-
DAGMA CIBELE EID
Miguel Llobet: Canciones Catalanas para
violo (1899-1927)
So Paulo
2008
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica, rea de
Concentrao Processos de Criao Musical, Linha de Pesquisa Tcnicas
Composicionais e Questes Interpretativas, da Escola de Comunicaes e
Artes da Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para
obteno do Ttulo de Mestre em Artes, sob a orientao do Prof. Dr.
Edelton Gloeden.
-
i
DAGMA CIBELE EID
Miguel Llobet: Canciones Catalanas para
violo (1899-1927)
So Paulo
2008
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica, rea de
Concentrao Processos de Criao Musical, Linha de Pesquisa Tcnicas
Composicionais e Questes Interpretativas, da Escola de Comunicaes e
Artes da Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para
obteno do Ttulo de Mestre em Artes, sob a orientao do Prof. Dr.
Edelton Gloeden.
-
ii
AGRADECIMENTOS
minha me Elisa Eid por ter me encaminhado aos estudos de msica
na
minha tenra idade e ao meu pai, Jorge Eid, por ter proporcionado
boas condies para
me dedicar aos meus estudos.
Aos meus professores de violo Mrcia Braga, Edson Lopes, Paulo
Porto
Alegre e Gicomo Bartoloni pela confiana no meu trabalho e
incentivo.
alaudista e professora Carin Zilling por sua orientao e
incentivo nos
meus estudos de alade.
Ao violonista e Dr.Robert Phillips por compartilhar sua pesquisa
a respeito
do compositor abordado aqui.
Ao violonista italiano Stefano Grondona, cujo contato
proporcionou dados
valiosos que me motivaram a prosseguir a pesquisa.
violonista e amiga Ana Maria de Souza pela efetiva ajuda na
formatao e
realizao deste trabalho.
Ao colega Gedson Bravim pela troca de informaes valiosas que
resultaram
na idia deste projeto.
Ao colega coordenador da rea de violes do Conservatrio Dramtico
e
Musical de Tatu Adriano Paes por seu apoio.
professora Maria Tereza Bryg por sua orientao na lngua inglesa e
ao
catalo Jose Portoles por sua preciosa ajuda na aquisio de
materiais essenciais para a
pesquisa e na reviso dos textos em catalo.
Ao meu orientador Edelton Gloeden pela pacincia e ateno dedicada
a este
projeto.
-
iii
O, Llobet, lleno de sol, amor de Espana!
Artista lleno de prpura y de oros!
Guitarra que da el clavel, la flor extraa
Regada por la sangre de los toros!
Flor de gitanos, flor que amor recela!
Amor de sangre y luz, pasiones locas!
Flor que transciende a clavo y a canela,
Roja cual las heridas y las bocas!
(Rubn Daro)
-
iv
RESUMO
As Canciones Catalanas para violo de Miguel Llobet pertencem ao
campo
do folclore musical catalo, cuja tradio milenar. Portanto,
buscamos na histria da
msica e na etnomusicologia catal as informaes a respeito da
origem de tais
melodias usadas na obra do compositor catalo. Ao penetrarmos
neste universo
localizamos os textos inseridos nas melodias que ajudam a
reconhecer o significado
delas, estabelecendo assim novos elementos de interpretao para
esta coleo de
verses de canes tradicionais catals para violo. Consultamos o
cancioneiro
tradicional catalo e encontramos as melodias em sua forma
primitiva, junto com seus
textos em catalo, que foram transcritos e traduzidos para o
portugus.
A pesquisa das Canciones Catalanas enfatiza que tais
transcries
representam um marco para a literatura do violo do sculo XX. Os
procedimentos
tcnicos e expressivos usados nestas transcries contriburam para
o instrumento entrar
numa nova fase idiomtica e influenciou outros compositores a
escreverem para violo.
Analisar o papel das canes tradicionais catals no incio do sculo
XIX possibilitou
traar a personalidade artstica multifacetada de Llobet cuja
biografia final ainda no se
encontra publicada. Os resultados que encontramos ajudam a
posicion-lo como uma
figura extremamente importante para histria do violo. No
entanto, sua produo foi
sufocada por uma srie de tragdias ocasionadas pela guerra civil
espanhola e algumas
obras foram esquecidas.
O reconhecimento progressivo do legado deixado pelas atividades
de Llobet
tem gradativamente fomentado uma pesquisa que vem resgatando
tais obras. Portanto,
esta dissertao pretende dar sua contribuio neste processo a fim
de completar um
captulo essencial na histria do violo.
-
v
ABSTRACT
The Canciones Catalanas for the guitar by Miguel Llobet belong
to the
Catalan folklore music area, whose tradition is millennial.
However we search in the
history of music and Catalan etnomusicology the information
about the origin of such
melodies used in the works of the Catalan composer. When we
enter this universe, we
find the texts which are inserted in the melodies that help
recognise the meaning of
them and establish new elements of interpretation for the
collection of Catalan
traditional songs for the guitar. We have consulted the Catalan
traditional Cancioneros
and we have found the melodies in their primitive forms with
their texts in the Catalan
language transcribed and translated into the Portuguese
language.
The research about Canciones Catalanas emphasizes the statement
that they
are a mark in the literature of the guitar from the twenthieth
century. The technical and
expressive procedures used in these transcriptions contributed
towards the entrance of
the instrument into a new idiomatic phase and influenced other
composers to write for
the guitar. To analyse the function of the traditional melodies
in the beginning of the
nineteenth century, propitiates the possibility to trace Llobets
manifold artistic
personality, whose final biography has not been published yet.
The results helped to
give him a position as an extremely important figure for the
history of the guitar.
However, his production was stifled by several tragedies brought
about by the Spanish
Civil War and some of the works fell into oblivion.
The progressive recognition of the legacy left by Llobets
activities has been
gradually promoting a research and thus rescuing his works.
However, the present
dissertation intends to give a contribution to this process so
as to complete an essential
chapter in the history of the guitar.
-
vi
SUMRIO
Introduo..........................................................................................................................1
1- REFERNCIAS HISTRICAS DA CANO TRADICIONAL CATAL ......6
2-MIGUEL LLOBET: SEUS PREDECESSORES E CONTEMPORNEOS ......26
3-MIGUEL LLOBET Y SOLS (1878-1938)
............................................................42
4 MIGUEL LLOBET E A TOTALIDADE DE SUA
OBRA..................................65
5- CANCIONES CATALANAS ASPECTOS HISTRICOS, SOCIAIS E
TRADUO PARA O PORTUGUS
.......................................................................76
5.1 MIGUEL LLOBET: CANCIONES CATALANAS
.................................................87
5.1.1.Plany
........................................................................................91
5.1.2. La filla del marxant (1899)
.....................................................93
5.1.3. El testament dAmelia (1900)
.................................................98
5.1.4. Can del Lladre (1900)
.......................................................107
5.1.5. El Rossinyol (1900)
..............................................................115
5.1.6. El fill del rei (1900)
..............................................................120
5.1.7. Lhereu Riera (1900)
............................................................125
5.1.8. El mestre (1910)
...................................................................133
5.1.9. La nit de nadal (1918)
..........................................................146
5.1.10. La filadora (1918)
..............................................................153
5.1.11. La pastoreta (1918)
............................................................157
5.1.12. La Pres de Lleida
(1920)...................................................163
5.1.13. El Noi de la Mare (s.d.)
......................................................169
5.2 CANCIONES CATALANAS RECM-DESCOBERTAS
....................................174
5.2.1. LAnunciaci
........................................................................180
5.2.2. Lhostal de la Peira
..............................................................183
-
vii
5.3 OUTROS COMPOSITORES E SUAS ABORDAGENS
...................................187
5.3.1. Els tres tambors
....................................................................191
5.3.2. El cant dells ocells
................................................................199
5.3.3. El bon caador
.....................................................................
209
5.3.4. La ploma de perdiu
..............................................................
215
5.3.5. Els Estudiants de Tolosa
...................................................... 219
5.3.6. Muntanyes del Canig
..........................................................222
5.3.7. Catarina dAli
....................................................................
227
5.3.8.La gata i el belitre
.................................................................231
Concluso
...............................................................................................................235
Referncias Bibliogrficas
.....................................................................................
238
ANEXOS
...............................................................................................................
246
ANEXO A Partituras
...........................................................................................247
ANEXO B Entrevista com Stefano Grondona
....................................................270
ANEXO C Programas de Recital realizados no II Encontro
Internacional de
Violonistas de Tatu
................................................................................................273
-
1
INTRODUO
A pesquisa acerca das Canciones Catalanas harmonizadas por
Miguel
Llobet (1878-1938) teve incio quando entramos em contato com a
msica da Idade
Mdia e do Renascimento atravs dos estudos de alade, da
experincia adquirida na
participao de conjuntos de msica antiga e na atuao no ensino e
execuo de violo.
O trabalho com a msica dos Cancioneiros Ibricos levou-nos a
temas
antigos, que remontam h sculos, e por fim, ao Cancioneiro
Catalo, cuja tradio
milenar.
Outra forte influncia que nos aproximou da memria catal foi a
audio do
grupo catalo La Capella Reial de Catalunya da gravao intitulada
Canons de la
Catalunya Mil-lenria, Planys & Llegendes (Astre, 1977), que
nos conduziu a uma
outra viso da interpretao da msica tradicional catal. O
repertrio nos chamou a
ateno, pois inclua temas utilizados pelo compositor e violonista
catalo Miguel
Llobet (1878-1938) em suas Canciones Catalanas, estudadas
durante a nossa formao
musical como violonistas, tanto na execuo como no ensino delas.
Isso nos remeteu a
um interesse em desvendar este passado histrico e a procurar
respostas para a
interpretao deste repertrio, tanto para prtica num conjunto de
msica antiga quanto
na execuo destas verses romnticas para violo.
As Canciones Catalanas de Llobet tornaram-se obras consagradas
no
repertrio violonstico, tanto para a execuo em recitais quanto
para a formao dos
violonistas. Tal coleo elaborada no incio do sculo XX, poca
decisiva para a
afirmao do violo, que ainda no ocupava seu espao no cenrio
musical, chegou a
ser gravada tanto de maneira fragmentada quanto integralmente
por importantes
msicos como Andrs Segovia, Julian Bream, John Williams, David
Russel e Stefano
-
2
Grondona, entre outros. Em nenhuma destas gravaes h a citao das
letras nem
mesmo seus significados. Conhecer seu texto contribui, no mnimo,
para a definio de
novos elementos de interpretao.
Um dos fatores que nos chamou a ateno foi justamente o rico
contedo do
texto das canes que esto ausentes nas publicaes e nos registros
que envolvem o
repertrio violonstico e, em particular, os arranjos de
Llobet.
