PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO A ESCOLA E AS PRÁTICAS DE CONSUMO NA CONTEMPORANEIDADE. CHARLES ANDREWS BEZERRA SILVA SOB A ORIENTAÇÃO DA PROFESSORA MARIÂNGELA MONTEIRO RIO DE JANEIRO, NOVEMBRO DE 2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
A ESCOLA E AS PRÁTICAS DE CONSUMO NA
CONTEMPORANEIDADE.
CHARLES ANDREWS BEZERRA SILVA
SOB A ORIENTAÇÃO DA PROFESSORA
MARIÂNGELA MONTEIRO
RIO DE JANEIRO, NOVEMBRO DE 2009
RESUMO
O presente trabalho procurou investigar as práticas adotadas pela
escola que promovem a perpetuação de uma atitude consumista, individualista
e de indiferença em relação ao mundo e, por outro lado, as práticas voltadas
para a construção de uma visão mais global do mundo.
Num primeiro momento apresentamos aspectos da sociedade de
consumo, as transformações ocasionadas principalmente pela Revolução
Industrial que modificou alguns espaços com os quais nos relacionamos: com o
mundo dos objetos, com o trabalho e com o nosso corpo.
Num segundo momento, refletimos sobre o papel da escola na produção
de dispositivos onde os jovens possam se desenvolver longe de uma juventude
serializada e normatizada que formam o consenso subjetivo em voga na nossa
sociedade.
Palavras-Chave
Consumo, Escola, Contemporaneidade.
Dedico este trabalho aos meus pais que sempre me deram
amor, carinho e todas as condições necessárias para que
pudesse realizar os meus sonhos.
Obrigado Mãe por sempre acreditar em mim, por toda dedicação, apoio e
carinho.
Obrigado Pai por sustentar a concretização dos meus sonhos.
Obrigado Fábio, Maristela e Jalusa, meus queridos amigos, por facilitarem a
minha jornada e por tudo que construímos e vivemos juntos.
Agradeço aos meus amigos, e
A minha orientadora, Mariângela Monteiro, pela sua paciência e por sua total
disponibilidade, compartilhando a sua sabedoria e fazendo da orientação um
espaço de troca de conhecimentos.
Sumário Introdução____________________________________________________01 Capítulo 1. O CONSUMO NA CONTEMPORANEIDADE________________________________________04
1.1 O trabalho e a busca pela felicidade________________________05 1.2 O mundo dos objetos: o encontro com a felicidade_____________08 1.3 corpo, espaço para a felicidade.___________________________13
Capítulo 2. A ESCOLA E AS PRÁTICAS DE CONSUMO._______________17
3.1 A formação da escola, a juventude em quarentena.______________17 3.2 A escola e a construção do consumidor._______________________20 3.3 A escola, um espaço de singularização para o consumo.__________24
Capítulo 3. O JOVEM NA CONSTRUÇÃO DO CONSUMO CONSCIENTE.________________________________________________29 3.1 A construção da adolescência_______________________________29 3.2 O consumidor idealizado___________________________________30 3.3 Consumo consciente______________________________________33
INTRODUÇÃO O presente estudo tem como objetivo a investigação do fenômeno do
consumismo e as práticas adotadas pela escola que permitem lidar com o esse
fenômeno de uma forma mais criativa. Para isso, a escola deve assumir o
papel de agente questionador de uma sociedade que favorece a reprodução de
modos de ser e viver, fabricados pelas máquinas capitalistas que agregam ao
conceito de felicidade a posse de objetos como critério para definir nossas
ações e nossas atitudes.
O trabalho que realizei com adolescentes, num projeto de inserção ao
mercado de trabalho, me possibilitou observar que muitos jovens faziam o
curso e queriam o emprego para suprir necessidades mais superficiais como
um celular moderno, uma roupa de grife e objetos que representavam, de
alguma forma para eles, um status de ascendência social. Durante os dois
anos de trabalho nessa ONG, percebi que esse comportamento se repetia
sistematicamente e que, de certa maneira, era reafirmado pelos responsáveis,
nas conversas que tínhamos, mensalmente, durante os encontros com a
família. Isso me fez questionar o papel da escola como um espaço onde os
indivíduos possam discutir alguns fenômenos da contemporaneidade, e não
apenas um espaço de preparação para o mercado de trabalho, pois é na
escola onde passamos boa parte de nossas vidas e onde construímos nossos
valores.
Diante dessa visão podemos perceber que a escola tem um papel de
extrema importância na formação do sujeito-cidadão. Uma escola consciente
do seu papel dá ao indivíduo a possibilidade de voltar-se para o outro, ao invés
de apenas olhar a si mesmo, além de estimular a criação de outras formas de
ser feliz, que não passa necessariamente pela posse de objetos.
Portanto, é necessário evidenciar o duplo papel que a escola pode
desempenhar: promovendo a perpetuação de uma atitude consumista,
individualista e de total indiferença em relação ao mundo; ou atuando no
desenvolvimento de uma visão global do mundo e a construção de espaços
coletivos onde possam ocorrer reflexões sobre o consumo.
Para desenvolver o tema, no primeiro capítulo, serão trazidas reflexões
acerca do consumo na contemporaneidade, que deve ser entendido não
apenas como um fenômeno econômico, mas também como um fenômeno
cultural e que está na base de como entendemos a felicidade. Com a explosão
de mercadorias proporcionada pela Revolução Industrial, a associação da
posse de objetos à felicidade deu a ela um caráter mensurável, como se
pudéssemos nos definir pelo que temos e não pelo que somos realmente. Esse
fenômeno pode ser observado em alguns espaços da nossa vida: na nossa
relação com o mundo dos objetos, com o trabalho e com o nosso próprio corpo.
As mudanças ocorridas nessas três esferas, ao longo da história,
reafirmam que as transformações ocorridas na economia, com a Revolução
Industrial, transformaram também a subjetividade.
A relação do sujeito com o seu trabalho foi limitada apenas à produção
de algo “comprável” e não mais ao necessário, pois a necessidade passou a
ser fabricada pela industria. Sendo assim, o vínculo fortalecido pela indústria
não é mais com o trabalho que passa a ser flexibilizado, mas é com o produto e
com o ato de comprar. O indivíduo passa assim da posição de produtor para
consumidor procurando se adequar aos perfis estimulados.
Cabe aqui entender o consumismo como uma produção social, que é
internalizado como uma verdade inquestionável. Assumimos o papel de
consumidores sem ao menos questionar a ideologia da qual fazemos parte,
naturalizadora de necessidades supérfluas e produtora de um falso princípio de
igualdade perante à posse de objetos.
No segundo capítulo, analisaremos como a escola se articula com o
consumismo, como uma instituição voltada para a formação dos nossos
indivíduos.
A formação humana ao longo da história nos mostra que a escola se
preocupou com a modelização do indivíduo em sua totalidade, desenvolvendo
toda uma tecnologia para a formação do operário da fábrica, num processo de
docilização e higienização dos corpos. Acompanhando as mudanças ocorridas
na Revolução Industrial a escola procurou se estabelecer como um dispositivo
produtor de subjetividades voltadas para o consumo, produzindo sujeitos
isolados e limitados a agirem de forma individualizada, estimulando a
competição e uma relação de aprendizagem passiva e dominadora.
Entretanto, a escola pode atuar como um espaço de crítica e reflexão do
consumismo, rompendo com a relação de alienação e opressão e estimulando
um movimento de expressão e criação, a partir do trabalho pedagógico voltado
para a realidade do aluno, desenvolvendo assim uma consciência crítica do
consumismo e dos problemas ocasionados por ele.
O terceiro capítulo trará reflexões sobre a relação do jovem com a
construção de um consumo responsável e consciente das conseqüências
trazidas ao meio ambiente.
Assim como o fenômeno do consumismo, a adolescência trata-se de
uma construção social, constituída a partir de necessidades sociais e
econômicas inseridas na própria cultura. Esse espaço, agora demarcado pela
indústria do consumo, transformou a juventude no ideal a ser alcançado por
todos, representando a liberdade, a felicidade e o prazer sem restrições. Este
passa a ser o modelo que devemos imitar através da posse de objetos, dos
espaços que freqüentamos e até mesmo o corpo que deve possuir medidas
próximas a um padrão estabelecido. A homogeneização através do consumo
permite um controle mais apurado pelos dispositivos capitalista estabelecendo
um padrão, uma identidade capitalista.
Porém, como Foucault nos fala, todo poder gera resistências, e assim
podemos enxergar os movimentos que procuram refletir o consumo como, por
exemplo, o movimento ambientalista, as Ongs voltadas para reciclagem etc.
Tal preocupação nos mostra outras possibilidades de engajamento,
alternativos ao engajamento pelo consumo, que permitem uma ação na esfera
do coletivo e atraindo a participação dos jovens.
A cidadania deve ser relacionada com tais práticas sociais e culturais,
entendendo o consumo como uma prática cultural e uma dimensão da
cidadania.
As reflexões trazidas aqui nos permitem concluir que a escola não pode
ficar de fora quando discutimos o fenômeno do consumismo. Cabe a ela
desenvolver um espaço de discussão sobre as práticas adotadas e sobre as
possibilidades de engajamento, que pode ocorrer pelo viés da conscientização
ambiental. O importante é romper com os processos de modelização e buscar
espaços de criação dentro da escola.
Capítulo 1 - O consumo na contemporaneidade.
