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Os Casos Famosos de Vampirismo Parte I: Peter Plogojoviz, Arnod Paole, Miliza e Millœ Shirlei Massapust Tenho lido muitos livros sobre vampiros mitológicos contendo compilações de relatos sobre a execução de vários tipos de mortos que incomodavam os vivos. Isto faz parecer que o número dos vampiros era infinito e que a coisa existe desde a Idade Média, quando na verdade não há registro do uso da palavra anterior ao século dezoito. A farta documentação impressa nesta época demonstra que o vernáculo “vampiro” (português/espanhol/italiano esperanto) deriva de “vampire” (francês inglês) que vem da raiz romano-germânica “vampir”, criada para definir um ente folclórico surgido possivelmente num nicho da subcultura hajduci. A variante “vampyre” (francês/inglês) deriva igualmente da variante romano-germânica “vampyri” que originalmente definia exatamente a mesma coisa. Com certeza “vampir” (alemão/romeno/búlgaro), “vámpír” (magiar), “vàmpīr” (sérvio croata), “вампір” (bielo-russo), etc., são variantes do vernáculo original. Isso foi se infiltrando noutros idiomas até se tornar um termo globalizado. Por exemplo, o Japão absorveu “ヴヴヴヴヴ” (kana) do idioma inglês muito recentemente, no século XX, durante o período pós-guerra. No Brasil a reforma ortográfica de 2013 atendeu à sugestão de Eugênio Colonnese (1929- 2008) ao definir “vampiro” como adjetivo agênere; devendo hoje ser dito “mulher vampiro” em se tratando de personagens femininos nacionais. Porém, quando o lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1910-1989) se engajou na tarefa de produzir dicionários do idioma brasileiro, ele classificou “vampiro” como substantivo masculino e atestou o uso do feminino “vampiresa”. Isto é porque em inglês existe “vampire” e “vampiress”. As variantes “Upier” e “Upierzyca” foram atestadas na Polônia em janeiro de 1722, conforme matéria
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Casos famosos de vampirismo (parte 1): Peter Plogojoviz , Arnod Paole, Miliza e Millœ

Apr 11, 2023

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Os Casos Famosos de VampirismoParte I: Peter Plogojoviz, Arnod Paole,

Miliza e MillœShirlei Massapust

Tenho lido muitos livros sobre vampiros mitológicoscontendo compilações de relatos sobre a execução de váriostipos de mortos que incomodavam os vivos. Isto faz parecerque o número dos vampiros era infinito e que a coisa existedesde a Idade Média, quando na verdade não há registro do usoda palavra anterior ao século dezoito. A farta documentaçãoimpressa nesta época demonstra que o vernáculo “vampiro”(português/espanhol/italiano esperanto) deriva de “vampire”(francês inglês) que vem da raiz romano-germânica “vampir”,criada para definir um ente folclórico surgido possivelmentenum nicho da subcultura hajduci.

A variante “vampyre” (francês/inglês) deriva igualmenteda variante romano-germânica “vampyri” que originalmentedefinia exatamente a mesma coisa. Com certeza “vampir”(alemão/romeno/búlgaro), “vámpír” (magiar), “vàmpīr” (sérviocroata), “вампір” (bielo-russo), etc., são variantes dovernáculo original. Isso foi se infiltrando noutros idiomasaté se tornar um termo globalizado. Por exemplo, o Japãoabsorveu “ヴヴヴヴヴ” (kana) do idioma inglês muito recentemente,no século XX, durante o período pós-guerra.

No Brasil a reforma ortográfica de 2013 atendeu àsugestão de Eugênio Colonnese (1929- 2008) ao definir“vampiro” como adjetivo agênere; devendo hoje ser dito“mulher vampiro” em se tratando de personagens femininosnacionais. Porém, quando o lexicógrafo Aurélio Buarque deHolanda Ferreira (1910-1989) se engajou na tarefa de produzirdicionários do idioma brasileiro, ele classificou “vampiro”como substantivo masculino e atestou o uso do feminino“vampiresa”. Isto é porque em inglês existe “vampire” e“vampiress”. As variantes “Upier” e “Upierzyca” foramatestadas na Polônia em janeiro de 1722, conforme matéria

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publicada na edição do periódico Actes des Savants daquele mês.1

Hoje os poloneses mantém as formas atualizadas “wampir” e“wampirzyca”.

O problema da identidade cultural do mito começa quandoalguém tenta enxergar além do óbvio sem encarar todo otrabalho que tal proposta exige. Por exemplo, se o mauentendedor de português ignora que “barata” e “barato” ou“cigarra” e “cigarro” não são formas femininas e masculinasdas mesmas coisas, isto pode passar por termos cognatos! Ondeo parecido se torna igual, “barata” é “batata” e “cadeira” é“cadela”! Enfim, já aconteceu de etnólogos enxergaremsemelhança entre “vampir” e o báctrio “vyāmbara” (deus) ou oturco “ubęr” (bruxo). Não sei como ninguém pensou em ḫapiru (

יייי ), no sentido de “mercenário”: O mais perfeito sinônimode hajduk (хајдук) que um idioma persa pode ter.

Após consultar todos os dicionários e principais obrasde etimologia eslava, Jan Louis Perkowski constatou quenenhum especialista oferecia uma conclusão satisfatória.Pior: “Nenhuma especulação foi convincentementedocumentada”.2 Pessoas de bom senso devem reconhecer que opadre Öpir Likhyi (Упирь Лихый) jamais chamaria a si mesmo de“sanguessuga perversa” no ato de assinar sua tradução do Livrodos Salmos, concluída em 1047; sobretudo porque a tradução foiencomendada por Vladmir Yaroslavovich, príncipe de Novgorod,que impôs o cristianismo como religião oficial em seuterritório desde o ano 988. Naquela época e lugar um tradutorpoderia ser executado por blasfemar a troco de nada.

Diante do exposto deveríamos descartar o comentárioinfeliz de Perkowski que, graças à confusão dos etnólogos,confundiu a identidade do tradutor com seu patrocinar einterpretou o nome próprio masculino singular como umacritica política caricata.3 Gordon Melton confiou na palavra

1 RANFT, Michaël. De la mastication des morts dans leurs tombeaux (1728). Trd.Danielle Sonnier. Grenoblr, Editions Jérôme Millon, 1995, p 25.2 PERKOWSKI, Jan Louis. The Darkling: A treatise on Slavic Vampirism. Ohio,Slavica Publishers, 1989, p 33.3 PERKOWSKI, Jan Louis. The Darkling: A treatise on Slavic Vampirism. Ohio,Slavica Publishers, 1989, p 18.

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do especialista.4 Quem haveria de duvidar? A bola de nevedesceu a montanha. Centenas incorreram no mesmo erro. Masagora que as imagens do manuscrito estão na internet5 todospodem ver que o padre Likhyi não teve a intenção de ofenderninguém. No antigo nórdico øpir significava “gravador” ou“escriba”.

