Top Banner
CADERNO ESPAÇO FEMININO UBERLÂNDIA-MG VOLUME 19 N. 01 p.1-429 Jan./Jul. 2008 ISSN 1516-9286
432

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

May 11, 2023

Download

Documents

Khang Minh
Welcome message from author
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
Page 1: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESPAÇO FEMININO UBERLÂNDIA-MG VOLUME 19 N. 01 p.1-429 Jan./Jul. 2008

ISSN 1516-9286

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:521

Page 2: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESPCADERNO ESPCADERNO ESPCADERNO ESPCADERNO ESPAÇO FEMININOAÇO FEMININOAÇO FEMININOAÇO FEMININOAÇO FEMININO ISSN 1516-9286ISSN 1516-9286ISSN 1516-9286ISSN 1516-9286ISSN 1516-9286EDITORAProfa. Dra.Vera Lúcia Puga (INHIS/UFU)

CONSELHO EDITORIAL:Eliane Schmaltz Ferreira (DECIS/UFU)Jane de Fátima Silva Rodrigues (UNIMINAS/UDI)João Bosco Hora Góes (UFF/RJ)Kênia M. de Almeida Pereira (UNITRI/UDI)Maria Lygia Quartim de Moraes (UNICAMP/SP)Mirian Goldenberg (UFRJ/RJ)Mônica Chaves Abdala (DECIS/UFU)Vera Lúcia Puga (INHIS/UFU)Vânia Aparecida Martins Bernardes(FACIP/UFU)Suely Gomes Costa (UFF/RJ)Suely Kofes (UNICAMP/SP)Eli Bartra (UNAM/México)Margara Millan (UNAM/México)

CONSELHO CONSULTIVO:Eni de Mesquita Sâmara (FFLCH/USP)Glória Careaga (PUEG/México)Joana Maria Pedro (UFSC/SC)Luzia Margareth Rago (IFCH/UNICAMP)Maria Izilda Santos de Matos (PUC/SP)Rachel Soihet (UFF/RJ)Sônia Missaggia Mattos (UFES/ES)Sonia Montecino Aguirre (CHILE/ Fac.Ciências Sociales)Tânia Navarro Swain (UNB/DF)

COMITÊ EDITORIAL:Cláudia Costa GuerraDulcina Tereza Bonati BorgesEdmar Henrique Dairell DaviFlorisvaldo Paulo Ribeiro JúniorMarta Regina Alves Pereira

TRADUÇÃOSandra Chaves Gardellari

Capa: Maria José da Silva IMAGEM DA CAPA: Darli de OliveiraDiagramação: Marina Ferreira Marques

CADERNO ESPAÇO FEMININO é uma publicação do Núcleo de Estudos de Gênero e Pesquisasobre a Mulher, do Centro de Documentação e Pesquisa em História (CDHIS), da Universidade Federalde Uberlândia, EDUFU.

EDUFU- Editora da Universidade Federal de Uberlândia www.edufu.ufu.br e-mail:[email protected]. João Naves de Ávila, 2121 – Bloco A, Sala 1ª Santa Mônica – Uberlândia MGCEP: 38408-100 Telefax: (34) 3239 4293 / Fone: 3239 4512

Revista Indexada em Data Índice de Ciências Sociais – IUPERJ; SUMÁRIOS de RevistasBrasileiras; Portal Feminista www.portalfeminista.org.br CLASE-CICH-UNAM –México; Hispanic American Periodicals Index – HAPI; Base de Dados Francis – INIST;

Portal Iberoamericano – LATINDEX.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

REITOR: Arquimedes Diógenes Cilone VICE-REITOR: Elmiro Santos Resende

DIREÇÃO EDUFU: Maria Clara Thomaz Machado

EDUFU – Editora da Universidade Federal de UberlândiaAv. João Naves de Ávila, 2121 – Bloco A, Sala 1A – Santa MônicaCep 38408-100 – Uberlândia-MGTelefax: (34) 3239-4293 / Fone: 3239-4512www.edufu.ufu.br / e-mail: [email protected]

CADERNO ESPAÇO FEMININO, v. 19, n. 01, Jan./Jul. 2008Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de História, Centro de Do-cumentação e Pesquisa em História (CDHIS), NEGUEM.

Semestral

Versão eletrônica disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.phd/neguem

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:522

Page 3: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

S U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I O

APRESENTAÇÃO...................................................... 7

Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano epessoas ........................................................................... 17Klaas Woortmann

Mexicanas’ public food sharing in Colorado’s San LuisValley .............................................................................. 31Carole Counihan

ESPAÇO DOMÉSTICO E PROFISSIONAL

Mulheres, açúcar e comidas no Brasilseiscentista ..................................................................... 59Claude G. Papavero

Comida quente, mulher ausente: produção domésticae comercialização de alimentos preparados no Rio deJaneiro no século XIX ................................................ 89Almir Chaiban El-Kareh

Culinária no feminino: os primeiros livros de receitasescritos por portuguesas .......................................... 117Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discursoàs práticas .................................................................... 143Janine Helfst Leicht Collaço

