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_________________ (*) Professor Titular do Departamento de
Economia da UFF. Texto apresentado no IV Encontro da Sociedade
Brasileira de Estudos do Cinema, Florianpolis, novembro de 2000,
publicado aqui com autorizao do autor. Os professores Maria Clia M.
Moraes (UFSC), Ricardo Mller (UFSC) e Marcio Schuler leram e
comentaram verses preliminares deste trabalho. Ajudaram-me, diria
com Ahmad, a acreditar que a interpretao aqui defendida faz algum
sentido. Sou-lhes grato por isso e, mais ainda, pelo incentivo em
sistematiz-la sob a forma de ensaio. Agradeo, igualmente, s
oportunidades que me foram oferecidas para discutir o trabalho em
seminrios realizados na UFF e na UFSC. As faltas e insuficincias,
no havendo nada e ningum por perto para inculpar, so todas de minha
responsabilidade, infelizmente.
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ENSAIO
CAPITAL: More Human than Human
(Blade Runner e a Barbrie do Capital)
Mrio Duayer*
If the future is one you can see and touch, it makes you a
little uneasier because you feel its just around the corner.
Ridley Scott
Assim, tacitamente ameaados, estamos imobilizados
dentro de espaos sociais condenados, locais anacrnicos
que se autodestroem, mas onde temos o estranho e
apaixonado desejo de permanecer, enquanto o futuro se
organiza, debaixo de nossos olhos, em funo de nossa
ausncia j programada de maneira mais ou menos
consciente.
Viviane Forrester
Blade Runner (O Caador de Andrides)1 decerto um dos mais
impressionantes filmes de
fico cientfica jamais realizados. Feito nada desprezvel, preciso
reconhecer, em especial numa poca em que a cincia ameaa tornar
suprflua a fico. A sua relevncia enquanto produto cultural de e
para nossa poca confirmada igualmente pela enorme literatura que
originou.2 Na tentativa de entender as causas de seu impacto
cultural, grande parte da literatura crtica parece ter produzido
mais fico do que o prprio filme. Em lugar de partirem da fico
apresentada pelo filme, muitas crticas procuram explicar o fascnio
que exerce elaborando sobre a ficcionalizao de certos elementos
presentes no filme. Desta ficcionalizao, que magnifica determinado
elemento da ordem
1 importante sublinhar que o ttulo do filme em portugus no
traduz a inteno do original. A produo do filme no usou a expresso
andride, empregada na novela de Philip K. Dick, com o explcito
propsito de evitar que o filme fosse interpretado como algo
relacionado a robs. Razo pela qual o termo andride (da novela) foi
substitudo por replicante. 2 Ver Kolb3 para uma imensa bibliografia
comentada.
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social delineada no filme, resulta uma imagem unidimensional e,
portanto, empobrecida da sociedade representada no filme, reduo to
mais paradoxal porquanto feita em nome da pluralidade de leituras.
Naturalmente, um trusmo afirmar que este filme em particular,
enquanto produto cultural complexo, admite leituras diferentes e
divergentes. No entanto, a interpretao unilateral, monocromtica,
est em flagrante contraste com uma obra que, como afirmou um
crtico, oferece a mais abrangente viso de uma futura distopia
jamais realizada em filme.3 Ao contrrio de tais interpretaes,
pretende-se mostrar neste artigo que a fora de Blade Runner reside
em sua habilidade de capturar os momentos centrais, as tendncias e
foras operantes na sociedade capitalista e projet-los num futuro no
muito remoto. Certamente, este carter do filme no escapou a muitos
crticos. Fato que no os impediu, porm, de analisar a temtica
central do filme em termos abstratos em lugar de apreci-la desde um
ponto de vista histrico-concreto, tal como vem apresentada no
prprio filme. Em particular, as contradies presentes no
desenvolvimento da cincia e de suas aplicaes tecnolgicas em relao s
necessidades humanas so abstratamente discutidas, no sentido de que
a apreciao crtica est sempre referida cincia em geral. No filme, ao
contrrio, tais problemas so focalizados tendo presente as condies
histrico-concretas em que opera a cincia enquanto fator crucial do
processo de acumulao do capital. Em outras palavras, o filme
oferece, entre outras coisas, a imagem dos possveis efeitos do
desenvolvimento de uma forma particular de cincia e de sua aplicao
tecnolgica cincia e tecnologia a servio do capital. Salientando o
fato de que Blade Runner constitui uma viso prospectiva da
sociabilidade do capital, e no da sociedade humana em geral, o
artigo sugere que o filme exibe em grandes linhas o que se poderia
considerar a mxima barbrie do capital, ou o resultado do movimento
autnomo do capital levado ao paroxismo.
No entanto, antes de apresentar os argumentos que amparam tal
convico parece prudente
enfatizar a atualidade do filme, que, sendo produto do incio da
dcada de 80, poderia muito bem ser objeto daquele desdenhoso olhar
que merecem os presumidos trastes que o progresso acelerado vai
deixando pelo caminho. 1. A ATUALIDADE DE BLADE RUNNER Blade Runner
foi lanado nos EUA em 1982, simultaneamente ao filme ET. Durante a
primeira semana de exibio chegou a rivalizar com este ltimo em
termos de bilheteria. A partir da, no entanto, ET transformou-se em
sucesso de pblico enquanto as receitas de Blade Runner despencaram
e o filme, com um prejuzo de $12 milhes, mostrou-se um desastre de
bilheteria (Wood: 182; Kolb1: 133). No obstante, do ponto de vista
do establishment, Blade Runner teve seus mritos reconhecidos como,
de fato, atestam as premiaes a que fez jus: indicao para o Oscar em
duas categorias Efeitos Visuais e Set Direction/Set Decoration;
indicao para a British Academy of Film and Television Arts Film
Awards em 8 categorias, tendo sido premiado nos quesitos Best
Cinematography e Best Production Design/Art Direction; ganhou a
Special Technical 3 Wright, G., apud. (Slade, 1990: 13).
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Award do British Critics Circle; e, ainda na Inglaterra, foi
premiado com a Hugo Award como Melhor Filme de Fico de 1982 (Kolb1:
143). Apesar de seu fracasso comercial Blade Runner adquiriu o
status de cult movie, filme sempre visto e evocado enquanto
marcante produto cultural de nossa poca, coisa que dificilmente
poderia ser dita de ET, que, como tantos outros produtos culturais
de tipo fast food, desapareceu da memria cultural to rpido quanto
atingiu picos de pblico.4 Ser cult movie j de certa forma um
indicativo da atualidade de Blade Runner, se por isso se entende no
apenas suas contnuas reapresentaes em salas especiais ou seu
sucesso no mercado de vdeo-laser5 mas, sobretudo, a recorrncia com
que citado sempre que algum desenvolvimento cientfico de impacto
recoloca em pauta a discusso sobre o proveito humano do progresso
da cincia, faz ressurgir a questo de se a cincia funciona em
benefcio da humanidade e se est sob seu efetivo controle. Sempre
que tais interrogaes se impem, Blade Runner relembrado como
ilustrao exemplar de que a tecnologia pode no redimir o humano
dvida que parece cada vez mais sedimentada. Tratando de um futuro
hipottico no qual a engenharia gentica tornara possvel manufaturar
um ser em tudo idntico ao ser humano, um prodgio biomecnico (Slade,
1990: 13), no chega a constituir uma surpresa que Blade Runner
volte a ser evocado no momento em que a engenharia gentica anuncia
seu mais novo e espetacular rebento o clone da ovelha. Apesar da
clonagem em si mesma, segundo os especialistas, no ser to
surpreendente, pois fora realizada em outros experimentos ou tivera
sua viabilidade tcnica antes demonstrada, o fato que fez precipitar
uma torrente de matrias noticiando as reaes das ditas autoridades
cientficas, polticas e eclesisticas. Para se ter uma idia da
repercusso do evento, em apenas um dos grandes jornais de circulao
nacional o conjunto de matrias abordando o assunto chega a mais de
cem pginas do formato aqui empregado e isto em apenas trs
meses.
De acordo com essas notcias, a ovelha replicante Dolly provocou
uma febre legal em governos e parlamentos de todo o mundo, que
preparam comisses e projetos de lei para evitar que sejam criadas
rplicas de seres humanos. De Bill Clinton a Carlos Menem, clones
medidicos mais ou menos grotescos,6 incluindo dirigentes de vrios
pases e o Vaticano, o objetivo assegurar que o experimento com
ovelhas no seja realizado com humanos (FSP, 01.03.97). Preocupao
mais do que pertinente, uma vez que os prprios idealizadores do
experimento afirmam que no h
4 De acordo com Wood, o establishment norte-americano recebeu ET
de maneira exttica e reservou uma fria acolhida para Blade Runner.
Para o crtico o fato de ET ter obtido mais premiaes do que Blade
Runner indica o tipo de escolha feita pelo pblico e pela crtica,
escolha esta que iria mais alm da mera preferncia de um filme em
relao ao outro. Tal escolha expressa, ao seu ver, a preferncia do
tranqilizante sobre o perturbador, do reacionrio sobre o
progressista, do seguro sobre o ameaador, do infantil sobre o
adulto, da passividade sobre a atividade do espectador (Wood, 1986:
184). 5 Em 1990, pelo segundo ano consecutivo, foi considerado o
mais bem produzido disco laser e ficou em primeiro lugar dentre os
10 discos-laser mais preferidos (Kolb3: 242). 6 Ver na seqncia o
comentrio de Baudrillard sobre a clonagem.
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diferena substantiva entre clonar uma ovelha e clonar um ser
humano.7 Em suma, Dolly deixa claro que a cincia e sua aplicao
tecnolgica so capazes de reproduzir o humano, ou que a base
produtiva criada sob os auspcios do capital tem condies tcnicas de
fabricar o ser humano. Ou, para coloc-lo mais dramaticamente, que o
objeto pode literalmente criar o sujeito. Diante de tal fato, falar
da atualidade de Blade Runner quase uma tautologia. Alis, o diretor
do filme, Ridley Scott, antecipou em uma de suas entrevistas, em
1982, que provavelmente em cerca de doze ou quinze anos a
engenharia gentica estaria em condies de produzir um ser em tudo
idntico ao humano.8 O prprio fato de o noticirio referir-se Dolly
como ovelha replicante constitui uma evidente citao de Blade
Runner, que popularizou o termo, referncia qual se juntam inmeras
outras para confirmar a atualidade do filme. De todas estas citaes
ou presentificaes de Blade Runner, talvez valha a pena reproduzir
de modo mais extenso a opinio de Baudrillard, publicada no jornal
francs Liberation e divulgada no pas sob o ttulo O Clone, um Crime
Perfeito (FSP, 28.03.97). Para este autor, cujo agudo diagnstico
uma vez mais desgua na desiluso e no desespero, talvez produtos de
uma interdio voluntria, coerente porm com sua averso a
meta-narrativas, que o impede de enxergar sadas ou imaginar
propostas9 , a vaca louca e a ovelha clonada,
no por acaso, desenham o tema astral deste final de sculo. Vamos
poder clonar cada vez mais ovelhas e, assim, fabricar mais e mais
raes que vo alimentar mais e mais vacas loucas. Mas a analogia vai
mais longe: a prpria clonagem uma forma de epidemia, de contgio, de
metstase da espcie tomada pela reproduo idntica e pela proliferao
ao infinito, para alm do sexo e da morte. O acontecimento mais
importante consiste na aniquilao da reproduo sexuada e,
conseqentemente, de qualquer diferenciao e destino individual nico
do ser vivente. [Efeito paradoxal e irnico, poder-se-ia
acrescentar, em uma sociedade que cultiva o individualismo
narcsico. / MD] Usando das vias paradoxais da cincia e do
progresso, estamos simplesmente anulando a maior revoluo no reino
dos seres vivos a passagem da multiplicao indiferenciada, de
protozorios e
7 Other ethical commentators are more forthright in their
objections. In my view, the current prohibition [on human cloning]
should remain in force, says Margaret Brazier, professor of law at
Manchester University. If brain-dead clones were nurtured and used
as organ banks, she says, this would radically change the nature of
what it is to be human. New Scientist, 01.03.97. 8 O que
aconteceria se nas prximas dcadas grandes monoplios tornarem-se to
poderosos quanto o governo? O que possvel. Eles teriam penetrado em
todos os tipos de indstriaeventualmente lidariam com a gentica.
