ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES
SANTOS, R. V.; MAIO, M. C.: Antropologia, raa e os dilemas das
identidades na era da genmica. Histria, Cincias, Sade Manguinhos,
v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005. A nova gentica, pela sua
atual proeminncia, uma fonte de criao de identidades entre grupos
sociais e mesmo nacionais. Narrativas genticas interagem com
narrativas histricas e sociais; o muitssimo novo (a genmica) toca,
interage e, em muitos casos, fricciona-se com o muito antigo (raa e
tipologias). Neste trabalho analisa-se um conjunto de debates em
curso acerca de interpretao de dados genticos obtidos em estudos
conduzidos no Brasil. Os debates tm mobilizado bilogos, cientistas
sociais e movimentos sociais, entre outros. Os resultados e as
implicaes dessa pesquisa, conhecida como Retrato Molecular do
Brasil, alm de envolver a academia, tm servido como campo de
disputa do qual participam, por exemplo, desde ativistas do
movimento negro no Brasil at membros de grupos da extrema-direita
europia. Uma anlise contextualizada desses debates mostra-se til
para melhor compreender as imbricaes entre antropologia, gentica e
sociedade no mundo atual. PALAVRAS-CHAVE: gentica; raa; movimento
negro; extrema-direita; pensamento social; etnicidade. SANTOS, R.
V.; MAIO, M. C.: Anthropology, race, and the dilemmas of identity
in the age of genomics. Histria, Cincias, Sade Manguinhos, v. 12,
n. 2, p. 447-68, May-Aug. 2005. Given its current preeminence, the
new genetics affords the creation of new identities among social
and even national groups. Genetic narratives interact with
historical and social narratives; that which is extremely new
(genomics) touches, interacts with, and in many cases grates
against that which is old (race and typologies). The interpretation
of genetic data from studies conducted in Brazil has recently
triggered debates among biologists, social scientists, social
movements, and other actors, debates which are analyzed in this
article. The findings and implications of this research (Molecular
Portrait of Brazil) go beyond the academy, serving as a
battleground that includes activists from Brazils black movement
and even members of far-right European groups, for example. A
contextualized analysis of these debates proves helpful in better
understanding the overlappings between anthropology, genetics, and
society in todays world. KEYWORDS: genetics; race; black movement;
far right; social thought; ethnicity.
Antropologia, raa e os dilemas das identidades na era da genmica
Anthropology, race, and the dilemmas of identity in the age of
genomics
Ricardo Ventura SantosEscola Nacional de Sade Pblica/Fiocruz Rua
Leopoldo Bulhes 1480 21041-210 Rio de Janeiro RJ Brasil
[email protected]
Marcos Chor MaioCasa de Oswaldo Cruz/Fiocruz Avenida Brasil,
4036 21040-361 Rio de Janeiro RJ Brasil [email protected]
v. v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 200512, n. 2, p. 447-68,
maio-ago. 2005
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RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO
Introduo
iversos autores tm enfatizado que a nova gentica (ou genmica)
est penetrando de forma avassaladora nos mais diversos domnios do
mundo contemporneo, gerando uma revoluo tecnocultural associada aos
genes que tem transformado tecnologias, instituies, prticas e
ideologias (Goodman et al., 2003; Haraway, 1997; Lippman, 1991;
Rabinow, 1992; Santos & Maio, 2004). Conhecimentos e
tecnologias da nova gentica no somente redimensionam loci
biolgicos, culturais e sociais no entorno prximo dos indivduos,
como tambm reconfiguram relaes macro-sociais, histricas e polticas
de amplo alcance. O antroplogo Paul Brodwin (2002) incisivo ao se
referir s inter-relaes entre desenvolvimento de tecnologias
genticas, sociedade e construo de identidades sociais no mundo
contemporneo. No contexto da crescente valorizao da gentica, padres
de identidade historicamente reconhecidos podem ganhar ainda mais
legitimidade ou serem negados pelos resultados de seqenciamentos de
DNA, bem como emergirem outras proposies que at ento no eram
socialmente reconhecidas. Tal o caso da relao entre raa e genmica
nos dias atuais. Em seu livro Against Race Paul Gilroy afirma que
qualquer ponderao acerca dos elementos que influenciaram o que
chama de crise da raciologia deve dar especial ateno para a
genmica. Segundo ele, a distncia que [a genmica] guarda de verses
antigas de reflexo racial produzida nos sculos XVIII e XIX reafirma
que o significado das diferenas raciais est sendo transformado
medida que as relaes entre seres humanos e natureza so reconstrudas
atravs do impacto da revoluo do DNA e dos desenvolvimentos
tecnolgicos (Gilroy 2000, p. 13-4; ver tambm 1998). Advogando uma
renncia deliberada e auto-consciente de raa como meio de
categorizar e dividir a humanidade (p. 17), Gilroy enfatiza que a
revoluo biotecnolgica requer uma mudana no entendimento de
conceitos como raa, espcie, corporificao e especificidade humana.
Em outras palavras, demanda que reconceptualizemos a relao entre ns
mesmos, nossa espcie, nossa natureza e a idia de vida: precisamos
nos perguntar, por exemplo, se ainda h lugar nesse novo paradigma
de vida para a idia de diferenas raciais especficas (p. 20, grifo
no original). Ressaltando o tom utpico de seu argumento (p. 7),
Gilroy reconhece que sua radical posio anti-raa pode comprometer ou
dificultar (ou at mesmo trair) aqueles grupos cujas reivindicaes
legtimas e at mesmo democrticas repousam em formas de identidade
solidariamente moldadas a grande custo a partir de categorias
impostas pelos seus opressores (p. 52). Raa e seus
derivativos448Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro
D
ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES
constituem um conjunto dessas categorias. Para Gilroy, abandonar
raa romper com um elo, com uma cadeia de longa permanncia
histrica:Por um lado, os beneficirios das hierarquias raciais no
desejam desistir de seus privilgios ... Por outro, grupos sociais
que tm sido subordinados atravs da dimenso racial e das estruturas
sociais resultantes ... vm por sculos empregando os conceitos e as
categorias de seus dominadores, proprietrios e perseguidores para,
justamente, resistir ao destino que raa lhes alocou... (2000, p.
12)
precisamente essa articulao entre beneficirios e subordinados,
nos termos de Gilroy, e o papel da genmica na desestabilizao do
pensamento racial, que pretendemos abordar neste trabalho. Para
tanto, nos debruaremos sobre um estudo de caso que explora a
proeminncia da nova gentica no trato de um certo conjunto de
questes scio-polticas contemporneas, em particular no plano das
inter-relaes entre raa, diversidade biolgica e construo de
identidades. Tomaremos como estudo de caso os contedos e as recepes
de pesquisas sobre as caractersticas genticas da populao brasileira
baseadas na anlise do DNA mitocondrial, do cromossomo Y e do DNA
nuclear. Estamos nos referindo a uma srie de estudos que
denominaremos de Retrato Molecular do Brasil, coordenados pelo
geneticista Srgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), e cujos resultados foram publicados em revistas de divulgao
cientfica no Brasil (como Cincia Hoje), bem como em revistas
especializadas (American Journal of Human Genetics e Proceedings of
the National Academy of Sciences of the United States of America),
a partir de 2000. Alm da reverberao em crculos acadmicos, esses
trabalhos receberam ampla ateno da mdia nacional e estrangeira,
tendo gerado acalorados debates entre especialistas e tambm
manifestaes de representantes de movimentos sociais. Em muitos
circuitos, a recepo de Retrato Molecular do Brasil foi entusistica
(ver referncias em Santos & Maio, 2004). Na opinio de alguns,
uma demonstrao cabal das potencialidades da gentica de reconstituir
a histria biolgica do povo brasileiro. O jornalista Elio Gaspari
referiu-se ao trabalho como um artigo fenomenal ... uma verdadeira
aula, motivo de orgulho para a cincia brasileira. Escreveu tambm: a
comprovao cientfica daquilo que Gilberto Freyre formulou em termos
sociolgicos, referindo-se magnitude da mestiagem no Brasil. H mais
gente [no Brasil] com um p na cozinha do que com os dois na sala...