CORPO, IDENTIDADES E POLÍTICA

Genero, clase y gusto alimentario. Una aproximaciónteórica .......................................................................... 175Pedro Sánchez Vera

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:523

Page 4: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar naparticipação política de mulheres em movimentossociais da Argentina contemporânea ..................... 201Adriana Marcela Bogado

Comida de mãe: notas sobre alimentação, família egênero .......................................................................... 233Viviane Kraieski de Assunção

Comida e simbolismo entre imigrantes italianos noRio Grande do Sul (Brasil) ...................................... 255Miriam Oliveira SantosMaria Catarina C. Zanini

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani ........... 287Mártin César Tempass

REPENSANDO A COMIDA: NOVOSOLHARES SOBRE O GÊNERO

“Cozinha especial e comida a qualquer hora”: dosserviços de proprietários e cozinheiros nas casas depasto, restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940) .... 313Deborah Agulham Carvalho

Para não se perder: a broa invertendo papéis ...... 333Juliana C. ReinhardtVictor Augustus G. Silva

Vozes femininas, saberes culinários: o feminino e adinâmica das identidades regionais por meio daculinária ........................................................................ 353Maria Henriqueta Sperandio Garcia GimenesLuciana Patrícia de Morais

Escolha alimentar: a questão de gênero no contextoda alimentação fora de casa .................................... 369Manuela Mika JomoriRossana Pacheco da Costa ProençaMaria Cristina Marino Calvo

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:524

Page 5: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

BIOGRAFIACora Coralina: a construção da mulher-monumento ................................................................ 387Andréa Ferreira Delgado

RESENHACOUNIHAN, Carole. Around the Tuscan Table:food, family and gender in twentieth century Florence.New York: Routledge, 2004, 248p ........................ 419Fabiana Thomé da Cruz

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:525

Page 6: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

NEGUEMAv. João Naves de Ávila 2121 Bloco Q – CDHISCampus Santa Mônica – Uberlândia - Minas GeraisCEP: 38400-902 – Telefones (034) 32292276 - 3239 4236 e 32394240Email: [email protected] [email protected] publicações: www.neguem.ufu.br

Universidade Federal de UberlândiaInstituto de HistóriaCentro de Documentação e Pesquisa em História – CDHISNúcleo de Estudos de Gênero e Pesquisa sobre a Mulher – NEGUEM

Periodicidade: SemestralTiragem: 600 exemplares

Pede-se permutaPédese cangeOn demande échangeWe bitten um austauschSi richiede lo scambio

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:526

Page 7: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Apresentação

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 7

A P R E S E N T A Ç Ã OA P R E S E N T A Ç Ã OA P R E S E N T A Ç Ã OA P R E S E N T A Ç Ã OA P R E S E N T A Ç Ã O

Comida e Gênero: repensando teorias e práticas

A uma primeira vista, um olhar comum sobre acomida e a cozinha nos levaria de imediato a umaassociação com o universo e com as práticas femininas.“Lugar de mulher é na cozinha”. Talvez por pareceróbvia tal associação, talvez por serem entendidas como“atividades menores”, as práticas relativas à cozinhapermaneceram invisíveis – como têm sido consideradaspelos mais diversos autores e autoras que se debruça-ram sobre a reflexão a respeito das relações de gênero.

Estudos sobre a comida e a cozinha também sãobastante recentes entre nós. Tímidos e pouconumerosos nas décadas de 1960 a 1980, no Brasil,sofreram um verdadeiro boom a partir dos anos 1990,enfocando aspectos os mais variados, relativos aculturas e identidades regionais, estudos étnicos,histórias da alimentação e análises de literatura ou decinema relativos ao tema.

A composição de um dossiê sobre comida egênero foi, para grande parte das pessoas que aceitaramo desafio, a primeira sistematização de uma reflexão aesse respeito. No conjunto dos artigos, uma primeiraquestão chamou-nos a atenção: a recorrência da análiseda invisibilidade. Pensar a invisibilidade era, portanto, oponto de partida que, na perspectiva teórica, trazia avisibilidade para as práticas de mulheres, mas tambémde homens, associadas à comida e a cozinha. Poderiaparecer paradoxal: as práticas invisíveis durante tantosanos, mesmo nos estudos das áreas de CiênciasHumanas, tornaram visíveis, a partir das reflexões aquipropostas, a forma como se constituíram as relaçõesentre homens e mulheres no espaço doméstico, mas

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:527

Page 8: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Apresentação

8 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

também no público, nas diversas formas como aalimentação esteve presente em tais espaços nosdiferentes períodos históricos aqui reconstituídos. Eainda mais, a visibilidade dada às práticas femininas docozinhar como fundamentais em movimentos sociais,recuperando um aspecto ainda não explorado,sobretudo em se tratando da cozinha, relativo ao papelpolítico das mulheres nessa função de nutrir ealimentar, na maioria das vezes naturalizada.