Hoje em dia muitas pesquisas de campo resultaminfrutíferas porque a informação circula não somente dedentro para fora como de fora para dentro da zona do euro epólos de produção cinematográfica. Um exemplo prático: Emmarço de 2014 circunstâncias aleatórias me levaram a trocarrecomendações de filmes e livros com uma jovem mulherresidente no Reino dos Países Baixos. Então ela confessou queseu interesse pelo tema começou após assistir Entrevista com oVampiro (1994) no cinema porque, depois da sessão, lheapareceu uma fantástica imagem hipnagógica:

O que eu mais aprecio nestes livros é o fato dosvampiros serem os personagens principais; e no seu mundo elesnão são vilões. Depois que assisti ao filme Entrevista com oVampiro, em 1995, numa madrugada de terça-feira, sozinha – comsomente cinco outras pessoas dentro do cinema – tive de andaraté o ponto de ônibus perambulando por uma cidade bemsilenciosa e escura... Eu os vi voarem! Isso foi uma surpresaagradável. Não fiquei tão assustada ao testemunhar isso; maseles pareciam tão reais! (Email enviado dia 31/12/2014, às12:56 PM).

Não duvido que seja verdade. Eu mesma passei por umaexperiência de realismo mágico semelhante. Após assistir aofilme Labirinto: A Magia do Tempo (1986), eu vi o rei dos goblinsem forma de coruja. A imagem hipnagógica saiu de um espelho,voou para cima de mim e sumiu! Ver gente voando não bastoupara fazer a cética Willemien crer em vampiros, pois elasabia que pessoas comuns são capazes de experimentar sonhos

4 MELTON, Gordon. O Livro dos Vampiros. Trd. James F. Sunderlank Cook. SãoPaulo, Makron, 1996, p 673.5 URL: http://old.stsl.ru/manuscripts/book.php?col=1&manuscript=089 Omanuscrito original, Книги 16 Пророков толковыя

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lúcidos quando submetidas a situações estressantes, comocaminhar de madrugada numa cidade escura e semideserta.

Tal experiência teve o efeito positivo de despertar seuamor pelas crônicas de Anne Rice. Com o passar do tempo elatambém leu a série de Charlaine Harris e assistiu True Blood,mas a coincidência de ter o nome da personagem principal deDracula (1897) registrado na carteira de identidade nunca lhepareceu uma honra ou curiosidade digna de atenção. Aliás, elanem sabia disso. Enfim, durante dezenove anos nunca passoupela cabeça desta dama européia que ela poderia estarpesquisando o folclore europeu ao invés da cultura norte-americana. Por alguns meses esteve decidida a investir umaexpressiva quantia em dinheiro em artesanato oriental,titubeou e desistiu. Assim age a maioria dos jovens europeus.

1725 – Luta dos Rätzischer contra os vampiros daGranitztruppen

Aconteceu uma série histórica, bem documentada, de casosde vampirismo numa antiga província sérvia anexada àprovíncia austríaca da Hungria em 1718. Os hajduci queocuparam terras em Kisiljevo (Кисиљево) e Medveđa (Медвеђа)começaram a se queixar do assédio dos mortos ainda no “tempodos Turcos” (Türckischen Zeiten)6 numa área que vai desde a“Granitz Otomana” (Türckischen Granitz) até perto dafronteira com Kosova (Косова), então situada numa provínciasérvia sob domínio do Império Otomano (Gossowa in demTürkischen Servien).7

A décima primeira página da edição nº 21 do periódicoWienerisches Diarium, impresso em julho de 1725, ocupa o primeiroou segundo lugar na lista dos mais antigos documentos onde apalavra “Vampyri” aparece com sentido etimológico de cadávercausador de epidemia e atividade paranormal. É significativoque o enterro seja rotulado como “método rätzischer”(Rätzischer Manier) na matéria impressa em 1725, pois trinta

6 COPIA EINES SCHREIBENS AUS DEM GRADISKER DISTRICT IN UNGARN. Em:Wienerisches Diarium nº 21, Julho de 1725, p 11-12.7 FLUCHINGER, Johannes. Visum et Repertum. Em: STURM, Dieter e VÖLKER,Klaus. Von denen Vampiren oder Menschensaugern. München, ST, 1968, p 451.

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anos depois um decreto imperial mandou multar este ou outrosacerdote “Rätzischer”, padre da igreja ortodoxa de ritogrego, por oficiar a cerimônia do “último suplício”.

Outro pronunciamento imperial datado de 30/04/1749lamenta que o “cisma grego” haja sido espalhado na forma de“religião privada” pelas tropas móveis de Granitz.8 Ospraticantes de tal religião eram chamados de Rëtzen ouRätzischer9, talvez por alguns difusores europeus pertenceremà família Rætz ou Ratzinger.

Tudo começou quando a infantaria austro-húngara recrutousoldados para defender o município Lancken-Granitz,localizado no distrito de Rügen, no estado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, Alemanha. Saindo de lá, a Granitztruppense espalhou pelas fronteiras beligerantes onde os corajosospadres Rätzischer se dispuseram a prestar serviço militarsocorrendo os feridos, consolando os vivos e enterrando osmortos.

Kisolova era a felpa duma pluma de águia repleta depessoas com vontade firmemente focada em ideais particulares.Fronteiras assim eram tratadas como verdadeiros depósitos delixo humano, onde contraventores de toda parte do impérioromano-germânico eram enviados para cumprir pena alternativade serviço militar. Seria incrível se no meio de tanta genteproblemática ninguém virasse vrykolakas (βρυκόλακας). Mas nãofoi bem isso que aconteceu. A religião se adaptou ao novoambiente sócio-cultural e criou seu próprio folclore.

Em 09/12/2012 e 17/01/2013, o romancista James Lyonvisitou a vila com objetivo de realizar pesquisa de campo.Mirko Bogičić, o atual presidente da vila, o ensinou sobre oscostumes funerários da população local:

Uma vela acesa é mantida ao lado do defunto desde omomento do óbito até que este seja posto no caixão. O morto évelado em casa e alguém fica sempre ao seu lado. Antigamentemoedas de ouro eram colocadas sobre os olhos do falecido. Hoje

8 WALDINUTZ, Georg Joseph Koegl de. De jure Civili Et Criminali Austriaco-bellicoTractatus Practicus. Johann Michael Landerer, 1772, p 129.9 FAIVRE, Tony. Les Vampires: Essai historique critique et littéraire.Paris, Le Terrain Vague, 1962, p 158.

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se usa moedas normais. Isto é para o defunto ter dinheiro naoutra vida.10

Reconhecemos aqui uma variante do costume grego de deixaróbolos (ὀβολοί) para Caronte levar as almas em balsas pelorio abaixo, evitando que estas regressem para perturbar osvivos. “Antes de colocar o corpo no caixão são realizadasalgumas cerimônias contra os maus espíritos. Isto incluiqueimar incenso e, depois, acender um pouco de pólvora nofundo do caixão”.11

Kisolova, atual Kisiljevo (Кисиљево), num mapahistórico do Império Habsburgo pertencente ao acervo doÖsterreichisches Staatsarchiv.