(Gaspari, 2000), expresso utilizada at mesmo pelo ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso, quando em campanha em meados da dcada de
1990.v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005
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RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO
J para o ativista do movimento negro Athayde Motta, a pesquisa
dos geneticistas (utilizando alta tecnologia) seria um simulacro de
suporte cientfico para o mito da democracia racial brasileira. E
mais, os resultados dariam margem a possibilidades quase infinitas
de manipulao, incluindo a possibilidade de injetar sangue no
moribundo mito da democracia racial (Motta, 2000a,b; 2002) ou mesmo
virar uma campanha pr-democracia racial ... um discurso
poltico-ideolgico cuja funo primordial manter o estado de
desigualdades raciais no Brasil (Motta, 2003). No menos crtico do
trabalho dos geneticistas brasileiros foi um grupo de extrema
direita, de orientao neonazista, chamado Legion Europa, baseado na
Europa e nos Estados Unidos. Um certo M. X. Rienzi, autor de
inmeros textos no site do grupo na Internet,1 escreveu: os autores
[os pesquisadores da UFMG], da maneira mais sem vergonha, subjetiva
e no cientfica, abertamente mostram sua viso poltica sobre o
assunto de raa. Complementou: J tempo de parar de tentar deformar
realidades naturais para as encaixar em ideologias polticas; ao
invs disso, devem-se aceitar as realidades raciais existentes e
lidar com elas da melhor maneira possvel. Como se depreende dessas
reaes, o trabalho dos geneticistas brasileiros teve tal divulgao e
impacto que se nota, num certo momento, uma curiosa situao de
proximidade entre um ativista do movimento negro e um membro de um
grupo de extrema direita. Ambos, por mais distintas que sejam suas
posies e propostas polticas, criticam Retrato Molecular do Brasil,
em larga medida acusando-o de produzir, atravs da cincia, um
discurso poltico-ideolgico comprometido e com conseqncias
antagnicas s suas respectivas vises de mundo. Tendo como pano de
fundo esses contedos e reaes, algumas das questes que pretendemos
aprofundar neste trabalho so as seguintes. Como se d e qual o papel
da nova gentica na produo dessa aparente proximidade? Como se fazem
presentes os temas do essencialismo, do racismo, do racialismo e do
estabelecimento de identidades nessas crticas? Como cincia e
poltica se entrelaam nesses debates, cujos limites, claramente, no
se atm aos espaos dos laboratrios de biologia molecular?
Valorizando o contraste como lente analtica, pretendemos, atravs de
uma leitura pormenorizada das posies de setores a princpio to
distantes no espectro ideolgico, melhor compreender algumas das
interrelaes entre temas antropolgicos e a gentica no mundo atual,
com nfase na questo da raa, relaes raciais e projetos sciopolticos
nacionais e internacionais. Interessa-nos refletir sobre o espao
que o conhecimento gentico emergente ocupa no sentido de
influenciar, e at mesmo transformar, noes de coerncia e identidades
sociais, e as respostas de grupos organizados frente a ele.
450
Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro
ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES
A diversidade do povo brasileiro vista a partir da genticaEm um
influente trabalho da dcada de 1960, os geneticistas Francisco M.
Salzano e Newton Freire-Maia salientaram que as populaes
brasileiras apresentam uma oportunidade mpar para o estudo de
problemas dos mais fascinantes e complexos (1967, p. 1). Seus
estudos apontaram que as populaes brasileiras caracterizam-se, em
geral, por apresentarem grande heterogeneidade gentica ... A
heterogeneidade deriva da contribuio que lhe deram os seus grupos
raciais formadores ... So, por isso, nossas populaes um timo
material para uma srie de estudos sobre comparaes intra e
intertnicas, bem como sobre os efeitos da mestiagem (Salzano &
Freyre-Maia, 1967, p. 157). Nas dcadas de 1960 e 70 realizou-se uma
grande quantidade de estudos sobre mistura racial no Brasil (ver
Sans, 2000). Fundamentavam-se na anlise de marcadores genticos
clssicos, como, por exemplo, no sistema de grupos sangneo Rh, Diego
e protenas sricas Gm (gamaglobulinas). nesse contexto da histria da
gentica no Brasil que se insere o conjunto de trabalhos que
denominamos Retrato Molecular do Brasil. Pode-se dizer que
constitui o captulo mais recente de uma vertente de investigao
proeminente na gentica de populaes humanas que floresceu no Brasil
na segunda metade do sculo XX. Para alm disso, a pesquisa de Srgio
Pena e colaboradores, juntamente com outros estudos genticos (ver
Salzano & Bortolini, 2002; Callegari-Jacques et al., 2003),
inovam e ampliam as possibilidades de anlise atravs da utilizao do
novo arsenal tcnico oferecido pela biologia molecular. Atravs do
seqenciamento de pores do mtDNA e do cromossomo Y, os geneticistas
buscaram apresentar um panorama comparativo da distribuio geogrfica
e dos padres de ancestralidade das matrilinhagens e patrilinhagens
da populao brasileira. Ecoando a extensa literatura em gentica de
populaes no Brasil (incluindo uma continuidade discursiva que
coloca a composio da populao brasileira como mpar e fascinante em
virtude do alto grau de miscigenao), o intuito destrinchar, do
ponto de vista biolgico, a histria de formao do povo brasileiro,
enfatizando a realidade scio-demogrfica do pas no tocante
mestiagem. Um primeiro artigo da srie Retrato Molecular do Brasil
foi publicado em portugus em 2000 (Pena et al., 2000) na revista
mensal de divulgao cientfica (Cincia Hoje) da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Cincia (SBPC). Dois artigos diretamente
relacionados, com a apresentao dos resultados em pormenores para a
comunidade cientfica, apareceram no American Journal of Human
Genetics (Alves-Silva et al., 2000; Carvalho-Silva et al., 2001),
bem como um mais recente no Proceedings of the National Academy of
Sciences of the United States ou PNAS (Parra et al., 2003).v. 12,
n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005
451
RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO
Na investigao sobre polimorfismos de DNA do cromossomo Y, que
envolveu aproximadamente 250 homens auto-classificados como brancos
de diversas regies do pas, a vasta maioria de marcadores
identificados foi de origem europia, com uma muito baixa freqncia
de marcadores oriundos da parte sub-Saara da frica e uma completa
ausncia de contribuio amerndia (Carvalho-Silva et al., 2001). J os
resultados das anlises do DNA mitocondrial, baseadas na mesma
amostra, apontaram um quadro mais complexo, com a amostra
apresentando 33% de contribuio amerndia e 28% de contribuio
africana, ou seja, uma surpreendentemente elevada contribuio
matrilinear de origem amerndia e africana nos homens brancos
brasileiros estudados (Alves-Silva et al., 2000). Segundo os
autores de Retrato Molecular do Brasil, o padro de reproduo
diferencial (com patrilinhagens averiguadas atravs do cromossomo Y
predominantemente de origem europia e matrilinhagens averiguadas
atravs do DNA mitocondrial sobretudo africanas e amerndias)
detectado pelas anlises genmicas faz amplo sentido luz da histria
de colonizao do territrio brasileiro a partir de sculo XVI: os
primeiros imigrantes portugueses no trouxeram suas mulheres, e
registros histricos indicam que iniciaram rapidamente um processo
de miscigenao com mulheres indgenas. Com a vinda dos escravos, a
partir da segunda metade do sculo XVI, a miscigenao estendeu-se s
africanas (Pena et al., 2000, p. 25). Em termos de resultados, o
que emerge das pesquisas genticas a corroborao quanto natureza
mestia da amostra de (autoclassificados) brancos brasileiros, j que
a maioria (aproximadamente 60%) das matrilinhagens de origem
amerndia ou africana. Se nos dois trabalhos publicados no American
Journal of Human Genetics os autores enfocam sobretudo aspectos
gentico-moleculares e filogeogrficos, no texto de divulgao
cientfica publicado em Cincia Hoje eles no so econmicos ao
apontarem as implicaes sociais e polticas que podem derivar da
pesquisa no que tange ao combate ao racismo no Brasil:O Brasil
certamente no uma democracia racial ... Pode ser ingnuo de nossa
parte, mas gostaramos de acreditar que se os muitos brancos
brasileiros que tm DNA mitocondrial amerndio e africano se
conscientizassem disso valorizariam mais a exuberante diversidade
gentica do nosso povo e, quem sabe, construiriam no sculo XXI uma
sociedade mais justa e harmnica. (Pena et al., 2000, p. 25) 2
Em janeiro de 2003, os geneticistas publicaram um outro
trabalho, intitulado Color and genomic ancestry in Brazilians. Ao
contrrio dos estudos anteriores, que envolveram indivduos
de452Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro
ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES
diversas regies do Brasil, a pesquisa de Parra et al. (2003) foi
conduzida em uma comunidade rural especfica (Queixadinha),
localizada no Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais.