Dividimos nosso trabalho em cinco captulos:
No captulo 1 trataremos de um breve histrico da cano, onde
delinearemos alguns elementos que vieram, mais tarde, a
influenciar as canes
utilizadas na obra de Llobet. Quando estudamos a msica antiga,
reconhecemos alguns
temas nos Cancioneiros do sculo XVI, no trovadorismo, e at mesmo
no canto
litrgico. Inclumos neste captulo, o movimento de msica nacional
espanhola no
sculo XIX que marcou presena no renascimento da cultura do pas,
atravs dos
trabalhos de intelectuais catales, onde o emprego da cano
popular bastante
valorizado. O violo ressurge, da mesma maneira, pelas mos de
violonistas catales,
que reunidos com violonistas de outras regies da Espanha,
criaram um movimento
semelhante, utilizando canes populares.
No captulo 2, comentaremos a gerao de violonistas catales que
precedeu
Llobet e que ajudaram a construir a importante escola de violo
moderna, bem como
seus contemporneos. Acreditamos que o conjunto da obra de Llobet
foi decisivo para a
evoluo da tcnica violonstica, mas esta figura to importante
ainda no teve seu
destaque merecido dentro do cenrio musical. Portanto, reservamos
um captulo, o
nmero 3, para comentar a personalidade marcante e a importncia
da obra de Llobet,
especialmente as Canciones Catalanas, bem como as possveis
causas da perda de
algumas obras.
-
3
O captulo 4 abordar a questo da totalidade da obra de Llobet.
Os
catlogos realizados precisam ser revistos, pois recentemente,
foi descoberto um
arquivo com obras inditas. Entre elas, novas transcries de canes
tradicionais
catals, aumentando assim o nmero das treze canes j editadas. O
responsvel pela
pesquisa indita o violonista italiano Stefano Grondona (1958),
que registrou estas e
outras obras inditas em recentes gravaes.
O material explorado por Llobet nesta coleo pertence ao terreno
da
tradio folclrica catal, de origem bastante antiga. As canes
originaram-se de
maneira espontnea e annima, e foram transmitidas atravs da
tradio oral. Graas ao
poder que a msica exerce sobre a memria coletiva, as melodias
das canes
tradicionais puderam ser conservadas no decorrer dos sculos. O
pesquisador que se
ocupa em registrar o texto de uma cano ajuda a preservar,
portanto, a msica
tradicional, pois foi exatamente graas ao fato da msica estar
intimamente ligada
poesia que as canes populares sobreviveram. De fato, a msica
ajuda-nos a lembrar
uma poesia na ntegra quando cantarolamos a melodia inserida em
seu texto e somos
remetidos a ele.
Apresentar o texto das canes torna-se indispensvel para formar o
corpo
musical que estamos propondo, de texto e melodia indissociveis,
para incorporar o
significado que tem o folclore para a cultura nacional de
qualquer povo. Assim, no
captulo 5, comentaremos alguns aspectos histricos e sociais
ligados ao folclore catalo
suas lendas, histrias, costumes, bem como a traduo das letras
das melodias para o
portugus. Ao abordar as letras das melodias, inclumos a
transcrio monofnica das
canes na sua forma original.
Apesar do folclore catalo no ser difundido entre outras
culturas, incluindo
a nossa, e de no termos, a priori, um compromisso de conhec-lo a
fundo, quando
-
4
lidamos com estes temas em quase toda a nossa vida profissional,
sentimos a
necessidade de penetrar neste universo.
Temos o nosso prprio folclore musical para ilustrar o quanto
tais melodias
folclricas esto presentes na alfabetizao infantil, no cotidiano
de pessoas de diversas
classes sociais e inseridas, inclusive, na obra de compositores
eruditos brasileiros
consagrados.
Examinando o material bibliogrfico para este trabalho, podemos
estabelecer
certo paralelo com o que vimos em Heitor Villa-Lobos
(1887-1959), que utilizou as
msicas do folclore brasileiro nos seus cantos orfenicos, cuja
finalidade tambm era
social, e para compor suas grandes obras. Procuraremos analisar,
no caso de Llobet, a
finalidade de usar melodias folclricas em sua obra para
violo.
O repertrio de canes folclricas presentes na obra de
Villa-Lobos
exemplifica o quanto a letra est associada sua melodia e
presente na memria
coletiva de um povo que valoriza sua identidade. De fato, quando
ouvimos a obra
instrumental das Cirandas1 de Villa-Lobos, das quais a canes
populares Terezinha de
Jesus, O Cravo Brigou com a Rosa, Fui no Itoror, Nesta Rua e A
Canoa Virou (1926)
fazem parte, inevitvel no cantarolarmos, mesmo que mentalmente,
as letras de suas
melodias.
A partir de uma reflexo sobre a importncia de pesquisar as
letras das
melodias catals, e reuni-las num trabalho para posterior
consulta, foi o que nos
motivou a procurar as canes que Llobet escolheu para suas verses
em coletneas de
msica folclrica espanhola, especialmente a catal. O trabalho de
Joan Amades2,
musiclogo catalo, serviu de base para a pesquisa, pois constitui
o trabalho mais
1 VILLA-LOBOS, H. Coleo de 16 peas para piano sobre temas. Rio
de Janeiro: Editora Arthur Napoleo Ltda, 1968 (partitura). 2
AMADES, J. Folk-lore de Catalunya, canoner. Barcelona: Editorial
Selecta, 1951.
-
5
importante e completo sobre o assunto, citado em diversas
publicaes de msica
tradicional catal.
Llobet explorou temas populares antigos de forma inusitada,
modernizando-
os e tornando-os extremamente importantes para o instrumento
entrar numa nova fase
idiomtica. Portanto, esta pequena coleo de treze peas tem uma
grande importncia
dentro do repertrio violonstico, sendo muito executadas e
gravadas pelos mais
importantes violonistas e fazendo parte da formao dos estudantes
de violo de toda a
parte.
Citaremos, ainda, outros compositores e violonistas importantes
para o
posicionamento do violo, que tambm exploraram temas tradicionais
catales,
seguindo o modelo deixado por Llobet.
A msica que recorre a tais temas ficou registrada na histria do
violo. No
entanto, os violonistas em geral no identificam a sua origem e
no conhecem o texto
original das canes catals encontradas na msica antiga. Portanto,
a pesquisa das
letras e sua traduo visam oferecer elementos para uma melhor
compreenso dos temas
explorados por Miguel Llobet.
-
6
1. REFERNCIAS HISTRICAS DA CANO TRADICIONAL
CATAL
A Espanha um pas de diversas culturas, com caractersticas
diferentes em
cada regio. A variedade de estilos musicais resulta em
diferentes aspectos da cano
popular espanhola, sendo necessrio delimitar tais diferenas
regionais, em funo dos
diversos grupos tnicos que se estabeleceram na Pennsula Ibrica
ao longo da histria.
Muitos adotam o modelo musical da regio andaluza o flamenco -
para
exemplificar a cano popular espanhola, esquecendo-se e relegando
a um segundo
plano outras modalidades cancionsticas como a galega, a
asturiana, a vasca, a
salmantina, a burgalesa, e finalmente, a catal, objeto do nosso
estudo.
A msica tradicional da Catalunha se distingue da msica
tradicional da
regio andaluza, por sua distinta colonizao3, no tendo tanta
influncia dos cantos
carregados de lamentos vindos da cultura rabe, embora alguns
elementos contidos na
tradio musical espanhola s vezes se confundam. Notamos isso ao
considerar os
primeiros documentos musicais da Espanha, encontrados dentro da
igreja.
A Catalunha, liberada do julgo mulumano, adotou o rito romano em
seu
repertrio litrgico, mas alguns cdices monsticos catales do sculo
XI conservam
traos da cultura rabe, indicando assim possveis ocorrncias de
elementos rabes na
msica litrgica desta regio (LIVERMORE, 1974, p. 69).
Os elementos populares, por sua vez, muitas vezes se confundem
com os
elementos religiosos. A msica de carter popular se associava em
algumas ocasies a
certos atos relacionados com o culto religioso. Podia
influenciar a confeco das missas,
3 Sobre o tipo distinto de colonizao que a Catalunha sofreu,
vale citar que durante meados do sculo XII, os catales foram
chamados de los francos, no poema de El Cid, devido influncia
francesa na regio (DUFOURCQ, p. 175).
-
7
e muitas vezes letra e msica eram tiradas de fontes populares
que tinham relao direta
com a dana. A dana era praticada tanto nos trios das igrejas,
quanto em seu interior
(SUBIR, 1953, p. 88).
A tradio oral estava fortemente arraigada implantao do canto
litrgico.
Os monges sabiam de memria a estrutura dos ofcios religiosos, de
maneira que, assim
como as melodias populares, eram de extenso pequena e de fcil
memorizao. A
difuso dos cantos litrgicos acontecia durante as peregrinaes
religiosas feitas pelos
fiis, onde o povo tinha a oportunidade de cantar e danar, dando
origem s canes de
traos manifestadamente populares.
A influncia do canto gregoriano se manifesta de maneira muito
forte na
cano catal (ANGLS, 1954, p. 421), e pouco em outras regies da
Espanha. Em
contrapartida, o uso dos sistemas modais dentro do sistema
diatnico, que foram
gradualmente cromatizados pela interveno das escalas orientais
pouco influenciou a
cano tradicional catal.
Segundo a afirmao de vrios especialistas, a cano popular uma
das
manifestaes mais antigas da cultura popular. O musiclogo
Francesc Baldell (1887-
1977) comenta a influncia da msica litrgica na cano popular,
como veremos
efetivamente no captulo que descreve as canes. O povo, que
assistia s funes
religiosas dos grandes monastrios - onde era executado o canto
gregoriano - assimilava
suas melodias e as transformava numa nova manifestao artstica. A
nica influncia
que a populao recebia vinha da msica ouvida na igreja (BALDELL,
1926, vol. 2,
p. 357).
Os monastrios tiveram participao definitiva na difuso da msica
na
Catalunha, e suas relaes com os grandes centros litrgicos
franceses levam alguns
-
8
tericos a afirmar que a histria da msica na Catalunha pertence
mais histria da
Europa que da Espanha (DUFOURCQ, 1965, vol. 1, p. 176).
Santa Maria de Ripoll, um monastrio beneditino fundado em 888
uma
referncia para a histria da cultura musical catal. Trata-se de
um grande centro
musical onde se desenvolveram as transformaes da cano
caracterizada por alguns
elementos populares. Suas relaes culturais com outros
monastrios, especialmente os
da Frana, foi uma das causas do florescimento artstico da msica
na Catalunha. No
que se refere produo musical, identificam-se nos seus cdices, a
influncia dos
monastrios franceses de Fleury, de Saint Germain des Pres, de
Cluny, Moissac e Saint
Martial de Limoges (ANGLS, 1954, vol. 2, p. 1888). Os monges
beneditinos no
monastrio de Ripoll inventaram, no sculo X, uma notao musical
neumtica tpica
conhecida como notao catal, cujos traos recordam os neumas
mozrabes (figura 1).