O Wienerisches Diarium reproduz o relatório do KaiserlProvisor ou Inspetor Imperial do Gradisker District,deslocado para Kisolova, no Rhamer-District, onde atuou comoperito judicial. Premissas lógicas auferidas da interpretação

10 Fonte: LYON, James. In Search of Peter Plogojowitz’s Grave. Artigopublicado em 23/01/2013 no blog Magia Posthuma, mantido pelo historiadorNiels K. Petersen. URL: http://magiaposthuma.blogspot.dk/search?q=kisiljevo11 Fonte: LYON, James. In Search of Peter Plogojowitz’s Grave. Artigopublicado em 23/01/2013 no blog Magia Posthuma, mantido pelo historiadorNiels K. Petersen. URL: http://magiaposthuma.blogspot.dk/search?q=kisiljevo

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do texto nos levam a presumir que em 1725 o municípioatualmente chamado Veliko Gradište (Велико Градиште) eradivido em dois distritos: Gradisker e Rhamer. Tal divisão eramais político-ideológica do que formal, pois a segundalocalidade devia subordinação às autoridades da primeira.Kisolova era uma vila rural repleta de habitações novas evida verdejante crescendo à margem de canais de irrigaçãoalimentados por um lago artificial de quatorze quilômetros.Infelizmente o projeto para reter água funcionava tão bem quegerava um efeito colateral: As cheias do Danúbio inundavamquase toda a vila, com exceção do cemitério.

O padre de Gradisker se apresentou como amicus curiaeaconselhando o arquivamento do processo que pedia a exumaçãoseguida da execução do de cujo, vampiro Peter Plogojoviz.12 Opedido foi indeferido em primeira instância pelo InspetorImperial Frombald, mas os autores recorreram à instânciasuperior e ganharam a causa. A Administração, em Belgrado,enviou um Mandado Judicial ordenando a execução do morto:“Wohl das gantze Dorf (wie schon unter Türckischen Zeitengeschehen seyn solte) durch solchen üblen Geist zu Grundgehen könte welches sie nicht erwarten wolten”.13 Traduzindo:

Pode ser que a Vila inteira seja destruída por esteespírito maligno e eles não queiram esperar por isto. Talcoisa supostamente já aconteceu no tempo dos Turcos. (Trechoda Resolução da Administração de Belgrado).

12 Mirko Bogičić contou que certa vez duas mulheres de Berlin lhemostraram fotocópias do relatório de Frombald, em alemão, mas ele nãoconseguiu ler por não ser fluente naquele idioma. Em sua opinião aimprensa pode ter corrompido o nome da família sérvia Blagojević(Благојевић) quando falou sobre uma família húngara de sobrenomePlogojoviz habitando a região no século XVIII. Não foram consultadosregistros de casamentos, nascimentos e mortes nos acervos de igrejas ecartórios que confirmem a ocorrência do sobrenome. James Lyon verificouque as cruzes de madeira que identificavam sepulturas da primeira metadedo século XVIII no cemitério de Kisiljevo (Кисиљево) erodiramcompletamente e nenhum nome sobreviveu ao tempo. (Fonte: LYON, James. InSearch of Peter Plogojowitz’s Grave. Artigo publicado em 23/01/2013 noblog Magia Posthuma. URL: http://magiaposthuma.blogspot.dk/search?q=kisiljevo)13 COPIA EINES SCHREIBENS AUS DEM GRADISKER DISTRICT IN UNGARN. Em:Wienerisches Diarium nº 21, Julho de 1725, p 11-12.

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Vilipendiar um cadáver não causaria nenhum dano além dadepreciação da imagem do falecido, mas não fazer o que fossenecessário para acalmar o povo podia gerar perigo de êxodorural. A transferência das tropas dum assentamento para outrocausaria um grande rebuliço. Então os superiores hierárquicosoptaram por promover relações publicas ordenando umespetáculo de caça aos vampiros. O padre de Gradisker ficouolhando sem poder fazer nada. Frombald teve de escrever umrelatório. Primeiro o inspetor ouviu testemunhos da epidemiaque se espalhou rapidamente em Dorf Kisolova, em 1725.Morreram jovens e idosos. Os enfermos sucumbiam no prazo devinte e quatro horas após a manifestação dos sintomas,totalizando nove mortes em oito dias.

Isso aconteceu dez semanas após o óbito de PeterPlogojoviz, cujo funeral foi realizado pelo padre Rätzischer.Os doentes diziam no leito de morte que Peter Plogojovizaparecia em pesadelos (schlaf), derrubava e estrangulava(gewürget) para lhos levar o espírito (geist). A viúva dovampiro se mudou da vila depois que o falecido esposo foi atéela pedindo seus oppanki (sandálias masculinas). O povo fezuma lista de sintomas: “Und sich in ein anderes begebensintemalen aber bey dergleichen Personen (sosie Vampyri nennen) verschiedene Zeichen als dessen Cörperunverwesen Haut Haar Bart und Nägel an ihme wachsen”.14

Traduzindo:

E desde então devem ser observados vários sinais nastais pessoas (que eles chamam de vampiros). Estes são: Ocorpo não decomposto. Crescimento de barba, cabelo e unhas.

Isto posto ficou assumido que o estado de conservação dePeter Plogojoviz determinaria a verdade real sobre o casoconcreto. Abriram a cova e constataram que o cadáver nãoestava nem tão bom nem tão ruim quanto uns e outros supuseramque deveria estar. Ao contrário de outros casos onde oscrédulos falam de odores agradáveis diante de céticos

14 COPIA EINES SCHREIBENS AUS DEM GRADISKER DISTRICT IN UNGARN. Em:Wienerisches Diarium nº 21, Julho de 1725, p 11.

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queixosos dum fedor nauseabundo, dessa vez o cético inspetorfoi o primeiro a perceber a ausência do “cheirocaracterístico da morte” no corpo recém exumado.

Apesar da esfoliação da pele e da queda das unhas, “ocorpo inteiro parecia fresco”. Disseram que vampiros trocamde pele e unhas (tal como fazem as serpentes). No calor domomento até o padre acreditou. Disseram que cresceu maiscabelo e barba. Frombald percebeu a ausência de parte donariz de Peter Plogojoviz. Disseram que a cicatriz nasalsempre esteve na face deste veterano de guerra. “Ele nãoestava mais completo em seu tempo de vida”.

O inspetor observou, pela primeira vez na História, amutação folclórica – característica transcendente – que fezcom que os vampiros deixassem de ser manes enamorados ouvrykolakas alcoólatras: “Nicht ohne Erstaunung einigesfrisches Blut erblicket welches der gemeinen Aussag nach ervon denen durch ihme Umgebrachte gesogen”15. Traduzindo:

Não sem surpresa, vi algum sangue fresco em sua boca,que, de acordo com a observação comum, havia sugado daspessoas que havia matado.16

De acordo com o relatório publicado no Wienerisches Diarium,o vampiro é “geist”, fantasma. Não é “wesen”, essência. Ouseja, ele tem todos os poderes do poltergeist sem ser capazde causar possessão ou obsessão. Vampiros são hematófagos quese alimentam do sangue dos vivos. Não são necrófagos canibaisiguais a certos entes folclóricos pré-existentes no folcloreromano germânico. Para matar um vampiro é preciso realizar omesmo rito tradicional utilizado na execução dos manes evrykolakas: Uma estaca de madeira ou ferro é cravada nocoração do cadáver e, depois, ele deve ser cremado. Cinzas erestos são jogados no rio.

O inspetor observou e redigiu o relatório que vazou dosarquivos do governo para as páginas dos jornais. Até o últimomomento ele lastimou não poder ter feito o que queria, tendo15 COPIA EINES SCHREIBENS AUS DEM GRADISKER DISTRICT IN UNGARN. Em:Wienerisches Diarium nº 21, Julho de 1725, p 11.16 Tradução baseada em: BARBER, Paul. Vampires, Burial and Death: Folklore andreality. New Haven and London, Yale University Press, 1988, p 6-7.