De outro ângulo, ao incorporarmos a perspectivado gênero, trouxemos para nossas reflexões algumasdas características fundamentais de tal perspectiva. Deum lado, a possibilidade de uma análisemultidisciplinar, um diálogo efetivo entre as CiênciasSociais, a História e a Nutrição, que está presente emmuitos dos textos deste dossiê. De outro lado, aperspectiva de rompermos com as análises de tipobinário, que tradicionalmente associaram esferadoméstica com o domínio feminino e esfera públicacom o domínio masculino. Os artigos aquiapresentados comprovam a complexidade dasrelações em tais esferas, quando trazem à cenapersonagens como as negras quituteiras, vendedorasambulantes nas ruas das capitais brasileiras, na Salvadordo séc. XVII ou no Rio de Janeiro, nos anos oitocentos.Assim como a procura por cozinheiras e cozinheirospara pensões, casas de pasto, cozinhas de empresas,anunciados nos jornais da capital brasileira do séc. XIX.

Tivemos a satisfação de reunir na abertura destevolume dois artigos de estudiosos que são referênciano tratamento do tema, em nível nacional einternacional. Assim, iniciamos com a discussão clássica“Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano epessoas”, gentilmente cedido por Klaas Woortmann,um de nossos pioneiros nos estudos da alimentação.Neste artigo, o autor retoma e ilustra o debate a respeitodas classificações dos alimentos, evidenciandoparticularmente as associações construídas em relaçãoao masculino e ao feminino.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:528

Page 9: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Apresentação

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 9

Também acolheu nosso convite a pesquisadoranorte-americana Carole Counihan, autora de trabalhosconstitutivos da intersecção entre comida e gênerocomo campo de estudos, é o caso da coletânea Foodand Gender: identity and power, ou de seu Around theTuscan Table: food, family and gender in twentiethcentury Florence, objeto de resenha neste dossiê. Suacontribuição neste número, “Mexicanas’ Public FoodSharing in Colorado’s San Luis Valley”, toma comoabordagem metodologia semelhante à utilizada napesquisa realizada na Toscana: histórias de vidacentradas na comida. Aqui o grupo estudado épredominantemente hispânico, vivendo em uma árearural, em condição de pobreza. A autora evidenciaque o papel das mulheres nessa localidade foi econtinua sendo fundamental para a segurança alimentardas famílias mais carentes. Mostra, ainda, que otrabalho das mulheres da comunidade em torno dosalimentos é, por suas características, mais eficiente doque os programas governamentais direcionados àdistribuição de alimentos e combate a fome. Counihantambém destaca a preocupação das mulheresentrevistadas com a alimentação e nutrição,especialmente das crianças, e advoga peloreconhecimento da importância dessas mulheres napartilha e distribuição dos alimentos na comunidade.

Entre os artigos que atenderam nossa convocaçãopara este dossiê, iniciamos com quatro estudos quefocam suas análises na percepção de atribuições degênero e suas relações com os domínios público eprivado. Iniciamos pelo século XVII, “Mulheres, açúcare comidas no Brasil seiscentista”. A partir das referênciasdos cronistas desse século aos procedimentos deabastecimento e de consumo alimentar, ClaudePapavero recupera traços marcantes da vida socialfeminina, numa sociedade concebida em termos dasatividades masculinas e inteiramente dependente dotrabalho escravo. Destaca as mulheres de famíliashonradas, que pouco saíam de casa, dedicando-se à

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:529

Page 10: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Apresentação

10 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

cozinha e à costura, assim como as viúvas quesobreviviam da venda de doces e guisados, pelasescravas, nas ruas da capital, Salvador, e da vila deOlinda, localidades prósperas devido à expansãocomercial do açúcar.

Almir El-Kareh, nos conduz ao séc. XIX com seu“Comida quente, mulher ausente: produção doméstica ecomercialização de alimentos preparados no Rio deJaneiro no século XIX”. Mostra-nos como osimigrantes que se fixaram, a partir dos anos 1840, noRio de Janeiro, então capital brasileira, na sua maioriado sexo masculino e solteiros, provocaram “uma crisehabitacional, de moradias de baixo custo, e uma fortedemanda por alimentos preparados.” A conseqüênciafoi a proliferação de cortiços e pensões de famíliasque passaram a locar quartos e fornecer refeiçõesprontas. Desta forma, as mulheres livres e pobresadquiriram importância social, como empresárias,embora continuassem a ser vistas como “simplesextensão da cozinha doméstica e, por isso, socialmentedesclassificadas.”

Isabel Drumond Braga, no artigo “Culinária nofeminino: os primeiros livros de receitas escritos porportuguesas”, estuda os primeiros livros de cozinhaescritos por portuguesas durante o século XX,considerando o contexto sócio- político da época. Eladiscute o fato de que, embora cadernos de receitasmanuscritos para uso particular fizessem parte docotidiano de freiras e de leigas e muitas mulherestenham sempre se dedicado à cozinha, foi apenas nosanos novecentos que passaram a produzir receituáriospublicados.

“Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso àspráticas”, de Janine Collaço, desvela o universo daprodução das refeições consumidas fora, revelando umacisão entre gênero e hierarquia de restaurantes. Assim,percebe que “o universo masculino está concentradoem estabelecimentos destinados às classes maisfavorecidas que utilizam roteiros e guias para selecionar

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5210

Page 11: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Apresentação

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 11

suas escolhas”, ao passo que o trabalho feminino seconcentra nos estabelecimentos que servem por peso,cantinas de colégios, cozinhas de hospitais e refeitóriosde empresas. Desta forma, no entender da autora, ficaevidente que “o espaço da cozinha adquire contornosque não se eximem de disputas entre gêneros.”

