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O QUE O TIO SAM REALMENTE QUER
SOBRE O AUTOR
Noam Chomsky uma das figuras mais importantes na Lingstica do
sculo XX. Nascido em Filadlfia, em 1928, leciona, desde 1955, no
Instituto Tecnolgico de Massachusetts, onde se tornou catedrtico
aos 32 anos.
Alm de seu trabalho como lingista, Chomsky escreve livros sobre
temas contemporneos. Suas palestras tm despertado a ateno de
platias em todo o pas e pelo mundo afora.
Num mundo mais sensato, seus incansveis esforos para promover a
justia j lhe teriam dado direito ao Prmio Nobel da Paz, mas o Comit
continua atribuindo-o a pessoas como Henry Kissinger.
Se voc est acostumado a pensar que os Estados Unidos so os
defensores da democracia no mundo, certamente a leitura deste livro
vai lhe parecer incrvel. Mas Chomsky um erudito, e, embora os fatos
aqui descritos sejam conhecidos e falem por si ss, toda concluso
sustentada por volumosas provas documentais (veja nas pginas
133-138 as referncias a algumas delas).
Foi muito difcil compilar o vasto espectro do pensamento social
de Chomsky num livro to pequeno. Voc encontrar, na pgina 139, uma
lista de outros livros polticos do autor, que se referem aos temas
aqui introduzidos e com detalhes mais abrangentes.
Arthur Naiman,
Sandy Niemann
OS OBJETIVOS PRINCIPAIS DA POLTICA EXTERNA DOS ESTADOS
UNIDOS
A proteo do nosso territrio
A relao entre os Estados Unidos e os outros pases obviamente
remonta s origens da histria da Amrica, mas como a Segunda Guerra
Mundial foi um verdadeiro divisor de guas, comecemos ento por
a.
Enquanto a guerra promovia o enfraquecimento ou a destruio de
nossos rivais industriais, aos Estados Unidos ela propiciava
enormes benefcios. Nosso territrio jamais foi atacado, e a produo
americana mais que triplicou.
Mesmo antes da guerra, os Estados Unidos j eram de longe o
principal pas industrial do mundo como o eram desde a virada do
sculo.
Mas, nesse momento, possuamos literalmente 50% da riqueza
mundial e controlvamos os dois lados dos dois oceanos. Nunca houve
um perodo na histria em que uma nao tenha tido um controle e uma
segurana do mundo to esmagadores.
Aqueles que determinam a poltica norte-americana sabiam muito
bem que os Estados Unidos sairiam da Segunda Guerra como a primeira
potncia global da histria, tanto assim que, durante e depois da
guerra, j planejavam, cuidadosamente como. moldar o mundo do
ps-guerra. Como esta uma sociedade aberta, podemos ler os planos
deles, muito claros e francos.
Os estrategistas norte-americanos - desde os ligados ao
Departamento de Estado at os do Conselho de Relaes Exteriores (um
dos grandes canais pelos quais lderes empresariais influenciam a
poltica externa) - concordaram que o domnio dos Estados Unidos
tinha de ser mantido. Mas havia uma divergncia de opinio sobre como
fazer isso.
Na extrema linha dura, temos documentos como o Memorando 68 do
Conselho de Segurana Nacional (de 1950). O CSN 68 desenvolveu as
opinies do secretrio de Estado Dean Acheson e foi escrito por Paul
Nitze, que ainda anda por a (ele foi um dos negociadores do
controle de armamentos de Ronald Reagan). O CSN 68 propunha uma
"estratgia de empurrar para trs", que "fomentaria as sementes da
destruio dentro do sistema sovitico, para que pudssemos ento
negociar um pacto, em nossos termos, com a Unio Sovitica" (um
Estado ou Estados sucessores).
As polticas recomendadas pelo CSN 68 exigiriam sacrifcios e
disciplina nos Estados Unidos em outras palavras, gigantescos
gastos militares e cortes nos servios sociais. Seria necessrio
tambm superar o excesso de tolerncia que permite demasiada
dissidncia interna.
Essas polticas j estavam, de fato, sendo implementadas desde
1949, quando a espionagem dos EUA na Europa Oriental foi
transferida para uma rede liderada por Reinhard Gehlen, que j havia
dirigido a inteligncia militar nazista na Frente Leste da guerra.
Essa rede era parte da aliana EUA-nazistas, que absorveu
rapidamente muitos dos piores criminosos de guerra e estendeu suas
operaes para a Amrica Latina e para outras partes do mundo.
Essas operaes incluam um exrcito secreto, patrocinado pela
aliana EUA-nazistas, que se encarregava de fornecer agentes e
provises militares a exrcitos que tinham sido criados por Hitler e
que, no incio da dcada de 1950, ainda estavam operando na Unio
Sovitica e no Leste Europeu. (Esse fato conhecido nos Estados
Unidos, mas considerado insignificante, embora pudesse provocar
caras feias e viradas de mesas se descobrssemos, por exemplo, que a
Unio Sovitica enviara agentes e provises a exrcitos comandados por
Hitler, que estavam operando nas Montanhas Rochosas.)
O extremo-liberal
O CSN 68 a extrema linha dura, e lembre-se: polticas no eram
somente tericas, muitas delas j estavam realmente sendo
implementadas. Agora, vejamos o outro extremo: o grupo denominado
"os pombos", onde o principal pombo era, sem dvida, George Kennan,
que dirigiu a equipe de planejamento do Departamento de Estado at
1950, quando foi .substitudo por Nitze. A propsito, o escritrio de
Kennan foi responsvel pela rede de Gehlen.
Kennan era um dos mais inteligentes e lcidos estrategistas dos
EUA e uma das mais importantes personalidades na configurao do
mundo ps guerra. Seus escritos so uma ilustrao extremamente
interessante da posio dos "pombos". Se algum quiser realmente
conhecer esse pas, um documento bom para consultar o Estudo de
Planejamento Poltico 23, escrito por Kennan para a equipe de
planejamento do Departamento de Estado, em 1948. Eis aqui um
exemplo de seu contedo:
Ns temos cerca de 50% da riqueza mundial, mas somente 6,3% de
sua populao... Nesta situao, no podemos deixar de ser alvo de
inveja e ressentimento. Nossa verdadeira tarefa, na prxima fase,
planejar um padro de relaes que nos permitir manter esta posio de
desigualdade... Para agir assim, teremos de dispensar todo
sentimentalismo e devaneio; nossa ateno deve concentrar-se em toda
parte, em nossos objetivos nacionais imediatos... Precisamos parar
de falar de vagos e... irreais objetivos, tais como direitos
humanos, elevao do padro de vida e democratizao. No est longe o dia
em que teremos de lidar com conceitos de poder direto. Ento, quanto
menos impedidos formos por slogans idealistas, melhor.
O EPP 23 era, logicamente, um documento altamente secreto. Para
pacificar o povo, era necessrio difundir "slogans idealistas" (como
ainda constantemente feito), mas aqui os estrategistas estavam
falando entre si.
Seguindo essas mesmas linhas, numa reunio de embaixadores
americanos na Amrica Latina, em 1950, Kennan observou que a maior
preocupao da poltica externa norte-americana deve ser "a proteo das
nossas (isto , da Amrica Latina) matrias-primas". Devemos,
portanto, combater a perigosa heresia que, segundo informava a
Inteligncia americana, estava se espalhando pela Amrica Latina: "A
idia de que o 'governo tem responsabilidade direta pelo bem do
povo".
Os estrategistas americanos chamam essa idia de comunismo, seja
qual for a real opinio das pessoas que a defendem. Elas podem
formar grupos de auto-ajuda, baseados na Igreja, ou quaisquer
outros, mas se elas apiam tal heresia, elas so comunistas.
Essa posio tambm clara nos arquivos pblicos. Por exemplo, um
grupo de estudos de alto nvel declarou, em 1955, que a ameaa
principal das potncias comunistas (o verdadeiro sentido do termo
comunismo na prtica) a recusa em exercer seu papel servial, isto ,
o de "complementar as economias industriais do Ocidente".
Kennan seguiu explicando os meios que devamos utilizar contra os
inimigos que caam nessa heresia:
A resposta final pode ser desagradvel, mas... no devemos hesitar
diante da represso policial do governo local. Isso no vergonhoso,
porque os comunistas so essencialmente traidores... melhor ter um
regime forte no poder do que um governo liberal, indulgente, brando
e infiltrado de comunistas.
Tais polticas no comearam com liberais ps-guerra como Kennan. H
trinta anos, o secretrio de Estado de Woodrow Wilson j havia
declarado que o significado prtico da Doutrina Monroe levava em
conta que "os Estados Unidos consideram seus prprios interesses. A
integridade das outras naes americanas um mero acidente, no um
fim". Wilson, o grande apstolo da autodeterminao, concordou que o
argumento era "irrefutvel", embora fosse "apoltico" apresent-lo
publicamente.
Wilson agiu de acordo com esse pensamento ao invadir, entre
outras coisas, o Haiti e a Repblica Dominicana, onde seus soldados
assassinaram, destruram e demoliram o sistema poltico vigente,
deixando as empresas norte-americanas firmemente no controle e
preparando, assim, o cenrio para ditaduras brutais e corruptas.
A "Grande rea''
Durante a Segunda Guerra Mundial, grupos de estudo do
Departamento de Estado e do Conselho de Relaes Exteriores
desenvolveram planos para o mundo ps-guerra nos termos do que eles
determinaram a "Grande rea", para que esta fosse subordinada s
necessidades da economia norte americana.
Estavam includos na "Grande rea" o Hemisfrio Ocidental, a Europa
Ocidental, o Oriente, o antigo Imprio Britnico (que estava sendo
desmantelado), as incomparveis fontes de energia do Oriente Mdio
(que estavam passando ento para as mos americanas ao mesmo tempo em
que expulsvamos nossos rivais, Frana e Inglaterra), o resto do
Terceiro Mundo e, se possvel, o mundo inteiro. Esses planos foram
sendo executados medida que as oportunidades permitiam.
A cada setor da nova ordem mundial foi designada uma funo
especfica. Os pases industrializados seriam guiados pelas "grandes
oficinas", Alemanha e Japo, que tinham demonstrado sua proeza na
guerra (e agora estavam trabalhando sob a superviso
norte-americana).
Ao Terceiro Mundo cabia executar sua principal funo de fonte de
matrias primas e de marcado para as sociedades industriais
capitalistas, como dizia um memorando do Departamento de Estado, de
1949. Era para ser explorado (nas palavras de Kennan) para a
reconstruo da Europa e do Japo. (As referncias foram feitas ao
Sudeste Asitico e a frica, mas as questes foram colocadas de modo
geral.)
Kennan sugeriu at mesmo que a Europa receberia assim um estmulo
psicolgico com o projeto de explorao da frica. Naturalmente, ningum
sugeriu que a frica explorasse a Europa para sua reconstruo,
melhorando talvez seu estado de esprito. Esses documentos liberados
so lidos somente por estudiosos, que parecem no encontrar nada de
estranho ou dissonante em tudo isso.
A Guerra do Vietn emergiu da necessidade de garantir esse papel
de servial. Os vietnamitas nacionalistas no quiseram aceitar isso
e, portanto, tinham de ser esmagados. A ameaa no era a de que eles
iriam conquistar algum, mas que eles poderiam dar um exemplo
perigoso de independncia nacional, que inspiraria outros pases na
regio.
O governo dos EUA tinha de desempenhar dois importantes papis. O
primeiro era o de garantir os distantes domnios da Grande rea. Isso
exigia uma postura bastante ameaadora, para assegurar que ningum
interferisse nessa tarefa motivo pelo qual houve tantas campanhas
dirigidas para as armas nucleares.