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diante de si a turba e uma cova, mas parece que seu ceticismonão saiu inabalado. No final quem ganhou foi a Medicina Legalque, faltando, impôs a necessidade urgente do seu estudo.

1727 – Contágio

Era costume entre os húngaros fortalecer o sistemaimunológico ingerindo pequenas doses de veneno até o usuáriose tornar imune às tentativas de envenenamento criminoso. Amistificação da idéia ocorre às vezes na arte, a exemplo dumanel de ouro da coleção de Esterházy Treasury do acervo doMuseu de Artes Aplicadas, em Budapeste (Inv. No. E. j. 240). Orelevo esmaltado mostra um crânio sob duas tíbias cruzadas,indicando a função de guardar veneno. A parte interior trazcenas biblicas da ressurreição dos mortos no dia do juizo.17

Em algum momento entre 1718 e 1727 a imunização passou aser usada como método de controle de pragas de vampiros,graças à idéia dum sobrevivente que aplicou em si mesmo umavacina rudimentar. A idéia era simples: Nunca se ouviu falarem vampiros que sugam o sangue de outros vampiros, logo seele transformasse a si mesmo antes de morrer ficariaimunizado. (Arnod Paole quase inventou a teoria damicrobiologia da doença um século antes de Louis Pasteur).

Nos tempos de guerra, quando a província sérvia queantes estava sob domínio otomano foi tomada pelos hajduci, osoldado Arnod Paole teve surtos de alucinações, deu baixa noserviço militar e passou a ganhar a vida administrando umafazenda apreendida como assentamento para reforma agrária em

17 HÉJJ-DÉTÁRI, Angéla. Old Hungarian Jewelry. Translated by Lili Halápy.Hungary, Corvina Press, 1965, p 52.

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Medveđa (Медвеђа). Seu sobrenome de origem italianademonstrava ser membro da menor minoria étnica do distritoonde aquele município se insere. Este homem morreu em 1727 eparte de sua estória foi contada a Johannes Fluchinger, em1732:

Os presentes declararam unanimemente que há cerca decinco anos um Heyduck domiciliado neste vilarejo, conhecidopor Arnod Paole, havia quebrado o pescoço em conseqüência daqueda de uma carroça transportando feno. Este, quando aindaem vida, já havia comentado por várias vezes que foraatormentado por um vampiro, perto de Kosova (Косова), naparte da Sérvia que está sob domínio otomano e, por causadisso, havia comido terra do tumulo do vampiro e se esfregadocom o sangue dele para se livrar da praga sofrida.18

Depois que Arnold Paole morreu num acidente de trabalhoas ovelhas de Medveđa começaram a sucumbir por morte súbita.Miliza e outros conterrâneos comeram dessa carne, ignorando operigo. Dizem que eles se tornaram vampiros vivos. Em 1727 apraga do vampiro foi controlada graças aos esforços domagistrado Gorschiz Bariactar. Quatro anos depois Milizamorreu e a epidemia recomeçou. Contaram isto a JohannesFluchinger:

Cerca de vinte ou trinta dias após sua morte algumaspessoas passaram a reclamar, dizendo se sentiam atormentadaspelo dito Arnod Paole. De fato, quatro delas acabaram sendorealmente mortas por ele. Para por fim a este mal, tinhamseguido um conselho de seu magistrado (Gorschiz Bariactar),que já havia presenciado este tipo de acontecimento emocasiões anteriores.

Eles exumaram o referido Arnod Paole, cerca de quarentadias depois de morto, e viram que o cadáver permanecia emperfeitas condições, sem nenhum sinal de putrefação. Acharamsangue fresco nos olhos injetados; jorrava do nariz, da bocae dos ouvidos; sua camisa, bem como o tecido da mortalha e ocaixão estavam cheios de sangue. Todas as unhas das mãos epés caíram, juntamente com a pele, mas cresceram novas. (...)

18 FLUCHINGER, Johannes. Visum et Repertum. Em: STURM, Dieter e VÖLKER,Klaus. Von denen Vampiren oder Menschensaugern. München, ST, 1968, p 451.

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Ele era um verdadeiro vampiro. (...) Cravaram uma estaca emseu coração, tendo ele gritado – todos ouviram – e sangradobastante. Neste mesmo dia cremaram o corpo até virar cinzas eas jogaram no túmulo.19

Os habitantes de Medveđa acreditavam que “todos aquelesque haviam sido atormentados por um vampiro ou assassinadospor um deles, também deviam se transformar em vampiro”. Poresta razão, exumaram, estaquearam e cremaram as quatrovitimas de vampirismo que estavam mortas. Finalmente elesdescobriram que Arnod Paole havia atacado também o gado parasugar sangue. “Como as pessoas haviam comido a carne dessegado, verificou-se novamente que ainda deveria haver algunsvampiros nesta redondeza”. Porém os vampiros vivos eramcidadãos comuns, membros da sociedade. Não podiam sercaçados.

1730 – Os caçadores caçados

O caso concreto que sofreu a incrível intervenção diretado sacro imperador romano-germânico Karl VI (1685-1740) nãocostuma ser julgado relevante para pesquisa porque osdocumentos originais não foram preservados ou não se achamacessíveis. Tudo começou quando um soldado hajduk estavaservindo no distrito Haidón (área incorporada ao condadoHajdú-Bihar em 1876), no leste da Hungria, na fronteira com aRomênia, onde ele viu o vampiro. O caso relatado por estatestemunha passou por várias bocas até ser citado numapalestra do Conde de Cabrera, antigo capitão do Regimento deInfantaria de Alandetti, proferida no ano 1730, naUniversidade de Friburgo. Um correspondente de Dom Calmet fezanotações sobre a palestra e redigiu uma carta ao abade, em1746:

Um soldado, quando estava na guarnição dum Haïdamaque(...) viu entrar um desconhecido que se pôs a mesa com eles.O soldado encontrava-se à mesa perto do dono da casa. Esteficou estranhamente assustado, assim como o resto dos

19 FLUCHINGER, Johannes. Visum et Repertum. Em: STURM, Dieter e VÖLKER,Klaus. Von denen Vampiren oder Menschensaugern. München, ST, 1968, p 451-452.

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presentes. O soldado, ignorando o que se passava, não sabia oque pensar. Mas no dia seguinte o dono da casa estava morto eo soldado procurou se informar a respeito do que haviaacontecido. Disseram-lhe que fora o pai do hospedeiro, mortoe enterrado há mais de dez anos, que tinha vindo sentar-se aopé dele, anunciar-lhe e causar-lhe a morte.20

Seria fantástico se a pronúncia do termo iídiche

haïdamaque (יייייייייי) houvesse sido transmitidacorretamente por três pessoas seguidas durante quinze anosquando tudo o mais chegou corrompido – até os conceitos maiselementares de geografia. – Se isto ocorreu o soldado hajduk,cujo nome é dado como Joachim Hubner por um estudioso doassunto21, deveria estar hospedado num lar judeu. Contudo, omais provável é que o abade tenha implicado futilmente aosjudeus quando optou por não redigir o francês haïdouk.

