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P ROJ E TO B R A SIL P OPUL A R CADERNO DE DEBATES 1
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Caderno Projeto Brasil Popular · 2018-09-03 · Soberania Nacional e Desenvolvimento: apontar um caminho para o desenvolvimento no qual a apropriação da riqueza seja justa e onde

Jul 10, 2020

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PROJETOBRASIL

POPULAR

CADERNO DE DEBATES1

[email protected]

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CADERNO DE DEBATES1

SÃO PAULO, SETEMBRO/2017

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ÍNDICE

5 APRESENTAÇÃO

9 GT DE CIDADES

19 GT DE REFORMA TRIBUTÁRIA

27 GT DE SEGURANÇA PÚBLICA 51 GT DE SISTEMA DE COMUNICAÇÃO 54 O CAPITAL É A REDE MARCOS DANTAS

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55APRESENTAÇÃO

PROJETO BRASIL POPULAR

QUEM SOMOS?

Diante da profunda crise política, econômica e social que o Brasil atravessa no último período, compreendeu-se como de suma importância criar um espaço para reunir as diferentes forças de esquerda e suas bases sociais, estimuladas pelo desafi o de formular um projeto de desenvolvimento nacional que auxilie também na orga-nização da luta de massas.

É importante destacar, no entanto, não ser de hoje que homens e mulheres deba-tem um projeto de país. Entendemos que este é um debate permanente na vida dos povos e estratégico para os setores populares, o qual, diante do desmonte da nação, tornou-se urgente e dispõe de condições mais favoráveis a partir das necessidades concretas que atualmente se apresentam.

A esquerda brasileira já formulou importantes contribuições sobre esse tema. Po-rém, historicamente, o processo de produção dessas refl exões não esteve combinado com o processo de articulação com movimentos populares e sindicais, resultando em formulações teóricas que, embora consistentes, contaram com pouca capacida-de de enraizamento social. Diante disso, nas últimas décadas nossas formulações e estratégias não avançaram para a construção de um projeto de nação ou de um pro-grama amplo, que transcendesse as medidas imediatas, as plataformas ou os progra-mas eleitorais. Por isso, embora se trate de um tema com o qual temos permanente preocupação, não temos conseguido produzir formulações e estratégias unitárias de médio e longo prazos e que nos possibilite mobilizar força social em torno de uma proposta viável de desenvolvimento para o país.

Nosso grupo entende ser fundamental que, em paralelo à formulação de propostas e análises, possamos reafi rmar a necessidade de diálogo com as bases sociais e o com-promisso e disponibilidade para o debate de ideias com o povo. Mobilizados por essa perspectiva, desde fevereiro de 2016 dedicamo-nos à tarefa de debater e formular o conteúdo programático de um projeto nacional, democrático e soberano para o país, e que represente uma oportunidade para a construção de uma nova hegemonia de forças construída a partir do diálogo junto ao povo brasileiro, construindo assim força social em torno dessas propostas.

O QUE QUEREMOS?

Não estamos partindo do zero. Diversos setores têm refl etido ao longo da história sobre propostas, estratégias e questões que apontam os problemas estruturais do

APRESENTAÇÃO

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6 APRESENTAÇÃO

Brasil e indicado caminhos para a sua superação. O programa que estamos cons-truindo deve expressar estes acúmulos e refl exões, além de buscar estimular o acú-mulo de força social em torno desses esforços.

Fundamentalmente o que nos propomos a construir é um projeto para o Brasil que aponte para a superação de todas as formas de desigualdades, de exploração e de falta de liberdades. Portanto, um projeto que suscite rupturas com o passado escra-vocrata, colonial, patriarcal, ditatorial e antipopular e que responda a um presente de crise no qual essas dimensões estruturais da exploração e dominação e opressões são intensifi cadas.

Acreditamos que a melhoria das condições objetivas de vida do povo brasileiro de-pende do modelo de desenvolvimento econômico, político, cultural e ambiental implantado, pois ele indicará como serão distribuídas as riquezas e a renda gerada por toda a sociedade. E que as bases para a construção desse projeto popular para o Brasil estão alicerçadas na construção de um Estado. Por isso defi nimos os seguintes temas como nossos paradigmas que guiarão nossas refl exões:

Vida boa para todos/as: entender que a vida vale a pena ser vivida em todas as suas dimensões e que por isso devemos orientar as formas de produção dos bens, a reprodução social e os bens públicos para garantir a qualidade de vida de todos/as. Nessa perspectiva, é preciso pensar o ser humano em sua integralidade.

Bens comuns: prezar pela garantia e soberania dos bens compartilhados pelas comunidades: natureza, ar, água, cultura e os espaços públicos.

Igualdade e diversidade: devemos superar as condições de opressão, buscando engendrar novas relações sociais entre as pessoas.

Democracia, Participação e autonomia: devemos re� etir sobre qual o sentido público do Estado, retirando-o da condição de simples garan-tidor de direitos, para estabelecer como prioridade prestar serviços de qualidade ao povo. Devemos re� etir também sobre como será exercido o poder pelo povo e sobre como será autonomia desse Estado.

Soberania Nacional e Desenvolvimento: apontar um caminho para o desenvolvimento no qual a apropriação da riqueza seja justa e onde os compromissos sociais submetam a lógica da economia de merca-do. Além de formular um projeto nacional que possibilite ao nosso país crescer com soberania.

Esses paradigmas são referências gerais para o trabalho do grupo, e também para as discussões temáticas devendo ser considerados mesmo para elaborações mais espe-cífi cas. Em processo cíclico de construção, os Grupos de Trabalhos Temático devem ao mesmo tempo em que partem deles para construir propostas, enriquecê-los com novas formulações.

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77APRESENTAÇÃO

MÉTODO DE CONSTRUÇÃO DO PROJETOPartimos de um contexto histórico que leva a necessidade de um debate de projeto de país devido sua gravidade. Entendemos que a burguesia não possui um projeto nacional e utilizou esse contexto de crise econômica para provocar uma instabilida-de política e impor um projeto neoliberal. Diante disso, a esquerda deve se debruçar para a produzir um projeto popular para o país.

Portanto, precisamos recuperar a tradição civilizatória do pensamento humanista para construir um projeto de país e, com ele, uma alternativa de sociedade construída junto ao povo. Por esse motivo o método é tão importante quanto o resultado. Entendemos que o programa só cumprirá sua função se for uma produção coletiva que deve com-binar conhecimento científi co e militância social. Apenas dessa forma será ampliada nossa capacidade de mobilização: considerando o povo como protagonista das mudan-ças no país. Por isso, devemos constantemente checar nossa refl exão com a realidade e interpretar as contradições para a partir delas formularmos novas propostas.

O método com o qual nos propomos a trabalhar é coletivo, dialógico e dialético. Capaz de envolver diversos setores, conjugando especifi cidades e especialidades, te-mas, regiões, naturezas diversas dos sujeitos, dialogando com a visão do todo e com a visão dos lugares desses sujeitos.

O processo de construção será numa espiral crescente, partindo da produção de sínteses que serão retomadas para maior aprofundamento, possibilitando então no-vas sínteses. Temos dois desafi os importantes: 1) produzir um projeto de nação; 2) transformar esse projeto em um instrumento do processo político pedagógico que estimule nosso povo a debater, criticar e formular novas questões; 3) formular sín-teses coletivas a partir desse acumulo e criar força social em torno dessas propostas. Neste sentido, esse é um processo contínuo no tempo e na sua intencionalidade, um processo permanente de disputa de hegemonia de um projeto de nação na so-ciedade brasileira.

Atualmente possuímos 30 grupos de trabalho temáticos (GTs) que possuem a tarefa prio-ritária de refl etir sobre os temas estratégicos para a formulação de um projeto de país. Esses grupos de trabalho são constituídos por intelectuais comprometidos com o desenvolvi-mento do país; militantes dos movimentos populares que trazem o acumulo de propostas de cada movimento; trabalhadores com experiência na política pública com conhecimento em diversas áreas. Os GTs debatem e formulam propostas para que obtenhamos uma elaboração programática que possa posteriormente ser discutida pela sociedade, buscando com isso agregar força social e apontar para as bases de um projeto de país.

Além dos GTs, foram estabelecidos Eixos Temáticos. A discussão em eixos objetiva potencializar a transversalidade dos temas discutidos nos grupos e garantir que os documentos produzidos por eles tenham visibilidade e unidade programática.

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8 APRESENTAÇÃO

Não devemos ter a pretensão de dar solução para tudo, muito menos em nome de todos e todas, mas buscaremos agir em torno de um esforço coletivo e intelectual, para formular um projeto que sirva como referência para as lutas sociais e para o pensamento crítico brasileiro.

Somar-se ao Projeto Brasil Popular é vislumbrar a esperança de construção coletiva das condições que irão possibilitar ao Brasil ser um país mais justo, soberano e democrático.

Eixos TemáticosDireitosCultura

EducaçãoEsporteCidades

Religião, Valores e ComportamentoSaúde Coletiva

Economia, Desenvolvimento e Distribuição de RendaAgricultura Biodiversidade e Meio Ambiente

Demogra� a e MigrantesDesenvolvimento Regional

Caatinga e SemiáridoCiência, Tecnologia e Inovação

EconomiaEnergia e petróleo

FinanceirizaçãoLogística e Transporte

MineraçãoReforma tributária

Seguridade Social e PrevidênciaTrabalho, Emprego e Renda

Estado, Democracia e Soberania PopularDemocratização da Justiça e Direitos Humanos

Estado, Democracia, Participação Popular e Reforma PolíticaFederalismo e Administração Pública

Sistema de comunicaçãoRelações Internacionais, Integração Regional e Defesa

Segurança pública

Igualdade, Diversidade e AutonomiaCombate ao Racismo e Igualdade Racial

JuventudeLGBT

MulheresPovos Indígenas

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GT DE CIDADES

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10 GT DE CIDADES

BR CIDADES - UM PROJETO PARA AS CIDADES DO BRASILO MUNDO MUDOU, A SOCIEDADE BRASILEIRA MUDOU, A ECONOMIA BRASILEIRA MUDOU, A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO MUDOU E O PROCESSO DE URBANIZAÇÃO TAMBÉM

Diversos autores concordam que o Brasil vive o fi m de um ciclo. O país cresceu eco-nomicamente a altas taxas (PIB de mais de 7% a.a), entre 1940 e 1980, quando o país se industrializou e se urbanizou. Esse período foi seguido pelas chamadas déca-das perdidas (1980 e 1990) marcadas pelo fi m da ditadura (1964-85) e depois pelos anos conhecidos pelo fenômeno do lulismo (Singer, 2012): crescimento econômico com alguma distribuição de renda seguido de crise.

No contexto internacional, durante os anos 70, vivemos a transição entre o capitalismo do Estado-providência e a globalização neoliberal, com a fl exibilização do grande acor-do entre Estado, Sindicatos e Capitais sob a crescente hegemonia do capital fi nanceiro. A desigualdade e a informalidade se aprofundaram. Direitos foram fl exibilizados.

Nas cidades do mundo, a globalização neoliberal escreveu vários capítulos: o plane-jamento estratégico, o “urbanismo do espetáculo”, o urbanismo dos megaeventos, a cidade global ou cidade mercadoria (que se vende e compete com outras para atrair capitais), smart cities ( conferir glossário) e fi nalmente a fi nanceirização que levou às bolhas imobiliárias (conferir glossário) mais evidentes nos EUA e na Espanha (Arantes, 2000; Vai-ner, 2011; Fix, 2011). Esses capítulos também puderam ser lidos nas cidades brasileiras (com as especifi cidades decorrentes da condição capitalista periférica) com algumas va-riações proporcionadas pelos movimentos democráticos pós ditadura de 1964.

As mudanças vividas pelo capitalismo global – hegemonia do capital fi nanceiro e conglomerados internacionais, internacionalização da produção e do consumo, mu-danças na tecnologia e organização da produção – impactou a indústria brasileira, fortemente, reduzindo sua expressão e ampliando sua internacionalização, em três momentos principais: (1) governo Collor, (2) governo FHC e, mais recentemente, (3) no governo Temer, após impedimento da presidenta Dilma Roussef marcando o fi m de um breve período democrático e distributivo. O peso da indústria no PIB brasileiro recuou, em 2015 às proporções de 1910 (Pochmann, 2017).

Paralelamente, enquanto o país retorna à condição primordial de exportador agrá-rio (commodities: grãos, carnes, celulose, minérios) há uma profunda mudança na ocupação do território com a interiorização do agronegócio e também do cresci-mento urbano. Crescem mais as cidades médias (em PIB e em população) do que as metrópoles, de um modo geral , a partir dos anos 80, e crescem mais as cidades do norte e centro oeste.

Durante o período do lulismo todas as regiões do país cresceram mais, economi-camente, do que o sudeste, que, entretanto, continua a concentrar maior poder econômico (Araújo,2000; Diniz, 2001).

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11GT DE CIDADES

INDUSTRIALIZAÇÃO E URBANIZAÇÃO DOS BAIXOS SALÁRIOS

O processo de industrialização tardia se deu paralelamente ao processo de urbanização, de forma concentrada, com migrantes rurais atraídos pelas metrópoles (e expulsos do campo), principalmente da região sudeste.Essa “industrialização com baixos salários” correspondeu uma “urbanização dos baixos salários”, isto é, a maior parte da classe tra-balhadora migrante resolveu os problemas do seu assentamento nas cidades com seus parcos recursos, construindo suas próprias casas, sem a atenção das políticas públicas. Além de contribuir com o processo de acumulação, de base industrial, essa força de tra-balho barata não disputou os investimentos públicos urbanos (habitação, saneamento, mobilidade, etc) que se concentraram na cidade priorizada pelo mercado imobiliário, legal, capitalista. Especulação rentista imobiliária (conferir glossário) de um lado é o con-traponto da escassez habitacional (Maricato, 2015).

A LUTA CONTRA A DITADURA, MOVIMENTOS SOCIAIS E REFORMA URBANA

O processo de urbanização/industrialização com concentração de renda e repressão política gerou cidades muito desiguais e problemáticas. Nos anos 70, nas fábricas e bairros surgiram novos personagens (Sader, 1988) que se organizaram em sindicatos e movimentos sociais para conquistar melhores salários e condições de trabalho, e melhores condições de vida urbana. Estimulados pelas CEBs – Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica e remanescentes de esquerda, da luta contra a ditadura, os movimentos sociais, que lutavam por moradia, transportes, água enca-nada, creches, postos de saúde, escolas, iluminação pública, recuperaram a proposta de Reforma Urbana do período pré-1964 e passaram a discutir uma plataforma de cidade inclusiva e democrática. Esse processo, somado à ascensão do movimento operário, camponês (MST) e de artistas logrou criar novas instituições (CUT, CMP, CGT), novos partidos (PT, PDT, PSB e PCB e PC do B que saíram da clandesti-nidade), que levaram à conquista de uma nova Constituição Federal em 1988. A Emenda Popular Constitucional de Reforma Urbana não foi aprovada como que-riam os movimentos sociais, mas elevou o direito à moradia à condição de direito social, e inspirou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 88 consagrando a Função Social da Propriedade e a Função Social da Cidade.

PREFEITURAS DEMOCRÁTICAS E POPULARES E A DEMOCRACIA DIRETA NA DISCUSSÃO DO ORÇAMENTO PÚBLICO

Faziam parte das lutas pela Reforma Urbana profi ssionais (arquitetos, engenheiros, as-sistentes sociais, geógrafos, advogados), ONGs, sindicatos e movimentos sociais urba-nos. Enquanto a eleição direta para presidente, governador e prefeitos das capitais era proibida, os movimentos ligados à proposta de Reforma Urbana conquistaram prefei-turas de municípios menores e passaram a desenvolver experiências de administração pública inovadoras. Os bairros de moradia dos trabalhadores, antes ignorados pelas

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12 GT DE CIDADES

gestões municipais, tornaram-se foco dos investimentos sob a bandeira da “Inversão de prioridades”. Levar cidade – água, esgoto, drenagem, coleta de lixo, iluminação pú-blica, equipamentos sociais – às periferias e favelas passou a ser prioridade de governo. Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Salvador iniciaram essas práticas.

Outro programa importante que nasce dessas práticas é hoje denominado Assistên-cia Técnica à Habitação de Interesse Social. Arquitetos e engenheiros projetando moradias populares com participação social tem permitido a construção de mora-dias de boa qualidade arquitetônica e construtiva com baixo custo. Esse programa, que se consolidou na gestão de Luiza Erundina em São Paulo (quando a eleição direta nas capitais já era admitida), inspirou a Lei federal de Assistência Técnica que, como muitas outras, espera condições favoráveis a sua aplicação.

Para driblar o alto custo dos metrôs, as prefeituras implementaram corredores de ônibus e integração modal (conferir glossário), replicando uma proposta iniciada em Curitiba. A criação do SUS (EC n. 29) trouxe novas práticas para a área de saúde. Segurança alimentar se tornou tema de políticas públicas, junto com o cultivo de alimentos saudáveis.

Tendo como referência a proposta dos Centro Integrado de Educação Popular - CIEPs, concebida por Darcy Ribeiro para o Governo de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, surge renovada a proposta de educação em tempo integral com alimen-tação, práticas artísticas, esportivas e culturais além do ensino fundamental, nas periferias das cidades.

Conselhos participativos se multiplicaram orientando a formalização de políticas públicas: criança e adolescente, idoso, educação, saúde, segurança alimentar, habi-tação, desenvolvimento urbano, mulheres, igualdade racial, LGBT, entre outros.

Mas é o orçamento participativo o programa mais bem sucedido. Na experiência de Porto Alegre, implantou-se a democracia direta na orientação do orçamento público, denominado “orçamento participativo”. A repercussão internacional e a disseminação pelo Banco Mundial levaram à distorções da proposta original. A re-ferência permanece mostrando que a gestão democrática e participativa é possível.

Um importante, moderno e avançado conjunto de leis, dirigido às cidades, teve iní-cio com a CF 88. Faz parte dele: O Estatuto da Cidade (Lei federal 10.257/2001), a lei do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, a Lei de Consórcios Públicos (2005), a Lei do Saneamento Básico (2007), a Lei dos Resíduos Sólidos, a Lei da Mobilidade Urbana, O Estatuto da Metrópole (2015) entre outras. Leis avançadas para uma realidade arcaica: permanecem desconhecidas pelo Judiciário, Ministério Público, mas também por executivos e legislativos bem como pela maio-ria da sociedade.