Nos últimos cinqüenta anos um fenômeno chamou a atenção de
filósofos e teóricos das mais diferentes áreas das ciências humanas, trata-se
de um fenômeno que se apresenta em várias esferas da sociedade, na
economia, na cultura e na própria constituição do sujeito, falamos do
consumismo, a grande referência de felicidade da sociedade contemporânea
ou pós-moderna. Como forma de sistematizar essa problemática usarei aqui
uma divisão feita por Costa (2004) 1, onde podemos observar esse fenômeno
em alguns espaços com os quais nos relacionamos: com o mundo dos objetos,
com o trabalho e com o nosso corpo. A análise desses espaços nos ajudará a
entender a sociedade contemporânea, o seu vínculo com o tempo e com o
conceito de felicidade, na medida que esse período tem nos reservado uma
série de perturbações e transformações que envolvem vários campos do
conhecimento humano, nas artes, na ciências e nos modos de subjetivação na
cultura.
O fenômeno do consumismo encontra-se associado às transformações
decorrentes na indústria, porém, os avanços não se limitaram apenas aos
meios de produção, transformaram também a construção da subjetividade e as
condições de vida dos habitantes das cidades. Tais modificações trouxeram
conseqüências positivas e negativas como a diminuição do número de horas
trabalhadas e o crescimento desordenado nos grandes centros urbanos, por
exemplo. Graves problemas sociais emergiram com a “sociedade industrial”, o
desemprego, a miséria e, consequentemente, os aumentos dos índices de
violência transformaram as metrópoles em cidades “sem lei”, cercadas pelo
medo e pela desconfiança de seus habitantes que procuram na segurança dos
seus lares uma zona de conforto e tranquilidade.
Por outro lado, o consumo impera com uma máscara que transmite um
ideal de felicidade associado à posse de objetos, à beleza e ao eterno bem-
1 Em NOVAES e NABNUCHI. Juventude e Sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São
Paulo. Ed. Fundação Perseu Abramo/ Instituto Cidadania, 2004 p.75-88.
estar. A palavra felicidade significa um estado de bem-estar e de satisfação, ela
vem do grego eudaimonia, composta por eu, partícula ligada ao sentido de
bom, e daimonia, termo que deriva de “meu espírito interno”, aquilo que os
gregos chamavam de “estado de espírito”. Essa ideia de felicidade não perdeu
o seu sentido com as transformações ocorridas na contemporaneidade, para
Baudrillard (1981), o mito da felicidade não perdeu o sentido de bem-estar, mas
sua busca ocorre num certo desligamento de algo apenas interiorizado, pelo
caminho do consumo, através da posse de objetos que passam a carregar os
signos da felicidade.
A explosão de mercadorias, tanto na quantidade quanto na diversidade,
ocasionada pela Revolução Industrial tornou a felicidade em algo mensurável e
palpável através dos objetos que possuímos, signos do conforto que
agregamos ao longo de nossas vidas e alterou a nossa relação com o trabalho,
com os objetos e com o nosso corpo.
1.1 O trabalho e a busca pela felicidade
A Revolução industrial foi o período marcado por profundas mudanças
nos meios de produção, a produção em larga escala, o avanço tecnológico, as
melhorias nas condições de trabalho e, principalmente, a criação de um
mercado de compradores modificaram a relação do homem com o seu
trabalho, acarretando numa transformação da sua própria história pessoal. A
relação do homem com o trabalho, de acordo com Arendt (2000), ganhou um
novo significado, importante para entender a emergência histórica do consumo.
O trabalho era algo de caráter totalmente artesanal onde o sujeito
poderia colocar ali um pouco da sua subjetividade, havia todo um investimento
emocional naquela atividade de transformação da natureza, além disso, o
sujeito se via produzindo objetos para um determinado fim, era algo necessário
e por isso importante tanto para o autor quanto para o futuro proprietário. Esse
tipo de relação com o trabalho possuía em si um valor, pois dava ao produtor
um tipo de excelência moral, por fabricar objetos necessários à vida dos
indivíduos. Mas com o avanço da tecnologia, a velocidade e a diversidade da
produção impediram que os objetos fossem vistos com o intuito de atenderem
às necessidades reais, o produtor limitou-se apenas a vender o seu produto o
mais rápido possível, independente da sua necessidade.
Essa nova relação com a produção tirou do sujeito a ideia de autoria
sobre o que ele produzia e o caráter utilitário foi perdendo importância para a
capacidade de venda e de consumo do objeto, quanto mais rápida a passagem
entre a produção e a venda do produto melhor para o produtor. O indivíduo
passou a ser uma peça no processo de produção de bens feitos para serem
consumidos rapidamente. A “excelência moral” do homem produtor, que
gastava boa parte do seu tempo e da sua energia produzindo, é trocada pela
felicidade do comprador, que usa o tempo livre ganho com a mecanização da
produção para comprar. Sendo assim, a representação da felicidade está na
posse dos bens produzidos e não mais na figura do artesão, do produtor que
via na produção de bens algo que enriquecia a realidade de várias maneiras. E
o tempo livre ganho com a Revolução Industrial foi usado para consumir e para
adquirir novas formas de consumo.
Bauman (1999) vê essa mudança na relação do homem com o trabalho
como fazendo parte de uma nova postura que os membros da sociedade eram
estimulados a tomarem diante não apenas do trabalho, mas na própria relação
com os objetos e com os outros indivíduos. Antes da Revolução Industrial era
preciso um montante de pessoas para a produção em larga escala, era uma
“sociedade de produtores” que engajava seus membros a tomarem para si o
papel de produtores e soldados, para isso, valores como a união e a
cooperação eram exacerbados. Com a revolução dos meios de produção, a
sociedade passou a ter pouca necessidade de mão-de-obra em massa e muita
necessidade de consumir de forma intensa e ininterrupta a sua produção, por
isso, ela passou a engajar os seus membros a se tornarem consumidores.
Cada vez mais os indivíduos foram perdendo espaço como soldados para
assumirem o papel de consumidores, pelo simples fato de que crescer
economicamente representava, e ainda representa, produzir e vender mais
com o menor número de empregados possível, caracterizando assim o
aumento da produtividade.
Valores como a união e a cooperação eram enormemente exaltados na
vida em sociedade, onde é possível notar dois aspectos essenciais para o
entendimento da inserção do indivíduo na civilização. Por um lado, abarca toda
a capacidade que o homem desenvolveu a fim de controlar as forças da
natureza, extraindo suas riquezas com o intuito de satisfazer suas próprias
necessidades; por outro, inclui o respeito aos regulamentos necessários para
ajustar as relações dos homens uns com os outros, limitando as possibilidades
do indivíduo de obter satisfação. Diante desse aspecto e a impossibilidade do
sujeito viver isoladamente de seus pares, a vida em sociedade é um sacrifício
que o indivíduo se sujeita em troca da proteção que ela oferece.
Entretanto, com o individualismo, fortalecido pelo hedonismo e pela
massificação do consumo, a vida coletiva foi, em termos, rejeitada em troca da
possibilidade da satisfação total dos seus impulsos, só possível com o repudio
das regras impostas pela sociedade. A união é trocada pelo egoísmo, a
cooperação pela competição e pelo acúmulo de riquezas, e assim toda a ação
do indivíduo é voltada para si mesmo e para as suas próprias necessidades.
Para Bauman (1998) e outros teóricos da pós-modernidade, as
mudanças na relação com o trabalho transformou não só o trabalho numa
atividade flexível de acordo com o momento econômico, mas transformou o
indivíduo também numa figura flexível, sempre disposto a procurar novas
frentes de trabalho. Não existe mais a imagem do trabalho vitalício, talvez a
sua existência limite-se apenas aos empregos públicos, o que existe é o
trabalho temporário e sendo assim o presente está marcado pelas constantes
mudanças onde os pontos de referência parecem estar sempre em movimento.
A volatilidade não se limita apenas às relações, mas também inclui as
relações de trabalho que se tornaram descartáveis implicando num
planejamento de curtíssimo prazo. E diante da extrema instabilidade que as
constantes mudanças proporcionam, valores de afeição e dedicação ao
trabalho, a coisas e a pessoas são desprezados e voltados apenas para si
mesmo, a única coisa que permanece frente às transformações decorrentes.
Sennet (1999) aponta a reestruturação do trabalho que teve início nos
anos 80, onde a instabilidade, a competição e as novas formas de controle
mudaram não só a relação do indivíduo com o trabalho como também
alteraram a imagem que o sujeito constrói de si mesmo. Ideais como lealdade e
compromisso se tornaram incompatíveis com a flexibilidade estimulada pelo
capitalismo contemporâneo.
1.2 O mundo dos objetos: o encontro com a felicidade
A ligação da felicidade à posse de objetos nos indica uma insatisfação e
um vazio que não conseguimos preencher com os bens oferecidos. Essa
necessidade que carregamos, embora, seja uma necessidade social não é
menos importante que as necessidades fisiológicas, tendo em vista que o
indivíduo é um ser inserido na cultura, como Freud2 destacou na introdução do
seu trabalho Psicologia das massas e análise do eu, “Na vida psíquica
individual aparece integrado sempre, efetivamente, o outro, como modelo,
objeto, auxiliar ou adversário...”.
É na relação com outro que o indivíduo se constitui enquanto sujeito,
sem o outro “o circuito pulsional não se ordenaria jamais, já que a força
pulsional estaria fadada à descarga.” (BIRMAN, 2007, P. 136). O outro é
fundamental para que o sujeito se produza e se reproduza permanentemente
como tal, logo, o grupo é fundamental na constituição do sujeito a partir de uma
série de comportamentos que influenciam o indivíduo e o faz sentir fazendo
parte de algo. Podemos destacar aqui o consumo como um comportamento
enormemente influenciado pelo grupo que o indivíduo faz parte, a interiorização
2 Ver Obras Completas, vol IX, Psicologia das Massas. P. 7
desses valores leva ao senso comum, isto significa que tais valores e
comportamentos não precisam ser explicitados, há um entendimento implícito
por parte de seus membros que ao buscarem tais valores buscam uma
identificação com o grupo. Para Bauman (2001), a identificação com o grupo
trai a individualidade estimulada pela contemporaneidade. Se, por um lado, o
sujeito pode construir a sua identidade livremente, por outro lado, ela precisa
está ligada aos valores estimulados pela sociedade. Mas,
O paradoxo, contudo, é que para oferecer um mínimo de segurança e assim desempenhar uma espécie de papel tranqüilizante e consolador, a identidade deve trair sua origem; deve negar ser apenas um substituto. (BAUMAN 2001. P.20).