O segundo papel era conseguir subvenes pblicas para a indstria
de alta tecnologia. Por vrios motivos, o mtodo adotado tem sido, em
grande parte, a aplicao em gastos militares.
Livre comrcio um bom termo para ser utilizado nos departamentos
de economia e em editoriais de jornais, mas ningum do mundo
empresarial, nem do governo, leva a srio esse doutrina. Os setores
da economia americana que podem competir internacionalmente so,
principalmente, aqueles subvencionados pelo governo: a agricultura
intensiva, em termos de capital (a agroempresa, como chamada), a
indstria de alta tecnologia, a indstria farmacutica, a indstria
biotecnolgica, etc.
O mesmo vlido para outras sociedades industriais. O governo dos
EUA faz o povo pagar pela pesquisa e pelo desenvolvimento e
proporciona, em grande parte por intermdio dos militares, um
mercado garantido para a produo suprflua. Se algo comercivel, o
setor privado encarrega-se dele. O sistema de subsdio pblico e
lucro privado o que eles chamam de livre empresa.
A restaurao da ordem tradicional
Os estrategistas do mundo ps-guerra, como Kennan, por exemplo,
logo perceberam que ia ser imprescindvel, para o bem das empresas
americanas , que as outras sociedades ocidentais se refizessem dos
prejuzos da guerra, para que pudessem importar mercadorias
manufaturadas dos EUA, e assim, fornecerem oportunidades de
investimentos. (Estou incluindo aqui o Japo como parte do Ocidente,
seguindo a conveno sul-africana de tratar os japoneses como
"brancos honorrios".) Entretanto, era fundamental que essas
sociedades se reconstrussem de uma maneira bem especfica.
A ordem tradicional de direita tinha de ser restabelecida, com a
dominao das empresas com a diviso e o enfraquecimento dos
sindicatos e com o peso da reconstruo sendo colocado inteiramente
nos ombros da classe trabalhadora e dos pobres.
O principal obstculo no caminho era a resistncia antifascista.
Ns, ento, a reprimimos no mundo inteiro e instalamos em seu lugar,
na maioria das vezes, fascistas e ex-colaboradores nazistas. s
vezes, isso requeria extrema violncia, mas, em outras, isso era
feito por meio de medidas mais suaves, como subverter eleies ou
esconder alimentos extremamente necessrios. (Este deveria ser o
captulo 1 de qualquer histria honesta do perodo ps-guerra, mas, na
verdade, isso raramente discutido.)
Esse modelo poltico foi estabelecido em 1942, quando o
presidente Roosevelt colocou o almirante francs Jean Darlan como
govemador-geral de toda frica do Norte francesa. Darlan era um dos
principais colaboradores nazistas e autor de leis anti-semitas,
promulgadas no governo de Vichy (o regime fantoche dos nazistas na
Frana).
Entretanto, muito mais importante foi o caso primeira rea
liberada da Europa - o Sul da Itlia -, onde os EUA, seguindo o
conselho de Churchill, impuseram uma ditadura de direita liderada
pelo heri de guerra fascista, o marechal de campo Badglio, e pelo
rei Victor Emmanuel III, que tambm foi um colaborador fascista.
Os estrategistas norte-americanos reconheceram que a "ameaa" na
Europa no era a agresso sovitica (que analistas srios como Dwight
Eisenhower no previram), mas a resistncia antifascista operria e
camponesa com seus ideais democrticos radicais, o poder poltico e a
atrao dos partidos comunistas locais.
Para evitar um colapso econmico, que aumentaria a influncia
desses partidos, e para reconstruir as economias capitalistas dos
pases da Europa Ocidental, os EUA instituram o Plano Marshall (sob
o qual a Europa foi subvencionada em mais de 12 bilhes de dlares,
entre 1948 e 1951, com emprstimos e concesses, fundos estes
utilizados na compra de um tero das exportaes norte americanas para
a Europa no auge do ano de 1949.
Na Itlia, um movimento de base operria e camponesa, liderado
pelo Partido Comunista, havia tomado seis divises alemes durante a
guerra e libertado o Norte da Itlia. Quando as foras
norte-americanas avanaram pela Itlia, dispersaram essa resistncia
antifascista e restauraram a estrutura bsica do regime fascista
anterior guerra.
A Itlia tinha sido uma das principais reas de subverso da CIA -
Central de Inteligncia Americana - desde que a agncia foi fundada.
A CIA estava preocupada que os comunistas ganhassem o poder nas
decisivas eleies italianas de 1948. Muitas tcnicas foram
utilizadas, inclusive a restaurao da polcia fascista, que destruiu
sindicatos e escondeu alimentos. Mas, ainda assim, no estava claro
que o Partido Comunista seria derrotado.
O primeiro memorando do Conselho de Segurana Nacional
(CSNI-1948) especificou uma srie de aes que os EUA realizariam se
acaso os comunistas vencessem as eleies. Uma das respostas
planejadas seria a interveno armada, com ajuda militar, em operaes
secretas na Itlia.
Algumas pessoas, especialmente George Kennan, propuseram ao
militar antes das eleies. Ele no queria riscos, mas outros o
convenceram de que poderiam ganhar por meio da subverso, o que se
concretizou realmente.
Na Grcia, as tropas britnicas entraram depois que os nazistas se
haviam retirado. Impuseram um regime to corrupto que provocou nova
resistncia. Como a Inglaterra, em seu declnio ps-guerra, foi
incapaz de manter o controle. Em 1947, os Estados Unidos entraram,
apoiando uma guerra assassina, que resultou em 160.000 mortes.
Foi uma guerra repleta de torturas, exlios polticos de dezenas
de milhares de gregos, e aquilo que chamamos "campos de reeducao"
para outras dezenas de milhares de pessoas, destruio de sindicatos
e nenhuma possibilidade de independncia poltica.
A Grcia foi decididamente colocada nas mos de investidores
americanos e empresrios locais, enquanto grande parte da populao
teve de emigrar para sobreviver. Os beneficirios foram os
colaboradores nazistas, e as principais vtimas foram os
trabalhadores e os camponeses da resistncia antinazista, liderada
pelos comunistas.
A nossa vitoriosa "defesa" da Grcia contra sua prpria populao
serviu de modelo para a Guerra do Vietn - como explicou Adlai
Stevenson, na ONU, em 1964. Os conselheiros de Reagan usaram
exatamente o mesmo modelo, falando sobre a Amrica Central. E o
mesmo padro foi seguido em muitos outros lugares.
No Japo, o governo de Washington iniciou, em 1947, o chamado
"caminho inverso", que reverteu os primeiros passos em direo
democratizao empreendida pela administrao militar do general
MacArthur. O "caminho inverso" reprimiu os sindicatos e outras
foras democrticas e colocou o pas firmemente nas mos dos
empresrios, que haviam apoiado o fascismo japons - um sistema misto
de poder estatal e privado que dura at hoje.
Quando as foras norte-americanas entraram na Coria, em 1945,
dissolveram o governo popular local, composto basicamente de
antifascistas, que resistiram aos japoneses. Os EUA inauguraram a
uma represso brutal, usando a polcia fascista japonesa e coreanos
que haviam colaborado com os japoneses durante a ocupao. Cerca de
cem mil pessoas foram assassinadas na Coria do Sul antes daquilo
que chamamos Guerra da Coria. Inclusive, foram mortas entre trinta
e quarenta mil pessoas durante represso a uma revolta camponesa, na
pequena regio da Ilha de Cheju.
O golpe fascista na Colmbia, inspirado pela Espanha de Franco,
trouxe pouco protesto do governo norte-americano. A mesma coisa
ocorreu com o golpe militar na Venezuela e com a restaurao de um
admirador do fascismo no Panam. Mas o primeiro governo democrtico
da histria da Guatemala, inspirado no New Deal de Roosevelt,
provocou um amargo antagonismo norte-americano.
Em 1954, a CIA maquinou um golpe que transformou a Guatemala num
inferno em terra. E, desde ento, mantm-se assim, com interveno e
apoio regular dos EUA, especialmente durante os governos Kennedy e
Johnson.
Outro aspecto da represso resistncia antifascista foi o
recrutamento de criminosos de guerra como Klaus Barbie, um oficial
da SS que havia sido chefe da Gestapo em Lyon, na Frana. L, ele
recebeu o apelido de "aougueiro de Lyon". Embora ele tivesse sido
responsvel por crimes hediondos, o Exrcito dos EUA encarregou-o da
espionagem na Frana.
Quando Barbie foi finalmente trazido de volta Frana, em 1982,
para ser julgado como criminoso de guerra, seu emprego como agente
foi assim explicado pelo coronel (aposentado) Eugene Kolb, corpo de
contra-espionagem do Exrcito americano: "As 'habilidades' [de
Barbie] eram um mal necessrio... Suas atividades haviam sido
dirigidas contra o clandestino Partido Comunista e contra a
Resistncia Francesa", que j eram alvo da represso dos libertadores
norte-americanos.
J que os Estados Unidos continuavam onde os nazistas tinham
desistido, fazia muito sentido aproveitar os especialistas em
atividades anti resistncia. Mais tarde, quando se tornou difcil, ou
impossvel, proteger esse valioso pessoal na Europa, muitos deles
esconderam-se nos Estados Unidos ou na Amrica Latina, muitas vezes
com a ajuda do Vaticano e de padres fascistas.
L, eles se tornaram conselheiros militares de governos
policiais, apoiados pelos Estados Unidos, inspirados, muitas vezes
quase abertamente, no Terceiro Reich. Eles tambm se tornaram
traficantes de drogas, comerciantes de armas, terroristas e
educadores - ensinando a camponeses latino americanos tcnicas de
tortura inventadas pela Gestapo. Alguns alunos nazistas fizeram o
dever de casa na Amrica Central, estabelecendo, deste modo, uma
ligao direta entre os campos de extermnio e os esquadres da morte,
tudo graas aliana ps-guerra entre os EUA e os SS.
Nosso compromisso com a democracia
Com um documento de alto nvel atrs do outro, os estrategistas
norte-americanos expunham a viso de que a principal ameaa nova
ordem mundial, liderada pelos EUA, era o nacionalismo do Terceiro
Mundo - algumas vezes chamado de ultranacionalismo: os "regimes
nacionalistas" que atendem s "exigncias populares de elevao
imediata dos baixos padres de vida das massas" e produo de bens que
satisfaam s suas necessidades bsicas.
As metas bsicas dos estrategistas, insistentemente repetidas,
eram evitar que os ultranacionalistas tomassem o poder, se por um
golpe de sorte eles chegassem ao poder, retir-los e instalar ali
governos que favorecessem os investimentos privados do capital
interno e externo, a produo para exportao e o direito de remessa de
lucros para fora do pas. (Essas metas nunca foram contestadas nos
documentos secretos. Para um estrategista da poltica
norte-americana, essas metas praticamente fazem parte do ar que ele
respira.)
A oposio democracia e s reformas sociais nunca popular no pas
vtima. No se consegue estimular muito as pessoas que a vivem com
isso. exceto um pequeno grupo ligado s empresas norte americanas,
que naturalmente vai lucrar com isso.
Os EUA esperam contar com a fora e fazer alianas com os
militares - "o grupo menos antiamericano da Amrica Latina", como
disseram os estrategistas de Kennedy -, de modo que se pode confiar
neles para esmagar qualquer grupo popular local que saia do
controle.
Os EUA esto dispostos a tolerar reformas sociais como na Costa
Rica, por exemplo, somente quando so eliminados os direitos dos
trabalhadores e preservadas as condies para os investimentos
estrangeiros. Devido ao governo da Costa Rica ter sempre respeitado
esses dois princpios imperativos que o deixaram seguir com suas
reformas.