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13GT DE CIDADES

A CRISE URBANA ESCANCARADA: JUNHO DE 2013

Os acontecimentos de junho de 2013, quando milhares de pessoas foram às ruas pro-testar contra, inicialmente, o aumento da tarifa dos ônibus urbanos exigem um maior aprofundamento da análise. Marcam o início da perda da hegemonia do Partido dos Trabalhadores e entidades tradicionais de esquerda nas manifestações de rua, e no-vos movimentos e coletivos se fazem presentes. Certamente os movimentos de direi-ta, pagos por grupos empresariais e mesmo por milionários americanos, já tinham seus ideários ali. Mas o que as manifestações acentuam é que se torna impossível esconder a piora nas condições de vida urbana. Basta olhar os dados do tempo cres-cente perdido nas viagens urbanas (ANTP), os crescentes congestionamentos pro-vocados pelo aumento da circulação de automóveis, o crescente número de mortos ou acidentados no trânsito, a crescente poluição do ar e, o que é pior, o aumento das tarifas por um transporte coletivo de má qualidade (Maricato, 2013).

Muitos recursos foram dispendidos em mega obras para receber a Copa do Mundo no Brasil. Depois foi a vez de o Rio de Janeiro ser preparado para as Olimpíadas, seguindo uma gigantesca operação imobiliária – marcada pelo “urbanismo do espe-táculo” – que expulsou para as periferias mais de 40.000 pessoas pobres (Faulhaber e Azevedo, 2015; Vainer et al, 2016).

Além do boom automobilístico, as cidades viveram um boom imobiliário (conferir glossário) que fez o metro quadrado dos imóveis atingir patamares entre os mais altos do mundo (Revista Exame, 2011). As cidades médias passaram por um forte processo de espraiamento com a disseminação, por todo território nacional, do loteamento fechado. O produto do mercado imobiliário que é mais lucrativo e mais se dissemi-na, estendendo horizontalmente a ocupação urbana, contraria a lei federal 6766/79 que regula o parcelamento do solo. O Programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009 pelo Governo federal, retomou de forma espetacular o investimento em moradia, com subsídios nunca antes praticados para a população de baixa renda, mas esqueceu-se das lições da Plataforma da Reforma Urbana: é preciso controlar o acesso a terra ou conter a especulação imobiliária desenfreada. E isso, segundo a CF-1988, é tarefa dos governos municipais.

Os programas habitacionais do ciclo virtuoso das “prefeituras democráticas e popu-lares”, a produção da habitação com assistência técnica e participação social, fi caram com apenas 2% do orçamento do PMCMV. O restante foi orientado pelos setores de construção e do mercado imobiliário. A máquina do crescimento tomou conta das cidades em simbiose com os fi nanciamentos das campanhas eleitorais.

Sobra uma constatação: no período das vacas magras, quando haviam poucos recur-sos para as políticas públicas havia espaço para a democracia direta nas defi nições da política urbana. Quando os recursos apareceram, como parte de um projeto

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14 GT DE CIDADES

desenvolvimentista para fazer frente à crise internacional de 2008, a democracia direta desapareceu. Nem a criação do Ministério das Cidades, com seu Conselho Nacional que inclui a participação de entidades da sociedade civil, nem as Confe-rencias municipais, estaduais e federal participativas, nem, fi nalmente, o arcabouço legal avançado conseguiram resistir à mudança na correlação de forças que engoliu a política de coalizão (Maricato, 2011).

RETOMAR UM PROJETO PARA AS CIDADES

Um novo projeto para as cidades no Brasil deve ser antecedido da refl exão crítica sobre a experiência recente aqui apenas esboçada.

Quais as causas do declínio do “ciclo virtuoso” da política urbana implementada por prefeituras municipais a partir dos anos 80? Qual o peso da conjuntura interna-cional nesse cenário? E da conjuntura nacional?

Porque os “Planos Diretores Participativos”, obrigatório nas cidades com mais de 20.000 habitantes, segundo o Estatuto da Cidade, não garantiu mudança signifi ca-tiva da desigualdade urbana?

Porque a Plataforma da Reforma Urbana, que tinha a questão fundiária como central, foi derrotada, em que pese a conquista do arcabouço legal avançado?

Porque a ampliação dos espaços participativos institucionais foi acompanhada do enfraquecimento da capacidade transformadora dos movimentos sociais?

Porque a “máquina do crescimento” (articulação entre capitais ligados à produ-ção do espaço construído, mercado imobiliário, capitais fi nanceiros e proprietários fundiários) tomou o controle das cidades no período do lulismo quando muitas políticas sociais foram implementadas?

Porque num período de políticas distributivas – aumento do salario mínimo, bolsa família, luz para todos, Prouni, Fies, PAA, Pronaf, subsídios do PMCMV- as condições de vida pioraram nas cidades (tempo de viagem/mobilidade, preço da tarifa do transporte coletivo, epidemias de dengue, zika, chikungunya, aumento estratosférico do preço dos imóveis, aumento exagerado da dispersão urbana, des-governo metropolitano)?

ALGUMAS SUGESTOES DE PROPOSTAS

Há todo um capítulo que deve ser dedicado à aplicação da legislação urbanística recentemente conquistada e ignorada: prioridade aos transportes não motorizados e coletivos; aplicação da função social da propriedade e da cidade; universalização do saneamento; respeitar a participação social no planejamento e gestão urbanos, entre outras. Que fazer para implementar o arcabouço legal que amplia direitos? Por exemplo, que fazer para que o Estatuto da Metrópole seja implementado garantin-do racionalidade e articulação entre governos nas metrópoles hoje desgovernadas?

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15GT DE CIDADES

Mesmo se considerarmos que a conquista dessa legislação não garantiu direitos e colocá-la como prioridade foi um equívoco dos movimentos ligados à Reforma Urbana cabe lutar por novas leis? Cabe manter a concepção descentralizadora da CF-1988, que dá tanta autonomia aos municípios? É necessário defi nir melhor o que se entende por função social da propriedade?

Sobre a questão ambiental: o ciclo que se encerra não viveu a urgência de fatos como o aquecimento do planeta, a crise hídrica, a ameaça dos agrotóxicos e trans-gênicos. Novos paradigmas devem ser introduzidos em um projeto para as cidades como: a diminuição da viagem dos alimentos; a agricultura urbana; a segurança alimentar; a proteção das reservas hídricas; proteção efetiva de APPs – Áreas de Preservação Permanente, APMs – Áreas de Preservação de Mananciais, mangues e dunas; a proteção efetiva e despoluição de cursos de água; a despoluição do ar com a priorização do transporte coletivo; a cidade de uso misto e compacta com garantia de habitação social (esta é atingível apenas com o controle efetivo sobre o uso e a ocupação do solo).Engajar o ensino fundamental na vida da cidade combatendo o analfabetismo urbanístico e implementar a política de extensão universitária pode-ria ser uma contribuição fundamental para combater a alienação e a representação da classe dominante sobre as cidades.

Muitas das propostas do ciclo virtuoso da política urbana merecem retornar à cena: as-sistência Técnica à HIS para reformas e novas moradias, urbanização de favelas e áreas precárias, construção de CEUs e CIEPs, entre outras, mas em especial o controle dos recursos públicos por meio do Orçamento Participativo merece ser replicado.

O grande tema da política urbana ainda é levar cidade à periferia, ou seja, colocar a periferia no centro: urbanizá-la, saneá-la, regularizá-la, propiciar mobilidade e quebrar com a escandalosa desigualdade e segregação que tem no preço do solo sua lógica.

Há evidências de novos personagens em cena: mulheres, negrxs, lgbt´s, movimen-tos ligados à cultura e à arte, movimentos ambientalistas, mobilidade urbana. Há novidades na apropriação dos espaços públicos urbanos em consonância com a mu-dança nas comunicações. Há a emergência de movimentos de jovens que ocupam escolas revelando o rompimento com a tradicional uma relação alienada dos jovens com a educação. Essa tendência se soma à mudança da classe trabalhadora que construiu o ciclo que ora se encerra exigindo mudança estratégica da esquerda. A desindustrialização, as fl exibilizações, as terceirizações, o empreendedorismo sobre os quais não podemos ter uma visão catastrofi sta.

COORDENAÇÃO: ERMÍNIA MARICATO E KARINA LEITÃO

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16 GT DE CIDADES

GLOSSÁRIOBR CIDADES - UM PROJETO PARA AS CIDADES DO BRASIL

SMART CITIESou Cidades Inteligentes se refere à aplicação dos instrumentos de Tecnologia da Informação, especialmente aplicativos em celulares, na gestão, no funcio-namento e no uso das cidades. Esses instrumentos podem efetivamente faci-litar, baratear e desburocratizar a relação do cidadão com a cidade bem como tornar sua gestão mais transparente mas também podem se prestar à histórica dominação exercida, na periferia do capitalismo, por empresas que detém a tecnologia e cobram por seu uso.

BOLHA IMOBILIÁRIAAumento rápido na produção e preço de imóveis durante um certo período seguido de queda também rápida com impacto no preços de ações, imóveis construídos, terrenos e aluguéis. Nas bolhas americanas e espanhola (2008), caracterizadas por especulação fi nanceira com papeis lastreados (inicialmente) em imóveis, houve forte impacto também nas condições de moradia devido aos despejos motivados pelo não pagamento de dívidas.

BOOM IMOBILIÁRIOAumento rápido na produção e preço dos imóveis durante certo período se-guido de queda brusca. O aumento da produção é sempre, necessariamente, garantido pela injeção de investimentos públicos ou privados para o fi nancia-mento. Em mercados imobiliários não regulados, acarreta o aumento do pre-ço da terra e de imóveis podendo, ao invés de diminuir a carência de moradia, aumentá-la. Há uma disputa entre capitais – de construção , de incorporação, fi nanceiro e proprietário da terra – pelos juros, lucros e rendas gerados nessa produção e comercialização.

ESPECULAÇÃO RENTISTA IMOBILIÁRIAA produção de edifícios e infraestrutura urbana, bem como a legislação urba-nística, gera valorização sobre terrenos e imóveis aumentando seu preço. Há uma disputa, na sociedade, pelos investimentos públicos e legislação que vai permitir ganhos rentistas pelos proprietários de imóveis ou de papéis lastrea-dos nos mesmos. A retenção de terras ou imóveis vazios aguardando valori-zação é a forma mais comum de especulação rentista imobiliária nas cidades brasileiras e ela contrasta com a grande carência de moradias.

INTEGRAÇÃ O MODALIntegração em rede das diferentes formas ou modos de viagem: a pé, de bi-cicleta, de transporte coletivo (trilhos ou pneu) , de transporte motorizado

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17GT DE CIDADES

individual (automóvel e moto). A mobilidade deve ser pensada como rede integrada assim como o bilhete pago pelos transportes coletivos.

REFERÊNCIAS

ARANTES et al. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petró-polis: Editora Vozes, 2000.

ARAÚJO, T. B. Ensaios sobre o desenvolvimento brasileiro: heranças e urgências. Rio de Janeiro: Revan/Fase, 2000.

DINIZ, C. A questão regional e as políticas governamentais no Brasil. Texto para discussão n. 159. Belo Horizonte: CEDEPLAR/FACE/UFMG, 2001.

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18 GT DE CIDADES

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GT DE REFORMA TRIBUTÁRIA

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1. QUESTÕES CENTRAIS NO DEBATE SOBRE A REFORMA TRIBUTÁRIA

Um dos principais mecanismos para a concentração de renda, riqueza e poder é transferir o fardo dos impostos para os mais pobres e a classe média, como lembra Noam Chomsky1. Trata-se de uma referência específi ca ao capitalismo em sua fase fi nanceira, pois nos chamados anos de ouro, a tributação exerceu um papel muito mais amplo nos países desenvolvidos, constituindo o principal instrumento a sus-tentar o Estado de bem-estar social e, juntamente com uma política de gastos bem orientada, a realizar a redistribuição de renda, promover investimentos e alcançar o pleno emprego.

A afi rmação de Chomsky também nos faz lembrar do caráter eminentemente po-lítico e ideológico da tributação. A tributação não é e nunca foi “neutra”, como pretendem os neoliberais. Para estes, o Estado deve interferir o mínimo possível na economia, mas, contraditoriamente, deve ser o garantidor da riqueza fi nanceira privada; a tributação deve se reduzir à sua função arrecadatória, não deve orientar investimentos e nem criar obstáculos ao livre comércio e fl uxo de capitais.

No Brasil, desde os anos 90, a pauta predominante da tributação segue, justamente, as premissas do neoliberalismo e, especialmente, as recomendações do Consenso de Washington. Na equação do ‘Consenso”, estão, de um lado, a sustentação sólida aos gastos governamentais (leia-se gastos fi nanceiros com os credores da dívida pública, como demonstra a experiência dos últimos 20 anos) conjugada com a redução da carga sobre os rendimentos dos mais ricos, e, de outro, a ampliação da base de inci-dência (leia-se aumento da carga de tributos indiretos, voltada, portanto, aos mais pobres). Em suma, aumentou-se a carga sobre os mais pobres para sustentar o duplo benefício aos mais ricos: a remuneração rentista e a sua desoneração tributária.

Desde então, o foco da discussão sobre a reforma tributária tem sido, basicamente, o tamanho da carga e a guerra fi scal: os empresários querem pagar ainda menos e os entes federados dizem que não podem abrir mão de arrecadação. Contudo, poucos discutem as verdadeiras defi ciências e injustiças do sistema tributário que empur-ram o ônus de fi nanciamento do Estado para os ombros dos mais pobres, dos traba-lhadores e da classe média assalariada, reforçando a concentração de renda e riqueza.

No campo democrático e popular, as questões que balizam este debate se iniciam por defi nir qual é o Estado que queremos e a quem deve servir. Um Estado que garanta direitos sociais universais ou não? A partir deste ponto, a questão central não é o tamanho da carga, mas a sua distribuição: quem vai pagar a conta do fi nan-ciamento do Estado e suas políticas públicas e em que proporção? A tributação será um instrumento de redistribuição ou de concentração de renda e riqueza?

1. Documentário Réquiem para o Sonho Americano.

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21GT DE CIDADES

GT DE REFORMA

TRIBUTÁRIA

Os diagnósticos, desafi os e propostas elencados nesta primeira síntese programática do GT de Reforma Tributária partem da premissa de que o modelo de Estado mais adequado para a construção de uma sociedade de bem viver, deve partir das princi-pais diretrizes elencadas na Constituição Federal de 1988, aperfeiçoando-as e rea-lizando-as, de modo a aprofundar seu caráter democrático em todas as dimensões, política, social e econômica.

2. PRINCIPAIS DESAFIOS À REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA TRIBUTÁRIA

Dentre os mecanismos difusores da desigualdade estão a predominância dos impos-tos indiretos na carga tributária, o esvaziamento da tributação das rendas dos donos do capital e a baixa tributação da propriedade, herança e outras formas de riqueza. Para além do problema distributivo, a concentração da carga tributária nos impos-tos indiretos é também nociva à efi ciência e à competitividade do sistema produtivo brasileiro.

Não obstante, é preciso evitar o entendimento simplista de que a simples redução da carga tributária incidente sobre o consumo já seria sufi ciente para a afastar o efeito regressivo do sistema fi scal como um todo, pois esta medida tão somente produzirá a diminuição da capacidade do Estado para promoção de políticas pú-blicas, o que por si só, constitui um importante fator de desigualdades. A solução encontra-se em outro sentido: é fundamental fortalecer a tributação direta sobre as altas rendas e a riqueza.

Um sistema tributário refl ete a correlação de forças políticas e sociais de um país. No Brasil, não é diferente. A estrutura regressiva é resultado da resistência histórica das classes proprietárias à tributação de sua renda e riqueza. Somente no bojo de um vigoroso processo de transformações sociais com forte mobilização popular será possível reverter tal situação.

3. PROPOSTAS PARA SUPERAR OS PRINCIPAIS PROBLEMAS DO SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO

3.1. REESTABELECIMENTO DA PROGRESSIVIDADE DA TRIBUTAÇÃO DA RENDA

A progressividade do Imposto de Renda da Pessoa Física, que visa a cobrar mais de quem ganha mais, foi neutralizada no governo FHC pela isenção concedida aos sócios e acionistas quanto aos lucros e dividendos recebidos das empresas. De outro lado, os rendimentos fi nanceiros e ganhos de capital são tributados exclusi-vamente na fonte a alíquotas mais baixas e não são submetidos à tabela progressiva

2. Revogação dos dispositivos que permitem a distribuição dos lucros e dividendos com isenção ou tributação favorecida (artigos 9º e 10º da Lei 9.249) e submeter esses rendimentos, bem como, os relativos às aplicações fi nanceiras e ganhos de capital à tabela progressiva, sem prejuízo das retenções na fonte. Sem essa medida, a elevação da alíquota máxima só alcançará os rendimentos do trabalho.

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do IR. Hoje, apenas os rendimentos do trabalho são tributados de forma pro-gressiva. Esta é a fratura exposta do sistema tributário brasileiro. Um segundo problema no que se refere ao IR, é o fato de nossa maior alíquota do IR (27,5%) ser muito baixa, inferior à praticada nos países desenvolvidos e mesmo aos países com algumas características semelhantes.

PROPOSTAS:

Submeter todos os rendimentos, independentemente de sua origem (se do capital ou do trabalho) à tabela progressiva de incidência2.

Reestruturar a tabela progressiva do IR, de modo a aumentar o limite de isenção para o equivalente ao Salário Mínimo mensal calculado pelo DIEESE e ampliar o número de faixas de incidência, com alíquotas mais elevadas, a partir dos rendimentos acima de 40 SM mensais.

3.2. ELEVAÇÃO DOS NÍVEIS DE TRIBUTAÇÃO SOBRE A PROPRIEDADE

Outro problema relevante é a baixa tributação do patrimônio no Brasil, ao contrá-rio de países com distribuição de renda e riqueza mais igualitária. A arrecadação dos tributos sobre o patrimônio (IPTU, ITR, ITCMD, IPVA, ITBI e IGF) é insignifi -cante, representa apenas 4,2% do total arrecadado no país.

De todos os tributos sobre o patrimônio no Brasil, o Imposto Territorial Rural foi o que mais sofreu a blindagem dos donos do poder. O caráter extrafi scal do ITR - o uso do tributo como instrumento capaz de desestimular a manutenção da terra ociosa - nunca cumpriu seu ideal, apesar da cobrança do imposto ser viável, como demonstraram algumas breves experiências na Receita Federal. Sua arrecadação, contudo, é irrisória unicamente por conta das resistências políticas dos grandes pro-prietários de terras.