Inicialmente, um conjunto de aproximadamente 170 pessoas teve seus
componentes classificados como brancos, intermedirios e pretos,
segundo critrios morfolgicos, por dois pesquisadores (o que os
autores denominam de avaliao clnica). Levaram-se em considerao
caractersticas como pigmentao da pele, cor e textura do cabelo e
formato do nariz e dos lbios. Em seguida, coletou-se material
biolgico (amostras de sangue) de cada um dos indivduos e
procedeu-se anlise de uma bateria de marcadores informativos de
ancestralidade (MIAs), evidenciados a partir do DNA nuclear. Para
fins comparativos foram tambm analisadas amostras de trs outros
grupos (africanos de So Tom, populaes indgenas amaznicas e
portugueses). Possivelmente o principal achado do estudo de Parra
et al. (2003) foi que no h correspondncia entre classificao
morfolgica e biolgica na amostra de Queixadinha, notando-se grande
sobreposio e dificuldade de distino das caractersticas genmicas
daqueles morfologicamente classificados como brancos, intermedirios
e pretos. Em contraste, a comparao das caractersticas genticas dos
trs outros grupos (africanos de So Tom, populaes indgenas amaznicas
e portugueses) apontou para diferenas acentuadas. Concluram os
autores: Nossos resultados sugerem que no Brasil, no nvel
individual, cor, determinada por avaliao fsica, um preditor pobre
da ancestralidade genmica africana, estimada por marcadores
moleculares (Parra et al., 2003, p. 177).
Recepes e crticas aos estudos genmicos Athayde Motta e a
Perspectiva do Movimento NegroEm trabalho anterior (Santos &
Maio, 2004), descrevemos e contextualizamos as crticas do ativista
do movimento negro, Athayde Motta, em relao s pesquisas de Srgio
Pena e colaboradores. A seguir recuperamos alguns dos principais
pontos. Motta escreveu pelo menos quatro textos fortemente crticos
ao trabalho dos geneticistas, que apareceram em Afirma: Revista
Negra Online (Motta 2000a,b; 2002; 2003). Os principais aspectos
enfatizados so os seguintes: proximidade de Retrato Molecular do
Brasil com formas consideradas equivocadas e ultrapassadas de
interpretao da histria, cultura e sociedade brasileira;
questionamento quanto importncia da gentica na definio de
identidades coletivas; e impactos dos resultados genticos no que
tange implementao de polticas pblicas voltadas para o combate do
racismo no Brasil. No texto Gentica para as massas, Motta (2000a)
discorre de forma negativa sobre a existncia de paralelos entre
interpretaesv. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005
453
RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO
dos geneticistas e o que chama de outros retratos do passado
colonial brasileiro. Subentende-se que os paralelismos so com a
viso freyreana:[Retrato Molecular no Brasil] no se distancia muito
do retrato colonial de um pas inicialmente formado por populaes
indgenas e homens brancos e, posteriormente, por populaes indgenas,
negras e, ainda, mais homens que mulheres brancos. Levandose em
conta que eram os portugueses que tinham por hbito brutalizar as
nativas indgenas e as escravas negras, a pesquisa apenas confirma
geneticamente o que j era mais ou menos sabido por quem tem um
mnimo de senso crtico sobre o Brasil.
Em sua argumentao Motta tambm procura destituir a evidncia
gentica de importncia na delimitao de identidades e na definio dos
padres de sociabilidade no Brasil:a informao de que 60% da populao
branca brasileira descende de negros e ndios pode dar algum
combustvel para quem gosta de dizer que no existem brancos no
Brasil, mas no a gentica quem vai tornar isto possvel. Dentro dos
padres de relaes raciais e culturais de nossa sociedade, a definio
do ser branco est longe de ser uma questo de gentica ou biologia.
(2000a)
As crticas mais contundentes de Motta Retrato Molecular do
Brasil so quanto s possveis implicaes dos dados genticos para fins
de polticas pblicas. Ainda que faa as ressalvas de que as
possibilidades quase infinitas de manipulao ... no culpa da
pesquisa nem dos pesquisadores (2000a) e que o trabalho dos
geneticistas utiliza alta tecnologia e boas intenes para produzir
um mapa gentico de uma amostra da populao branca brasileira
(2000b), afirma que a pesquisa fornece um simulacro de suporte
cientfico para o mito da democracia racial. Vejamos ento alguns dos
principais aspectos das crticas de Motta. Primeiro, baseiam-se no
texto publicado em Cincia Hoje, sem referncias aos trabalhos
publicados nos peridicos especializados (American Journal of Human
Genetics e Proceedings of the National Academy of Sciences), com
pouca nfase em aspectos tcnicos. Segundo, o crtico ressalta o que
considera ser uma aliana dos geneticistas com modalidades
conservadoras de explicar o Brasil, sobretudo atravs de Gilberto
Freyre. Terceiro, questionada a relevncia do conhecimento biolgico
na revelao de realidades histricas e sociais no Brasil (ou seja, a
gentica no estaria evidenciando nada de novo que a histria, a
antropologia e a sociologia j no tenham apontado),3 bem como seu
papel no delineamento de polticas pblicas.