Outro problema, que repetidamente apontado nesses documentos
secretos, o excessivo liberalismo dos pases do Terceiro Mundo. Esse
particularmente o problema da Amrica Latina, onde os governos no
esto suficientemente comprometidos com o controle de idias,
restries de viagens e onde o sistema judicial to deficiente que
exige prova para acusao de crimes.
Essa foi uma das constantes queixas durante o perodo Kennedy
(depois dele, os arquivos no foram mais colocados disposio do
pblico). Os liberais de Kennedy eram inflexveis sobre a necessidade
de vencer os excessos democrticos que permitem a "subverso", que
para eles, claro, significava pessoas pensando coisas erradas.
Os EUA no primam, no entanto, pela falta de compaixo pelos
pobres. Em meados da dcada de 1950, por exemplo, nosso embaixador
na Costa Rica recomendou que a United Fruit Company, que
basicamente governava a Costa Rica, apresentasse "uma ligeira e
superficial encenao de interesse humano em relao aos trabalhadores,
pois isso poderia ter um grande efeito psicolgico". O secretrio de
Estado John Foster Dulles concordou, dizendo ao presidente
Eisenhower que, para manter as massas da Amrica Latina na linha, "h
que adul-las um pouco, para faz-las pensar que voc gosta delas
.
Exposto tudo isso, fcil entender a poltica dos EUA para o
Terceiro Mundo. Somos radicalmente opostos democracia se seus
resultados no podem ser controlados. O problema com as democracias
verdadeiras e que elas podem fazer seus governantes carem na
heresia de responderem s necessidades de sua prpria populao, em vez
das dos investidores norte-americanos.
Um estudo do sistema interamericano, publicado pelo Instituto
Real de Assuntos Internacionais, em Londres, concluiu que, enquanto
os EUA falsamente louvam a democracia, seu compromisso verdadeiro
com a "empresa capitalista privada". Quando os direitos dos
investidores so ameaados, a democracia tem de desaparecer; se esses
direitos so salvaguardados. assassinos e torturadores so
bem-vindos.
Governos parlamentaristas foram derrubados com o apoio dos EUA
e, algumas vezes, com interveno direta. No Ir, em 1953; na
Guatemala, em 1954 (e em 1963, quando Kennedy apoiou o golpe
militar para evitar a ameaa do retorno democracia); na Repblica
Dominicana, em 1963 e 1965; no Brasil, em 1964; no Chile, em 1973,
e freqentemente em outros lugares. Nossa poltica em geral tem sido
a mesma, tanto em El Salvador como em outras partes do mundo.
Os mtodos no so l muito agradveis. O que as foras
contra-insurgentes americanas fizeram na Nicargua, ou o que os
nossos substitutos terroristas fazem em El Salvador ou na
Guatemala, no apenas matana comum, o principal componente a tortura
brutal e sdica, batendo bebs contra pedras, pendurando mulheres
pelos ps, com os seios cortados, a pele do rosto escalpelada, para
sangrarem at a morte, ou cortando a cabea de pessoas, colocando-as
em estacas. A questo esmagar o nacionalismo independente e as foras
populares que possam construir uma democracia genuna.
A ameaa do bom exemplo
Nenhum pas est isento desse tratamento, no importa o quo
insignificante ele seja. Na verdade, so os pases mais fracos e mais
pobres que causam as maiores histerias.
Veja o Laos dos anos 1960, provavelmente o pas mais pobre do
mundo. A maioria de seus habitantes nem mesmo sabia que tal coisa
chamada Laos existia, eles s sabiam que havia uma aldeiazinha aqui
e outra acol mais prxima.
Mas to logo uma pequena revoluo social comeou a aparecer ali,
Washington submeteu o Laos a um mortfero "bombardeio secreto"*
destruindo virtualmente grandes reas habitadas, com operaes que,
como foi admitido depois, nada tinham a ver com a guerra que os EUA
estavam travando no Vietn do Sul.
Granada tem cem mil habitantes, que produz em noz-moscada, e mal
pode ser encontrada no mapa. Mas quando Granada iniciou uma
incipiente revoluo social, Washington imediatamente entrou em ao
para destruir a ameaa.
Desde a Revoluo Bolchevique de 1917 at a queda dos governos
comunistas do Leste Europeu, no final da dcada de 1980, era possvel
justificar qualquer ataque norte-americano como defesa contra a
ameaa sovitica. Ento, quando os Estados Unidos invadiram Granada,
em 1983, o presidente do Estado-Maior Conjunto das Foras Armadas
explicou que, na eventualidade de um ataque sovitico na Europa
Ocidental, uma Granada hostil poderia proibir o abastecimento de
petrleo no Caribe para a Europa Ocidental e, ento, no poderamos
defender nossos aliados sitiados. Agora isso parece cmico, mas esse
tipo de histria ajuda a mobilizar a opinio pblica para apoiar a
agresso, o terror e a subverso.
O ataque contra a Nicargua foi justificado sob a alegao de que,
se no os contivssemos l, "eles" poderiam ultrapassar a fronteira de
Harlingen, no Texas - apenas dois dias de carro. (Para as pessoas
mais instrudas, havia outras desculpas mais sofisticadas e
certamente mais plausveis.)
A Nicargua to importante para o empresariado americano que ela
poderia sumir do mapa que ningum perceberia. A mesma coisa com El
Salvador. Mas ambos tm sido submetidos a assaltos homicidas pelos
Estados Unidos, com o custo de centenas de milhares de vidas e
muitos bilhes de dlares.
H uma razo para isso, o pas mais fraco e mais pobre mais
perigoso como exemplo. Se uma nao pequena e pobre como Granada pode
ser bem-sucedida, alcanando um melhor nvel de vida para seu povo,
em outro lugar que tenha mais recursos as pessoas podero perguntar:
"E ns, por que no?"
Esse foi exatamente o caso da Indochina, que bastante extensa e
tem importantssimos recursos. Embora Eisenhower e seus conselheiros
fizessem muito alarde do arroz, do estanho e da borracha, o
verdadeiro medo era que, se o povo da Indochina conseguisse
independncia e justia, o povo da Tailndia iria imit-la, e se isso
funcionasse, tentaria na Malsia, e em pouco tempo a Indonsia
adotaria a via independente. At l, uma significativa parte da
"Grande rea" j teria sido perdida.
Se se quer um sistema global subordinado s necessidades dos
investidores norte-americanos, no se pode deixar que partes do
sistema se percam. notvel a clareza com que isso declarado nos
arquivos oficiais - s vezes, at nos arquivos pblicos. Veja o Chile
no governo de Allende. O Chile um pas consideravelmente grande, com
muitos recursos naturais, mas, repetindo, os Estados Unidos no
desmoronariam se o Chile se tornasse independente. Por que estvamos
to preocupados com esse pas? Segundo Kissinger, o Chile era um
"vrus" que "infectaria" a regio, com reflexos at na Itlia.
Apesar dos quarenta anos de subverso da CIA, a Itlia ainda tem
um movimento trabalhista. Ter um governo social-democrata bem
sucedido no Chile eqivaleria a enviar mensagens erradas aos
eleitores italianos. Suponha que eles tivessem idias interessantes
sobre como obter o controle de seu prprio pas e revivessem os
movimentos operrios, solapados pela CIA na dcada de 1940.
Os estrategistas norte-americanos, desde a esto do secretrio de
Estado Dean Acheson, no final dos anos 1940, at os dias de hoje, tm
advertido que "uma ma podre pode estragar todo o lote". O perigo
que a "podrido" - o desenvolvimento social e econmico - pode se
espalhar.
Essa "teoria da ma podre" chamada de teoria do domin, para
consumo pblico. A verso usada para amedrontar o povo mostra Ho Chi
Min tomando uma canoa e chegando Califrnia, e assim vai. Talvez
alguns lderes norte-americanos acreditassem nessa asneira - possvel
-, mas os estrategistas racionais certamente que no. Eles entendem
que a verdadeira ameaa o "bom exemplo".
s vezes, a questo explicada com grande clareza. Quando os EUA
estavam planejando derrubar a democracia guatemalteca em 1954, um
oficial da Secretaria de Estado declarou que a "Guatemala tem se
tornado uma crescente ameaa para a estabilidade de Honduras e de El
Salvador. Sua reforma agrria uma arma poderosa de propaganda; seu
amplo programa social de ajuda aos trabalhadores e aos camponeses
pode resultar numa luta vitoriosa contra as classes dominantes e as
grandes empresas estrangeiras. Isso tudo tem um forte apelo junto s
populaes vizinhas da Amrica Central, onde prevalecem condies
semelhantes .
Em outras palavras, o que os EUA querem "estabilidade", quer
dizer, segurana para "as classes dominantes e liberdade para as
empresas estrangeiras". Se isso pode ser obtido com mtodos
democrticos formais, OK. Se no, a ameaa "estabilidade" causada pelo
bom exemplo tem de ser destruda, antes que o vrus infecte os
outros. por isso que, mesmo se a menor partcula causar tal perigo,
ela tem de ser esmagada.
______________________________________________________________________
* N.T.: O autor refere-se aqui logicamente no-divulgao do fato
na mdia local e internacional, poca do acontecimento.
O mundo trilateral
Desde o comeo da dcada de 1970, o mundo tem tomado um rumo em
direo ao chamado tripolarismo ou trilateralismo - ou seja, os trs
maiores blocos econmicos que competem entre si. O primeiro bloco
baseado no yen, com o Japo no centro e as antigas colnias japonesas
na periferia.
Retrocedendo aos anos 1930 e 1940, o Japo chamou isso de a
Grande Esfera da Co-Prosperidade da sia Oriental. O conflito com os
Estados Unidos nasceu da tentativa de o Japo exercer ali o mesmo
tipo de controle que as potncias ocidentais exerciam em suas
respectivas esferas. Mas aps a guerra ns reconstrumos a regio para
eles. E no tivemos, ento, nenhum problema com que o Japo a
explorasse - s que agora o Japo teria de explor-la sob nosso
abrangente poder.
H muitas tolices escritas acerca de como o Japo, de fato,
tornou-se um grande competidor, que provam que somos honrados e
fortalecemos nossos inimigos. As verdadeiras opes polticas,
entretanto, eram mais estreitas. Uma era restaurar o imprio japons,
mas agora sob nosso total controle (essa foi a poltica
seguida).
A outra opo era ficar fora da regio e permitir ao Japo e ao
resto da sia seguirem caminhos independentes, excludos da "Grande
rea" de controle norte-americano. Isso era impensvel.
Alm disso, depois da Segunda Guerra, o Japo no era considerado
como possvel concorrente, mesmo num futuro remoto. Especulou-se
talvez, a certa altura dos acontecimentos, que o Japo seria capaz
de produzir algumas bugigangas, nada mais que isso. (Havia um forte
componente de racismo nisso.) O Japo recuperou-se em grande parte
por causa da Guerra da Coria e depois com a Guerra do Vietn, que
estimulou a produo japonesa e trouxe enormes lucros ao Japo.
Alguns estrategistas, logo no incio do ps-guerra, foram mais
perspicazes, entre eles George Kennan. Ele props que os EUA
estimulassem o Japo a se industrializar, mas com limite: os EUA
controlariam a importao do petrleo japons. Kennan disse que isso
dar-nos-ia "poder de veto", se acaso o Japo sasse fora da linha. Os
EUA seguiram esse conselho, mantendo o controle do abastecimento e
das refinarias de petrleo. Ainda no incio da dcada de 1970, o Japo
controlava somente cerca de 10% de seu prprio abastecimento de
petrleo.
