era quase entediante.
Padraic esperou que os olhos se ajustassem à escuridão,
aguçando os ouvidos para identificar qualquer sinal de aproximação
ou perigo. Depois, caminhando com passos silenciosos, afastou um
pouco as cortinas e empunhou a faca que levava no cano da bota.
Era fácil demais.
A cama sobre um pedestal era cercada por cortinas, e ele
levantou-as com cuidado, esperando encontrá-lo sozinho. Não
queria matar de susto uma pobre protistuta no cumprimento de seu
ofício. Felizmente, Edwin estava sozinho.
— Vamos, acorde e veja quem está aqui. — disse,
aproximando a faca do pescoço de Edwin para impedi-lo de gritar
por socorro. Ele abriu os olhos e sufocou um grito. A lâmina fria
pressionava sua pele.
— O que... o que você quer?
— o que eu quero? Isso é jeito de falar com um visitante?
— Você não é meu convidado, Rebelde. Não passa de um...
aiiiiiiiiiiii!
— Ora, ora... Por acaso cortei você? Por Deus, a faca deve
ter escorregado. Isso sempre acontece quando não sou bem-vindo.
Bem, parece que você precisa de um curativo, e eu odeio sujeira.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Talvez deva coletar sua generosa doação e me retirar.
— Doação? Do que está falando? Estou perdendo sangue!
Pelo amor de Deus!
— É só um arranhão. Agora vejamos... Onde acha que posso
encontrar algum ouro por aqui?
— Não guardo moedas em casa. Não há nada...
— sinto meus dedos escorregando novamente. Não tem idéia
de como me sinto cansado quando tenho de empunhar a faca por
muito tempo. E ainda sou forçado a olhar em volta, tentando
identificar um eventual esconderigo... Ah, não há como prever o que
pode acontecer.
— Não, não! Eu digo... Por favor, não me machuque mais!
Padraic virou o rosto para esconder um sorriso. Fácil.
— Muito bem, fale de uma vez, então. Estou perdendo meu
tempo.
Edwin se virou para abrir um baú ao lado da cama. Ele tentou
retirar alguma coisa do baú, mas Padraic o impediu.
— Ei, ei, deixe-me dar uma olhada nisso. O que temos aqui'
Uma pistola? Estava pensando em usá-la contra mim?
Edwin encolheu-se ao ver o cano da arma apontado em sua
direção.
— Está engatilhada e carregada! Muito astuto. Todo cuidado é
pouco quando o Rebelde está à solta.
— Não estará por muito tempo, juro! Cuidarei para que seja
enforcado por isso!
— Palavras corajosas para quem está diante do cano de uma
pistola. Bem, você nunca foi muito esperto. Agora, vou aliviá-lo do
excesso de ouro. — Padraic guardou dois sacos nos bolsos —
Pensando bem, creio que vou levar tudo. O povo da Irlanda saberá
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
apreciar a devolução de dinheiro ganho com tanto trabalho e
esforço.
— Não vai escapar ileso. Por que não mostra o rosto,
covarde?
— Ah, é meu rosto que desperta seu interesse. — Padraic
aproximou-se dele. — Não creio que gostaria realmente de vê-lo,
por que, nesse caso, eu seria forçado a matá-lo. Por favor, sente-se
ali e fique quieto. Isso, assim mesmo.
Padraic colocou-se atrás da cadeira e, usando um lenço que
retirou do cinto, amordaçou Edwin.
— Como pode ver, não sou completamente egoísta. Vou lhe
deixar algo em troca de tudo que fez por mim. Suas mãos, por
favor. Atrás da cadeira.
Depois de amarrá-lo, Padraic partiu. Era difícil conter o riso
diante da imagem patética de Edwin se retorcendo e gemendo, seu
rosto vermelho como se fosse explodir. Mal podia esperar para
retornar como lorde Dunlanoe e ouvir o que sir Edwin White teria a
dizer sobre o visitante noturno.
Lilianne olhava para o mar e para a lua. Erguendo os braços,
encheu os pulmões com o ar salgado do litoral. A noite era suave, e
a escuridão a envolvia como um casulo protetor. Não havia olhares
curiosos, perguntas inoportunas, dedos acusadores ou súplicas por
sua ajuda.
Às vezes, não sabia o que era pior: os que criticavam seu
dom, chamando-a de estranha ou coisas piores, ou os que
acreditavam, demais nele, os que esperavam demais dessa sua
habilidade.
Porque nem sempre podia dar a eles aquilo que esperavam
dela.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Não pudera ajudar Oliver, e havia tentado, embora já o
houvesse visto morto. Pusera suas mãos sobre o corpo inerte e
clamara pela ajuda dos seres preciosos para salvá-lo. Fechara os
olhos, e quando uno sentira nenhum poder inundando sua alma,
havia tentado curá-lo por conta própria.
Mas nada acontecera. Porque não era ela quem curava. Há
anos entendera que era apenas um instrumento para a atuação dos
poderes curadores. Não tinha controle. Era como um recipiente que
se enchia e esvaziava. Mais nada. E às vezes tinha de ver seus
rules queridos, aqueles que não eram escolhidos, morrerem.
E depois via a acusação nos olhos daqueles que haviam
pedido sua ajuda.
Pelo menos com Oliver fora poupada disso. Ninguém
testemunhara seu fracasso. Seu filho não estivera presente. Lorde
Dunlanoe. Lilianne não o entendia, mas podia jurar que ele não
gostava dela. E sabia que suas razões não eram as da maioria.
Porque ele parecia desconhecer o dom, ou a maldição que a
distinguia de outros seres humanos.
Lilianne caminhou ao longo do precipício. Estava descalça, e
de vez em quando pisava em um pedregulho e lamentava a própria
impetuosidade.
Mas quando despertara do pesadelo, sua única vontade havia
sido a de escapar do confinamento de seu quarto no castelo. Tivera
tempo para pegar um xale, e sentia-se confortável caminhando livre
pela noite morna e clara. Ela se voltou para o mar e ergueu os
braços novamente, deixando-se abraçar pela brisa.
Tão envolvida estava com a natureza, que nem ouviu o som
de cascos contra o solo. Quando percebeu a aproximação, o
garanhão negro já estava atrás dela.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Sobre o animal, sombrio a ponto de misturar-se com a noite
havia um homem... ou um demônio, não saberia dizer com certeza
Inteiramente vestido de negro, ele desmontou e deu alguns passos
em sua direção. Seu rosto estava coberto por uma máscara, e uma
capa longa disfarçava os contornos de seu corpo atlético. A ima
gem era assustadora.
Ouvira falar sobre o Rebelde. Ele era temido ou reverenciado
dependendo da posição financeira e política do indivíduo em
questão. Sua fama, antes restrita à Irlanda, já havia invadido a
Câmara dos Lordes. Seu pai, por exemplo, era obcecado pela idéia
de leva] o patife à justiça e, por consequência, à ponta de uma
corda.
— O que faz aqui em uma noite como esta?
O receio que sentira ao vê-la ali com os braços erguidos dava
um tom furioso à voz de Padraic. Quem não teria pensado em
fantasmas diante de uma visão tão etérea? De sua parte, acreditava
apenas naquilo que podia ver. Nunca acreditara em fadas ou fan-
tasmas, ou em quaisquer outros vestígios dos antigos celtas. Mas a
visão da mulher loira e esguia com os braços erguidos para as
brumas chegara a abalar sua convicção. As palavras da sra.
Ferguson ecoaram em sua mente. Mas não... Essa mulher não era
tocada pelas fadas. Porque não existiam fadas. Ela era uma mulher
como qualquer outra.
E o que fazia ali no meio da madrugada?
Espionava-o, possivelmente? A farsa daquela manhã não a
enganara? Era como se os olhos profundos pudessem ler sua alma.
— Repito minha pergunta, senhora. O que faz aqui a esta
hora?
— Eu poderia perguntar a mesma coisa. — Por que se
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
portava com tamanha ousadia, justamente agora, quando precisava
parecer passiva para sobreviver?
— Senhora, as regras sociais exigem que eu responda com
cortesia a todas as perguntas de uma dama, mas não sigo regras
sociais. Sendo assim, tenho todas as vantagens. Sou maior, mais
veloz, e estou armado. — E sabia que ela não estava, porque podia
ver nitidamente os contornos de seu corpo através do tecido
transparente de sua camisola clara. A reação de seu corpo foi
previsível, mas lembrar que ela era a viúva de seu pai ajudou-a a
recompor-se. Repito: o que faz aqui no meio da noite?
— Eu... não conseguia dormir. — E agora mal conseguia res-
pirar. — Gosto de caminhar nas noites de lua cheia. A hospedaria
estava muito cheia... — Por que falava em hospedarias? Porque o
Rebelde era amigo dos pobres e desfavorecidos? Sim. Não era
essa a essência da lenda sobre o moderno Robin Hood?
Ele odiava os ricos. Roubava-os e, em algumas situações, até
os assassinava. Por isso mentia. Temia pela própria vida.
— Vive em uma hospedaria? — Padraic insistiu admirado.
Como alguém podia mentir com tanta naturalidade?
— Sim, com sete irmãos. Todos roncam muito! Tanto, que às
vozes não consigo ouvir meus próprios pensamentos.
— Então, saiu para caminhar e veio até aqui, nos
penhascos... descalça...
— Não tenho sapatos.
— Ah, entendo...
— Os penhascos me acalmam. — Era impossível parar de
falar, Interromper o conto mentiroso. — Aqui, não penso tanto na
fome que me atormenta.
— Também não tem alimento? — Muito pouco.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Mentirosa! Padraic não acreditava nos absurdos que ouvia.
— Não parece estar mal alimentada. Quem é esse pai que
não alimenta a própria filha? Talvez eu deva ir visitá-lo. Imagino que
ele tenha um estômago muito grande, como o de seus nove irmãos.
— Não faça isso!
— Por que não?
— Bem... meu pai é tão magro quanto eu... e meus irmãos.
— Seus nove irmãos?
— São sete.
— Ah, sim. Foi isso que disse.
— Somos muito pobres. Não se incomode conosco.
— Sabe quem sou eu? Já ouviu falar no Rebelde?
— Sim, ouvi falar em você.