Ento voc chega a um ponto no qual a gentica comea a desenvolver o
primeiro homem man-made. Eu penso que isso poderia acontecer nos
prximos 12 ou 15 anos (Kerman, 1991: 20). 9 Antonio Negri
sintetiza, como se segue, a crtica de outros autores tendncia a um
s tempo ctica e cnica de muitas posies ps-modernas, dentre as quais
a de Baudrillard: [] No territrio poltico, as filosofias
ps-modernas aceitam a crtica spinozista do absolutismo
transcendental da autoridade, mas negam que a constituio do comum
seja conferida prxis da multido. A ironia sobre as massas, o
desprezo da multido instauram-se na filosofia ps-moderna como uma
espcie de libertinagem ctica e cnica, que escarnece a democracia.
[] Certamente no podemos dizer que essas filosofias do ps-moderno
(de Lyotard a Baudrillard, de Rorty a Vattimo, de Virilio a Latour,
para citar os mais conhecidos) deixem de perceber qualidades
essenciais da fenomenologia de nosso tempo. Mas todas, sem exceo,
nos apresentam, com a sacrossanta narrao do fim do
transcendentalismo moderno, um espetculo insensato do que resta aps
a sua morte. uma espcie de apologia da resignao, um desempenho que
se acomoda, por vezes comiserativo, por vezes divertido, beira do
cinismo. Uma ontologia cnica? Talvez (FSP, Mais, 28.02.99).
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bactrias, da imortalidade dos seres monocelulares, reproduo
sexuada e a morte imprevisvel de todo ser individual, em benefcio
da monotonia biolgica do reino anterior Enquanto o ser vivente
passou centenas de milhes de anos esforando-se para arrancar o
Mesmo do Mesmo, para se distanciar dessa espcie de incesto e
entropia primitiva, ns estamos trabalhando em prol da desinformao
da espcie, por meio da anulao das diferenas e da fabricao da
entropia informada. o fim da picada! nessa reviso crucial de toda a
evoluo dos seres vivos que estamos engajados ao praticarmos a
clonagem, que representa ao mesmo tempo o triunfo cientfico de uma
espcie e sua morte, pela repetio de sua prpria frmula.
Baudrillard sublinha que tal multiplicao do Mesmo, entretanto, s
pode ser considerada positiva em nosso sistema de acumulao, sistema
de acumulao este que, sem a licena do autor, aqui entenderemos como
sistema capitalista. Mas esta acumulao ou multiplicao do Mesmo
representa a supresso da individualidade e, para usar um termo de
Marx, o retorno da espcie muda, s que agora, ao contrrio do que
ocorre com as espcies do mundo orgnico, um mutismo artificialmente
produzido por nosso sistema de acumulao. o que se deduz quando
Baudrillard afirma que se clonarmos ao infinito o valor de cada um
[indivduo / MD] ser igual a zero. E para quem acredita que este
futuro est distante, s se materializaria com ulteriores
desenvolvimentos da engenharia gentica, Baudrillard lembra que j
somos a manifestao de uma sutil clonagem, a clonagem mental,
[] j visvel no registro social, onde se encontra aquilo que o
sistema produz e reproduz; so seres conformados, substituveis entre
eles, seres que j so mentalmente clonados. No fundo essa histria
toda de clonagem no nova; j temos a experincia viva dela em todos
os campos, intelectuais, culturais, operacionais, sem contar com os
do trabalho e da tcnica, onde o sistema h muito tempo nos obriga a
sermos clones de ns mesmos ou clones uns dos outros. A clonagem,
desenho automtico de indivduos prontos para consumo e sua
identificao numa frmula mnima (seu cdigo mental e comportamental),
j realizada em grande escala. Os clones j esto aqui, os seres
virtuais j esto aqui somos todos replicantes! No sentido em que,
como em Blade Runner, j praticamente impossvel distinguir o
comportamento propriamente humano de sua projeo sobre a tela, de
sua duplicao na imagem e de suas prteses informticas.
Mas se o nosso sistema de acumulao torna-se capaz de clonar o
humano, de incio mentalmente e, por fim, fisicamente, se, portanto,
o humano parece desenvolver-se a ponto de transformar-se em muda
espcie artificial, nada garante que neste processo de
desenvolvimento o nosso sistema garanta, por motivos tcnicos ou
sentimentais, sequer a manuteno do humano clonado, por
insatisfatria e hedionda que seja esta ltima alternativa. A
atualidade de Blade Runner consiste justamente em explorar, como
tentaremos mostrar neste trabalho, esta caracterstica de nosso
sistema de acumulao, a saber, a sua capacidade de levar a cabo uma
desantropomorfizao total. possibilidade de tal desenvolvimento que
transparece nas trgicas palavras finais do diagnstico de
Baudrillard:
[] por isso que os comits de tica no vo conseguir mudar nada.
Com todas as suas boas intenes, eles no passam de expresso de nossa
conscincia pesada diante do desenvolvimento irresistvel e
fundamentalmente imoral de nossas cincias, que nos trouxeram at
aqui, e com o qual consentimos secretamente, ao mesmo tempo em que
nos permitimos o gozo moral do arrependimento.
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Em ltima anlise, o que se torna o ser humano que relegado por
seu prprio clone e, assim, tambm passa a ser intil? Uma reserva?
Uma relquia? Um fssil? Um fetiche? Um objeto de arte? O conflito
entre o original e sua cpia no est perto de terminar, nem aquele
entre o real e o virtual. Se esta, afinal, uma tendncia possvel de
nosso sistema de acumulao, coadjuvado pelo
desenvolvimento irresistvel e fundamentalmente imoral de nossas
cincias, h uma razo adicional para nos convencermos da atualidade
de Blade Runner. A afirmao recente, ou a presumida confirmao
emprica, do carter perene do capital sob a forma de incontida e
exttica apoteose do mercado , nada mais significa do que afirmar
que nosso sistema de acumulao adquiriu sua forma definitiva e que
com ele temos que nos haver da melhor forma possvel. Diante de sua
inelutabilidade, fcil deduzir, as atitudes moral e cognitiva mais
adequadas so as que se conformam a este presumido dado da
realidade. razovel, neste registro, pretender reduzir as injustias
e iniqidades resultantes da operao irresistvel das leis do mercado,
mas esto interditadas por definio quaisquer veleidades
crtico-emancipatrias, prticas e tericas. Em sntese, a naturalizao
do mercado tem por condio o imprio da realpolitik nos planos
cognitivo, moral e esttico. E, se considerarmos a realpolitik como
supresso da liberdade do sujeito humano, ou sua total conformidade
aos imperativos da prtica imediata ou ainda, parodiando
Baudrillard, a sua clonagem destinada a dot-lo dos cdigos mentais e
comportamentais adequados, Blade Runner reafirma sua atualidade ao
retratar um mundo no qual os sujeitos no tm mais papel enquanto
sujeitos, um mundo no qual so meros figurantes do capital. Isso
enquanto for til ao capital clonar ou manufaturar os seres humanos!
Em uma palavra, se o mercado mesmo o fim do mundo, Blade Runner
delineia este fim de mundo enquanto progressiva eliminao do humano,
fim da humanidade. Progressiva eliminao, alis, de que a tecnologia
informtica e a robtica so prenncio, ao tornarem os seres humanos
crescentemente dispensveis para a produo do capital. Pois que papel
podem ter os sujeitos humanos na perene economia do capital se o
seu trabalho no tem mais utilidade, se redundante, suprfluo? Esta
sinistra interrogao para a qual os discursos tericos, oficiais e
dos meios de comunicao ainda no encontraram seus usuais lenientes
tem em Blade Runner a resposta consistente: nenhum.
A perenidade do mercado apresenta-se hoje na figura da
globalizao, colonizao total do planeta pelas categorias mercantis,
sua intervenincia em todos os assuntos, esferas e cantos do
terrestre. Neste particular, Blade Runner muito mais realista e,
por isso, antecipa genialmente o prximo estgio da colonizao do
mercado o universo. Se, como mostrou Marx, as relaes mercantis
tendem universalizao tendncia hoje reapresentada como tremenda
novidade sob o rtulo de globalizao , Blade Runner apresenta esta
tendncia literalmente realizada. Nele o capital ocupa-se j da
colonizao de outros planetas e galxias colonizao do universo. Se
hoje se celebra a globalizao do mercado, Blade Runner anuncia a sua
cosmologizao. 2. BLADE RUNNER E A LGICA DA EXTRAPOLAO NA FICO
CIENTFICA
Sob tal perspectiva, Blade Runner tanto uma reflexo sobre a
sociedade contempornea
como uma reflexo sobre as reflexes da sociedade sobre si mesma.
uma obra sobre o nosso
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mundo enquanto totalidade, sobre a dinmica de tal totalidade,
sobre a configurao do mundo que tal dinmica desenha e sobre os
estreitos limites dentro dos quais se move nosso pensamento sobre
tal destino. O filme projeta nossa sociedade no futuro; as resenhas
crticas especulam sobre as razes da expressividade do filme ou,
noutros termos, sobre as razes pelas quais somos afetados pelo
filme e, por extenso, pela viso do futuro deprimente e opressor que
constri, ou que vimos construindo e, por isso, nos assusta.
Talvez a maior evidncia a revelar o que pretendiam os
realizadores do filme tenha sido a reao de Philip K. Dick, autor do
livro que inspirou o roteiro de Blade Runner, ao visitar os estdios
onde se realizavam as filmagens. parte da crnica da produo do filme
a existncia de srios desentendimentos e divergncias entre o autor
da novela e os produtores do filme. A suposta declarao de Scott,
por exemplo, de que no lera nem leria a novela causou naturalmente
profundo mal-estar no autor da novela. Da mesma forma, em vrias
oportunidades o escritor mostrara-se insatisfeito com os roteiros
iniciais aos quais tivera acesso. Apesar desses antecedentes,
Philip K. Dick ficou literalmente assombrado ao presenciar algumas
tomadas do filme, em especial por perceber o sentido que os
produtores haviam extrado de sua novela. Ao final da tomada em que
Harrison Ford, o blade runner, tenta localizar a replicante que
fugia em meio ao turbilho de figurantes que circulavam
aparentemente sem rumo, um reprter perguntou ao ator como se sentia
fazendo outra fantasia no espao. Em sua resposta, Ford afirma que
isto futurismo aqueles outros filmes (Star Wars, por exemplo), no
assim que vai ser. Dick confessa, emocionado, que ao ouvir aquelas
palavras compreendeu que Ford estava certo.