Diante dessa perspectiva, os valores e as práticas reforçados pela
sociedade são internalizados como verdades inquestionáveis, inclusive o
consumo de objetos. Costa (2004) nos lembra que a palavra consumismo é
inadequada, pois dá a ilusão de que consumimos coisas quando na verdade
compramos. As duas palavras trazem uma diferença muito importante, o ato de
consumir refere-se à metabolizar, algo biológico que é igual em todos os seres
humanos. Diferentemente, o ato de comprar que é antes de tudo um ato social.
Isso significa que nem todos têm esse poder, embora todos sejam incitados a
possuírem alguns objetos. Esse equívoco para Costa (2005) é fundamental
para introjeção de que somos consumidores,
Com base nessa crença, fizemos do pífio hábito de comprar uma entidade maligna
capaz de perverter espíritos preclaros ou desavisados. Ora, a desfaçatez da ideologia
consumista não está na incitação à compra de mercadorias; está no fato de fazer-nos
crer que somos consumidores, porque compramos objetos industriais. Ao introjetarmos
esta idéia esdrúxula, damos um passo para acreditar na fantasia de que somos
fantoches teleguiados pelo controle remoto da publicidade. Afinal, se ninguém vai ao
circo, o circo fecha a lona. (COSTA, 2005, P. 179)
Esse engano não é apenas semântico, realmente compramos os objetos
com o intuito de consumi-los, esgotá-los e descartá-los logo em seguida. Assim
como um alimento, procuramos por mais, pois não há satisfação completa,
apenas parcial e temporária que provoca uma diminuição momentânea das
tensões. Alguns dos objetos que consumimos não são os que desejamos ou
necessitamos realmente, são apenas representações do que desejamos e
como representações podem migrar para outros objetos “mais modernos” ou
raros, e que irão nos diferenciar do resto, como forma de garantir a nossa
individualidade nos separando dos outros.
Cabe à publicidade fazer esse transporte, ela carrega em si um sentido,
uma rede de significações que se referem às condutas e modelos abstratos
produzidos e reproduzidos que na maioria das vezes ignoram o valor real do
objeto. E coloca na busca da felicidade a única possibilidade do individuo, pois
caso haja fim o mercado se estagna. Contudo, não podemos achar que a
publicidade seduz o indivíduo pura e simplesmente, sem que este não reflita e
questione o que vê. Há um jogo de sedução, porém para fazê-lo é preciso de
consumidores que queiram ser seduzidos e que queiram fazer parte do parque
de diversão vendido pela mídia.
A posse de objetos é hoje o critério adotado para determinar o modelo
que seguimos e nos coloca numa determinada posição dentro da pirâmide
social. Você é aquilo que você tem, ou melhor, aquilo que compra. É o tipo de
trabalho que tem, o nível de educação, o nível cultura e os bens consumidos.
É, resumidamente, o que sabemos e o que temos. Grande parte dessa
ideologia reside na tentativa de ligar a felicidade aos bens materiais, Bauman
(2008) questiona a idéia de quantificar a felicidade, pois nos deparamos com
uma sociedade cada vez mais rica, mas não parece claro se está se tornando
mais feliz, embora façamos um enorme esforço em expressá-la através do
crescimento econômico, principalmente através do PIB. A contradição aparece
quando verificamos que:
Um indicador social que até agora parece estar crescendo de modo espetacular paralelamente ao nível de riqueza - na verdade, tão rapidamente quanto se prometia e esperava que aumentasse o bem-estar subjetivo - é a taxa de criminalidade (...). (BAUMAN, 2008, p. 9)
Nesta relação com o mundo dos objetos podemos definir o consumismo
como o modo de naturalização de algumas necessidades, que se apresentam
primárias e possíveis de serem atingidas por todos, indiferente à classe social,
quando na verdade representam necessidades superficiais, possíveis de serem
atingidas apenas por uma parte da população, ocultando assim as
desigualdades econômico-sociais entre os potenciais compradores. O princípio
que rege a sociedade é o da igualdade onde todos os indivíduos são capazes
de ser felizes e de obterem satisfação total com oportunidades iguais diante do
valor de uso dos objetos. Os signos de felicidade são acima de tudo signos da
igualdade, não há diferença entre o menino rico da zona sul e o menino pobre
da periferia enquanto possuírem o mesmo tênis ou o mesmo celular, pois se
sentirão iguais, pelo menos quanto à dimensão do objeto.
Dentro desse contexto a posse de objetos representa para o individuo a
possibilidade de manter algo de si diante de tantas mudanças, Bauman (2008)
referindo-se a essa relação do sujeito com o objeto e com a marca diz que:
Marcas, logos, lojas, são os poucos refúgios seguros remanescentes em meio às terríveis correntezas que o ameaçam a sua segurança; os poucos refúgios da certeza num mundo inquietantemente incerto. (p. 20).
O objeto é visto como a única coisa necessária a ser levada pelo
indivíduo para qualquer lugar, pois é o status ou o símbolo da felicidade que
precisamos mostrar aos outros para que nos vejam como vencedores, figuras
que representam a fragmentação, a desinstitucionalização e a
destemporalização dos espaços sociais da pós-modernidade. O Vencedor
representa um indivíduo sem toda a base moral que o mantinha fixo dentro de
uma ordem social na Modernidade, ele se situa numa base fluida, que não se
institucionaliza, pois muda o tempo todo num período de tempo curto, o
indivíduo não consegue ver o futuro ou fazer planos para ele. Sem qualquer
tipo de base o sujeito não encontra nada que possa se fixar, ao que pertencer,
são cidadãos do mundo, superficial em seus relacionamentos. Como exemplo
Bauman (1997) nos fala da relação desse personagem com o mundo, seria
como viver dentro de uma bolha de osmose firmemente controlada onde só
entraria coisas que interessassem ao ocupante da bolha, inclusive a presença
do outro, assim como só sairia coisas que ele permitisse, trazendo para ele
algum tipo de segurança. Ele faz dos objetos que os cerca os únicos laços que
realiza com algo exterior, entretanto, são temporários e rapidamente
substituídos por outros objetos.
Se temos a figura do vencedor como personagem desenraizado e
adaptado ao contexto pós-moderno ou contemporâneo, por outro lado, temos a
figura do derrotado, representante da grande massa. Esta figura, ainda que
viva em constante movimento, não consegue ter o mesmo sucesso dos
vencedores. Eles representam os desempregados, que antes eram entendidos
como o exército de reserva da mão-de-obra a espera de uma nova
configuração da economia para poderem voltar ao mercado de trabalho, porém
durante essa espera recebiam todo o apoio de um Estado assistencialista.
Hoje estar desempregado transformou-se num ato de transgressão, as
pessoas que vivem nessa condição representam uma grande população de
exonerados, abandonados, excluídos economicamente e socialmente. O
desemprego é entendido como uma conseqüência inevitável do avanço
econômico, que só é possível com a “racionalização” dos meios de produção,
seja pelo corte de funcionários, ou seja, pela procura de uma mão-de-obra
mais barata e submissa. É a flexibilização do emprego diante das incertezas do
futuro que impede qualquer planejamento ao longo prazo. Cabe ao Estado,
não mais visto como assistencialista, criar dispositivos de reclusão dessas
pessoas colocando-as longe para evitar qualquer incomodo. Bauman (1997)
pontua o crescimento exorbitante da população e da indústria carcerária ao
longo dos últimos 40 anos como exemplo do fortalecimento de um Estado
preocupado com a repressão em detrimento de um Estado assistencialista.
A pós-modernidade ou contemporaneidade reflete um mundo
extremamente mutável e por isso não há espaços para os planejamentos em
longo prazo, não se deve prender a pessoas ou lugares por mais agradáveis
que possam ser, não se fixando a identidade alguma. Os grandes avanços
ocorridos no último século provocaram transformações radicais nos modelos
instituídos de subjetividade. Na ordem social tradicional o sujeito é regulado
pela longa duração das instituições e pela permanência totalmente enraizada
de seu sistema de regras, que lhe oferecem segurança e grandes certezas.
Com as transformações decorrentes, o social impôs novas exigências
para a subjetividade. Esta deve ser permanentemente remodelada em
conseqüência dos processos de transformação contínua da ordem social, que
se realizam de maneira intensiva e extensiva. Não há mais uma identidade fixa,
a contemporaneidade inaugura um mundo fundado na incerteza, o sujeito é
exposto a uma gama de opções que geram insegurança e angustia, vivendo
sob a lei do imediato, transformando o indivíduo num acumulador de
sensações. O imediatismo impede que algo seja abraçado por muito tempo,
nada deve exigir um compromisso, pois tudo é mutável assim como nenhuma
necessidade deve ser vista como inteiramente satisfeita, pois nenhum desejo é
o último, já que se pode descartar tudo o que não nos satisfaz.
1.3 Corpo, espaço para a felicidade.
O imediatismo vivenciado por nós pode ser sentido de modos diferentes.
Birman (2007) retrata que no meio da crise atual vivida pela psicanálise a
demanda clinica caiu significativamente, as pessoas não querem “perder
tempo” numa terapia longa, elas preferem buscar soluções mais práticas como,
por exemplo, os tratamentos psicofarmacológicos que visam tanto evitar a dor
e o sofrimento quanto propiciar, ou potencializar, o prazer. O imediatismo nos
coloca apenas no presente, no agora e no ter, não se importando com o
amanhã que se mantém muito distante da realidade do indivíduo.