— Então, deve saber que os pobres são minha causa. Devo
ajudar sua família.
— É muito bondoso, mas...
— Não, não, eu insisto. Onde mora? Na hospedaria, mas
qual? Quero conversar com seu pai.
— Não será possível.
— Não? Por quê?
— Ele é surdo. — Por Deus, de onde tirava tantas mentiras?
— Surdo? — Padraic sentia vontade de rir.
— E é mudo, também.
— Mudo? Quanto infortúnio!
— De fato, é muito triste.
— Triste... Fico me perguntando como ele consegue vesti-la.
Mas seus irmãos podem se comunicar comigo, não? Ou é a única
em sua família capaz de falar e ouvir?
Lilianne suspirou. Em que confusão se metera!
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Não. Meus irmãos falam.
— Mas não com a mesma graça exibida por você, presumo.
Lilianne calou-se. O Rebelde a segurava pelo braço e a conduzia
para o sul, na direção de Dunlanoe. Tentar resistir seria inútil
perigoso, por isso ela se deixou levar. Temia que ele descobrisse
sua identidade, especialmente depois de tantas mentiras. Precisava
fazer uma última tentativa.
— Agora devo voltar, antes que sintam minha falta.
— É claro. Não queremos que seu pai grite com você.
— Ele não poderia gritar.
— É verdade. Eu havia esquecido... Seu pai é mudo. Bem,
talvez eu deva levá-la para casa. Afinal, sou um cavalheiro.
— Pensei que não seguisse regras sociais.
— Foi o que eu disse, não? — ele sorriu.
— Sim, foi o que disse. Mas não preciso de companhia para
voltar para casa.
— Nesse caso, talvez aceite isto.
Ele retirou uma bolsa de um bolso interno da capa e colocou-a
na mão de Lilianne.
— O que é isto?
— Dinheiro. Vai servir para manter sua família. Poderá
comprar comida e, com sorte, talvez até encontre um bom médico
para seu pai.
— Não posso aceitar. — Pelo peso da bolsa, devia haver
muito dinheiro dentro dela. Que inglês havia sido saqueado dessa
vez?
— É claro que pode. Eu é que não poderia dormir sabendo de
suas dificuldades e de minha incapacidade para ajudá-la.
— É muita generosidade, mas...
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Por favor, não diga mais nada. A expressão em seu rosto é
prova da sua gratidão. Por outro lado... Bem, talvez possa me dar
algo em troca.
— O quê? — Lilianne sentiu um arrepio de medo. — Não
tenho nada!
Ele sorriu, fazendo seu coração bater mais depressa.
— Não é verdade. Tudo que desejo é um beijo, senhora...
— Lily.
— Senhora Lily. Não estou pedindo demais.
— Senhor, eu... — Queria dizer alguma coisa que o detivesse,
mas não tinha palavras. O calor do hálito úmido em seu rosto a
desorientava.
Ele se aproximou ainda mais, e a escuridão a envolveu. Os
lábios sobre os dela eram quentes, firmes, e pareciam ter o poder
de roubar-lhe o fôlego. Sentia-se tonta, sem ar, e tentou retê-lo ao
sentir que ele se afastava, uma reação que gostaria de poder
atribuir ao receio de cair, mas que, sabia, era apenas a expressão
do desejo de prolongar o beijo.
Ele a estava deixando. Sem descobrir sua identidade. E a
deixava com uma pequena fortuna em ouro. O Rebelde montou e
desapareceu na noite.
Lilianne ficou onde estava, incapaz de acreditar que estava
salva. De repente, ela começou a correr. Quando chegou ao
castelo, linha os pés cansados e doloridos, mas não dava atenção
ao incômodo. Sozinha em seus aposentos, ela acendeu uma vela e
respirou fundo, tentando acalmar as batidas do coração. Não sabia
se estava arfante pela corrida ou pelo encontro com o Rebelde. Ou
pelo beijo que haviam trocado.
Lilianne abriu a bolsa e a esvaziou sobre o toucador.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Conforme havia imaginado, havia ali uma pequena fortuna em
moedas de ouro.
Mas não eram as moedas que a enchiam de espanto. O couro
da bolsa exibia uma marca. Um selo.
O selo de sir Edwin White.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
CAPÍTULO III
A mosca caíra na teia. Padraic sorriu e disse ao lacaio que
anunciara a presença de sir Edwin para conduzi-lo ao salão, onde
iria recebê-lo.
— Oh, e peça a lady Lilianne para ir se juntar a nós —
acrescentou.
Na verdade, queria vê-la. Havia decidido tratá-la com mais
cordialidade, e começaria no dia seguinte, depois da visita de
Edwin.
Padraic terminou de comer o pão doce em seu prato, divertin-
do se com a idéia de fazer Edwin esperar. Depois bebeu o chá,
limpou os lábios com o guardanapo de linho, e só então se levantou
para ir receber o visitante. No corredor, olhou-se no espelho e
decidiu que sua imagem era suficientemente revoltante e, satisfeito,
seguiu em frente, praguejando contra o maldito Príncipe enquanto
caminhava mancando.
— Ah, aí está você, Edwin. E Lilianne, também. Conheceram-
se agora?
— Onde estava, Padraic? Estou aqui há quase meia hora!
— De fato? Que horror! Vou ter de conversar com a criada-
gem. Mas vejo que teve o prazer da companhia de minha querida
madrasta.
Edwin não disse nada. Apenas bebeu um gole da bebida
contida no cálice em sua mão. E sua mão tremia.
— Não acha que é um pouco cedo para conhaque, Edwin?
— Veja quem fala! — Ele deixou o cálice sobre a mesa e
levantou. — Podemos conversar, Padraic? Em particular?
— O que quer que tenha para dizer pode ser dito...
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Com licença, cavalheiros. Prefiro me retirar — Lilianne
interrompeu.
Padraic notou a palidez da jovem viúva. Mesmo sem entender
o que a levara a se casar com seu pai, tinha de reconhecer que
Edwin era um depravado. Não desejaria a má sorte de tê-lo com
marido nem mesmo para a filha de lorde Robert Tinsley.
— Se prefere sair... — disse.
— Obrigada. — Lilianne inclinou a cabeça e repetiu o gesto
para Edwin.
Assim que ficaram sozinhos, Padraic encarou-o.
— Parece um pouco aborrecido.
— Aborrecido? Não imagina o que aconteceu comigo! E
quando souber... — Ele pegou o cálice sobre a mesa e foi se servir
de mais conhaque da garrafa sobre o console da lareira. — Estou
certo de que ficará tão perturbado quanto eu estou.
— O que pode ser tão terrível? Que notícias tão excitantes o
tiraram da cama tão cedo?
Edwin bebeu mais conhaque e voltou a se sentar no divã
onde Lilianne estivera até pouco antes.
— Já ouviu falar no Rebelde?
— Quem não ouviu? Pensar nele me põe nervoso a ponto de
me deixar à beira de uma apoplexia! Mas o que fez o vilão? Oh, não
me diga! Ele roubou suas ovelhas!
— Pior. O bastardo esteve em meus aposentos ontem à noite.
— Em seus aposentos? Mas... como sabe disso?
— Eu estava lá, idiota!
— Não! — Padraic arregalou os olhos. — Como pode ser? Já
sei! Alguém deteve o facínora antes que ele invadisse seu quarto.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Acabei de dizer que ele esteve em meus aposentos.
Ninguém o deteve ou soube que ele estava lá. Eu lhe digo, Padraic,
o sujeito é como um fantasma atravessando paredes.
— Acha que ele é capaz disso?
— É claro que não! Falamos de um homem como outro
qualquer.
— Mas você parece estar muito perturbado. Mais uma dose?
— Por favor... Ouça, temos de fazer alguma coisa contra esse
homem. Caso não tenha percebido, você pode ser o próximo.
— Eu? O que esse homem horrível poderia querer comigo?
— O mesmo que queria comigo. Roubar. Matar.
— Ora, francamente, Edwin! Você está vivo!
— Isso não quer dizer que ele não seja capaz de matar... ou
que já não tenha matado.
— Edwin, agora está me assustando.
— Melhor assim. Há rumores de que o Rebelde matou seu
pai.
— Realmente?
Edwin continuou falando, embriagado ou assustado demais
pura perceber a mudança no tom de Padraic.
— Sim, é o que estão dizendo. Eu ofereceria minhas
condolências, mas sei que não nutria grande carinho pelo homem.
— Entendo. — Nunca havia sido tão difícil manter a farsa.
Estava tão furioso, que desejava arrancar a peruca, erguer os om-
bros e avançar contra Edwin, Mas, sob a fúria, ainda havia uma
medida de razão. Para encontrar o assassino do pai, tinha de
continuar personificando o Rebelde, e para isso devia sustentar a
farsa.
— Quem são essas pessoas que acusam o Rebelde pela
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
morte de meu pai?
— O quê? Oh, não sei... É só um boato.
— Entendo.
— Não pode estar pensando em vingança. Você o
desprezava!
— Eu? Deve estar brincando! Falar sobre o Rebelde é
suficiente pura me deixar apavorado!
— Hum. Mesmo assim, não podemos deixá-lo impune.
— Por ter matado meu pai, ou por ter ido visitá-lo?
— Isso importa? Ele nos causou grandes problemas. O
Rebelde deve ser detido! — Edwin esvaziou o cálice.
Padraic assentiu, encheu novamente seu copo e sentou-se.
Sua Intenção havia sido amedrontar Edwin para... para quê?
Arrancar dele uma confissão pela morte de seu pai? Improvável, ao
menos por enquanto.
Mas havia outras áreas de interesse. A adorável Lilianne.
Padraic suspirou.
— Por mais que desprezasse meu pai, ainda acho que sua
morte é lamentável. Ele havia acabado de se casar com uma
mulher jovem, atraente...
— Bah!
— Não a considera atraente? Ela é um pouco pálida, mas...
— A mulher é uma bruxa.
— Uma bruxa? Deve estar brincando.
— Não brinco com essas questões tão sérias. Ela é possuída,
em seu lugar eu ficaria atento.
— Hoje você está realmente assustador. Mas, por favor, satis
faça minha curiosidade. O que fez a pobre Lilianne para merece tal
condenação... ou lisonja, dependendo do ponto de vista?