454
Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro
ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES
M. X. Rienzi e a perspectiva da extrema-direitaLegion Europa um
grupo de extrema-direita, de orientao neonazista, cujo site na
Internet apresenta informaes sobre suas concepes e metas polticas,
incluindo uma grande quantidade de textos de carter doutrinrio (ver
Nota 1). No possvel identificar onde esto localizados fisicamente
(ou seja, no h endereo postal), ainda que se depreenda que sua base
seja na Europa ou Estados Unidos em razo dos contedos abordados. No
site encontram-se vrios ensaios analticos sobre pesquisas em
gentica humana, a maioria dos quais de autoria de M. X. Rienzi (um
pseudnimo). Um deles aborda o trabalho dos geneticistas
brasileiros. Logo na abertura do Legion Europa est uma resposta
para a indagao Quem somos ns?. A linha argumentativa que seu
objetivo reverter um quadro de enfraquecimento tnico e sciopoltico
dos Euros, supostamente desencadeado pela influncia de outras raas,
qualificadas como inferiores e parasitas. L-se:Ns somos europeus
(Euros), ou povos de vrias descendncias tnicas europias, que
compartilhamos uma biocultura/biohistria tradicionalmente conhecida
por Civilizao Ocidental. Nossa raa o solo a partir do qual o jardim
conhecido como Civilizao Ocidental floresceu. Ns somos as abelhas
que coletam o melhor de cada flor para fazer o mais doce dos mis,
mas tambm podemos picar poderosamente aqueles que ousem pisar em
nossos ps. Somos uma raa, com vrias tribos, mas ainda assim um povo
com uma biocultura/bio-histria comum. Foi atravs da traio, da
deslealdade contra nosso povo por parte dos OUTROS, que aqueles que
no so de nossa raa grupos de fora ou outgroups - foram capazes de
prosperar e atingir uma tal influncia nos eventos mundiais que
nossa prpria existncia est agora ameaada por eles.
Perpassa todo o contedo do site um discurso que se apia em
pressupostos de superioridade racial ariana, militarismo (h inmeras
referncias aos espartanos, por exemplo), anti-semitismo (e tambm
invocaes contra rabes e indianos) e valorizao do nacional
socialismo alemo (Juventude de Hitler e SS como estruturas
corporativas modelares), entre outros aspectos. Destaca-se tambm no
discurso da Legion Europa a valorizao de conhecimentos cientficos e
de tcnicas no terreno das cincias biolgicas, e sobretudo da
gentica. o que se percebe na leitura da chamada Declarao dos
Direitos Etno-raciais (um bvio paralelo com a Declarao dos Direitos
Humanos da ONU), na qual h recorrentes referncias ao uso de
tecnologias biolgicas para promover a recuperao de padres de
homogeneidade e coerncia dos Euros:
v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005
455
RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO
Todo grupo etno-racial, incluindo todos os povos de descendncia
europia, tem o direito de sobreviver ... Todo grupo etnoracial tem
o direito de estabelecer qualquer que seja o grau de homogeneidade
biolgica e cultural nas terras onde vive, incluindo o direito a
estabelecer Estados-naes completamente homogneos, excluindo outros
grupos etno-raciais ... O grupo etno-racial um grupo de parentesco
extenso, uma famlia extensa. Do mesmo modo que uma pessoa tem o
direito de promover os interesses de sua famlia, tambm deve ter o
direito de promover os direitos de seu grupo etno-racial. No deve
haver leis que impeam a promoo ampla dos interesses etno-raciais
das pessoas. Deve haver liberdade completa de expresso e de reunio,
para formar partidos polticos, para promover homogeneidade
etno-racial e separatismo e para se opor globalizao e imigrao do
tipo etno-racial ... Aos grupos etnoraciais deve ser permitido
seguir quaisquer tipos de estratgias reprodutivas que desejem,
incluindo endogamia, eugenia e clonagem humana ... A busca dos
interesses etno-raciais deve receber a mais alta prioridade e
dignidade. A todos deve ser permitido promover o melhor para seus
respectivos povos, a ponto de no infringir de maneira injusta os
direitos etno-raciais de outros grupos.
no bojo desse racismo extremado que se insere o ensaio de Rienzi
(identificado como um bilogo da regio nordeste dos EUA) sobre a
pesquisa dos geneticistas brasileiros publicada no PNAS em 2003.
Antes de entrar no contedo das crticas propriamente, podemos
conjeturar sobre as razes que levaram o Legion Europa a se
interessar pelo trabalho dos pesquisadores brasileiros. Alm do tema
(raa e gentica de populaes), o artigo foi veiculado em um peridico
que considerado como um dos mais influentes do mundo.4 De fato, um
veculo bastante prestigioso, publicado duas vezes por ms e que
geralmente considera para publicao contribuies dos prprios membros
da Academia Nacional de Cincias dos EUA ou trabalhos por eles
indicados.5 Alm da visibilidade que o PNAS por si oferece aos
artigos l publicados, o texto de Parra et al. foi selecionado pela
assessoria de imprensa do peridico para compor a chamada pauta de
sugestes (tipsheet dating), que preparada e disseminada a cada novo
fascculo do peridico. Os trabalhos includos nessa pauta so
previamente disponibilizados para a imprensa, de modo que os
jornalistas tenham tempo para preparar matrias de divulgao. Dos
aproximadamente 40 artigos que compunham o volume no qual saiu o
trabalho de Parra et al., alm do prprio, somente trs outros foram
selecionados, o que garantiu uma ampla divulgao da pesquisa gentica
realizada no Brasil e nas mais diversas partes do mundo. A crtica
de Rienzi ao estudo de Queixadinha ocupa em torno de quatro pginas.
longa e minuciosa. Tem por ttulo uma indagao:456Histria, Cincias,
Sade Manguinhos, Rio de Janeiro
ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES
Cientistas provam que raa no existe?. Para o crtico do Legion
Europa, o trabalho dos geneticistas brasileiros uma pea ideolgica
travestida de cincia. Rienzi inicia seus comentrios afirmando que o
trabalho dos pesquisadores brasileiros circulou amplamente na
Internet por ocasio de sua publicao. Sua preocupao que se acredite
que os resultados do estudo brasileiro possam ser extrapolados para
outros contextos. Para tanto, faz meno a um ponto enfatizado no
material de divulgao do PNAS, qual seja, de que os resultados da
pesquisa apontam que no Brasil no se detecta uma clara correlao
entre traos fsico-raciais e marcadores genticos de origem e
ancestralidade. Segundo Rienzi, para a turma dos que negam raa,
esse achado dos brasileiros prova que o conceito de raa invlido do
ponto de vista biolgico. Recuperando um trecho de uma entrevista de
Srgio Pena divulgada por ocasio da publicao do trabalho, quando o
geneticista afirmou que as concluses do estudo aplicavam-se somente
ao Brasil e que no devem ser ingenuamente extrapoladas para outros
pases, Rienzi finda por concluir que o que se disseminou para o
pblico geral que os resultados obtidos no estudo brasileiro teriam
aplicabilidade universal. Depois de palavras introdutrias at
moderadas, Rienzi parte para crticas extremamente cidas, que
incluem at o contedo da epgrafe do trabalho de Parra et al. (Vejam
vocs lderes, de todo o mundo, fazendo novamente! Pretos, brancos,
amarelos, pardos, povos de todas as cores matando povos de todas as
cores. Porque Sat sempre o mesmo, extrada do livro de S. L. Carter
The Emperor of Ocean Park). Para ele, de uma maneira reveladora,
por meio dessa epgrafe os geneticistas apresentam suas verdadeiras
vises sobre a questo da raa de uma maneira sem vergonha, subjetiva
e no cientfica. Indaga como um peridico como o PNAS pode veicular
um texto to carregado de subjetividade sentimental. O restante das
observaes de Rienzi compe um rosrio de questes tericas e
metodolgicas que revelam uma leitura especializada e minuciosa do
texto dos geneticistas. O articulista entra em pormenores acerca
das caractersticas das amostras, critrios de classificao
utilizados, nmero e tipos de marcadores genticos empregados,
particularidades de interpretao de tabelas, grficos e testes
estatsticos, entre outros pontos. Sua concluso a seguinte:Em
resumo, este artigo, de modo algum, invalida o conceito biolgico de
raa. Que algum venha a fazer tal afirmao [com base nas evidncias
apresentadas] altamente irresponsvel, para dizer o mnimo ...