Freud (1920) destaca que a nossa relação com o prazer é mais íntima e
corpórea do que muitos possam imaginar, nossas escolhas são reguladas pelo
princípio do prazer que tem dominância sob a nossa vida mental. Todavia, essa
dominância não é ininterrupta sobre o curso dos processos mentais, pois se tal
domínio existisse a todo o momento, a imensa maioria das nossas atividades
teria de ser acompanhada pelo prazer puro e simplesmente, ao passo que
podemos observar outras forças atuantes que impedem essa causalidade
direta. O máximo que podemos afirmar,
...é que existe na mente uma forte tendência no sentido do princípio de prazer, embora essa tendência seja contrariada por certas outras forças ou circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem sempre se mostre em harmonia com a tendência no sentido do prazer. (FREUD, 1920, P.19)
Faz parte da nossa constituição psíquica a diferenciação que,
naturalmente, serve à finalidade prática de nos capacitar para a defesa contra
sensações de desprazer que realmente sentimos ou pelas quais somos
ameaçados. O autor estabelece uma relação “econômica” para o entendimento
dos processos mentais e para o princípio do prazer, relacionando o prazer e o
desprazer à quantidade de excitação. O desprazer corresponde a um aumento
na quantidade de excitação, enquanto o prazer representa uma diminuição da
excitação.
Diante do ponto de vista “econômico” e do princípio do prazer, o uso de
psicotrópicos em detrimento ao processo psicanalítico mostra a tendência que
comumente adotamos na busca de uma fórmula mágica da felicidade, atuando
de forma rápida no alívio dos sintomas. Mas isso, não atinge a causa do
sofrimento, tornando o seu uso contínuo e, portanto, controlado pelo uso de
medicação.
A preocupação que temos apenas com o agora nos impede de lidar com
o princípio da realidade exposto por Freud como um substituto do princípio do
prazer. O princípio da realidade também objetiva o prazer, entretanto, há a
possibilidade do adiamento da satisfação diante de uma série de oportunidades
de obtê-la, há uma “tolerância temporária do desprazer como uma etapa no
longo e indireto caminho para o prazer.” (FREUD, 1911, P.15).
Hoje parece que o princípio da realidade não tem a mesma força que o
princípio do prazer, ou simplesmente não tem os mesmos parâmetros que já
tivera. Nós nos colocamos em risco das mais diversas formas, praticando
atividades “radicais”, submetendo à processos extremamente agressivos para
o nosso corpo, como por exemplo, as intervenções cirúrgicas que procuram
modelar os corpos de acordo com o padrão exigido ou o excesso de atividade
física que tem o mesmo intuito. A mensagem passada é que não há felicidade
sem uma série de sacrifícios com o nosso corpo.
A relação econômica estabelecida por Freud torna o vínculo com os
objetos, além de ser uma forma de mantermos laços com algo, uma fonte de
prazer limitada, o que nos obriga a trocarmos constantemente por outros
objetos que possam nos fornecer o mesmo prazer. A busca pelo prazer não é
novidade, o que há de novo é os meios que utilizamos para obter esse prazer,
hoje são os mais diversos e incontáveis. Costa (2004) define esse período
como o do ideal de prazer corporal ou do prazer das sensações.
Todos esses objetos e sensações que visam o corpo não procuram um
corpo cartesiano, entendido como um receptáculo onde há um acúmulo dessas
sensações. Uma mudança de abordagem é necessária para entender os
sintomas que emergem na contemporaneidade, os transtornos na percepção
da imagem e o abuso na exploração das sensações corporais dão ao corpo
uma intencionalidade antes restrita apenas como característica da mente. A
intencionalidade não se limita à mente, pois a interação sujeito-meio ambiente
se dá através do corpo, não apenas como meio motor de interação, mas como
um ajustamento motor ao meio, assim como os processos mentais, uma
intencionalidade corporal.
O nosso corpo é cada vez mais importante para se obter prazer e reflete
um ideal inalcançável, gerando sofrimento. Não conseguimos manter, ou
alcançar, o ideal de prazer estimulado pela sociedade. Embora tentemos
buscar esse prazer das mais diferentes formas, ficamos fadados ao fracasso,
seja por não alcançar esse prazer, seja por não alcançar um determinado
corpo pré-moldado pelo imaginário cultural dominante.
O imaginário cultural dominante se utiliza da moda e das ciências como
forma de marcar as novas formas aceitáveis de imagens corporais. As ciências
mudaram os perfis de imagem corporal com a promessa de perfeição, antes
vista apenas como um ideário distante, hoje vista como algo alcançável diante
da gama de possibilidades de transformação físicas que podem se dar através
de cirurgias, remédios e outros vários tipos de procedimentos, alguns bastante
agressivos, mas nada demais perto da possibilidade da perfeição corporal.
Entretanto, essa preocupação não se limita apenas com a estética, se estende
a todo o organismo como evidenciou Costa (2005):
Poucas coisas, atualmente, entusiasmam tanto os indivíduos quanto discutir sobre taxas de colesterol, posturas anatomicamente corretas, sensações de bem-estar físico
recém-descobertas ou alimentação saudável, livre de corantes químicos agrotóxicos ou mutações transgênicas. (P.78).
Diante de tantos saberes construídos, a ideologia somática dominante
faz com que o sujeito veja na aparência física a causa de todos os seus
insucessos e faz da correção da aparência a única saída para o problema. O
déficit físico imaginário se torna algo totalmente petrificado na subjetividade do
sujeito. A felicidade aqui está alinhada intimamente ao ideário de corpo do
sujeito, um ideário difícil e que por si só produz mais infelicidade que felicidade
de uma maneira geral. São modelos difíceis de serem alcançados também
porque mudam rapidamente antes que o individuo consiga se adaptar a ele.
Sob diferentes ópticas, vivemos uma ditadura onde o gozar é um
imperativo social, passamos boa parte de nossas vidas procurando meios que
possam nos trazer a satisfação completa e, se, por um lado, passamos menos
tempo no trabalho, por outro, nos entregamos cada vez mais à empreitada da
produção do próprio bem-estar através dos objetos do consumo.
Nessas relações que estabelecemos com o mundo dos objetos, com o
trabalho e com o nosso corpo trazem no seu interior uma mudança crucial, o
individualismo em detrimento do bem comum, a falta de uma consciência de
que tudo que usamos jogamos fora quando na verdade jogamos dentro. Nós
cremos na ilusão de que nossas atitudes consumistas não trazem
conseqüências para nossas vidas fincadas apenas no presente, transformando
o planeta num depósito onde podemos jogar todos os objetos supérfluos, sem
resultar em nenhuma conseqüência para nós mesmos. Mas se não temos essa
consciência como criá-la? Vejo na escola a grande oportunidade de mudança e
de discussão, mas para isso é preciso adotar uma prática compatível com essa
consciência o que nem sempre acontece e por isso procurarei investigar quais
as práticas adotadas pela escola que possibilitem a discussão das atitudes
consumistas.
Capítulo 2 - A escola e as práticas de consumo.
A escola é a grande instituição do conhecimento em nossa sociedade,
responsável em parceria com a família pelo desenvolvimento do sujeito. Ela
possui, na sua constituição, práticas que procuram criar no sujeito uma
consciência coletiva, estimulando a alteridade, a cidadania, o saber etc.
Contudo, outra função atribuída à escola é o seu compromisso com o sistema
de produção, ou seja, com aquele que movimenta o sistema capitalista. Assim
como qualquer sistema ideológico, de dispositivos produtores de subjetividade,
práticas estabelecidas pelo capitalismo são essenciais para a manutenção do
sistema, e que interferem na forma como o sujeito se vê, como vê o mundo, na
relação com o trabalho e com a ordem social estabelecida. Ao analisar a escola
no decorrer da história, podemos notar o seu papel primeiramente na produção
do operário para o sistema fabril e depois na produção de consumidores, uma
peça fundamental para o funcionamento de toda a engrenagem do consumo,
junto com outros dispositivos que compõem a sociedade.
As mudanças ocorridas no último século, acarretaram na hegemonia do
mercado capitalista, conquistando o controle das instituições e das pessoas,
através dos avanços tecnológicos, das novas relações de trabalho e das novas
formas de produção, que re-elaboraram ao ato de consumir.
2.1 A formação da escola, a juventude em quarentena.
A escola nos moldes que a conhecemos hoje, começou a se organizar
por volta do século XV já com a presença de uma hierarquia funcional
autoritária, com o estabelecimento da vigilância e enquadramento dos sujeitos,
emergencialmente a juventude.
Os colégios até então existentes eram como asilos destinados aos
estudantes pobres que seguiam as regras monásticas. Elas eram lugares
destinados somente ao ensino religioso. Só com a separação da educação
leiga e monástica no século XVII, que o colégio tornou-se uma instituição
essencialmente de transmissão do saber da sociedade, com um corpo docente
separado, com uma disciplina rigorosa e atingindo todas as classes sociais.
Mas, voltando-se para dois grupos etários mais específicos, os períodos que
hoje denominamos de infância e adolescência.
A infância e adolescência tornaram-se um período delimitado pela
presença efetiva da escola, como instituição capaz e habilitada para prepará-
los para a inserção na sociedade. A educação não ocorria mais de forma livre,
através da relação dos aprendizes com as famílias de terceiros, onde o ato de
ensinar ocorria sem a distinção de idade ou conhecimento já obtido em lugares
abertos, nas ruas ou em qualquer lugar no qual era possível agregar pessoas.
Só com o advento da modernidade a educação se tornou um meio para
isolar as crianças durante o período destinado a sua construção moral e
intelectual, com separação por idade e por conhecimento já adquirido. Houve
então uma sistematização do ensino que engloba não apenas o conhecimento
alcançado, mas também a utilidade desse conhecimento e a forma como ele é
transmitido.