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Está debochando de mim, Padraic! Acha que estou
embriagado demais para perceber? Ouça o que eu digo: ela vai
usar seu encantamentos contra você.
— Sei que é sincero comigo, mas... Ora, Edwin, acaba de
conhecer essa mulher! Como pode saber tais coisas?
— Você faz perguntas demais. Use-a, se for preciso, mas não
espere favores dessa mulher.
— Depois de ouvir o que disse, prefiro ficar bem longe da
jovem viúva.
Eram amigos. O filho de Oliver e Edwin. E por que estava
surpresa com isso? Talvez fosse desapontamento. Ela olhou pels
janela. Com o auxílio do cocheiro, lorde Dunlanoe acomodou Ed win
em sua carruagem. O visitante partia visivelmente embriagado,
estado em que, infelizmente, já o vira antes.
Lilianne afastou-se da janela. Não queria ver mais nada. Er;
suficiente saber que não teria de voltar com ele para Winston Hall.
pelo menos por enquanto. Não suportaria tal destino. E quando
entrara no salão e o vira sentado esperando por Padraic, chegara a
acreditar que esse seria o desfecho da inesperada visita.
Não que ele ainda a quisesse como esposa. Por outro lado,
matrimônio nunca havia sido seu primeiro interesse. Edwin tinha
apenas um interesse nela. Ou dois, Lilianne reconheceu com
desgosto. E o maior deles era ser curado.
E isso era algo que não podia fazer.
E agora, o que devia fazer? Escrever para o pai pedindo
permissão para voltar para casa? E ele a aceitaria, se assim
agisse? Ou Insistiria para que cumprisse a promessa de se casar
com Edwin?
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Uma hora mais tarde, ainda sem ter encontrado a resposta,
Lilianne foi informada de que lorde Dunlanoe solicitava sua
presença no salão.
Ele estava ao lado da janela, de costas para a porta. A luz do
sol iluminava sua silhueta. Não era possível ver a peruca, o rosto
empoado ou as roupas exuberantes e, por um breve instante, ele
pareceu ser muito diferente do homem que ela tanto detestava.
Lilianne piscou.
Padraic virou-se, levou o lenço de renda ao nariz e piscou.
Voltou a ser quem realmente era.
— Ah, aí está você, Lilianne. Sente-se aqui.
Ela o assustara entrando sem se anunciar. Estivera olhando
para as colinas, onde seus pais jaziam no descanso eterno.
Refletia sobre o dia em que fora enviado de Dunlanoe para a
Inglaterra, onde havia sido educado. Pouco antes de partir, ele e o
pai haviam visitado o túmulo de sua mãe.
— Não deve nunca esquecer que Dunlanoe é sua herança —
seu pai dissera.
Então, por que precisava partir? Aos oito anos de idade, a
questão parecera simples. Não compreendia por que tinha de
abandonar o lugar que mais amava no mundo, a única família que
tinha. E seu pai não pudera dar explicações. Anos depois,
compreendera que a única maneira de preservar tudo que tinha era
fingir ser alguém que não era.
Sonhar acordado era um luxo a que não podia se entregar.
Não com lady Lilianne morando na casa.
— Queria me ver por alguma razão específica? — Se Edwin a
queria de volta, precisava saber.
— Apenas para ver seu belo rosto.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
A resposta rápida era muito próxima da realidade, mas
também estava curioso. Ela havia encontrado o Rebelde na noite
anterior. E não dissera nada. Interessante. Ficara apavorada o
bastante para mentir e tremer. Sentira os ecos de seus arrepios
quando a beijara.
Um beijo que não passara de uma grande tolice.
— O que está achando de seus aposentos?
— Confortáveis. Tem certeza de que não prefere ocupá-los?
— Não, não. Deve ficar onde foi acomodada quando meu pai
era vivo. Meus aposentos são muito satisfatórios. — Sem falar que
precisava do túnel secreto.
— Bem, na verdade, estava pensando se... Se poderia ser de
alguma serventia, já que planeja manter-me aqui.
— Serventia? Não entendo...
Ele não questionou sua afirmação quanto a mantê-la no
castelo. Lilianne quase deixou escapar um suspiro de alívio.
— Bem, durante o tempo em que minha mãe esteve doente,
eu cuidei da casa e de meu pai.
— Ocupou o lugar da senhora da casa, então?
— Exatamente. Sei que sou pouco mais que uma hóspede
aqui, mas como não tem esposa, pensei que poderia...
— Era a senhora da casa de meu pai?
— Estive aqui por pouco tempo antes de ele morrer.
— Entendo.
— Se não gostou da idéia...
— Não, não... Seria ótimo. Isto é, se você quiser, é claro.
— Eu quero. E também pensei que poderia ajudar com o
jardim. Plantar ervas, se não se incomodar.
— Ervas? Sim, sim, é claro. Como quiser.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Ela se manteria ocupada e fora de seus assuntos.
— Minha conversa com sir Edwin foi muito interessante. Ele
estava... agitado.
— Realmente? E ele disse por quê?
— Oh, sim! Parece que recebeu um visitante ontem à noite.
Lilianne relaxou.
— O Rebelde.
— Quem?
— Deve ter ouvido falar no lendário mascarado. Ele vaga pela
noite, roubando dos ricos para dar aos pobres.
— Ouvi histórias — ela conseguiu murmurar.
— Bem, de acordo com nosso bom amigo sir Edwin, essas
histórias são verdadeiras. Ele jura que o homem esteve em seu
quarto ontem à noite.
— De fato? E o que mais disse sobre o Rebelde?
— O que mais? — Ele fingiu desinteresse. — Bem, várias
coisas.
— Ele foi roubado?
— Sim. E deve ter sido uma grande soma.
Lilianne podia imaginar. Parte dessa fortuna estava escondida
em seus aposentos, sob o colchão.
— É claro que ele jurou vingança.
— É claro.— Precisava pensar em um meio de esconder
melhor aquela bolsa.
— Ele jura que terá a cabeça do Rebelde e de qualquer
pessoa que o ajude em suas façanhas. Planeja trazer tropas
britânicas para ajudá-lo na captura. Está se sentindo mal, Lilianne?
— Sim, mas...
A resposta foi interrompida por batidas na porta. Coyle entrou
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
antes que o lacaio pudesse anunciá-lo. Ele parecia surpreso por ver
Lilianne.
— Ah, Coyle, chegou bem a tempo de participar da nossa
conversar sobre aquele horrível vilão, o Rebelde.
— Falavam sobre o Rebelde? — Coyle sentou-se.
— Sim. Ele esteve na casa de sir Edwin ontem à noite. E
roubou muito dinheiro.
— Que... infelicidade para ele.
— Realmente. Receio ter assustado a querida Lilianne com
essa conversa.
— Não se incomode — ela disse.
— Bem, pelo que Edwin disse, acho que eu devia estar
apavodo — Padraic suspirou.
Coyle sugeriu que Padraic o acompanhasse em um passeio
pelos penhascos, e os dois se despediram de Lilianne.
— Perdeu o juízo? — Coyle começou agitado assim que
passaram pela porta. — Tem idéia do perigo que está correndo?
— Acalme-se, por favor. Lilianne pode estar nos observando
pela janela.
— Bobagem! Ninguém pode nos ver aqui. E, mais importante
é impossível ouvir o que estamos dizendo.
Ele estava certo, ou Padraic jamais teria escolhido esse
momento para falar sobre as aventuras do Rebelde na noite
anterior.
— Você sabia que eu pretendia ir à casa de Edwin, Coyle.
— Sim, e nunca concordei com essa idéia absurda. De que
adiantou se expor a tão grande risco? Você já havia reconhecido
que ele não diria nada sobre a morte de seu pai.
— Isso era o que eu pensava. Mas ele teve a audácia de
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
acusar o Rebelde.
— Ora, o Rebelde é acusado por tudo, de donzelas deflorada
a dias chuvosos. Sabe disso, não?
— Sim, e... não tive nada a ver com o bebê de Nora Blaney.
— Oh, mas poderá dizer o mesmo de Lilianne Rafferty?
— Lilianne? Do que está falando?
— Não me contou que a encontrou no penhasco ontem à
noite
— Mas não aconteceu nada que possa resultar em um bebê,
eu garanto. Além do mais, a mulher já se casou. — Com seu pai...
— Mas não foi casada por tempo suficiente para ter um bebê.
— E daí? Isso não muda os fatos.
— Que fatos?
— Está brincando com fogo, Paddy. Acha que não percebo?
— Não percebe o quê? Coyle, está agindo como uma velho
outra vez.
— Diga o que quiser, Paddy, mas eu vi como olhava para ela
— Quem?
Coyle não respondeu. Padraic sabia bem de quem estava
falando.
— Ela é linda, Paddy, e sei que mulheres bonitas são seu
fraco Mas deve lembrar quem ela é.
— Sei bem quem ela é e quem é o pai dela.
— Não pode se expor ao risco de ser reconhecido.
— Edwin estava preocupado demais com algumas gotas de
sangue para me reconhecer.
— E Lilianne?
Lilianne.
Naquela noite, Padraic sentou-se diante dela na sala de
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
música e pensou se teria sido reconhecido. Diria que não. Mas não
apostaria sua vida nisso.
Além do mais, não era apenas sua vida que estava em jogo
ali. Tinha de pensar em Shamus, Alison, Coyle, e na tripulação do
The Rebel's Pride. Embora participassem apenas do contrabando,
se Padraic caísse... Bem, não havia como saber quais seriam as
ramificações.
Lilianne havia sido enviada para espioná-lo? Coyle
considerava a possibilidade, e até Padraic a julgava possível. Por
que mais ela estaria ali?
Precisava ser cuidadoso. Não dissera nada a Coyle, mas ela
o atría. E a idéia não era das melhores. Não mesmo.
— Sabe tocar? — Padraic apontou para a arca em um canto
da sala. — É muito aborrecido ficar sentado aqui sem nenhum
entretenimento.
— Não sou grande musicista. O tutor contratado por meu pai
nunca escondeu seu desapontamento comigo.
— Não pode ser tão ruim! Por favor, toque. E cante, também.
Preciso me distrair.