Seguem-se quatro artigos que enfocam temas carosaos estudos da comida: a questão de sua relação como corpo e com as representações e formas pelas quaisse pensam as identidades de grupos. Pedro SánchezVera, em seu “Genero, clase y gusto alimentario. Unaaproximación teórica”, parte do pressuposto de quea apresentação do corpo é um aspecto central emnossas sociedades, propondo uma análise das relaçõesentre gênero, corpo e alimentação considerando,também, as relações com a classe social e o estilo devida. A ênfase de sua abordagem recai sobre oconceito de habitus, na perspectiva de Bourdieu.

Ao conduzir nosso olhar para as mães nas cozinhas,em “Comida de mãe: notas sobre alimentação, família egênero”, Viviane Kraieski de Assunção evidencia oestudo dos saberes e práticas da alimentação comoabordagem para a apreensão das dinâmicas familiarese hierarquias delas constitutivas.

Miriam Oliveira Santos e Maria Catarina Zanini,em seu “Comida e simbolismo entre imigrantes Italianos noRio Grande do Sul (Brasil)”, trazem a comparação deduas pesquisas etnográficas entre descendentes deimigrantes italianos, para analisar a centralidade dacomida nos dois grupos, envolvendo organização dotrabalho familiar e coletivo, em que se percebemrelações de gênero, hierárquicas, entre outras.

“Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani”, de MartinCésar Tempass, é um estudo etnográfico que propõea análise do sistema alimentar do grupo estudado,centrando a discussão nas práticas alimentares dehomens e mulheres e, de modo mais específico, comoa mulher está inserida no que ele considera “democraciaalimentar” do grupo.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5211

Page 12: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Apresentação

12 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Finalizamos esta parte com “Dimensões da práticasocial de cozinhar na participação política de mulheres emmovimentos sociais da Argentina contemporânea”, em queAdriana Bogado propõe um olhar sobre a prática docozinhar no cotidiano de mulheres que integrammovimentos sociais na Argentina contemporânea,objetivando ampliar a compreensão da participaçãopolítica feminina.

No bloco que se segue, contamos com acontribuição de pesquisadoras que se dispuseram aodesafio de novos olhares sobre suas dissertações eteses, iniciando uma reflexão sobre o tema central destedossiê e propondo caminhos para este diálogo quevisamos aprofundar. Assim, numa discussão que orase inicia, apresentam suas instigantes propostas. Acomeçar pelo século XIX, o texto “Cozinha especial ecomida a qualquer hora: dos serviços de proprietários ecozinheiros nas casas de pasto, restaurantes e afins(Curitiba, 1890-1940)”, de Deborah AgulhamCarvalho, dirige seu olhar para os serviços de casasde pasto, restaurantes e afins, na Curitiba de 1890-1940, com a perspectiva de avaliar as relações entrecomida e gênero nesses espaços, percebendo a formacomo homens e mulheres exerceram seus papéis.

Em um trabalho – “Para não se perder : a broainvertendo papéis” – que destaca a dimensão identitáriado alimento hoje reconhecido como patrimômioimaterial da cidade de Curitiba, Juliana C. Reinhardt eVictor Augustus G. Silva trazem à luz a broa de centeio,dando relevância às maneiras como homens e mulheresrelacionam-se com o saber-fazer desse produtoemblemático.

A partir da perspectiva que busca colocar emdiálogo a história da alimentação e os estudos degênero, em “Vozes Femininas, saberes Culinários: ofeminino e a dinâmica das identidades regionais pormeio da culinária” Maria Henriqueta Sperandio GarciaGimenes e Luciana Patrícia de Morais propõem-se adar voz a cozinheiras tradicionais mineiras e

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5212

Page 13: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Apresentação

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 13

paranaenses, salientando seu lugar na constituição daculinária de suas regiões.

No texto “Escolha alimentar: a questão de gênero nocontexto da alimentação fora de casa”, Manuela MikaJomori, Rossana Pacheco da Costa Proença e MariaCristina Marino Calvo mostram que as diferenças degênero podem ser percebidas também na composiçãodos pratos de uns e outras, observada em restauranteself-service por peso na última década do séc. XX .

Numa obra como esta que trazemos a público,não poderia faltar a biografia de uma personagemque se destacou pela obra literária, mas que tambémdeixou sua marca na doçaria tradicional da cidade deGoiás. Nos dizeres de Andréa Delgado, sua obra esua história de vida são entrelaçadas “para instituí-lacomo artesã e guardiã da memória, socialmenteinvestida do poder de testemunhar e eternizar opassado.” Desta forma, “Cora Coralina: a construçãoda mulher-monumento”, busca traçar um novoitinerário na rede de memórias que disputam a biografiahegemônica de Cora Coralina, investigando a teiadiscursiva que a produz “como símbolo da cidade deGoiás, entrelaçando o conceito de memória com acategoria gênero.”