O Brasil é um dos países que menos tributam a herança. O imposto que grava os pa-trimônios herdados é o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) de competência estadual. As maiores alíquotas praticadas no Brasil são de 8% e a alíquota média cobrada pelos fi scos estaduais é de 3,86% sobre o valor herdado, pra-ticamente um vigésimo da taxa praticada na França (60%), um décimo da vigente na Inglaterra e EUA (40%) e um terço da aplicada no Chile (13%).

Por sua vez, a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas não saiu do papel passados quase 30 anos da promulgação da Constituição Cidadã.

3. A proporção restante encontra-se em tributos de maior complexidade com relação à sua classifi cação por bases de incidência.

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GT DE REFORMA

TRIBUTÁRIA

Em relação ao patrimônio urbano, estudos e comparações internacionais demons-tram que há uma clara há uma clara subtributação dos imóveis e que o IPTU poderia saltar dos 0,42% do PIB para mais de 1% do PIB, somente com correções de iniquidades.

PROPOSTAS:

Administração compartilhada do IMPOSTO TERRITORIAL RURAL - ITR entre a União e os entes federados, observando os aspectos fundiário e ambiental que o tributo contempla como instrumento indutor do cum-primento da função social da terra.

Elevação das alíquotas máximas do Imposto sobre Herança (ITCMD) pelo Senado. Há também um projeto de lei que tramita no Congresso Na-cional de tributar a herança no imposto de renda, com alíquotas variando de 15 a 20% para heranças acima de 5 milhões (a previsão de arrecadação seria de R$ 1,6 bi.).

Regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas.

Ampliação dos critérios constitucionais para aplicação da progressivi-dade efetiva em relação ao IPTU.

3.3. REEQUILÍBRIO NA DISTRIBUIÇÃO DA CARGA TRIBUTÁRIA ENTRE AS BASES RENDA, CONSUMO E PATRIMÔNIO

No ano de 2015, quase 55% da arrecadação tributária nacional foi extraída da inci-dência sobre o consumo das famílias. Como os mais pobres consomem tudo o que ganham, sobre estes recai o maior peso dos tributos. Menos de 5% da arrecadação nacional incidiu sobre o patrimônio, refl exo da resistência histórica dos grandes pro-prietários em relação à tributação de seu patrimônio. E aproximadamente 29% do to-tal arrecadado no país se originou da tributação da renda de pessoas físicas e jurídicas3.

O tributo indireto mais importante do país é o ICMS, de competência dos Estados e do Distrito Federal. Responde por mais de 25% da arrecadação total do país. Em segundo lugar está a COFINS, contribuição social destinada ao fi nanciamento da Seguridade Social. Portanto, a redução dos níveis de tributação indireta passa ne-cessariamente por modifi cações nestes dois tributos. O desafi o se situa em como diminuir a regressividade do sistema tributário sem enfraquecer as receitas dos entes federados e o fi nanciamento da seguridade social.

GT DE REFORMA

TRIBUTÁRIA

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PROPOSTAS:

Aplicação efetiva do princípio da seletividade previsto na CF/88 em relação ao ICMS e ao IPI, de modo a reduzir a tributação sobre os bens essenciais, como os da cesta básica e outros de consumo básico popu-lar, e, de outro lado, a aumentar as alíquotas sobre os menos essenciais, de luxo e supér� uos.

O fortalecimento do IR da pessoa física, conforme proposta acima men-cionada, representará signi� cativo incremento no Fundo de Participação dos Estados e Municípios, podendo compensar eventuais perdas de arre-cadação dos Estados.

Redução das alíquotas da COFINS, compensando-se a perda de arrecada-ção com maior tributação sobre a base renda ou patrimônio. Há várias alter-nativas: aumento de alíquotas da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, criação de Contribuição Social sobre o grande patrimônio ou sobre a rique-za � nanceira ou, ainda, CS sobre a distribuição de lucros aos sócios e acionis-tas (nos últimos dois casos, necessitaria de alterações constitucionais).

4. TRIBUTAÇÃO SOBRE O SETOR EXTRATIVO MINERAL

A tributação do setor extrativo mineral também deve ser revista por conta do seu po-tencial arrecadatório e devido às suas peculiaridades: são recursos naturais esgotáveis que não benefi ciarão as gerações futuras e geram efeitos ambientais e sociais negativos. A participação do Estado na renda extrativa deve se dar não apenas pela tributação, mas também pela cobrança de royalties e compensações fi nanceiras em virtude do es-gotamento do recurso. Estas últimas devem ser sufi cientes para a geração de novas alternativas econômicas sustentáveis sem os recursos minerais. Nem a tributação, nem as compensações fi nanceiras servem para reparar danos ambientais ou sociais das ati-vidades. Estes danos devem ser internalizados como custos nos projetos de exploração.

PROPOSTAS:

Tributação diferenciada (da renda, do patrimônio e da própria extração).

Vedação legal de utilização de paraísos � scais nas transações de recursos minerais.

Arbitramento dos preços pela Administração Tributária para � ns de incidência dos tributos. 

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GT DE REFORMA

TRIBUTÁRIA

5. A REFORMA TRIBUTÁRIA NO ATUAL CONTEXTO INTERNACIONAL

O debate da Reforma Tributária costuma limitar-se a questões nacionais, sem levar em conta os impactos negativos na arrecadação fi scal próprios da economia globa-lizada: o crescente aumento do comércio intrafi rmas e o uso abusivo de paraísos fi scais nas transações internacionais, ou seja, da concorrência tributária interna-cional desleal. A erosão da base tributável e a transferência de lucros e riquezas para esses paraísos fi scais são, atualmente, a causa da maior perda de ingressos de receitas tributárias, bem como de injustiça fi scal mundial, na medida em que outros con-tribuintes, de menor capacidade contributiva, acabam por assumir uma fatia maior da carga tributária.

PROPOSTAS:

Tributar com taxas mais elevadas as operações realizadas com paraísos � scais.

Rever as estruturas dos acordos � scais para evitar que as multinacio-nais busquem a aplicação do acordo mais favorável.

Alterar a legislação para que os preços praticados entre a multinacio-nal e sua � lial re� ita a realidade.

Defender a proposta de que as multinacionais precisam ser tributadas como entidades únicas e não considerar a � lial como entidade separada – permitindo que cada país tribute os lucros das empresas proporcio-nalmente as atividades realizadas no país.

Exigir maior transparência dos informes tributários e � nanceiros das empresas multinacionais – devem ser divulgados em todos os países em que a empresa opera, independentemente do valor do lucro.

Divulgar os incentivos � scais oferecidos às multinacionais – todos os países deveriam adotar essa prática.

O Brasil deveria apoiar a criação de um organismo representativo in-dependente a nível mundial (ONU), para monitorar os efeitos da concor-rência tributária desleal e promover mudanças multilaterais.

Tributação sobre a exportação de commodities. COORDENAÇÃO: CLAIR HICKMAN E PAULO GIL

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GT DE SEGURANÇAPÚBLICA

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1. INTRODUÇÃO

Todas as tentativas de criar um projeto democrático de “segurança pública” no Brasil fracassaram, inclusive aquelas que procuraram dar um verniz democrático às atividades estatais. O resultado, perceptível a partir dos dados produzidos nos últimos anos (v.g., os que constam dos Anuários Brasileiros de Segurança Pública), é um quadro em que as respostas estatais ampliaram a violência, os direitos e garantias fundamentais passaram a ser vistos como obstáculos à efi ciência do Estado e a população está a cada dia mais amedrontada diante do “aumento da criminalidade” (sem ter ciência de que a crimina-lidade não é uma realidade natural, mas uma construção social com fi nalidade política, que nasce de fenômenos culturais – o confl itivo inerente à vida em comum – e de políticas estatais – os processos de criminalização) ao mesmo tempo em que desconfi a das instituições, isso em razão da possibilidade real de ser vítima da violência produzida tanto a partir de confl itos intersubjetivos quanto por ação dos agentes do Estado.

A partir da década de 1970, em todo mundo, a insegurança, que segundo o senso comum seria ocasionada pelo fenômeno da criminalidade (embora o aumento da “insegurança” não guarde relação necessária com o crescimento da violência), tor-nou-se uma questão política e social signifi cativa. Desde então, as ideias de “crimi-nalidade” e “violência” (se a violência intersubjetiva/vulgar é percebida por todos, a violência estrutural, inerente ao funcionamento “normal” das instituições, en-contra-se velada) passaram a ocupar o centro das preocupações dos cidadãos e com isso, em especial diante da manipulação política do medo nas cidades1, a questão da segurança pública emergiu como um tema central do debate político, mesmo em momentos ou locais em que a sensação de insegurança não correspondia ao efetivo risco vivenciado pelas pessoas. Assim, em períodos nos quais os crimes violentos di-minuíam, a sensação de insegurança continuava inalterada ou mesmo crescia, o que levava à adoção de atos estatais meramente simbólicos apresentados como respostas à criminalidade imaginária.

No Brasil, o controle da criminalidade e a construção de uma sociedade pacífi ca em que todos possam desenvolver suas potencialidades durante suas vidas são pro-messas constantes dos detentores do poder político (que, não raro, são também os detentores do poder econômico), mas até hoje as ferramentas técnicas e politicas apresentadas para realizar essas metas têm levado à violação sistemática dos direitos e garantias fundamentais e ao abandono de valores centrais da vida democrática. Bem ao gosto da razão neoliberal, avessa a regular o exercício do poder e que tem por fi nalidade a potencialização dos lucros, a “segurança pública” tornou-se uma mercadoria, sem qualquer compromisso com os direitos e garantias fundamentais, a ser explorada tanto por políticos quanto pelo setor privado. Em apertada síntese introdutória, pode-se afi rmar que “a segurança das pessoas e de seus bens foi elevada ao nível dos problemas sociais sobre os quais se discute sem saber muito bem como resolvê-los, de maneira que sua exacerbação se converte em capital político para

1. Sobre o tema, por todos: BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003.2 ROBERT, Philipe. El ciudadano, el delito y el Estado. Barcelona: Atelier, 2003, p. 30.

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SEGURANÇAPÚBLICA

quem souber manipulalo”2. Assim, a conjugação de fortes interesses políticos com os interesses econômicos daqueles que exploram tanto o medo do cidadão quan-to os signifi cantes “criminalidade”, “violência” e “corrupção”, tudo isso somado à tradição autoritária em que está inserida a sociedade brasileira, à tendência de apre-sentar respostas simplistas para questões complexas e à ausência de um adequado diálogo político que permita construir consensos e administrar adequadamente os necessários dissensos, faz com que as políticas de segurança pública apresentadas à população revelem um estado de primitivismo, que se traduz quase que exclusiva-mente ao recurso ao poder punitivo (ao uso da violência estatal) e à produção de leis que aumentam penas e restringem direitos individuais.

2. DO(S) DIREITO(S) À MERCADORIA: A CONTAMINAÇÃO IDEOLÓGICA DO SIGNIFICANTE “SEGURANÇA PÚBLICA”

Ao longo dos últimos anos não se vislumbram avanços signifi cativos na compreen-são e no desenvolvimento de soluções frente ao crescimento da violência (intersub-jetiva, simbólica e estrutural) e do medo relacionado à insegurança. De igual sorte, não foram formuladas ou executadas políticas de segurança pública que superem as promessas populistas de exclusão ou eliminação de criminosos.

Diante da ausência de refl exão séria sobre a questão da segurança pública, da tradi-ção autoritária em que a sociedade brasileira está lançada (que faz com que se apos-tem em resposta de força para os mais variados problemas sociais), da insistência em respostas mágicas para a questão da “criminalidade” e da falta de políticas públicas efetivas para a redução das violências e a administração dos confl itos intersubjetivos, gerou-se a ideia de que a insegurança é um fenômeno natural (como uma “peste”). Esses mesmos fatores que, por um lado, ocultam o fato do crime e da criminalidade serem construções sociais com funcionalidade real (controle das populações indeseja-das) distinta daquela que consta dos discursos ofi ciais, por outro, fazem com que se insista que a criminalidade deve ser enfrentada a partir da virtude, da bravura pessoal e da honestidade dos atores sociais (messianismo). Assim, como percebeu Alberto Bin-der, na questão da segurança pública, “a sociedade fl utua entre a sensação de peste e o messianismo que promete uma sensação milagrosa, sem admitir que ambos os extremos partem de uma mesma atitude frente ao problema: um conservadorismo carente de ideias, pouco disposto a aprofundar a análise e menos ainda disposto a arriscar o dese-nho de políticas complexas que nos permitam enfrentar um problema social também complexo e multifacetado”.3

Interessante reconhecer a utilização no campo da segurança pública do mesmo me-canismo já utilizado há séculos: o da ideia de “peste”. Explica Binder que “segundo esse mecanismo a violência e a insegurança são um mal indeterminado, em sua extensão, em suas formas e em suas causas, mas tangível e mortal. A peste gera me-canismos de defesa que (...) permitem dividir a sociedade em quatro categorias: os

3 BINDER, Alberto. Política de seguridad y control de la criminalidad. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2010, p. 12.4 BINDER, Alberto. Política de seguridad …, cit., p. 45.5 DIETER, Maurício Stegemann. Política criminal atuarial: a criminologia do � m da história. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

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doentes, os potencialmente vítimas, os transmissores e os incontamináveis”,4 que podem ser selecionados e tratados a partir de um cálculo atuarial5.

Registre-se que a fragilidade das políticas de segurança pública começa com a fra-gilidade da análise do fenômeno da criminalização. Não são poucas as difi culdades, quando não se verifi ca a total ausência, da produção de informação e da análise de informação relacionadas às condutas etiquetadas de criminosas. Diversos são os fatores que difi cultam a formulação de políticas públicas sem a existência de dados confi áveis, a começar pela aposta politica em substituir a produção de informações relevantes sobre os confl itos e a violência verifi cados na sociedade brasileira por compra de material bélico e medidas de força no combate de inimigos, estes tam-bém produzidos por opção política.

Também não há planifi cação, coordenação e refi namento da análise das poucas informações sobre as condutas etiquetadas de criminosas produzidas nas diversas cidades, nos estados-membros e na esfera federal. Os poucos esforços nessa área re-velaram-se insufi cientes, em especial porque as informações, que em regra provém de fontes policiais e judiciais (pouco confi áveis e impregnadas de preconceitos) e de poucas fontes autônomas, têm como lógica preponderante a de contabilizar pessoas e casos. Apesar de úteis, esses dados (número de homicídios, de roubos, a quantidade de droga ilícita apreendida, etc.), e mesmo os ainda mais raros dados sobre a análise espacial da criminalização (os “mapas da criminalidade”), não per-mitem compreender satisfatoriamente o contexto, a complexidade dos fenômenos e a chamada “regularidade social” (ou seja, o que há de comum entre casos e pessoas envolvidas em situações problemáticas que o legislador decidiu tornar cri-mes), indispensável à formulação de políticas públicas sérias capazes de modifi car uma dada realidade.

Pouco se sabe sobre a dimensão social da chamada “criminalidade” e o desenvolvi-mento dos confl itos em nosso país. Como todo “crime” é construído para dar conta de um confl ito que se pretende regular com a ameaça de uso da violência estatal, o conhecimento da base social das situações problemáticas é indispensável à formula-ção de políticas públicas sérias e capazes de administrar essas situações confl ituosas de forma democrática, sempre que possível sem recurso à violência. Todavia, no Brasil tanto a formulação das políticas de segurança pública quanto os processos de criminalização se dão sem a produção e análise de informações úteis à compreensão e à superação dos confl itos.

O desconhecimento sobre a base social das situações problemáticas que atualmente são etiquetadas de crime pode, ao menos em parte, ser explicada pela eleição da ideia de “ordem” como paradigma elementar à compreensão do fenômeno “crime”. Segun-do esse paradigma, toda situação problemática, em especial aquelas etiquetadas como criminosas, é uma desordem, coloca em risco a harmonia social e compromete o ideal

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SEGURANÇAPÚBLICA

(autoritário e ilusório) de ordem, razão pela qual deve ser combatida. Essa ideia de “or-dem” tem fortes raízes históricas que acompanham o desenvolvimento do pensamento ocidental (basta pensar na “ordem natural” presente no pensamento greco-romano, na “ordem teológica” da Idade Média, na “ordem racional” da Ilustração ou na “ordem” positivista que foi ter à nossa bandeira). Não se estranha, portanto, que para muitos a política de segurança pública deva ser uma política de restabelecimento da ordem.

Para além da impossibilidade fática de uma “ordem” inatacável na sociedade, que só existe como ilusão, uma vez que a história é atravessada por confl itos que renovam as formas sociais e seus valores, não se pode deixar de afi rmar o caráter anti- demo-crático da ideia de “ordem”. Em primeiro lugar, a ideia de “ordem” (que remete à natureza, a Deus ou à razão) estabelece um princípio absoluto que se subtrai do de-bate democrático. Segundo: exige uma pessoa ou um grupo capaz de afi rmar o que é a “ordem” e que não admite contestação. Por fi m, essa ilusão de “ordem” propicia uma visão linear, simplista e refratária ao debate relativo ao conjunto de fenômenos alcançados pelas políticas de segurança pública, o que impede a formulação e a execução de formas não violentas de administrar as situações problemáticas que no paradigma da “ordem” devem ser eliminadas.

A ideia de “ordem”, como paradigma à formulação de políticas públicas, adquire força semântica justamente em razão de sua simplicidade e, em especial, do imagi-nário relacionado ao seu contrário, pois a desordem é assimilada como catastrófi ca, sem que seja analisada com maior profundidade. Todavia, a ideia de “ordem” acaba por servir de óbice à construção de um modelo complexo, que respeite os aspec-tos positivos dos confl itos, e efetivamente capaz de formular respostas, em especial respostas não-violentas, às situações problemáticas que são inerentes ao convívio social. Por isso, construir um modelo comprometido com os direitos fundamentais e o respeito às diferenças passa por uma mudança de paradigma, com a substituição das ideias de ordem e exclusão da desordem (as chamadas “políticas da ordem”: law and order, broken windows, etc.) para a emergência de um paradigma comprome-tido com a concretização dos direitos fundamentais a partir da compreensão e da administração das situações problemáticas6.