Resignada, Lily levantou-se e caminhou até o instrumento.
Padraic também se levantou, mas não a acompanhou. Em vez
disso, sentou-se ao lado da janela, cercando-se pela escuridão.
Lilianne preferia assim. Não apreciava o código de vestuário
do filho de seu falecido marido, e quanto menos tivesse de vê-lo,
melhor. Ela começou a tocar.
Padraic pensou que já ouvira coisas bem piores. E melhores,
também. A verdade era que não havia nada de inspirador na
música. Não tinha importância. Normalmente, não passava suas
noites ouvindo melodias harmoniosas. Raramente passava a noite
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
como lorde Dunlanoe.
Antes de Lilianne, quando o pai era vivo, costumavam
dispensar os criados, retendo apenas Shamus, que sempre os
acompanhava à biblioteca. No aposento privado, jogavam xadrez,
falavam sobre o clima político ou liam.
Sentia falta dessas noites ao pé da lareira.
De repente, as notas extraídas da harpa soaram mais
harmoniosas e delicadas.
— Recebeu alguma instrução especial para tocar instrument"
de corda?
— Não. Na verdade, sempre tive um interesse especial pela
harpa.
O novo som o atraiu para o canto da sala onde ficava o
instrumento.
— A harpa...
— É linda! — ela suspirou.
— Foi de minha mãe.
— Oh... Desculpe-me. Não devia ter sido tão presunçosa.
— Não, por favor! Ela gostaria de saber que alguém aprecia
sua harpa.
— Sua mãe tocava bem?
— Não sei. Ela morreu quando eu era um bebê. Mas meu pai
sempre elogiava seu talento musical. Mesmo depois de tantos ano
sempre manteve a harpa afinada.
— Ele a amava muito.
Padraic encarou-a, e por um momento esqueceu que ela
também havia sido esposa de seu pai. A força daqueles olhos o
hipnotizava. Seria capaz de fitá-los para sempre. E poderia...
Padraic desviou o olhar, percebendo que o coração batia d
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
pressa e a respiração era arfante. O que estava acontecendo? No
malmente, não se deixava abalar por olhos luminosos e rosto
delicados. De que estavam falando? Oh, sim, de amor.
— Suponho que sim — respondeu, voltando à cadeira. Estava
quase chegando, quando se lembrou do olhar afetado de lorde
Dunlanoe.
Maldição! Acabaria se traindo.
— Lilianne, acho que vou... — Planejava se retirar, mas o so
envolvente da harpa o interrompeu. Ele se sentou e calou.
Ela começou a cantar. Era uma história de amantes, um
inglês e uma irlandesa. Tristão e Isolda. Ouvira a história antes,
mas nunca cantada com tanta sensibilidade. Invejava a harpa pelas
carícias daquelas mãos delicadas.
A música chegou ao fim. O aplauso quebrou o encanto.
Surpreso, lorde Dunlanoe olhou para a porta e viu quase toda
a criadagem reunida, fascinada e emocionada.
Até Shamus tinha o rosto molhado, embora, mais tarde,
negasse as lágrimas.
— Afirmo que ela é do mundo das fadas — ele disse
enquanto pendurava a jaqueta amarela no cabide.
— Esteve conversando com a sra. Ferguson?
— E se estive? Tem de admitir...
— Só porque ela sabe tocar harpa?
— Ela não tocou a harpa. Ela a enfeitiçou! Você viu.
— Vi uma bela mulher executando uma melodia...
— Uma canção irlandesa.
— Que seja. Uma canção irlandesa.
— Por que insiste em negar o que viu com seus próprios
olhos? É teimoso demais para confessar um erro? Ela pertence ao
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
mundo das fadas, ou meu nome não é Shamus 0'Hare.
— Ele morrerá sem você, e só tem cinco anos de idade!
— Sra. Ferguson, por favor! E claro que farei tudo que puder
por seu neto. Se me disser onde ele está, mandarei vir um médico
da cidade. — Talvez houvesse encontrado um bom uso para o
dinheiro escondido em seu quarto.
— Nenhum médico poderá salvá-lo. Ele precisa da sua ajuda,
milady. Do seu poder de cura.
— Sra. Ferguson...
— É dinheiro que quer? Ou o meu trabalho?
— Não! Eu só... Não posso fazer o que me pede.
— Não pode... ou não quer?
Lilianne caminhou pela sala onde ficavam guardados os
lençóis, as toalhas e outros tecidos do castelo. A sra. Ferguson a
chamara ali para fazer seu pedido.
— Não posso. Essa idéia de que tenho o poder...
— Vai me dizer que nunca curou ninguém?
— Não é isso. Mas... Isso foi há muito tempo. — Antes de
tentar curar a própria mãe. E ter fracassado.
— Não estamos falando de uma habilidade que se pode
esquecer, mas de um dom. Ouvi você tocar ontem à noite.
— Foi só uma canção. E se algum dia tive um dom, ele me foi
tirado. Escute, já tentei... Tentei, e foi em um momento em qua
nada era mais importante no mundo do que poder curar alguém. E
não consegui. Não tenho esse poder. Não mais.
— Mas...
— Deixe-me providenciar um médico. E remédios. Deve have
algum no castelo. Mostre-me onde estão, e iremos juntas visits seu
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
neto.
— É inútil. O menino morrerá.
— Podemos dar a ele algum conforto.
No final, ela praticamente ordenou à governanta que abrisse
armário dos remédios. Depois, Lilianne enviou um criado à cidade e
ordenou que uma carruagem fosse preparada. Durante todo esse
tempo, pensou que lorde Dunlanoe poderia considerar suas
atividades um pouco ortodoxas. Mas ele saíra para passar o dia
todo fora, talvez mais tempo, e não deixara nenhum recado ou
aviso. Não que tivesse de dar satisfações, é claro. Não a ela.
Naquela manhã, quando fora fazer seu desjejum, Shamus a
informara sobre a saída de seu senhor. Só isso.
Melhor assim. Ele não era uma companhia agradável. E,
felizmente, obtivera sua autorização para atuar como senhora da
casa e agora se sentia à vontade para tomar decisões.
A carruagem seguia pela estrada de terra. Lilianne olhou pela
janela e viu, pela primeira vez, o território além do parque d castelo.
Os campos eram produtivos, e os agricultores pareciam mais
prósperos do que ela havia imaginado.
— Nosso senhor nos trata bem — comentou a sra. Ferguson
como se pudesse ler seus pensamentos. — Há sempre alimento um
lugar confortável para repousar a cabeça.
— É bom saber disso.
— Alguns não gostam dele por conta de seu relacionamento
com o antigo senhor.
— Por quê? - Ele tomou do pai a terra e o título. Não sabia?
— Sim, acho que sabia. — Oliver mencionou que o castelo
pertencia ao filho, como o título, mas nunca acusara lorde Dunlanoe
de nada.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Mas ele tem sido bom para nós. E também foi bom para
seu pai, que Deus o abençoe.
Isso parecia ser suficiente para a sra. Ferguson, Lilianne
decidiu Abster-se de qualquer julgamento.
A casa de colonos diante da qual a carruagem parou era feita
de pedra e telhado de sapé. Dentro dela, o ar cheirava a palha e
nulidade. A filha da sra. Ferguson caiu de joelhos diante de Lilianne,
segurando suas mãos e agradecendo emocionada por sua
presença.
A sra. Ferguson segurou a filha pelos ombros e a pôs em pé,
levando-a para o outro lado da cabana. Lá, em voz baixa, elas
conversaram, ambas olhando na direção da visitante.
Desconfortável, ela olhou em volta e viu o menino.
Ele estava deitado em uma cama estreita ao lado do fogo, seu
rosto pálido e os olhos fundos e apagados. Tocada pela cena de
dor e sofrimento, ela se aproximou dele e, ajoelhada no chão, sentiu
um desejo incontrolável de tocar a face magra. Os dedos tocaram a
pele seca e prolongaram o toque.
De repente, sua mão ficou quente. Palavras estranhas, quase
sons incompreensíveis, brotavam de seus lábios.
— Shawn. O nome dele é Shawn. Lilianne ouviu as palavras
muito distantes, mas incorporou-as à ladainha.
— Shawn, você precisa melhorar. Você vai melhorar.
Enquanto falava, sentia a energia fluir por seu corpo até as mãos,
por onde era transmitida para o corpo do menino.
— Não tenho medo, Shawn. Quero ajudá-lo. Deus quer ajudá-
lo.
O fluxo tinha mão dupla. A energia curadora fluía de seu
corpo para o dele. A enfermidade fluía do corpo da criança para o
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
dela.
Muito tempo depois, ela abriu os olhos e viu o sorriso aliviado
do menino.
— Agora descanse. Virei vê-lo novamente quando acordar. —
Lilianne disse enquanto se levantava.
Seus joelhos cederam, e um homem que ela não havia visto
antes correu a ampará-la. Tudo que Lilianne queria era se deitar e
dormir.
— É lady Lilianne Rafferty?
— Sim, sou eu.
— Sou o dr. Rufus Maxwell. Vim a pedido seu.
— Oh, sim... O menino... Shawn... Está muito doente.
— E o que fazia com essa criança?
— Eu... — O que poderia dizer?
— Como homem da ciência, não acredito em bruxaria.
— Nem eu, doutor. — Quantas vezes vivera essa mesma
situação antes? Velhas lembranças tentavam invadir sua mente. —
Talvez deva examiná-lo.
Sozinha, ela deixou a choupana e enxugou uma lágrima
furtiva Havia acontecido novamente. Como?
Depois da tentativa com a mãe, passara a ter certeza de que
havia perdido o dom, ou o que quer que fosse.. Naquela época,
havia implorado a Deus pela realização do milagre... pela salvação
de sua mãe. Mas nada acontecera.
Sua mãe morrera. E, com ela, morrera também todo o amor
que seu pai um dia havia sentido pelo fruto daquela união.
— Lady Lilianne.
Ela se virou e viu o médico correndo em sua direção. Seu
rosto estava vermelho.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— O que foi? Shawn piorou?
— Piorou? Francamente, não entendo por que me chamou
aqui.
— Porque... O menino está doente.
— Para mim ele parece ótimo. Para comprovar suas palavras,
Shawn apareceu na porta da casa e correu na direção de Lilianne.