Este sistema de notao propagou-se por vrias regies da Catalunha,
chegando a
ultrapassar os Pirineus, penetrando at na Frana, tal a fora da
cultura musical da
escola de Ripoll (DE LA CUESTA, 1983, p. 225).
A partir do sculo XIII, surgem outros monastrios, e com isso,
a
possibilidade de criar e conservar mais cdices.
O monastrio de Las Huelgas (Burgos), fundado por Alfonso VIII
de
Castilla entre os anos 1180-1187, foi um centro musical de
primeira ordem, como
podemos ver pelo clebre cdice musical com polifonia religiosa do
sculo XIII - o
Cdex Musical de las Huelgas, uma das antologias mais ricas da
msica medieval
europia. Trata-se de uma coleo de 186 obras: 28 organa para
missa, 31
benedictamus, 31 prosas, 59 motetes, 32 conductus e 1 credo (o
mais antigo de seu
gnero).
-
9
Figura 1. Notao catal criada no sculo X
Como veremos adiante, uma das canes usadas nas adaptaes para
violo
de Miguel Llobet, possui uma melodia que se assemelha com uma
das melodias que
figura neste cdice de Burgos (LIVERMORE, 1974, p. 81). Portanto,
podemos supor
um intercmbio tambm entre as escolas monsticas de Burgos e
Ripoll em relao
cultura musical.
-
10
Ainda comentando a importncia dos monastrios na cultura musical
catal,
inserimos o monastrio de Montserrat situado na montanha que lhe
d o nome, a 35 km
da capital Barcelona. Exerce profunda atrao no povo, que por
sculos tem subido
montanha em peregrinao. Tambm representa a primeira escola de
msica de toda a
Europa, de onde saiu um bom nmero de maestros que ocuparam
importantes posies
na Pennsula Ibrica. Seu antigo e valioso arquivo musical
desapareceram no sculo
XIX por ocasio da invaso das tropas napolenicas (1811). O
documento musical mais
antigo conservado no monastrio o Libre Vermell de Montserrat,
chamado assim
devido cor da capa que recebeu ao ser recuperado e encadernado
com uma capa
vermelha.
Trata-se de uma coleo de cantos e danas religiosos dos sculos
XIII e
XIV em homenagem santa padroeira da Catalunha a virgem de
Montserrat. Suas
melodias foram concebidas com a finalidade de edificar os
peregrinos que tinham que
subir 2.910 degraus para ver a virgem negra a moreneta -
encontrada
milagrosamente nas montanhas. Tal circunstncia faz das canes
contidas no Libre
Vermell um conjunto de melodias populares, pois foram cultivadas
em ambiente
domstico, fora da igreja, apesar de seu tema religioso.
So dez melodias oito com texto em latim (O Virgo Splenders,
Stella
Splenders, Laudemus Virginem, Cuncti Simus, Polorum Regina,
Maria Matrem,
Splenders Ceptigera e Ad Mortem Festinatus) e duas com texto
catalo (Los Set Goyts e
Imperaytrix de la Ciutat Joiosa).
Los Set Goyts4 uma dana em crculo, que possivelmente deu
origem
popular sardana5 e consequentemente influenciou as canes
populares posteriores,
4 Goyts ou goigs (gozos) so manifestaes tpicas catals e
pertencem ao terreno da msica popular. Possuem uma sucesso de
estrofes (cobles) e um estribilho (refrany) que se repete ao final
de cada uma delas. Sua finalidade louvar divindades religiosas,
ocasio intimamente ligada dana. Esta melodia representa a mais
antiga do gnero, que foi usado por diversos compositores durante os
sculos seguintes.
-
11
inclusive algumas que estudaremos na pesquisa. Outro aspecto
peculiar nesta coleo,
que o mesmo povo que danava durante a noite no monastrio de
Montserrat diante do
santurio da virgem, danava durante o dia em praa pblica. Tal
fato comprova como
os elementos populares podiam conviver no ambiente religioso.
Desta maneira, entre os
variados textos musicais encontramos uma dana com um ttulo em
seu cabealho:
Ballada dels goigs de Nostra Dona en vulgar cathalan, a ball
rodon (Baile dos gozos
de Nossa Senhora em catalo vulgar, em baile de roda) (SUBIR,
1953, p. 88).
5 Dana tpica da Catalunha na qual um grupo rene-se ao ar livre,
formando uma roda. As pessoas entram livremente no crculo de
bailarinos e so integradas pelos outros sardanistas. Participam
todos que tm interesse nesta espcie de baile social (BUADES, 2006,
p.269). A sardana pode se apresentar como sardana llarga com grande
quantidade de bailarinos e sardana corta, sem grande acmulo de
pessoas. A banda que tradicionalmente acompanha a sardana chamada
de cobla.
-
12
Imperaytrix de la Ciutat Joiosa um canto de contemplao virgem
que
significava, para os peregrinos, o reconforto e a absolvio para
executarem a ltima
melodia Ad Mortem Festinatus, que constitui uma dana de traos
profanos a dana da
morte (LIVERMORE, 1974, p. 82). Algumas melodias inseridas no
Libre Vermell j
indicam o processo de desvinculao da igreja, trazendo elementos
populares em seu
texto e melodia, uma vez que algumas delas eram destinadas
dana.
Esta coleo de melodias populares, com tema religioso, marca
o
aparecimento da cano popular, como percebemos no comentrio de D.
Gregrio
Estrada: O Livre Vermell de Montserrat constitui uma das
amostras mais antigas e
impressionantes do folclore medieval europeu.(RUBIO, 1983, p.
109)
As Cantigas de Santa Maria so uma coleo de canes mondicas em
homenagem Maria, escritas pelo rei espanhol Alfonso X, o Sbio
(1252-1284) e seus
trovadores, copiadas entre 1275 e 1280. Evoca uma antiga tradio
espanhola a de
entoar temas com acompanhamento de instrumentos a fim de contar
uma histria que
recitavam os chamados romances6. As 417 canes possuem melodias
de vrios tipos:
trovadorescas, romances velhos, e aires religiosos cantados por
peregrinos em suas
procisses (LIVERMORE, 1974, p. 73). mais uma amostra de que
elementos
religiosos e populares se confundiam, pois possui uma lrica
religiosa com texto vulgar.
A maior parte das cantigas se baseia em fatos do tempo do rei
Afonso X e
sua famlia, em lendas locais e principalmente anedotas
milagrosas. Outras narram
histrias lendrias de carter universal, ento muito em voga na
Europa. No
encontramos nenhuma cantiga com texto catalo, mas como veremos
adiante,
encontramos elementos que vieram a influenciar, mais tarde, a
cano tradicional catal.
6 Forma tradicional na Espanha, influenciada pelo canto
gregoriano e pela lrica trovadoresca, que usava canes para narrar
estrias criadas pelo povo e continuadas pelos msicos profissionais
no sculo XIV (BARGALL, 1983, p. 38).
-
13
-
14
O El Cant de la Sibil-la era muito praticado na Catalunha,
sobretudo no
monastrio de Ripoll. Primeiramente era cantado em latim e com
melodia gregoriana,
no sculo X, e depois, no sculo XII, se cantava com texto vulgar.
Esta coleo de
msica, cujo repertrio tradicional era usado para certas
festividades, metade litrgica,
metade popular (DUFOURCQ, 1965, vol. 1, p. 175). Tal prtica
ilustra bem como o
profano e o religioso conviviam bem dentro do contexto histrico,
uma vez que o canto
gregoriano e outros elementos autnomos se fundiram para formar
linhas meldicas
medievais.
Ainda na Idade Mdia, encontramos algumas melodias de carter
popular
que surgiram a partir de um movimento realizado por msicos
ambulantes, que
difundiam sua arte por diversas regies da Europa.
Na primeira metade do sculo XII surgem no sul da Frana os
trovadores,
poetas-msicos, que cantam seus versos em lngua doc (dialeto com
o qual a Catalunha
manteve importantes relaes lingsticas) com importantes
ramificaes na Catalunha
lugar preferido de muitos trovadores, em cujas cortes
encontraram ajuda efetiva - o
que favoreceu a criao de canes por parte de seus prprios
habitantes7 (DE LA
CUESTA, 1983, p. 291). Os trovadores se ocupavam de cantar os
chamados romances,
gnero incorporado pela cano e recorrente em diversas melodias
catals. Encontramos
uma melodia trovadoresca muito semelhante a uma cano tradicional
catal, como
veremos adiante.
As fontes que temos das obras dos trovadores, a maioria de
autoria annima,
so os Cancioneiros.
7 Algumas msicas que sobreviveram so de trovadores catales como
Pon de la Guardia (1154-1188), Guillem de Bergued (1138-1192),
Guillem de Cabestany (1212), Guillem de Cervera (1259-1285), Huguet
de Mataplana (1185-1213), Formit de Perpin, Guillem Ramn de
Gironella, Pere Salvatge, Berenguer de Palou (1164) e Pon dOrfat
(1184-1246).
-
15
Os cancioneiros ibricos mais conhecidos so: Cancionero Musical
de
Montecassino (1480-1500), Cancionero Musical de la Colombina
(1490), Cancionero
Musical de Barcelona (1500-32), Cancionero Musical de Palcio
(1505-1520),
Cancionero Musical dElvas (1550), Cancionero de Upsala (1556),
Cancioneiro
Musical de Medinacelli (1569), Romances y letras a tres voces
(1600), Cancionero
Musical de Casanatense (1620), Cancioneiro de Segovia,
Cancionero Musical de
Sablonara (1625), Cancionero de Valladolid (1650).
So coletneas de msica polifnica na forma de villancicos8, o que
denota o
desenvolvimento da polifonia de maneira contundente, j no sculo
XVI. Os temas
contidos nestes cancioneiros so em sua maioria profano, mas
encontramos tambm
temas religiosos.
Rafael Mitjana (1869-1921) descobriu o Cancioneiro de Upsala
conservado
na Biblioteca da Universidade de Upsala, na Sucia editado no
Mxico em 1944 - uma
coleo de 54 villancicos, na maioria com temas profanos, e poucos
religiosos,
intitulada Villancicos de diversos autores a dos y a tres y a
quatro y a cinco bozes
agora nuevamente corregidos (Venice, 1556), mais conhecida com o
nome Cancioneiro
de Upsala (Cancionero del Duque de Calabria). Neste cancioneiro
figuram quatro
canes com texto catalo no. 23, no. 24, no. 35 e no. 45. A
primeira, no. 23 utiliza
em seu texto a poesia de Ausias March e foi usada posteriormente
pelo mestre catalo
Felipe Pedrell (cuja importncia destacaremos a seguir) em sua
obra de teatro lrico
espanhol Los Pirineus (MITJANA, 1944, p. 67).