De fato, sem compreender a origem, a intensidade e as características das situações problemáticas que estão na base daquilo que hoje acaba tratado como “um caso de polícia”, sobretudo suas funções negativas e positivas, seus vínculos tanto com outros tipos de situações problemáticas quanto com determinadas situações consideradas ade-quadas à vida em comum, torna-se impossível formular uma política pública efetiva para administrar, e sempre que possível reduzir, essas situações. Se é verdade que toda política de segurança propõe uma intervenção estatal, uma intervenção adequada à de-mocracia deve ser, ao menos, informada, inteligente e pautada por uma visão holística com o objetivo de produzir a menor ingerência possível sobre os direitos e garantias fundamentais de cada indivíduo, inclusive daqueles etiquetados de criminosos.

6 Há quem defenda a necessidade de um sistema institucional de gestão dos confi tos, ou seja, um conjunto de regras, instancias, procedimentos, agências e agrupamento de pessoas cuja atividade e função se vincula à busca de soluções à atividade de administrar confl itos. Por todos: BINDER, Alberto. Política de seguridad …, cit., p. 22.

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Não se pode esquecer que dentre as formas de administrar situações problemáti-cas, as menos democráticas são aquelas que recorrem ao uso da força, que histori-camente têm demonstrado ser a fonte permanente de abusos de poder do próprio Estado.

Em síntese, pode-se afi rmar que a mudança de paradigma necessária à formulação de políticas públicas para as situações problemáticas que apresentam regularidade social passa por um conjunto de princípios: a) deve existir a primazia de instrumen-tos não-violentos ou com histórico menos abusivo da pessoa; b) devem ser vedados instrumentos violentos se a situação problemática não tem já algum componente violento; c) não pode existir nenhuma situação problemática que por si só tenha uma “natureza” que exija uma intervenção violenta do Estado; d) a seleção de uma situação problemática como uma daquelas que reclamam uma intervenção violenta não pode ser rígida, ou seja, diante do caso concreto sempre deve ser buscada uma outra forma de intervenção que alcance o mesmo resultado social com o menor uso da violência.

Importante frisar que a decisão política de transformar uma situação problemática em um crime signifi ca uma autorização para intervir sobre essa situação de forma violenta. O populismo penal7, essa estratégia de segurança pública dirigida a obter demagogicamente o consenso popular, que propõe responder ao medo gerado pela confl itividade social com o uso do direito penal, em uma concepção tão duramen-te repressiva e violadora dos direitos e garantias fundamentais quanto inefi caz no que se refere às funções declaradas de prevenção, com suas soluções fáceis/mágicas (“tolerância zero”, direito penal desigual, “direito penal de três velocidades”, “direito penal do inimigo”, etc.) com o qual buscam agradar eleitores e cidadãos desinfor-mados da funcionalidade real dessas medidas, aposta no uso da violência (inclusi-ve como forma de solucionar, por exemplo, questões relacionadas à saúde pública como a das drogas ilícitas e do aborto) e, hoje, representa um grave risco a toda e qualquer política pública democrática. Impõe-se, pois, abandonar “o uso demagó-gico, declamatório e conjuntural do direito penal dirigido a espelhar e, sobretudo, alimentar o medo como rápida fonte de consensos”8.

Mas não é só. A razão neoliberal transformou a “segurança pública” em mercadoria e, como tal, direcionada à obtenção de lucros, que podem ser dos agentes públicos responsáveis pela prevenção e repressão ao crime, dos políticos que manipulam a sensação de medo dos eleitores ou das sociedades empresariais que exploram o mer-cado da segurança privada.

Nesse particular, é importante frisar a relação entre o controle penal da força de tra-balho, intimamente relacionado com o modo de produção capitalista9, e a transfor-mação do direito social à segurança pública, previsto na Constituição da República de 1988, em mercadoria.

7 SALAS, Deni. La volonté de punir. Essai sur le populisme penal. Paris: Hachette, 2005; PRATS, Eduardo Jorge. Los peligros del populismo penal. Santo Domingo: Finjus, 2008.8 FERRAJOLI, Luigi. El populismo penal en la sociedad del miedo. In La emergencia del miedo. Buenos Aires: Ediar, 2012, p. 57.9 Sobre o tema: RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Trad. Gislene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004; PACHUKANIS, Eugeni. Teoria geral do direito e marxismo. Coimbra: Centelha, 1977.

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Em cada fase do desenvolvimento do capitalismo é possível encontrar variações no trato do poder penal. A razão neoliberal, nova forma de governabilidade das economias e das sociedades baseada na generalização do mercado e na liberdade irrestrita do capital, levou à ampliação do recurso ao poder punitivo como forma de controlar/excluir aqueles que são indesejáveis ao mercado (tanto os que são inca-pazes de produzir e consumir quanto os inimigos políticos dos detentores do poder econômico). O Estado (que alguns identifi cam como “pós-democrático”) assume-se como corporativo e monetarista, com protagonismo das grandes corporações (com destaque para as fi nanceiras) na tomada das decisões de governo. Um governo que se põe abertamente a serviço do mercado, da geração de lucro e dos interesses dos detentores do poder econômico, o que faz com que desapareça a perspectiva de re-duzir a desigualdade, enquanto a “liberdade” passa a ser entendida como a liberdade para ampliar as condições de acumulação do capital e a geração de lucros.

É a razão neoliberal, ao condicionar a maneira de perceber os fenômenos, que leva à substituição dos cidadãos por consumidores acríticos (entorpecidos por televisores, smartphones, dentre outras “próteses de pensamento”10), e que direciona as ações à acumulação de bens, à ampliação dos lucros, aos interesses das grandes corporações e à circulação do capital fi nanceiro, bem como transforma direitos em mercadorias, portanto negociáveis. Vale mencionar que o signifi cante “democracia” não desapa-receu na atual quadra histórica, mas perdeu seu conteúdo. A democracia persiste como uma farsa, uma desculpa para o arbítrio, como uma senha que autoriza o afastamento de direitos.

O mesmo acontece com o signifi cante “segurança pública”. Em nome da “democracia” e da “segurança pública” rompem-se os princípios democráticos. Tanto a “democracia” quanto a “segurança pública” tornam-se vazias de signifi cado, o que guarda relação com o “vazio do pensamento” inerente aos modelos em que o autoritarismo acaba naturalizado. Não por acaso, as políticas de “segurança pública” produzidas na era neo-liberal/pós-democrática partem do paradigma da ordem (ordem, diga-se, necessária ao funcionamento do mercado, à ampliação dos lucros e à circulação do capital fi nancei-ro) e optam preferencialmente por respostas violentas e excludentes para aqueles que não interessam aos detentores do poder político e/ou econômico.

Diante desse quadro, o próprio signifi cante “segurança pública” tornou-se o que Nilo Batista11, inspirado em Cecília Meireles, chamou poeticamente de “palavra... perigosa”, ou ao menos, “suspeita”, isso porque ao longo da história brasileira, mes-mo antes do recrudescimento neoliberal das políticas de segurança pública, sempre esteve identifi cada com a imposição de dor, com o recurso inefi caz ao direito penal e com o afastamento/eliminação de direitos e garantias fundamentais.

A própria construção da ideia de um direito social à segurança pública serviu ao ocultamento de que o projeto político de viés democrático prioritário deve ser o da

10 TIBURI, Marcia. Olho de vidro: a televisão e o estado de exceção da imagem. Rio de Janeiro: Record, 2011.11 BATISTA, Nilo. Criminologia sem segurança pública, em Rev. Derecho Penal y Criminologia, B. Aires, 2013, ed. La Ley, ano III, nº 10, pp. 86 ss.

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realização dos chamados direitos primários, tais como a vida, a integridade física, a intimidade, a honra, a liberdade e, nas sociedades capitalistas, o patrimônio.

O direito à segurança pública, apesar de previsto na Constituição da República de 1988 como um direito fundamental, é, por defi nição, um direito/interesse secundá-rio, isso porque o “direito à segurança” sempre se refere, ou deveria se referir, a um outro direito/interesse, esse sim primário. A “segurança” relaciona-se com a garantia ou a realização de um outro direito/interesse, como por exemplo, o direito à vida ou os interesses patrimoniais: a segurança é a segurança da vida, do patrimônio, etc. Todavia, a construção ideológica que faz da “segurança pública” um valor em si, um direito independente dos direitos primários, desloca os projetos e investi-mentos da realização desses direitos primários para o artifi cial e secundário “direito à segurança pública”, o que faz surgir uma indústria e um mercado que lança uma enorme quantidade de produtos e serviços de segurança (muitos dos quais inúteis) direcionados aos órgãos de segurança pública mas sofridos pelas pessoas em geral.

Como explica Alessandro Baratta,

a segurança é uma necessidade humana e uma função geral do sistema jurídico. Em ambos os casos carece de conteúdo próprio porque, a respeito do sistema de necessi-dades, a segurança é uma necessidade secundária, e a respeito do sistema de direitos, a segurança é um direito secundário. Em uma teoria antropológica e histórica-social, a necessidade de segurança é acessória (e nesse sentido “secundária”) em relação a todas as outras necessidades básicas ou reais, que podem ser defi nidas como “primárias”. É a necessidade de certeza da satisfação de necessidades, assinalando à certeza um duplo signifi cado: discursivo (refl exivo) e temporal. A certeza discursiva (refl exiva) se refere ao objeto das distintas necessidades primárias, à sua construção e defi nição na esfera do intelecto e da linguagem; trata-se da necessidade de conhecer e comunicar as necessidades. A certeza temporal se refere à continuidade da satisfação, é dizer, à repetição dessa, para além da situação atual. Em ambos os sentidos, a necessidade secundária de certeza é determinada por sua satisfação em uma dimensão natural e instintiva, até alcançar uma dimensão histórica e intelectual.

No sistema jurídico a necessidade se apresenta na forma de direitos. Mas também nesse caso a necessidade de segurança não é uma necessidade primária, mas acessória (e nesse caso “secundária”) a todas as outras necessidades reconhecidas como direitos nesse sistema. Em relação aos direitos, a segurança adquire, sem embargo, dois signifi -cados diferentes, segundo seja observada de um ponto de vista externo ou interno em relação ao sistema jurídico. Considerando a necessidade de segurança em uma teoria sociológica do direito a pergunta que se coloca é: até que ponto o direito, entendido como sistema de operações, pode contribuir para a segurança da sociedade? Este é um questionamento direto da validade “empírica” do direito, na qual a segurança é concebida como um fato.

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Em uma teoria normativa (técnico-jurídica) do direito, ao contrário, o questiona-mento da segurança se dirige à validade “ideal” do direito. Na teoria sociológica se considera a segurança através do direito. Na teoria normativa se considera a segurança do direito: para esta concepção se utiliza frequentemente o sinônimo “certeza”. O ponto de vista empírico ou sociológico é externo ao sistema jurídico, o ideal ou téc-nico-jurídico é, ao contrário, um ponto de vista interno. A segurança (ou certeza) do direito do ponto de vista interno do sistema jurídico deve estar construída, por isso, em referência a normas e interpretações de normas; em outras palavras: normativa-mente e não do ponto de vista fático. Afi rmar que “os direitos são certos” signifi ca, do ponto de vista interno, que a norma que os protege é sufi cientemente clara, consis-tente com as regras e os princípios da Constituição e operacionalmente coerente com o procedimento legal em que se deve assegurar a sua “justiça”.

Pelo que se viu até agora, deveria resultar evidente que um “direito fundamental à segu-rança” não pode ser outra coisa que o resultado de uma construção constitucional falsa ou perversa. De fato, tal construção será supérfl ua, se signifi ca a legítima demanda de segurança de todos os direitos para todos os indivíduos (nesse caso, antes que de um direi-to à segurança seria melhor falar em segurança dos direitos ou do “direito aos direitos”) ou bem será ideológica, se implica a seleção de alguns direitos de grupos privilegiados e uma prioridade de ação do aparato administrativo ou judicial em seu favor e, ao mesmo tempo, limitações a direitos fundamentais reconhecidos na Constituição e nas Convenções Internacionais.12

Assim, qualquer proposta de uma política democrática de “segurança pública” deve superar a armadilha consistente na própria construção da ideia de um “direito à segurança pública” como algo distanciado e, não raro, em oposição aos direitos fundamentais/primários. Em outras palavras, um projeto democrático de segurança pública é na realidade um projeto de “segurança (e realização) dos direitos de todos”.

3. A QUESTÃO DAS “DROGAS ILÍCITAS”: A PRINCIPAL ESTRATÉGIA DE CONTROLE DAS POPULAÇÕES INDESEJADAS

Ao lado das condutas criminalizadas em nome da proteção do patrimônio, a políti-ca criminal das drogas etiquetadas de ilícitas (e sempre vale frisar o caráter arbitrá-rio da distinção entre drogas lícitas e ilícitas) é um dos principais instrumentos de controle das populações indesejadas dentro da lógica neoliberal. Impossível pensar a “segurança pública” no Brasil sem levar em consideração os danos à democracia produzidos pela política de drogas adotada.

Vale lembrar que o ideal de segurança erigiu-se como novo valor, em detrimento da liberdade, como elenca Erhard Denninger13. Assim, ampliaram-se as demandas por ordem e por projeções ilimitadas do exercício de atividades estatais de viés autori-tário14. Em nome da segurança os discursos repressivos se acirraram na fantasia de um

12 BARATTA, Alessandro. Seguridad. In Criminologia y Sistema penal: compilacíon in memoria. Buenos Aires: B de F, 2013, p. 200/202.13 DENNINGER, Erhard. Security, diversity, solidarity instead of freedom, equality, fraternity. In: Constelations. Vol.: 7. No.: 4. Oxford: Blackwell, 2000, p. 509. Segundo o autor, os valores de liberdade, igualdade e fraternidade herdados da revolução francesa foram suplantados pelos ideais de segurança, diversidade e solidariedade.14 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La legislacion de antidrogas latinoamericana: sus componentes de derecho penal autoritario. In.: Fascículos de Ciências Penais. Volume: 3. Número: 2. Porto Alegre: S.A. Fabris, 1990.

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controle total incidente nas condutas do ser humano, como no uso e venda de determinadas substâncias psicoativas, entre muitas outras.

Conhecer um pouco da história do homem signifi ca conhecer um pouco da his-tória do uso e do cultivo de diferentes substâncias psicoativas, quando, por diver-sas razões, o indivíduo sempre as utilizou para produzir alteração no estado de consciência, para efeitos mágicos, religiosos, medicinais, afrodisíacos, hedônicos e bélicos. Mas, com o surgimento do modo de produção capitalista, as drogas paulatinamente deixaram de ter só valor de uso e passaram a transformar-se tam-bém em mercadorias, reguladas pelas leis da oferta e da procura.15 Passaram a submeter-se às múltiplas formas de controle social, sendo umas difundidas, algu-mas regulamentadas, como as medicações psicofarmacológicas de que nos adverte Joel Birman16, e outras proibidas, reprovadas moral e criminalmente, etiquetadas como drogas ilícitas, o que autorizaria o uso da violência como resposta às situa-ções de uso e de comercialização.

No Brasil, o modelo sanitário de controle institucional das drogas consolidou-se na primeira metade do século XX, época em que a drogadição era tratada como uma doença de notifi cação compulsória. As autoridades sanitárias aderiram às técnicas higienistas, delineava-se um sistema médico-policial. Todavia, o ano de 1964, com o golpe militar, funcionou como uma baliza demarcatória da transição do modelo sanitário ao bélico, de ruptura da droga com conotação libertária, usa-da nas manifestações pelos movimentos de contestação, ao elemento de subver-são, onde passou a ser vista como estratégia comunista para destruir o Ocidente17 e as bases morais da civilização cristã, particularmente com a guerra fria18. Então, os governos militares elevaram a preocupação com a segurança pública à categoria de segurança nacional e estabeleceram os inimigos internos, inicialmente associa-dos aos comunistas e que se transfeririam para a fi gura dos trafi cantes de drogas.

A política criminal de enfrentamento às drogas foi potencializada por uma tríplice base ideológica: a defesa social, a doutrina de segurança nacional e o movimento de lei e ordem19. Ajustou-se à noção de combate ao inimigo, que deveria ser eliminado. Trata-se do modelo bélico de guerra às drogas, que se consolidou após o colapso da guerra fria20. Representou o deslocamento do aparato bélico e a continuidade da fabricação de armas, agora focadas em um novo alvo, o trafi cante de drogas.

No imaginário social, o trafi cante conjuga os piores adjetivos, uma categoria fan-tasmática, do jornalismo, da psicologia, não tem cara, é desumanizado, funciona como bode expiatório que é imolado, na conexão com as substâncias psicoativas21. Para Nilo Batista, não há nada mais parecido com a inquisição medieval do que a atual “guerra santa” contra as drogas, que demoniza a fi gura do “trafi cante – he-rege que pretende apossar-se da alma de nossas crianças”22. Mas afi nal de contas, “o que é essa entidade, tráfi co? Heresia. Existem garotos pobres que têm pai, mãe,

15 OLMO, Rosa del. Geopolítica de las drogas. In.: Revista Analisis, s/d, p. 56.16 BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 43.17 BATISTA, Vera Malaguti. Drogas e criminalização da juventude pobre no Rio de Janeiro. In.: Revista Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade. Nº. 2. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996, p. 238.18 Revestido do lema de que o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, o instrumento ideológico de controle foi elaborado pela Escola Superior de Guerra (ESG), com a colaboração da Missão Militar Americana (MMA).19 BARATTA, Alessandro. Fundamentos ideológicos da atual política criminal sobre drogas. Rio deJaneiro: Relume Dumará, 1992.20 O modelo bélico traduz-se em uma guerra suja, na qual o inimigo não joga limpo. Logo, o Estado não estaria obrigado, sequer, a respeitar as leis da guerra. Desta forma, na guerra contra a “criminalidade”, não seria necessário respeitar as garantias penais e processuais. ZAFFARONI, Eugenio Raúl;BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do direito penal. Vol.: I. Rio de janeiro: Revan, 2003, p. 58.21 Como alerta Maria Lúcia Karam: “há uma visão delirante das substâncias psicoativas, como se fossem ‘o inimigo’. O mistério e as fantasias passam a cercar essas substâncias tornadas ilícitas; o superdimensionamento de suas eventuais repercussões negativas, as informações falsas, como odesgastado mito da ‘escalada’; palavras vazias, de signifi cado desvirtuado ou indefi nido, mas plenas de carga emocional”. Cf.: KARAM, Maria Lucia. Pela abolição do sistema penal. In: Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 77. Alerta Nilo Batista que “as mistifi cações ideológicas retratam o dogma da ilicitude ontológica da droga”. BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Nº 20. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.22 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. Coleção Pensamento Criminológico, nº 5. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2000.