Quando o menino a alcançou, ela estava de joelhos para recebê-lo
entre os braços.
— Mamãe disse que só estou em pé graças a você.
— Pois eu acho que é graças a você mesmo. Venha, vamos
falar com sua mãe e sua avó.
Em pouco tempo a notícia se espalhou por Dunlanoe. Lilianne
era assunto de todas as conversas, alvo de de todos olhares. Os
criados a tratavam com reverência, temor e, sim curiosidade.
Todos, exceto Shamus, um homem direto que, em sua
opinião, não combinava com o temperamento de seu senhor,
alguém que não tolerava familiaridades, especialmente seus
subalternos. Mas Shamus não parecia se incomodar com isso.
Falava sem pedir licença, expressava suas opiniões sem mede de
retaliação e parecia ser o orador da criadagem.
Naquele dia Lilianne o encontrou perto do estabulo, quando
se preparava para cavalgar numa tentativa angustiada de encontrar
paz.
— vai cavalgar, senhora?
— Sim, eu vou.
— Ouvi dizer que curou o jovem Shawn O'Mally
— A sra Fergunson adora aquele neto. Não imagina o bem
que fez a ela. Não me surpreenderia se sua refeição fosse especial
esta noite. Curar os enfermos é um gesto de nobreza, senhora. Não
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
devia envergonhar disso.
— Não me envergonho.
— Ah, é bom saber disso! Dons como o seu devem ser
celebrados.
— O que sabe sobre mim?
— Sei mais do que pode imaginar.
Nesse momento, lorde Dunlanoe saiu do estábulo puxando
um animal pela rédea.
— Decidi acompanha-la, embora deteste cavalgar. Não
suporto O cheiro dos cavalos, sabe?
— Senhor, não se incomode por mim. Cavalguei todos os
desde que cheguei e não tive problemas.
— E o Rebelde?
— Não creio que deva temê-lo.
— Pois minha opinião é outra, senhora.
— Lorde Dunlanoe, nada possuo de valor. Nada que o
Rebelde possa roubar.
— Não se subestime, Lilianne.
Havia algo em seu tom, algo diferente que a fez interromper o
gesto de montar. Os olhos azuis tinham um brilho diferente, uma
luminosidade que...
Não. Devia estar imaginando coisas. Os olhos de lorde
Dunlanoe eram frios e superficiais como sempre.
Ele se aproximou para ajudá-la a montar e, sem hesitação ou
esforço, segurou-a pela cintura e a pôs sobre o cavalo. O homem
era mesmo surpreendente. Mesmo depois de acenar e partir num
trote lento, ela ainda levava a impressão das mãos em sua cintura e
sentia o calor de um rubor intenso no rosto.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Padraic esperou alguns instantes. Depois chamou um
cavalariço e ordenou que a seguisse.
— O que está tentando fazer, Paddy?
— Ela precisa de um acompanhante. Só isso.
— Para mantê-la a salvo do Rebelde? — Shamus continha o
riso.
— Não se esqueça de que meu pai foi morto perto daqui. É
óbvio que há mais alguém a temer além do Rebelde.
— Sim, mas não era sobre isso que eu falava.
— Sobre o que falava, então?
— Você sabe. Para começar, teve sorte por ela ainda não o
ter surpreendido num momento de guarda baixa. Ela poderia ter
entrado no estábulo a tempo de vê-lo vestindo um de seus belos
casacos.
— Sim, mas não entrou.
Graças a mim, que a detive. E não foi fácil. A mulher é
determinada.
—Talvez ela tenha adivinhado que eu estava lá dentro
mudando de roupa.
— Gosta de pensar nessa possibilidade, não é?
— Do que está falando agora?
— Acha que a idade me fez cego? Ainda tenho bons olhos
para certas coisas.
— Que coisas?
— O que está pensando sobre essa mulher não é certo,
Paddy, Você sabe disso.
— O que estou pensando sobre ela? Ficou maluco? —
Padraic forçou uma gargalhada. — Oh, eu já devia esperar essa
atitude de alguém que disse tantas tolices sobre o neto da sra.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Ferguson. Pensou que eu não estivesse ouvindo?
— Mais cedo ou mais tarde vai ter de aceitar o que todos nós
sabemos. Essa mulher tem o toque.
— Oh, por Deus, essa tolice de fadas novamente? Não! Ela é
só uma mulher.
— Hum... Ela curou o neto da sra. Ferguson.
— Que devia estar apenas resfriado e melhorou com o tempo.
O que mais ela fez? Ah, sim, a harpa. Admito que ela toca o
instmmcnto como ninguém, mas isso só sugere que a mulher teve
um bom tutor.
— Ela não tocava tão bem no início da audição. De repente
adiquiriu essa habilidade?
— Shamus...
— Muito bem, se prefere acreditar nisso...
— Prefiro.
— Em seu lugar, eu ficaria mais atento, porque ela já o
enfeitiçou.
— O quê?
— Está dominado por um encantamento de amor.
Encantamento de amor. Francamente!
Padraic cavalgava sem pressa, protegido pelo manto escuro
da noite.
Uma noite perfeita para o Rebelde.
Ele se aproximou da bifurcação da estrada e esperou. Edwin
e seus convidados logo estariam passando por ali a caminho de
casa, de volta das tavernas de Kilroyne. O próprio Edwin enviara
um mensageiro convidando-o a integrar o grupo.
Padraic declinara pretextando cansaço.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Já podia ouvir o som de cascos se aproximando. A
antecipação o dominava. O momento da ação havia chegado.
Padraic sacou pistola e cravou os calcanhares nos flancos de
Raven.
— Quietos. Entreguem tudo que têm—ordenou, saltando com
uma aparição do meio das árvores.
Aparentemente, o cocheiro não tinha nenhuma intenção de
morrer defendendo seu senhor e o grupo de convidados, porque
deteve o veículo imediatamente. Ele e seu ajudante ergueram as
mãos.
— Desçam daí. E abram as portas. Os dois homens
obedeceram.
— E mesmo o Rebelde? — indagou o cocheiro com um mist
de temor e admiração.
— Sim, eu sou. Não é verdade, sir Edwin?
— Maldição! O que quer agora? Não basta ter ido à minha
casa.
— É evidente que não. Agora desçam. Todos vocês.
Três homens saltaram da carruagem com grande dificuldade
embriagados como estavam, e só então Edwin saltou.
— Cocheiro, recolha as armas desses cavalheiros —
determinou Padraic.
Um minuto depois, havia três pistolas e uma espada no chão.
— O que quer de nós, afinal? — indagou um dos integrante
do grupo, um cavalheiro cuja peruca insistia em cair para o lado
esquerdo de sua cabeça.
— Seu dinheiro, senhor. Por favor, comecem a se desfazer de
todos os bens que possuem.
— Isso é um ultraje! — protestou um dos nobres.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Chame do que quiser, cavalheiro, mas entregue o que tem
i ou, além de ultrajado, em breve estará morto.
— Não vai escapar ileso — Edwin o ameaçou.
— Não conte com isso. Agora, voltem todos para o coche. E
agradeçam a todos os santos por eu não estar com disposição para
derramar sangue. E você!
— Eu?
— Sim, você. Ponha essa peruca na pilha de objetos no chão.
Gostei dela.
O homem arrancou-a tão depressa, que causou uma nuvem
de pó. Depois de jogá-la ao chão, ele correu para dentro do veículo.
Padraic esperou até o grupo desaparecer além de uma curva
na estrada, e só então desmontou para recolher todos os bens
roubados e as armas. Queria concluir o episódio rapidamente.
Estava cansado, pois havia passado a manhã toda ajudando a
descarregar um contrabando de seu navio, e mal podia esperar
para ir para a cama.
Mas seus planos foram alterados pela imagem da mulher
sobre o penhasco.
Lilianne sabia que corria grande risco. Na última vez, quase
não conseguira escapar sem que o Rebelde descobrisse sua
verdadeira identidade. Então, por que desafiava a sorte?
Quando ouviu o ruído de cascos batendo contra o chão, ela
sentiu o coração bater mais depressa. Lá estava ele, desmontando
e caminhando em sua direção. Sentia medo, é claro. Mas não
conseguira apagar da memória a lembrança do beijo...
— Então, Lily, vejo que voltou a idolatrar a noite...
— Como você.
— E ainda está descalça. As moedas que lhe dei não foram
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
suficientes?
— Não gastei o dinheiro. — Lilianne ofereceu a bolsa que le-
vava sob o xale. — Não posso aceitá-lo.
— Por que não?
— Meu... pai não permitiria.
— O homem mudo?
— Sim. Não... Quero dizer, há meios de comunicação pelos
quais ele me faria saber sua opinião. Não que não seja grato, é
claro.
— É claro.
— Ele apenas... sente que não é correto ficar com o dinheiro.
— Por gostar de ver os filhos descalços?
— Não está sendo justo, senhor. Meu pai não tem culpa pelas
pelas diculdades que castigam nossa família.
— Não culpei ninguém.
— Além do mais, a relva é macia e morna, agora que a
primavera chegou.
— Estamos sobre as rochas, doce Lily. Ela se virou para
esconder um sorriso, tocada pela forma de tratamento.
— Talvez, se eu lhe der mais dinheiro...
— Por Deus, não! Por favor! — Havia sido difícil abrir daquela
quantia. Se tivesse mais... Já havia deixado algumas moedas com a
família de Shawn.
— Só queria que ficasse com uma pequena quantia para uso
pessoal.
— Não. Obrigada. Deve entender meu orgulho.
— Orgulho não alimenta nem veste crianças, não salva o que
resta da colheita de um homem depois de um longo período de
seca, não... — O Rebelde calou ao sentir o olhar intenso cravado
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
em seu rosto.
Ela parecia fascinada. Normalmente, não manifestava sua
opinião sobre a pobreza que o cercava. Era Coyle quem filosofava.
Ele buscava aventuras.
— Diga a seu pai para ficar com o dinheiro, doce Lily.
— Então, preocupa-se realmente com eles, não é?
— É claro que sim. Já lhe dei dinheiro, não? Para seu pai
mudo e seus nove irmãos.
— Sete.