Finalizando, Fabiana Thomé da Cruz nos apresentaum pouco do fascinante trabalho que Carole Counihanvem desenvolvendo, em seu Around the Tuscan Table:food, family and gender in twentieth century Florence.Nesse livro, Counihan aborda temas como padrõesestéticos e suas relações com o corpo, centrando aanálise no corpo feminino; cuidados com os filhos einstituição casamento. De modo especial, enfoca “asorigens da dieta Toscana e a discussão de gênero a elaassociada”, aspecto que se constitui no tema centralda resenha que Cruz nos oferece.

Mônica Chaves AbdalaRenata Menasche

Coordenadoras do Dossiê

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5213

Page 14: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5214

Page 15: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

A R T I G O SA R T I G O SA R T I G O SA R T I G O SA R T I G O S

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5215

Page 16: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5216

Page 17: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 17

Quente, frio e reimoso: alimentos,Quente, frio e reimoso: alimentos,Quente, frio e reimoso: alimentos,Quente, frio e reimoso: alimentos,Quente, frio e reimoso: alimentos,corpo humano e pessoascorpo humano e pessoascorpo humano e pessoascorpo humano e pessoascorpo humano e pessoas11111

Klaas Woortmann

Resumo: O artigo analisa percepções de alimentos como“quentes” ou “frios”, comuns a várias partes do Brasil, todaselas derivadas de classificações gregas sistematizadas porHipócrates e também utilizadas por Heródoto. Mais do queclassificações de alimentos, são categorias de alcancecosmológico, visto que Hipócrates, além de médico eratambém geógrafo. “Reima” é também de derivação grega –rheuma. O artigo focaliza a relação entre a comida e o corpohumano e as práticas alimentares como linguagem que falade categorias sociais, notadamente gênero.

Palavras-Chave: Classificações Gregas de Alimentos. Relaçãoentre Comida e o Corpo Humano. Práticas Alimentares comoLinguagem.

Abstract: The article analyzes the perception of food as “hot”or “cold” that are common to several Brazilian regions. Suchcategories are derived from ancient Greek cosmologicalclassifications (which also include the opposition “dry-humid”, less frequent in Brazil) systematized by Hipocratesand by Herodotus. “Reima” is also of Greek derivation –rheuma. The article focuses on the relation between foodand the human body and on food as a language that “speaks”of social categories, notably gender categories.

Keywords: Greek Cosmological Classifications. Relationbetween Food and the Human Body. Food as a Language.

Klaas Woortmann Professor titular da Universidade de Brasília (Dep.De Antropologia) PHD, Harvard University, 1975. Áreas de pesquisa:família e parentesco; hábitos alimentares; campesinato.([email protected]). 1 Texto recebido: 11/06/2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5217

Page 18: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas

18 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Em várias regiões do Brasil, como na Amazônia,no Nordeste e no Brasil Central, assim como em boaparte da América Latina2, observa-se um sistema declassificação de alimentos que opera com os pares deoposições “quente-frio” e “reimoso-manso”. Muitasprescrições ou proibições alimentares são baseadasnesse sistema de classificações.

Todos os alimentos são percebidos como sendoou “quentes” ou “frios”, com relação à sua“qualidade”, independentemente da condição térmica.Assim, por exemplo, na Amazônia, a carne de boi é“quente”, e a de porco é “fria”; a de cação é “quente”e a de tainha é “fria”. No Brasil Central, o arroz é“frio” e o feijão é “quente”. Não há uniformidadequanto à percepção dessas “qualidades”. Um mesmoalimento pode ser considerado “quente” numa regiãoe “frio” em outra. O que importa é que em todas elaspersiste esse modelo classificatório. O que é importantetambém é que tais qualidades são sempre referidas aoorganismo humano.

Comidas “quentes” são aquelas consideradasofensivas ao aparelho digestivo, enquanto as “frias”são ofensivas ao aparelho circulatório, devendo serevitadas por quem estiver atacado de bronquite, gripeou asma.

Se existe uma relação entre o sistema alimentar e osistema orgânico, é preciso ressaltar que também asdoenças e as partes do organismo humano sãoclassificadas como “quentes” ou “frias”. Doenças“quentes” são aquelas originadas do próprio corpo,como as “do sangue” (sífilis, por exemplo) e as que semanifestam na pele, como a lepra. “Quentes” são aindaa “dor d’olhos”, diarréia, hemorróidas, ferimentosinflamados e qualquer tipo de febre. São “quentes”também os distúrbios nervosos que levam o indivíduoa um estado de cólera ou que o fazem ficar “muitonervoso” – por isso mesmo o alimento “frio” é tidocomo “calmante para os nervos”, além de apropriadopara pessoas com “pressão alta”. Doenças “frias”, ao

2 CURRIER, R. L. The hot-cold syndrome andsymbolic balance. Mexicanand Spanish-American folkmedicine. Ethnology, 5, 1966,p. 251-263.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5218

Page 19: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Klaas Woortmann

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 19

contrário das “quentes”, são em sua maioria originadasdo ambiente externo e afetam o sistema respiratório– a própria palavra “resfriado” é, neste sentido,significativa. Contudo, a apatia ou a frigidez sexualsão igualmente tidas como “frias”. “Frios” sãotambém os ferimentos sem pus, o reumatismo edoenças dos rins.