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nome (...) são pobres com suas obras criminais toscas; suas lambanças. (...)só que-rendo vender um mato para os garotos ricos. (...) É o único emprego do garoto que tem 14 anos”.23

Portanto, faz-se necessário ir além dos estereótipos esboçados grosseiramente, des-mistifi cá-los, para perceber que, na maioria dos casos pinçados pelo sistema penal, verifi ca-se a pobreza dos incriminados, como mulitas e trafi cantes famélicos, que magicamente se transformam em temíveis inimigos públicos. De onde se confi rma a criminalização da pobreza24 e a seletividade do sistema penal25, através da tipifi ca-ção do tráfi co de drogas. Aos jovens vendedores de droga, vasculhados nas favelas e periferias, entre negros e pardos, integrantes dos substratos mais baixos, aplica-se o paradigma criminal. Enquanto aos jovens consumidores, integrantes dos segmentos sociais mais altos, aplica-se o paradigma médico.

Esta mesma lógica pode ser verifi cada em perspectiva macro, quando os países mais pobres, localizados ao sul do planeta, são identifi cados na nacionalidade dos trafi cantes de droga que respondem ao paradigma criminal. Já os consumidores de droga nacionais dos países ricos, ao norte do planeta, são tratados como víti-mas, dependentes ou doentes26, consoante o paradigma médico. Logo os Estados Unidos encontraram na política criminal de drogas uma forma de ingerência e mesmo de intervenção, particularmente nos países do cone sul. A criminalização das drogas torna-se um pretexto integrante da geopolítica norte-americana, pelo estratégico controle em todo o continente e sobre todos os imigrantes, associados aos produtores, culminando até com a extradição ativa de um nacional27. Assim, assenta- se a funcionalidade mítica da droga que incide sobre os mais pauperizados da sociedade.28

O modelo de política criminal bélico adotado na atualidade expande substancialmente o sistema penitenciário e responde hoje pela prisão do maior número de internos. Con-soante os dados apresentados pelo Infopen, o sistema de informações do Departamen-to Penitenciário Nacional do Ministério de Justiça, publicados em 2016, mas referentes a 2014, 28% dos crimes cometidos são de tráfi co de drogas, que corresponde a elevada parcela de internos29. O tráfi co de drogas hoje é um dos principais fatores de encarce-ramento, que elege o Brasil como detentor da terceira maior população prisional do mundo, em termos absolutos30. Assim, ainda sobrecarrega o já superlotado sistema penitenciário, com um défi cit aproximado de 250.318 vagas31.

Além de suprimir a liberdade, a política criminal bélica e militarizada eleva a leta-lidade. Pois é o modelo de segurança pública do confronto que ameaça, verdadei-ramente, a saúde, a integridade física e a vida das pessoas, uma vez que pode ser constatado o pequeno número de casos de overdoses, se comparado ao dos mortos pela guerra às drogas. Os casos de violência institucional - que culminam em le-talidade escamoteada nos autos de resistência ou nos desaparecimentos - crescem,

23 BATISTA, Nilo. Todo crime é político. In: Caros amigos. Ano VII. No. 77. Agosto/2003, p. 28 a 33.24 WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Instituto Carioca de Criminologia. Coleção Pensamento Criminológico. Volume: 6. Rio de Janeiro: Revan, 2003.25 Zaccone desmistifi ca a seletividade em função de como o agente público enquadra o suspeito, no tipo penal do tráfi co ou do uso de drogas, consoante seu estereótipo, por características como raça, cor, condição social, localidade que foi encontrado. ZACCONE, Orlando. Sistema penal e seletividadepunitiva no trá� co de drogas. In.: Revista Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Instituto Carioca de Criminologia. Vol.: 14. Rio de Janeiro: Revan, 2006.26 OLMO, Rosa del. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990.27 OLMO, Rosa del. Geopolítica de las drogas. In.: Revista Analisis. s/d.28 Como foi demonstrado por Vera Malaguti Batista, na criminalização por drogas da juventude advinda dos estratos subalternos da população do Rio de Janeiro, entre 1968 e 1988, os jovens trafi cantes enquadrados eram 9,1% em 1968, em 1973 alcançaram 17,9%, seguidamente passaram para 24,2% em 1978 e fi nalmente atingiram 47,5% em 1983. Desde 1995, a apreensão de jovens pelo comércio ilegal de drogas ultrapassou 50% e já se tornou o principal motivo de repressão à juventude pobre no Brasil. MALAGUTI, Vera. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Instituto Carioca de Criminologia. Coleção Pensamento Criminológico: Volume 2. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, p.88.29 Disponível em: http://dados.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes- penitenciarias Acesso em: 02 de outubro de 2016.30 Consoante o relatório do Infopen, apresentado em 2016, referente ao período de dezembro de 2014, são 622.202 presos no país. E o número de presos provisórios é de 249.668 (40,13%). Todavia, segundo o CNJ são mais de 700.000 apenados se computados os que se encontram em prisão domiciliar. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cidadania-nos-presidios. Acesso em: 02 de outubro de 2016.31 Disponível em: http://dados.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes- penitenciarias Acesso em: 02 de outubro de 2016.

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sendo signifi cativa parcela atrelada à política criminal de drogas em voga.32 Segundo os últimos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram ofi cialmente registrados 3.009 óbitos provocados por ações policiais no país em 2014. Os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia são, respectivamente, os mais afetados, com respectivamente 965, 584 e 278 óbitos registrados. No ano de 2016, foi apresenta-do pelo Instituto de Segurança Pública o número de 645 mortos por autos de resistên-cia no Estado do Rio de Janeiro33. Desde a redemocratização, neste estado já morreram mais de 30.000 pessoas nos confrontos e mais de 100.000 desapareceram34. Não é sem motivo que Nilo Batista intitulou de política criminal com derramamento de sangue35 aquela à qual assistimos na contemporaneidade. Já passamos “da crítica da truculência e da militarização da segurança pública à sua naturalização, e agora, ao aplauso, adesão subjetiva à barbárie”36, frente a um colossal fi licídio, ao escândalo de uma sociedade que mata os seus próprios fi lhos37.

Existem muitos modelos diferentes do atual repressor, como o terapêutico, o cor-retivo, o reparador e o conciliador. Há alternativas ao proibicionismo, através de outras formas de controle às drogas como a legalização, a despenalização e a redu-ção de danos com foco na saúde, que sugere o uso controlado ou a substituição de substâncias. Por derradeiro, as substancias psicoativas devem ser compreendidas em uma esfera bem mais ampla, vinculadas às questões de saúde pública e inseridas nas discussões das políticas públicas. Isso quer dizer, frente a um modelo preventivo, interdisciplinar e plural. Pois do contrário, teremos o que Vera Malaguti chamou de política criminal de drogas do tigre de papel, cuja fraqueza provém de sua força. Ou seja, nada tem feito contra o demônio que fi nge combater: a dependência quí-mica.38

Nessa esteira, adverte Maria Lúcia Karam que somente “uma razão entorpecida pode crer que a criminalização das condutas de produtores, distribuidores e consu-midores de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas sirva para deter uma busca de meios de alteração do psiquismo, que deita suas raízes na própria história da humanidade”39 ou concorda com a expansão do poder punitivo, que criminali-za, prende e mata, em franca ameaça aos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

4. A POLÍTICA CRIMINAL NA ERA NEO-DESENVOLVIMENTISTA: BALANÇO DA QUESTÃO CRIMINAL NOS GOVERNOS LULA E DILMA

Luigi Ferrajoli, ao delinear as principais características dos Estados de Direito, pro-põe uma máxima que, de forma pragmática, projetaria as estruturas jurídicas e po-líticas nos sistemas democráticos ocidentais: “direito penal mínimo, direito social máximo”40. Na qualidade de tipo ideal (Weber), esse modelo-limite, denomina-do pelo autor como sistema garantista, que pretenderia agregar as virtudes das ex-

32 De acordo com os dados apontados pelo Mapa da Violência de 2016, referente ao ano de 2014, foram mortos por arma de fogo mais de 42.000 indivíduos, homens, jovens de 15 a 29 anos, negros e pardos, de onde se pode presumir de forma signifi cativa o peso da política de guerra às drogas. Foram registrados 59.627 homicídios em 2014. Tem-se 29,1 mortos para cada 100.000 habitantes. Disponívelem: www.http://fl acso.org.br/fi les/2016/08/Mapa2016_armas_web.pdf Acesso em: 02 de outubro de 2016.33 Disponível em: http://www.isp.rj.gov.br/ Acesso em: 02 de outubro de 2016.34 ARAÚJO. Fábio Alves. Das conseqüências da “arte” macabra de fazer desaparecer corpos: violência, sofrimento e política entre familiares de vítima de desaparecimento forçado. Tese de doutorado: IFCS/UFRJ, 2012.35 BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Nº 20. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.36 BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é muito mais complexo. In: Paz Armada. Criminologia de Cordel. Volume: 1. Instituto Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2012.37 BATISTA, Vera Malaguti. Filicidio. In: Crianças, adolescentes, pobreza, marginalidade e violência na América Latina e Caribe: relações indissociáveis? Orgs.: Irene Rizzini e Maria Helena Zamora. Rio de Janeiro: Quatro Irmãos/FAPERJ, 2006, p. 253-260.38 BATISTA, Vera Malaguti. O tribunal de drogas e o tigre de papel. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em: 05 de fevereiro de 2008.39 KARAM, Maria Lúcia. A lei e a razão entorpecida. In: Jornal do Brasil, 23/12/2001.40 FERRJOLI, Luigi. Direito e razão: a teoria do garantismo penal. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

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periências políticas do liberalismo, do welfarismo e do socialismo, apresentaria, como contraponto ótimo, os modelos de Estados autoritários, que seriam regu-lados pela máxima “direito penal máximo, direito social mínimo”. A tensão entre os dois tipos ideais sugeridos por Ferrajoli parece ser um interessante recurso para diagnosticar a experiência político-criminal brasileira da última década, notada-mente aquela que se inicia e se encerra com os governos Lula e Dilma, do Partido dos Trabalhadores (PT).

O primeiro ponto a ser destacado é o relativo aos níveis de incidência de delito na sociedade brasileira. Em razão dos altos índices de cifra oculta, típicos de modelos penais caracterizados pela infl ação legislativa, a concentração dos estudos ocorre, so-bretudo, em relação aos crimes violentos, praticados contra a pessoa, e que deixam vestígios materiais. Dessa forma, a análise das taxas de homicídio por 100 mil ha-bitantes tem fornecido um importante parâmetro para verifi car o grau de violência em uma determinada sociedade.

A partir dos anos 80, o índice de homicídios por 100 mil habitantes no Brasil au-mentou signifi cativa e constantemente, de aproximadamente 11 (1980) para 29,1 (2014), conforme os dados apresentados no “Atlas da Violência” pelo IPEA, em abril de 2016. Embora no período do primeiro governo Lula, entre 2003 e 2007, a curva de homicídios tenha apresentado um decréscimo importante (de cerca de 28,5 para 25 homicídios por 100 mil habitantes), invertendo a tendência das dé-cadas anteriores, “a partir de 2008 parece que se alcançou um novo patamar no número de mortes, que tem evoluído de maneira bastante desigual nas unidades federativas e microrregiões do país, atingindo crescentemente os moradores de ci-dades menores no interior do país e no Nordeste, sendo as principais vítimas jovens e negros” (IPEA, 2016:05). A idade, a cor da pele, a situação econômica, a escola-ridade e o local de residência são indicadores que permitem mapear quem é morto no Brasil: jovens, negros, pobres,com até sete anos de escolaridade e, ainda em sua maioria, moradores das periferias das grandes cidades. O quadro ganha sua real e preocupante dimensão se considerarmos que o Brasil concentra 10% dos homicí-dios mundiais. (IPEA, 2016)

Ocorre que o número de homicídios decorrente de ações policiais (letalidade poli-cial) representou, em 2014, 5% do total de mortes violentas intencionais no Brasil, sendo um índice 46% superior à quantidade de latrocínios registrada no mesmo ano, conforme os dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2015). Em relação ao ano de 2013, a letalidade policial aumentou 37%, sendo possível apontar que, em 2014, a cada 3 horas uma pessoa foi morta pela polícia no Brasil. O número de pessoas mortas pela polícia, no período de 2009 a 2013 é superior ao número de homicídios praticados pela polícia norte- americana entre 1983 e 2012, e o homicídio de pessoas negras foi superior em 30% ao das brancas, no quesito letalidade policial (FBSP, 2014).

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Grande parte dos registros ofi ciais dessas mortes decorrentes de ações da polícia apre-sentam situações em que os agentes públicos invocam uma atuação lícita, amparada pela descriminante da legítima defesa (autos de resistência). Inúmeras investigações empíricas, porém, como a realizada pela Human Rights Watch, têm apontado que existem “provas confi áveis de que muitas pessoas mortas nos supostos confrontos com a polícia foram, em realidade, executadas por policiais” (HRW, 2009:03). No Rio de Janeiro, estudo de 314 autos de resistência, no período compreendido entre 2003 e 2009, todos com pedido de arquivamento pelo Ministério Público, revela fortes indícios do uso abusivo do instituto da legítima defesa, na maioria dos casos contra evidentes provas produzidas na investigação preliminar41. É no mínimo um indicativo de distorção o fato de 99,2% dos inquéritos instaurados por auto de resistência, a partir de 2005, terem sido arquivados com o reconhecimento da legí-tima defesa42. Por outro lado, a “desproporção de óbitos de policiais e de suspeitos civis nesses confrontos tem deixado muitas suspeitas de que execuções sumárias estejam sendo tratadas como autos de resistência.”43

O alto índice de letalidade policial unifi ca o problema da violência produzida pelo crime com o da seletividade igualmente violenta produzida pelas agências de contro-le do crime. Em números absolutos, o Brasil apresenta a quarta população carcerária mundial, superando, em 2014, a marca de 620 mil presos, representando 300 pre-sos por 100 mil habitantes (DEPEN, 2015). A situação carcerária, porém, é ainda mais grave se pensarmos que estes números são estáticos, isto é, refl etem o quadro de encarceramento em uma data-base anual, e desconsideram o volume (dinâmico) de pessoas que circulam anualmente nos presídios. Além disso, se a população negra tem 30% mais chances de ser vítima de homicídio no Brasil, a possibilidade de ser encarcerada é 18% maior do que a branca. Os dados da realidade permitem Vilma Reis afi rmar que, em relação à juventude negra e pobre, “quem não é preso, já foi morto”44. No entanto, de forma alguma o encarceramento signifi ca uma alterna-tiva bem sucedida à violência, notadamente policial, pois estes sobreviventes não estão salvos nas prisões. Pelo contrário, os apenados são submetidos diariamente às mais radicais formas de sofrimento, visto que a realidade prisional brasileira, retrata-da em inúmeros trabalhos acadêmicos, reportagens jornalísticas e relatórios ofi ciais, permanece uma ferida aberta e insolúvel em nossa frágil democracia45, mesmo após a experiência política de governos democráticos de esquerda que, no campo social, conseguiram importantes avanços.

O paradoxal do cenário político e político-criminal na fase neo- desenvolvimentista é exatamente terem os governos populares conquistado notáveis avanços no que tange à ampliação e à manutenção dos direitos sociais – e neste ponto destacam-se as políticas públicas de inclusão social através de programas de distribuição de ren-da, redução de desemprego e ampliação do acesso ao ensino –, em harmonia com um modelo de direito social máximo no qual o Estado assume importante parcela de responsabilidade pela garantia dos direitos coletivos e transindividuais e, por

41 Nesse sentido: ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a desconstrução do poder punitivo. Rio de Janeiro: Revan, 2015.42 ZACCONE, Orlando. Indignos de vida ..., cit., p. 25.43 MISSE et alii, apud ZACCONE, Orlando, Indignos de vida..., cit., p. 25.44 REIS, Vilma. Juristas Negros e Negras por Vida e Liberdade no Brasil in Discursos Negros: legislação penal, política criminal e racismo. Brasília: Brado Negro, 2015, p. 05.45 CARVALHO, Salo e WEIGERT, Mariana de Assis Brasil. Sofrimento e Clausura no Brasil Contemporâneo. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

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outro lado, não terem enfrentado de forma direta o avanço gradual e constante do punitivismo, representado sobretudo pelas altas taxas de letalidade policial e pelo superlativo encarceramento, situação que projeta um modelo de direito penal má-ximo. A partir das tipologias propostas por Ferrajoli, nota- se uma espécie de dese-quilíbrio em relação às expectativas com o modelo de Estado, refl etido exatamente na questão penal.

A população carcerária nacional, no período dos governos Lula e Dilma, aumentou quase 10% ao ano e, neste mesmo período, as condições carcerárias, em seu aspec-to material, chegaram a níveis que podem ser classifi cados como sub- humanos: ausência de investimento em infraestrutura, com decorrente falta de vagas e super-população carcerária; ausência de prestação de serviços básicos de saúde, sobretudo em relação às mulheres presas; ausência de políticas de capacitação e valorização dos agentes prisionais, situação que facilita e agrava a violência no interior dos presídios; falta de programas efetivos de combate à tortura.

Não se pode negar, contudo, algumas iniciativas que, em tese, poderiam ter impac-tos positivos na reversão do quadro acima exposto. Nesse sentido, é importante re-ferir que foi iniciativa do Poder Executivo, através da Secretaria de Assuntos Legisla-tivos do Ministério da Justiça, a proposição e posterior aprovação da Lei 12.403/11, que modifi cou o Código de Processo Penal e ampliou as possibilidades de substi-tuição da prisão preventiva por medidas cautelares alternativas. Se lembrarmos que a média nacional de presos provisórios é superior a 40%, a promulgação de uma lei desta natureza permitiria reduzir os impactos negativos da agência carcerária no tecido social. No entanto, assim como ocorreu com leis que, na década de 90, em razão do incipiente mas expressivo aumento da população carcerária, instituíram novos critérios e ampliaram os substitutivos penais (penas e medidas alternativas à prisão), notadamente a Lei 9.099/95 e a Lei 9.714/98, o panorama seguiu inalte-rado. Note-se que no primeiro ano de implementação da Lei 12.403/11 o número de presos provisórios aumentou em 6,3% (DEPEN, 2013), não obstante, logica-mente, o uso das medidas cautelares alternativas como fi ança e monitoramento eletrônico. A evidente resistência dos operadores do direito às medidas alternativas ao encarceramento provisório e defi nitivo revela, igualmente, a falta de capacidade do Poder Executivo em coordenar ações conjuntas com o Poder Judiciário e o Mi-nistério Público, através dos seus órgãos de fi scalização e controle (CNJ e CNMP).