— Ah, sim, sete.
— Não vamos falar deles.
— Como quiser. Sobre o que falaremos, então?
— Não sei. Sobre a terra, talvez. Há uma beleza selvagem
nela não acha?
— Confesso que a paisagem que vejo agora me encanta.
Lilianne o encarou. Ele a fitava com uma intensidade que a
fez esquecer o vento frio. Foi impossível conter um sorriso.
Vivia uma fantasia. Esse homem não conhecia sua verdadeira
identidade. Podia ser quem quisesse. E era apenas Lily, filha < um
agricultor pobre. O sentimento de liberdade era inebriante.
Mesmo assim, não podia esquecer quem realmente era.
— Não devia estar dizendo tais coisas, senhor.
— Mesmo que sejam verdadeiras?
— Especialmente nesse caso.
— Bem, vejamos... Não podemos falar sobre seu pai. Nem
sobre seus sete irmãos. Não posso elogiar sua beleza. O que me
resta?
— Você?
— Um assunto interessante, sem dúvida, mas que não
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
devemos explorar.
— Tem razão. Não que eu tenha tentado...
— Descobrir quem sou?
— Sim. Quero dizer, não. Não estava.
— Não a acusei de nada.
— Então... sobre o que falaremos?
— Sobre a lua. As estrelas. O sol.
— Assuntos superficiais.
— Certamente. Mas você parece sentir frio, Lily. Não devia
retê-la aqui.
— Não, eu... estou bem. Realmente.
Mesmo assim, ele a abraçou e envolveu com sua capa. Devia
protestar, mas não se sentia capaz disso. Não conseguia
pronunciar as palavras. Estava tremendo, abalada, e precisou
segurar-se nos ombros fortes para não cair.
O gesto foi o incentivo de que ele precisava.
— Pensei muito em você, Lily. E não me diga que eu não
devia dizer isso. — Sabia que não devia nem estar ali, mas tudo era
mais forte que ele.
Sem tentar resistir ao impulso, Padraic beijou-a.
Lilianne correspondia ao beijo e queria mais. Muito mais.
Nada em seu passado a preparara para a experiência inebriante, e
ela nem pensava em resistir.
E de repente, tudo acabou. O Rebelde recuou um passo,
segurando-a pelos ombros. Impedindo uma reaproximação.
Estava perdendo o juízo? Padraic respirou fundo, tentando re-
cuperar a razão. A mulher diante dele não era filha de um colono,
nem uma criada da taverna. Aquela era a viúva de seu pai! Uma
inglesa cujo pai havia jurado levá-lo à forca. Beijá-la... tocá-la era a
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
última coisa que devia estar fazendo. Mas a tentação era grande.
Muito grande.
— Devo estar louco. E você também.
— Sim, sim, é claro. Tem razão. Eu não... — Uma mistura de
choque, temor e vergonha a impediram de prosseguir.
Padraic não tentou detê-la quando ela se afastou correndo.
Perturbado, aproveitou esse momento para desaparecer na noite
escura.
Lilianne parou depois de alguns instantes, tentando recuperar
o fôlego. O que estava fazendo?
O primeiro encontro com o Rebelde fora acidental, mas hoje...
Soubera exatamente o que esperava quando deixara sua cama
para ir ao penhasco. A esperança de revê-lo a levara para fora do
castelo na calada da noite. E ansiara pelo beijo, pelo toque
daquelas mãos.
Não podia mais se expor dessa maneira. Nunca mais. E essa
certeza fazia pesar seu coração encantado.
Temia estar apaixonada por aquele que todos chamavam de
Rebelde.
— O amor o transformou numa velha.
— Não me venha com essa, Paddy. É você quem está em
discussão aqui. Alison não tem nada a ver com isso — Coyle
protestou com firmeza.
Havia entrado no quarto do amigo cerca de quinze minutos
antes usando o túnel secreto. Padraic lamentou ter ensinado esse
caminho ao companheiro de aventuras. Desde esse dia, nunca
mais conseguira dormir em paz.
— Tem razão, não sei mais o que estou pensando —
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
confessou resignado. — Não quis desrespeitar sua esposa. Longe
disso.
— Eu sei disso. Caso contrário, já o teria esmurrado.
Os dois riram. Sabiam que jamais haveria qualquer tipo de
embate entre eles.
Padraic reconhecia que Coyle estava certo em chamá-lo à
razão. Era um idiota por arriscar tudo por um encontro clandestino
no penhasco. Sabia disso, e em nenhum momento planejara
informar o amigo sobre sua aventura, mas... Coyle era astuto e
observador. E sabia como arrancar as informações que julgava
necessárias.
O dinheiro roubado de Edwin havia sido a primeira pista. O
que fora feito dele? Padraic entregara as duas bolsas que deveriam
ser repartidas entre os pobres. E, sem pensar, mencionara a
terceira como Lilianne havia tentado devolvê-la na noite anterior.
— Ontem à noite? Você a viu novamente ontem à noite?
Padraic revelara tudo sobre o encontro, provavelmente por
estar acordando de um sonho muito doce e quente. Não tivera
nenhuma chance de defesa.
— Tem certeza de que ela não o reconheceu?
— Sim, eu tenho. — Padraic prendeu os cabelos com uma tira
de couro e colocou a horrível peruca empoada. A metamorfose
começava. Sabia o que Lilianne pensava sobre lorde Dunlanoe. I la
nunca o confundiria com o ousado Rebelde. — Ela jamais vai
imaginar que o Rebelde e lorde Dunlanoe são o mesmo homem.
— Ótimo. Não...?
— Sim, é claro. Não tenho intenções de me deixar arrastar
para a forca. Deve ser muito... desconfortável.
— Mas...?
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Mas o quê? Do que está falando?
— É você quem deve me dizer. Sinto uma certa hesitação de
sua parte.
— Não tenho idéia do que pode significar esse seu
comentário.
— Não? Paddy, está sentindo alguma coisa por essa mulher?
— Você perdeu o juízo? Ela é viúva de meu pai! E é filha de
um lorde inglês, um homem que jurou capturar-me e enforcar-me.
— Padraic sentou-se ao toucador para empoar o rosto. A nuvem de
pó provocou um ataque de tosse que atraiu a presença de Shamus
ao quarto.
— O que está acontecendo aqui?
— Maldição! Um homem não tem privacidade em seus
aposentos?
— Ei, não tenho culpa se ficou até tarde sobre o penhasco
cortejando uma mulher — Coyle respondeu ofendido.
Shamus olhou para os dois com surpresa e curiosidade.
Padraic decidiu que, se tivesse dois ou três anos, talvez
pudesse lembrar por que Coyle era seu melhor amigo.
Shamus arrancou da mão de seu senhor a esponja com pó.
— O que está tentando fazer? Sufocar-se? Por favor, deixe
isso comigo, sim? E que história é essa sobre ter ido encontrar uma
mulher ontem à noite?
— Pelo amor de Deus, parem de me interrogar como se eu
fosse um garoto! E você, Coyle, o que veio fazer aqui?
— Esse seu mau humor, Paddy... — Shamus interferiu.—
Deve ser a dor na perna. Por que não pede a lady Lilianne que dê
uma olhada no ferimento?
— Ninguém vai me submeter a encantamentos.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— A menos que ela já o tenha encantado.
— Pare com isso!
— Parar com o quê?
— Ah, esqueça... — Lilianne, ou Lily... Enfim, ninguém havia
lançado encantamento algum sobre ele. Primeiro, porque ela não
era bruxa ou fada, nem tinha qualquer poder mágico como suge-
riam todas as pessoas por ali. E segundo, porque... Ah, porque não
estava apaixonado. — E então, não vai me dizer por que veio?
Coyle balançou a cabeça.
— Não trago boas notícias. Estão dizendo no vilarejo que sir
Edwin enviou um mensageiro a Dublin.
— E daí?
— Ele solicita a presença de tropas britânicas na área.
— Já aconteceu antes — Padraic respondeu, apesar da
evidência preocupação em seus olhos.
— Sim, mas parece que, dessa vez, sir Edwin solicita alguém
especial no comando das tropas.
— Quem?
— Não ouvi nenhum homem, mas parece que o homem esta
confiante demais. Bem... Acho que devemos recuar.
— Está sugerindo que o Rebelde saia de cena? Não podemos
fugir assustados cada vez que alguém ameaça capturar-nos!
— E também não podemos andar por aí correndo riscos
inúteis.
— Ah... E a escuna? Já foi descarregada?
— Sim, conseguimos levar toda a mercadoria para as
cavernas. Paddy, não quero que pense que sou ingrato ou...
— Não precisa se justificar, Coyle.
— Mas é você quem arrisca a vida e... vive essa mentira.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Padraic levantou-se para vestir a casaca coberta de rendas e
passamanarias. Sentia-se ridículo. Antes até apreciava personificar
o lorde ultrajante e exagerado. Era uma diversão. Mas depois da
morte do pai e da chegada de Lilianne ao castelo, tudo perderá a
graça. Não gostava de ver a repulsa no olhar dela.
De qualquer maneira, não podia simplesmente interromper as
atividades do Rebelde. Ainda havia muito a ser feito. Muitos
irlandeses mal conseguiam alimentar e vestir seus filhos.
— O Rebelde vai continuar agindo, mas creio que deva ir
buscar suas vítimas em locais mais distantes.
— Vai deixar sir Edwin em paz? — quis saber Coyle.
— Não sei se será possível.
— Mas...
— Acredito que ele está ligado à morte de meu pai. E
pretendo descobrir se minhas suspeitas são verdadeiras.
— Como?
— Não sei. Mas, se confirmar minha desconfiança, pretendo
matá-lo. E agora, se me dão licença, ofereci-me para conduzir
minha querida madrasta a Kilroyne.
Um dia inteiro com lorde Dunlanoe. Lilianne não sabia se
poderia suportar. Mas era preciso. Havia sido gentileza dele sugerir
a excursão ao vilarejo, embora, francamente, não pudesse entender
suas razões para tal feito.
Ele não parecia apreciar sua companhia. Não aceitara com
alegria seu casamento com Oliver. Por outro lado, também não a
expulsara do castelo. Não a obrigara a voltar à casa do pai. E, mais
importante, nunca comentara a cura que realizara em sua
propriedade.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Ainda não.