Mas, como observa Novión3, tais oposições sóadquirem sentido na medida em que incorporam oprincípio de equilíbrio. De fato, a oposiçãocomplementar “quente – frio” transcende o domínioestrito dos alimentos. Como disse um camponêsnordestino, referindo-se ao cultivo da terra, “tudonesse mundo de Deus ou é quente ou é frio”4. Assim,existem solos “quentes” e outros “frios”. Os primeiros,argilosos, não podem ser adubados com estrume degado enquanto os segundos, arenosos, o podem, daíserem muito valorizados. Isso se deve ao fato de sero estrume percebido como “quente”; colocado numaterra “quente”, ele irá destruir a plantação, ao contráriodo que ocorre numa terra “fria” – por isso, as terrasarenosas podem ser cultivadas ano após ano sem perdade produtividade, enquanto as primeiras precisam deum tempo de pousio. É evidente a homologia entre arelação adubo - solo e aquela entre comida e corpo: oadubo é a “comida” da terra, que a torna forte. Éevidente, também, o princípio do equilíbrio.

Ademais, no sistema de cultivo porconsorciamento, não se deve plantar uma planta“quente”, como o feijão, ao lado de outra também“quente”, mas apenas ao lado de uma planta percebidacomo “fria”, como a mandioca.

A “síndrome quente-frio”, com relação aosalimentos e ao corpo humano, é derivada da medicinahipocrática e da teoria dos humores; poderia serconsiderada uma “pequena tradição” derivada de uma“grande tradição”, nos termos propostos porRedfield.5 Mas Hipócrates era também geógrafo, eorganizava o mundo, tal como Heródoto, segundo o

3 NOVIÓN, M. I. Anátomofisiologia popular e alimentaçãona mulher e no binômio mãe –fi lho. Brasília: UnB,Departamento deAntropologia. Brasília,1976.

4 WOORTMANN, E.;WOORTMANN, K. Otrabalho da terra. A lógica e asimbólica da lavouracamponesa. Brasília: UnB,1997.

5 REDFIELD, R. The littlecommunity/Peasant society andculture. Chicago: UniversityPress. Chicago, 1960.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5219

Page 20: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas

20 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

modelo “quente-frio/seco-úmido”. Distintos povoseram classificados nesses termos e, conhecendo-se oambiente de um deles, podia-se deduzir um outropor oposição – como os citas (frio-seco) em oposiçãoaos egípcios (quente-úmido).6

As concepções populares sobre comida,organismo humano, solos e plantas são, pois, parte deum modelo cosmológico mais amplo. Se o domíniodos negócios deve ser “frio”, racional, o do lar deveser “quente”, afetivo. Existem olhares “cálidos” eolhares “gélidos”. Existem pessoas que “irradiam calorhumano”, enquanto outras são “frias”. Mas, se ascategorias num plano se opõem, em outro secomplementam e é de sua combinação equilibradaque depende a harmonia universal. Se os diferentesatributos devem coexistir, eles não devem, contudo,invadir o domínio ao qual não pertencem. Se aafetividade do lar “quente” não deve invadir o domíniodo trabalho, onde deve predominar uma “cabeçafria”, o oposto tampouco deve ocorrer – para que o“homem de negócios” mantenha seu equilíbrio épreciso que, ao sair do escritório “frio”, ele encontreum lar “quente” .

O corpo humano é parte do universo, e uma partemuito especial, pois é nele que “existe” o próprioindivíduo que percebe o universo. Esse corpo étambém percebido como composto de partes“quentes” e “frias” (sangüíneas e sem sangue;vermelhas e brancas) que se opõem mas que tambémse integram complementarmente numa totalidadeharmônica, desde que a “qualidade” de uma partenão invada a outra.

O organismo humano é composto de duas partes:a cabeça e o corpo, e abriga dois órgãos fundamentais,o “miolo” (cérebro) e o coração. O primeiro,percebido como “frio”, sem sangue e branco, tempor função “governar as idéias”; o segundo, “quente”,vermelho e sangüíneo, tem a função de “governar ocorpo”, fazendo circular o sangue e “dando vida ao

6 HARTOG, F. Le mir r oird’Hérodote. Essay sur larépresentation de l’autre.Paris: Gallimard, 1980.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5220

Page 21: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Klaas Woortmann

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 21

corpo”. A mulher, contudo, distingue-se do homempor possuir um órgão a mais, o útero, vermelho esangüíneo e cuja função é governar a menstruação egerar crianças. Ela possui, pois, três órgãos, dos quaisdois são sangüíneos e quentes. Como em muitas outrasculturas, a imparidade (no caso, três órgãos) érelacionada à ambigüidade e ao desequilíbrio. Assim,se no homem existe um domínio “frio” e outro“quente” (equilíbrio), na mulher existem um domínio“frio” e dois domínios “quentes” (desequilíbrio). Apercepção do corpo humano conduz, então, a umadiferenciação entre homens e mulheres que transcendea simples diversidade anatômico/fisiológica.