De repente compreendi E eu pensei, por Deus, esses caras
conseguiram imaginar como vai ser a vida daqui a quarenta anos! Meu
Deus, estou completamente convencido. Esta uma nova forma de arte.
tudo o que voc odeia da vida urbana atual magnificado at o nvel do
Inferno de Dante. Era medonho. Ele (H. Ford) no podia sequer
encontrar algum espao na calada. Voc no pode sequer correr no
futuro, h tantas pessoas perambulando sua volta, sem fazer nada E h
milhes de sinais, informao para todo lado: faa isto, compre aquilo.
Era to real que tive o sentimento de que eles tinham criado uma
nova forma de arte. Literalmente criaram uma nova forma de arte Era
to revigorante. Lendo meu livro, eles devem ter captado que sob a
aventura os policiais, os ladres, etc. havia um certo elemento de
realismo no livro No se trata de um tira matando um bando de
replicantes. Isto no como tudo o que temos visto, e no dirigido a
crianas de 12 anos. Estas pessoas literalmente equiparam-se para
imaginar como seria Los Angeles daqui a quarenta anos. Eles
poderiam estar errados Mas, como aquela coisa dita por Herlein, if
this goes on. [Em outras palavras], se [permanecem] as tendncias
que temos agora uma projeo Vai ser exatamente igual quilo (Rickman:
106).
Mas se para Philip K. Dick fora uma surpresa perceber que sua
novela pudera inspirar uma projeo de nossa sociedade, as declaraes
do diretor Ridley Scott no deixam margem a dvidas de que o filme
foi estruturado em torno desta idia. Como assinala Kerman, a cidade
de Blade Runner foi concebida explicitamente como uma sria
extrapolao de nosso presente. E acrescenta que embora alguns
crticos tenham refutado a idia de que o filme continha uma crtica
de esquerda sociedade contempornea, na verdade nele est
inescapavelmente presente uma crtica poltica sociedade atual e suas
tendncias. Em outras palavras, apesar de operarem no contexto da
indstria cinematogrfica Scott e seus colaboradores observaram e
extrapolaram as
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contradies de nosso tempo (Kerman: 16). Estendendo-se sobre a
razo do extremo detalhamento da arquitetura e da paisagem urbana da
Los Angeles (LA) retratada no filme, e sobre seu carter hbrido,
Scott afirma que
isto o que vai acontecer. Creio que a influncia em LA vai ser
muito latina, com enorme influncia cruzada oriental. Acho que vrios
grupos esto se desenvolvendo hoje, faces que so religiosas,
sociais, etc., punk, algumas rsticas e toscas que desenvolvem sua
pequena cultura de protesto. Elas vo enrijecer, de modo que haver
faces polticas, religiosas, sociais, ou meramente excntricas,
malucas. A polcia ser transformada num tipo de fora paramilitar, o
que j est perto de acontecer (op. cit.: 17).10
Kerman sublinha, neste particular, que o filme no contm apenas
uma pitoresca projeo de alguns traos ou tendncias do presente, mas
uma extrapolao que procura capturar tais caractersticas e tendncias
com um mximo de acuidade e com o objetivo de vislumbrar o mundo
resultante de sua conjugao. Ilustram este esforo as explicaes de
Scott para o visual exoesqueletal das edificaes que aparecem no
filme, i.e., para justaposio de novas tecnologias sobre antigas
estruturas:
o propsito primariamente lgico. Estamos em uma cidade que est
num estado de excesso, de energia crescente e emaranhada, na qual
voc no pode mais remover um prdio porque isso custa muito mais do
que construir um em seu lugar. Assim o processo econmico como um
todo reduzido (Kerman: 17).
Kolb salienta tambm o cuidado da direo do filme com o
desenvolvimento de conceitos para o ambiente, sociedade,
arquitetura, transporte e tecnologia de modo a fornecer uma lgica
auto-consistente para o visual do filme, e apia-se numa citao de
Scott para mostrar que houve de fato um esforo deliberado neste
sentido:
gostei especialmente do fato de que o futuro de Meed
(cenografia) parecia bem fundamentado na lgica, e era isto que
queria para Blade Runner, queria que fosse futurista sem ser
simplrio (Kolb1: n. 15).
Ao contrrio, portanto, de outros filmes de fico cientfica, toda
a tecnologia aplicada no filme para criar sua atmosfera futurstica
tem um fundamento lgico, o resultado de uma cuidadosa elaborao
(ibid.: 143).
Para Kerman, nesta viso de Scott, que comanda a elaborao do
filme e reforada por sua enorme convico de que se trata de uma
imagem verossmil, onde deve-se buscar a explicao para o fato de o
filme ser to convincente (op. cit.). Kerman adverte, entretanto,
que as entrevistas concedidas pelo diretor e roteiristas de Blade
Runner permitem concluir que, pelo menos conscientemente, no havia
o propsito de fazer um filme marxista. Observao decerto
interessante, pois a expresso das muitas instncias em que opera a
interdio a Marx. Mas seria de se perguntar se de fato possvel fazer
uma extrapolao sria das tendncias da sociedade atual sem recorrer a
Marx. Se a resposta negativa, qual ser ento o efeito de tal
interdio? Se,
10 No deixa de ser interessante o contraste entre esta viso
pessimista de Scott da formao de subculturas autnomas, hostis e
incomunicveis enquanto tendncia da sociedade atual, com a viso
otimista do pragmtico norte-americano Richard Rorty, para quem a
privatizao das diferentes culturas a virtude mxima das sociedades
liberais-democrticas, como as denomina. Segundo ele, a privatizao e
autonomia das diversas culturas que permite o seu contato livre e
sem preconceitos, do qual resulta sua recproca inseminao (Duayer:
cap. 2).
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de fato, conforme afirma Kerman, os produtores pretenderam
explicitamente fazer uma extrapolao a partir de uma clara viso de
nossa sociedade, interditar Marx no equivale a desarmar a crtica e,
desse modo, deixar que tais tendncias operem sem resistncia (op.
cit.: 18)? O efeito imediato de tal interdio, ao que parece, o de
voltar-se contra a prpria crtica, que captura criticamente a
natureza contraditria do objeto analisado mas, simultaneamente,
forada a atenuar o resultado do prprio trabalho crtico. Da porque
Kerman, ao lado de reconhecer que Scott tem razes estticas para
construir seu tangvel futuro por meio de uma extrapolao brutalmente
honesta o propsito artstico era o de provocar um desconforto no
pblico, acrescenta que no importa se Scott pretendeu fazer um filme
radical [sic?] ou no. Comentrio que suscita a seguinte indagao:
qual seria o sentido de provocar um desconforto no pblico se os
sentimentos crticos radicais esto antecipadamente proscritos?
Se uma obra de arte focaliza um aspecto repulsivo da realidade,
deve prevenir eventuais
reaes de radical rejeio por meio de algum artefato artstico? Se,
como agudamente sublinha Kerman, Blade Runner levanta penetrantes
questes polticas sobre nosso mundo, sua economia poltica, suas
tecnologias e seu futuro, e isso por sua lgica da extrapolao,
[pelo] poder de seus arqutipos e [pela] visceral exatido do mundo
que delineia (op. cit.: 23), por que atenuar a radicalidade do
filme? Se pela lgica da extrapolao o futuro de nosso mundo
mostra-se impalatvel, a repulsa que este futuro provoca no deve
justamente suscitar reaes radicais de rejeio? Se o mundo promete
ser intolervel, a radical recusa no um dos momentos indispensveis
para abortar, se tal um projeto factvel, este vir-a-ser do mundo?
Questes todas que ficam sem resposta quando a crtica,
conscientemente ou no, interdita o pensamento de Marx por sua
radicalidade. Posteriormente tentaremos defender a idia de que no
possvel entender Blade Runner sem algumas categorias centrais do
pensamento de Marx, de modo que aqui fazemos apenas um parntese
para sublinhar o prejuzo causado por esta renncia voluntria, sem
dvida alimentada por um preconceito profunda e compreensivelmente
arraigado. Retomando o problema em considerao nesta seo, ou seja, o
certo realismo de Blade Runner, possvel verificar, pelo exame da
opinio de outros crticos, que a impresso de Philip K. Dick
praticamente unnime: esses caras conseguiram imaginar como vai ser
a vida daqui a quarenta anos! Robert Silverberg, por exemplo,
sugere que Blade Runner conseguiu realizar aquilo que considera a
maior virtude do filme de fico cientfica, a saber, mostrar a cara
do futuro, e o fez com tamanha convico, com tal riqueza de
detalhes, com tal intensidade de textura, que as vises do amanh s
quais nos expe dificilmente abandonam nossa imaginao. Sendo ele
prprio um escritor de fico cientfica, tem um significado especial
sua anlise de Blade Runner, em particular quanto ao aspecto que nos
interessa aqui enfatizar, sua habilidade em criar uma imagem
verossmil do amanh. Assim descreve ele este aspecto do filme:
tenho visto argumentos de que se trata de uma maior realizao
para um novelista criar uma a textura do mundo com rpidos toques
descritivos do que o para um diretor cinematogrfico perdido em meio
a um batalho de carpinteiros e eletricistas, mas apesar de meu vis
de novelista no estou to seguro disso; os efeitos que Scott cria
construindo cenrios e deixando-nos ter deles to somente meros
relances so pelo menos to elegantes e atraentes como qualquer
exemplo da arte descritiva do escritor de fico cientfica. A LA de
Blade Runner uma inveno impar a prpria
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cidade permanece enquanto a realizao imaginativa essencial, e
cumpre a coisa essencial da fico cientfica: exibir e iluminar uma
paisagem de outro modo inacessvel para os olhos. [Por criar] uma
paisagem mental vvida, tocante e completa, uma paisagem que, por um
momento sem flego, um momento de suspenso da incredulidade, parece
ser a coisa real, o futuro autntico, o qual no temos outro modo de
experimentar seno por intermdio de lentes, luzes e tela (apud
Landon: 99).