O fator histórico de grande preponderância para o entendimento do
pensamento moderno na educação e na formação da escola como a
concebemos hoje é o humanismo renascentista. Visto por muitos como
possuidor de uma identidade própria, que desenvolveu uma concepção
bastante particular de filosofia, rompendo com a visão teocêntrica,
predominante nos séculos anteriores e voltando-se para o indivíduo que invade
o campo das artes, da literatura e da ciência.
As mudanças ocorridas refletem uma preocupação com a educação e
uma necessidade de desenvolvimento de uma tecnologia do ensino capaz de
sistematizar e organizar o conhecimento com a finalidade de desenvolver todas
as habilidades e competências do sujeito. Sobre essa necessidade, Ariès
(1981) diz:
A nova disciplina se introduziria através da organização já moderna dos colégios e pedagogias com a série completa de classes em que o diretor e os mestres deixavam de ser primi inter pares, para se tornarem depositários de uma autoridade superior. Seria o governo autoritário e hierarquizado dos colégios que permitiria, a partir do século XV, o estabelecimento e o desenvolvimento de um sistema disciplinar cada vez mais rigoroso. (P.180)
A Disciplina trouxe para a escola uma capacidade de modelização do
indivíduo, o século XVIII marca para Foucault a entrada da Disciplina na
escola, na fabricação do soldado e do operário. Coube à escola o papel de
formar o operário da fábrica e o soldado dos exércitos, docilizando seus
corpos, corrigindo a postura e transformando determinados comportamentos
em hábitos, com o intuito de aproveitar o corpo da melhor forma possível.
Trata-se de uma coação que percorre lentamente todo o corpo que se torna
objeto e alvo do poder. Todas as atenções se voltam para o corpo, manipulado,
modelado e treinado como um depósito preenchido de habilidades e
competências. E para isso há a construção de um saber ao nível tanto do
anatômico quanto do técnico-politico:
O grande livro do homem-máquina foi escrito simultaneamente em dois registros: no anátomometafísico, cujas primeiras páginas haviam sido escritas por Descartes e que os médicos, os filósofos continuara; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos e refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois se tratava ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação. (FOUCAULT, 2008, p. 117).
O corpo é trabalhado detalhadamente, nos movimentos, na atitude e
rapidez, de forma mecânica e objetivando a eficácia de cada movimento,
operando da maneira que se quer e possibilitando o aumento das forças do
corpo e diminuindo as mesmas forças em termos políticos de obediência:
Uma anatomia política, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. (FOUCAULT; 2008; p. 119)
A escola se reconfigurou numa instituição voltada para a transformação
do indivíduo em operário tanto na manipulação do seu corpo quanto na
manipulação dos seus hábitos e da sua subjetividade.
2.2 A escola e a construção do consumidor
O período da Revolução Industrial marcou uma mudança de
entendimento acerca da escola e do indivíduo quanto ao seu papel de
trabalhador. Antes da Revolução Industrial as relações sociais de produção
eram norteadas por valores como a união e a valorização do trabalho coletivo,
necessários para uma produção em larga escala eficiente. Com a revolução
dos meios de produção a escola passou a se preocupar com a assimilação de
novos valores que norteavam uma sociedade voltada mais para o consumo dos
bens produzidos do que para a produção dos mesmos.
A escola não se limitou apenas aos aspectos cognitivos na preparação
do indivíduo para o trabalho, mas, sobretudo em termos de atitudes,
disposições, formas de conduta e aceitação das formas de consumo
estabelecidas. A escola, assim como outras instituições da nossa sociedade, é
um dispositivo do sistema que produz e reproduz práticas de produção do
capitalismo, essencial para a manutenção do sistema, interferindo na forma
como o sujeito se vê e como ele se relaciona com os objetos a sua volta. Pois,
...é evidente que para fabricar um operário especializado não há apenas a intervenção das escolas profissionais. Há tudo o que se passou antes, na escola primária, na vida doméstica – enfim, há toda uma espécie de aprendizado que consiste em ele se deslocar na cidade desde a infância, ver televisão, enfim, estar em todo o ambiente maquínico. (GUATTARI, 2000, p.27)
Uma sociedade voltada para o consumo precisa de equipamentos
voltados para a preparação de consumidores em todos os sentidos, há uma
modelização dos comportamentos, da sensibilidade, da percepção, da
memória, das relações sociais etc. Tanto crianças como jovens têm as suas
identidades coletivas ignoradas. Ao ignorar suas características próprias, sua
pertinência a grupos sociais específicos ou subculturas particulares, a escola,
junto com outros dispositivos sociais, pode produzir sujeitos isolados e os força
a se comportarem e a agirem de forma individualizada. Ela limita as condições
da ação coletiva ao inserir os indivíduos numa trama de práticas sociais que os
relacionam como elementos atomizados e isolados.
Ao individualizar as ações do indivíduo, a escola contribui para a
naturalização da pirâmide social e as oportunidades passam a ser vistas como
se fosse responsabilidade pessoal e não coletiva.
Essa individualização ocorre, sobretudo, em volta de um sistema de
motivações extrínsecas assimilada pela escola, esse sistema é necessário
quando os fins da própria atividade nem suas características são capazes de
motivar o aluno, que não pode se reconhecer nela, ele precisa de uma
contrapartida, uma oferta extrínseca à atividade. No mundo do trabalho temos
as férias, as promoções, os bônus etc. Já na escola temos as avaliações
quantitativas e qualitativas, os ordenamentos de tempos e espaços, os
regulamentos, as relações hierárquicas...
Observa-se no contexto escolar quer a pressão do sistema de
recompensa provoca uma desvirtuação do ato da aprendizagem em si. A forma
como atribuímos recompensas e castigos fazem o estudante internalizar a
aprendizagem como algo que não pode ser vivenciado com alegria e com
satisfação pelo simples fato de estar construindo um conhecimento ali. O que
realmente importa nas escolas é a transmissão passiva do conhecimento que
se torna um produto valioso capaz mudar a vida individualmente, mas incapaz
de mudar a coletividade.
A partir do momento que não se consegue encontrar um interesse
intrínseco no estudo, vemos nele apenas a oportunidade de atingir algo, um fim
que justifica a estrada incômoda e que causa tanto desprazer à vida dos
sujeitos.
Na realidade estuda-se porque as notas conduzem aos títulos e estes, ao menos supostamente, a melhores oportunidades sociais de todo gênero, fundamentalmente de trabalho econômicas. Estuda-se, em suma, porque a escola promete mobilidade social aos que não gozam de uma posição social desejável e promete mantê-la para os que já desfrutam dela. (ENGUITA, P. 195, 1989).
Seguindo as motivações extrínsecas, os estudantes são levados a
aceitar atividades que não produzem efeitos nas suas vidas, pouco ou nada
significativas, rotineiras e desprovidas de um link com a realidade. É a
aprendizagem do mesmo, da monotonia, da dissociação interior da própria
atividade. Essa dissociação ocorre, muitas vezes, a partir da especialização do
conhecimento que impede a visão global do problema,
O conhecimento especializado é uma forma particular de abstração. A
especialização “abs-trai”, em outras palavras, extrai um objeto de seu contexto e de
seu conjunto, rejeita os laços e as intercomunicações com seu meio, introduz o objeto
no setor conceptual abstrato que é o da disciplina compartimentada, cujas fronteiras
fragmentam arbitrariamente a sistemicidade (relação da parte com o todo) e a
multidimensionalidade dos fenômenos. (MORIN, 2000, p.41)
A abstração do conhecimento transmitido, ou simplesmente depositado
segundo o pensamento de Paulo Freire (2007), desloca os conflitos que
rodeiam a escola. Uma vez que o estudante constrói o conhecimento
descontextualizado, sem uma análise dos processos que constituem a sua
realidade.
Segundo a posição bancária, a relação educador-educando fala,
fundamentalmente de uma realidade estática, discorre sobre algo distante da
realidade do aluno que, por sua vez, mantém uma posição passiva no processo
de aprendizagem, como um depósito que recebe e arquiva o conhecimento
sem o diálogo com realidade.
Diante da concepção bancária, a educação se resume a uma prática da
dominação, onde a escola não pode ser vista como um espaço libertador por
não incluir a práxis, que implica ação e a reflexão dos homens sobre o mundo
para transformá-lo.
Uma vez que o estudante se vê impossibilitado de encontrar uma
gratificação na sua atividade acadêmica, o consumismo aparece como uma
das saídas possíveis. Frente a um processo escolar marcado por ordens,
normas, rotinas pré-estabelecidas, no qual o indivíduo se encontra
constantemente submetido a um processo de infantilização e de impedimento
da vivência da autonomia, o consumo representa um espaço de liberdade por
contraposição à escola, que é justamente visto como um espaço de submissão
e repressão.
Uma das práticas estimuladas na escola que visam o fortalecimento de
uma cultura baseada no consumo é a competição. A economia capitalista
supõe a competição não apenas entre as empresas, mas também entre os
indivíduos pelo acesso aos melhores empregos que só é possível com os
melhores títulos acadêmicos. São esses títulos os instrumentos para alcançar
os bens caros (e raros), signos do sucesso e da felicidade.
A organização social da escola, por si só, estimula a competição
internamente, através das notas, das avaliações qualitativas, do acesso a
determinados serviços ou benefícios que só é dado para os “melhores”, como
por exemplo, o passeio para apenas os melhores alunos, como se outros não
se esforçassem o suficiente para merecerem tal premiação. Essa prática é
comum em algumas escolas como forma de estimular a competição,
normalmente limitando o número de pessoas que podem ir ao passeio a um
número muito inferior ao número total de alunos.
Palavras como solidariedade, cooperação e trabalho em equipe, embora
incorporados ao discurso pedagógico corrente, não são levados para a prática
onde continuamos a ver o estímulo à competição entre os alunos.