8 Forma potica e musical espanhola derivado do poema lrico
medieval que era musicado para dana e ligado a temas rsticos e
populares, extensivamente cultivado na msica secular polifnica nos
sculos XV e XVI, aparecendo anteriormente nas Cantigas de Santa
Maria. Possui caractersticas semelhantes cano popular, como a forma
ABBA, o refro e a base em temas poticos do cotidiano. O villancico
semelhante ao romance e cano, possuindo cada um apenas tamanhos
diferentes de refro. No sculo XVII, o villancico religioso
tornou-se mais difundido e a forma popular foi deslocada para o
romance. A partir do sculo XIX, villancico significa simplesmente
cano de natal.
-
16
Outro villancico com texto catalo o de no. 24:
-
17
No villancico de no. 45 encontramos um tema religioso:
A polifonia profana sobressai tanto quanto a msica religiosa na
Catalunha,
terreno em que os nomes de Joan Brudieu (1520-1591) e Mateo
Flecha, o Velho (1483-
1553) figuram entre os primeiros compositores catales a escrever
madrigais9 de carter
popular.
Joan Brudieu foi maestro de capela e publicou uma coleo de
dezesseis
madrigais profanos no De Los Madrigales del muy reverendo Joan
Brudieu maestro de
capilla dela sancta yglesia de La Seo de Urgel a quatro bozes
(Barcelona, 1585). Seus
9 Partituras dos sculos XVI e XVII sobre versos seculares.
-
18
temas, na maioria, so populares e os textos de dois deles so
baseados na poesia do
poeta catalo Auzias March, citado acima.
Mateo Flecha, o Velho tem uma produo religiosa que se perdeu,
mas sua
Ensaladas espcies de poutpourris de madrigais integrados com
diferentes
elementos foram publicadas em Praga (1581) pelo seu sobrinho e
homnimo Mateo
Flecha, o Jovem (1520-1604), as quais foram adaptadas por alguns
vihuelistas.
Uma das melodias do Cancionero de Upsala a no. 35 - atribuda a
Mateo
Flecha no livro Orphenica Lyra (Lira de Orfeu-1554) do
vihuelista Miguel de Fuenllana
(RUBIO, 1983, p. 91).
O trabalho dos vihuelistas na Espanha digno de nota, pois se
trata de um
dos fenmenos musicais mais importantes para a msica instrumental
polifnica do
sculo XVI de toda a Europa e foi publicado na forma de livros e
tratados. Tais
publicaes incluam obras de outros msicos espanhis, e nelas era
evidente o hbito e
-
19
arranjar e entabular as obras vocais. Tal repertrio polifnico,
que teve sua fase urea no
sculo XVI, foi fortemente explorado e estavam presentes nos
livros de vihuela10 - um
dos instrumentos responsveis por sua difuso. Os principais
tratados de vihuela e as
composies destinadas a este instrumento contm uma infinidade de
motivos
tradicionais villancicos, romances e canes populares da poca so
tratadas
magistralmente por Luys Miln (Valencia, 1535-36), Luys de Narvez
(Granada, 1538),
Alonso de Mudarra (Sevilla, 1546), Enrquez de Valderrbano,
(Valladolid, 1547)
Miguel de Fuenllana (Sevilla, 1554) e Diego Pisador (Salamanca,
1552). Poderamos
citar muitssimos autores que se abasteceram das fontes de msica
tradicional.
No sculo XVII a vihuela cedeu lugar guitarra11, que passou a ser
usada
para acompanhar canes e danas populares (PUJOL, 1960, p.
240).
O primeiro tratado sobre guitarra espanhola foi publicado em
1586, em
Barcelona, pelo mdico e msico catalo Joan Carles Amat: Guitarra
espaola y
vandola em dos maneras de guitarra castellana y cathalana de
cinco rdenes12. Este
breve mtodo, em catalo, trata de modo especial de melodias
populares e nele
encontramos instrues bastante precisas para afinar a guitarra e
para realizar
acompanhamentos (figura 2).
10 O termo vihuela designa um instrumento musical de 6 cordas,
das quais 5 so duplas, em forma de oito (o alade tem a forma de
pra) que pode ser de arco, ou de mano, afinada como o alade. Na
Idade Mdia a vihuela de mano era dedilhada e a vihuela de pua com
plectro. A tablatura era o meio de notao grfica da msica para
instrumentos de cordas dedilhadas do sculo XVI. Existem basicamente
trs tipos de tablaturas: a italiana, a francesa e o sistema
alfabeto. A maior parte da msica publicada na Espanha usava o
sistema italiano, que consistia em um pentagrama com cada linha
representando cada ordem do instrumento e o traste a ser usado era
indicado com nmeros sobrepostos nas linhas. A vihuela pode ser o
instrumento mais antigo que pode ser relacionado com violo. Modo de
execuo ponteado. 11 Semelhante no formato com a vihuela, um pouco
menor e com afinao diferente, mais prxima ao violo e com um par de
cordas a menos do que a vihuela de seis cordas. Modo de execuo
rasgueado e ponteado. Era o instrumento preferido, junto com a
vihuela, para acompanhar o gnero romance (BARGALL, 1983, p. 137).
12 Ordenes em espanhol, ordem em portugus, course em ingls so os
termo usados para designar os pares de cordas dos instrumentos
antigos de cordas dedilhadas, com literatura escrita a partir de
1508 at o final do sculo XVIII. So eles: alades, guitarras
renascentistas, guitarras barrocas e vihuelas. As tablaturas foram
utilizadas aproximadamente at o final do sculo XVIII.
-
20
Figura 2. Tratado catalo de guitarra do sculo XVI
Os polifonistas espanhis representam a melhor fase musical da
Espanha,
nos sculos XVI e XVII. Seus trabalhos alcanaram um grande
desenvolvimento na
msica em relao a outros pases da Europa, mas depois desta fase,
houve uma
decadncia na msica espanhola13.
A decadncia da msica espanhola ocorreu nos sculos seguintes.
Enquanto
a arte musical se desenvolvia em outros pases europeus, a
Espanha estacionou at
ocorrer o renascimento da msica nacional no sculo XIX, fenmeno
chamado de
Renaixena na Catalunha. O impulso intelectual criado com este
movimento consiste,
sobretudo, numa difuso progressiva da conscincia autnoma poltica
e cultural entre 13 (...) Desde la invasin napolenica, las luchas
polticas que con frecuencia turbaban el orden nacional adormecieran
la msica autctona, y slo canciones ligeras o de carcter patritico
aparecan como tmida expresin lrica de um pueblo que haba
enriquecido otrora la msica universal (...) (PUJOL, 1960, p.
45).
-
21
os catales. A valorizao da lngua nativa, uma nova economia e a
formao de
correntes polticas prprias impulsionam tal revoluo onde figuram
importantes nomes
de intelectuais resultando no aumento da produo cultural
catal.
No campo da msica, com a liderana de Felipe Pedrell (1841-1922),
o
pioneiro da musicologia espanhola, iniciou-se o movimento
nacionalista, que buscava
na msica antiga um dos elementos da renovao da cultura
musical.
A atuao de Pedrell teve reflexos decisivos na Catalunha. O
movimento
musical ocorrido no perodo de Pedrell favoreceu a criao de uma
escola nacional - a
escola catal. Foi a mais importante da Espanha, pois o interesse
por msica no
pertencia somente a uma minoria, mas sim a quase toda a populao.
A msica coral
baseava-se na tradio folclrica e junto com a sardana inspirou a
autonomia cultural
catal. As sociedades coral envolviam todas as classes sociais,
que se dirigiam s
instituies criadas com a finalidade de divulgar o repertrio
regional. Os orfees
cumpriram seu papel social, pois eram uma grande famlia. Do
ponto de vista
musical, contribuiu de maneira decisiva para a renovao musical
espanhola. Foram
criadas novas salas de concerto, escolas de msica, o que
possibilitou o surgimento de
novos cantores (SOPENA, 1958, p. 62).
As primeiras corporaes orfenicas surgiram na Catalunha, onde a
msica
vocal florescia, abrindo terreno para ser praticada por toda a
Espanha. O iniciador do
movimento coral catalo foi Jos Anselmo Clav (1824-1874). Em
1845, dirigiu a
sociedade La Aurora - ncleo inicial que serviu de base para a
criao de outras
sociedades musicais, sobretudo, de msica coral. Llus Millet
(1867-1941), aluno de
Pedrell, fundou em 1891 o Orfeu Catal junto com os compositores
Amadeo Vives
(1871-1932) e Enrique Morera (1865-1942) que tambm fundou o
coral Catalunya
Nova (DUFOURCQ, 1965, vol. 2, p. 211).
-
22
Algumas destas instituies perduram at hoje e se ocupam ainda
em
divulgar a msica folclrica, como por exemplo, o coral Orfeo
Catal, cuja atuao foi
decisiva para o movimento nacionalista e fomentou a produo de
uma literatura
musical baseada fundamentalmente em elementos folclricos:
This choral society became the heart and the state of a genuine
artistic tradition. Whilst encouraging the performance of folksong
it also revived the great works of the Golden Age and commissioned
new choral works. The importance of vocal music to the Catalan
nationalists can be explained by their concern to preserve their
own language. It was response to the literaly renaixena (PAINE,
1989, p. 21).
Paralelamente a atividade coral, com a mesma finalidade de
valorizar a
msica folclrica espanhola, foram criados grupos de violes
aliados a outros
instrumentos da famlia de cordas dedilhadas e pinadas. Um
exemplo disso foi o
movimento das Estudiantinas, como ficou conhecido, que unia
diversos estudantes de
diversas especialidades e classes sociais. Tais agrupaes
surgiram no incio do sculo
XIX ligadas msica popular e com o tempo, sua presena nas festas
populares era
habitual14. Na sociedade formada por Clav, foi organizada uma
estudiantina que
associava guitarras (violes), mandolinas15, bandurrias16 e
outros instrumentos
populares (SUBIR, 1953, p. 651). A Estudiantina Espaola era uma
destas
agrupaes dirigida por Eugenio Arredondo. Em 1878, a Estudiantina
Fgaro, dirigida
por Domingo Granados, tocou nos principais teatros da Europa
(NAVARRO, 1993, p.
139). Em 1897, foi criada a Estudiantina Universitria, composta
por bandurrias,
alades, violinos, violes e instrumentos de percusso, dirigida
por Juan Antonio Pujol
14 Tais agrupaes j existiam em 1808, conforme um dado histrico
encontrado durante manifestaes cvicas do dia 2 de Maio, onde
homens, mulheres e crianas participavam num coral acompanhado por
guitarras e bandurrias. Junto com a guitarra tradicional se usavam
outros instrumentos (...) Em 20 de Outubro de 1892, o tenor Gayarre
foi acompanhado com a mesma formao e em 1894, um coral de Clav se
reuniu a trezentos instrumentos que formavam uma estudiantina
(NAVARRO, 1993, p. 80). 15 Instrumento da famlia do alade, caixa de
ressonncia em forma de pra e de tessitura aguda. Esteve muito em
voga no sculo XVIII, e suas quatro ordens so afinadas iguais ao
violino. Tem geralmente 16 trastes e se toca com pua. 16
Instrumento de cinco ou seis cordas duplas que se toca com plectro
com caixa de ressonncia em forma de pra com seis ou sete
trastes.