Em sntese, so todas essas qualidades de Blade Runner que
respondem pelo impacto visual
do filme e por seu continuado fascnio. So tais atributos e
cuidados que produzem sua intensa qualidade visual, no apenas bela
mas verdadeira, e fazem a cidade (LA) parecer mais real do que o
mundo real (Warner: 178). A riqueza da construo prospectiva da
sociedade atual elaborada em Blade Runner dissolve, de acordo com
Kolb, a primeira impresso de que se est diante de uma estria
simplista tornada confusa pela combinao de gneros de filmes. Pois a
trama desenvolve-se no interior de uma viso enormemente rica,
intoxicante, do futuro prximo, de modo que a representao opressiva
de uma possvel cidade do futuro revelada em fragmentos isolados e
detalhes exagerados [faz-nos sentir] como se tivssemos viajado no
tempo at o ano 2019 (Kolb1: 133).11 Todos os comentrios crticos,
como se v, consideram a maior virtude de Blade Runner o realismo
com que projeta nosso futuro. Ao que parece, portanto, a maioria
dos crticos ignora que aquela categoria est proscrita faz algum
tempo do domnio do esttico, e no apenas deste.12 E h que se
concordar que, independentemente de se acatar ou no tal banimento,
soa estranho julgar realista uma representao do futuro, do que
ainda no existe. De qualquer forma, esta a opinio quase unnime dos
crticos: Blade Runner desenha o nosso futuro. Na prxima seo,
procuraremos mostrar que tal realismo, tributrio da aplicao da
lgica da extrapolao na fico cientfica, como o denominam os crticos,
deve-se em grande medida ao fato de o filme extrapolar legalidades
fundamentais da economia regida pelo capital.
Antes disso, porm, preciso enfatizar que em Blade Runner,
diferentemente do que ocorre na maioria dos filmes de fico
cientfica, a cincia e a tecnologia, to centrais na figurao do
futuro da sociedade atual, no aparecem como panacias para resolver
os problemas da humanidade. Como observa Bruno, o futuro no realiza
uma ordem tecnolgica idealizada, assptica (Bruno: 63). Em outras
palavras, em Blade Runner no ocorre a inflexo que Carter observa,
de um modo geral, na cultura popular: a mudana radical de uma
atitude de suspeita em relao tecnologia,
11 Muitos outros autores reconhecem a qualidade de Blade Runner
enquanto representao verossmil do futuro. Uma evocao brutalmente
efetiva deste desconsolado mundo do futuro prximo, Ridley Scotts
Blade Runner -como todos os filmes de fico de primeira linha- tem
firmes razes nos fatos atuais (Stark, S., apud Kolb3: 268). O
objetivo real da fico cientfica fornecer alimento para o
pensamento. Ele desafia o leitor e nem sempre explica-se
completamente. E isto que faz Blade Runner (Martin, M., apud Kolb3:
260). Certamente, nem todos ficam satisfeitos com o filme, como o
demonstra o seguinte comentrio. Uma confuso, pelo menos no que diz
respeito narrativa. Praticamente nada explicado coerentemente, e a
trama tem grandes lapsos (Maslin, J., apud Kolb3: 261). Em nossa
opinio, entretanto, o nus de tal formalismo crtico recai sobre quem
o formulou, e no sobre o filme. 12 Para tendncias anti-realistas na
filosofia da cincia ver, por exemplo, Norris, 1997.
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como em Modern Times (Chaplin), para uma celebrao da metafsica
das quinquilharias high-tech (Carter: 95). Muito pelo contrrio,
em contraste marcante com filmes tradicionais de fico cientfica,
Blade Runner abandona a imagem de um futuro brilhante resultante da
nova tecnologia [os] avanos cientficos retratados simplesmente
coexistem com a tecnologia em operao, ou so a ela superpostos, a
ponto de que a inteira infra-estrutura encontra-se beira de um
colapso (Kolb1: 144).
Cincia e tcnica, claramente regidas pelo capital, como se mostra
no filme, em lugar de libertarem o humano, podem escraviz-lo e, no
limite, extingui-lo. 3. O MUNDO FUTURO DO CAPITAL
J vimos que Blade Runner cria uma imagem do futuro ricamente
articulada. Imagem, nas palavras de um crtico, no s visualmente
bela mas verdadeira. Ou, na assombrada expresso de Philip K. Dick:
o mundo vai ser aquilo. Mas no possvel compreender como a lgica da
extrapolao, denominao de vrios comentaristas para este artefato da
fico cientfica, pode alcanar resultado to formidvel, pode oferecer
uma viso do futuro facilmente identificada enquanto desdobramento
verossmil do presente, sem capturar tendncias e foras realmente
fundamentais e determinantes do mundo contemporneo. De fato, foi
visto antes que inmeros crticos referem-se lgica da extrapolao
enquanto projeo de tendncias. No entanto, mesmo nas anlises mais
penetrantes as tendncias jamais so explicitadas. Somos informados
que h tendncias ou, se se quiser, que h legalidades regendo o nosso
mundo; que o diretor Ridley Scott soube perceber e projetar com
rara habilidade tais tendncias; que o impacto do filme deve-se ao
fato de retratar tais tendncias; mas nunca nos dito que tendncias
so essas. Pesa sobre as tendncias um misterioso silncio. O mesmo
silncio que parece ter levado Baudrillard, como vimos, a enrustir
as referidas tendncias sob a indefinida designao de nosso sistema
de acumulao.
Blade Runner, porm, no se estrutura extrapolando sobre tendncias
genricas,
indeterminadas. Alis, nem poderia, pois se assim tivesse
procedido delinearia a viso de um futuro genrico, uma imagem na
qual todas as formas de sociedades, presente e passadas, ver-se-iam
espelhadas. E no isso absolutamente o que a crtica enxerga no
filme, pois assegura unanimemente que Blade Runner consiste de uma
viso prospectiva da sociedade atual. Um primeiro e fundamental
indcio de que o filme estrutura-se a partir da percepo de que a
sociedade atual apresenta uma dinmica determinada, de que h certas
tendncias particulares que regem o funcionamento de nossa sociedade
e que a distinguem de formas anteriores de sociabilidade, foi a
mudana estratgica promovida no filme, em relao novela, na explicao
oferecida para as condies de degenerao e decadncia do mundo. Na
novela de Philip K. Dick tais circunstncias resultam de uma guerra
nuclear. Como a guerra em si mesma, nuclear ou qualquer outra, no
traz consigo qualquer explicao para seu advento, sendo mais
propriamente uma ocorrncia que requer explicao, o artifcio de
utiliz-la enquanto causa principal do estado deplorvel da ordem
social descrita na novela no poderia seno obscurecer as causas
reais. O filme, ao contrrio, ao omitir a referncia da novela a uma
guerra nuclear, deixa subentendido que h de se buscar na prpria
estrutura e dinmica do mundo as causas do estado funesto da vida
social representada. Tal
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supresso, sugere Wood, expressa o fato de que as preocupaes do
filme so predominantemente sociais, enquanto a novela de Philip K.
Dick girava em torno de questes metafsicas. De acordo com este
autor, Blade Runner apresenta uma viso do capitalismo, projetada no
futuro, mas com a inteno de ser claramente reconhecvel (Wood: 183).
Neste sentido, foi essencial suprimir a referncia a uma guerra
nuclear, pois somente desta forma seria possvel enfatizar que o
carter perverso da ordem social projetada resultava da dinmica do
prprio capital. Assim, a sociedade mostrada em Blade Runner a
nossa prpria magnificada, seus atuais excessos so levados aos
extremos lgicos: poder e dinheiro controlados por uns poucos, em
monoplios cada vez maiores; pobreza, fome e degradao cada vez
piores; opresso racial; planeta poludo Em oposio viso de Marx sobre
o inevitvel colapso do capitalismo, o filme oferece uma glida viso
da continuidade do capitalismo, atravs da manuteno do poder e da
opresso, em meio a uma civilizao essencialmente desintegrada
(ibid.).
Este no o local apropriado para mostrar que Marx, de modo algum,
nutre a ingnua viso do colapso inevitvel do capitalismo que lhe
atribuda por Wood. Neste ponto suficiente assinalar que no escapou
a alguns crticos como Wood que Blade Runner, deliberadamente ou no,
expe, magnificando, tendncias da ordem social capitalista
teorizadas por Marx. Em outras palavras, no s o filme toma por
objeto uma forma de sociabilidade particular, aquela posta pelo
capital, como, ao faz-lo, no pode deixar de aludir ao autor que
exps de maneira mais sistemtica e articulada a dinmica desta
forma.13 Seja negando a citao intencional de Marx por parte do
diretor do filme, seja ressaltando a compreenso intuitiva e,
portanto, no terica, deste ltimo ao apreender a dinmica da
sociedade capitalista, os crticos no logram contornar a necessria
meno anlise marxiana do capitalismo. Este o caso de Slade que,
sustentando a interpretao de Wood, acrescenta que a crtica s
estruturas capitalistas [no filme] parecem derivar-se menos das
noes convencionais de explorao (i.e., socialistas e marxistas), do
que da compreenso intuitiva [de Scott] do papel crtico exercido
pelo capitalismo na evoluo dos sistemas de controle e de comando
(Slade: 15). Quando no prprio interior do marxismo a crtica de Marx
s estruturas capitalistas reduzida muitas vezes a noes
convencionais de explorao, no chega a surpreender que o crtico
atribua a uma compreenso intuitiva do diretor aquilo que o ponto
central do pensamento de Marx o capitalismo enquanto sistema de
produo social cujo controle e comando esto perdidos para os
sujeitos. Se, ao contrrio, compreende-se que no pensamento de Marx
a explorao uma categoria subordinada ao estranhamento e que este se
refere justamente, como aponta, entre outros, Mszros (1996), ao
fato de que controle do metabolismo social est perdido para os
sujeitos, ento a intuio de Scott, como quer Slade, captura
precisamente aquilo que seria uma compreenso no simplista
economicista ou vulgar do pensamento de Marx, ou das caractersticas
ou categorias fundamentais da economia regida pelo capital, das
relaes sociais governadas pelo mercado, tal como Marx as exps. Se,
portanto, Blade Runner consiste, como quer G. Wright, da mais
abrangente viso de uma futura distopia (apud, Slade: 13), preciso
acrescentar imediatamente que se trata, como apontam vrios crticos,
de uma viso futurista da sociedade capitalista e no da sociedade
humana
13 Sem, entretanto, sempre bom aduzir, perder de vista que se
trata de uma forma.
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em geral. O filme explora o flagrante contraste entre um mundo
tecnologicamente avanadssimo e a degradao das condies de vida no
planeta as maravilhas produzidas pelo ser humano e a misria
material e espiritual da vida humana. A tecnologia avanada
patenteia-se nas torres altssimas a sede da Tyrrel Corporation uma
torre piramidal de 700 andares , nos equipamentos de comunicao e de
transporte, a exemplo do carro-nave da polcia e outros que cruzam
os cus incessantemente, mas, sobretudo, na colonizao de outros
planetas e galxias, como anuncia o gigantesco outdoor que sobrevoa
a cidade, e na fabricao de replicantes, duplos aperfeioados do
humano. Mas nada disso resultado de um desenvolvimento espontneo da
cincia e da tecnologia enquanto tais.14 Ao contrrio, h inmeras
indicaes no filme de que este extraordinrio desenvolvimento
tecno-cientfico impulsionado pelo movimento de auto-expanso do
capital. No filme, a equao entre acumulao de capital, colonizao
espacial, produo de vida artificial e deteriorao da vida humana
parece sugerir que o capital adquiriu tal autonomia em relao s
necessidades humanas que a devastao irreversvel do solo originrio
do humano e a produo de uma humanidade replicante apresentam-se
como faces de uma mesma moeda. Gradualmente dispensando o humano
natural, pode o capital prescindir igualmente do ambiente natural
propcio ao humano lgica ensandecida do capital. Em contraste com o
mundo high-tech, o antigo e ultrapassado vem representado pelas
ruas da cidade transformadas em labirntico e decadente mercado
oriental; pela deteriorao dos equipamentos urbanos; pela imundcie e
pela poluio da cidade; pela degradao das figuras humanas que por
ali transitam aparentemente para lugar nenhum; por reas
inteiramente abandonadas e destrudas, a exemplo do prdio onde vivia
sozinho Sebastian, engenheiro gentico envolvido no projeto dos
replicantes. No entanto, a relao entre o novo e o antigo, muito
antes de consistir na simples e progressiva substituio de um pelo
outro, em verdade a imediata produo do antigo, do deteriorado e do
degradado pelo efeito da introduo do tecnologicamente novo. Tais
imagens so manifestaes daquilo que se designa habitualmente de
destruio criativa ou criao destrutiva para caracterizar os efeitos
do progresso tcnico posto pela acumulao de capital (Harvey: 312).