Em resumo, seria capaz de sobreviver ao dia na companhia
do enteado. E se alguma coisa a aborrecesse, deixaria as
lembranças distraírem seus pensamentos. Recordaria o calor dos
braços Rebelde, a paixão de seus beijos, e assim tornaria o dia
muito m agradável.
— Ah, aí está você, Lilianne, querida. Ela forçou um sorriso e
virou-se para cumprimentar lorde Dunlanoe. Mas, em sua
imaginação, pensava estar diante do Rebel
— Não vejo nada de interessante aqui. Lilianne olhou pela
janela da carruagem.
— Não mesmo, lorde Dunlanoe? Considero o vilarejo mui
charmoso.
— Charmoso? — Precisava disfarçar sua satisfação. Sempre
havia apreciado Kilroyne com suas casas simples de pescadores
suas ruas movimentadas, mas não podia revelar suas verdadeira
preferências. — Não se compara a Londres. — Um lugar sujo
enfumaçado e barulhento que detestava.
— Não gosto muito de Londres.
— Por quê?
— Bem, talvez porque Londres também não gostou muito
mim.
O cocheiro parou a carruagem na principal rua de Kilroyne.
Padraic esperou que a escada fosse baixada e desceu, estendendo
a mão para ajudá-la, esquecendo-se de que lorde Dunlanoe jamais
faria tal coisa. Para compensar o deslize, ele se afastou assim que
a viu segura em solo firme, levando ao rosto um lenço de renda
perfumada.
— Peixe... — A palavra sugeria desdém.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— É assim que os habitantes ganham a vida?
— Atualmente, sim. Kilroyne já foi um porto importante.
— O que aconteceu?
Padraic quase disse que os ingleses é que haviam
acontecido, mas deteve-se a tempo. O comentário não seria bem
recebido. Não que não fosse verdade. As Leis Penais haviam
estrangulado a indústria da lã, antes tão lucrativa. Agora, os
vilarejos tinham de tirar o sustento do mar.
— Não sei ao certo — mentiu. — E isto nem é uma cidade,
como pode ver.
Lilianne não concordava com o lorde. O lugar não era
luxuoso, certamente, mas tinha seus encantos. Crianças brincavam,
mulheres com as cabeças cobertas por lenços vendiam o peixe
pescado por seus maridos, e havia lojas, uma cafeteria e uma
hospedaria.
A área onde estavam abrigava casas espaçosas, embora
menores que as de seu pai. Mesmo assim, não podia dizer que o
vilarejo fosse miserável. O que faltava em indústria sobrava em
belezas naturais.
Encantador.
Lilianne lamentava que lorde Dunlanoe não pudesse ver o vi-
larejo dessa maneira. Eles caminhavam pela rua principal, quando
Lilianne notou um grupo de habitantes reunidos alguns passos à
frente deles. Todos olhavam na direção dos dois, e alguns falavam
com certa veemência.
— Lorde Dunlanoe...
— Sim? — Ele a encarou e estranhou sua palidez. O que
poderia incomodá-la tanto? — Lily?
— Senhor, aquelas pessoas... — Estava muito perturbada,
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
mas não sabia explicar o motivo de sua agitação.
— O que foi? Está preocupada com aquela gente? Ora, são
só pescadores e pastores inofensivos. Veja... — Ele se adiantou um
passo. — Vão cuidar de seus assuntos! — ordenou. — Agora!
Era como se nem o vissem. Todos olhavam para Lilianne, e
de um jeito que despertava nele o impulso de protegê-la.
— É verdade o que estão dizendo? — indagou uma das
mulheres do grupo, Moyia Dooley.
— Estou dizendo que vi tudo com meus próprios olhos! O
menino morria, e ela o curou — afirmou um homem.
Padraic reconheceu o genro da sra. Ferguson.
—É verdade?—Moyia insistiu. — Devolveu a vida ao menino?
— Sim — os outros confirmaram em uníssono.
— Queremos a verdade.
— Sim, desejamos saber se tem o poder de curar, como
dizem.
Havia escárnio nos olhares daquela gente. Lilianne vira o sen-
timento no rosto do pai. Jamais o esqueceria.
Por um momento, pensou em negar o que havia feito. Afinal
de contas, era uma lady, e estava diante de meros colonos, pesca-
dores, pastores e comerciantes. Refugiaria-se no castelo e lá per-
maneceria, enquanto lorde Dunlanoe assim permitisse. Conside-
rando seus sentimentos por ela, não teria muito tempo de paz e
proteção.
Mas não se sentia capaz de mentir, apesar do que a história
lhe havia ensinado. Curar o pequeno Shawn havia sido bom. Se
queriam chamá-la de bruxa ou herege, teriam de fazê-lo
abertamente, não por suas costas.
— É verdade. Eu o curei. Mas não fui eu, realmente. Foi algo
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
que fluía por mim, algo que me usou como um instrumento.
Lorde Dunlanoe estava a seu lado. Sua expressão parecia
dizer seja forte. Era ridículo, sabia, mas ela se sentia mais forte.
Erguendo os ombros, olhou para o grupo que parecia crescer.
Já havia passado pela experiência antes. Sabia o que esperar.
Mas, por mais que olhasse para aqueles rostos, não via a
censura ou a revolta de antes. Tudo que via era... aceitação.
— Tínhamos a esperança de que fosse verdade — disse a
mulher que primeiro a questionara. Ela caiu de joelhos, as mãos
estendidas para Lilianne. — Tenho uma filha de quinze anos. Ela
acorda no meio da noite com terríveis dores de cabeça, gritando
como quisesse despertar os mortos. Todos aqui já ouviram seus
gritos.
Houve um murmúrio geral de concordância, e ela olhou nova-
mente para Lilianne.
— Por favor, cure-a.
— Não sei se posso.
— Por favor! — A mulher agarrou suas mãos, um gesto que
provocou uma imediata reação de lorde Dunlanoe. Ele se aproxi-
mou em guarda.
Lilianne não precisava de um defensor, mas, se assim fosse,
não seria o efeminado lorde Dunlanoe a salvá-la de algum perigo.
— Creio que não entenda — ela disse à mulher aflita. — Não
sou capaz de controlar esse... o que quer que seja. Existem
momentos em que tento... Tento realmente curar alguém, e nada
acontece. —Ela piscou várias vezes para conter as lágrimas,
lembrando como se esforçara pela mãe. — Não tenho poder algum.
— Mas... minha pobre menina! Ninguém irá se casar com ela
por conta de sua aflição. O que vou fazer?
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Leve-me até ela. Quem sabe...?
— Oh, é um anjo que o Céu mandou para nós!
— Não, nada disso. — Não queria ser chamada de bruxa,
mas também não desejava ser tratada como santa.
Como se não a ouvisse, a mulher seguia com sua ladainha.
— É uma Dádiva Divina, um presente dos Céus...
— Escute, talvez eu nem possa fazer nada.
Lorde Dunlanoe assumiu o controle da situação, calando
aquelas pessoas e impondo uma autoridade da qual Lilianne nunca
suspeitara.
— A mulher que tanto admiram fará o que puder para ajudá-
los, mas devem manter a calma e lembrar que o dom de lady
Lilianne, seja ele qual for, é só isso. Um dom que ela não pode
controlar. Devem respeitá-la sempre.
Por que seu pai nunca havia tentado uma ação tão simples?
Era eficiente, sem dúvida. Não havia naquela gente escárnio,
acusação ou ameaça. E tudo que lorde Dunlanoe havia feito fora
silenciá-los com palavras firmes e sensatas.
— Para onde devemos ir, sra. Dooley? Onde está sua filha?
Todos seguiram em procissão para a área mais pobre da
cidade.
A sra. Dooley ia na frente, seguida por Lilianne e lorde
Dunlanoe, e atrás do trio caminhavam dezenas de cidadãos de
Kilroyne. A atmosfera era festiva.
Quando chegaram a uma cabana perto do cais, a sra. Doyle
parou e apontou para a porta.
— É aqui.
Lilianne se aproximou da porta.
— Quer que eu a acompanhe?
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Ela sorriu para o lorde, tentando demonstrar mais confiança
do que sentia.
— Não é necessário, obrigada.
— Não devia ir com ela, Moyia? — sugeriu uma voz no grupo.
— Sim, vá com ela — reforçaram outras vozes.
Mas Moyia balançou a cabeça e ficou onde estava, deixando
Lilianne entrar sozinha na cabana.
— Se é verdade o que dizem sobre a mulher do mundo das
fadas, não devo incomodá-la.
Padraic conteve um suspiro irritado. Mundo das fadas.
Francamente.
Lilianne viu a jovem sentada ao lado do fogo no interior da
choupana pobre e escura. Ela tinha as costas inclinadas sobre tricô
que mantinha bem perto dos olhos.
Sem saber o que fazer, Lilianne ficou quieta. Não queria
assustar a menina. Ela olhou em sua direção com ar sério.
— Sua mãe me pediu para vir... por causa da dor em sua
cabeça
— É a mulher das fadas, então?
— Bem, não. Quero dizer, não realmente.
— Não dança ao luar?
— Dançar? Não!
As agulhas voltaram a se mover entre os dedos habilidosos.
— O que está fazendo?
— Um xale.
— Ah... Sua cabeça dói agora?
— Um pouco. Ela sempre dói um pouco. Mas, mais tarde... —
Ela fez uma careta que expressava mais do que muitas palavra.
— Importa-se...? Posso tocar sua cabeça? Não vou feri-la.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— É assim que faz?
— Não sei ao certo se alguma coisa pode ser feita, mas estou
aqui para tentar.
A jovem encolheu os ombros, e Lilianne tocou-a na testa,
esperando os conhecidos sentimentos.
Nada.
Ela abriu os dedos e usou a outra mão para amparar a cabeça
da menina.
— Como é seu nome?
— Sarah.
— Sarah... Um nome tão doce! Sou Lilianne, e desejo muito
que se livre da dor. — Mas não estava funcionando. Qualquer que
tosse a mágica, ela não se fazia presente agora. Lilianne tentou se
concentrar mais, implorando aos poderes superiores que a
usassem como instrumento para a cura de Sarah.