-
23
(RIERA, 1974, p. 20). Em outra regio da Pennsula, na
Universidade de Coimbra
(Portugal), onde a prtica de msica tradicional efervescia, temos
o registro de que foi
criado um movimento semelhante17 (figura 3).
O repertrio destas estudiantinas era formado basicamente por
msicas
populares, e inclua canes tradicionais catals estudadas nesta
pesquisa. No mesmo
formato, se insere o Lira Orfeu importante grupo musical do qual
Llobet foi co-
fundador - que tem papel importante em suas adaptaes de canes
catals, como
veremos adiante.
Figura 3. Estudiantina da Universidade de Coimbra
Alguns nomes que pertenceram gerao de msicos nacionalistas
como
Albeniz e Granados, exploraram abundantemente temas folclricos.
Outros nomes
usaram inclusive os mesmos que Llobet, em seus arranjos e
transcries indicando
assim e que mostram o ambiente folclrico que alimentava as
produes desta gerao.
17 NERY, R.V. Para uma Histria do Fado. Lisboa: Edio Pblico,
2004, p. 113.
-
24
Isaac Albniz (1860-1909) e Enrique Granados (1867-1916),
discpulos de
Felipe Pedrell e filhos da Catalunha, mas apesar disso,
escreveram pouca msica catal.
A obra de Albniz foi escrita principalmente para piano. O
contato com
cancioneiros ibricos (sobretudo o Cancioneiro do Palcio) e com
Pedrell resultou em
trabalhos baseados cada vez mais no folclore espanhol (GROVE,
vol. 1, p. 203),
principalmente o andaluz. Inserido neste repertrio esto algumas
peas que fazem
referncia Catalunha: para piano solo, a Sute espanhola op. 47
(1886) 2.
movimento denominado Catalua18 - e Capricho Cataln19; alm da
produo para
orquestra a Sute Popular Catalonia (1899), Escenas Sinfnicas
Catalanas (1889) e a
obra originalmente escrita para orquestra Catalua que junto com
outras obras de
msica tpica andaluza, ajudaram a dar corpo e vida para a escola
nacional.
Granados dedicou sua obra ao piano e msica vocal. Estava
fortemente
atrado tonadilla, arte espanhola do perodo clssico e aos
compositores romnticos
como Grieg, Schumann e Liszt, os quais influenciaram sua produo,
como vemos em
suas Escenas Romnticas (sem data) e a pera Goyescas (1911)
baseada em impresses
dramticas de seu pintor favorito Francisco Goya (1746-1828).
Llobet manteve contato com esses dois importantes compositores,
como
veremos mais adiante.
Albeniz e Granados exploraram, sobretudo, o folclore andaluz,
considerado,
naquele momento, a arte mais nacional da Espanha. A msica
popular andaluza, com
seus acentos caractersticos, se tornou uma grande escola musical
atravs da
sensibilidade de compositores catales. A msica catal, por outro
lado, possui outras
18ALBENIZ. I. Sute Espaola op. 47. Transcribed and Fingered for
Guitar by Manuel Barrueco. Bewin- Mills Publisher Corp., 1981;
ALBENIZ, I. Sute Espaola no. 2, Catalua fr 2 Gitarren bearbeitet
von Hans-Gerhard Fey. Berlin: Edition Margaux, 1989 (partituras).
19 ALBENIZ, I. Capricho Cataln. Trasncribed by Balaguer. Shawnee
Press, s.d. Transcrio para violo (partitura).
-
25
caractersticas que procuraremos comentar nesta pesquisa, atravs
da investigao da
cano tradicional.
Quando observamos o transcurso histrico da cano, percebemos
que
alguns elementos se perpetuaram. O costume de narrar fatos
histricos, lendas e a
religiosidade caminham juntos. De fato, perceberemos tais
elementos nas canes
tradicionais catals comentadas nesta pesquisa. Tambm
levantaremos as possveis
origens dos temas usados na obra para violo de Llobet, medida
que traamos o
histrico das canes.
-
26
2. MIGUEL LLOBET: SEUS PREDECESSORES E
CONTEMPORNEOS
Quando falamos do ressurgimento da escola nacional espanhola,
notamos
que foram msicos catales que iniciaram o movimento que elevou o
nvel da msica de
seu pas.
Da mesma maneira, o violo ressurgiu pelas mos de violonistas
catales.
Podemos dizer que existe um captulo essencial no sculo XIX e XX
na histria do
violo que passa obrigatoriamente por nomes importantes
independentemente das
correntes estticas s quais estavam inseridos. Numa linha
cronolgica temos: Fernando
Sor (1778-1839), e os discpulos de Francisco Trrega (1852-1909)
- Miguel Llobet,
Domingo Prat (1886-1944), tambm aluno de Llobet, Daniel Fortea
(1882-1953), e
Emilio Pujol (1886-1980)20.
Fernando Sor estudou no monastrio de Montsserrat, onde adquiriu
uma
base terica slida para se dedicar de forma autodidata ao violo,
pois foi o primeiro
grande compositor a escrever de maneira especial para o
instrumento, pois vinha de uma
fase de transio dos instrumentos de cordas duplas para os
instrumentos de cordas
simples, criando novas concepes tcnicas. Suas obras constituem
uma referncia
obrigatria para os violonistas21. Sor foi o primeiro violonista
a valorizar temas
populares catales. Sua obra coral Crits del Carrer22, que faz
aluso aos gritos dos
20 Embora Trrega e Fortea sejam valencianos, ambos se
estabeleceram em Barcelona e se integraram ao crculo musical deste
grande centro artstico da Catalunha. Alm disso, a delimitao
poltica, geogrfica e lingstica desta regio em relao Catalunha,
assunto de interminveis debates polticos e movimentos separatistas.
21 Um estudo mais especfico sobre o violo deste perodo e do
pensamento de Fernando Sor est contido no seu Mthode pour la
Guitare, de 1830. H uma traduo em portugus realizada por Guilherme
de Camargo (CAMARGO, 2005). 22 Esta obra citada por Brian Jeffery
com o ttulo Draps i Ferro Vell (1861), e se encontra em quatro
verses: duas verses para 4 vozes e piano, uma verso para 3 vozes e
pequena orquestra e outra verso para 4 vozes e quarteto de cordas
(JEFFERY, 1977, p. 9).
-
27
vendedores ambulantes, foi cantada diversas vezes pelo coral
Orfeo Catal. Durante o
perodo que passou em Paris escreveu um ballet sobre o tema
catalo de Ventafocs
(AMADES, 1951, p. 17). As obras Fantasia op. 54 bis, para dois
violes, e Folias de
Espagne op.15 (a), para violo solo, tambm citam temas
populares23.
Domingo Prat estudou com Llobet de 1898 a 1904, passando a
receber a
orientao de Trrega regularmente aps a ida de Llobet a Paris. Em
1907, se estabelece
definitivamente em Buenos Aires. Funda uma academia de violo
onde se formam os
concertistas mais destacados da poca, entre eles, Maria Luisa
Anido (1907-1996). Prat
foi um dos responsveis pela vinda de Llobet Amrica do Sul. No
campo da
investigao histrica, nos deixou uma obra de grande valor o
Diccionario de
Guitarras, Guitarristas e Guitarreros (...), editado em 1934 e
reeditado em 1986, nos
Estados Unidos e no Japo24.
Daniel Fortea (1882-1953) era valenciano, mas passou boa parte
de sua
vida artstica em Barcelona. Fundou a Biblioteca Fortea (figura
1) pela qual publicou
suas obras originais e transcries. Os violonistas espanhis devem
a esta biblioteca a
condio favorvel de terem suas obras editadas. Possui publicaes
de obras de
concerto e composies para violo de carter didtico, potico e
folclrico (PUJOL,
1960, p. 167).
Emilio Pujol iniciou seus estudos em sua terra natal
Granadella,
provncia de Lrida - e estudou com Trrega. Em 1898 j realizava
apresentaes junto
com a Estudiantina Universitria, onde tocava bandurria, seu
primeiro instrumento.
Atuou como musiclogo, concertista, compositor e pedagogo.
23JEFFERY, B. Fernando Sor. Composer and Guitarrist. Londres:
Tecla Editions, 1977, p. 155 et. seq. 24PRAT, D. Diccionario de
Guitarristas. Columbus, Ohio: Editions Orphe, 1986.
-
28
Figura 1. Edio de uma cano tradicional catal de Llobet pela
Biblioteca Fortea
No campo da musicologia, teve influncia direta de Felipe
Pedrell. Seu
interesse pelo passado histrico ficou evidente em suas pesquisas
do repertrio do
sculo XVI para instrumentos de cordas dedilhadas guitarra, alade
e principalmente,
vihuela. Foi o primeiro violonista do sculo XX a realizar um
concerto de vihuela,
numa cpia deste instrumento realizada pelo luthier espanhol
Francisco Simplicio
(1874-1933). Como compositor Pujol seguiu o modelo deixado por
Trrega e como
transcritor, seguiu os passos de Llobet, como veremos mais
adiante nas adaptaes de
canes tradicionais catals que tambm realizou. Como pedagogo,
escreveu Escuela
Razonada de la Guitarra uma obra que contm orientaes inditas
para professor e
aluno - baseado em suas experincias nas reas em que atuava.
Miguel Llobet foi um
grande incentivador para a realizao desta obra, dividida em
quatro volumes (RIERA,
1974, p. 98).
Aps a morte de Sor, o violo se encontrava decadente em toda a
Europa,
incluindo a Espanha. Como observou Emilio Pujol:
-
29
La guitarra, entonces, era tenida por instrumento de limitados
recursos. Desacreditada y manoseada por gentes incultas y de baja
condicin, slo se la consideraba adecuada para rasguear en ella
simples aires vulgares, acompaar toscamente canciones callejeras, o
para unirla a otros instrumentos congneres en rondas y serenatas de
pintoresco tipismo. Como si fuese un instrumento al margen de la
msica, excludo del concepto general del arte, no poda ofrecer al
artista un medio idneo para el desarollo de sus faculdades, ni la
utilidad prctica que brindaba la ms humilde profesin. (PUJOL, 1960,
p. 39)
Francisco Trrega veio a ser um ponto de partida para melhorar a
imagem do
instrumento. Curiosamente, foi incentivado pelos seus
professores do Conservatrio de
Madri a estudar piano instrumento que gozava de grande
popularidade na poca - pois
no existia curso de violo. Sua formao pianstica o levou a
realizar diversas
transcries para o violo, a fim de mostrar as possibilidades de
tocar no instrumento os
grandes clssicos dentre as obras de concerto para piano,
quartetos, trechos orquestrais e
trechos de pera. Podemos atribuir suas renovaes ao pensamento
musical que
adquiriu atravs de seus estudos de piano.