De fato, em diversos momentos do filme o que se afirma como
resultado concreto do avano tecnolgico a runa dos espaos nos quais
a acumulao de capital tornou-se desinteressante. Tal dinmica
explica a tanto a necessidade da colonizao espacial como a
desocupao e a deteriorao do espao terrestre. A produo de
replicantes sintetiza, em Blade Runner, a relao entre acumulao de
capital, progresso tecnolgico e a tendncia do capital de colonizar
espaos cada vez mais amplos. A trama que se desenrola no primeiro
plano da narrativa o blade runner Deckard com o encargo compulsrio
de perseguir e retirar (eliminar) um grupo de replicantes evadidos
de colnias extraterrestres serve de pano de fundo sobre o qual, em
rpidos movimentos, so traados os elementos centrais necessrios
caracterizao da sociedade em 2019. Se os replicantes fugiram de
colnias extraterrestres, de se deduzir, por um lado, que a
colonizao de outros planetas constitui uma atividade econmica
corrente e, por outro, que os replicantes, humanos
artificialmente
14 No se trata, como diz Baudrillard, do desenvolvimento
irresistvel e fundamentalmente imoral de nossas cincias
(ibid.).
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produzidos, so um instrumento essencial desta atividade. A
inter-relao dessas atividades engenharia gentica e explorao e
colonizao espacial que, por sua vez, conjugam outras tantas, todas
tecnologicamente hiper sofisticadas, subentende a economia dominada
por grandes corporaes e conglomerados, estruturas organizacionais
capazes de centralizar recursos tecnolgicos e financeiros
compatveis com a escala de tais empreendimentos.15 A Tyrrel,
corporao especializada na produo de replicantes a nica
caracterizada no filme com algum detalhe, serve de ilustrao
exemplar da natureza de uma economia dominada por gigantescas
empresas, cujo poder tecnolgico e financeiro demarca, no espao
sideral, as fronteiras mveis no interior das quais concorrem entre
si. Se a Tyrrel Corporation fabrica replicantes indispensveis
colonizao extraterrestre, esta atividade pressupe, sem prejuzo de
seu poder econmico especfico, a existncia de outras mega-corporaes,
nos mais variados ramos e setores, dos quais fornecedora, todas
operando em um contexto de concorrncia e cooperao csmicas. Nestas
circunstncias, como observa um crtico, na sociedade em que operam
corporaes como a Tyrrel criar vida artificial uma indstria em
expanso, um respeitvel big business (Gray: 66). O fato do
desenvolvimento da cincia e da tecnologia possibilitar a produo de
vida artificial pe, sem dvida, inmeros interrogantes sobre o
sentido e o carter de uma produo social capaz de (re)produzir seu
produtor. No entanto, antes de tratar destas questes, necessrio
indagar o prprio sentido de toda a produo social sob o controle de
mega-corporaes capitalistas, e no apenas o de um de seus produtos
mais crticos a rplica do humano.
Tendo o universo como limite ltimo de sua operao, as
mega-corporaes encontram nessa ausncia de limite o sentido de suas
existncias enquanto entificaes do capital: o movimento infinito de
auto-expanso do capital tem como cenrio literalmente a extenso
infinita do universo. As mega-corporaes, sugere o filme, esto todas
engajadas na colonizao do universo. Nesse processo de permanente
expanso, os replicantes fabricados pela Tyrrel so utilizados na
explorao e na pacificao de todos os quadrantes do espao, usualmente
assassinando aqueles que se opem ao controle corporativo, funcionam
assim como tropa de
15 Sobre a combinao de dois tipos de narrativa em Blade Runner e
o seu efeito extremamente produtivo sobre o processo interpretativo
do espectador, parece bastante pertinente a anlise de Morrison:
o filme depende de camadas de aluses e reverses demandando tempo
da reflexo do espectador, o que desautorizado pela narrativa
estrita e deliberadamente clssica. Em conseqncia, em um filme no
qual a oposio dialtica tem precedncia sobre as conexes causais,
somente metade das cenas do filme terminam com um gancho causal
para a prxima cena. Em razo disso, na metade dos cortes, o processo
de formao de hipteses do espectador est ocupado iluminando vrias
conexes possveis enquanto novas dicas importantes esto sendo
apresentadas. Na narrativa clssica de Hollywood a velocidade de
corte reduzida quando o espectador tem muitas hipteses alternativas
e aumentada quando o nmero de hipteses possveis reduzido. Em Blade
Runner o corte rpido empregado no incio do filme, num momento em
que dzias de hipteses errticas do espectador so suspensas pelo
processo narrativo. Isso demonstra que na coliso dos modos de
narrativa clssica e potica o espectador induzido a desejar
fechamento e conexes fceis, mas frustrado pelas dificuldades
encontradas em faz-lo, frustrao que leva a narratividade e
conceituao agressivas (Morrison, 1990: 7).
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choque da colonizao espacial so soldados, assassinos,
prostitutas e capatazes (Slade: 14).16 Afinal, como afirma Kerman,
apesar da pouca informao que se tem em Blade Runner sobre as
colnias Alm-Mundo (Off-World)17, parece claro que a expanso
interplanetria do capital foi acompanhada de guerras coloniais
(Kerman: 22). Produzindo equipamentos to essenciais atividade
econmica das grandes corporaes, a Tyrrel Corporation pode ser
considerada um modelo do capitalismo ciberntico (ibid.).
A idia de que a produo de replicantes e a explorao espacial so
atividades articuladas e
complementares no processo de acumulao de capital corroborada
por Harvey, para quem os replicantes
so criados com o propsito especfico de desempenhar tarefas
altamente qualificadas e em ambientes particularmente difceis nas
fronteiras da explorao espacial [] dotados de foras, inteligncia e
poderes que ultrapassam aqueles dos seres humanos ordinrios, []
projetados como ltimo tipo de fora de trabalho flexvel, altamente
qualificada e de curto prazo [os replicantes de ltima gerao (Nexus
6) tinham uma vida til de quatro anos - MD].
Para o autor, os replicantes constituem um exemplo perfeito de
um trabalhador dotado de
todas as qualidades necessrias s condies da acumulao flexvel
(Harvey: 310). No de todo improvvel, como quer Harvey, que em 2019,
com o aprofundamento da automao, o capital tenha levado s ltimas
conseqncias sua tendncia recente de flexibilizar o processo
produtivo. No entanto, absurda a identificao feita por Harvey (e
outros crticos) dos replicantes com a fora de trabalho. E to mais
absurda porquanto o autor escreve desde uma perspectiva marxista.
Mas esta uma questo a ser tratada adiante, pois neste estgio cumpre
incorporar outros aspectos do filme que delineiam as
particularidades da ordem capitalista naquele futuro. A tendncia
concentrao e centralizao do capital jamais cancela a possibilidade
de combinao de grandes corporaes, assim constitudas, com redes mais
ou menos complexas de pequenas e mdias empresas. Por essa razo, no
h qualquer contradio quando, na LA de Blade Runner, o poder
evidentemente avassalador das corporaes oligoplicas capitalistas
convive com uma fervilhante produo em pequena escala (op. cit:
311). A articulao de escalas to dspares de produo expressa-se na
terceirizao utilizada pela Tyrrel Corporation na produo dos
replicantes, a exemplo dos olhos, produzidos no laboratrio
criognico da pequena oficina de Chew, que, segundo outro autor, est
localizada em uma espcie de favela (Kerman: 19). Por isso, pode-se
admitir, como faz Kerman, que o modelo Nexus 6 fabricado
geneticamente, mas em partes, o que
16 De acordo com Kerman, os replicantes focalizados no filme tm
as seguintes especificaes: um modelo de defesa, combate/colonizao
(Batty); um mecnico de fisso nuclear para alimentar e lidar com
lixo atmico (Leon); uma assassina poltica (Pris); uma prostituta
militar (Zhora) (p. 22). Isso, sem mencionar Rachel, prottipo mais
avanado de utilizao ainda indefinida. 17Optamos por traduzir a
expresso Off-World colonies, usada em Blade Runner, por colnias
Alm-Mundo, em lugar de colnias extraterrestres. Parece-nos que tal
opo respeita o carter metafrico da expresso inglesa, que traa um
evidente paralelo entre dois momentos da colonizao do capital: a
colonizao do Novo Mundo (New World) e, em 2019, a colonizao do
Alm-Mundo (Off-World). Nesta acepo, o capital agora oferece
humanidade um novo mundo literalmente no Alm.
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sugere mais um processo manufatureiro do que industrial (op.
cit.) decerto por se tratar de um prottipo. Do mesmo modo, a produo
de escamas da cobra artificial utilizada por uma das replicantes
fornece outra ilustrao da existncia de uma rede industrial muito
fragmentada combinando produo em grande escala e manufatura de
pequeno porte. No obstante, a produo extremamente fragmentada est
sem dvida subordinada a um controle central, como o demonstra,
entre outras coisas, o nmero de srie das referidas escamas, atravs
do qual foi possvel a Deckard, valendo-se da informao de outra
pequena produtora, localizar seu fabricante rabe. Tal numerao
subentende uma padronizao geral da produo e, mais do que isso, a
identificao imediata de qualquer produtor. Assim, sob o aparente
caos da produo de pequenos fabricantes sobressai uma organizao que
regula e subordina a todos. O fato de o filme omitir qualquer
referncia ao governo interpretada por alguns autores como evidncia
de que as corporaes teriam em grande medida substitudo o governo no
controle social. Neste sentido, para Harvey no filme manifesta-se a
existncia opressiva de uma fora organizadora oculta: no evidente
poder coercitivo das autoridades policiais que foram Deckard a
retomar seu antigo ofcio de exterminador de replicantes; no rpido
aparecimento dos poderes da lei e da ordem quando necessrio
estabelecer o controle nas ruas. Em sntese, o caos tolerado
justamente porque parece to pouco ameaador ao controle geral
(Harvey: 311). Talvez Harvey devesse ter acrescentado que o caos
tolerado precisamente porque a contrapartida da forma do controle
total. A ausncia de controle direto, manifesto, o que legitima a
forma de controle, certamente opaca e difusa, mas objetiva e
concreta, que se realiza pelo movimento irregular e relativamente
autnomo das partes. Ser preciso citar Marx sobre o controle direto
(racional) nas fbricas (ordem) e o controle externo (irracional),
indireto, sem prejuzo, no entanto, de sua efetividade, do mercado?