Esse um dos principais motivos pelo qual os EUA tm se
interessado tanto pelo petrleo do Oriente Mdio. No precisvamos do
petrleo para ns mesmos; a Amrica do Norte liderava, at 1968, a
produo mundial de petrleo. Entretanto, queremos realmente manter as
mos na alavanca do poder mundial, e nos assegurar que os lucros
fluam principalmente para os Estados Unidos e para a Inglaterra.
por isso que mantemos bases militares nas Filipinas. Elas so parte
de um sistema global de interveno apontada para o Oriente Mdio,
para garantir que as foras locais no sucumbam ao
"ultranacionalismo".
O segundo maior bloco competitivo est baseado na Europa e
dominado pela Alemanha, que est dando um grande passo em direo
consolidao do Mercado Comum Europeu. A Europa. tem uma economia
mais forte que a dos Estados Unidos, alm de uma populao maior e
mais bem instruda.
Se um dia ela agir conjuntamente e se tornar um poder integrado,
os EUA podero tornar-se uma potncia de segunda classe. Isso provvel
com uma Europa dirigida pela Alemanha, tomando a liderana na
restaurao da Europa Oriental, em seu tradicional papel de colnia
econmica, basicamente parte do Terceiro Mundo.
O terceiro bloco dominado pelos Estados Unidos e baseado no
dlar. Foi recentemente ampliado com a incluso do Canad, maior
parceiro comercial, e logo incluir o Mxico e outras partes do
hemisfrio, por meio do "tratado de livre comrcio", projetado, em
primeiro lugar, para os interesses dos investidores
norte-americanos e seus associados.
Ns sempre assumimos que a Amrica Latina nos pertence por
direito. Como Henry Stimson (secretrio de Guerra, sob FDR e Taft, e
secretrio de Estado de Hoover) uma vez declarou "nossa regiozinha,
logo ali, que nunca incomodou ningum". A consolidao do bloco,
baseado no dlar, significa que o esforo para frustrar o
desenvolvimento independente na Amrica Central e no Caribe vai
continuar.
A menos que voc entenda nossas lutas contra nossos rivais
industriais e o Terceiro Mundo, a poltica externa norte-americana
parece ser uma srie de erros ocasionais, inconsistentes e confusos.
Na verdade, nossos lderes tm sido mais que bem-sucedidos, dentro
dos limites de suas possibilidades, nas tarefas a eles
atribudas.
Nossa poltica de boa vizinhana
Como os preceitos desenvolvidos por George Kennan foram
seguidos? Como deixamos inteira mente de lado a preocupao com os
"objetivos vagos e irreais tais como os direitos humanos, a elevao
do padro de vida e a democratizao?" J expus nosso "compromisso com
a democracia, mas e quanto s outras duas questes?
Vamos focalizar a Amrica Latina, e comear olhando para os
direitos humanos. Um estudo feito por Lars Schoultz, um destacado
acadmico especialista em direitos humanos da Amrica Latina, mostra
que "a ajuda norte-americana tende a ser desproporcionalmente
distribuda para os governos "latino-americanos que torturam seus
cidados. No tem nada a ver com quanto o pas precisa de ajuda,
somente com sua disposio em servir riqueza e ao privilgio.
Estudos mais profundos, feitos pelo economista Edward Herman,
revelam uma estreita correlao em todo o mundo entre a tortura e a
ajuda norte-americana e fornecem uma explicao: ambas se
correlacionam com a melhoria das condies de operaes das empresas.
Em comparao com este guia de princpios morais, assuntos tais como
tortura e carnificina caem na insignificncia.
E a elevao do padro de vida? Isso foi supostamente tratado na
Aliana para o Progresso pelo presidente Kennedy, mas o tipo de
desenvolvimento imposto foi direcionado, em sua maior parte, para
as necessidades dos investidores norte-americanos. A Aliana
fortificou e ampliou o sistema vigente, pelo qual os
latino-americanos produzem colheitas para exportao e reduzem as
colheitas de subsistncia, como milho e feijo, cultivadas para o
consumo local. Com o programa da Aliana, por exemplo, a produo de
carne aumentou, enquanto o consumo interno de carne diminuiu.
Esse modelo agroexportativo de desenvolvimento, em geral, produz
um "milagre econmico" onde o PNB - Produto Nacional Bruto - sobe,
enquanto a maioria da populao morre de fome. Quando se segue tal
orientao poltica, a oposio popular inevitavelmente aumenta, o que,
ento, se reprime com terror e tortura.
(O uso do terror profundamente arraigado em nosso carter. Nos
idos de 1818, John Quincy Adams elogiou a "eficcia salutar" do
terror em se tratando das "hordas misturadas de ndios e negros sem
lei". Ele escreveu isso para justificar a violncia de Andrew
Jackson, na Flrida, que praticamente exterminou a populao nativa e
deixou a provncia espanhola sob o controle americano,
impressionando muito Thomas Jefferson e outros mais com sua
sabedoria.)
O primeiro passo o uso da polcia; ela decisiva porque sabe
detectar logo o descontentamento e elimin-lo antes da "grande
cirurgia (como chamada nos documentos de planejamento) ser
necessria. Se a "grande cirurgia" for necessria, ns contamos com o
Exrcito. Quando no conseguimos mais controlar o Exrcito dos pases
da Amrica Latina - particularmente a regio do Caribe e da Amrica
Central - tempo de derrubar o governo.
Os pases que tentaram inverter as regras, como a Guatemala, sob
os governos capitalistas democrticos de Arvalo e Arbenz, ou a
Repblica Dominicana, sob o regime capitalista democrtico de Bosch,
tornaram-se alvo da hostilidade e da violncia dos Estados
Unidos.
O segundo passo utilizar os militares. Os EUA sempre tentaram
estabelecer relaes estreitas com os militares de pases
estrangeiros, porque essa uma das maneiras de derrubar um governo
que saiu fora do controle. Assim foram assentadas as bases para os
golpes militares no Chile, em 1973, e na Indonsia, em 1965.
Antes desses golpes, ramos bastante hostis ,aos governos do
Chile e da Indonsia, mas continuvamos enviando armas. Mantenha boas
relaes com os oficiais certos e eles derrubaro o governo para voc.
O mesmo raciocnio motivou o fluxo de armas dos Estados Unidos para
o Ir via Israel, desde o incio de 1980. De acordo com altos
oficiais israelenses envolvidos, esses fatos eram conhecidos j em
1982, muito antes de haver refns.
Durante o governo Kennedy, a misso dos militares
latino-americanos, dominados pelos EUA mudou de "defesa hemisfrica"
para "segurana interna" (que basicamente significa guerra contra a,
prpria populao). Essa deciso fatdica implicou a "direta
cumplicidade [dos Estados Unidos]" com "os mtodos dos esquadres de
extermnio de Heinrich Himler", no julgamento retrospectivo de
Charles Maechling, que foi encarregado do planejamento de
contra-insurgncia, de 1961 a 1966.
O governo Kennedy preparou o caminho para o golpe militar no
Brasil em 1964, ajudando a derrubar a democracia brasileira, que se
estava tornando independente demais. Enquanto os Estados Unidos
davam entusiasmado apoio ao golpe, os chefes militares instituam um
estado de segurana nacional de estilo neonazista, com represso,
tortura, etc. Isso provocou uma exploso de acontecimentos
semelhantes na Argentina, no Chile e em todo o hemisfrio, desde os
meados de 1960 at 1980 - um perodo extremamente sangrento.
(Eu penso, falando do ponto de vista legal, que h um motivo bem
slido para acusar todos os presidentes norte-americanos desde a
Segunda Guerra Mundial. Eles todos tm sido verdadeiros criminosos
de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de guerra.)
Os militares agem de maneira tpica para criar um desastre
econmico, seguindo freqentemente receita de conselheiros
norte-americanos, e depois decidem entregar os problemas para os
civis administrarem. Um controle militar aberto no mais necessrio,
pois j existem novas tcnicas disponveis, por exemplo, o controle
exercido pelo Fundo Monetrio Internacional (o qual, assim como o
Banco Mundial, empresta fundos s naes do Terceiro Mundo, a maior
parte fornecida em larga escala pelas potncias industriais).
Em retribuio aos seus emprstimos, o FMI impe a "liberalizao":
uma economia aberta penetrao e ao controle estrangeiros, alm de
profundos cortes nos servios pblicos em geral para a maior parte da
populao, etc. Essas medidas colocam o poder decididamente nas mos
das classes dominantes e de investidores estrangeiros
(estabilidade"), alm de reforar as duas clssicas camadas sociais do
Terceiro Mundo - a dos super-ricos (mais a classe dos profissionais
bem sucedidos que a serve) e a da enorme massa de miserveis e
sofredores.
A dvida e o caos econmico deixados pelos militares garantem, de
forma geral, que as regras do FMI sero obedecidas - a menos que as
foras populares queiram entrar na arena poltica. Neste caso, os
militares talvez tenham de reinstalar a "estabilidade".
O Brasil um exemplo esclarecedor desse caso. Sendo um pas muito
bem dotado de recursos naturais, alm de ter um alto desenvolvimento
industrial, deveria ser uma das naes mais ricas do mundo. Mas
graas, em grande parte, ao golpe de 1964 e ao to aclamado "milagre
econmico" que se seguiu ao golpe (sem falar nas torturas,
assassinatos e outros instrumentos de "controle da populao"), a
situao de muitos brasileiros , agora, provavelmente parecida com a
da Etipia - e bem pior que a da Europa Oriental, por exemplo.
O Ministrio da Educao informa que mais de um tero do oramento
educacional vai para a alimentao escolar, porque a maioria dos
estudantes da rede pblica ou come na escola ou no come.
De acordo com a revista South (uma revista de reportagens sobre
empresas do Terceiro Mundo), o Brasil tem uma taxa de mortalidade
infantil maior que a do Sri Lanka. Um tero da populao vive abaixo
da linha da misria e "sete milhes de crianas abandonadas pedem
esmola, roubam e cheiram cola nas ruas. E para milhares delas a
casa um barraco na favela... ou cada vez mais um pedao de terra
embaixo da ponte.
Isso o Brasil, um dos pases de natureza mais rica do
planeta.
A situao semelhante em toda a Amrica Latina. Apenas na Amrica
Central o nmero de pessoas assassinadas pelas foras apoiadas pelos
EUA, desde o final de 1970, gira em torno de duzentos mil, ao mesmo
tempo que os movimentos populares, que visavam obter a democracia e
a reforma social, foram dizimados. Essas faanhas qualificam os
Estados Unidos como fonte de inspirao para o triunfo da democracia
em nosso tempo", nas admirveis palavras da liberal Nova Repblica.
Tom Wolfe conta-nos que a dcada de 1980 foi "um dos grandes
momentos de ,ouro da humanidade, jamais vivido". Como diria
Stalin:
"estamos deslumbrados com tanto sucesso.
A crucificao de El Salvador
Por muitos anos, a represso, a tortura e o assassinato foram
praticados em El Salvador por ditadores instalados e sustentados
pelo nosso governo, uma matria sem nenhum interesse aqui; alm
disso, a histria nunca foi realmente contada. No final da dcada de
1970, entretanto, o governo norte-americano comeou a preocupar-se
com dois fatos.
Um era o de que Somoza, o ditador da Nicargua, estava perdendo o
controle do pas. Os Estados Unidos estavam perdendo a principal
base para seus exerccios de fora na regio. Um segundo perigo era
talvez o mais ameaador. Em El Salvador, nos anos 1970, houve um
crescimento das chamadas "organizaes populares" - associaes
camponesas, cooperativas, sindicatos e movimentos eclesiais de base
- que se reuniam em torno de grupos de auto- ajuda, etc. Isso
aumentou a ameaa democracia.