Se a mulher difere do homem por ter um órgão amais, o útero, ela é também percebida como tendomais sangue que o homem. Essa maior quantidade desangue relaciona-se aos processos fisiológicos damenstruação e da gravidez, assim como àamamentação. Essa diferença, segundo asrepresentações populares, implica que na mulher oequilíbrio está em permanente perigo de ruptura,notadamente nos períodos de menstruação e gravidez,momentos em que a mulher é percebida como“perigosa” no plano social. Se o útero evita odesequilíbrio fisiológico, evitando a contaminação deuma área “fria” e não sangüínea (a cabeça) por outra,“quente” e sangüínea, a mulher é, contudo, percebidacomo potencialmente causadora de desequilíbrios noplano da sociedade. A neutralização dessa pericu-losidade social, e não só do desequilíbrio fisiológico,depende de comportamentos adequados, em que sedestacam as prescrições e proibições alimentares.

É necessário distinguir, nos termos da percepçãopopular, dois tipos de sangue: o sangue “branco” e osangue “vermelho”, sendo o primeiro umatransformação do segundo. No homem, o “sanguevermelho” se transforma em “branco” (sêmen) pelaoperação dos testículos, por ocasião do desejo sexual.O encontro desse “sangue branco” masculino com o

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5221

Page 22: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas

22 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

sangue vermelho do útero dará origem a um novoser, sendo cada um dos “sangues” responsável pelaformação de distintas partes: o “sangue branco”masculino dará origem às partes brancas, notadamentea cabeça e o cérebro; o sangue vermelho femininodará origem à carne, útero e coração.7

Há nessa percepção uma clara classificaçãoideológica de gênero: o homem gera o domínio dasidéias; a mulher gera o corpo. Do pai vem o cérebro,a razão; da mãe, o coração, a emoção. Do pai odomínio “frio”; da mãe o domínio “quente”.

O organismo humano compõe-se, portanto, departes “frias” e “quentes” constituindo uma totalidadeem equilíbrio. O rompimento de tal equilíbrio se dáquando “o sangue sobe à cabeça”, ou quando se“esquenta a cabeça”, isto é, quando um domínio “semsangue” e “frio” é invadido pela “quentura” naturaldo domínio “corpo”. Sintomaticamente, diz-se dealguém a quem o sangue “subiu à cabeça” que “perdeua cabeça”.

Tal invasão/inversão pode ser causada por doenças“quentes” ou, na mulher, pela “suspensão da regra”.Entre os meios pelos quais se busca assegurar oequilíbrio está uma dieta equilibrada, uma combinaçãode alimentos “quentes” e “frios” (como o feijão comarroz). Se o desequilíbrio alimentar não causa doenças,ele agrava uma doença já instalada. Por outro lado,uma pessoa com “bons humores” dificilmentecontrairá uma doença e uma dieta equilibradamaximiza o equilíbrio dos “humores”8.

Na presença de doenças “frias” deve-se evitaralimentos igualmente “frios”, mas deve-se tambémingerir alimentos “quentes”; inversamente, em estados“quentes” (certas doenças e o período menstrual,percebido como próximo a um estado de doença)deve-se ingerir comidas “frias” e evitar as “quentes”.Sendo a mulher percebida entre a menarca e amenopausa como estando num permanente trânsitoentre saúde e doença e num estado em que o domínio

7 NOVIÓN, M. I. Op. cit.

8 MAUÉS, R. H.; MAUÉS, M.A. Hábitos e ideologiasalimentares numa comunidade depescadores. Brasília:Departamento deAntropologia. UnB, 1976.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5222

Page 23: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Klaas Woortmann

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 23

do “frio” pode ser invadido pelo “quente”, é a elaque se aplicam com maior freqüência as prescrições eproibições alimentares.

Além de “quentes” ou “frios”, os alimentospodem ser “reimosos” ou “mansos”. A “reima” -possivelmente um termo derivado de rheuma e quetambém designa “mau gênio” - é uma “qualidade”do alimento que o torna ofensivo para certos estadosdo organismo e em certos momentos da vida dapessoa. Assim, por exemplo, o alimento “reimoso”“faz mal para o sangue”, “agita o corpo da pessoa”,“põe a reima [do corpo] para fora”9. Um alimento“reimoso” só pode ser consumido por alguém emperfeitas condições de saúde10. Tal como ocorrecom as qualidades de “quente” e “frio”, a “reima”também exprime uma relação entre o alimento e oorganismo. O alimento “reimoso” não pode sercomido por quem esteja com o próprio corpo“reimoso”, isto é, com o “sangue agitado”, comreumatismo, com feridas da pele.

Há uma certa relação entre “quente”, especialmente“muito quente”, e “reimoso” mas nem todo alimento“quente” é “reimoso”, e existem alimentos “frios” queo são. O que define a “reima” difere das definiçõesdessas outras qualidades.