Caos e ordem, irracionalidade e racionalidade so, afinal, a essncia
mesma do mercado. Assim, a constatao de Harvey o caos tolerado
porque parece to pouco ameaador ao controle geral ilustra por que,
por um lado, a ideologia liberal pode caracterizar-se pela
permissiva aceitao do existente e, por outro, pode justific-la em
nome da produtiva espontaneidade resultante da suposta ausncia de
controle. Postulaes que no so contraditadas pela interveno do
controle e da represso ostensivos, pois que estes presumidamente
dirigem-se to somente contra as aes que ameaam a ordem espontnea,
annima do mercado.18 Outras indicaes do carter capitalista da
sociedade de Blade Runner so, por exemplo, o anncio de algum tipo
de aplicao financeira oferecendo a taxa juros de 36% (Kolb2: 160)
supostamente ao ano, e a imagem de Mr. Tyrrel em sua cobertura,
recostado em seu leito monumental, aplicando em aes por telefone.
Ao que tudo indica, portanto, Mr. Tyrrel o dirigente mximo da
Tyrrel Corporation e no simplesmente, como pensa Harvey (op. cit.:
309), o
18 O sistema liberal atual bastante flexvel e transparente para
adaptar-se s diversidades nacionais, mas bastante mundializado para
confin-las pouco a pouco no campo folclrico. Severo, tirnico, mas
difuso, pouco identificvel, disseminado por toda parte[] Seu domnio
anima um sistema imperioso, totalitrio, em suma, mas, por enquanto,
em torno da democracia e, portanto, temperado, limitado,
sussurrado, calafetado, sem nada de ostentatrio, de proclamado.
Estamos realmente na violncia da calma. (Forrester, 1996;
43/45).
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17
engenheiro gentico responsvel pelo projeto dos replicantes. No s
o especialista que domina os mistrios de seu ofcio engenharia
gentica, mas o dirigente capitalista que conhece todos os segredos
de seu negcio, os tcnicos e os financeiros. Por isso, est envolvido
no projeto e desenvolvimento dos replicantes, mas cuida igualmente
das finanas da corporao. De mais a mais, seguro presumir, mais
amanh do que o hoje, que o capital, na medida do possvel, procure
sempre se encarnar preferencialmente em sua forma mais perfeita e
adequada, a de capital financeiro, forma que revela de imediato sua
essncia e dispensa com os padecimentos por que passa o capital na
esfera da produo.19 Se assim, a taxa de juros anunciada e as
aplicaes financeiras de Mr. Tyrrel implicam no s uma estrutura
industrial engrenada por grandes corporaes como subentendem, do
mesmo modo, sua associao e concorrncia no plano financeiro. Mr.
Tyrrel, alis, no deixa margem a dvidas quanto natureza capitalista
de seu negcio ao revelar enfaticamente para Deckard: Commerce, more
human than human, thats our motto. Lema este, da Tyrrel
Corporation, repleto de significados. Significa que o comrcio a
humanidade? Ou que a humanidade reduz-se ao comrcio? Ou que a
mercadoria comercializada pela Tyrrel (a rplica do humano) mais
humana do que o ser humano? Ou que, sendo o comrcio o contedo de
sua atividade e, de resto, do humano, a Tyrrel faz comrcio de
mercadoria e de dinheiro indiferenciadamente? Rachel, sendo um
modelo mais avanado de replicante, pde formular com rara acuidade e
poder de sntese o contedo da atividade da Tyrrel, em particular, e
das corporaes, em geral. Replicante, fabricada pela Tyrrel, diz
para Deckard: Im not in the business; I am the business. A Tyrrel,
assim como as demais corporaes, fazem business, independente do que
produzem rplicas de seres humanos ou outra mercadoria qualquer, ou
mesmo quando no produzem. Business fazer do dinheiro mais dinheiro
para, em seguida, tornar a fazer o mesmo. Este o insofismvel
significado das palavras de Rachel, ainda que certos crticos,
incapazes de perceber o que se passa no filme, por isso mesmo
concedem-se a liberdade de criar suas prprias fices dentro da fico.
Na interpretao de um desses crticos, Rachel, ao afirmar que o
business, quer dizer a Deckard que o business deve predominar sobre
o envolvimento pessoal (Heldreth: 43). Diante de tamanha
barbaridade, h que se concordar que a obra de arte pressupe, de
fato, um repertrio mnimo do pblico ao qual est dirigida, crticos
includos.
19 No capital produtor de juros, a relao capitalista atinge a
forma mais reificada, mais fetichista. Temos nessa forma D-D,
dinheiro que gera mais dinheiro, valor que se valoriza a si mesmo
sem processo intermedirio que liga os dois extremos. No capital
mercantil, D-M-D, temos pelo menos a forma geral do movimento
capitalista, embora se mantenha apenas na esfera da circulao e o
lucro parea por isso uma mera decorrncia da venda; todavia,
configura-se em produto de uma relao social e no em produto de uma
simples coisa. [] O capital em sua marcha completa unidade de
processo de produo e de circulao, proporcionando por isso
determinada mais-valia em perodo dado. Na forma capital produtor de
juros, esse resultado aparece diretamente, sem a interveno dos
processos de produo e de circulao. O capital aparece como fonte
misteriosa, autogeradora do juro, aumentando a si mesmo. [] O
capital produtor de juros o fetiche autmato perfeito -o valor que
se valoriza a si mesmo, dinheiro que gera dinheiro, e nessa forma
desaparecem todas as marcas de origem. A relao social reduz-se a
relao de uma coisa, o dinheiro, consigo mesma. [] Torna-se assim
propriedade do dinheiro gerar valor, do mesmo modo que dar pras
propriedade de uma pereira (Marx, 1984, III/5: 450-1).
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Se, como deixa patente o slogan da Tyrrel Corporation, o contedo
de toda atividade econmica , em ltima anlise, o comrcio, ento
natural que na LA de 2019, tanto quanto hoje, a propaganda seja uma
indstria fundamental. Se, por um lado, vender a finalidade
exclusiva do produzir, por outro, h uma relao apenas contingente,
no necessria, entre produo e consumo. A venda determinando a
produo, deve a produo determinar o consumo de modo a assegurar a
venda. Nessas circunstncias, sendo o consumo, dizer, a satisfao de
necessidades, o momento subordinado da espiral vendaproduovenda,
evidente a importncia da indstria da propaganda. Indstria muito
particular, a propaganda produz esta coisa intangvel que so os
carecimentos dos consumidores, produz o consumo, alimento
indispensvel movimentao da espiral. Muito justo, portanto, que na
LA de Blade Runner haja milhes de sinais, informao para todo lado:
faa isto, compre aquilo, assustada expresso de Philip K. Dick a
indicar a saturao de anncios na LA do futuro. A profuso da
publicidade tamanha que, na opinio de um crtico, vista do alto a
cidade parece pouco mais do que um pano de fundo para comerciais
(Kolb1: 154). H por toda parte imagens familiares de corporaes como
PanAm, Coca-Cola, Budweiser, etc. (Harvey: 310); no alto de um
prdio h um anncio luminoso de Kyoryoku Wakamoto, tradicional remdio
para indigesto (Kolb2: 155). To importante quanto as propagandas
corporativas a publicidade institucional arregimentando voluntrios
para a colonizao espacial. Essa espcie de propaganda evidencia o
estreito vnculo entre corporaes e governo. A colonizao espacial,
atividade que mobiliza todas as energias das corporaes e
governo(s), parece pouco atrativa para os habitantes de LA, no
obstante as aviltantes condies de vida na Terra. Da a necessidade
da providencial interveno da propaganda, provavelmente patrocinada
por uma associao entre governo(s) e empresas. Especializada na
programao de comportamentos, gostos, etc., ou, como sugere
Baudrillard, na produo de um cdigo mental e comportamental dos
indivduos (vide seo 1 acima), a propaganda
corporativo-institucional trata de apregoar, dourando o falso como
de costume, as maravilhas e vantagens da vida Alm-Mundo. Outdoors
flutuantes com gigantescas telas sobrevoam a cidade exaltando
incessantemente as oportunidades abertas para os imigrantes nas
colnias Alm-Mundo. As telas anunciam um futuro brilhante, uma vida
com mais espao, mais limpa, com ar mais puro, etc.; coadjuvando,
alto-falantes reforam a manipulao louvando as vantagens da emigrao:
uma nova vida espera por voc nas colnias Alm-Mundo; a chance de
comear de novo em uma terra dourada de oportunidades e aventura;
novo clima e facilidades recreativas; ganhe de graa um(a)
companheiro(a) leal e cabea fresca logo na chegada; use seu novo
amigo(a) como um(a) incansvel servial de cama e mesa o(a) humanide
replicante geneticamente fabricado(a) sob encomenda especialmente
para atender s suas necessidades (Kolb2: 155). Como observa Slade,
o lixo acumula-se nas ruas de LA, mas a propaganda garante que o
capital propicia oportunidades admirveis (Slade: 14) no
Alm-Mundo.20 Em seu permanente e espasmdico movimento de expanso, o
capital sempre anuncia uma nova vida. No primeiro espasmo rumo
colonizao do mundo, prometeu o Novo Mundo. Colonizado o mundo, o
que resta em 2019 o Mundo nico, exaurido pelo capital. Desse modo,
esgotadas e, sobretudo, desmistificadas as recorrentes
promessas
20 Deckard ctico aos incessantes anncios. Pois, afirma, estes
seriam de todo dispensveis se o Alm-Mundo fosse de fato uma grande
oportunidade (Kolb1: 144).
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de uma vida terrena melhor, humanamente decente, o capital
promete agora o paraso no Alm, literalmente. Sabemos que a
sociedade de Blade Runner capitalista e que, ademais, dominada por
corporaes cuja dimenso corresponde escala csmica de suas
atividades. No entanto, preciso recordar que no filme apenas uma
corporao vem caracterizada com algum detalhe, a Tyrrel, produtora
de replicantes. Naturalmente, de todo trivial o emprego metafrico
da Tyrrel Corporation: os replicantes so a representao figurada de
uma forma da produo social em que objeto produz o sujeito e o
sujeito aperfeioado. Porm, como pudemos mostrar na seo 2 acima,
grande parte dos crticos de opinio que Blade Runner , antes de
tudo, uma extrapolao lgica da sociedade contempornea. Se assim,
ento a metfora no pode ser o artefato bsico empregado na construo
do filme, e do qual tem que partir a interpretao. Em outras
palavras, se o filme tenciona construir um futuro com base em
tendncias reais que operam na sociedade capitalista, ento a imagem
deste futuro no pode ser encarada como uma simples figurao de
natureza metafrica, a partir da mercadoria produzida pela Tyrrel.
Ilustra este ponto de vista a seguinte declarao do diretor R.