É alarmante a situação carcerária nacional. A ausência de políticas públicas na exe-cução penal potencializa a violência, visto a ocupação do espaço, que seria do poder público, por grupos e facções criminosas. O efeito criminógeno da omissão dos poderes públicos no âmbito penitenciário demonstra uma perspectiva no mínimo ingênua na elaboração de projetos efetivamente preventivos para segurança e garan-tia dos direitos das pessoas.

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5. A NECESSIDADE DE UM PROGRAMA POLÍTICO CRIMINAL DESENCARCERADOR: ALGUMAS PROPOSTAS

A contribuição teórica da Criminologia Crítica percebe o fracasso do sistema penal ao identifi car a incongruência abissal entre suas funções declaradas e suas funções reais, aquilo que Vera Andrade chama de ilusões de segurança jurídica46. As funções declaradas de prevenção da criminalidade e de ressocialização do criminoso – cujo fracasso histórico é assinalado pelo isomorfi smo reformista apontado por Foucault47

– constituem um discurso legitimador da repressão seletiva das classes subalternas, “fundada em indicadores sociais negativos de marginalização, desemprego, pobreza etc., que marcam a criminalização da miséria no capitalismo”48; de outro lado, as funções reais do sistema punitivo revelam-se um sucesso histórico, visto que a gestão diferencial das ilegalidades cumpre papel decisivo na manutenção do status quo, com a perpetuação das desigualdades socioeconômicas49.

A ordem social injusta e desigual é ancorada na seletividade do sistema de justiça criminal, no âmbito da defi nição legal, da aplicação da lei e da execução penal: “a) em primeiro lugar, a defi nição legal seletiva de bens jurídicos próprios das relações de propriedade e de poder das elites econômicas e políticas dominantes (lei penal); b) em segundo lugar, a estigmatização judicial seletiva de indivíduos das classes sociais subalternas, em especial dos marginalizados do mercado de trabalho (justiça penal); c) em terceiro lugar, a repressão penal seletiva de indivíduos sem utilidade no proces-so de produção de mais-valia e de reprodução ampliada do capital (prisão)”50. Na atual conjuntura, a política criminal tornou-se a governamentalidade privilegiada para conter os indesejáveis, os sobrantes da sociedade de consumo, e para criminali-zar os que insistem em resistir. O exercício do poder punitivo revela-se central

para a manutenção das estruturas seculares de dominação no contexto do capitalis-mo vídeo-fi nanceiro, como diz Vera Malaguti51.

Esta percepção evidencia-se notadamente relevante na atual quadra histórica, so-bretudo pela tendência contraditória que se acentua a partir do contexto que se convencionou chamar de redemocratização –culminando com a promulgação da Constituição da República de 1988 –, com o recrudescimento exponencial da pro-dução legislativa em matéria penal. Em matéria de política criminal, a nova república assiste à ofensiva autoritária.

Neste sentido, impõe-se o esforço de elaboração de um programa de política cri-minal que se coadune com o Estado Democrático de Direito, com respeito aos direitos e garantias fundamentais, voltado à superação das mazelas estruturais do atual sistema econômico. Para tanto, importa adotar a perspectiva teórico-prática minimalista penal, sem, entretanto, incorrer na equívoca legitimação do sistema

46 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de Segurança Jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogados, 1997.47 FOUCAULT, Vigiar e punir. Vozes, 1977, p. 239.48 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Crítica e a Reforma da Legislação Penal. Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/criminologia_critica_reforma_legis_penal.pd f. Acesso em 19/06/2015.49 CIRINO DOS SANTOS, A criminologia radical. Forense, 1981, p. 88.50 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Crítica e a Reforma da Legislação Penal. Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/criminologia_critica_reforma_legis_penal.pd f. Acesso em 19/06/2015.51 BATISTA, V. M., Adesão subjetiva à barbárie, p. 1.

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penal. Por este desiderato, necessário pugnar pela redução de sua incidência a um mínimo necessário, restrita a um núcleo absolutamente essencial de condutas par-ticularmente danosas.

A concepção minimalista preconizada por autores como Alessandro Baratta e Eu-gênio Zaff aroni52 adota o ponto de vista das classes subalternas, apontando como horizonte a superação das condições econômicas do capitalismo e do autoritarismo estatal. Neste sentido, salienta Baratta:

Nós sabemos que substituir o direito penal por qualquer coisa melhor somente pode-rá acontecer quando substituirmos a nossa sociedade por uma sociedade melhor, mas não devemos perder de vista que uma política criminal alternativa e a luta ideológica e cultural que a acompanha devem desenvolver-se com vistas à transição para uma sociedade que não tenha necessidade do direito penal burguês, e devem realizar, no entanto, na fase de transição, todas as conquistas possíveis para a reapropriação, por parte da sociedade, de um poder alienado, para o desenvolvimento de formas alterna-tivas de autogestão da sociedade, também no campo do controle do desvio.53

Considerando-se a pena como a intervenção estatal mais gravosa em face do indiví-duo, a perspectiva minimalista estabelece que não deve ser acionado o direito penal, e, por conseguinte, a pena criminal, caso existam outros instrumentos jurídicos não-penais capazes de resolver ou mitigar o confl ito social. O direito penal, por-tanto, deveria ser constantemente contido pelo Princípio da Intervenção Mínima, permeado pelas noções de fragmentariedade e subsidiariedade54.

Desta forma, preconiza a adoção de medidas de política criminal como descrimina-lização, descarcerização, desjudicialização, diminuição das penas, alternativas penais e justiça restaurativa.

Um programa político-criminal minimalista e redutor deve conceber o direito penal com base nos Direitos Humanos55. O conceito de direitos humanos recebe aqui fun-ção dúplice: uma função negativa, no que toca aos limites da intervenção penal; e uma função positiva, a respeito da exigência de ofensa real por meio do direito penal.

Desta forma, não empresta legitimidade à pena, preconizando a retração do poder punitivo que deve ser ao mesmo tempo limitado e defi nido pelo cânone dos direitos humanos. Como salienta Cirino dos Santos:

A criminologia crítica sabe que cárceres melhores não existem – e, por isso, propõe a abolição do sistema carcerário –, mas também sabe outras coisas: que toda melhora das condições de vida do cárcere deve ser estimulada, que é necessário distinguir entre cárceres melhores e piores, que não é possível apostar na hipótese de quanto pior, me-lhor. Por tudo isso, o objetivo imediato é menos melhor cárcere e mais menos cárcere,

52 BARATTA, Alessandro. Principios de derecho penal mínimo. Para una teoría de los derechos humanoscomo objeto y limite de la ley penal. Doctrina Penal, Buenos Aires, n. 40, 1987. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas. 5ª edição (2001). Rio de Janeiro: Editora Revan, 1991.53 BARATTA, A., Criminologia Críticae Crítica do Direito Penal, p. 207.54 BATISTA, N., Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro.

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com a maximização dos substitutivos penais, das hipóteses de regime aberto, dos me-canismos de diversão e de todas as indispensáveis mudanças humanistas do cárcere56.

Deste modo, a formulação de um programa político-criminal minimalista e demo-crático constitui um alicerce inarredável para a construção de um novo horizonte paradigmático para a democracia brasileira, para pavimentar um projeto popular para o Brasil. A tradição da Criminologia Crítica, de viés materialista histórico, pressupõe que uma reforma político-criminal deve ser desenvolvida em duas dire-ções principais: a) no sistema de justiça criminal, um programa de descriminaliza-ção e de despenalização radicais; b) no sistema carcerário, um programa de descar-cerização radical, com a máxima humanização das condições de vida no cárcere57.

Com esta preocupação fundante, passamos a apresentar um conjunto de proposi-ções, de modo ainda incipiente e sintético, que podem representar um projeto polí-tico-criminal democrático orientado à contenção do massacre humanitário promo-vido pelo sistema penal. De um lado, trata-se de redução de danos e minimização do sistema penal; de outro, aponta-se para a transição a um novo modelo de justiça criminal compatível com a democracia e com a afi rmação dos direitos humanos. En-tretanto, importa ressaltar que a resposta efetiva e concreta à confl itividade social não poderá ser assegurada apenas com a superação do sistema penal vigente, mas, sobretu-do com a superação das estruturais mazelas socioeconômicas da sociedade capitalista.

Descriminalização

1. Política criminal antiproibicionista. Legalização e regulamentação do comércio e uso de drogas de modo a superar o modelo bélico, puniti-vista e ine� caz vigente.

2. Descriminalização: a) de todas as contravenções penais; b) de quase todos os crimes punidos com detenção, cominando-se penas pecuniá-rias ou restritivas de direitos para os restantes; c) de todos os crimes de perigo abstrato.

3. Descriminalização dos crimes sem vítima, como o auto-aborto (art. 124 CP) e o aborto consentido (art. 125 CP). Garantir à vítima capacidade deci-sória quanto à persecução penal, através de ampliação dos casos de ação penal pública condicionada a sua representação ou de ação privada.

4. Descriminalização nas hipóteses do direito penal simbólico, especial-mente em crimes ecológicos e tributários, substituídos por ilícitos admi-nistrativos e civis dotados de superior e� cácia instrumental e social.

5. Descriminalização parcial dos crimes dos arts. 228, 229 e 230, respecti-vamente os crimes de Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma de Exploração Sexual, Casa de Prostituição e Ru� anismo, contanto que não compreendam condutas praticadas com emprego de violência, grave

55 BARATTA, A., Principios de derecho penal mínimo. Para una teoría de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal.56 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A Criminologia Crítica e a Reforma da Legislação Penal.57 CIRINO DOS SANTOS, J., A Criminologia Crítica e a reforma da legislação penal, p. 7.

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ameaça ou fraude, de modo a preconizar pela regulamentação da ativi-dade de pro� ssionais do sexo.

6. Superação da criminalização das opressões (homofobia, racismo, etc), por compreender que o Direito Penal não serve adequadamente à tute-la dos Direitos Humanos.

Despenalização

1. Implementação ampla de instrumentos de Justiça Restaurativa, com a aprovação do PL nº 7.00/2006, fomentando a superação do tradicional modelo punitivo.

2. Extinção do sistema de penas mínimas previsto em todos os tipos legais de crimes, abolido em legislações penais modernas por violar o princípio da culpabilidade e contrariar políticas criminais humanistas.

3. Redução da pena máxima de todos os tipos legais de crimes subsis-tentes, inspirados em concepção de política criminal repressivista e des-proporcional, imbuída do ideal de prevenção pela gravidade da pena.

4. Rede� nição e ampliação dos substitutivos penais (suspensão condicio-nal da pena, suspensão condicional do processo, livramento condicional, conciliação e transação penal) ou de extinção da punibilidade (notada-mente, prescrição, anistia, indulto, perdão judicial) na direção da mais am-pla despenalização concreta, com o objetivo de evitar os efeitos negati-vos do cárcere.

5. Implementação de indulto notadamente para crimes patrimoniais sem violência (furto, receptação e estelionato).

6. Extensão legal, por interpretação analógica in bonam partem, da ex-tinção da punibilidade dos crimes tributários pelo pagamento, aos cri-mes patrimoniais comuns não-violentos, nos casos de ressarcimento do dano ou de restituição da coisa.

7. Exclusão da agravante da “reincidência”, típica do modelo, típico de regimes autoritários, do “direito penal do autor”, com a consequente ampliação do âmbito de incidência das respostas penal alternativas à prisão.

Descarcerização

1. Vedação da pena privativa de liberdade para o crime de furto e de outros crimes sem violência, com a cominação exclusiva de penas res-tritivas de direitos ou pecuniárias.

2. Redução das hipóteses de prisão provisória somente a crimes pratica-dos mediante grave ameaça ou violência contra a pessoa.

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3. Restrição dos fundamentos da prisão preventiva, revogando-se os fundamentos com base na garantia da ordem pública e garantia da or-dem econômica.

4. Redução do tempo de cumprimento de pena para fazer jus ao livra-mento condicional, bem como extinção dos pressupostos gerais subje-tivos de comportamento satisfatório e demais exigências discricionárias.

5. Reformulação da remição penal mediante redução da equação de 3 dias/trabalho = 1 dia/pena para 1 dia/trabalho = 1 dia/pena.

6. Ampliação das hipóteses de regime aberto, mediante ampliação do li-mite da pena aplicada para concessão do benefício – de 4 (quatro) para 6 (seis) ou 8 (oito) anos, para evitar os efeitos negativos da prisão, além da economia de custos;

7. Aceleração da progressão de regime na execução da pena, mediante redução do tempo mínimo de cumprimento de pena no regime ante-rior – de 1/6 (um sexto) para 1/10 (um décimo) ou 1/12 (um doze avos) da pena, em vistas a reduzir os efeitos negativos da prisão.

8. Implementação da progressão per saltum, indicando o cabimento de regime menos gravoso ou prisão domiciliar, na hipótese de inexistência de vagas no regime ao qual o condenado tem direito, interrompendo o odioso desvio de execução penal, fato corriqueiro em todo o sistema prisional brasileiro.

9. Vedação da pena privativa de liberdade e da prisão provisória às mu-lheres gestantes e lactantes, com o cabimento de prisão albergue domi-ciliar e medidas cautelares não- privativas de liberdade.

10. Implementação do critério numerus clausus, de modo a impedir a superlotação das unidades prisionais, preconizando a adoção de prisão albergue domiciliar ou monitoração eletrônica do apenado.

Redução de danos no sistema penitenciário

1. Reforma prisional mediante prestação dos seguintes serviços públi-cos: a) instrução geral e pro� ssional, como condição de promoção hu-mana; b) trabalho interno e externo, como condição de dignidade hu-mana; c) serviços médicos, odontológicos e psicológicos especializados, como condição de existência humana.

2. Revogação do regime disciplinar diferenciado da Lei 7.210/84, com a redação da Lei 10.792/03, que viola o princípio de humanidade e os princípios constitucionais de dignidade do ser humano e de proibição de penas cruéis.

3. Implementação efetiva do Sistema Nacional de Prevenção à Tortura, constituindo Mecanismos e Comitês de Prevenção à Tortura em todos

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os Estados da federação, de modo a preconizar a erradicação da cultura de tortura e outros maus tratos no sistema prisional.

4. Adequação das instalações e alojamentos dos estabelecimentos pri-sionais aos parâmetros normativos vigentes, no que tange a aspectos como espaço mínimo, lotação máxima, salubridade e condições de hi-giene, conforto e segurança.

5. Efetiva separação dos detentos de acordo com critérios como sexo, idade, situação processual e natureza do delito.

6. Garantia de assistência material, de segurança, de alimentação ade-quada, de acesso à justiça, à educação, à assistência médica integral e ao trabalho digno e remunerado para os presos.

7. Adoção de medidas visando a propiciar o tratamento adequado para grupos vulneráveis nas prisões, como mulheres e população LGBT.

8. Implementação de programas de empregabilidade de presos e egressos.

9. Vedação da revista vexatória em presos e familiares de presos.

10. Vedação expressa às propostas de privatização do sistema penitenciário.

Política Criminal Judiciária

1. Determinação a todos os juízes e tribunais que, em cada caso de de-cretação ou manutenção de prisão provisória, motivem expressamente as razões que impossibilitam a aplicação das medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.

2. Aplicação imediata das audiências de custódia por todos os juízes e tribunais, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão.

3. Aplicação, sempre que for viável, de penas alternativas à prisão, em razão do reconhecimento que a pena é sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pela ordem jurídica, pela preservação da proporcionalidade e humanidade da sanção penal.

4. Determinação que o juízo da execução penal tem o poder-dever de abrandar os requisitos temporais para a fruição de benefícios e direitos do preso, como a progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, quando se evidenciar que as condições de cumprimento da pena são signi� cativamente mais severas do que as previstas na ordem jurídica e impostas pela sentença condenatória.

5. Reconhecimento do poder-dever do juízo da execução penal de aba-ter tempo de prisão da pena a ser cumprida, quando se evidenciar que as condições de efetivo cumprimento da pena foram signi� cativamente

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mais severas do que as previstas na ordem jurídica e impostas pela sen-tença condenatória.

6. Realização periódica de mutirões carcerários coordenados pelo Con-selho Nacional de Justiça, de modo a viabilizar a pronta revisão de to-dos os processos de execução penal em curso no país que envolvam a aplicação de pena privativa de liberdade em vistas a assegurar direitos vilipendiados dos apenados.

7. Fortalecimento e estruturação da Defensoria Pública em todos os Es-tados da federação.

8. Dotar de e� cácia o princípio acusatório: o pedido de arquivamento de inquérito pelo MP é vinculante, como também o será o pedido de absolvição; o MP será obrigado a quanti� car a pena que postula, e seu quantum con� gura o limite máximo do juiz.

9. O duplo grau de jurisdição constitui uma garantia individual: o MP não dispõe de recurso de mérito após a absolvição do réu.

10. Vedação aos mandados de busca e apreensão genéricos.

Política Criminal Policial

1. Reformulação do sentido do trabalho policial, fora do paradigma bélico.

2. Investimento maciço em políticas sociais.

3. Controle da intervenção dos meios de comunicação social no que tange à cobertura referente à questão criminal.

4. Superação das políticas de orientação Lei e Ordem.

6. ALGUMAS CONCLUSÕES

(a) Uma política pública de garantia dos direitos (segurança dos direitos em detri-mento do ideológico “direito à segurança”) exige a primazia de instrumentos não- violentos;

(b) Deve ser vedada a utilização de instrumentos violentos se a situação problemá-tica, ainda que etiquetada de “crime”, não tem qualquer componente violento. Impossível e desproporcional insistir com penas privativas de liberdade para situações problemáticas não-violentas (furtos, tráfi co de drogas, etc.);

(c) Todas as situações problemáticas devem admitir a possibilidade de intervenções estatais não violentas. Em outras palavras, não existe um confl ito ou uma situa-

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ção problemática que por si só tenha uma “natureza” que exija uma intervenção violenta do Estado;

d) A seleção de uma situação problemática como uma daquelas que reclamam uma intervenção violenta não pode ser rígida, ou seja, diante do caso concreto sem-pre deve ser possível uma outra forma de intervenção que alcance o mesmo resultado social com o menor uso da violência;

(e) A população negra, jovem e periférica é o objeto central da letalidade policial e da política de encarceramento;

(f ) A violência policial decorre fundamentalmente da formação militarizada e do paradigma bélico nas políticas de segurança;

(g) O enfrentamento da violência institucional, produzida pela polícia e legitimada pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, é um dos primeiros pontos a serem enfrentados em uma ação que vise a redução do índice de homicídios e do nível global de violência da sociedade brasileira, notadamente porque a vio-lência pública legitima e potencializa formas privadas de violência na resolução de confl itos;

(h) A incorporação do “punitivismo”, em sua versão populista, pelos poderes, em todas as esferas, requer reformas específi cas que estabeleçam vedações normati-vas ao encarceramento, em determinadas situações;

(i) O enfrentamento da superlotação carcerária, em curto e médio prazo, pressupõe a determinação de cláusula impeditiva (numerus clausus) de ingresso de presos além da capacidade do estabelecimento;

(j) Em termos gerais, uma estratégia racional para o controle do aumento das hi-póteses de criminalização e de punibilidade seria a aprovação do projeto de Lei de Responsabilidade Político-Criminal, apresentado à Câmara dos Deputados;

(k) A questão das drogas deve ser deslocada para o âmbito das políticas públicas de saúde.