O soldado notificou o regimento que avisou aos generaisque encarregaram o capitão de promover um inquérito oficial.“Tendo-se deslocado para o local outros oficiais, umcirurgião e um auditor civil, ouviram os depoimentos de todasas pessoas da casa”.22 As demais testemunhas depuseram deforma uniforme e o conde achou necessário exumar o corpo.“Encontraram-no como o de um homem que tivesse acabado demorrer, o sangue como o de uma pessoa viva”.23 Cremaram-nojunto a outros dois acusados de vampirismo. O imperador tomouciência de tais acontecimentos e enviou uma segunda comissãopara investigar:

O comissário fez um relatório para os oficiais generaise mais tarde foi como delegado apresentar-se na corte doImperador, que ordenou o envio de oficiais militares e

20 CALMET, Dom Augustin. Traite sor les Apparitions des Esprits, et sur les Vampires, ou lesRevenans de Hongrie, de Moravie, &c.: Nouvelle édition revue, corrigée &augmentée. France, Chez Joseph Pariset, 1759, tome II, p 31.21 WILSON, Colin. O Oculto. Trd. Aldo B. Netto. Rio de Janeiro, FranciscoAlves, 1981, vol 2, p 120.22 AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trd. Ana Silva e Brito. Lisboa,Bertrand, 1978, p 145.23 AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trd. Ana Silva e Brito. Lisboa,Bertrand, 1978, p 145.

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oficiais de justiça, médicos, cirurgiões e alguns sábios,para que examinassem as causas destes extraordináriosacontecimentos.24

Dom Calmet compilou mais uma carta, desta vez de LudwigVon Buloz, primeiro-capitão dos Granadeiros no Regimento doBarão de Trenk, que antes fora assistente do príncipe deWürttemberg e ex-capitão do regimento. Foi Ludwig Von Bulozquem notificou a respeito do espetáculo mais absurdo:

O senhor abade deve interessar-se por um fato verídico enotório referente à delegação de Belgrado, ordenada por SuaMajestade Imperial Karl VI, de gloriosa memória, e executadapor Sua Alteza Sereníssima o duque Alexander de Württemberg,neste tempo vice-rei ou governador da Sérvia.25

O público se amontoou no cemitério para ver o orgulhosoe autocrático Rei da Sérvia se rebaixando a exumar os túmulosdos pretensos vampiros a mando do sacro imperador romanogermânico! Quando localizaram o covil do nobre suspeito “foivista sob seu túmulo uma claridade parecida à de umcandeeiro”. Cavaram ali. Encontraram um homem “parecendo tãosão quanto qualquer um de nós” e “seu coração palpitava”.Assombro geral! (Nota: Eles escutaram as batidas do coraçãosem fazer uso de estetoscópio, pois tal instrumento só foiinventado em 1916). O defunto foi morto pela segunda vez comuma estaca de ferro (bisturi?) no coração. Decapitaram e oenterraram numa vala com cal “para consumir mais depressa”.26

Naquele ano nada foi publicado sobre o assunto naimprensa alemã! Por que o silêncio? Possivelmente porque eratudo mentira. Ou então a manobra de eliminação de problemasexóticos deveria ser tratada como segredo de Estado. O DuqueCarlos Alexander de Württemberg (1684-1737) foi nomeado Rei

24 CALMET, Dom Augustin. Traite sor les Apparitions des Esprits, et sur les Vampires, ou lesRevenans de Hongrie, de Moravie, &c.: Nouvelle édition revue, corrigée &augmentée. France, Chez Joseph Pariset, 1759, tome II, p 33.25 AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trd. Ana Silva e Brito. Lisboa,Bertrand, 1978, p 132.26 AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trd. Ana Silva e Brito. Lisboa,Bertrand, 1978, p 133.

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da Sérvia em 1720 pelo sacro-imperador Karl VI (1685-1740) epermaneceu no cargo até 1733. Karl VI era a autoridade máximado império Habsburgo e talvez soubesse que cento e quatorzeanos antes Johann Valentin Andreae reuniu um círculo derevolucionários anti-Habsburgos na universidade de Tübingen,em Württemberg, que, para angariar o apoio dos curiosos à suacausa, promoveram o romance Chymische Hochzeit Christiani Rosencreutz(1616), onde alquimistas descobrem um método capaz dereviver reis mortos dando sangue de reis vivos para beber27.

Foi provavelmente em resposta às reminiscências dopassado regional que o Rei da Sérvia se prestou a autopsiarcadáveres suspeitos de sugar sangue. – Afinal, aquela obra deficção trouxe problemas ao estado por profetizar a morte eressurreição de Frederico e Elisabete de Praga, futuros reisda Boêmia. – Este pesadelo parecia uma impossível encarnaçãofática da mágica alquímica descrita pelos revolucionários queantecederam ao Duque de Württemberg. Então ele não teveescrúpulos em destruir este empecilho.

1731 – Pandemia de vampirismo!

Em 1731 os hajduci de Medveđa começaram a se queixar demais mortes supostamente causadas pela ação de vampiros. Oepidemiologista Glaser, filho do médico Johann FriedrichGlaser, ordenou a exumação dos novos acusados em 12/12/1731,em presença dos governantes locais e do chefe de Kragolas, ocabo Von Stallada, mas não se atreveu a tocar nos mortos,preferindo opinar que as necropsias não podiam ser efetuadassem ordem de outra autoridade competente:

Procedi a exames e a um inquérito minucioso na própriavila, andando de casa em casa, no dia 12/12/1731. Como nãoencontrei nenhum sinal de doença infecciosa (...) pergunteipor que se queixavam assim. Soube que treze pessoas tinhammorrido no espaço de seis semanas e quando perguntei de que éque se queixavam antes de morrer, todos declararam a mesmacoisa. Haviam tido sintomas semelhantes aos da pleurisia e daafecção pulmonar e igualmente grandes febres e dores

27 YATES, Frances A. O Iluminismo Rosa-Cruz. São Paulo, Pensamento, 1972, p126, 186, etc.

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semelhantes às provocadas pelo reumatismo, mas supunham queesses estados eram devidos à existência de Vampiros. (...)Tentei fazer com que a idéia lhes saísse do espírito,explicando-lhes que não podiam conservar tal suposição.Entretanto, responderam que preferiam ir para outro ladoantes que fossem assassinados daquela maneira. Como decostume, duas ou três famílias reuniram-se de noite; unsvelavam, outros dormiam, julgando que as mortes não cessariamenquanto uma autoridade competente não ordenasse a execuçãodesses Vampiros.28

As necropsias só foram feitas em 07/01/1732, na ocasiãoda segunda exumação dos mesmos suspeitos, conduzida por trêscirurgiões militares: Johannes Fluchinger, Johann FriedrichBaumgarten e J. H. Sigel, sendo os dois primeirosprovenientes do Regimento de Infantaria de B. Fürstenbusch eo último do Regimento de Motall. O tenente-oficial Büttener eo escudeiro J.H. von Lindenfels, destacados do regimento deCarlos Alexander de Württemberg, foram enviados comotestemunhas. Fluchinger explica suas atribuições:

Após terem sido registradas as queixas-crime de que, naaldeia de Medveđa, os chamados Vampiros teriam assassinadoalgumas pessoas, sugando-lhes o sangue e levando-as à morte,agora, portanto, investido dos poderes da mais alta elouvável autoridade pelo Comando-Mor, fui incumbido deinvestigar o acontecimento por completo, em toda a suaextensão, juntamente com os oficiais destacados para essatarefa e mais dois cirurgiões adjuntos, também destacadospara a tarefa, para realizar a atual investigação na presençado lugar-tenente Gorschiz Hadnack Bariactar, então capitão dacompanhia dos hajduci e mais velho hajduk da aldeia.29

A esposa e o filho de Gorschiz Hadnack Bariactarmorreram de causa incerta e não sabida dia 04/12/1731,durante o ápice da epidemia de vampirismo na região, mas,mesmo habituado a executar vampiros, o líder comunitário

28 AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trd. Ana Silva e Brito. Lisboa,Bertrand, 1977, p 155.29 FLUCHINGER, Johannes. Visum et Repertum. Em: STURM, Dieter e VÖLKER,Klaus. Von denen Vampiren oder Menschensaugern. München, ST, 1968, p 451.