Em fevereiro de 1980, o arcebispo de El Salvador, Don Oscar
Romero, enviou uma carta ao presidente Carter em que implorava o no
envio de ajuda militar para a junta que governava o pas. Ele dizia
que tal ajuda seria usada para "estimular a injustia e a represso
contra organizaes populares" que estavam lutando "pelo respeito por
seus direitos humanos mais elementares" ( desnecessrio dizer que
isso dificilmente seria notcia em Washington).
Poucas semanas depois, o arcebispo Romero foi assassinado
enquanto celebrava uma missa. O neonazista Roberto D'Aubuisson foi
considerado totalmente responsvel pelo assassinato (entre outras
incontveis atrocidades).
D'Aubuisson foi "lder vitalcio" do Arena, partido que ainda
governa El Salvador; os membros desse partido, como o ex-presidente
Alfredo Cristiani, tinham de fazer um juramento de sangue em
lealdade a ele.
Dez anos depois, milhares de camponeses e pobres da regio urbana
participaram de uma missa comemorativa, juntamente com inmeros
bispos estrangeiros, mas os Estados Unidos foram notados pela
ausncia. A Igreja salvadorenha props formalmente a canonizao de
Romero.
Tudo isso se passou com raras referncias no pas que subvencionou
e treinou os assassinos de Dom Romero. O The New York Times, o
"jornal testemunha", no publicou nenhum editorial sobre o
assassinato quando ele ocorreu, nem nos anos seguintes, e tambm
nenhum editorial ou reportagem foi feita sobre a comemorao.
Em 7 de maro de 1980, duas semanas antes do assassinato, foi
institudo um estado de stio em El Salvador, e a guerra contra a
populao comeou com fora total (e com o contnuo apoio e envolvimento
dos Estados Unidos). O primeiro e principal ataque foi o grande
massacre de Rio Sumpul, uma operao militar, coordenada pelos
exrcitos hondurenhos e salvadorenhos, na qual pelo menos seiscentas
pessoas foram massacradas. Crianas foram cortadas em pedaos com
faces. mulheres foram torturadas e afogadas. Dias depois, partes
dos corpos ainda eram encontradas no rio.Havia observadores da
Igreja, de modo que as informaes saam imediatamente, mas os
principais meios de comunicao no acharam nada que valesse uma
reportagem.
Os camponeses foram as principais vtimas dessa guerra, junto com
lderes sindicais, estudantes, padres ou qualquer suspeito de
trabalhar pelos interesses do povo. No ltimo ano do governo Carter,
1980, o nmero de mortes chegou a algo em torno de dez mil,
aumentando para cerca de 13.000 j sob o comando dos
reaganistas.
Em outubro de 1980, o novo arcebispo condenou "a guerra de
extermnio e genocdio contra a indefesa populao civil", desencadeada
pelas foras de segurana. Dois meses depois, estas foram aclamadas
por seu "herico servio ao lado do povo, contra a subverso" pelo
"moderado" favorito dos Estados Unidos, Jos Napolen Duarte, ao ser
nomeado presidente civil da junta.
O papel do "moderado" Duarte era manter a fachada para os
dirigentes militares e garantir-lhes a contnua chegada de fundos
norte-americanos, mesmo depois de as foras armadas terem violentado
e assassinado quatro freiras americanas, o que provocou protestos
aqui. Trucidar salvadorenhos uma coisa, porm violentar e matar
freiras americanas definitivamente um erro de relaes pblicas. Os
meios de comunicao de massa evitaram e abafaram a histria, seguindo
a liderana do governo Carter e sua comisso de investigao.
Os recm-chegados reaganistas foram mais longe, tratando de
justificar a atrocidade, notadamente o ministro de Estado Alexander
Haig e a embaixatriz das Naes Unidas, Jeane Kirkpatrick. Mas ainda
foi considerado se valia a pena ter um julgamento-farsa, enquanto
anos mais tarde desculpavam a junta assassina - e naturalmente seu
financiador.
Os jornais independentes de El Salvador, que poderiam ter
informado essas atrocidades, foram destrudos. Embora eles fossem
abertamente a favor das empresas, eram ainda indisciplinados demais
para o gosto dos militares. O problema foi resolvido entre 1980 e
1981, quando o editor de um desses jornais foi morto pelas foras de
segurana e o outro fugiu para o exlio. Como de costume, esses
acontecimentos foram considerados muito insignificantes para
merecer mais que algumas palavras nos jornais norte-americanos.
Em novembro de 1989, seis padres jesutas, cozinheira e a filha
dela foram assassinados pelo Exrcito. Naquela mesma semana, pelo
menos mais 28 civis salvadorenhos tambm foram mortos, inclusive a
dirigente do principal sindicato, a lder de uma organizao
universitria, nove membros de uma cooperativa agrria indgena e dez
estudantes universitrios.
As agncias de notcias transmitiram uma reportagem por intermdio
do correspondente da AP Douglas Grant Mine, relatando como os
soldados entraram num bairro operrio, prximo capital de San
Salvador, capturaram seis homens e mais um garoto de 14 anos, por
medida de segurana. Em seguida, colocaram todos contra a parede e
os fuzilaram. "Eles no eram padres nem defensores dos direitos
humanos", escreveu Mine, mas, mesmo assim, essas mortes passaram em
grande parte despercebidas, assim como a reportagem de Mine.
Os jesutas foram assassinados pelo Batalho Atlacatl, uma unidade
de elite criada, treinada e equipada pelos Estados Unidos. A
unidade foi formada em maro de 1981, quando 15 especialistas em
contra-insurgncia, da Escola de Foras Especiais do Exrcito
norte-americano, foram enviados para El Salvador. Desde o incio, o
Batalho esteve envolvido com o extermnio em massa. Um treinador
norte-americano descreveu seus soldados como "particularmente
ferozes... Ns sempre tivemos dificuldade em conseguir que eles
capturassem os prisioneiros em vez de suas orelhas".
Em dezembro de 1981, o Batalho participou de uma operao na qual
foram mortos mais de mil civis, numa verdadeira orgia de estupros,
incndios e assassinatos. Mais tarde, o Batalho esteve envolvido em
bombardeios de cidades, matana de centenas de civis por
fuzilamento, afogamento e outros mtodos. A grande maioria das
vtimas era de mulheres, crianas e velhos.
O Batalho Atlacatl estava sendo treinado pelas Foras Especiais
norte-americanas, pouco antes de matar os jesutas. Esta tem sido a
norma em toda a existncia do Batalho. Alguns dos piores ataques
ocorreram justamente quando o Batalho recm-chegara dos EUA.
Na "inexperiente democracia" de El Salvador, jovens adolescentes
de 13 anos eram capturados em assaltos a favelas e acampamentos de
refugiados e, em seguida, forados a entrar para o Exrcito, onde
eram doutrinados em rituais copiados dos SS nazistas, inclusive com
brutalizao e estupros, preparando-os assim para os extermnios, que
freqentemente tinham caractersticas sexuais e satnicas.
A natureza desse tipo de treino do Exrcito salvadorenho foi
descrita por um desertor, que recebeu asilo no Texas, em 1990. Seu
nome foi mantido em sigilo para proteg-lo dos esquadres da morte
salvadorenhos, apesar do pedido do Departamento de Estado para que
ele fosse enviado de volta a El Salvador.
Segundo esse desertor, os recrutas tinham de matar cachorros e
urubus, mordendo-lhes a garganta e torcendo-lhes a cabea, alm de
terem de olhar os soldados torturarem e matarem suspeitos
dissidentes, arrancando-lhes as unhas, cortando-lhes a cabea e
partes do corpo. Em seguida, brincavam com seus braos para fazer
graa.
Em outro caso, um membro confesso de um esquadro da morte ligado
ao Batalho Atlacatl, Csar Vielman Joya Martnez, deu detalhes do
envolvimento dos conselheiros americanos com o governo salvadorenho
nas atividades dos esquadres da morte. O governo Bush fez todo o
possvel para que o calassem e o enviassem de volta para uma provvel
morte em El Salvador, apesar do apelo das organizaes de Direitos
Humanos e dos pedidos do Congresso para que seu testemunho fosse
ouvido (o mesmo tratamento foi dado principal testemunha do
assassinato dos jesutas).
Os resultados do treinamento militar salvadorenho so descritos
no peridico jesuta America por Daniel Santiago, padre catlico em
misso em EI Salvador. Ele conta a histria de uma camponesa que, um
dia, ao voltar para casa, encontrou seus trs filhos, sua me e sua
irm sentados mesa, todos com as cabeas decapitadas, colocadas
cuidadosamente em frente aos corpos, com as mos dispostas para cima
"como se estivessem acariciando a prpria cabea". Como os assassinos
da Guarda Nacional Salvadorenha tiveram problemas em manter no
lugar a cabea de um beb, pregaram-na, ento, s mos dele. Depois, um
grande balde plstico, cheio de sangue, foi esteticamente exposto no
centro da mesa.
Segundo o reverendo Santiago, cenas assim macabras no so
raras.
As pessoas no so s assassinadas pelos esquadres da morte em El
Salvador. Elas so decapitadas e suas cabeas so postas em estacas e
exibidas como parte da paisagem. Os homens no so s destripados pela
Polcia do Tesouro Salvadorenho; suas genitlias so decepadas e
colocadas na boca. As mulheres salvadorenhas no so s violentadas
pela Guarda Nacional, seus ventres so cortados e usados para cobrir
o rosto. No basta matar crianas; elas so arrastadas sobre arames
farpados at a carne soltar dos ossos, enquanto os pais so obrigados
a assistir cena.
O padre Santiago continua a afirmar que violncias dessa natureza
aumentaram bastante desde que a Igreja comeou a formar associaes
camponesas e grupos de auto-ajuda na tentativa de organizar a
populao pobre.
De forma geral, nosso projeto em El Salvador tem sido
bem-sucedido. As organizaes populares foram dizimadas, como havia
previsto o arcebispo Romero. Dezenas de milhares de pessoas foram
trucidadas e mais de um milho de salvadorenhos tornaram-se
refugiados. Este foi um dos mais srdidos episdios da histria
americana - e tem havido muita concorrncia.
Ensinando uma lio Nicargua
No apenas El Salvador foi ignorado pelas principais correntes da
mdia norte-americana durante a dcada de 1970. Nos dez anos
anteriores derrubada de Anastasio Somoza, em 1979, a televiso
norte-americana - todas as redes - dedicaram exatamente uma hora
Nicargua, inteiramente relacionada ao terremoto de Mangua, em
1972.
De 1960 a 1978, o The New York Times publicou trs editoriais
sobre a Nicargua. No porque nada estivesse acontecendo ali, mas sim
porque qualquer coisa que l estivesse acontecendo no seria digna de
registro. A Nicargua no foi motivo de preocupao enquanto o regime
tirnico de Somoza no foi desafiado.
Quando seu regime foi desafiado pelos sandinistas, no final dos
anos 1970, os EUA tentaram instituir o chamado "Somozismo sem
Somoza", isto , todo o sistema corrupto seria mantido intacto, mas
com outra pessoa na liderana. Como isso no funcionou, o ento
presidente Carter tentou manter a Guarda Nacional de Somoza como
uma base para a potncia norte-americana.
A Guarda Nacional sempre foi notadamente brutal e sdica. Em
junho de 1979, levou a cabo uma srie macia de atrocidades na guerra
contra os sandinistas, bombardeando bairros residenciais em Mangua,
matando dezenas de milhares de pessoas. Nessas alturas, o
embaixador norte-americano enviou um telegrama Casa Branca dizendo
que seria desaconselhvel mandar a Guarda Nacional suspender o
bombardeio, porque isso poderia interferir na poltica de manter a
Guarda no poder e deixar os sandinistas de fora.