COORDENAÇÃO: VERA MALAGUTI

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DIAGNÓSTICO GERAL

Existe uma ampla produção ancorada em diversos coletivos, movimentos popula-res, grupos de pesquisa e intelectuais, que têm discutido o tema da comunicação em seus diversos aspectos no Brasil.

Essa produção, em geral, é bastante segmentada, e por vezes ganha um caráter téc-nico, que difi culta uma apreensão pelos movimentos sociais e uma vinculação com a construção de um Projeto para o Brasil.

Um dos desafi os deste grupo de trabalho foi estabelecer seis eixos principais que devem nos ajudar a aprofundar o debate ao longo dos próximos meses.

A. ECONOMIAO setor de radiodifusão, o ramo editorial (jornais, revistas, livros), as empresas de te-lecomunicações, os grupos de tecnologia e as agências de comunicação/publicidade se constituíram em grandes grupos econômicos, organizando-se como oligopólios trans-nacionais, com papel central no próprio processo de acumulação capitalista - para além de sua importância como organizadores do debate político e econômico. As empresas de Comunicação são parte do núcleo central e mais poderoso do capitalismo no Brasil.

B. TECNOLOGIA/INFRAESTRUTURAA articulação das empresas de telecomunicação, com a generalização da internet e das redes sociais, por meio do desenvolvimento de aparelhos cada vez menores e mais fun-cionais, é o aspecto mais perceptível do monumental desenvolvimento tecnológico da humanidade nos últimos 30 anos. O debate envolve ainda o alcance da TV digital e da TV a cabo.

C. REGULAÇÃO DA RADIODIFUSÃO O sistema de rádio e televisão no Brasil é marcado pela concentração em cinco redes que têm mais de 80% da audiência. Essas concessões são públicas, mas se transforma-ram na prática em propriedade privada, porque o processo de renovação é automático. A revisão completa dessa concessões deve estar no cerne de um novo Projeto para o Brasil.

D. PLURALISMO MIDIÁTICOO problema mais visível do modelo de comunicação do Brasil é o que os movimen-tos populares chamam de manipulação das informações por emissoras de TVs, rádios, jornais e revistas, o que retrata a falta de pluralidade. A visão de mundo dos donos das grandes empresas capitalistas monopoliza o debate na sociedade.

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Nenhuma proposta para incidir nessa área conseguiu prosperar, sofrendo forte reação dos proprietários e até mesmo da categoria dos jornalistas, que acusam qualquer medi-da como censura. É preciso enfrentar esse debate

E. SISTEMA DE COMUNICAÇÃO PÚBLICO

O sistema de comunicação público (nem privado nem estatal) é um instrumento para a democratização da informação e participação da sociedade na gestão. O exemplo mais conhecido é o da Inglaterra.

Na Venezuela, a criação de canais públicos de TV foi fundamental no processo da Re-volução Bolivariana

No Brasil, o sistema público engatinha e é bombardeado pelas mídia privada, que age em parceria com parlamentares que são - muitas vezes - donos de retransmissoras dos principais canais particulares de rádio e TV.

F. MÍDIA POPULAR/ALTERNATIVA (NOVA MÍDIA)

A última década foi marcada pela emergência de canais de comunicação não tradicio-nais, ou seja, fora do controle de grandes empresas.

No começo dos anos 2000, houve um boom das rádios comunitários - atacadas pelo aparato de Estado, mesmo sob governos considerados progressistas.

No período seguinte, cresceu a compreensão da necessidade da criação de instrumentos de comunicação no movimento popular. A internet se converteu em um espaço de luta ideológica, especialmente com os blogs, as redes sociais e a construção de cooperativas/coletivos de jornalistas. Embora a disputa com as grandes empresas seja desproporcio-nal, a mídia popular ganhou uma dimensão que não se imaginava anos atrás.

Além de estabelecer esses seis eixos básicos, que ainda demandam mais aprofunda-mento, o GT de Comunicação acolheu as refl exões que se seguem. Trata-se de um im-portante diagnóstico sobre o papel da Comunicação, no Brasil e no Mundo - fruto de elaboração do professor Marcos Dantas, Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ.

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O CAPITAL É A REDE25 TESES SOBRE MEIOS DE COMUNICAÇÃO E CAPITALISMO

MARCOS DANTAS1

No capitalismo contemporâneo, o processo de acumulação está centrado na produ-ção, distribuição e consumo de espetáculo em suas muitas formas: fi lmes, programas de TV, esportes e outros espetáculos ao vivo ou transmitidos pela televisão, nisto in-cluindo-se o jornalismo, conforme concretamente produzido e praticado nos meios impressos ou televisionados. O espetáculo, por um lado, integra a subjetividade social em práticas de entretenimento conectadas ao consumo de marcas de bens e serviços, marcas estas representativas de gostos, afetos, desejos, signos de perten-cimento identitários etc. Por outro lado, ao mobilizar o consumo, o espetáculo impulsiona a produção e oferta dos bens e serviços que atendam a esse consumo, logo os investimentos de capital nessa produção e venda, assim retroalimentando a acumulação.

Os sistemas político-econômicos de comunicação (ou “meios”, ou “mídia”) não são, por isto, um segmento entre outros da estrutura política, econômica e cultural da sociedade (capitalista): os meios constituem o eixo central que movimenta essa sociedade mesma. Estão a serviço de sua reprodução e são produtos dela.

Os meios integram um complexo econômico que tanto no Brasil quanto no mun-do capitalista avançado responde por cerca de 6 a 7 por cento do PIB (brasileiro e mundial). Esse complexo organiza-se numa cadeia produtiva de valor que articula: produtores de conteúdos; programadores (editores); distribuidores e transportado-res (redes); consumidores; fabricantes de sistemas e equipamentos (de produção, transporte e uso fi nal), todos fi nanciados e suportados pelo capital fi nanceiro.

A produção de conteúdos pode ser efetuada por um número infi nito de produtores, ainda mais depois da expansão da internet, mas o grosso dessa produção, logo do consumo de conteúdos, está concentrado nas mãos de um punhado de produtores: estúdios de Hollywood; organizações que controlam os principais esportes como a FIFA, a UEFA, o COI; produtoras de televisão generalista ou segmentada, como a Globo, no Brasil, a BBC no Reino Unido, a Fox ou a Turner, nos Estados Unidos; plataformas “colaborativas” na internet, a exemplo do YouTube e Facebook; etc.

A programação, ou edição, é uma atividade concentrada em mãos de grandes orga-nizações que, assim, decidem qual produção “merecerá”, ou não, cair no “gosto” do público ou ser levada a ele. As instituições programadoras podem ser verticalizadas (exemplo: emissoras de TV, como a Globo) ou não (exemplo: editoras de livro,

1 Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ. Autor de A lógica do capital-informação: a fragmentação dos monopólios e a monopolização dos fragmentos num mundo de comunicações globais (Ed. Contraponto); Trabalho com informação: valor, acumulação, apropriação nas redes do capital (CFCH-UFRJ); Comunicações, desenvolvimento, democracia: desafi os brasileiros num mundo de comunicações globais (Fundação Perseu Abramo). URL: http://www.marcosdantas.pro.br

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cujos autores são nominalmente independentes). A programação pode ser linear (exemplo: canais tradicionais de televisão); não-linear (exemplos: canais de televisão pay-per-view ou editoras de livros, ambos os negócios baseados em catálogos); reti-cular (internet).

A transmissão e distribuição é um elo da cadeia ainda mais concentrado do que o de programação, devido aos elevados volumes necessários de capital para a construção e operação da infra-estrutura de rede. É naturalmente um negócio para poucos empreendedores, sejam estes de natureza privada ou pública. Depois da desregula-mentação neo-liberal e das privatizações nos anos 1980-1990, este segmento fi cou concentrado nas mãos de poucas enormes corporações globais (AT&T, Level3, British Telecom etc.) que, por suas redes, promoveram um processo generalizado de internacionalização ou mundialização dos sistemas de comunicação social, até então basicamente nacionais nas suas estruturas de controle e regulação político-e-conômica.

O consumidor tem acesso a programas e programação através de aparelhos termi-nais fi xos ou móveis, grandes ou pequenos. Evidentemente, outros meios de distri-buição como salas de cinema ou livraria ainda sobrevivem ou deverão sobreviver por um bom tempo. Mas cada vez mais, o consumidor, sobretudo as novas gerações, é “seduzido” pelo consumo de conteúdos, inclusive livros, música e fi lmes, em apare-lhos terminais eletro-eletrônicos fi xos ou portáteis. O objetivo é que o consumidor possa ter acesso a qualquer conteúdo espetacular em qualquer situação de tempo e espaço. Este acesso se dá através das operadoras de rede que faturam o preço da assi-natura que podem cobrar ao consumidor. A elas interessa capturar o maior número de assinantes possível, logo necessitam oferecer conteúdos atrativos de audiência. Portanto, para serem veiculados através dessa infra-estrutura, programas e progra-mações devem ser produtores de audiência.

A audiência é a “mercadoria”, por assim dizer, produzida pelo complexo mediático. O valor de uso da audiência é o volume (quantidade) e também qualidade (poder de consumo, gostos, interesses estéticos ou culturais) que possam resultar em assi-nantes para as redes e/ou interessar ao investimento publicitário. O valor de troca será expresso no preço que operadores de rede e/ou anunciantes estejam dispostos a pagar pelo acesso às audiências. Os operadores de rede pagam esse valor na forma do preço que aceitam pagar por assinante para cada canal incluído num “pacote” qual-quer. Assim, por exemplo, nos Estados Unidos, os operadores pagam USD 4,20, por assinante, para a ESPN pois este canal, pertencente ao grupo Disney, detendo o monopólio das transmissões esportivas das mais importantes competições estadu-nidenses (NBA, Super Bowl etc.), detém o “monopólio” de uma enorme audiência. Outros canais costumam receber menos de 1 dólar por assinante. Já os anunciantes pagam esse preço na forma de inserções por tempo ou por volume, considerando o tamanho da audiência em cada horário ou espaço.

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O capital fi nanceiro adianta capital-dinheiro a todo esse altamente lucrativo com-plexo. Entre 60 a 70 por cento do capital de todos os conglomerados mediáticos mundiais (Comcast-Universal, Disney, Time-Warner, Google, Facebook, Fox etc.) pertence a um punhado de grandes instituições fi nanceiras, cujos nomes se repetem na estrutura acionária de cada um deles: T. Rowe Price, State Street, Fidelity, Van-guard, Capital Research, AXA etc. Os demais 30 a 40 por cento podem também pertencer a instituições fi nanceiras de menor porte ou, em alguns casos, aos sócios controladores (Zuckerberg, no Facebook; Page e Brin, no Google, etc.). O principal compromisso desses conglomerados é com a “remuneração dos acionistas”, donde seus investimentos na produção e veiculação de conteúdos é focado na obtenção de altos retornos e lucros.

Ao fi m e ao cabo, nada funciona se não existirem sistemas de computadores, câ-maras de fi lmagem e fotografi a, cabos de fi bra ótica, satélites e aparelhos receptores (televisão, celulares etc.). O capital mediático-fi nanceiro se move em estreita arti-culação com a indústria que desenvolve tecnologias e fabrica os sistemas e equipa-mentos. A tecnologia de televisão digital, por exemplo, foi desenvolvida, no Japão, através de aliança entre a televisão público-estatal japonesa (NHK) e as grandes corporações da indústria eletro-eletrônica do Japão (Sony, Fujitsu, NEC, Toshiba); na Europa, entre a televisão publico-estatal européia (à frente a BBC e a ARD) e os fabricantes europeus (Philips, � omson, Bosh); nos Estados Unidos, entre as redes comerciais estadunidenses e a sua indústria digital (AT&T, IBM, Apple etc.). A tec-nologia de registro de áudio digital (“compact disc” ou CD) foi desenvolvida pela Philips em aliança com grandes gravadoras. O desenvolvimento tecnológico atende à necessidade da indústria de impulsionar suas vendas através da renovação do par-que instalado de equipamentos de produção, transmissão e recepção, bem como à necessidade das corporações mediáticas de transmitirem cada vez mais quantidade de informação na forma de espetáculos audiovisuais, em bandas passantes que, ao fi m e ao cabo, são sempre limitadas. A tecnologia digital atende a essa necessidade pelas suas propriedades de compressão do sinal.

A produção de audiência, como objetivo sine qua non do complexo mediático-fi -nanceiro, apenas é possível porque o conteúdo ofertado atende a demandas, ex-pectativas, desejos, gostos, do grande público ou de seus inumeráveis segmentos. O conteúdo ofertado contém signifi cados (estéticos, psicológicos, culturais etc.) que servem à mediação das relações entre as pessoas e o mundo realmente existente em que vivem. Se o conteúdo não estiver em consonância com os valores, as cren-ças, as motivações, o senso comum, da grande maioria das pessoas, se não servir ao ajuste psicológico, subjetivo, dessas pessoas às suas realidades concretas cotidianas, esse conteúdo não “vende”. Considerando, naturalmente, que as pessoas são muito diferentes entre si, seja por razões naturais como sexo ou idade, seja por inúmeros aspectos sociais e culturais, o conteúdo será também segmentado para atender às expectativas dessa demanda fragmentada. Daí porque o capital fomentou a televi-

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são segmentada nas últimas três décadas (canais exclusivos de fi lmes, de esportes, de notícias, de variedades, infantis, femininos etc.) e avançou uma nova fase nesse processo através do desenvolvimento da internet que quase individua a produção e consumo de material audiovisual. Mas mesmo na internet, conforme já se pode perceber claramente, apesar de uma oferta infi nitamente diversifi cada de conteúdos, os “sucessos” (medidos em milhões de visualizações e “curtidas”) acabam se concen-trando naqueles que reproduzem as mesmas expectativas medíocres da vida prática cotidiana (“Kéfera”, “Whinderson Nunes” etc.). O grande público quer isso.

Nenhum produto terá valor de troca se não tiver valor de uso (ou utilidade). Toda cadeia de valor, assim, exprime uma sequência de valores de uso redutíveis a valores de troca. Sendo didático: o algodão contém valor de uso para o industrial têxtil (que o consumirá fabricando tecidos) e, daí, valor de troca para o fazendeiro de algodão (que o produziu para venda). O tecido possui valor de uso para o fabricante de rou-pas e valor de troca para o industrial têxtil. A roupa possui valor de uso para o seu consumidor fi nal e valor de troca para o fabricante de roupas. Do mesmo modo, os conteúdos audiovisuais, formas materiais do espetáculo, contêm valor de uso para seus diversos segmentos de audiência (na forma de emoções, desejos, sentimentos, identidades etc.) e só por isso podem conter valor de troca para seus produtores mediáticos. Este valor de troca é pago i) diretamente, caso o acesso ao produto exija contrato de assinatura ou outra forma de venda; ii) indiretamente através de trabalho gratuito, isto é, tempo de atenção dedicado ao consumo de algum conteúdo, tempo este remunerado ao produtor, mas não ao espectador, na forma de veiculação publicitária.

Com o desenvolvimento da internet, além de tempo de atenção, o consumidor fi nal foi convocado a também fornecer, gratuitamente, i) conteúdos na forma de blogs, posts, vídeos no YouTube etc., substituindo-se aos artistas, jornalistas, pu-blicitários e demais profi ssionais do espetáculo; ii) dados pessoais sobre seus gostos, desejos, comportamentos cotidianos, relacionamentos sociais, através dos quais a publicidade pode ser orientada de modo muito mais preciso para cada pessoa, logo favorecendo ainda mais todo o processo de produção e vendas necessário à contínua reprodução do capital.

Embora, em princípio, qualquer produto artístico, cultural ou espetacular conteria valor de uso e valor de troca, assim assemelhando-se a qualquer outra mercadoria, na realidade material concreta, eles não funcionam como mercadoria porque: i) são indivisíveis, logo não são de consumo excludente; ii) não são de utilidade necessa-riamente decrescente no tempo; iii) são de realização aleatória pois a utilidade não se revela necessariamente antes do próprio consumo. Os economistas neo-clássicos reconhecem que esses produtos são “bens não rivais”, defi nição que caracteriza, em princípio, os bens públicos ou comuns. Em termos práticos, a comunicação de um bem artístico, ou espetáculo, implica sua reprodução ou replicação pelo destinatário

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da comunicação (leitor, espectador, ouvinte etc.). O desenvolvimento tecnológico ca-pitalista permitiu que essa reprodução pudesse se dar não apenas no tempo da própria atividade de ler, assistir, ouvir, mas também em equipamentos domésticos de gravação, desde os antigos gravadores de rolo até os atuais computadores e tocadores mp3. Na linguagem da economia neo-clássica, a reprodução pode ser feita a “custo marginal no limite de zero”. Na linguagem da economia política, a reprodução pode ser feita num tempo social de trabalho no limite de zero. Implica dizer, em qualquer caso, que o va-lor de troca foi praticamente anulado. O capital, por isso, defronta-se com o problema crucial da realização e apropriação do valor do trabalho de produção e comunicação do espetáculo, trabalho este efetuado tanto pelos seus produtores imediatos (artistas, jornalistas, desportistas etc.) quanto pelos indivíduos da audiência em seus tempos de atenção ou, mais recentemente, de interação reticular.