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impediu o vilipendio de sua família.30 Johannes Fluchingerresolveu o problema atestando diante de todos que “mesmotendo sido enterrados na mesma terra e em túmulos próximosdos vampiros ali enterrados”, a Sra. Bariactar e seu bebêforam achados em estado de decomposição normal; ao contráriode Stana e Ruscha, que não apodreceram. A falecida esposa e ofilho de outro governante, bem como o criado Rhade, tambémapodreceram normalmente.

Os hajduci que viveram no Reino da Sérvia na primeirametade do séc. XVIII não escreviam nomes, data de nascimentoe óbito em lápides. Por isso os dados coletados a partir damemória dos habitantes de Medveđa careciam de precisãoabsoluta. O óbito de Stanche, um hajduk de sessenta anos,ocorreu por volta do dia 20/11/1731. Durante a exumaçãocoletiva, em 07/01/1732, o cirurgião militar JohannesFluchinger encontrou “sangue líquido” na região peitoral e noestômago e, assim como outros mortos identificados como sendo“vampiros” pelos queixosos, parecia estar em ótimo estado deconservação.

Para Glaster disseram que um menino de catorze anoschamado Millœ teve uma forte ressaca na manhã seguinte a umafesta na aldeia e morreu. Um rapaz de quinze anos que nãovirou vampiro, chamado Joachim, também teria morrido de comaalcoólico ou indigestão por causa de algo que serviram nafesta.31 Fluchinger não viu Joachim. Para ele disseram que oHajduk Millœ tinha na verdade vinte e cinco anos quandomorreu de vampirismo, e que foi enterrado por volta de26/11/1731. Seu fantasma voltou para buscar Stanacka, vinteanos, esposa de outro hajduk. Ela adoeceu agonizou durantetrês dias, morreu e foi enterrada dia 21/12/1731.

O Hajduk Jowiza registrou que a sua nora, conhecida porStanacka, sendo uma moça saudável e sem doença, há cerca de

30 Finalmente começamos a entender por que Glaster foi “ajudado” pelos“próprios governantes” da população hajduci quando logrou impedir aexecução dos vampiros sem ordem de uma autoridade competente, mesmoachando o ato necessário “a fim de satisfazer estes indivíduos, e sendoesta vila relativamente importante”.31 AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trd. Ana Silva e Brito. Lisboa,Livraria Bertrand, 1977, p 157.

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quinze dias se recolhera para dormir e à meia-noite acordougritando assustada, com medo e trêmula, queixando-se de tersido sufocada pelo filho dum hajduk, conhecido por Millœ, jáfalecido havia nove semanas, que lhe apertara a garganta, eque sentia uma dor muito forte no seu peito, tendo elapiorado a cada hora até finalmente sucumbir no terceiro dia.32

Quando Johannes Fluchinger examinou o corpo de Stanacka,ele encontrou a marca de estrangulamento no pescoçoalegadamente deixada por Millœ:

Encontrei o seu rosto com uma cor rosada e vívida. (...)Ficou evidente que ela apresentava, no lado direito abaixo doouvido, uma marca azulada de hematoma com uma extensão dumapolegada. Ao exuma-Ia, fluía grande quantidade de sanguefresco pelo nariz. Após terminar a necropsia, encontrei (...)grande quantidade de sangue fresco e balsâmico, e não somentena cavidade torácica, mas também no ventrilculo cordis e todas asvísceras se encontravam num estado bom e totalmente saudável.A parte subcutânea do corpo por inteiro, incluindo as unhasdas mãos e dos pés, estava toda ela num estado renovado.33

Durante a primeira exumação, Glaster ficou especialmenteimpressionado com a biografia e o estado de conservação docorpo de Miliza:

Disseram-me que houve na localidade duas mulheres que emvida se tinham transformado em vampiros que, após a morte,tinham vindo atacar outras pessoas. (...) Mandei abrir asepultura (...) da mulher mais velha, chamada Miliza. (...)Tinha vindo duma área do império otomano há seis anos efixara-se em Medveđa. Durante todo esse tempo os vizinhosviveram sem saber se ela acreditava no Diabo. (...) Contavaaos vizinhos que, noutros tempos, tinha comido carne de duasvítimas de vampiros, e era por isso que quando morressetornar-se-ia por sua vez vampiro. Foi baseado nestas

32 FLUCHINGER, Johannes. Visum et Repertum. Trd. Walter H.R. Frank e BreneJan. Em: FERREIRA, Cid Vale. Voivode: Estudos sobre os vampiros. Curitiba,Pandemonium, 2002, p 124.33 FLUCHINGER, Johannes. Visum et Repertum. Trd. Walter H.R. Frank e BreneJan. Em: FERREIRA, Cid Vale. Voivode: Estudos sobre os vampiros. Curitiba,Pandemonium, 2002, p 126.

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conversas que o povo fez o seu julgamento. Com efeito, vi ocadáver desta mulher. Como tinha sido de constituição magra eseca e morrera velha, era de crer que (...) estivesse semidecomposta. Contudo, achamos que estava mais gorda e pareceu-nos ensopada em sangue: Um sangue fresco corria-lhe dasnarinas e da boca. Tudo isto me pareceu extravagante. Não sepodia deixar de dar razão às pessoas.34

Para Johannes Fluchinger disseram que Miliza tinha cercade sessenta anos e faleceu após uma doença de três meses. Erasuspeita de vampirismo porque teve contato com um dos cincovampiros caçados em 1727 e comeu carne das ovelhassacrificadas por eles. Ou seja, ela não canibalizou nenhumcadáver humano. Apenas, por acidente, consumiu carne de gadoabatido por morte súbita, vitima do vampirismo de ArnodPaole. Mas Miliza só morreu em setembro ou outubro de 1731,pouco mais de noventa dias antes de Fluchinger examiná-la.

No seu peito foi constatado muito sangue em estadolíquido, e as demais vísceras encontravam-se num estado deboa conservação, como no caso acima descrito. Durante anecropsia, todos os hajduci ali reunidos nessa ocasião,expressaram surpresa ao ver como seu corpo era gordo e seencontrava em estado perfeito, declarando de modo unânime quehaviam conhecido a mulher muito tempo atrás, desde a suajuventude, mas que ela sempre fora muito magra e seca, com oregistro expresso de que ela somente havia adquirido essacorpulência admirável na sua tumba.35

Após ver Miliza, o epidemiologista Glaster assistiu àexumação de Stana. Em Medveđa quatro mulheres morreram deinfecção pós-parto nos meses de novembro e dezembro de 1731.Stana foi uma delas. Os órfãos não sobreviveram por muitomais de uma semana e parecem ter morrido por falta de leitematerno.