Nosso embaixador na Organizao dos Estados Americanos (OEA) tambm
falou a favor do "Somozismo sem Somoza", mas a OEA rejeitou
prontamente a sugesto. Poucos dias depois, Somoza voou para Miami
com o que restava do Tesouro Nacional, e a Guarda desmoronou.
O governo Carter levou os comandantes da Guarda para fora do pas
em avies com sinais da Cruz Vermelha (um crime de guerra) e comeou
a reconstitu-la nas fronteiras da Nicargua. Os EUA tambm usaram a
Argentina como uma intermediria. (Naquela poca, a Argentina estava
sob o comando de generais neonazistas, que deram uma folga na
tortura e no assassinato de sua prpria populao para ajudar a
restabelecer a Guarda logo rebatizada de os contras ou "guerreiros
da liberdade.)
Reagan utilizou-os para lanar uma guerra terrorista em grande
escala contra a Nicargua, combinada com uma guerra econmica, que
foi muito mais letal. Ainda intimidamos outros pases para que no
enviassem ajuda tambm.
Mesmo assim, apesar dos nveis astronmicos da ajuda militar, os
EUA no conseguiram criar uma fora militar vivel na Nicargua. Isso
foi realmente notvel, analisando bem. Nenhuma guerrilha no mundo
obteve tantos recursos, mesmo remotamente, quanto os contras
obtiveram dos EUA. Provavelmente poderia se iniciar uma insurgncia
guerrilheira, na regies montanhosas dos Estados Unidos, com tais
recursos.
Por que os EUA foram to longe na Nicargua? A organizao de
desenvolvimento internacional a Oxfam - explicou os motivos
verdadeiros ao declarar que em sua experincia de 76 anos em pases
em desenvolvimento "a Nicargua foi... excepcional no esforo e no
firme compromisso daquele governo... em melhorar as condies de vida
do povo e em estimular sua participao ativa no processo de
desenvolvimento".
Dos quatro pases centro-americanos onde a Oxfam teve presena
significativa (El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicargua),
somente na Nicargua houve um real e substancial esforo em resolver
as injustias da posse da terra e em estender os servios mdicos,
educacionais e agrcolas s famlias de camponeses pobres.
Outras organizaes contaram histrias semelhantes. No incio da
dcada de 1980, o Banco Mundial considerou "alguns setores da
Nicargua extraordinariamente mais bem-sucedidos que qualquer outra
parte do mundo". Em 1983, o Banco Interamericano de Desenvolvimento
concluiu que "a Nicargua fazia notveis progressos no setor social e
estava lanando bases para um desenvolvimento socioeconmico a longo
prazo.
O sucesso das reformas sandinistas aterrorizaram, ento, os
estrategistas norte-americanos. Eles sabiam que, "pela primeira
vez, a Nicargua tinha um governo que se interessava pelo povo ,
conforme afirmou Jos Figueres, o pai da democracia na Costa Rica.
(Embora Figueres tenha sido o principal lder democrtico na Amrica
Central durante quarenta anos, suas inaceitveis observaes sobre o
mundo real foram completamente censuradas pela mdia
norte-americana.)
O dio provocado pelos sandinistas por estes tentarem dirigir
recursos aos pobres (sendo at bem-sucedidos nisso) foi realmente
magnfico de se observar. Praticamente todos os estrategistas
polticos dos EUA compartilharam desse dio, atingindo um verdadeiro
frenesi.
Nos idos de 1981, um membro da Secretaria de Estado alardeou que
ns iramos "transformar a Nicargua na Albnia da Amrica Central",
isto , pobre, isolada e politicamente radical, de modo que o sonho
sandinista de criar um modelo novo e exemplar para a Amrica Latina
seria um fracasso.
George Shultz chamou os sandinistas de "um cncer, bem aqui em
nossas terras", que tinha de ser destrudo. Na outra ponta do cenrio
poltico, um lder do Senado, o liberal Alan Cranston, declarou que,
se no fosse possvel destruir os sandinistas, teramos ento de
deix-los "apodrecer no [seu] prprio pus.
Ento, os Estados Unidos lanaram um triplo ataque contra a
Nicargua. Primeiro, exercendo uma extrema presso para pressionar o
Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento a
suspenderem todos os projetos de assistncia ao pas. Segundo,
lanaram a guerra dos contras juntamente com uma guerra econmica
ilegal para acabar com o que a Oxfam corretamente chamou de "a
ameaa de um bom exemplo .
Os terrveis ataques terroristas dos contras, sob ordens dos EUA,
em direo aos "alvos leves" contriburam, juntamente com o boicote
econmico, para o fim de toda e qualquer esperana de desenvolvimento
econmico e reforma social. O terror norte-americano assegurou que a
Nicargua no desmobilizasse seu exrcito e enviasse seus parcos e
limitados recursos para a reconstruo das runas, que foram deixadas
pelos ditadores apoiados pelos EUA e pelos crimes dos
reaganistas.
Uma das mais respeitveis correspondentes da Amrica Central,
Julia Preston, escreveu (trabalhando na poca para o Boston Globe)
que "autoridades do governo afirmaram estar contentes em ver os
contras debilitarem os sandinistas, forando-os a desviar seus
escassos recursos para a guerra e afastando-os, assim, dos
programas sociais . Aquilo era fundamental, j que os programas
sociais eram o corao de um bom exemplo que poderia contaminar
outros pases da regio e corroer o sistema americano de roubo e
explorao.
Recusamo-nos, at mesmo, a prestar ajuda na hora da catstrofe. Em
1972, aps um terremoto, os EUA enviaram uma considervel soma de
recursos em auxlio Nicargua, sendo que a maior parte desses
recursos foi roubada por nosso amigo Somoza. Entretanto, em 1988,
quando um desastre natural - o furaco Joan - abalou a Nicargua, ns
no enviamos sequer um centavo, porque, se o tivssemos enviado, este
centavo provavelmente teria chegado ao povo e no aos bolsos de um
bandido rico. Ainda pressionamos nossos aliados a enviarem pouca
ajuda.
A devastao do furaco mais a perspectiva bem-vinda de fome em
massa e os danos ecolgicos, a longo prazo, ajudaram nossos esforos
(ou reforaram nossos objetivos). Ns queramos que os nicaragenses
morressem de fome para que pudssemos acusar os sandinistas de m
gesto econmica. J que no estavam sob nosso controle, deveriam
sofrer at a morte.
Terceiro, usamos ardis diplomticos para esmagar a Nicargua. Como
escreveu Tony Avirgan no jornal costarriquenho Mesoanzerica, "os
sandinistas caram numa trama perpetrada pelo presidente
costarriquenho Oscar Arias e outros presidentes centro-americanos,
o que lhes custou as eleies de fevereiro [1990]".
Para a Nicargua, o plano de paz de agosto de 1987 era bom
negcio, lembrou Avirgan: eles adiantariam as eleies nacionais em
alguns meses e permitiriam a observao internacional, como j tinham
feito em 1984, "em troca de terem os contras desmobilizados e a
guerra levada a um fim... . O governo nicaragense cumpriu o que foi
exigido pelo plano de paz, entretanto, ningum mais prestou a mais
leve ateno ao plano.
Arias, a Casa Branca e o Congresso nunca tiveram a mnima inteno
de cumprir qualquer aspecto do plano. Os EUA triplicaram
virtualmente os vos da CIA em reforo aos contras. Em poucos meses,
o plano de paz estava totalmente sepultado.
Assim que a campanha eleitoral comeou, os Estados Unidos
tornaram bem claro que o embargo econmico, que estava estrangulando
o pas, e o terror dos contras continuariam se os sandinistas
ganhassem a eleio.
Teramos de ser no mnimo nazistas ou stalinistas incorrigveis
para considerar uma eleio conduzida sob tais condies como justa e
livre. Ao sul de nossas fronteiras, poucos sucumbiram a tais
iluses.
Se uma coisa como essa tivesse sido praticada por nossos
inimigos,... eu deixo a reao da mdia por conta de sua imaginao. O
incrvel foi que os sandinistas ainda obtiveram 40% dos votos,
enquanto as manchetes do The New York Times proclamavam que os
americanos estavam "unidos na alegria" com essa "vitria do jogo
limpo americano.
As faanhas dos Estados Unidos na Amrica Central, nos ltimos 15
anos, so uma enorme tragdia , no s pelo avassalador custo humano,
mas tambm porque h uma dcada havia reais perspectivas de progresso
em direo a uma democracia significativa, comprometida com as
necessidades humanas, j com os primeiros sucessos visveis em El
Salvador, Guatemala e Nicargua.
Esses esforos poderiam ter funcionado e ensinado lies teis a
outros flagelados com problemas semelhantes, o que logicamente era
o que os estrategistas norte-americanos mais temiam. A ameaa foi
abortada com sucesso, talvez para sempre.
Fazendo da Guatemala um campo de extermnio
Se houve um lugar na Amrica Central que obteve alguma cobertura
pela mdia antes da revoluo sandinista, este lugar foi a Guatemala.
Em 1944, uma revoluo derrubou um tirano odioso, resultando da o
estabelecimento de um governo democrtico que se inspirou
basicamente no New Deal, de Roosevelt. Nos dez anos de interldio
democrtico que se seguiram, houve o incio de um bem-sucedido
desenvolvimento econmico independente.
Isso causou uma verdadeira histeria em Washington. Eisenhower e
Dulles advertiram que "a autodefesa e a autopreservao dos Estados
Unidos estavam em jogo, a menos que o vrus fosse exterminado. Os
relatrios da Inteligncia norte-amercana eram muito francos quanto
ao perigo representado pela democracia capitalista na
Guatemala.
Um memorando da CIA, de 1952, descreveu a situao da Guatemala
como "adversa aos interesses dos EUA" devido "influncia
comunista... baseada na defesa das reformas sociais e da poltica
nacionalista". O memorando advertia que a Guatemala "tinha
recentemente aumentado substancialmente seu apoio s atividades
comunistas e antiamericanas em outros pases da Amrica Central. Um
primoroso exemplo citado foi uma alegada doao de 300.000 dlares a
Jos Figueres.
Como j foi mencionado anteriormente, Jos Figueres foi o fundador
da democracia na Costa Rica e o principal lder democrtico da Amrica
Central. Embora tenha contribudo entusiasticamente com a CIA e
tenha chamado os Estados Unidos de "o porta-bandeira de nossa
causa", alm de ter sido considerado pelo embaixador norteamericano
na Costa Rica como "a melhor agncia de propaganda que a United
Fruit Company poderia encontrar na Amrica Latina", Figueres tinha
um estilo independente e, portanto, no era de tanta confiana quanto
Somoza ou outros bandidos a nosso servio.
Na retrica poltica dos Estados Unidos, isso possivelmente faria
dele um "comunista". Ento, se a Guatemala havia dado dinheiro para
ajud-lo a vencer a eleio, isso mostrava que a Guatemala apoiava os
comunistas.
Pior ainda, o mesmo memorando continuava, as "diretrizes
radicais e nacionalistas" do governo capitalista democrtico,
incluindo a "perseguio dos interesses econmicos estrangeiros,
especialmente os da United Fruit Company", haviam ganho "o apoio ou
aquiescncia da maioria dos guatemaltecos". O governo estava obtendo
a "mobilizao dos camponeses at aqui inertes", e minando, ao mesmo
tempo, o poder dos grandes latifundirios.
Alm disso, a revoluo de 1944 tinha despertado "um forte
movimento nacional para libertar a Guatemala da ditadura militar,
do atraso social e do 'colonialismo econmico', que haviam sido
normas do passado", e "inspirado a lealdade e se ajustado ao
interesse da maioria dos guatemaltecos politicamente conscientes".
As coisas tornaram-se ainda piores depois que uma bem-sucedida
reforma agrria comeou a ameaar a "estabilidade" nas naes vizinhas,
onde a populao sofrida no poderia deixar de notar tais medidas.