As notas, como as premiações, são exemplos do estímulo à competição,
Elas estabelecem uma categorização entre os estudantes à qual os professores e eles mesmos- na medida em que partilhem dos objetivos proclamados pela escola- associam a imagem e sua estima, algo que todos sabem que terá conseqüências posteriores. A publicação de cada nova rodada de notas supõe uma relocalização simbólica dos indivíduos dentro do grupo. (ENGUITA, P. 197, 1989)
Vencedores e derrotados são os carimbos que a escola utiliza a cada
avaliação. Os vencedores seguem o percurso trilhado pela escola, enquanto os
derrotados, muitas vezes, ficam pelo caminho e procuram legitimação em
outros espaços já que a escola lhes nega apoio.
As notas, da forma como as vemos ser usadas e a forma como
aprendizagem é estabelecida, podem se tornar abstrações na medida em que
obter a menção de “aprovado” em uma matéria serve apenas para se livrar
dela, mas não assegura uma real aprendizagem sobre aquele assunto
avaliado.
O isolamento do aluno é conseqüência do estímulo à competição e, por
isso, a escola se empenha em romper os vínculos grupais existentes entre
alunos, denominados como panelas, gangue, baderneiros etc. Ao romper com
qualquer tipo de vínculo horizontal o jovem é preparado para o individualismo,
no estímulo à competição e na falta de solidariedade o terreno é preparado
para que amanhã torne difícil erigir outro gênero de relações entre eles, em
particular, para que não sejam capazes de agir de forma solidária com o
próximo.
2.3 A escola, um espaço de singularização para o consumo.
Na escola que reproduz os mecanismos do sistema capitalista, todos os
esforços educacionais visam apenas o aperfeiçoamento das habilidades
necessárias para o desenvolvimento de um fazer, que pode deixar de lado o
investimento no ser, no sentir, no relacionar e no contemplar. Sem levar a
reflexão tais esforços não percebem a escola como produtora de um
determinado tipo de subjetividade, a produção envolve tanto o funcionamento
de sistemas sociais, econômicos quanto midiáticos relacionados às
representações, imagens e valores assimilados pelo indivíduo.
Observa-se que é necessário romper com a lógica mecanicista. Para
isso o trabalho pedagógico pode adotar duas saídas: a primeira, a reprodução
de modelos que não nos permitem criar saídas para o processo de
singularização3; e a segunda na busca de processos que viabilizem a
singularização, na medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que
consigam por para funcionar.
A produção da subjetividade deve ser compreendida sócio-
historicamente, envolvendo tanto os sistemas sociais, econômicos e de mídias;
quanto os sistemas que envolvem as instâncias intrapsíquicas, egóicas e
agentes grupais. São processos duplamente centrados e por isso envolvem o
funcionamento de máquinas de expressão que podem ser de natureza
3 Ver GUATTARI e ROLNIK , Micropolítica, Cartografias do Desejo. Ed. Vozes. 6º edição. Petrópolis
2000. O termo singularização é utilizado pelos autores para definir os processos de resistência que visam
a diferença impedindo a reprodução do mesmo na produção da subjetividade.
extrapessoal, extra-individual e infrapsíquica4 (sistemas de percepção, de
sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens etc.).
Dentro dessa concepção o indivíduo para Guattari (2000) resulta de uma
produção em massa de um ser serializado, registrado e modelado de acordo
com a demanda do sistema dominante. A escola, por sua vez, marca esse
indivíduo no registro social, atuando como um equipamento de produção de
subjetividade. Porém, a escola não atua sozinha, na subjetivação, por ser
múltipla, há interferência de uma série de fatores que atuam nas mais
diferentes dimensões: dimensões do corpo, do comportamento, da mente, da
percepção, do desejo etc.
Deleuze (1972) utiliza o termo máquina como forma de explicar as
ligações e conexões que atuam nas diferentes dimensões do sujeito e
produzem efeitos de imediato na vida dos indivíduos “Uma máquina-orgão está
ligada a uma máquina-origem: uma emite o fluxo que a outra corta. O seio é
uma máquina de produzir leite e a boca uma máquina que se liga com ela”
(P.7).
Por todos os lados nos deparamos com essas máquinas, a escola,
responsável pela inserção das crianças na sociedade, é uma poderosa
máquina produtora de subjetividade, entretanto, ela possui conexões com
outras máquinas produtoras como, por exemplo, a televisão e a Internet.
Nessas conexões é possível perceber os traços da sociedade de
consumo, expostos no capítulo anterior, que nos ajudam a pensar sobre o
enredamento da escola nesta trama. A relação da educação com o ideário do
consumo é marcada pela mercantilização da escola e sua inequívoca conexão
às políticas neoliberais regidas pela atenção primordial às movimentações do
mercado. Podemos ver com freqüência a utilização das estratégias de
marketing que transformaram a própria educação em mais um produto que
para ser vendido é preciso ser anunciado, das mais diferentes maneiras
possíveis.
O espaço escolar se tornou uma verdadeira mina para o mercado do
consumo, transformado num shopping center, onde se pode encontrar de tudo,
4 O termo infrapsíquica foi utilizado por Guattari refere-se ao agenciamento dos processos de
subjetivação que envolvem até mesmo os sistemas psíquicos de percepção, memória e os sistemas
atencionais, objetos de estudo da neuropsicologia.
de cabelereiros a redes de lanchonete, agências bancárias, livrarias e
boutiques. Elementos que fortalecem o aluno-cliente-consumidor.
Indiscutivelmente, o espaço escolar transformou-se em um rentável negócio.
Diante dessa perspectiva a educação é vista como mercadoria formando para
habilidades descartáveis.
Porém, a situação mais crítica desta colonização da escola pela
economia e pelo mercado ocorre quando observamos que crianças e jovens
que lá chegam já estão totalmente capturadas pelas malhas do consumo, pelas
máquinas produtoras de uma subjetividade inserida numa relação consumista.
A educação para o consumo inicia-se já em casa, em frente à televisão e nos
teclados dos computadores. O marketing, presente nos mais diferentes tipos de
mídia, começa a seduzir para formar clientes quando mal aprenderam a falar.
Antes das crianças entrarem na escola, as máquinas serializadas já fizeram
seu trabalho. Às escolas parece caber apenas administrar estes eus de
desejos supérfluos, descartáveis e infinitamente renováveis. Este é o novo e
imenso desafio que se apresenta aos professores e aos teóricos da educação
do século XXI - enfrentar o consumismo e educar o consumidor-cidadão.
Fato é que na escola as crianças absorvem relações de imagens, de
palavras, de significação que modelizam a sua subjetividade e o modo como
lidamos com ela oscila entre dois pólos:
...uma relação de alienação e opressão, no qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade produzindo um processo que eu chamaria de singularização. (GUATTARI, p.33. 2000).
A tentativa de controle social, através da produção da subjetividade pode
se deparar com resistências e a escola pode ser uma produtora de
resistências, para isso ela deve romper com o processo de serialização da
subjetividade produzindo modos de subjetividade “alternativos”, originais e
singulares.
Para assumir esse papel, frente a uma sociedade de consumo, a escola
precisa trazer a realidade para dentro das suas salas, discutir o consumo
ativamente, criar as suas próprias referências, produzindo assim a sua própria
revolução e atingindo os mais diferentes níveis do corpo social aos níveis
infrapessoais, na relação com o consumo, com a produção, com o lazer. A
ideia é transformar a escola num espaço auto-gestor. Isto é, que ela construa
seus próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem ficar numa posição
de dependência com a sociedade de consumo e os valores pregados por ela.
Essas transformações possibilitam adquirir a liberdade de viver seus
processos e passam a ter a capacidade de ler sua própria situação social e o
que se passa em torno dela, estimulando assim o poder de criação e a
autonomia na vida do indivíduo.
A escola deve assumir um papel atuante na construção de uma
sociedade organizada, que produza modos de subjetividade sobre bases
diferentes daquelas fundamentadas numa sociedade de consumo.
Freire (1985) propôs medidas que permitissem o alcance de uma
consciência crítica através da educação, pois só através de uma consciência
crítica o consumo pode ser compreendido e analisado profundamente.
A consciência crítica repele posições quietistas. É intensamente inquieta. Torna-se mais crítica quanto mais reconhece em sua quietude a inquietude, e vice-versa. Sabe que é na medida em que é e não pelo que parece. O essencial para parecer algo é ser algo; é a base da autenticidade. (Freire 1985. P.41).
A ampliação de uma consciência crítica permite a formação de uma
massa de indivíduos, com maior capacidade de utilizar critérios sócio-
ambientais em suas decisões de compra. A inclusão na educação escolar de
temas relacionados ao consumo consciente é essencial para uma mudança de
hábito entre alunos, funcionários, professores e a sociedade de um modo geral.
Trazer para prática discursos que ficam apenas no campo teórico implica em
mudanças no cotidiano da escola como, o consumo de copos descartáveis, do
ar condicionado, as luzes acesas desnecessariamente, o lixo produzido que
não é reaproveitável, entre outras situações. A escola deve fazer seu papel,
conscientizando e desenvolvendo hábitos responsáveis junto a seus
colaboradores. O consumo consciente é um caminho para alcançar estes
objetivos.
A própria escola precisa ser reeducada, o culto ao produto industrial
como “melhor e mais prático” precisa de questionamento desde as opções de
alimentos da merenda e das cantinas, da estrutura física ao uso de materiais,
até as excursões de estímulo consumista que empurram as crianças e os
jovens para os fast-foods e shopping-centers. A escola deve ter o compromisso
de se educar para poder educar. Pouco adianta a escola obter os melhores
resultados no vestibular se permite a ostentação de itens de consumo como
celulares, cosméticos, tênis...