Pode-se indagar se, no que diz respeito aos temas relacionados
biologia humana, estamos agora lidando com o mesmo tipo de
establishment entrincheirado, com motivaes scio-polticas com as
quais Galileu teve de lidar emv. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago.
2005
457
RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO
seu trabalho em astronomia. Se permitimos que o politicamente
correto informe a pesquisa em gentica humana, estamos nos dirigindo
de volta aos dias da Inquisio ... J tempo de parar de tentar
deformar realidades naturais para as encaixar em ideologias
polticas; ao invs disso, devem-se aceitar as realidades raciais
existentes e lidar com elas da melhor maneira possvel.6
A proximidade distante: racialismo igualitrio e racialismo
hierrquicoPaul Brodwin, a quem j nos referimos na Introduo, autor
de um comentrio que, de certo modo, dissolve os limites entre o
laboratrio e a sociedade: traar nossa ancestralidade atravs de um
conjunto particular de alelos ou mutaes do cromossomo Y ou do DNA
mitocondrial tornou-se no s um procedimento de laboratrio, mas
tambm um ato poltico (2002, p. 324). Na sua viso, as premissas e as
repercusses, sejam quais forem as respostas fornecidas pela
gentica, so mltiplas e significativas. Que agentes sociais
solicitaram a realizao dos testes e quem forneceu as amostras? Quem
interpreta os resultados e quem os divulga? Em que contextos as
novas interpretaes so lanadas em pblico? Como sero utilizadas? Nas
sees anteriores buscamos recuperar dois conjuntos de recepes/reaes,
oriundas de um ativista do movimento negro no Brasil e de um
porta-voz de um movimento de extrema-direita
europeu-norte-americano, que enfocaram resultados de investigaes
genmicas recentes realizadas no Brasil. Ambos manifestaram pontos
de vista abertamente crticos quanto aos resultados, repercusses e
implicaes das pesquisas genmicas dos geneticistas da Universidade
Federal de Minas Gerais. Athayde Motta referiu-se a Retrato
Molecular do Brasil como um discurso poltico-ideolgico cuja funo
primordial manter o estado de desigualdades raciais no Brasil; M.
X. Rienzi, por sua vez, considera os estudos dos cientistas
brasileiros como discursos no-cientficos, de natureza
poltico-ideolgica a servio da conspurcao das realidades naturais,
ou seja, da existncia de diferenas e hierarquias raciais. O que
chamamos de proximidade (devidamente colocada entre aspas, por
razes que exploraremos a seguir) evidencia, entre outros aspectos,
a enorme influncia e fora que o conhecimento gentico possui no
mundo contemporneo, no caso como fonte de questionamento acerca de
noes de identidade e coeso de grupos sociais. Alcana um status, com
visibilidade e legitimidade de tal ordem, que finda por colocar
prximas dimenses e atores sociais que se localizam distantes no
plano da ideologia e da ao poltica. No livro Ns e os outros: A
reflexo francesa sobre a diversidade humana, o historiador e
filsofo Tzvetan Todorov introduz uma458Histria, Cincias, Sade
Manguinhos, Rio de Janeiro
ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES
distino terminolgica que pode nos ajudar a compreender a tal
proximidade qual nos referimos. Todorov enfatiza a diferena entre
racialismo (de ordem ideolgica, uma doutrina referente s raas
humanas) e racismo (de ordem comportamental, o mais das vezes, de
dio e desprezo com respeito a pessoas com caractersticas fsicas bem
definidas e diferentes das nossas, 1993, p.107). Antes de abordar
Motta e Rienzi sob a tica do racialismoracismo, preciso compreender
como a prpria gentica moderna, incluindo as pesquisas genmicas
contemporneas no Brasil, na linha de Retrato Molecular do Brasil,
se colocam diante dessa dade conceitual. A crtica ao conceito de
raa a partir da gentica de populaes e do neodarwinismo j existe h
muitas dcadas. Suas influncias estiveram presentes, por exemplo,
por ocasio da elaborao das primeiras declaraes sobre raa da Unesco,
ainda na dcada de 1950. Na agenda de combate ao racismo em diversas
partes do mundo, na segunda metade do sculo XX, fez-se presente de
modo pronunciado um iderio anti-racialista. Tal agenda enfatiza a
noo de que o conceito de raa no cientificamente vlido, sendo pouco
til para descrever a diversidade biolgica humana. A partir de tal
nfase, era de esperar, por conseguinte, que seriam enfraquecidas
algumas das importantes bases conceituais (existncia de raas) que
levavam ocorrncia de tratamentos discriminatrios e reproduo de
desigualdades sociais baseadas em raa. De certo modo, essa tem sido
a posio de um significativo grupo de geneticistas. Como demonstra a
elaborao das Declaraes sobre Raa da Unesco, emergiu no ps-guerra um
biologia ou pelo menos um grupo de pesquisadores que advogava um
homem universal e biologicamente equipado para a igualdade e o
direito plena cidadania (nos termos de Donna Haraway, 1989; 1997).
Pelo esforo de um grupo de bilogos, do qual constavam Theodosius
Dobzhansky e Julian Huxley, era possvel articular biologia
evolucionria e humanismo, visando estimular entre os seres humanos
cooperao, dignidade, controle da agresso e progresso no clima ps
Segunda Guerra (ver Santos, 1996). Retrato Molecular do Brasil
herdeiro dessa influente tradio universalista, concomitantemente
anti-racialista e anti-racista, que marcou uma significativa
parcela das pesquisas sobre variabilidade biolgica humana ao longo
da segunda metade do sculo XX.7 Mesmo que no necessariamente aceita
em seu vis biolgico, a proposta interpretativa derivada das
pesquisas genmicas encontrou ampla ressonncia positiva em vrios
crculos no Brasil por conta sobretudo de suas implicaes. Mesmo
estando cada vez mais evidente que o Brasil no uma democracia
racial, como demonstram as estatsticas scio-econmicas, permanece a
viso do pas como racialmente e culturalmente hbrido. Valorizada por
largosv. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005
459
RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO
segmentos da sociedade brasileira, esta percepo sustenta que
compartimentalizaes precisas so pouco discernveis, portanto em
larga medida levando neutralizao de identidades raciais bem
delimitadas. Com a autoridade e a valorizao conferida pela genmica,
o quadro delineado pelas pesquisas genticas aproximase e d subsdios
a esta vertente, ainda que os geneticistas reiterem a pouca
relevncia do conceito de raa em sua acepo biolgica. Sobretudo, as
narrativas sobre a (bio)histria da formao do povo brasileiro
produzidas pela genmica, nos moldes de Retrato Molecular do Brasil,
vm ao encontro de um imaginrio social amplamente arraigado que v na
miscigenao um elemento positivo e definidor da identidade do Brasil
enquanto nao. A aparente proximidade entre Motta e Rienzi torna-se
infinitamente distante ao constatarmos que, se no primeiro
predomina uma matriz racialista, mas eminentemente anti-racista, no
segundo predomina o binmio extremo racialismoracismo. Mesmo diante
dessas imensas diferenas, h um ponto de convergncia em relao s
pesquisas genmicas, que repousa na crtica proposio de dissoluo de
identidades (biolgicas e raciais) que transborda de Retrato
Molecular do Brasil, ou seja, seu respaldo para uma perspectiva
anti-racialista. Motta considera que prevalece no Brasil um sistema
de relaes raciais arcaico e perverso, que finda por mascarar a
existncia de discriminao e preconceito, favorecendo a persistncia
de desigualdades. O anti-racialismo enfatizado pela gentica, como
expresso em Retrato Molecular do Brasil e outras pesquisas
genticas, visto por ele como solapando as bases que fundamentam
possibilidades de identidades coletivas necessrias para organizar
resistncias a opresses. Compartimentalizao e polarizao, com vistas
a fortalecer identidades raciais, so modalidades de sociabilidade a
serem implementadas em aes polticas visando combater o racismo,
semelhana da experincia norte-americana. Se o racialismo de Motta
tem, a princpio, o objetivo de superar iniqidades (sua crtica ao
trabalho dos geneticistas mineiros est estreitamente associada s
implicaes dos dados genticos para as discusses sobre a implementao
de aes afirmativas no Brasil), o racialismo da Legion Europa tem
precisamente o intuito de estabelecer e reforar iniqidades, em
muitos planos. Ou seja, em um predomina um racialismo igualitrio;
em outro, um racialismo hierrquico. Na proposta da Legion Europa, h
o perigoso acoplamento entre racialismo (com forte teor biolgico) e
racismo, que segundo Todorov produz resultados particularmente
desastrosos: tal , precisamente, o caso do nazismo (1993, p. 107).