A nica referncia de seu tempo era a obra de Julian Arcas25
(1832-1882), de
quem sofreu influncia. Portanto, teve que forjar sua prpria
tcnica, influenciada pelo
ambiente musical que o cercava (piano e instrumentos de cordas),
criando assim o que
chamamos de Escola de Trrega 26. Apesar de no ter deixado
escrito a definio de
sua escola, passou seus conhecimentos de forma oral a seus
discpulos j citados, e a ele
so atribudas mudanas na tcnica de execuo que foram seguidas por
mais de um
25 Arcas o principal representante do violo que sucedeu Sor e
Aguado. Sua atividade como concertista abrangeu toda a Espanha e
parte da Europa, principalmente no perodo de 1860-70. Como
compositor, deixou 30 obras originais, a maioria de carter
folclrico. Arcas teve uma influncia decisiva nos trabalhos do
luthier Antonio Torres e nas alteraes que o violo sofreu neste
perodo, em seu tamanho e estrutura. Pode ser considerado pioneiro
na realizao de adaptaes de obras de piano para violo, e muitos
gneros musicais que integravam seu repertrio foram adotados mais
tarde pelos violonistas. Arcas pode ser considerado o introdutor do
nacionalismo no violo ao explorar temas regionais. Estava atento
aos acontecimentos polticos de sua poca e tinha afinidades com o
movimento de independncia cubano que teve repercusso no governo
espanhol e influenciou sua obra para violo ao utilizar temas
populares cubanos (GRONDONA, 2004, encarte de Cd). 26 No se sabe em
que perodo Trrega recebeu conselhos ou orientao de Arcas, mas ambos
utilizavam uma tcnica de mo direita semelhante conforme narra Pujol
na biografia de seu mestre (PUJOL, 1960, p. 224) O conceito da
existncia de uma escola sistematizada por Trrega vem sendo
discutido por diversos violonistas. Falaremos a respeito da polmica
difuso deste conceito mais adiante.
-
30
sculo. Suas inovaes, do ponto de vista instrumental,
especificavam claramente suas
intenes musicais e exploravam as possibilidades timbrsticas do
violo.
Trrega deixou obras de valor permanente na literatura para
violo:
predominando a pea de carter nas formas de dana de salo,
estudos, transcries,
trmolos e os admirveis Preldios, onde encontramos a influncia de
Schumann e
Chopin. No Preludio no. 2 podemos notar o uso de timbres e
harmonias pouco
convencionais na obra de Trrega, em homenagem seu querido
discpulo Miguel
Llobet, que tinha uma concepo diferenciada de seu mestre ao
compor suas obras,
como veremos adiante. O interesse de Trrega pelos clssicos o
levou a realizar
excelentes transcries de obras de Bach, Mendelssohn, Albeniz,
Granados, entre
outros, linha seguida depois por Llobet, que levou adiante as
tcnicas de composio e
transcrio vindas de Trrega.
Fernando Sor, Francisco Trrega e Miguel Llobet so citados por
Jaime
Pahissa (1955, p. 117) por serem os principais responsveis em
elevar o prestgio do
violo. No entanto, existe um perodo em que outros nomes
figuraram no cenrio
violonstico, mesmo que timidamente.
Pouco se sabe a respeito deste perodo, por isso reservamos um
espao para
falar dos violonistas catales pouco conhecidos que marcaram
presena no sculo XIX.
Segundo Mangado (1998, p. 19-24), esta fase pode ser dividida em
dois perodos:
Primeiro Perodo (1814-1840) e Segundo Perodo (1840-1939):
-
31
Jos Vias y Daz (1823-
1888)
Jos Broc y Codina
(1805-1882)
Juan Nogus y Pon (1875-
1930)
Antonio Alba (1870-
?)
Joaqun Casanovas (1862-?)
Miguel Ms (1846-1923)
Domingo Bonet (1841-
1931)
Jos Hugas y Roig
(1837-1877)
Jaime Bosch (1826-1895)
Segundo Perodo
(1840-1939)
Jaime Bruno Berenguer
(1. metade do sculo XIX)
Narciso Bassols
(?)
Buenaventura
Bassols (?)
Domingo
Dayd (1830)
Jos Ferrer
(1835-1916)
Primeiro Perodo
(1814-1840)
-
32
Alguns nomes desta gerao ainda pouco conhecida participaram
da
sociedade musical Lira Orfeo (figura 2). Esta sociedade foi
criada em 1. de Outubro de
1898 pelo violonista catalo Pedro Lloret Blanch (1874-?) com a
ajuda de outros scios
fundadores, entre eles, Miguel Llobet. Integravam o corpo
docente desta sociedade:
Pedro Lloret, Domingo Prat e o prprio Llobet que exerciam a
atividade de
professores de violo alm de outros nomes como Baldomero Caldera
(1856-1929),
Domingo Bonet e Juan Bas professores de instrumentos de plectro
e Manuel Burgs,
Jos Barber, Jos Aznar e Salvador Brtoli como professores
tericos.
Figura 2. Sociedade Lira Orfeo
Os alunos tinham aulas de solfejo, harmonia, histria do
instrumento e
recebiam orientaes que lhes proporcionavam uma tcnica depurada
de execuo
clssica. A slida formao musical que os alunos desta sociedade
recebiam fica
evidente no comentrio da violonista Rosa Lloret (1909-?), filha
de Lloret e discpula de
Llobet:
-
33
Todos ellos, com verdadero altruismo, daban las lecciones por
las noches, de 9 a 1 hasta las dos de madrugada, individualmente e
en grupos de 15, 20 y hasta 25 alumnos dos y tres veces a la
semana, y adems uma classe de conjunto cada 4 das. Tambin se
preocupaban de la cultura terico-artstica de los alumnos, mediante
uma numerosa serie de conferencias relacionadas con el de la msica
en particular, se obsequiaba a los socios protectores con selectos
y variados conciertos ntimos en los que tomaban parte como solistas
los maestros de la escuela (MANGADO, 1998, p. 91).
Lira Orfeo, tambm conhecida como Els Lirons, teve uma curta
durao
devido a diversos problemas entre os scios fundadores e ao
estabelecimento de Llobet
em Paris em 1905. Tal importante iniciativa para o violo em
Barcelona acabou em 2 de
Dezembro de 1907, nove anos depois de sua fundao. Por ela devem
ter passado mais
de 500 alunos.
As atividades da Lira Orfeo foram determinantes para o ensino
do
instrumento de forma mais sistematizada, uma vez que o violo
durante o sculo XIX
no encontrava espao para ser divulgado e ensinado nas escolas de
msica. Antes da
sociedade Lira Orfeo, encontramos algumas classes de violo e
instrumentos de plectro
embora no estivessem oficialmente integradas nas instituies.
Toda la actividad de la enseanza de la guitarra durante el siglo
XIX, se imparta en dos mbitos de la vida barcelonesa, las academias
privadas de msica y las classes particulares que algunos maestros
de dicho instrumento proporcionaban. Hasta que en la ultima dcada
del siglo XIX las instituciones de la ciudad decidieron instaurar
este servicio en sus centros (MANGADO, 1998, p. 89).
O centro mais antigo de ensino musical em Barcelona era o
Conservatrio
Superior de Msica del Liceo, fundado em 1837 com o nome de Liceo
Dramtico de los
Aficionados, conhecido popularmente como Liceo. Outro centro
importante era o
Conservatrio Superior de Msica de Barcelona, fundado em 1886 com
o nome de
Escola Municipal de Msica. Os primeiros professores de violo
nestes dois principais
centros de msica foram os discpulos de Jos Broc. Miguel Ms foi o
primeiro a
exercer a funo de professor de violo e instrumentos de plectro,
seguido por Juan
-
34
Nogus y Pon, na Escola Municipal. Domingo Bonet (de 1897 a 1898)
e Jos Ferrer (de
1898 a 1901) foram os primeiros professores do Liceo, seguidos
por Joaquin Casanovas
que ocupou o cargo at ser substitudo por Graciano Tarrag27
(1892-1973), em 1933.
Vale citar tambm algumas casas que serviam para reunir os
diletantes, onde
se tocava e discutia violo.
A Cals Guitarrers (Casa dos Violonistas) existia em 1892 e
oferecia o
ambiente ideal para os aficionados pelo violo, pois reunia os
professores e violonistas
mais importantes da poca (PUJOL, 1960, p. 119).
A Casa Llibre em Barcelona, por sua situao estratgica, reunia
vrios
artistas (RIERA, 1974, p. 47). Nestas ocasies era muito comum
ocorrer o costume que
muito popular at hoje entre os espanhis a tertlia28.
Neste contexto, o violo se estabelecia gradualmente na sociedade
como
instrumento de concerto e conquistava seu espao nas cadeiras das
escolas de msica da
Catalunha.
As contribuies de Antonio Torres (1817-1892) marcaram
grandes
transformaes na arte de lutheria do violo29 estabelecendo novos
padres estticos. A
construo de um novo violo, com mais sonoridade, um timbre de
maior qualidade e
contornos mais harmoniosos, ofereceram condies para sua evoluo e
este modelo foi
adotado pelos construtores que o sucederam, na Espanha e no
resto do mundo. Torres
27 Tarrag foi aluno de Casanovas antes de ocupar o cargo de
professor do Liceo e possua algumas deficincias em sua formao como
violonista (MANGADO, 1998, p. 90). No tendo suas necessidades
musicais atendidas por seu professor, foi procurar a orientao dos
discpulos de Trrega e teve de escolher entre Pujol e Llobet. A
respeito de sua deciso, comentaremos mais adiante, para tentarmos
delinear a personalidade e a concepo musical de Llobet. 28 A
tertlia consiste em que outros escutem mesmo que o locutor no tenha
a mnima idia do que est falando. O importante saber falar alto numa
espcie de torneio para decidir quem tem o pulmo mais forte ou quem
fala a maior besteira. Os assuntos podem ser os mais variados:
arte, poltica, esportes, histria, cincia, etc (BUADES, 2006, p.
32). Llobet pode ser reconhecido como um verdadeiro tertuliano,
como veremos adiante, para delinear sua personalidade engajada em
acontecimentos polticos e sociais que pode t-lo motivado a escrever
as canes tradicionais catals. 29 Para mais informaes sobre lutheria
histrica realizada na Espanha recomendamos o trabalho de GRONDONA,
S.; WALDNER, L. La Guitarra di Liuteria. Master Pieces of Guitar
Making. Lofficina del libro, 2001.
-
35
era andaluz, mas enviava a maioria de seus violes, para a regio
da Catalunha, que
representava o grande centro de msica culta para violo. Julin
Arcas foi o primeiro a
utilizar um violo Torres e tornou-o conhecido atravs de suas
atuaes. Na ocasio em
que Trrega ouviu Arcas pela primeira vez, ele usava um modelo
que ficou conhecido
como La Leona30, por ser considerada a melhor de todas
existentes (PUJOL, 1960, p.