Scott:
[] o que acontece se nas prximas dcadas grandes monoplios
tornam-se to poderosos quanto o governo? Eles entrariam em todos os
tipos de indstrias eventualmente na gentica. Ento voc chega a um
ponto no qual a gentica acaba desenvolvendo o primeiro man-made
man. Acho que isso poderia ocorrer nos prximos 12 ou 15 anos. A
partir da voc pode facilmente desembocar na criao de uma gerao de
segunda classe para fazer coisas que eu e voc normalmente no
faramos, ou que psicologicamente no poderamos suportar Voc pega um
humanide e d uma mexida em seu crebro, pode manipul-lo em funo de
algumas caractersticas psicolgicas desejadas, e ele estar pronto
para viver bem feliz (Scott, apud Kerman: 20).
Como sublinhado no incio deste trabalho, Scott errou por pouco
na estimativa, pois a clonagem da ovelha deu-se 15 anos aps a
entrevista e dela para a clonagem humana aparentemente no h
obstculos tcnicos substantivos. Claro que da para a criao de uma
gerao de segunda classe existe uma enorme distncia, mas, como
pretendo indicar abaixo, at a preservao deste humano estiolado pode
vir a ser dispensvel. Vale dizer, elaborando sobre as mesmas
tendncias correntes utilizadas por Scott, possvel mostrar que a sua
viso de futuro, apesar de terrificante, ainda assim otimista.
Comrcio, lucro, business sempre importante recordar o slogan da
Tyrrel , so more human than human. Espcie de verso radicalizada, ou
melhor, franca e explcita, da idia corrente de que o mercado a
forma definitiva da sociabilidade humana, inultrapassvel. De outro
lado, o slogan apenas reafirma o que j se sabe: o capital no se
subordina s necessidades dos sujeitos humanos. Possui a sua prpria
lgica. A distino fundamental, no entanto, neste futuro do capital
delineado no filme, consiste em que esta indiferena por princpio,
terica, em relao ao humano parece estar em vias de se completar.
Este o significado mais essencial do slogan. Pois se a companhia,
provavelmente a exemplo de outras, produz meta-humanos, ento da
lgica da infinita auto-expanso do capital parece resultar uma
produo de meta-humanos em volume necessariamente crescente. O
capital em sua totalidade produz e reproduz uma humanidade
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melhorada, de acordo com seus critrios. Substitui, neste
movimento, a humanidade natural por uma humanidade de sua lavra.
Por isso, o capital more human than human: produdo humano mas
transcende esta condio, porque j realizou por completo a inverso
entre sujeito e objeto teorizada por Marx.
Se esta a lgica do objeto, parece evidente que o futuro distpico
de Blade Runner, apesar de tudo, no fundo otimista. Pois o capital,
aps ter promovido a desantropomorfizao de tudo, do processo de
trabalho, da produo social, no teria razo para conservar a
antropomorfizao do produto (ser humano) sob a forma de replicante.
Novas formas de produto, mais funcionais, desantropomorfizadas, so
a conseqncia necessria, desfecho do processo. O produto
antropomorfizado sob a forma de replicante explica-se, num primeiro
momento, pela fixao do capital com a forma, por um lado, e com a
produo para consumo, por outro. Neste ltimo caso, a existncia deste
produto da engenharia gentica, produto para consumo (sexo, trabalho
domstico, etc.) pressupe existncia de demanda, ou seja, dos seres
humanos. Eliminados estes, por redundantes para a acumulao de
capital, desaparece a demanda. E no se justifica mais a forma
humana do produto. No se deve imaginar que estas circunstncias
escaparam da direo de Blade Runner, e se trata de mero enredo do
autor do ensaio. Ao que tudo indica, o diretor R. Scott chegou a
cogitar originariamente em expor o Dr. Tyrrel como replicante
(Francavilla: 12). E uma pena que tenha deliberado o contrrio. No
obstante, o fato de ter ventilado tal alternativa mostra, sem
sombra de dvidas, as inmeras possibilidades que se desdobram da
simples, mas acurada, apreenso da lgica do objeto. Pois, no
contexto da fico, nada haveria de absurdo em representar o capital,
ou um capital singular, dirigido (representado) por um replicante.
Ou representar o capital corporativo num estgio em que dispensa
literalmente a pessoa (humana) do capitalista. Em tal estgio, a
separao entre propriedade e gesto do capital, sempre apresentada
como democratizao do capital, teria tomado rumo diverso menos
absurdo, alis. O objeto j produziria a inteligncia, encarnada sob
qualquer forma, como sugerido acima, adequada a sua auto-gesto.
Naturalmente, toda esta interpretao de Blade Runner fundamenta-se
na idia de que a lgica do capital indiferente aos interesses
humanos. E muitas vezes os contraria em absoluto. Defende-se aqui a
idia de que isto o que explica o impacto do filme. Porm, nem todos
se sentem confortveis com tal interpretao. Parecem achar
inconcebvel que a produo social possa negligenciar a tal ponto o
humano e, no limite, suprimi-lo. Geralmente tais crticas levantam
dvidas quanto plausibilidade de certos aspectos do filme. Em um
desses casos, diante da produo de replicantes, o crtico indaga se a
parte mais apta e brilhante da populao terrestre, isto , humana,
migrou para as colnias Alm-Mundo, permanecendo na Terra apenas a
escria humana, e se este fato no deixou a economia abalada (Carper:
188). Sob estas e outras questes aparentemente lgicas, sob tal
demanda de coerncia, entretanto, esconde-se uma total incompreenso
dos crticos da natureza da realidade tematizada pela fico. A questo
no se os mais aptos e brilhantes emigraram. Variedade de darwinismo
social dissimulada sob a forma de anlise crtica, que sequer se
pergunta o sentido de um sistema social que produz escria humana em
escala crescente. O tema fundamental do filme, tanto em sua
configurao geral como em
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inmeras passagens, em especial na ostensiva propaganda
enaltecendo a vida Alm-Mundo, que a economia no funciona para
proporcionar uma vida humana para os indivduos humanos, nem aqui na
Terra nem Alm-Mundo. Por isso, se os mais aptos e brilhantes
emigraram, certamente foram ludibriados. Muito menos cuida o filme
de interrogar se a economia da terra est abalada, em crise, etc. O
que mostra, com clareza gritante, que a economia retratada a nossa,
e por isso a reconhecemos de pronto funciona desta forma,
devastando e, ato contnuo, colonizando outros espaos. O decadente,
poludo, devastado, capital j amortizado. Valor que migrou para
outras regies. Valoriza-se de outra forma. esprito que migrou para
outros corpos e abandona os antigos como velhas carcaas
imprestveis. fuga de capital em escala csmica. capital fugindo do
trabalho e, no limite, do humano. Por no compreender este mnimo, o
crtico apega-se a detalhes suprfluos para acusar a fico de
implausvel. Como se a fico tivesse que ser um modelo irretocvel do
futuro. Nesta fixao por mincias, Carper menciona o prdio da Tyrrel,
de 700 andares, para cuja construo, segundo ele, seria necessria
uma revoluo social maior do que a ocorrida com a construo dos
primeiros edifcios (ibid.). Deixando de lado o fato, polmico, alis,
de se de fato houve uma revoluo social em conseqncia da construo
dos primeiros edifcios, difcil saber o que pretende o crtico com
estas questes de pormenor. Se ele no acha revoluo suficiente a
colonizao do espao, a produo de humanides para tarefas especiais e
outras nem tanto! , complica-se a tentativa de apresentar
contra-argumentos. Se possvel para uma companhia como a Tyrrel
monitorar da Terra a explorao de colnias extra-terrestres, qual a
dificuldade em administrar um edifcio, mesmo que de 700 andares? Se
a Tyrrel oferece aos emigrantes para Alm-Mundo um(a) servial de
cama e mesa, que problema poderia existir em produzir qualquer
espcie de robs, genticos ou mecnicos, para operar o prdio? Carper,
alm do mais, insurge-se contra o excesso de espao ocupado por
Tyrrel. E pergunta por que haveria ele de necessitar de tanto espao
a ponto de no liberar nem um pouco para a oficina de Chow (oficina
criognica responsvel pela manufatura dos olhos dos replicantes).
Francamente, seria de se perguntar ao crtico por que o Mike Tysson
necessita de uma casa com 6 cozinhas? (Se no me trai a memria).
Numa espcie imaginada de golpe de misericrdia, e porque nem sequer
suspeita que o filme sugere que o capital funciona ou poderia
funcionar sem capitalista, Carper indaga se a corporao (Tyrrel) de
fato existe. Dvida pondervel, segundo ele, porque os trs nicos
empregados da Tyrrel mostrados no filme (o prprio Mr. Tyrrel,
Sebastian e Chow) morrem. Se todo mundo morreu, conclui triunfante,
de se imaginar se a prpria Tyrrel no desaparece como um deus cujos
seguidores morreram (ibid.). Como se v, tarefa das mais complexas
realizar um filme para um crtico to obtuso. Ningum ignora hoje que
o capital tende a tornar o trabalho redundante. Muito alm da
retrica vazia dos planos oficiais para garantir e expandir o
emprego, a dura realidade emprica do desemprego, do subemprego, do
emprego precarizado, trata de comprovar dramaticamente uma notcia
terica das mais antigas para alguns, no obstante isso, antiquada.
Se esta uma tendncia do capital no surpreende que no futuro de
Blade Runner sua manifestao seja clamorosa. Nas
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sufocantes cenas de rua, a impresso de uma multido de indivduos
excedentes, as ruas fervilham com orientais, hispnicos e punks
(Kerman: 1). Sabemos por experincia prpria, brasileira, que o
desemprego faz da populao uma populao de ambulantes. A camelotizao
da populao e o termo impe-se, pois h que se designar no uma ou
outra ocorrncia, mas um processo , compe, com a misria e a apatia,
resultante de um sentimento de inutilidade introjetado,21 a
manifestao exterior do desemprego. E para caracterizar tal estado
de coisas, Blade Runner, outra vez valendo-se de admirvel economia
de meios, no precisa de mais do que algumas rpidas cenas. Por isso,
assim como a maioria dos espectadores, os crticos no podem fugir ao
impacto da fora expressiva do filme neste particular. Para Kerman,
o paradoxo mais impressionante a sensao de superpopulao nas ruas,
apesar dos prdios abandonados insinuarem que no h dficit
habitacional. E, embora tenha afirmado um pouco antes, como vimos,
que a direo do filme no pretendera fazer um filme marxista, concede
a Marx, ao menos, a originalidade de ter indicado a natureza
irracional do capital:
o conceito marxista de contradio refere-se exatamente a tais
desenvolvimentos sociais irracionais. Na verdade, uma opinio bsica
do marxismo que tais contradies so inevitveis no capitalismo.
Prosperidade fundada no desemprego crescente e na subutilizao da
capacidade produtiva. Em Blade Runner, a cidade repleta, porm
subpovoada, no de todo improvvel, muito embora permanea paradoxal
ao olhar humano ou estritamente lgico (Kerman: 17).