Em resumo, a situao ficou horrvel. Ento, a CIA empreendeu um
bem-sucedido golpe. A Guatemala tornou-se o aougue que at hoje, com
a interveno regular dos Estados Unidos sempre que as coisas ameaam
sair fora da linha.
No final da dcada de 1970, as atrocidades estavam novamente
alcanando limites absurdos, provocando protestos verbais. Mesmo
assim, ao contrrio do que muita gente cr, a ajuda militar para a
Guatemala continuou virtualmente a mesma, sob o governo dos
"direitos humanos" de Carter. Nossos aliados tambm se voltaram
nossa causa - notadamente Israel, que considerado um ativo
estrategista, em parte devido ao seu sucesso em promover terrorismo
de Estado.
Com Reagan, o apoio ao quase genocdio na Guatemala tornou-se
absolutamente fantico. O mais radical dos Hitlers guatemaltecos que
ns j apoiamos l, Rios Montt, foi saudado por Reagan como um homem
totalmente dedicado democracia. No incio dos anos 1980, os amigos
de Washington trucidaram dezenas de milhares de guatemaltecos, a
maioria ndios do planalto, alm de outros incontveis casos de
pessoas torturadas e violentadas. Grandes regies foram
dizimadas.
Em 1988, um jornal guatemalteco recentemente aberto, chamado La
Epoca, foi explodido por terroristas ligados ao governo. Naquela
poca, a mdia aqui estava muito preocupada com o fato de um jornal
financiado pelos Estados Unidos na Nicargua, La Prensa - que
propunha abertamente a derrubada do governo e apoiava o exrcito
terrorista dirigido pelos EUA -, ter sido forado a deixar de lanar
algumas edies devido falta de papel de imprensa. Isso causou uma
torrente de indignao e insultos, no Washington Post e em outros
lugares, contra o totalitarismo sandinista.
Por outro lado, a destruio do La Epoca no despertou interesse
algum e nem foi noticiada aqui, embora o fato tenha sido bem
conhecido pelos jornalistas norte-americanos. Naturalmente, os
meios de comunicao de massa norte-americanos no esperavam noticiar
que as foras de segurana, financiadas pelos Estados Unidos, haviam
silenciado a nica voz independente na Guatemala, que havia tentado,
poucas semanas antes, se levantar.
Um ano depois, um jornalista do La Epoca, Jlio Godoy, que havia
fugido aps a exploso do jornal, voltou Guatemala para uma breve
visita. Quando voltou aos Estados Unidos, ele comparou a situao da
Amrica Central com a da Europa Oriental. Para ele, os europeus
orientais tinham "mais sorte que os centro-americanos", Godoy
escreve por qu:
Enquanto em Praga o governo imposto por Moscou degradaria e
humilharia os reformistas, o governo da Guatemala, criado por
Washington, os assassinaria. Isso ainda continua, num virtual
genocdio que j fez mais de 150.000 vtimas [aquilo que a Anistia
Internacional chama de], "um programa governamental de assassinato
poltico.
A imprensa ou se conforma ou, como no caso do La Epoca,
desaparece. "A gente tentado a acreditar", continua Godoy, "que
algumas pessoas na Casa Branca rendem homenagens aos deuses
astecas, oferecendo o sangue centro-americano". E cita um diplomata
da Europa Ocidental que afirmou: "Enquanto os norte-americanos no
mudarem sua atitude na regio, no haver aqui espao para a verdade ou
para a esperana.
A invaso do Panam
O Panam tem sido tradicionalmente controlado pela sua minscula
elite europia, menos de 10% da populao. Isso mudou em 1968, quando
Omar Torrijos, um general populista, liderou um golpe que permitiu
aos negros e aos mestios pobres partilharem uma fatia mnima do
poder, sob sua ditadura militar.
Em 1981, Torrijos foi morto num acidente areo. At 1983, o
governante efetivo do Panam foi Manuel Noriega, um criminoso que
havia sido aliado de Torrijos e da CIA.
O governo norte-americano j sabia que Noriega estava envolvido
com o trfico de drogas, desde pelo menos 1972, quando o governo de
Nixon considerou a possibilidade de elimin-lo. Contudo, ele
continuou na folha de pagamentos da CIA. Em 1983, uma comisso do
Senado norte-americano concluiu que o Panam havia se tornado um
grande centro de lavagem de dinheiro e de trfico de drogas.
O governo norte-americano, mesmo assim, continuou a prestigiar
os servios de Noriega. Em maio de 1986, o diretor do rgo de
Represso s Drogas elogiou Noriega por sua "vigorosa poltica contra
o trfico de drogas". Um ano mais tarde, esse diretor deu
"boas-vindas nossa estreita associao" com Noriega, enquanto o
procurador-geral Edwin Meese paralisou uma investigao do
Departamento de Justia dos EUA sobre as atividades criminosas de
Noriega. Em agosto de 1987, uma resoluo do Senado condenando
Noriega foi contestada por Elliott Abrams, uma autoridade do
Departamento de Estado, encarregado da poltica norte-americana na
Amrica Central e no Panam.
Ainda assim, quando Noriega foi finalmente processado, em Miami,
em 1988, todas as denncias, exceto uma, eram referentes a
atividades praticadas antes de 1984, quando ele era o nosso
"garoto", ajudando os Estados Unidos na guerra contra a Nicargua,
fraudando eleies com a aprovao dos EUA e geralmente servindo de
modo satisfatrio aos interesses norte-americanos. Isso nada teve a
ver com a repentina descoberta de que ele foi gngster e traficante
de drogas - o que sempre se soube.
Tudo muito previsvel, como um estudo atrs do outro mostra. Um
tirano brutal cruza facilmente a linha, do amigo admirvel para o
"vilo" e a "escria" quando comete o crime de independncia. Um erro
comum o de ir alm do roubo aos pobres - o que at bom - e comear a
interferir nos interesses dos privilegiados, provocando a oposio
dos lderes empresariais.
Em meados de 1980, Noriega j era considerado culpado por esses
crimes. E, entre outras coisas, ele parecia no estar disposto a
ajudar os EUA na guerra dos contras. Sua independncia ameaava tambm
nossos interesses no Panam. Em 1 de janeiro de 1990, a maior parte
da administrao do Canal estava para passar ao controle do Panam no
ano 2000, o Canal passar completamente para eles. Tnhamos de nos
assegurar, ento, que o Panam estaria nas mos de pessoas que
pudssemos controlar antes daquela data.
Como no podamos mais confiar em Noriega para cumprir nossas
ordens, ele tinha de sumir. Washington imps sanes econmicas que
virtualmente destruram a economia, deixando a carga principal cair
sobre a maioria pobre e no branca. Essa populao tambm passou a
odiar Noriega, porque ele era responsvel pela guerra econmica (que
era ilegal, se algum quer saber) que estava levando seus filhos a
morrerem de fome.
Em seguida, tentou-se um golpe militar, mas falhou. Ento, em
dezembro de 1989, os EUA comemoraram a queda do Muro de Berlim e o
fim da Guerra Fria invadindo o Panam de modo fulminante, matando
centenas ou talvez milhares de civis (ningum sabe ao certo, e
poucos ao norte do Rio Grande tm interesse suficiente em saber).
Isso restaurou o poder da elite branca e rica, que havia sido
destituda pelo golpe de Torrijos, bem a tempo de assegurar um
governo dcil na mudana administrativa do Canal, em 1de janeiro de
1990 (como foi observado pela imprensa direitista europia).
Durante todo esse processo, a imprensa norteamericana foi
comandada por Washington, selecionando viles segundo as
necessidades do momento. Aes anteriormente perdoadas tornaram-se
crimes. Por exemplo, em 1984, a eleio presidencial panamenha foi
vencida por Arnulfo Arias. A eleio foi roubada por Noriega com
violncia e fraude considerveis.
Mas Noriega ainda no se havia tornado desobediente. Ele era
nosso homem no Panam, e o partido de Arias foi julgado por ter
perigosos elementos do "ultranacionalismo". O governo Reagan
aplaudiu, portanto, a violncia e a fraude, e mandou para l o
secretrio de Estado, George Shultz, para legitimar a eleio roubada
e elogiar a verso da "democracia" de Noriega como um modelo para os
errantes sandinistas.
A aliana Washington-mdia e os principais jornais abstiveram-se
de criticar a eleio fraudulenta no Panam, mas consideraram como
totalmente sem valor as eleies sandinistas daquele mesmo ano - que
foram muito mais livres e honestas - porque no puderam ser
controladas.
Em maio de 1989, Noriega novamente rouba uma eleio, dessa vez de
um representante da oposio empresarial, Guillermo Endara. Noriega
usou menos violncia do que em 1984. Mas o governo Reagan havia
sinalizado estar contra Noriega. Seguindo o roteiro j previsvel, a
imprensa expressou sua indignao ante o fracasso dele em seguir
nosso elevado padro democrtico.
A imprensa comeou tambm a denunciar veementemente as violaes dos
direitos humanos, que anteriormente no haviam merecido a mnima
ateno. Na poca da invaso do Panam, em dezembro de 1989, a imprensa
j havia satanizado Noriega, transformando-o num monstro pior que
tila, o rei dos hunos (foi basicamente a repetio da satanizao de
Kadafi, da Lbia). Ted Koppel jurava que "Noriega pertencia quela
confraria especial de viles internacionais, homens como Kadafi, Idi
Amin e o Aiatol Khomeini, que os americanos amam odiar". Dan Rather
colocou-o "no topo da lista de ladres, das drogas e da escria do
mundo". Na verdade, Noriega foi um bandido de muito menor calibre -
exatamente como era quando trabalhava para a CIA.
Em 1988, por exemplo, o Americas Watch publicou uma reportagem
sobre os direitos humanos no Panam, mostrando um quadro desolador.
Mas como os relatrios e as informaes mostram claramente, o registro
de violaes de Noriega aos direitos humanos no era nada diferente do
de outros clientes dos Estados Unidos na regio, nem era pior do que
no perodo em que Noriega ainda era um dos nossos favoritos e seguia
nossas ordens.
Tome o caso de Honduras, por exemplo. Embora no seja um governo
terrorista e assassino como os de El Salvador e da Guatemala, os
abusos contra os direitos humanos, l, eram provavelmente piores do
que no Panam. De fato, havia um batalho treinado pela CIA, em
Honduras, que por si s j havia cometido mais atrocidades do que
Noriega.
Ou ento considerem os ditadores apoiados pelos Estados Unidos,
como Trujillo, na Repblica Dominicana, Somoza, na Nicargua, Marcos,
nas Filipinas, Duvalier, no Haiti, e uma srie de outros gngsters da
Amrica Central, durante a dcada de 1980. Todos eram mais brutais
que Noriega, mas os Estados Unidos os apoiaram incontestavelmente
por dcadas, mesmo sabendo das terrveis atrocidades cometidas -
enquanto os lucros saam de seus pases e desembocavam nos EUA. O
governo de George Bush continuou a exaltar Mobutu, Ceausescu e
Sadam Hussein, entre outros, todos criminosos piores que Noriega.
Suharto, da Indonsia, indiscutivelmente o pior assassino de todos
eles, permanecia como "moderado" na mdia de Washington.
De fato, no exato momento em que o Panam foi invadido, devido ao
ultraje na violao dos direitos humanos feito por Noriega, o governo
Bush anunciou a venda de alta tecnologia para a China, justificando
que 300 milhes de dlares, em negcios para as empresas
norte-americanas, estavam em jogo, e assim os contatos foram
secretamente retomados, poucas semanas depois do massacre na Praa
Tiananmen.