Era horrível. Não conseguia apagar da memória a lembrança
da noite em que entrara no quarto da mãe e a vira desfalecida.
Ouvia a voz furiosa do pai ordenando que ela fizesse alguma
coisa...
A energia não estava ali. Gostaria de senti-la, mas seu
esforço era inútil.
— Lamento... — Lilianne correu para a porta e saiu. O
contraste entre o sol radiante e a penumbra no interior da cabana a
fez proteger os olhos.
— E então? — Várias pessoas perguntaram. Estavam ali
esperando, olhando...
— Curou minha Sarah?
— Eu... Eu fiz o que pude, mas, às vezes, por alguma razão,
não acontece...
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
Lilianne parou de falar, percebendo que ninguém olhava para
ela. Nem mesmo lorde Dunlanoe. Seus olhos azuis pareciam fixos
em alguma coisa atrás e acima dela. Lilianne virou-se e, boquia-
berta, viu Sarah Dooley parada à porta.
— Acho... que a dor se foi, mamãe — ela anunciou hesitante.
— Não pode ser. Eu não...
Mas as pessoas não a ouviam. Todos se aglomeravam em
torno de Sarah, perguntando como ela se sentia e como havia sido
a cura.
— Não se sente bem?
A voz de lorde Dunlanoe a arrancou do estado de
perplexidade.
— Não, eu... estou bem. — Não sentia a fadiga que
normalmente seguia uma cura, mas estava muito abalada com os
acontecimentos. — Podemos retornar a Dunlanoe?
— É claro. A carruagem está na rua. Quer que eu mande
buscá-la?
— Não, obrigada. A caminhada me fará bem.
— Está muito pálida. Não vai desmaiar, vai?
Lilianne parou para encará-lo. O tom de voz brincalhão e o
sorriso genuíno e radiante não combinavam com o afetado lorde
Dunlanoe.
Maldição. Por um momento, esquecera de representar o
personagem. Podia quase ver sua mente funcionando em
velocidade acelerada, imaginando-o sem a peruca e sem o pó.
Era a mesma expressão que ela exibia quando olhava para o
Rebelde. Tinha de fazer alguma coisa para mantê-la ocupada e
apagar de sua mente o que ela pensava ter ouvido e visto.
E Padraic via a resposta se aproximando deles nesse exato
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
instante.
Alison corria pela rua e acenava.
— Ah, aí está você, lorde Dunlanoe. Quando soube de sua
presença tratei de apressar-me. Temia não chegar a tempo.
— Alison. — Ele conteve o impulso de abraçá-la. Eram amigo
há anos, uma amizade que precedera sua partida para a Inglaterra
Poucas pessoas eram mais queridas que sua antiga companheira
de infância.
Alison colocou-se entre ele e Lilianne e, segurando-os pelo
braço, disse:
— Venham tomar chá comigo.
— Ah, bem... Seu convite é irrecusável. Isto é, a menos que
minha madrasta não se sinta bem.
— Não, não, sinto-me bem melhor agora.
— Esteve enferma?
— Apenas cansada. — Lilianne conhecera Alison no dia de se
casamento com Oliver Rafferty. A jovem havia sido a única con
vidada, e simpatizara com ela desde o início. Jamais imaginar que
Alison também era amiga de lorde Dunlanoe. Pai e filho eram muito
diferentes.
— Uma xícara de chá a deixará mais forte. Não acha que elal
vai ficar mais corada, Paddy?
— Sim. — Padraic tentou adotar um tom frio e um olhar
penetrante, única forma de prevenir a doce Alison sobre seu deslize
Por que ela o tratava dessa maneira em público? Coyle não havia
contado quem era Lilianne?
O chá foi servido pelo mordomo no jardim da casa de Coyle e
Alison, em um adorável caramanchão. Coyle juntou-se ao grupo
minutos depois de terem chegado.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
— Tommy me contou que estava aqui, Padraic. Espero que
isso signifique...
Lilianne não pôde ouvir o que a visita significava, pois Coyle
entrou no caramanchão e, ao vê-la, silenciou-se, absolutamente
surpreso. Recuperando-se rapidamente, ele a cumprimentou com
uma mesura e agradeceu a honra de recebê-la em sua casa.
Era evidente que os dois homens eram grandes amigos. Um
relacionamento que podia ser classificado como curioso, no mínimo,
levando em conta as imensas diferenças entre eles.
E, no entanto, o laço profundo e forte era evidente. Tão
evidente quanto o amor de Coyle pela esposa, Alison, que também
parecia apreciar muito a companhia de lorde Dunlanoe.
— Há quanto tempo conhece lorde Dunlanoe? — Lilianne per-
guntou quando as duas ficaram sozinhas.
— Desde sempre, praticamente. E Coyle também.
Brincávamos juntos na infância.
O que explicava a amizade. Mesmo assim...
— Eles parecem tão diferentes!
— Não realmente. Paddy é um pouco... colorido demais,
mas... — Ela parou e balançou a cabeça. — Já mencionei como
lamento por Oliver? Todos nós o amávamos muito.
— Sim, foi uma tragédia.
— E logo depois do casamento!
— De fato.
— Lady Lilianne, sei que está muito longe de casa e conhece
poucas pessoas aqui, e quero que saiba que pode contar com a
minha amizade. — Jamais errara ao julgar um caráter. Assim,
apesar dos avisos do marido, ela decidiu tentar uma aproximação
com a viúva de Oliver Rafferty. — Sempre que precisar de alguma
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
coisa, conte comigo. Se quiser conversar... sobre qualquer coisa...
Bem, estarei aqui.
— Você fez o quê?
Alison ajeitou os travesseiros e acomodou-se melhor, olhando
para o marido com expressão perplexa.
— Não sei por que está tão incomodado. Eu não disse nada!
Acha que sou alguma estúpida?
— Não, não, é claro que não. Apenas penso que devemos
manter uma certa distância dessa mulher. Quanto mais próxima
estiver, maior será a probabilidade de ver... ou pensar que viu
alguma coisa.
— Sei que a julga uma espiã ou coisa parecida...
— Nada disso. Nunca suspeitei de que ela tenha sido
mandada para cá com esse propósito. — Essa era a idéia de
Paddy. — Mas não creio que ela seja capaz de guardar segredo,
caso descubra sobre nossas atividades.
— Mas... ela mora com Paddy!
— Uma circunstância inevitável... ou é o que pensa nosso
amigo. — Estou certa de que ela não tem nenhuma relação com a
morte de Oliver. E Paddy deve pensar como eu.
— De onde tirou toda essa certeza?
— Oh, penso que ele está apaixonado por ela. É isso.
— Apaixonado? Ficou maluca? Não sabe o que está dizendo.
— Talvez seja você o maluco, meu marido? Não notou como
ele olha para Lilianne?
— Oh, meu Deus... — Coyle sentou-se na cama e passou a
mão na cabeça.
— Isso é tão terrível assim? Quero dizer, sei que para Paddy
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
a situação é delicada, pois o amor não correspondido é
desagradável, embora romântico, e ele sabe que não pode tê-la,
mas...
— Ele sabe que lorde Dunlanoe não pode tê-la.
— Não foi o que eu disse?
— Alison, escute. Creio que fez uma boa coisa oferecendo
sua amizade a lady Lilianne. Ela precisa de ajuda. Precisa de
alguém que a aconselhe.
— Sobre Paddy?
— Sobre o Rebelde.
— O Rebelde. Por que ela precisa de mim para falar sobre
ele?
Acho melhor nem mencionarmos esse assunto, Coyle. Sei
que já decidimos que ela não é uma espiã, mas...
— Ele a encontra à noite... no penhasco.
— Quem a encontra? Não entendo... — Alison cobriu a boca
com uma das mãos. — O Rebelde!
Coyle fechou os olhos e deitou-se lentamente.
— Sim — confirmou.
— Deus nos ajude!
Ele respirou fundo e assentiu.
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
CAPÍTULO IV
— Você não curou aquela menina... curou? Lilianne olhou
para lorde Dunlanoe, tentando decidir como responderia à pergunta.
Era noite, e estavam no salão do castelo depois da agradável
visita à casa de Alison. O silêncio na viagem de volta a deixara
nervosa. Mesmo assim, cada instante sem nenhuma menção à
cena no vilarejo a enchera de esperança sobre uma eventual saída
fácil sem nenhum questionamento.
Devia saber que tal esperança era vã.
— Vi sua expressão quando ela surgiu na rua. Ficou surpresa
com as palavras da jovem — Padraic continuou.
Ela se levantou para ir até a janela. Por que se sentia tão
atraída pela lua, afinal? Não... Não era a lua que a encantava. Não
era por ela que olhava para a noite. Para o penhasco.
— De fato, fiquei surpresa.
— Devia tentar esconder melhor suas emoções.
— O quê? — Ela o encarou e foi invadida pelo pânico. Por
que ele a fitava como se pudesse ler seus pensamentos, como se já
soubesse sobre seu interesse pelo Rebelde?
Resignada, ela foi se sentar diante do lorde. Essas noites
eram insuportáveis, mas sentia que sua presença era necessária, e
temia tomar qualquer atitude que pudesse levá-lo a reconsiderar
sua decisão de deixá-la ficar.
Devia ter pensando nisso antes de ir à casa de Moyia Dooley.
— Certamente, deve entender por que é imperativo que de-
monstre confiança em seus poderes de cura.
— Eu... não entendo o que quer dizer.
— Ilusão, minha cara Lilianne. Muito do que fazemos depende
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CHRISTINE DORSEY A DAMA E O REBELDE
disso. Como vai convencer as pessoas de sua capacidade de curar,
se nem você mesma acredita nela?
— Lorde Dunlanoe, não é minha intenção induzir as pessoas
a acreditarem nisso.
— Não?
— Pelo contrário. Nunca afirmei ter poderes além do que é
considerado normal.
— Mas eu estava lá quando todos elogiavam sua habilidade.
— Não ouvi nenhum elogio.
— Então, não estava prestando atenção.
— Peço desculpas, lorde Dunlanoe, por qualquer embaraço
que possa ter sofrido com os eventos de hoje à tarde.
Compreendo...
— Embaraço? Engana-se quanto aos motivos que me levam