Os elementos j apontados compartimentalizao, polarizao, antagonismo
e conflito, novamente com vistas a fortalecer identidades raciais
informam e constituem a essncia das apropria460Histria, Cincias,
Sade Manguinhos, Rio de Janeiro
ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES
es de Rienzi em relao ao trabalho dos geneticistas brasileiros.
A nfase na compartimentalizao por parte da Legion Europa
(eufemisticamente) construda atravs de metforas que enfatizam
jardim, flor e mel (Nossa raa o solo a partir do qual o jardim
conhecido como Civilizao Ocidental floresceu. Ns somos as abelhas
que coletam o melhor de cada flor para fazer o mais doce dos mis,
mas tambm podemos picar poderosamente aqueles que ousem pisar em
nossos ps), sob a qual se esconde forte dose de dio racial,
eugenia, preconceito e hierarquia, representados pelo ferro das
abelhas.
Relativizando polaridadesQuase trs dcadas atrs, Lvi-Strauss
publicou em seu livro O olhar distanciado o captulo Raa e cultura.
Trata-se de uma combinao de palavras que lembra o ttulo de seu
muito conhecido Raa e Histria, originalmente de 1952, que foi
escrito por encomenda da Unesco em sua iniciativa anti-racista no
ps-holocausto (LviStrauss, 1960 [1952]). Em dado momento,
Lvi-Strauss se refere ao aparecimento da gentica de populaes na
cena antropolgica (1986, p. 14) para abordar os temas da raa e do
racismo. Raa e cultura um testemunho de que as imbricaes entre
antropologia e gentica no so to recentes assim. Nos dias de hoje,
no incomum que, quando antroplogos refletem e escrevem sobre a
gentica, refiram-se com freqncia s noes de biodeterminismos ou
bio-reducionismos. o que sugere Roger Lancaster (2003, 2004) para a
antropologia norteamericana contempornea. Como ressalta este autor,
ao longo da ltima dcada, a biomitologia permeou a cultura americana
como nunca antes. A idia de que aspectos de gnero, orientao sexual
e instituies sociais so geneticamente (ou neuro-hormonalmente)
determinadas floresce sombra do Projeto Genoma Humano (2004, p. 4).
Enfatizando o papel da sociobiologia e da psicologia evolutiva
nesse processo, Lancaster no atribui a disseminao de vises
bio-reducionistas unicamente expanso de certos campos da cincia,
mas sobretudo s formas como o conhecimento cientfico divulgado
pelos meios de comunicao.8 Explicaes sobre a maneira como um
pequeno conjunto de elementos, ou esse ou aquele gene ou estrutura
biolgica, determina essa ou aquela caracterstica complexa, e com
acenos para o desenvolvimento de drogas ou de outras tecnologias
para fins de cura de doenas ou remediao de complexos problemas
sociais, encontram amplo espao nos meios de comunicao. Segundo
Lancaster, so fceis de serem veiculadas e absorvidas pelo grande
pblico graas estrutura simplificada causaefeitosoluo que predominam
nesses raciocnios. Mesmo que venha a ser refutada por pesquisas
subseqentes,v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005
461
RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO
reduzida a probabilidade de que a negao de uma dada formulao
bio-reducionista venha a ganhar igual espao nos meios de comunicao
que aquele conferido formulao original.9 Lancaster tambm observa
que a nfase em essencializaes, com afinidades com
bio-reducionismos, impregna certos debates sobre polticas de
identidade nos Estados Unidos. Por exemplo, esse o caso de setores
do movimento gay, que abraam a noo da existncia do gene gay para
sustentar argumentos jurdicos relevantes nas discusses no campo dos
direitos civis. Ou seja, proposies bio-reducionistas oriundas da
biologia so absorvidas por segmentos de grupos sociais organizados,
que as utilizam em suas formulaes de ao poltica no campo da
delimitao e do fortalecimento de identidades. Sobre essa coalizo,
ele comenta:A poltica de identidade, a quintessncia da
justificativa americana moderna para a ao social e a compensao
poltica atravs da nfase em identidades essenciais profundamente
enraizadas, oferece um solo frtil para o bio-reducionismo. Todos,
incluindo tanto os marginalizados e oprimidos, quanto os
dominadores, querem ter uma parte na ao ... Mais do que qualquer
outra coisa, o reducionismo de hoje se prope a conferir
estabilidade s identidades nos points de capiton [pontos de
ancoragem] da biologia ou seja, almeja assegurar estabilidade e
certezas numa era na qual quase nada sobre identidade ou biologia
parece fixo ... Alm do mais, esta abordagem para garan-tir direitos
bsicos e reconhecimento encontra ressonncia numa antiga tradio
ocidental de entendimento do que natureza como aquilo que excede
controle consciente e vontade. (2004, p. 5)
Quais as relaes entre essa digresso e o nosso estudo de caso?
Mltiplas, incluindo que os debates em torno das pesquisas genmicas
no Brasil so, no mago, discusses acerca de polticas de identidade.
Se no caso apontado por Lancaster movimentos sociais podem vir a
beber na fonte do reducionismo biolgico, incorporando algumas
premissas em suas aes polticas, nos debates em torno de Retrato
Molecular do Brasil o que temos a cincia solapando bases que
aliceram posies no plano de polticas de identidades. As pesquisas
genticas realizadas no Brasil evidenciam que, menos que essncias
profundas e imutveis, o que se tem a revelao de uma notvel mistura.