34 AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trd. Ana Silva e Brito. Lisboa,Livraria Bertrand, 1977, p 155-156.35 FLUCHINGER, Johannes. Visum et Repertum. Trd. Walter H.R. Frank e BreneJan. Em: FERREIRA, Cid Vale. Voivode: Estudos sobre os vampiros. Curitiba,Pandemonium, 2002, p 125.

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A outra mulher acusada de ser vampiro, de nome Stana(...) chegou a confessar aos vizinhos que, quando esteve emterras do império otomano, onde os vampiros reinavamigualmente em grande número, a fim de se proteger deles, setinha untado com o sangue de um vampiro executado. Por isso,quando morresse, tornar-se-ia por sua vez vampiro. Dizia-seque era do mesmo tipo físico da primeira. A criança, quepouco mais tempo tivera de vida, foi enterrada fora docemitério, visto que nem sequer havia sido batizada; a suasepultura ficava atrás de uma sebe, perto do sítio onde a mãetinha morado. Vi igualmente o cadáver dessa criança.36

Johannes Fluchinger não autopsiou o filho de Stanaporque este bebê foi parcialmente devorado por cães, por umdescuido no segundo enterro. Para Fluchinger disseram queStana declarou ter untado a pele com sangue dum vampiro e,como conseqüência, ela e seu filho teriam que virar vampirosapós a morte. Stana morreu três dias após o parto, aos vinteanos de idade, porque a placenta ficou dentro dela eapodreceu. O óbito ocorreu em novembro de 1731, dois mesesantes da segunda exumação. Fluchinger percebeu que a mulhervampiro parecia esfoliada. Disseram que Stana trocou de pelee unhas.

O corpo dela estava em perfeitas condições e sem sinalde decomposição. Após abrir o corpo da mesma, na altura dacavitate pectoris (cavidade torácica) foi encontrada umaquantidade de sangue fresco extravasado. Os vasos sangüíneos,tanto os representados por artérias ou por veias, junto comos do ventriculis cordis (cavidades internas do coração) não haviamsido entupidos com sangue coagulado, como seria o normal. Asvísceras todas, incluindo os pulmões, fígado, estômago, baçoe intestino, ainda estavam totalmente frescas, iguais às dumapessoa de boa saúde. Mas o útero encontrava-se muito inchadoe com muita inflamação na sua parte externa, porque aplacenta, bem como o corrimento vaginal, ficaram dentro dela,razão pela qual ele estava em estado de putrefação. A peledas mãos e dos pés, assim como as unhas antigas, se

36 AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trd. Ana Silva e Brito. Lisboa,Livraria Bertrand, 1977, p 156-157.

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desmancharam sozinhas, mas por baixo delas viam-se não só umapele fresca e vívida, como também unhas completamente novas.37

Outra mulher, de nome Ruscha, deu à luz um menino porvolta do dia 16/11/1731, teve complicações pós-parto e morreudez dias depois. Seu bebê faleceu aos dezoito dias de vida.Mãe e filho viraram vampiros. Fluchinger encontrou “sanguefresco” no peito e no fundo ventriculi (cavidade abdominal) deRusha. Dois rapazes de dezesseis anos, filhos de hajduci,sucumbiram a uma doença de três dias. Joachim foi enterradodia 08/11/1731. O outro, cujo nome não foi lembrado, foienterrado em 19/11/1731. Ambos permaneceram em condiçãoimputrescível. Uma donzela anônima de dez anos, falecida emnovembro, “cujo peito continha muito sangue fresco”, estavaem perfeito estado de conservação, sem sinais dedecomposição. Um bebê sepulto em 10/10/1731 virou vampiro.

Em seguida aos exames realizados, os ciganos aquidomiciliados cortaram as cabeças, que foram cremadas com orestante dos corpos, e as cinzas foram jogadas no Rio Morava.Os corpos em estado de decomposição, porém, foram devolvidosaos túmulos que anteriormente ocupavam. Testemunhado por mime pelos médicos de campo adjuntos. Actum ul supra.38

Existe um cemitério em Medveđa (coordenadas42°50'49"N 21°35'11"E). O rio mais próximo dali é oJablanički, afluente do Južna Morava que, por sua vez,deságua no Rio Morava. Quando os ciganos (Zigeuner) afirmamque pretendem dissolver as cinzas dos vampiros num cursod’água chamado de Rio Morava (Fluß Morava) eles parecem sereferir poeticamente à cadeira hidrográfica completa. Docontrário os hajduci mortos em Medveđa deveriam serliteralmente levados para o outro cemitério hajduk emKisiljevo, situado à margem do Rio Morava.

37 FLUCHINGER, Johannes. Visum et Repertum. Trd. Walter Frank e Brene Jan.Em: FERREIRA, Cid Vale (org.). Voivode: Estudos sobre os vampiros.Curitiba, Pandemonium, 2002, p 125.38 FLUCHINGER, Johannes. Visum et Repertum. Em: STURM, Dieter e VÖLKER,Klaus. Von denen Vampiren oder Menschensaugern. München, ST, 1968, p 455-465.

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Nesta ocasião ninguém se lembrou da existência deRuschiza, quarenta anos, morta em 28/11/1731, que era“parcialmente suspeita”, quando Glaser a viu.39 Fluchinger nãoexaminou esta mulher e os ciganos não a cremaram. Por issopensamos que em algum lugar abaixo do solo de Medveđa jazemos ossos da última pseudo-incorrupta, esperando por umarqueólogo que a encontre sob uma folha de cortiça banhada emresíduos coagulados cheios de vírus vampir.

Johannes Fluchinger redigiu um Visum et Repertum (laudo daperícia, no jargão médico) e apresentou em Nurembergue, em26/01/1732, para a apreciação da corte do sacro-imperadorKarl VI. Neste mesmo dia o Coronel March Botta d’Adornoentregou um relatório no tribunal marcial de Belgradoautorizando o pagamento de honorários e gratificação paraFluchinger e seus adjuntos, pois eles mereciam “uma boarecompensa, por causa dos incômodos que tiveram e peloextraordinário inquérito que conduziram”.40

O mesmo não se pôde dizer do relatório apresentado em29/02/1732, em Nurembergue, pelo epidemiologista Glaser.Notoriamente católico, sua principal preocupação eraverificar se um bebê não batizado foi enterrado em solosagrado, se Miliza acreditava no Diabo, etc. Embora seapresentasse como médico domiciliado em Paraćin (Параћин)este analfabeto funcional mal sabia onde estava pisando: Onome da vila é Medveđa (Медвеђа). Fluchinger pronunciavamuito bem o cirílico “Medvegia” e sabia que sua pesquisa decampo foi realizada no Reino da Sérvia. Por outro lado, ojovem e inexperiente Glaser acreditava ter visitado “Metwett”na “Morávia” (naturalmente, no sentido de Magna Moravia,remetendo à idéia utópica de ressurreição do antigo reinosérvio).

1731 – Exumações de vampiros em Radojevo

39 AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trd. Ana Silva e Brito. Lisboa,Bertrand, 1977, p 157.40 AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trd. Ana Silva e Brito. Lisboa,Livraria Bertrand, 1977, p 154-155; FAIVRE, Tony. Les Vampires. Paris, LeTerrain Vague, 1962, p 51.