O capital tenta resolver o problema da apropriação através dos direitos de proprie-dade intelectual (DPIs). Os reais detentores desses direitos (artistas, desportistas, outros trabalhadores da cultura ou do espetáculo) cedem-nos aos capitalistas pois estes controlam os meios de produção de cópias (livros, discos etc.) e/ou de distri-buição e vendas. O capital passa, assim, a deter o real monopólio de acesso à obra. Esse monopólio é reforçado pela criação de barreiras à entrada na medida em que o processo de produção e distribuição exija altos investimentos em: i) capital fi xo e trabalho de natureza fabril (gráfi cas, gravadoras etc.); ou ii) capital fi xo em infra--estrutura de comunicações (operadoras de rede, emissoras de televisão etc.). Estas barreiras foram em grande parte dissolvidas pelas novas tecnologias digitais de in-formação e comunicação. Durante algum tempo, as indústrias e os negócios assim organizados pareceram condenados a desaparecer. No entanto, um novo modelo de negócios foi desenvolvido, suportado em terminais de acesso fi xos ou móveis: os “jardins murados”. Para acessar a fi lmes, livros, músicas, espetáculos variados etc., o consumidor deve dispor de terminal apropriado (smartphones, e-readers, iPads, notebooks, smarTVs etc.), ser assinante de alguma rede de comunicações (fi xa ou móvel) e também de um serviço fornecedor do conteúdo desejado (Amazon, Net-fl ix, SporFy, iTunes etc.). O capital fi nanceiro que comanda e controla esse sistema total, obtém assim as rendas informacionais que justifi cam os grandes e altamente lucrativos investimentos que faz nas empresas de “mídia”. O capital é a rede.

Os serviços sobre a internet tendem a constituir a “mídia” dominante do século XXI. Uma parcela importante das novas gerações já prefere os canais do YouTube aos programas de televisão, mesmo a segmentada; baixar música no SpotFy a comprar CDs; assistir fi lmes no Netfl ix, às salas de cinema ou mesmo aos canais lineares de fi lmes na TV paga. As novas gerações já vêm sendo “educadas” desde os primeiros meses de vida, para aprofundar o movimento histórico de fragmentação do sujeito empreendido pelo capital desde os seus primórdios, essencial ao seu processo de valorização e acumulação. A internet que, quando começou a se expandir, muito acreditaram que poderia vir a ser uma rede aberta, livre, colaborativa, já mudou de

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natureza, encontrando-se sob o controle do capital fi nanceiro, por meio do Goo-gle, Facebook, Netfl ix, WhatsApp etc. Só o Facebook, hoje em dia, tem mais de 2 bilhões de participantes, signifi cando que Mark Zuckerberg e seus sócios detém o extraordinário poder de não apenas identifi car e analisar tendências estéticas, cultu-rais, inclusive políticas, de boa parte da humanidade, como também de moldá-las. Para milhões de pessoas em todo o mundo, Facebook é internet, WhatsApp é inter-net, incapazes que já são, dadas as suas práticas cotidianas imediatas, de diferenciar a plataforma tecnológica, de suas aplicações comerciais.

O fato de a internet, hoje, estar expressando as contradições e confl itos reais da so-ciedade, mas estar expressando-os no interior dos “jardins murados” de serviços pri-vados, serviços aliás sediados nos Estados Unidos e que tendem a se consolidar como monopólios mundiais, vem fazendo crescer os confl itos entre autoridades políticas ou judiciais, de um lado, e corporações como Google ou Facebook, do outro. Esses confl itos já estão dando lugar às primeiras formulações, principalmente na Europa, visando regular a internet. Os próximos anos, portanto, assistirão ao processo po-lítico-econômico de regulação da internet, similar ao que, há 100 anos, aconteceu também na então nascente radiodifusão. É possível que esse processo regulatório reinstale o princípio da soberania dos estados nacionais sobre os meios de comuni-cação em seus respectivos territórios, princípio que a tecnologia da internet parece anular. Atualmente, a China exerce integralmente o controle da internet em seu território soberano. Alguns outros países, como a Rússia, exercem-no parcialmente. A União Européia começa a avançar na mesma direção e vem produzindo e divul-gando estudos a respeito.

No momento atual, os maiores opositores de qualquer regulação da internet são o Google, o Facebook e o governo dos Estados Unidos, exceto no que se refere à “ges-tão dos direitos digitais” (DRM, na sigla em inglês), ou seja, à proteção da proprie-dade intelectual. Para enfrentar esta e outras violações de natureza criminal, os EUA defendem o princípio do “notice and take down” (“noticie e derrube”), pelo qual o provedor é obrigado a retirar de seus servidores (logo da rede), qualquer conteúdo que seja denunciado como “impróprio” ou “ilegal” por qualquer pessoa ou empresa, independentemente de pronunciamento ou manifestação judicial prévia. No mais, o Estado dos Estados Unidos (Governo, Judiciário, Legislativo, autoridades regula-tórias) sustenta que a internet deve ser gerenciada como se fosse uma mera atividade técnica, à margem de qualquer governo. Para isso, com apoio da comunidade cien-tífi ca estadunidense, instituiu uma agência supostamente independente, a ICANN, para coordenar mundialmente essa governança ou gerenciamento. A autoridade da ICANN vem de um contrato fi rmado entre ela e o Departamento do Comércio dos Estados Unidos.

Dentre as 50 maiores corporações mediáticas do mundo, duas estão situadas na América Latina: a brasileira Globo e a mexicana Televisa. E não há mais nenhu-

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ma outra situada no que já foi denominado “terceiro mundo”: todas as demais 48 maiores corporações encontram-se nos Estados Unidos, Europa (leia-se Ocidental), Japão, Coréia (do Sul), China, Austrália e Canadá, ou seja no “primeiro mundo”. A Globo e a Televisa sustentam-se numa estratégia dúbia. Por um lado, naturalmente, reproduzem, em seus espaços de produção e veiculação, as relações do capitalismo espetacular e, nisto, buscam também participar do jogo global de alianças com ou-tras corporações mediáticas e com o capital fi nanceiro. Por outro lado, só podem se sustentar nestes seus espaços próprios através de produtos diferenciados que, de algum modo, possam ser identifi cados, tanto nacional quanto internacionalmente, como expressões da cultura regional ou local. Daí o sucesso mundial que fazem as novelas “brasileira” e “mexicana”, respectivamente. Por isto também, constituem signifi cativos mercados de trabalho e realização para artistas e produtores locais. De alguma maneira, asseguram a presença de identidades nacionais periféricas num sistema globalizado que tende a reproduzir homogeneamente apenas a cultura e identidade dos centros de poder econômico e político, sobretudo o estilo de vida consumista e o modo de pensar individualista hegemônico da cultura industrial estadunidense.

O Sistema Globo conseguiu se consolidar como grande produtor de conteúdos fora dos países centrais, sabendo aproveitar um conjunto de oportunidades favoráveis para realizar alguns investimentos estratégicos, dentre estes a construção de um imponente estúdio de produção (Projac). Se, no cenário mundial atual, domina-do pelo Google, Facebook, Time-Warner (em processo de fusão com a AT&T), Disney, Viacom etc., o Sistema Globo tem algum futuro, este se encontra na sua consolidação como conglomerado produtor e programador, deixando de lado seus interesses na transmissão e distribuição. Os irmãos Marinho, seus controladores, sabem disso e já o declararam em entrevistas à imprensa.

Os demais grupos de “mídia” brasileiros já o são e tendem a se tornar cada vez mais marginais, não apenas economicamente, mas na própria construção de algum ideá-rio subjetivo nacional ou regional, entendido como parte integrante do capitalismo mundializado do espetáculo. Ou seja, o mercado brasileiro tende a ser ocupado pela Time-Warner, News Corp./Fox, Disney, processo aliás que já pode ser claramente identifi cado na produção e transmissão de competições futebolísticas brasileiras. O jornalismo impresso, reduto dos grupos Abril, Estado, Folhas e de empresas menores provinciais, pode seguir se sustentando num público leitor de classe média, mas explorando cada vez mais as plataformas digitais de divulgação, em dura concor-rência com as novas “tendências” de busca de informação através das “redes sociais” e “bolhas” construídas no interior dos “jardins murados” do Facebook, Google, YouTube etc. Grupos de televisão como SBT e Bandeirantes, que não souberam se consolidar como produtores e programadores de “qualidade” internacional, talvez sobrevivam dirigindo-se a audiências popularescas, nas franjas do principal mercado anunciante espetacularizado. O Grupo Record estaria na mesma situação mas conta

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com fonte autônoma de fi nanciamento: a exploração da crendice popular pelo fun-damentalismo religioso da Igreja Universal. Enquanto isso, um novo fenômeno está crescendo nos interiores do Brasil: a expansão de pequenos e médios provedores de acesso à internet com redes próprias, em centenas e centenas de municípios brasilei-ros mal atendidos ou não atendidos pelas grandes operadoras de telecomunicações. Por meio deles, uma parcela da população brasileira começa a ter contato com as plataformas Facebook, YouTube etc. Na medida em que estão semeando mercado, a tendência natural é que, mais cedo ou mais tarde, comecem a ser absorvidos pelas grandes operadoras. Boa parte desses provedores, embora operadores de rede, estão se instalando sem qualquer observância às normas regulatórias. Graças à crescente massifi cação da internet no Brasil, o Google já é o segundo grupo “brasileiro” de “mídia” em termos de faturamento publicitário, perdendo apenas (ainda) para a Rede Globo.

Nas últimas três décadas, o capital promoveu mundialmente radical privatização dos recursos de comunicação da sociedade, no bojo de uma ampla reestruturação econômica e política impulsionada pela crise kondratieffi ana dos anos 1970-1980. Mais do que transferir para o controle privado, nos países onde ainda não o eram, a infra-estrutura e o conjunto da cadeia de valor, as novas legislações regulatórias re-vogaram e aboliram completamente o princípio das comunicações como um serviço público. Os sistemas, instituições e organizações de comunicações devem atender ao mercado (“interesse do consumidor”). Assim, por exemplo, o Estado vem perdendo, ou já perdeu, o seu poder concedente de canais de programação (como detinha na “velha” radiodifusão), poder este hoje em dia inteiramente em mãos das corpora-ções que controlam as redes e negociam o acesso a elas diretamente, em função da atratividade de audiência, com as corporações proprietárias desses canais (quando já não são empresarialmente integradas e verticalizadas). Também as plataformas ou serviços privados sobre a internet, como Facebook ou YouTube passaram a deter amplo e, cada vez mais, total controle e até poder de censura sobre perfi s ou canais pessoais ou empresariais que permitem ser veiculados.

Nesse cenário político-econômico internacional e nacional, o debate político-regu-latório, superado o processo de liberalização e privatização dos meios de comunica-ção, passou a ser pautado por reivindicações liberais relativas à “liberdade de expres-são”, “direitos humanos”, “identidades”, “comportamentos” etc. Busca-se abrir o sistema à “pluralidade de vozes”. Embora através de caminhos político-regulatórios distintos, esse processo avança nos Estados Unidos e na União Européia. Assim, em países como Espanha e Reino Unido, pode-se contar com mais de mil canais de te-levisão (terrestre, a cabo ou satélite) e em muitos outros, inclusive nos Estados Uni-dos, com algumas muitas centenas. No entanto, dois ou três canais detêm, nesses países (exceto Estados Unidos), mais de 60 por cento da audiência, ou seja atendem à demanda real da grande audiência. Os demais dirigem-se a segmentos consumi-dores ultra especializados (fãs de esporte, de música “pop”, de fi lmes “cult” etc.) ou

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grupos identitários (culturais, étnicos, lingüísticos, religiosos etc.), grupos estes sem poder (e, muito provavelmente, também sem interesse) de comunicação para além deles mesmos. Reforçam a fragmentação social diante do poder totalizante do ca-pital. Todos, aliás, utilizam-se das mesmas redes de infra-estrutura controladas pelo oligopólio de corporações mediático-fi nanceiras.

No Brasil essa construção está bastante atrasada, embora a agenda do debate seja também basicamente liberal. O capital periférico vem forçando mudanças regulató-rias na medida da disputa e poder de pressão dos diversos blocos capitalistas. Assim, foram privatizadas as telecomunicações com a entrega dos mercados mais rentáveis para o capital estrangeiro e buscando não afetar o ainda politicamente poderoso campo da radiodifusão aberta. Também veio sendo regulamentada a televisão por assinatura (Lei do Cabo em 1995 e Lei do SeAC em 2011), à margem da radiodi-fusão aberta (ao contrário do que aconteceu na Europa), atendendo em parte aos interesses do Grupo Globo e servindo à entrada, no mercado brasileiro, das maiores corporações mediáticas estadunidenses (Time-Warner, Disney, News Corp./Fox). Na internet, o Brasil dotou-se de uma lei de proteção dos direitos civis (liberdade de expressão, privacidade etc.), denominada “Marco Civil da Internet” (MCI). Esta lei rejeita o princípio do “notice and take down” mas não é respeitada pelas plataformas estadunidenses (Facebook, YouTube) que alegam não estarem obrigadas a respeitar outra legislação que não seja a dos Estados Unidos. O MCI refl ete, no Brasil, a disputa capitalista entre o “novo capital” informacional-digital (Google, Facebook etc.) e o “velho capital” das operadoras de rede que controlam a infra-estrutura de telecomunicações, disputa esta expressa no debate sobre a “neutralidade de rede”. Essa disputa será resolvida, tanto no Brasil quanto nos principais centros capita-listas, na medida em que se defi nam repactuações no interior do próprio capital mediático-fi nanceiro.

Não estando posto, na atual conjuntura política e cultural, algum projeto sério de crítica radical ao capital, poder-se-ia buscar construir, ao menos, um programa de regulação das comunicações que forçasse em seus próprios limites o programa libe-ral. Este programa poderia girar em torno de alguns tópicos:

i) Reafi rmação dos serviços de comunicação social, inclusive a internet, como serviços públicos, logo submetidos aos artigos 21-XI e 220 a 223 da Constituição brasileira.

ii) Soberania nacional: recuperação do princípio da soberania nacional nas redes e infra-estrutura de comunicação implicando, particularmente na internet:

a) defesa de transferência para agência especializada tutelada pela ONU, do governo da internet, agência esta que promoveria a elaboração e observância de tratados políticos, econômicos e técnicos internacionais (intra-nacionais)

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similares, guardadas as devidas diferenças, aos estabelecidos para as telecomu-nicações e radiodifusão quando essas tecnologias eram também nascentes nas primeiras décadas do século XX;

b) manutenção, no Brasil, de servidores de corporações globais que conte-nham e tratem dados de cidadãos(ãs) e empresas brasileiros(as).

iii) Regulação por camadas com separação dupla de camadas na internet:

a) separação tecnológica e comercial em todos os segmentos de comunicação so-cial eletro-eletrônica, entre a camada de rede (infra-estrutura) e a de conteúdos, implicando estender, para a radiodifusão aberta, a legislação já adotada na radiodifusão paga (Lei 12.485/2011), na qual empresas produtoras/progra-madoras não podem deter controle de redes de acesso e vice-versa;

b) reconhecimento da internet como uma infra-estrutura técnico-econômica (provedores de acesso, protocolos, códigos etc.), distinta comercialmente da rede técnica de telecomunicações que lhe dá suporte (“neutralidade de rede”) e também dos serviços e “plataformas”, sobretudo os de natureza comercial, fornecidos sobre ela, internet.

iv) Regulação da camada de conteúdos:

a) elaboração de lei regulatória para o conjunto dos serviços de comunicação so-cial eletrônica nos termos da Constituição, em especial o Artº 221 combinado com o Artº 222, § 3º, independentemente das condições econômicas e/ou tecnológicas de acesso, lei esta que, entre outros aspectos:

a1. instituirá um Conselho Nacional de Comunicações, com partici-pação de representantes eleitos da sociedade civil, dotado de poderes políticos e regulatórios para formular e, uma vez adotadas pelos poderes Executivo ou Legislativo, fazer executar ou fi scalizar, políticas de comu-nicações incluindo as camadas de conteúdo, a internet e as telecomu-nicações;

a2. favorecerá, protegerá e fomentará a produção nacional, local e co-munitária, mediante cotas, fundos fi nanceiros e outros instrumentos, nas diversas plataformas de radiodifusão e na internet;

a3. coibirá com rigor, manifestações discriminatórias, xenófobas, racis-tas, que possam induzir à violência contra o ser humano, a mulher, a criança, inclusive as provenientes do exterior através das corporações mediático-fi nanceiras globais, da internet e de videojogos.

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b) reconhecimento, na lei, dos serviços e “plataformas” que empregam a tec-nologia da internet como provedores de conteúdos necessariamente submetidos à Constituição e leis nacionais, considerando suas especifi cidades:

b1. Serviços audiovisuais: serviços de streaming que funcionam como produtores ou distribuidores de conteúdos audiovisuais, seja distribuin-do material de catálogo (Netfl ix, SpotFy), seja funcionando como ca-nais de rádio ou televisão (YouTube), que serão reconhecidos como tais para efeito de cumprimento da Constituição brasileira, artos 220-223, e portanto submetidos à legislação regulatória apropriada;

b2. Serviços de mensageria: serviços de transmissão de mensagens, em princípio neutros quanto aos conteúdos (WhatsApp, Telegram, Skype etc.), similares pois aos Correios ou à telefonia, que serão reconhecidos como tais para efeito de cumprimento da Constituição brasileira, artº 21-XI, e portanto submetidos a legislação regulatória apropriada;

b3. Serviços de interação social e outros remunerados basicamente pe-los dados do usuário: são serviços de fato nascidos das potencialidades tecnológicas e econômicas da internet, a exemplo das plataformas Fa-cebook ou Google, que evoluíram para se tornarem corporações mun-dialmente poderosas em termos econômicos e políticos intervindo e afetando distintos ramos da comunicação social e da produção cultural (jornalismo, espetáculos, publicidade, biblioteconomia, vivência coti-diana etc., etc.), difi cilmente classifi cável nos termos da legislação his-tórica, por isto estando a exigir tratamento regulatório específi co no que tange à soberania e segurança nacionais, liberdade de expressão, direito à privacidade, combate a monopólios econômicos, entre outros tópicos.

b4. Outros serviços: muitos outros serviços apoiados na internet não passam, realmente, de renovados negócios privados tradicionais explo-rando as possibilidades tecnológicas da rede, logo não precisariam de regulação, além da ordinária, a exemplo do comércio eletrônico, do táxi privativo (Uber) etc.

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