Com uma certa licena retrica, podese dizer que os resultados dos
seqenciamentos do DNA evidenciam que as aparncias enganam; sob a
pele, brancos se mostram em menor ou maior grau genomicamente
africanos, e negros, em menor ou maior grau europeus. Uma mensagem
subliminar de Retrato Molecular do Brasil que fentipo e gentipo
podem ser largamente distantes. So, portanto, argumentos que primam
pela462Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro
ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES
nfase na fluidez, instabilidade e indefinio de categorias no
plano racial. Segmentos da sociedade, atravs de representantes de
grupos organizados, sejam ligados ao movimento negro como Motta,
mas sobretudo a extrema-direita de Rienzi, em diferentes graus vem
no discurso anti-essencialista de Retrato Molecular do Brasil uma
ameaa para suas premissas.10 Ressalte-se que a perspectiva
antiessencialista que se depreende da pesquisa genmica pode se
tornar pea relevante em jogos retricos de grande relevncia
sciopoltica graas autoridade e legitimidade que desfruta na
sociedade ocidental nos tempos atuais. Os debates em torno de
Retrato Molecular do Brasil findam por desestabilizar o que o senso
comum (ao menos no plano de algumas correntes das cincias sociais)
tende a considerar como uma das polaridades mais comuns do im, qual
seja, da biologia (e da gentica) como inexoravelmente atrelada
proposio e defesa de princpios deterministas e essencializados. Se
nos exemplos de Lancaster h coalizo entre uma certa vertente do
pensamento biolgico e movimentos sociais, em Retrato Molecular do
Brasil o embate frontal com a cincia, na defesa de um
anti-essencialismo que visto como ameaador para certas pautas de ao
social e poltica.11
Consideraes finaisAo longo deste trabalho refletimos acerca das
repercusses de pesquisas sobre a variabilidade biolgico-genmica da
populao brasileira, em particular como vieram a se constituir em
arena de disputa e contestao de premissas relacionadas a embates
sciopolticos e histricos extremamente amplos. Num certo sentido,
por meio da repercusso do estudo publicado no PNAS, Queixadinha, um
povoado rural minsculo e pobre do Vale do Jequitinhonha, no norte
de Minas Gerais, que mal consta dos mapas nacionais e muito menos
de atlas estrangeiros, tornou-se pea de um jogo que, em ltima
instncia, atrela-se a embates discursivos relacionados permanente
tenso tnico-racial derivada da imigrao das ex-colnias africanas e
asiticas e dos pases do Leste para a Europa Ocidental, bem como do
processo de unificao do continente europeu. Podemos nos indagar se,
mediante a nfase na dimenso genmica, Queixadinha talvez no
represente, sob novas vestes, a idia do Brasil como modelo analtico
privilegiado em debates sobre miscigenao, raa e relaes raciais,
como j o foi diversas vezes no passado.12 Nessa reatualizao do
Brasil como paradigma de pas no qual se verificam, por meio da
pesquisa genmica, os paradoxos da utilizao do conceito de raa,
Queixadinha vista pela extrema direita representada pelo Legion
Europa como um anti-modelo ferozmente contestado.v. 12, n. 2, p.
447-68, maio-ago. 2005
463
RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO
Os elementos apresentados ao longo do texto tambm nos levam a
refletir sobre o que, afinal, constitui a antropologia na era da
gentica. Ser que estamos diante de uma situao de novas tecnologias
biolgicas alimentando, direta ou indiretamente, a emergncia de
novas configuraes ideolgicas? Os panoramas traados permitem-nos
afirmar que, menos que uma combinao entre novas tecnologias
biolgicas e novas configuraes ideolgicas, o que percebemos no
horizonte , parafraseando Luiz Fernando Duarte, novas tecnologias
biolgicas e velhas configuraes ideolgicas.13 DNA e genoma se
hibridam com raa, tipologias e nacionalismos, tendo como pano de
fundo questes de identidade e de transformao poltica que
transcendem fronteiras nacionais especficas e atingem configuraes
internacionais de amplo alcance. Podemos conceber o processo de
genetizao da sociedade como o aglomerado de transformaes e gerao de
novos significados no mbito das sociedades ocidentais que tm na
nova gentica ou genmica uma de suas bases e importante elemento
propulsor (Lippman, 1991). Sobre as relaes entre genetizao e
identidades, Paul Brodwin (2002, p. 324) comentou: o conhecimento
gentico emergente tem o potencial de transformar noes contemporneas
de coerncia social e de identidade de grupo ... o que est em jogo a
estima pessoal e autovalorizao, a coeso dos grupos, acesso a
recursos e discusses sobre injustias histricas. Como procuramos
argumentar, o significado das diferenas raciais, e sua prpria
essncia e existncia, esto sendo reconstrudos pelos impactos da
genmica. de indagar se esses novos conhecimentos e tecnologias
alteram o panorama de maneira radical ou, pelo contrrio, reinstalam
e reforam percepes sobre diferenas raciais de formas at mesmo mais
insidiosas e deterministas. Na prtica, o que percebemos que as
relaes entre conhecimento e tecnologias biolgicas e as diferenas
raciais podem assumir mltiplas formas a depender do contexto
scio-poltico no qual se instauram. Vimos que a chamada genetizao da
dinmica social na linha de Retrato Molecular do Brasil no leva
necessariamente a uma maior ou mais intensa naturalizao das
diferenas raciais. Parafraseando Paul Gilroy, deriva da pesquisa
sobre a genmica dos brasileiros uma perspectiva contra raa que
renuncia de maneira deliberada e autoconsciente a noo de raa como
forma de categorizar e dividir a humanidade (2000, p. 17).
Portanto, necessrio relativizar a premissa segundo a qual o
processo de genetizao da sociedade, at mesmo com seus
desdobramentos no plano das polticas de identidade, sempre sinnimo
de determinismo, essencializao e hierarquia, atributos que tendem a
ser inexoravelmente atrelados biologia por uma larga gama de
reflexes scio-antropolgicas.14464Histria, Cincias, Sade Manguinhos,
Rio de Janeiro
ANTROPOLOGIA, RAA E OS DILEMAS DAS IDENTIDADES
Nossos agradecimentos aos dois pareceristas annimos de Histria,
Cincias, Sade Manguinhos pelos instigantes comentrios. Uma primeira
verso deste trabalho foi apresentada no simpsio Antropologia na Era
da Gentica, realizado durante a XXIV Reunio Brasileira de
Antropologia, Recife, 12 a 15 de junho de 2004.
No instvel e complexo tabuleiro no qual interagem conhecimento
cientfico, racismo e racialismo, contextos locais e transnacionais
e pautas de reivindicaes de movimentos sociais os mais diversos, a
abordagem genmica para a variabilidade biolgica humana firma-se
como dimenso que rearticula padres de proximidade e distncia entre
beneficirios das hierarquias raciais e grupos que tm sido
subordinados atravs da dimenso racial, nos termos de Gilroy. Se a
ultra-moderna linguagem dos genes e do DNA consolida-se como
extremamente influente nos debates sobre polticas de identidade no
mundo contemporneo, a hiperantiga perspectiva da raa e de diferenas
essencializadas perdura como elemento que ainda est longe de ser
ofuscado, mas que experimenta constante reconfigurao em sua interao
com conhecimentos e tecnologias emergentes.
NOTAS1 A abertura do site do Legion Europa
(www.legioneuropa.org) apresenta as seguintes entradas: Who we are;
What we believe; What to do?; Euroholidays; Ideology of Ethnicity;
Culture; Racial Diversity; History; Race Reality; Commentaries;
Links. A pgina eletrnica esteve on-line at pelo menos fevereiro de
2004, no tendo voltado a ser disponibilizada at o presente (jun.