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Ao mesmo tempo em que Johannes Fluchinger investigava osvampiros de Medveđa, outro cirurgião militar do Regimento deInfantaria de Carlos Alexander de Württemberg, o cirurgião-mor Jozsef Faredi-Tamarzski, foi enviado a Radojevo parainvestigar a morte de onze vitimas de vampirismo. Este últimonão escreveu nenhum relatório. O depoimento de Faredi-Tamarzski, feito sob juramento perante a Comissão Militar deBelgrado, foi transcrito por um escrivão em outubro de 1732.Por isso não traz termos técnicos em latim, etc.

Sendo católico, Faredi-Tamarzski embargou a ordem decremação coletiva proferida pelo magistrado local e nãoentendeu a argumentação ortodoxa, mas se esforçou paradescrever tudo que viu e ouviu dentro dos limites de suacapacidade cognitiva:

Sob ordem da Comissão Imperial presidida por Sua AltezaSereníssima, o Príncipe Carlos Alexander de Württemberg, esob designação do senhor coronel comandante do ditoregimento, fui enviado no mês de Julho para a aldeia deRadojevo para aí proceder a um inquérito sobre a morte deonze pessoas, falecidas inesperadamente durante os meses dejaneiro e fevereiro, e que os aldeões atribuíam a um vampirochamado Miloch.

Primeiro foi interrogado o regedor da aldeia, o qualdeclarou ser da mesma opinião dos seus munícipes. Em seguidaforam interrogados os cinco habitantes mais ilustres, queasseguraram que ninguém aqui duvida de que se trata de umvampiro. Após ter tentado, em vão, fazê-los admitir aimpossibilidade de tal coisa (Deus não pode ter dado talpoder ao Diabo), os ditos retorquiram que o tal Diabo não seencontrava nos corpos desses Vampiros, mas que eles próprios,em vida, são em princípio seus servidores e fazem um pactocom ele, e é por isso que o tal Diabo, como recompensa, fazcom que eles não se corrompam na terra.41

Ninguém jamais recorreu a estórias sobre a intervençãodo “Diabo” cristão em ocasiões onde não foi necessário

41 Relatório de Jozsef Faredi-Tamarzski, cirurgião-mor do Regimento deInfantaria de Vurtemberga, acerca dos Vampiros de Radojevo. (Arquivo daComuna de Radojevo — 1732). Em: AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trd. AnaSilva e Brito. Lisboa, Livraria Bertrand, 1977, p 158.

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convencer um fundamentalista a respeito da necessidadepremente de exumar vampiros. Normalmente o vampirismo étratado quase como se fosse algo natural (um veneno, umadoença) e não há possessão diabólica. Mas Faredi-Tamarzskinão acreditava em fantasmas. Só em diabos. “Depois de terouvido essas pessoas importantes” ele consentiu em autorizara exumação dos suspeitos “para os convencer do seu engano”.Começou a disputa de argumentos. O primeiro vampiro examinadoera especial. O paciente zero, de hábitos exóticos, eratalvez outro Millœ de nome truncado com o bíblico Moloch.

Miloch tinha aproximadamente cinqüenta anos quandomorreu. Teve sempre alguma fama de ser feiticeiro. Possuía umpássaro ao qual tinha ensinado a falar. Teve também durantemuito tempo um lobo que havia domesticado após a suacaptura.42

Onde será que um hajduk arranjou um papagaio? A viúva deMiloch (sic.) relatou que ele morreu sem se saber como, semqualquer doença aparente. O corpo foi enterrado no verão de1731. Logo depois pessoas começaram a morrer em Radojevo eviam o fantasma, em estado de agonia.

Interroguei as famílias das onze pessoas mortas de modosuspeito. Tinham ficado doentes sem qualquer razão,declarando ter sido atacadas uma noite por Miloch, o qualtentou estrangula-Ias. Segundo as declarações dos familiares,caíram num estado febril em conseqüência do ataque. Sem comere por assim dizer sem beber. A maior parte morreu dentro deum período compreendido entre oito e dez dias. Apresentaramtodos os sintomas de enfraquecimento progressivo. Delíriosnoturnos nos primeiros dias. Acessos particularmenteviolentos no fim de cada noite daquele período. Em algumasdas pessoas mortas deste modo, os familiares observaram duasmarcas ligeiras e azuladas localizadas na garganta. O que osaldeões de Radojevo atribuíram aos ataques de Miloch, oVampiro.43

42 Op cit, p 158.43 Op cit, p 158-160.

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O corpo só foi exumado uma vez, quinze meses depois doenterro, diante de Faredi-Tamarzski. Estava em bom estado deconservação:

Os homens da aldeia de Radojevo tiraram a terra e aplaca de cortiça que cobria o corpo. O cadáver foi encontradona vala, porém completo e intacto, os olhos muito abertos,apesar de a viúva ter afirmado que os tinha fechado na devidaaltura. Fato confirmado por Tiéna, a mulher que costumavalavar os mortos da aldeia. O corpo do dito Miloch era magro emusculoso, os membros não estavam nada rígidos. O que meimpediu de convencer os aldeões de Radojevo foi o fato de osangue correr lenta mas abundantemente, e sem parar, da bocaaberta de Miloch. Os dentes, assim como as narinas, estavammanchados. Colocado quase nu na vala aquando do enterro, aplaca de cortiça que está por cima do corpo e a terra nofundo da vala foram encontradas embebidas em sangue.

Perante a insistência dos habitantes de Radojevo, tivede ordenar que lhe espetassem um punhal no coração, antes defechar novamente o túmulo. Tendo percebido que tinham aintenção de o queimar assim que me fosse embora, mandeideitar cal viva sobre todo o corpo.44

Faredi-Tamarzski autorizou a exumação de onze vitimasenterradas há seis meses. Oito mortos estavam decompostos.“Dos outros três, uma mulher estava num estado de conservaçãoverdadeiramente surpreendente, atendendo ao tempo desepultura. Parecia uma pessoa a dormir. Os outros dois, umhomem e uma mulher, pareciam não estar tão bem, já que osseus membros estavam rígidos e na primeira mulher estavamperfeitamente flexíveis”.45 Ignoramos a identidade dosvampiros porque o médico não memorizou nomes de toda essagente.

Todos os três pareceram-me suspeitos, visto que aprimeira mulher foi encontrada com sangue nos dentes e naboca. Por outro lado, havia manchas de sangue sob ela, navala. Esta mulher tinha morrido com trinta anos, segundodizem os aldeões de Radojevo. A outra era uma rapariga com

44 Op cit, p 158-160.45 Op cit, p 160-161.

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dezenove anos no máximo. O homem tinha mais ou menos trintaanos. Perante estes perturbantes fatos, julguei-me autorizadoa permitir aos habitantes de Radojevo que os cravassemigualmente com um punhal. A aldeia não parece totalmentetranqüilizada. Tem a impressão que as autoridades sedesinteressaram pelo seu futuro, visto que não concordaramcom a cremação dos cadáveres suspeitos. 46

É curioso observar o criativo contra-argumento deortodoxos contrariados por católicos, todos eles abarrotadosde crenças exóticas. Glaser, Fluchinger e Faredi-Tamarzskinão tinham a obrigação moral de obedecer ao princípio daimparcialidade, pois eles eram médicos e não antropólogos.Graças ao bom senso de Fluchinger nós viemos a conhecer ofolclore livre de contaminação ideológica.

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46 Op cit, p 160-161.