35). O novo violo surgiu principalmente pelas mos de Torres, e
em breve o
monoplio que era mantido pelos catales gradualmente deixou de
existir, tendo seus
modelos espalhados pela Europa, atravs das atividades de
concertista de Trrega,
Llobet e Pujol. O violo de Torres era o preferido de Llobet
(figura 3), que o apresentou
mais tarde para o luthier alemo Hermann Hauser I (1882-1952),
talvez o primeiro
construtor fora da Espanha a adotar o modelo Torres.
Figura 3. Miguel Llobet com um violo Torres de 1859
30 Cf. STEFANO GRONDONA. La Guitarra de Torres. Appassionato,
2000 (Cd). O violonista Stefano Grondona usou este violo histrico
nas gravaes deste Cd.
-
36
No podemos deixar de mencionar o violonista andaluz Andrs
Segovia
(1893-1987), que com sua carreira de quase oitenta anos continua
a fascinar estudantes,
profissionais e amadores. Segovia ainda considerado como a
personificao do
violonista-intprete por vrias geraes de violonistas e teve um
papel decisivo no
desenvolvimento do violo. Alm de transform-lo num instrumento de
prestgio
atravs de seus concertos nas salas mais importantes do mundo,
ajudou a ampliar o
repertrio com obras por ele comissionadas a outros compositores
como: Federico
Moreno Torroba (1891-1982), Joaquin Rodrigo (1902-1999),
Alexander Tansman
(1897-1986), Mario Castelnuovo-Tedesco (1895-1968), Manuel Ponce
(1882-1948) e
Heitor Villa-Lobos (1887-1959). O conjunto deste repertrio foi
dedicado a Segovia,
por isso conhecido hoje como repertrio segoviano. O prprio
Segovia teve uma
pequena incurso como compositor e algumas de suas obras tambm
utilizaram canes
tradicionais catals, como veremos adiante.
Segovia divulgou o violo, levando-o s melhores salas de concerto
do
mundo, aps Llobet refinar a arte do violo tanto nos aspectos da
composio, da
transcrio e da execuo.
As informaes que encontramos sobre a formao de Segovia no
oferecem
dados precisos. Afirmava ser autodidata, embora reconhecesse ter
sido um discpulo
indireto de Trrega. Em sua biografia, fala de seus encontros com
Llobet, com quem
mantinha uma relao de amizade. Destes encontros, espcies de
classes de violo,
podemos concluir que Llobet teve influncia sobre a formao de
Segovia.
Llobet causou uma forte impresso em Segovia, quando se
conheceram em
1914. Segovia narra esta ocasio em sua autobiografia:
No other guitarist I had heard, I told him, had made me forget
the limitations of the guitar or revealed the scope of its
potencial (...) I assured him I agreed implicitly with his
technique and would follow it relentlessly, no matter in how
difficult the path ahead for me (...) In spite of the difference in
our ages, Llobet and I became good friends
-
37
and, in time, the results o four relationship were happy ones
for me. My attitude towards him was one of admiration for the
artist and affection for the friend. Once he had tested my
technique and capacity of expression, his esteem for me was
probably increased by my profound determination to broaden the
guitars repertoire and raise the instruments prestige. I was in
every sense a friend! (SEGOVIA, 1976, p.100 e 102).
O impacto resultou em diversas sesses de concerto particulares e
uma
relao de amizade entre os violonistas. Embora Segovia no admita,
Llobet pode ter
representado para ele a figura de orientador.
Purcell publicou uma foto (figura 4) onde Llobet est tocando num
crculo
de amigos. Entre eles, outro discpulo de Trrega, Abade Corelle,
Juan Parras (aluno de
Segovia), o luthier Enrique Garcia, Alfred Cottin, Francisco
Rizo (filho de Trrega) e
finalmente, Segovia, sentado sua direita e no s estava atento
sua execuo, como
levou um de seus alunos para o concerto ntimo (PURCELL, 1989,
vol. 1, p. viii).
Figura 4. Llobet rodeado pelo grupo de admiradores
Phillips afirma que Llobet teve uma influncia direta na formao
de
Segovia: The Llobet was mentor to Mara Luisa Anido, Jos Rey de
la Torre and
-
38
Andrs Segovia, three of the most important guitarrists of the
first half of twentieth
century, must be considered relevant. (PHILLIPS, 2002b, p. 4)
Podemos concluir a
evidncia disso ao analisarmos as gravaes realizadas por Llobet31
e Segovia32, onde
percebemos a influncia do estilo de Trrega em ambos os
violonistas (PURCELL,
1989, vol.1, ii). Segovia, obviamente, teve contato com a tcnica
de Trrega atravs dos
discpulos de Trrega, principalmente de Llobet (figura 5).
Figura 5. Fotografia histrica (c. 1918): Segovia, Fortea, Llobet
e Pujol
O prprio Segovia, numa passagem em sua autobiografia, narra que
Llobet o
convidou para ir a sua casa a fim de orient-lo na execuo de
algumas composies
suas (SEGOVIA, 1976, p. 106). Com as informaes encontradas na
autobiografia de
Segovia, podemos posicionar a figura de Llobet na formao de
Segovia e atribuir o
devido crdito ao violonista catalo ao influenciar geraes de
violonistas importantes.
Uma fotografia (c. 1924) publicada por Purcell nos faz acreditar
que Segovia estava
muito interessado na carreira de Llobet como concertista. Nesta
foto ele aparece ao lado
31 MIGUEL LLOBET. The Guitar Recordings 1925-1929. Chanterelle
Historical Recordings (Cd). 32 Andrs Segovia 1927-1939 Recordings,
volume 1 e 2.
-
39
do violonista catalo em meio a outras personalidades como Alfred
Rondorf, Heinrich
Albert, Hermann Hauser I e os membros da Munich Guitar Society
(figura 6).
A polmica relao entre Segovia e Llobet um captulo importante
da
histria do violo. Emilio Pujol numa nota biogrfica a respeito de
Llobet no prefcio
de primeira edio da obra Le Tombeau de Claude Debussy, que
falaremos mais
adiante, comenta que Segovia estava entre seus estudantes.
Hector Garcia, detentor de
parte do arquivo com obras e documentos de Pujol, responde esta
questo numa carta
para Robert Phillips:
De acuerdo con ancdotas contadas a m por el maestro Emilio
Pujol, Andrs Segovia le pidi tomar lecciones de l. El Maestro Pujol
declino de la peticin y recomend a Segovia que tomar lecciones de
Miguel Llobet quien aparte de la ayuda musico-instrumental, podra
ayudarlo a darse conocer a travs de los contactos que Llobet, por
ser el guitarrista-concertista ms conocido, tena en toda Europa
(...) Pujol le prometi que hablaria con Llobet y que estaba seguro
que debido a la amistad entre ellos, este accederia a la peticin.
Asi fu, y Segovia comenz a recibir lecciones de Miguel Llobet, unas
cuatro o cinco. Al cabo de las mismas Llobet le informo a Pujol que
l havia accedido a tomar a Segovia como estudiante, pero dada la
rebeldia de Segovia a seguir las indicaciones de Llobet, este se
ver obligado a terminar las clases con Segovia. (GARCIA, 2002 apud
PHILLPS, 2002b, p. 85)
Figura 6. Llobet com a Munich Guitar Society aps um concerto
-
40
No sabemos at que ponto Llobet influenciou Segovia. Mas
examinando
depoimentos de seus contemporneos e alguns episdios relatados
pelo prprio Segovia,
somos cada vez mais levados a crer que tal influncia um
fato.
Trataremos agora de comentar a gerao de discpulos de Llobet,
representados na figura dos irmos Regino (1896-1981) e Eduardo
Sainz de la Maza
(1903-1982), Maria Luisa Anido (1907-1996), Luise Walker
(1910-1998) e Jos Rey de
la Torre (1917-1994).
Os irmos Sainz de la Maza iniciaram seus estudos com Daniel
Fortea em
Madri, mudando-se em seguida para Barcelona a fim de continuar
seus estudos com
Llobet. Regino tornou-se mais conhecido por sua carreira de
concertista internacional,
enquanto que Eduardo tornou-se um respeitado professor de
violo.
Maria Luisa Anido foi uma prodigiosa violonista argentina. Seu
primeiro
concerto se deu em 1918, quando tinha apenas 11 anos de
idade.
Transcreveremos aqui um comentrio de Llobet feito em 1919:
Maria Luisa Anido fu para mi una revelacin. La impressin que me
produjo no se borrar jams de mi mente, pues en realidade es algo
que sobrepasa todo lo imaginable. Ver uma nina de once aos
venciendo y dominando las ms grandes dificultades sin el menor
esfuerzo, cual podra hacerlo el ms consumado de los concertistas,
es cosa que causa assombro, y lo ms admirable en ella, quiz, y que
sen duda alguna constituye el ms preciado de los dotes, es la rica
intuicin musical que revelan sus interpretaciones, la mayora de
ellas altamente artsticas. A pesar de las sensacionales noticias
que de elle tena por la prensa de Buenos Aires, a raiz de sus
primeras audiciones y muy especialmente por su eminente maestro
Domingo Prat, tuve, al orla, la sensacin de lo increble.
Desconcierta el pensar qu es lo que podr hacer esa maravilhosa
criatura cuando est en plena madurez. (PRAT, 1986, p. 30)
Podemos encontrar dados importantes sobre Llobet nos depoimentos
desta
clebre violonista em forma de entrevistas. Sobre estes dados
falaremos adiante.
-
41
Luise Walker, violonista austraca que recebeu orientao de Llobet
durante
suas idas Viena. Realizou intensas atividades como concertista
na Europa, Rssia e
Estada Unidos e como compositora.
Jos Rey de la Torre, violonista cubano, tambm foi um menino
prodgio do
violo. Mudou-se para Barcelona em 1932 com a finalidade de
estudar com Llobet, com
quem estudou durante dois anos e meio. Sua carreira de
concertista teve grande sucesso
nos Estados Unidos, onde se estabeleceu em 1939. Vrias obras de
compositores
importantes foram escritas para ele. Entre estes, Julian Orbn,
Jos Ardevol e Joaqun
Nin-Cumell. Podemos tirar algumas concluses sobre a concepo
tcnica e musical de
Llobet dos relatos de Rey de la Torres a respeito da orientao
que recebeu de seu
mestre e discutiremos isso mais adiante.
No Brasil temos um violonista que estudou com Llobet o uruguaio
Isaas
Svio (1900-1977) (PHILLIPS, 2002b, p. 9; DUDEQUE, 1994, p. 103)
- que colaborou
na difuso da escola de violo espanhola quando se estabeleceu no
pas em 1931.