2005). Todo o material contido no site, em 2.11.2003, foi impresso
e uma cpia dessa documentao depositada na Biblioteca da Casa de
Oswaldo Cruz, Fundao Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2
Outro exemplo quanto s possibilidades de atrelamento entre
conhecimento gentico e questes sociais, com implicaes para o campo
das polticas pblicas, o recm-publicado artigo Pode a gentica
definir quem deve se beneficiar das cotas universitrias e demais
aes afirmativas?, de Pena & Bortolini (2004).
Curiosamente, quando o intuito da pesquisa gentica o de revelar
padres de ancestralidade dos negros, Motta a apresenta de uma
maneira bastante positiva. o caso de um documentrio intitulado
Motherland: a Genetic Journey, produzido pela BBC. Nele so
apresentados resultados quanto s origens genticas de britnicos
afro-caribenhos. Participantes do programa, depois de realizados os
testes genticos, viajaram s regies de seus antepassados
(identificadas a partir das evidncias genmicas) de modo a entender
um pouco mais sobre a cultura da qual, em alguns pontos,
compartilham at hoje. Complementam os comentaristas: Ter o respaldo
de um centro cientfico reconhecido foi importante para Motherland.
No apenas para assegurar a seriedade do programa, mas tambm para
provocar no meio cientfico a reflexo sobre [o fato] de que genes e
cromossomos podem representar muito mais do que a definio do sexo
de um animal (Cesar & Motta, 2004). Santos & Maio (2004)
comentam sobre essa construo da imagem de uma gentica do bem.4
3
A verso on-line do PNAS recebe cerca de quatro milhes de
consultas por semana, segundo consta na pgina da Internet do
peridico (www.pnas.org/misc/about.shtml, acessado em 24.5.2004). No
caso do artigo de Parra et al., a indicao partiu de Francisco Mauro
Salzano, eminente geneticista da UFRGS e um dos dois nicos
cientistas brasileiros membros da Academia Nacional de Cincias dos
Estados Unidos, que publica o PNAS.
5
Para fins de sistematizao, vale destacar alguns aspectos da
crtica do Legion Europa. Primeiro, baseia-se somente no texto
publicado no PNAS (sequer so mencionados os trabalhos publicados no
American Journal of Human Genetics ou na Cincia Hoje). Segundo,
preocupa particularmente o crtico a ressonncia do trabalho dos
geneticistas brasileiros na mdia internacional, e que os resultados
possam ser extrapolados para contextos outros que no o Brasil.
Terceiro, so comentrios com grande nfase em aspectos tcnicos
(referentes biologia molecular e outras dimenses da metodologia),
que partem de algum que se considera da mesma comunidade dos
cientistas (ou seja, da rea de gentica de populaes).7
6
Segundo Santos & Maio (2004, p. 86), No bojo dessa
perspectiva, o homem brasileiro apresentado pelos geneticistas, uma
vez livre de perspectivas racistas e consciente de sua biologia,
estaria em melhores condies para buscar a equidade e a cidadania
plena, para si e para seus pares. No caso de Retrato Molecular
do
v. 12, n. 2, p. 447-68, maio-ago. 2005
465
RICARDO VENTURA SANTOS e MARCOS CHOR MAIO
Brasil e das demais pesquisas genticas de Pena e colaboradores,
os resultados, considerados pelos cientistas como propcios construo
de possibilidades democrticas, foram apropriados e/ou traduzidos de
modo distinto por outros segmentos envolvidos no debate sobre raa e
relaes raciais no Brasil.8 Sobre esse tema, ver Condit (1999),
Horgan (1993), Massarani et al. (2003) e Rose (1997), bem como
inmeros artigos no peridico Public Understanding of Science. 9
A propsito, as reflexes de Lancaster tm um ar de nostalgia,
quando ele observa que esses novos bioreducionismos e
essencializaes, atualmente prevalentes tanto em alguns crculos
acadmicos como na cultura popular (norte-americana), no somente
revertem dcadas de sofisticada teorizao sobre a cultura e de
pesquisa emprica sobre variabilidade cultural; vm tambm tomar um
lugar que a antropologia anteriormente ocupava na esfera pblica,
agora progressivamente dominada por explicaes simplrias e de fcil
absoro (Lancaster, 2004, p. 4).10 Sobre Retrato Molecular do
Brasil, Athayde Motta fez o seguinte comentrio: a informao de que
60% da populao branca brasileira descende de negros e ndios pode
dar algum combustvel para quem gosta de dizer que no existem
brancos no Brasil, mas no a gentica quem vai tornar isto possvel.
Dentro dos padres de relaes raciais e culturais de nossa sociedade,
a definio do ser branco est longe de ser uma questo de gentica ou
biologia (2000a). O pomo da discrdia na perspectiva de Motta no
propriamente o antiessencialismo da gentica, mas um
anti-essencialismo que, originado no plano biolgico, pode penetrar
no plano scio-cultural e se tornar definidor de vises de mundo. 11
A esquematizao de Manuel Castells sobre as formas e as origens da
construo de identidades til para refletir sobre o nosso tema.
Castells se refere identidade legitimadora, identidade de
resistncia e identidadeprojeto. Esta ltima acontece quando os
atores sociais, com base no material cultural a sua disposio,
constroem uma nova identidade que redefine sua posio na sociedade
e, conseqentemente, se propem a transformar o conjunto da estrutura
social (Castells 1997, p. 8; ver tambm Calhoun, 1994). Tanto a noo
de afro-descendentes como a de europeus podem ser compreendidas luz
da noo de identidade-projeto, no recorte das relaes raciais. O que
ocorre que a gentica, atravs de Retrato Molecular do Brasil, em
menor ou maior escala, desestabiliza importantes premissas que
amparam essas identidades-projeto, da a resistncia manifestada por
Motta e Rienzi.
possvel que Queixadinha oferea, em termos de modelo analtico
para fins de estudos genmicos sobre raa e diversidade biolgica do
povo brasileiro no incio do sculo XXI, o equivalente ao que
representaram as pesquisas sobre comunidades rurais tradicionais do
interior da Bahia, coordenadas por Charles Wagley na dcada de 1950,
no mbito de um conjunto de investigaes promovido pela Unesco no
ps-holocausto. Como enfatizou Wagley na introduo de Race and Class
in Rural Brazil, que apresenta os resultados das pesquisas
etnogrficas realizadas nas vrias localidades, o mundo tem muito a
aprender com o estudo das relaes raciais no Brasil ... Os vrios
projetos sobre o tema das relaes raciais, os quais foram
estimulados pelo projeto Unesco no Brasil, devem nos dar pela
primeira vez um conhecimento objetivo da situao tal como ela existe
sob uma variedade de condies por todo este vasto e diversificado
pas (Wagley, 1952, p. 89). Sobre o Brasil nos debates envolvendo
raa e racismo no ps-guerra, ver Maio (1998; 2001).13
12
Comentrio durante discusso no grupo de trabalho Pessoa e corpo:
novas tecnologias biolgicas e novas configuraes ideolgicas,
coordenado por Luiz Fernando Dias Duarte e Jane Russo, XXVII
Encontro Anual da Anpocs (Caxambu, 25-27 out. 2003).14 Sobre esse
ponto ver a excelente discusso de Peter Wade (2002) em seu recente
livro Race, Nature and Culture (em particular, os captulos 5 e
6).
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS Alves-Silva, J. et al. 2000 Brodwin,
Paul 2002 Calhoun, G. 1994 Callegari-Jacques, S. M. et al. 2003 The
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Recebido para publicao em outubro de 2004. Aprovado para
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