A educação ao ignorar o papel do consumismo na sociedade não
permite a construção de processos de singularização frente à modelização das
subjetividades. Freire (1985) diz que:
Quando o ser humano pretende imitar a outrem já não é ele mesmo. Assim também a imitação servil de outras culturas produz uma sociedade alienada ou sociedade-objeto. Quanto mais alguém quer ser outro, tanto menos ele é ele mesmo. (p. 35)
O espaço escolar deve ser um espaço de aprendizado que engloba toda
a comunidade. O empenho de educar é conjunto, na soma de esforços pela
conscientização, contra a superficialidade das relações humanas e dos valores
éticos em geral. É nesse espaço, fundamentalmente, que devemos estimular a
cooperação, a concepção de que vivemos em coletividade e a compreensão de
uma visão mais global do mundo, Morin (2000) nos fala do conhecimento
pertinente, que se refere ao conhecimento do mundo como o mundo é,
pertinente porque procura articular as informações sobre os problemas do
mundo como, por exemplo, o consumismo dentro da nossa realidade.
Para isso é preciso indagar o cotidiano escolar, os conflitos, as tensões
e as práticas educacionais, pondo em questão os processos que conformam
alunos, professores e dirigentes. Estimulando aptidões que possibilitem o
entendimento do consumo, visando o equilíbrio entre o excesso de consumo e
a satisfação do prazer com naturalidade. Educar significa tornar o sujeito num
consumidor equilibrado, livre e capaz de usufruir formas mais consciente de
consumo.
Capítulo 3 - O Jovem na Construção do consumo
consciente.
3.1 A construção da adolescência
Assim como a noção de infância foi inventada5, o conceito de juventude
também foi construído pela cultura. Portanto, devemos questionar a
universalização dos conflitos e das chamadas crises da adolescência,
reafirmando as determinações históricas e culturais que constituem esse
processo. Entender a adolescência como constituída socialmente a partir de
necessidades sociais e econômicas dos grupos sociais é olhar e compreender
suas características como elementos que vão se constituindo na própria
cultura. Os modelos produzidos são transmitidos nas relações sociais, através
dos meios de comunicação, da literatura e do convívio familiar, escolar etc.
A imagem transmitida do adolescente é algo que encanta o adulto, além
da enorme semelhança entre os corpos, os gostos e as vontades, há também
semelhança em alguns deveres e direitos. Entretanto, o espetáculo da
felicidade desses jovens é algo que mais chama atenção dos adultos, como se
contemplássemos muitos de nossos próprios desejos, que não poderíamos
realizar devido as nossas obrigações. O êxtase transmitido pelas imagens de
felicidade nos leva a seguinte questão: por que não imitá-los? Porém, a
adolescência idealizada está longe da adolescência real, privada de autonomia
e afastada da realização plena de alguns direitos cruciais da nossa cultura. E
ao supor uma igualdade de oportunidade entre todos os adolescentes,
ocultamos e legitimamos as desigualdades presentes nas relações sociais.
Como destacou Calligaris (2000), até a metade da década de 60, o ideal
transmitido era a idade adulta, os adolescentes desta época buscavam ser
reconhecidos como adultos e para isso imitavam o comportamento e as
5 Ver Philippe Ariès (1981); História Social da criança e da família; Ed LTC; Rio de Janeiro.
atitudes dos adultos. O lugar ocupado pelos jovens era marcado apenas como
um espaço de transição para a fase adulta (de produção e reprodução)
presente em todas as culturas, com rituais que marcam a passagem da
infância para a vida adulta. Esses rituais tinham a função de reinscrever alguns
espaços simbolicamente, como o corpo, a posição familiar, social etc. E com
isso, as atividades “adultas” eram enormemente desejadas e procuradas por
esses jovens, não apenas para parecer adulto, mas também para ter
experiências de adulto o que daria prestígio social e acesso à independência.
Entretanto, o que podemos observar é a demarcação desse espaço
através da indústria do consumo, aproveitando o vazio deixado pela falta de
funções no espaço público, a total dependência da família e a relação passiva
com a escola. O consumo se tornou o único espaço de produção e de
expressão para o jovem. Que por sua vez não idealiza mais o adulto, agora ele
é o objeto de desejo, o ideal escondido dos adultos. O jovem contemporâneo
se tornou o perfil do consumidor ideal: impulsivo, belo, cheio de energia e
possibilidades.
Capturado pelo mercado do consumo como protótipo da pessoa ideal,
os discursos que relegavam o jovem a um espaço limítrofe entre a infância e a
idade adulta foram deixados para trás. Foram trocados pelos discursos que
enaltecem a juventude ignorando uma falta de maturidade intelectual e
emocional, exigida para o ingresso no mercado de trabalho, caracterizado pela
alta competitividade que exige também uma elevada qualificação profissional
que só é alcançada ao longo dos anos.
3.2 O consumidor idealizado
Apesar de todas essas dificuldades o jovem passou a ser uma fatia do
mercado consumidor, uma gorda fatia. Associado ao hedonismo e a liberdade
total, entretanto, sem responsabilidades.
Mas se por um lado ele desfruta de toda a liberdade, ou pelo menos lhe é
oferecido uma boa parte dela, por outro, é poupado de quase todas as
responsabilidades. Porém, o que importa é a imagem criada pelo mercado, de
um adolescente capaz de consumir todos os produtos oferecidos.
A juventude no século XX se tornou o pote de ouro no fim do arco íris
que todo o indivíduo pós-moderno procura, não medindo esforços para
alcançar e se manter jovem, aliás, boa parte de nossos esforços científicos
estão voltados para longevidade da vida, fixando precisamente na juventude a
fase do gozo sem restrições e da felicidade completa. E como vimos,
anteriormente, a única maneira de alcançar essa felicidade “completa” se dá
através do acesso aos objetos de consumo.
Os modos de ser “jovem” na contemporaneidade estão mergulhados na
cultura do consumo, fazendo crer que a posse de objetos e adoção de estilos
de vidas vendidos pela mídia é a única forma de se expressar e de se reafirmar
enquanto portador de uma identidade.
Como bem destacou Jobim (2000), o apego às identidades oferecidas
pela indústria do consumo é fortalecido ao enxergarmos a diferença como um
delito, desde os objetos que nos rodeiam até aos espaços públicos que
freqüentamos. Um tênis e uma camisa de “marca” deixam de ser simples
objetos e passam a representar passaportes para a entrada do jovem neste
mundo da felicidade, independente da sua classe social. Ao possuir tais objetos
negamos a diferença que tanto nos incomoda.
A negação da diferença não se restringe aos objetos que possuímos ou
espaços que frequentamos, ela atinge o corpo que deve possuir medidas
padronizadas. Porém, além de negarmos a diferença, devemos trabalhar para
eliminá-la, se não sou forte devo me inscrever numa academia e consumir os
seus serviços até ficar com o corpo próximo ao modelo exigido. E se mesmo
assim eu não conseguir me aproximar do modelo dominante, devo usar todos
os meios possíveis para alcançá-lo, mesmo que isso acabe com a minha saúde
e possa me levar até a morte.
Um trabalho que realizei em 2008 com jovens que estavam buscando a
inserção no mercado de trabalho apresentou um resultado que corrobora com
essa homogeneização do corpo. Durante uma dinâmica os jovens foram
instruídos a desenharem como eles gostariam de ser vistos e o fruto do
trabalho revelou imagens bem destoantes da imagem real de cada um, mas
todos muito parecidos. Loiros, olhos claros, cabelos lisos etc. O retrato do
modelo vendido pela mídia representando o feliz, o belo, o perfeito...
A internalização desses modelos reforça o objetivo da indústria do
consumo em torno da juventude, a homogeneização. O que é mais homogêneo
é mais fácil de controlar e de vender, logo não se trata de quantidade, mas do
estabelecimento de um padrão,
As minorias e as maiorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é um modelo ao qual é preciso estar conforme: por exemplo, o europeu médio adulto macho urbano... Ao passo que uma minoria não tem modelo, é um devir, um processo. (DELEUZE; P.214; 1992)
Essas identidades e modelos oferecidos pela mídia reforçam o quanto a
juventude está inscrita no âmago da revolução dos meios de informação,
elemento importante para a compreensão do consumo e da felicidade que
baliza nossas referências éticas e morais, onde o outro não se faz presente e
ser cidadão se limita apenas a ser um consumidor “consciente”. A produção se
expande para o desejo padronizado e homogeneizado, como uma produção
industrial em larga escala.
Guattari (2000) destaca que o capitalismo precisou se firmar sob
diferentes formas, tanto diretamente através da repressão no plano econômico
e social, como através da produção da subjetividade,
Uma imensa máquina produtiva de uma subjetividade industrializada e nivelada em escala mundial tornou-se dado de base na formação da força coletiva de trabalho e da força de controle social coletivo. (P.39)
A adolescência, inserida no consumo, torna-se serializada e
normatizada por essas máquinas que produzem um consenso subjetivo,
referido e sobrecodificado por uma lei transcendental que se transforma numa
barreira para a singularização, transmitindo ao jovem a sua “incapacidade” de
se enquadrar dentro do modelo dominante.
As identificações feitas com as imagens produzidas pela indústria do
consumo são totalmente dissociadas da realidade, pois poucos jovens
conseguem alcançar o padrão de consumo estabelecido, mas o perfil do
adolescente impulsivo a procura de prazeres e novas sensações é imposto a
todos como um retrato da realidade.
Os objetos ajudam a reinscrever esse novo corpo, estranho até para o
sujeito, nesse lugar também de transição entre a infância e a vida adulta que
ele passa habitar. A posse de alguns desses objetos são ritos de passagem
que auxiliam na representação do crescimento que o adolescente exige.
3.3 O consumo consciente.
No seio do consumo consciente vemos o movimento ambientalista,
sempre ligado à juventude, trazendo a concepção de um sujeito ecológico.