As atividades dos discpulos de Llobet tiveram destaque no cenrio
musical
e ajudaram a difundir a importncia de seu mestre para a histria
do violo e sua nova
linguagem esttica, temas que discutiremos adiante.
-
42
3. MIGUEL LLOBET Y SOLS (1878-1938)
Neste captulo vamos procurar analisar a personalidade de Miguel
Llobet
como compositor, transcritor, professor, artista plstico,
concertista e intelectual bem
como comentar a sua importncia na histria do violo e sua
contribuio para
posicionar o violo dentro de uma nova linguagem esttica com a
adaptao das
Canciones Catalanas, entre outras obras.
Falaremos sobre a vida de Llobet a fim de contextualizar sua
obra no tempo,
considerar as influncias que recebeu a partir de suas relaes com
outros compositores
e violonistas e delinear algumas facetas de sua personalidade
com base em algumas
informaes biogrficas encontradas33.
Miguel Llobet y Sols nasceu em 18 de Outubro de 1878 em
Barcelona,
capital da Catalunha. Filho de pai escultor, Llobet mostrou
disposio para a pintura,
mas foi pela msica seu maior interesse. Alm do violo estudou
violino e piano na
Escola Municipal de Msica de Barcelona e sua paixo pelo violo
comeou quando
ganhou o instrumento de um tio. Ao contrrio de Trrega, Llobet em
sua juventude teve
condies mais favorveis. Em 1889, Llobet assiste um concerto de
Antonio Manjn
(1866-1919)34 e impressionado com o instrumento, decide
dedicar-se completamente,
33 Para mais dados biogrficos a respeito de Miguel Llobet,
recomendamos a leitura de autores como: PRAT, D. Diccionario de
Guitarristas. Columbus, Ohio: Editions Orphe, 1986; PURCELL, R.
Miguel Llobet Guitar Works, 5 volumes (partitura); TONAZZI, B.
Miguel Llobet, Chitarrista dellImpressionismo. Ancona: Brben, 1966
e STEFANO GRONDONA (encarte de Cds). 34 Antonio Manjn uma figura
ainda pouco estudada que ainda precisa ser desvendada. Estudou com
um discpulo de Aguado em sua terra natal, Jan, embora seja possvel
afirmar que era considerado um autodidata. Devemos a ele o mtodo
mais completo de instrumentos com mais de seis cordas. Os primeiros
anos de sua carreira foram muito difceis, devido falta de apoio e a
perda da viso, aos 13 anos. Seus programas de concerto revelam uma
personalidade nada comum para o mundo violonstico de sua poca, pois
inclua obras dos grandes compositores como Beethoven e Schumann.
Este fato o coloca numa posio curiosa em relao Trrega, que apenas
um pouco mais tarde realizou as transcries destes compositores. A
impresso que deixava em seu pblico era inesquecvel e as crticas de
seus concertos eram sempre as melhores. A este importante e pouco
conhecido violonista atribudo o fato de Llobet ter abandonado sua
carreira promissora de artista plstico para se dedicar aos estudos
de violo, aps ter assistido um de seus concertos. Cf. RAPHALLA
SMITH. Antonio Jimenez Manjn 1866-1919 (Cd); MANJN, A. Collected
Works. Chanterelle, 1996 (partitura).
-
43
estudando com Magn Alegre (?-?)35, um nome com poucas
referncias, e depois, com
Francisco Trrega36.
Miguel Llobet uma figura extremamente importante na histria do
violo,
mas ainda no teve seu merecido destaque. Apesar das informaes
citadas acima,
Llobet ficou um tanto esquecido e sufocado entre as notoriedades
de Trrega e Segovia.
Procuramos identificar, portanto, os fatores que contriburam
para o esquecimento da
totalidade da obra de Llobet, o atraso das edies de suas obras e
arquivos perdidos.
A guerra civil espanhola37 (1936-39) colocou uma espcie de
cortina na
produo musical e intelectual desta etapa em toda a Espanha e
Llobet foi um dos
autores que ficou neste ostracismo latente. A maioria de suas
obras comeou a ser
editadas somente a partir da dcada de 60. Alm disso, a
bibliografia que temos no
suficiente para classificar esta figura to importante para o
violo.
Esta insuficincia nas publicaes a respeito de Llobet traz a
necessidade de
analisarmos sua posio na histria do violo de maneira
contextualizada, a partir de
suas relaes com outros nomes importantes do cenrio violonstico
de sua poca.
No captulo 2 citamos alguns nomes pouco conhecidos dos
violonistas que
sucederam a Sor. Os dois perodos onde figuram tais nomes foram
pouco investigados.
A partir de Trrega temos mais informaes sobre os acontecimentos
na Catalunha.
Temos os ensaios biogrficos tanto de Trrega como de Pujol. No
entanto, falta um 35 Prat revela que Magn Alegre era compositor e
guitarrista modesto que se viu obrigado a se dividir em duas
profisses, visto pertencer a uma poca em que o violo era pouco
difundido. Era comerciante e professor de violo. Seus discpulos
foram Pedro Lloret, o prprio Llobet, Jos Tey, Toms Prat e outros.
Realizava reunies animadas em sua casa onde recebia seus alunos
para tocar obras dos violonistas da poca como Broc, Vias, Arcas e
outros. Julin Arcas dedicou a ele a clebre Jota Aragonesa. No ano
de 1892 foi organizada uma sociedade de violo de efmera existncia
cujo conselheiro era o Senhor Magi, como era conhecido. Apesar de
sua modstia, foi decisiva a sua participao na formao de uma gerao
de violonistas. 36 Seu primeiro contato com Trrega se deu na Casa
dos Violonistas (Cals Gitarrers) citada no captulo 2 (RIERA, 1974,
p. 119). 37 A guerra civil pode ser interpretada como o episdio
mais cruel e sangrento do processo de modernizao espanhol. Entre as
causas diagnosticadas desta guerra encontra-se um complexo conjunto
de sentimentos nacionais (BUADES, 2006, p. 171). Os catales possuem
um forte sentimento nacionalista que os levou a lutar por sua
autonomia lingstica, literria e musical, alm de sua autonomia
econmica, social e poltica atravs de uma forte campanha anarquista
(figura 1).
-
44
livro biogrfico mais completo sobre Miguel Llobet, o que
dificulta comentarmos sua
vida artstica e social de maneira definida. Mas podemos ter
certeza que sua influncia
desencadeou perspectivas de um futuro para o violo que Andrs
Segovia soube
aproveitar e aumentar.
Figura 1. Cartaz anarquista que fomentou a propaganda poltica
durante a Guerra Civil Espanhola
Examinando o escasso material bibliogrfico que tivemos acesso,
nos
sentimos cada vez mais atrados pela obra deste extraordinrio
violonista, bem como
por sua personalidade. Segundo Pahissa (1947, p. 121) Llobet era
amvel e bom. Anido
comenta a respeito da personalidade contraditria de Llobet, seu
virtuosismo, embora
um pouco acomodado:
(...) una persona que era ms camarada que otra cosa. Como
guitarrista era de una facilidade natural y un virtuosismo que
pocas veces he visto en mi vida. Llobet no estudiaba casi nada, no
pasaba de una hora, pero siempre estaba pensando en msica (...)
Llobet era un hombre muy libre en sus cosas aunque era metdico en
su forma de vida, en sus horas de comida y todo; pero no s, tena
esa facilidade natural que lo haca estudiar poco o casi nada. Es
decir: entre concierto y concierto
-
45
(diez dias, por ejemplo) l se limaba las uas para no estudiar,
aunque siempre estaba pensando en la guitarra (...). (HELGUERA,
2001, p. 12)
Grondona comenta que as trs facetas de Llobet como
intelectual,
concertista e compositor tambm eram um tanto contraditrias
(informao verbal) 38.
Este conjunto de informaes ajuda a identificar os problemas que
dificultam uma
definio da obra e da personalidade de Llobet.
Sabemos que Llobet manteve relaes com figuras importantes do
cenrio
musical, dentro e fora da Espanha. Seu contato com Albniz,
Granados e Falla o levou a
transcrever obras destes grandes compositores, o que fez com que
aprimorasse ainda
mais no campo da explorao timbrstica tendo Trrega como
referncia.
Vimos que Llobet comeou a carreira muito jovem, encontrando
condies
mais favorveis do que seu mestre Trrega. Seu primeiro concerto
pblico foi em 1901,
no Conservatrio de Valencia, e neste mesmo ano em outros
conservatrios importantes
da Espanha. Seu contato com Ricardo Vies (1885-1943) 39 o levou
a Paris (1904),
onde realizou seu primeiro concerto fora da Espanha. Este
contato foi muito importante,
pois foi Vies que o introduziu neste novo mundo e possibilitou o
convvio com a elite
musical francesa. Este ambiente musical na Frana certamente o
influenciou na
concepo de algumas de suas obras. Suas turns pela Europa o
colocaram em centros
musicais onde manteve relaes com compositores clebres como
Debussy, Ravel,
Faur, Dukas e Stravinsky.
Devido ao pouco espao que o violo encontrava em Barcelona40,
Llobet se
viu motivado a mudar-se para Paris (1904). Na Espanha, seus
concertos limitavam-se s
sociedades particulares, e muitas vezes no recebia nada alm de
um agradecimento. 38 Entrevista realizada durante o II Encontro
Internacional de Violonistas de Tatu, SP, no dia 22 de Abril de
2007 (Anexo B). 39 Pianista espanhol divulgador das obras de
Albeniz e Granados e da msica moderna francesa. Era amigo de
Debussy, Ravel e Falla. 40 Domingo Prat afirma que Barcelona tinha
averso ao violo (...). (PRAT, 1986, p. 184) Antes de se mudar para
Paris, Llobet conhece Concepcin Jacoby, que passa a ser sua
protetora. Com o auxlio desta senhora, consegue certa notoriedade
tocando em vrias partes da Espanha.
-
46
Existe uma contradio em sua biografia a respeito do perodo em
que permaneceu na
Frana. Purcell afirma que Llobet residiu em Paris at 1910
(PURCELL, 1989, vol. 1, p.
iii, partitura), enquanto que Tonazzi relata seu retorno a Paris
em 1910 (TONAZZI,
1966, p. 12). Existem alguns detalhes biogrficos confusos a
respeito de Llobet, como
sua residncia durante a Primeira Guerra Mundial41 e as datas de
algumas Canciones
Catalanas, como veremos adiante. Tais contradies em dados
cronolgicos tambm
dificultam definir a vida e a obra de Llobet.
O catlogo de suas obras realizado pelo autor j citado Bruno
Tonazzi, junto
com a publicao mais recente de Ronald Purcell e a integral que
vem sendo realizada
por Stefano Grondona (em vrios Cds) nos do apenas uma idia da
obra do violonista
catalo. As dificuldades ocasionadas pela guerra civil espanhola
e o fato de Llobet no
se mostrar muito preocupado com o registro e a difuso de sua
produo levaram
perda de algumas obras42. Algumas obras que n