Naturalmente, poder-se-ia acrescentar que, neste caso, o que no
lgico no lgico mesmo. Muito menos humano, ao olhar humano. De todo
modo, a interpretao de Kerman tem o mrito de indicar que Blade
Runner apenas projeta a tendncia do capital a tornar suprfluo o
trabalho e, consequentemente, as pessoas.22 E citar Marx neste caso
compulsrio, mesmo quando dissimulado, de modo deliberado ou no, por
um estilo casual de citao. Mais adiante se vai ver que a perspiccia
da crtica naufraga ao transitar das matrias concretas propostas
pelo filme para uma interpretao especulativo-generalizante de cunho
moral. Ao que parece, resultado da j mencionada interdio a Marx.
Apesar da clareza e simplicidade com que abordado no filme, o
trabalho ou o seu possvel futuro sob o capital tem suscitado
interpretaes que, a nosso ver, constituem verdadeiras fices sobre a
fico. Ms fices, aduza-se. Nem mesmo David Harvey, famoso autor
marxista, parece-me escapar desta tendncia. Para ele, em seu
aspecto geral, a Los Angeles do filme exacerba os efeitos da
terceiro-mundializao corrente da cidade: sistemas de organizao do
trabalho semelhantes aos dos pases do Terceiro Mundo e prticas
disseminadas de trabalho informal (Harvey: 311). Por si s, esta
caracterizao j representaria um futuro nada promissor para o
trabalho, uma vez que o capital prometeria nada menos do que a
terceiro-mudializao dos seus
21 Sobre os efeitos do desemprego sobre a auto-estima, ver
(Forrester, 1997: 18 pp.). 22 Tantas vidas encurraladas,
manietadas, torturadas, que se desfazem, tangentes a uma sociedade
que se retrai. Entre esses despossudos e seus contemporneos,
ergue-se uma espcie de vidraa cada vez menos transparente. E como
so cada vez menos vistos so chamados de excludos. [] dessa maneira
que se prepara uma sociedade de escravos, aos quais s a escravido
conferiria um estatuto. Mas para que se entulhar de escravos, se o
trabalho deles suprfluo? Ser til viver quando no se lucrativo ao
lucro? (Forrester, 1996: 15).
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espaos mais exemplares. A isso se acrescentaria, naturalmente, a
produo de replicantes, direta e imediatamente vinculada
superfluidade do trabalho. No entanto, ao considerar os
replicantes, em lugar de conceb-los como o que so, isto ,
mercadorias, produtos do capital, Harvey identifica-os, talvez
induzido por sua forma humana, como trabalhadores. Sendo produtos,
os replicantes obviamente s podem ser ou meio de consumo ou meio de
produo. No primeiro caso, tal como explicitamente ventilado no
filme, so usados como utilidades domsticas (bens de consumo durvel
(?)) ou como objetos sexuais. No segundo, ainda de acordo com o
filme, funcionam como instrumentos de trabalho. Neste caso,
enquanto funcionam realizam trabalhos, j que possuem a forma
humana. Porm, embora se diga que os animais de carga trabalham, nem
por isso se transformam em trabalhadores nem so com estes
identificados. Pelo contrrio, a expresso besta de carga acusa
justamente a situao oposta, na qual a atividade reduz o indivduo
humano a condies subumanas, animalescas.
Harvey sabe, sem dvida, que os replicantes so produto do
capital. Afirma que so projetados como ltimo tipo de fora de
trabalho flexvel, altamente qualificada e de curto prazo, perfeito
exemplo, agrega, trabalhador dotado de todas as qualidades de
adaptao necessrias s condies da acumulao flexvel (Harvey: 310).
Apesar disso, julga que os replicantes se revoltam contra o tipo de
trabalho escravo que desempenham e contra a durao de sua vida. Mas,
enquanto produtos do capital, no podem ser considerados escravos.
Animais e mquinas no entram com o capital numa relao de escravido.
A escravido, enquanto categoria, pressupe a subjugao do igual, de
um ser humano por outro ser humano - de tal forma que sua
humanidade negada.23 Nem mquinas nem animais so seres humanos
constituindo notria exceo, por suposto, a humanidade do cachorro do
Magri, impagvel ministro do inesquecvel presidente!
Os replicantes poderiam ser considerados escravos somente
admitindo-se a hiptese de que
so seres humanos, tendo-se em conta, pelo que se depreende do
filme, que no recebem salrios. Salrio um custo, mas nem todo custo
salrio. Se no so trabalhadores assalariados, os replicantes so
escravos ou equipamentos. A sua humanidade, no entanto, est longe
de ser pacfica. Enquanto produtos, so produzidos, manufaturados,
com determinadas finalidades. Porm, qual o propsito da humanidade
manufaturar a humanidade, sobretudo quando, segundo consta e o
filme cuida de mostrar de forma cristalina, h excesso de humanos no
mundo? Portanto, parece que no a humanidade que manufatura o seu
duplo. E se no h sentido na humanidade produzir seu duplo, mas este
produzido, ento o filme subentende uma produo social cuja
finalidade est perdida para o sujeito, justamente o tema central da
anlise de Marx sobre a produo regida pelo capital. Os replicantes
no so humanos, so produto do capital, mercadoria, constituem produo
estranhada e, por isso, no tm que ter sua presumida humanidade,
como querem alguns crticos, reconhecida. Se o sentido dos mais
prosaicos produtos do capital est perdido para os sujeitos, como
podem estes mesmos sujeitos, a humanidade, reconhecer a finalidade
da produo de seu duplo?
A forma humana dos replicantes responde por outras iluses da
crtica. Iluses tambm presentes nas digresses oferecidas em resposta
a questes polticas e morais presumidamente
23 Slave a human being who is owned as property by, and is
absolutely subject to the will of, another; [and] divested of all
freedom and personal rights. Websters New World Dictionary, Third
College Edition, 1994.
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suscitadas pelo filme. A declarao do diretor do filme de que as
maiores corporaes poderiam usar a engenharia gentica para produzir
cidados de segunda-classe para trabalhos arriscados no espao,
trabalhos que os seres humanos seriam incapazes de suportar, pe de
imediato, para uma crtica, questes polticas. Afinal, indaga, os
replicantes so mquinas ou so escravos? Quais so as implicaes
polticas e morais em criar pessoas que no tm liberdade? Questes
que, de acordo com ele, concernem diretamente relao da tecnologia
com a poltica e a moralidade na idade da engenharia gentica
(Kerman: 23). A este tratamento abstrato da tecnologia segue-se,
como seria de se esperar, o tratamento abstrato dos direitos
humanos. Assim, como tm a figura humana, os replicantes lembram ao
crtico de se perguntar se eles teriam direitos humanos. Se so
escravos, por definio no os possuem. E a prpria Kerman responde: os
replicantes, seres sensveis e conscientes, foram criados como
escravos para livrar os homens de serem escravos. Mas, indaga-se,
onde no filme est dito, mostrado, ou ao menos sugerido, que os
replicantes foram criados para libertar os seres humanos? A empatia
pelos replicantes prossegue: as colnias Alm-Mundo podem ser um
paraso para os humanos, mas so claramente um campo de escravido
para os replicantes (ibid.: 21-2). Em um filme no qual, de acordo
com a prpria Kerman, uma enorme massa de humanos desvalidos
literalmente excedente e, nesta condio, longe est de ter direitos,
a crtica mobiliza-se pelos direitos humanos dos replicantes. Se em
Blade Runner vive-se, nas palavras da crtica, na sociedade do
controle total corporativo-estatal, faz algum sentido perguntar
sobre os direitos humanos, de humanos ou de replicantes? Se o
universo o espao infinito de acumulao do capital, se a propaganda
arregimenta os incautos para emigrao alm-mundo, lcito concluir que
as corporaes funcionam para propiciar o paraso extraterrestre para
os humanos? De todo modo, essas incongruentes e supostamente
humansticas inquietaes no constituem privilgio de Kerman. Muitos
comentadores preocupam-se, com sincera gravidade, com o fato de os
replicantes, quase-humanos, trabalharem como escravos (Mas, os
equipamentos, no importa se produzidos geneticamente, so mesmo
escravos? E as geladeiras? Escravizamos geladeiras e
liquidificadores?) e serem programados para viverem apenas quatro
anos. Para Francavilla, por exemplo, enquanto vida artificial os
replicantes levantam srios problemas morais relativos aos direitos
que tais seres deveriam possuir. No tm virtualmente direito vida,
liberdade ou busca de felicidade. Tm menos direitos do que crianas
e animais domsticos, e no tm ningum que os represente ou defenda
seus direitos (Francavilla: 9-10). Mas, o que dizer sobre os
problemas morais postos pela massa indiferenciada de corpos vagando
sem rumo pelas ruas? Para se ter idia do grau de sandice dessas
anlises crticas, bastaria perguntar por que estariam ento os
humanos, concedendo-se que as hordas exibidas no filme conservam
ainda algo de humano, preocupados com a competio representada pelos
replicantes? J no teriam percebido os habitantes da Los Angeles do
futuro, desta sociedade multi-racial, que os problemas do
desemprego nada tm a ver com o afluxo de populaes adventcias? Ou
ser que o crtico, inadvertidamente, transporta para o futuro o
pavor atual que causam nos EUA os emigrantes latinos, asiticos,
etc.? Por outro lado, se a tecnologia fugiu ao controle, como
afirmado pelo prprio Francavilla, no significa isso que a produo de
replicantes, produtos da tecnologia esta categoria abstrata
empregada pelo crtico, praticando a usual hipstase da tecnologia
sob os auspcios do capital , j no leva em conta os interesses
humanos. Se assim, por que, ento, haveria de existir uma
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legislao para impedir a competio dos replicantes? (ibid.).
Ademais, se estas circunstncias que denegam os sujeitos humanos
constituem, na fico, mero desenvolvimento da economia regida pelo
capital e de sua forma de existncia na esfera poltica, a democracia
liberal, que sentido pode ter a observao de que aos replicantes
sonegada a representao poltica (parlamentar)? Se no h mais
direitos, como reclamar direitos para os replicantes? Enfim,
caberia perguntar aos crticos to mobilizados em definir a natureza
humana dos replicantes e seus direitos: e os humanos humanos que,
aparentemente (e no somente no filme), no tm acesso sequer ao
trabalho escravo dos replicantes? Por que no tocam a sensibilidade
dos crticos? Por que, afinal, as questes morais so sempre
levantadas sobre os direitos dos replicantes, enquanto o mundo de
misria, de vazio, de caos, poluio, no qual os humanos humanos vivem
suas abandonadas vidas merecem no mximo comentrios descritivos de
assptico distanciamento? O aprofundamento da estratificao da
sociedade seria outra questo poltica, de acordo com os crticos,
aflorada pelo filme. Aparentemente, uma certa estratificao social
parece ser considerada natural e necessria salutar, diramos para os
crticos. E no futuro de Blade Runner esta justa medida
intoleravelmente ultrapassada. E no se deve pensar que falta aos
crticos sintonia com as questes do momento. Ao contrrio, o problema
do aprofundamento da estratificao social est na ordem do dia. Aps
dcadas de contra-revoluo conservadora, nutrida pela sistemtica e
unssona difuso, por parte dos liberais-democratas, da idia de que
no h alternativas,24 os mesmos liberais parecem alarmados com o
aprofundamento da estratificao social nas ricas demo