No mesmo dia em que o Panam foi invadido, a Casa Branca anunciou
tambm planos (e os implementou logo em seguida) de suspender a
proibio de emprstimo ao Iraque. O Departamento de Estado explicou
com seriedade que a medida objetivava alcanar "o aumento de metas
de exportao americano e nos colocar em melhor posio para tratar com
o Iraque sobre o relatrio dos direitos humanos...
O Departamento de Estado continuou com essa farsa enquanto Bush
repelia a oposio democrtica iraquiana (banqueiros, profissionais,
etc.) e bloqueava esforos no Congresso para condenar os crimes
atrozes de seu velho amigo Sadam Hussein. Comparado com os amigos
de Bush em Bagd e Pequim, Noriega parecia a Madre Teresa de
Calcut.
Aps a invaso, Bush anunciou um bilho de dlares em ajuda ao
Panam, dos quais 400 milhes consistiam em incentivos s empresas
norteamericanas para exportar produtos ao Panam, 150 milhes foram
para pagar emprstimos aos bancos e 65 milhes foram para outros
emprstimos ao setor privado e garantias aos investidores
americanos. Em outras palavras, cerca de metade da ajuda foi um
presente do contribuinte americano s empresas americanas.
Os EUA colocaram os banqueiros de volta ao poder depois da
invaso. O envolvimento de Noriega com o trfico de drogas era
trivial se comparado com o deles. O trfico de drogas, l, foi sempre
conduzido pelos bancos - e como o sistema bancrio praticamente no
regulamentado -, isso resulta numa sada natural para o dinheiro do
crime. Essa tem sido a base altamente artificial da economia
panamenha e permanece assim - possivelmente em grau mais elevado -
aps a invaso. As Foras Armadas de Defesa Panamenha foram tambm
reconstrudas com os mesmos oficiais.
Em geral, tudo est praticamente na mesma, s que agora os
servidores encarregados so mais confiveis. (O mesmo se passa com
Granada, que se tornou um grande centro de lavagem de dinheiro das
drogas, desde a invaso americana. A Nicargua tambm se tornou um
importante canal de ligao para o mercado americano de drogas,
depois da vitria de Washington na eleio de 1990. A norma
padronizada - assim como a omisso em perceb-la.)
Vacinando o Sudeste Asitico
As guerras americanas na Indochina fazem parte da norma geral.
Por volta de 1948, o Departamento de Estado reconheceu claramente
que o Viet Minh, a resistncia antifrancesa comandada por Ho Chi
Min, era o movimento nacional do Vietn. Mas o Viet Minh no cedeu o
controle s oligarquias locais, favorecendo ento o desenvolvimento
independente e ignorando os interesses dos investidores
estrangeiros.
Temia-se que o Viet Minh pudesse ter xito, j que, nesse caso, "a
podrido propagar-se-ia" e o "vrus infectaria" a regio, para adotar
a linguagem que os estrategistas usaram anos aps anos. (Com exceo
de alguns loucos e alienados, ningum temia a conquista - o que eles
mais temiam era que um exemplo positivo fosse bem sucedido.)
O que se faz quando se tem um vrus? Primeiro voc o destri e, em
seguida, vacina as vtimas em potencial para que a doena no se
propague. essa a estratgia que os EUA utilizam no Terceiro
Mundo.
Se possvel, aconselhvel fazer com que os militares locais
destruam para voc. Se eles no puderem, voc ter de contar com suas
prprias foras. Isso mais oneroso, e deselegante, mas algumas vezes
voc tem de fazer isso. O Vietn foi um desses lugares em que tivemos
de agir assim.
Bem no final dos anos 1960, os EUA bloquearam todas as
tentativas de um acordo poltico para o conflito, mesmo aqueles
propostos pelos generais de Saigon. Se houvesse um acordo poltico,
poderia haver progresso na direo de um desenvolvimento bem sucedido
fora da nossa influncia - resultado esse inaceitvel.
Ao invs disso, ns instalamos um terror de Estado, de estilo
tipicamente latino-americano no Sul do Vietn, subvertendo a nica
eleio livre na histria do Laos, porque o lado errado ganhou, e
bloqueamos a eleio no Vietn, porque era bvio que o lado errado iria
ganhar l tambm.
O governo Kennnedy fez uma escalada de ataque contra o Vietn do
Sul, partindo de um macio terror de Estado para uma agresso aberta.
Johnson enviou uma enorme fora expedicionria para atacar o Sul do
Vietn e expandiu a guerra para toda a Indochina. Isso certamente
destruiu o vrus - porm, a Indochina ter sorte se dentro de cem anos
conseguir se recuperar.
Enquanto os EUA extirpavam a doena do desenvolvimento
independente pela raiz no Vietn, evitaram tambm sua propagao,
apoiando a tomada de poder na Indonsia por Suharto, em 1965,
promovendo a queda da democracia nas Filipinas por Ferdinando
Marcos, em 1972, e apoiando a lei marcial na Coria do Sul e na
Tailndia, e assim por diante.
O golpe de Suharto na Indonsia, em 1965, foi particularmente bem
acolhido pelo Ocidente, porque destruiu ali o nico partido poltico
de massa resultando em poucos meses numa matana de cerca de
setecentas mil pessoas, a maioria camponeses sem terra - "um raio
de luz na sia", como se rejubilou o principal pensador do The New
York Times, James Reston, assegurando aos seus leitores que os EUA
tinham participado desse triunfo.
O Ocidente ficou muito grato em fazer negcios com o novo lder
"moderado" da Indonsia, como o Christian Science Monitor descreveu
o general Suharto, aps ele ter lavado as mos de sangue enquanto
acumulava centenas de milhares de cadveres do Timor e de outras
partes. Esse impressionante extermnio de massa "um blsamo para o
corao", assegurou-nos o respeitvel Economist, referindo-se, sem
dvida, sua atitude em relao s empresas ocidentais.
Depois que a guerra do Vietn terminou, em 1975, o objetivo
principal dos Estados Unidos tem sido maximizar o sofrimento e a
represso nos pases que foram devastados pela violncia. O grau de
crueldade realmente espantoso.
Quando os menonitas tentaram vender lpis para o Camboja, o
Departamento de Estado tentou impedi-los. Quando a Oxfam tentou
enviar-lhes dez bombas solares, a reao foi igual. O mesmo se
sucedeu com os grupos religiosos que tentaram mandar ps
escavadeiras para o Laos, para que fossem desenterradas as bombas
lanadas pelos ataques americanos.
Quando a ndia tentou enviar cem bfalos domsticos para o Vietn
para compensar a quantidade enorme de gado destruda pelos ataques
americanos - lembre-se que, nesse pas primitivo, o bfalo domstico
representa o fertilizante, o trator e a sobrevivncia -, os Estados
Unidos ameaaram cancelar o programa de ajuda Alimento para a Paz.
(Com isso, at Orwell ficaria surpreso.) Nenhum grau de crueldade
suficientemente grande para os sdicos de Washington. As classes
instrudas conhecem o suficiente para olhar do outro lado.
Para sangrar o Vietn, ns apoiamos indiretamente o Khmer Vennelho
por intermdio de nossos aliados, China e Tailndia. Os cambojanos
tiveram de pagar com sangue at estarmos seguros de que no haveria
recuperao no Vietn. Os vietnamitas foram punidos por terem
enfrentado a violncia norte-americana.
Ao contrrio do que praticamente todos dizem - direita ou
esquerda -, os Estados Unidos alcanaram seu objetivo na Indochina.
O Vietn foi destrudo. No h mais perigo ali de um desenvolvimento
bem-sucedido poder servir de modelo para outros pases da regio.
Logicamente, no foi uma vitria total para os Estados Unidos.
Nossa grande meta - a de reincorporar a Indochina ao sistema global
dominado pelos EUA - ainda no foi alcanada.
Mas o nosso objetivo bsico - o decisivo, o que realmente
importava - foi o de destruir o vrus, e isso ns conseguimos. O
Vietn um pas em desespero e os Estados Unidos fazem o que podem
para mant-lo assim. Em outubro de 1991, os Estados Unidos ignoraram
mais uma vez os enrgicos protestos de seus aliados, na Europa e no
Japo, e renovaram o embargo e as sanes contra o Vietn. Os pases de
Terceiro Mundo devem aprender que no podem ousar levantar a cabea.
Seno, o valento global os perseguir incansavelmente por cometerem
esse crime inconfessvel.
A Guerra do Golfo
A Guerra do Golfo ilustrou bem este mesmo guia de princpios,
como poderemos ver claramente, se levantarmos o vu da
propaganda.
Quando o Iraque invadiu o Kuwait, em agosto de 1990, o Conselho
de Segurana da ONU imediatamente condenou o Iraque e lhe imps
severas sanes. Por que a ONU reagiu to prontamente e com uma
firmeza to sem precedentes? A aliana entre a mdia e o governo
norte-americano tinha uma resposta padro.
Primeiro, disseram-nos que a agresso iraquiana era um crime
singular e, portanto, merecia uma reao singularmente dura. "A
Amrica est onde sempre esteve - contra a agresso, contra todos
aqueles que usam da fora para substituir o imprio da lei" - assim
fomos informados pelo presidente Bush - o invasor do Panam e nico
chefe de Estado condenado pela Corte Internacional pelo uso ilegal
da fora (a condenao da Corte deveu-se ao ataque norte-americano
contra a Nicargua). A mdia e as classes instrudas repetiram
obedientemente a lio ditada pelo seu lder, curvando-se em reverncia
grandiosidade de seus altos princpios.
Segundo, essas mesmas autoridades declararam, em coro, que
finalmente a ONU estava agora funcionando como fora planejada. Eles
argumentavam que isso era impossvel antes do fim da Guerra Fria,
quando a ONU se tornou ineficiente graas dissidncia da Unio
Sovitica e estridente retrica antiocidental do Terceiro Mundo.
Nenhum desses argumentos resistem, mesmo por um instante, a um
exame mais minucioso. Nem os EUA e nem os demais pases aliados
estavam sustentando algum alto princpio no Golfo. O motivo dessa
resposta sem precedentes a Sadam Hussein no foi sua brutal agresso,
mas sim por ele ter pisado em falso.
Sadam Hussein um gngster assassino exatamente como era antes da
Guerra do Golfo, quando ele era nosso amigo e scio comercial
favorito. Sua invaso ao Kuwait foi certamente uma atrocidade, porm
dentro dos padres de outros crimes praticados pelos Estados Unidos
e seus aliados, e nem to terrvel quanto as que ocorreram em outras
regies. Por exemplo, a invaso da Indonsia e a anexao do Timor
Oriental, que alcanaram propores prximas s de um genocdio, devido
ao decisivo apoio dos EUA e de seus aliados. Talvez um quarto dos
setecentos mil habitantes tenham sido mortos, uma carnificina
superior ocorrida em Pol Pot, em relao populao, naquele mesmo
perodo.
Nosso embaixador na ONU naquela poca (hoje senador por Nova
York), Daniel Moynihan, assim explicou sua faanha na ONU em relao
ao Timor Oriental: "Os EUA queriam que as coisas ocorressem
justamente da forma como ocorreram, e trabalharam para isso. O
Departamento de Estado desejava que a ONU comprovasse sua total
ineficcia em quaisquer medidas que fossem empreendidas por ela.
Esta tarefa foi dada a mim, e eu a cumpri com considervel
sucesso.
O ministro das Relaes Exteriores australiano justificou a
aquiescncia de seu pas na invaso do Timor Oriental (e a participao
com a Indonsia no roubo das ricas reservas de petrleo do Timor)
dizendo simplesmente que "o mundo um lugar muito injusto, repleto
de exemplos de conquistas pela fora". Quando o Iraque invadiu o
Kuwa