Investido na crítica ecológica como uma força instituinte, esse movimento
invade uma sociedade capitalista pouco preocupada em impor limites ao
consumo, de acordo com Trigueiro (2005) 6, nós consumimos 20% a mais do
que a Terra consegue suportar. E se toda a população do mundo consumisse
como os norte-americanos, que têm o padrão mais alto de consumo do mundo,
hoje nós precisaríamos de quatro planetas Terra. Esse modelo instituinte de
ser, posicionado à margem da sociedade, invade a esfera pública e leva para o
cotidiano um novo horizonte para política ambiental, visando quebrar a ideia de
consumo associado à impulsividade.
Essa preocupação mostra que ainda temos um campo extenso de
possibilidades de engajamento na contemporaneidade. A ação coletiva e
afirmativa demonstra os desejos de inserção e participação na esfera pública
como espaço de afirmação do jovem, e ao mesmo tempo trata-se de um rito de
passagem importante para a vida adulta que se contrapõe às práticas de
consumo, vista como a única maneira possível de inserção do jovem na vida
adulta na atualidade.
6 Ver Mundo Sustentável; Ed Globo; Rio de Janeiro; 2005.
É pelo viés da educação que há uma reconfiguração quanto aos estilos
disponíveis para as formas de sociabilidade política, agenciando uma
renovação do laço de engajamento político e da cidadania, por ser um
laboratório de ideias no qual o conhecimento e a criatividade deveriam ser
aplicados com ênfase na construção de um mundo mais ético, justo e
sustentável. E por ser um espaço capaz de se proteger das demandas do
mercado, há a possibilidade de um posicionamento crítico em relação ao
consumismo, trazendo de volta a participação na esfera pública. Essa
participação é de suma importância para não ficarmos presos a uma cidadania
baseada no consumo privado de bens.
Canclini (1997) acredita que o olhar político foi desacreditado pelo
mercado que se exibe como o mais eficaz para organizar a sociedade,
submetendo a própria política às regras do comércio e da publicidade.
Para vincular o consumo com a cidadania, e vice-versa, é preciso desconstruir as concepções que julgam os comportamentos dos consumidores predominantemente irracionais e as que somente vêem os cidadãos atuando em função da racionalidade dos princípios ideológicos. (CANCLINI; P 21; 1997)
Assim como o consumo é colocado no lugar do supérfluo e do
superficial, a cidadania limita-se a uma questão política, onde as pessoas
atuam segundo suas convicções individuais. A separação não permite que
explorem de forma integrada a relação econômica e os processos culturais
envolvidos no consumo.
Ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais para os que nasceram em um território, mas também com as práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento, e fazem com que se sintam diferentes os que possuem uma mesma língua, formas semelhantes de organização e de satisfação das necessidades. (CANCLINI; P. 22; 1997)
Essa questão é bastante relevante em tempos de discussão sobre como
podemos ampliar os espaços de participação política do jovem, Carvalho
(2004) propõe o “paradoxo da autonomia” para destacar a tensão entre as
ações que buscam ampliar os espaços de autonomia no mundo (emancipação
política) e as ações pós-políticas, revestidas de um desejo de emancipação
política. Esse paradoxo da contemporaneidade pode tanto ampliar os campos
da cidadania e do direito como reproduzir o individualismo.
Tratemos de pensar a cidadania ligada à prática de consumo,
entendendo este como uma prática cultural e que configura uma dimensão da
cidadania. Logo, falar de consumo consciente é conseguir relacionar os
problemas sociais e ambientais aos nossos hábitos de consumo cotidiano.
Uma escola capaz de fazer esse link consegue impor uma resistência ao
que Trigueiro (2005) chama de movimento de manada, uma marcha
irresponsável pelo consumo, sem levar em conta os recursos não-renováveis
do planeta. A grande luta que a escola deve travar é com a percepção que
temos da realidade que nos cerca. Somos incitados a ter um olhar reducionista
que relega à natureza a função de apenas suprir as nossas necessidades, das
mais básicas às mais supérfluas, partindo de uma falsa dualidade, sujeito e
ambiente, quando deveríamos compreender o universo como um complexo
sistema de redes interdependentes que interagem ininterruptamente.
Como todo poder gera resistências, o movimento de manada não
impera sem movimentos de oposição, que surgem como alternativas às ideias
dominantes, a partir de movimentos sociais de conscientização do consumo ou
pela simples redefinição de felicidade, não mais pautada no acúmulo de
objetos.
Tais movimentos brotam como reações à prática do consumo
compulsivo e indiscriminado de pessoas que não conseguem pensar nas
gerações futuras. Do mesmo modo, observamos o crescimento no número de
pessoas ligadas ao terceiro setor, que encontram nos ideais de justiça, respeito
e igualdade um objetivo a ser perseguido. Todas elas percebem que o estilo
individualista de preocupação exclusiva com o próprio corpo e com a ascensão
social não basta para dar sentido à vida.
CONCLUSÃO
Procuramos, neste trabalho, refletir sobre o papel da escola numa
sociedade voltada para o consumo, visto como uma maneira determinante de
se manifestar na cultura contemporânea. Os pensamentos de Jean Baudrillard,
Zygmunt Bauman, e Garcia Canclini, apresentados aqui, foram importantes
para uma reflexão do consumo como o mais poderoso marcador da identidade
na contemporaneidade.
Na sociedade contemporânea, a vida é organizada em torno do
consumo, as pessoas são vistas primariamente como consumidoras e não
como produtoras. O que as move não é mais a necessidade, mas o desejo,
efêmero e insaciável. Grande parte das ações que regem a sociedade está
voltada para orientar o desejo, não na forma de pura regulação, mas de
incentivo à fantasia, ao gosto, aos cuidados consigo mesmo. A convivência não
é mais voltada para as outras pessoas, mas para os objetos que possuímos;
À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidencia fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços, dos bens materiais, originando como que uma categoria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana. Para falar com propriedade, os homens da opulência não se encontram rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas por objetos. (BAUDRILLARD, 1981, p. 15)
Dessa maneira, o estudo procurou evidenciar as mudanças provocadas
pelo consumismo na nossa relação com o trabalho, com os objetos que nos
cercam e com o nosso corpo. Esses espaços passam a girar, como destacou
Baudrillard (1981), sob a lógica da mercadoria reguladora dos processos do
trabalho e até mesmo da própria escola. Sendo assim, inclusive os processos
pedagógicos foram objetivados e manipulados por essa lógica, produtora de
signos e modelos consumíveis.
Apresentamos essas características da sociedade contemporânea para
pensarmos um pouco sobre o papel da escola nesta trama. Vemos claramente
uma mercantilização da escola, visível tanto nas estratégias de marketing que
transformaram a educação em mais uma marca que precisa ser desejada para
ser vendida, como na transformação dos espaços escolares em verdadeiros
shopping centers, com agências bancárias, redes de fast food e grifes famosas.
Aliás, não são poucas as escolas com grifes próprias, com sua logomarca
estampada em estojos, mochilas e adesivos que fazem parte do "pacote" a ser
adquirido pelo aluno-cliente. Incontestavelmente, o espaço escolar foi invadido
por um mercado insaciável.
Às escolas parece caber apenas administrar estes sujeitos constituídos
de desejos supérfluos, descartáveis e infinitamente renováveis. Mais do que
uma difícil tarefa, eis um novo e imenso desafio da nossa sociedade, enfrentar
o consumismo e educar o consumidor-cidadão. Para isso, a escola não pode
simplesmente ignorar as manifestações de consumo que emergem dentro da
sala de aula, ela deve atuar nas referências trazidas pelos alunos e até pelos
próprios professores, desconstruindo os discursos fabricados pelas máquinas
capitalistas, produtoras de subjetividades.
A educação, reprodutora do discurso da mídia, reforça um modo de
saber as coisas em que a informação compacta e a fórmula de fácil
reconhecimento são privilegiadas em relação à reflexão crítica e à criação de
conhecimentos singulares. Nada mais é que uma educação depositária que
estabelece uma relação passiva diante da produção do conhecimento, pouco
se importando com os elementos trazidos pelos alunos.
As estratégias apontadas por Guattari (1990) nos mostram que as lutas
de poder e a constituição de subjetividades acontecem dentro das estruturas
capilares de nossa existência. Por isso, qualquer ambiente pode ser usado
como um espaço de discussão sobre as práticas adotadas e sobre as
possibilidades de atuação. É nos embates do cotidiano e na circulação
coloquial de saberes que o poder é exercido.
Enquanto Foucault (2005) fala de “micropoderes”, Guattari (2000) fala
de “micropolíticas”, atentando-nos para a possibilidade de resistência nas
relações do cotidiano. A luta acontece em dimensões palpáveis, faz parte de
nossa vida, diante de padrões instituídos, vistos como naturais.
É nas práticas, que estão ao nosso alcance, em nosso campo de
atuação, que a “revolução molecular” proposta pela micropolítica acontece.
Essa revolução pode produzir a ruptura com os “sistemas de modelização” e
criar novas formas de subjetividade, capazes de residir em universos
sustentáveis e conectados ao coletivo. Somente a reapropriação de todo o
arsenal de coisas produzidas e reproduzidas pode nos trazer confiança para
criarmos sobre as referências absorvidas e ressignificá-las, não apenas como
meros objetos de consumo, mas como objetos subjetivadores que portam
sentidos.
A relação entre a sociedade e a escola precisa ser pensada como um
processo indispensável para uma educação que dê conta da problemática de
um mundo transbordado de objetos e produtor de novas subjetividades. A
escola precisa se debruçar sobre os dispositivos de produção de subjetividade,
buscando a re-singularização individual ou coletiva, ao invés de agir no sentido
de uma reprodução do mesmo. A singularização da subjetividade se faz
associando e reunindo dimensões de diferentes espécies, ou seja, não indo
contra os modelos produzidos, mas sim transitando por eles.
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