Um primeiro critério diz respeito à “idade” doanimal ou planta (embora a “reima” seja atribuídaprincipalmente a alimentos de origem animal). Umanimal será tanto menos reimoso quanto menos idadetenha; assim, uma leitoa “novinha” não tem “reima”mas um porco em idade reprodutiva é “reimoso”.Inversamente, as plantas mais novas (verdes) são mais“reimosas” que as mais velhas (maduras). No casodos animais, “maduro” significa ter funções sexuais eem todas as culturas a maturidade sexual temsignificados simbólicos cercados de procedimentosrituais. De forma coerente, animais castradostampouco têm “reima”, ou têm pouca “reima”.

Outro critério é aquele que opõe o domesticado

9 BRANDÃO, C. R. Plantar,colher, comer. Rio de Janeiro:Graal, 1981.

10 MAUÉS, R. H. A ilhaencantada. Medicina examanismo numa comuni-dade de pescadores. Belém:UFPa, 1990; MAUÉS, M. A.Trabalhadeiras e camarados.Relações de gênero, simbo-lismo e ritualização numacomunidade amazônica.Belém: UFPa, 1993.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5323

Page 24: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas

24 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

ao não domesticado. O porco do mato é maisreimoso que o domesticado “inteiro”. Peirano11

observou que são “reimosos” os animais que vivemlonge dos homens e em outro nível, como osvoadores. Assim, um animal será tanto mais “reimoso”quanto mais se opõe ao homem. Ainda, quanto maisselvagens tanto mais “reimosos” são os animais, comoo caititu, um tipo de porco selvagem que ataca ohomem. Outra razão pela qual o animal selvagem é“reimoso” é dada pelo fato de ser “inteiro” e deve-senotar que tanto o boi como o porco “inteiros” sãoconsiderados menos domesticados que os castrados– estes últimos são “mansos”, assim como o opostodo alimento “reimoso” é o alimento “manso”. Ocomportamento do animal se aplica também ao nãodomesticado: quieto, “manso” ou irriquieto, “brabo”,sendo este último “reimoso”.

A ambigüidade é outro critério. São “reimosos” oporco, a galinha d’Angola, o peixe “de couro” (semescamas) e outros animais que fogem às característicasgerais de sua espécie, isto é, que não se enquadramnos critérios selecionados por determinada cultura paraelaborar suas taxonomias. O porco é o exemploclássico do animal ambíguo ou anômalo, comomostrou Douglas12, e por isso percebido comoimpuro ou “poluído” na tradição judaico-cristã e“reimoso” na tradição popular brasileira. São impurose “reimosos” os animais que ocupam posiçõesintermediárias ou que habitam domínios “misturados”,como a lama e o mangue. Assim, o porco é ambíguoporque possui o casco bi-partido, em oposição aogado vacum, e porque “gosta da lama”.Analogamente, o caranguejo, que habita o mangue,também é “reimoso”. Ademais, além de viver nomangue, tem os ossos “pelo lado de fora” do corpo,o que o torna anômalo.

Outros animais, ainda, são percebidos comoambíguos, como o camaleão (comestível em algumaspartes do Brasil) pois, além de ser um réptil, o que

12 DOUGLAS, M. Purity anddanger. An analisis ofconcepts of pollution andtaboo. London: Routledge& Kegan Paul, 1966.

11 PEIRANO, M. A reima dopeixe. Pesquisa Antropológica21. Brasília: Departamentode Antropologia, UnB,1979.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5324

Page 25: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Klaas Woortmann

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 25

por si só já o torna ambíguo, muda constantementede cor. O já referido peixe “de couro” ou aquele quetem a carne vermelha são igualmente “reimosos”. Oboto, na Amazônia, percebido como um “peixe” queé mamífero, também o é; ademais, é particularmenteperigoso para as mulheres às quais procura seduzir,transfigurado em homem13. Acredita-se (como pudeverificar pessoalmente) que persegue canoas quetransportam mulheres menstruadas. O peixe conhecidocomo linguado é considerado “reimoso” noNordeste, por ter os “dois olhos num lado só da cara”:uma crença corrente nessa região explica que olinguado, antes um peixe normal, teria “voltado a cara”a Nossa Senhora ficando, em conseqüência,amaldiçoado.

É preciso considerar ainda outras características.Quanto aos hábitos alimentares dos animais, sãoconsiderados “reimosos” aqueles cuja alimentação sejaconsiderada irregular14 opõem-se, neste caso, o gadovacum ao porco, o primeiro com uma dieta “regular”e previsível, pois come apenas capim, enquanto o porco“come de tudo”.

Com relação ao sexo do animal, de modo geral, afêmea é menos “reimosa” que o macho, numa curiosainversão relativamente aos humanos, onde é a fêmeao sexo “reimoso”. No entanto, os animais criados porhomens são menos “reimosos” que os criados pormulheres. Quanto ao estado de saúde do animal,presente ou passado, será “reimoso”, ou “maisreimoso” aquele que sofreu alguma doença ou que“ficou estropiado” em decorrência de um acidente.Todos esses critérios podem ser resumidos a umaoposição entre ordem e desordem.

Todavia, é preciso considerar também o estadode quem ingere o alimento. De um lado, o estado docorpo; como a “reima” do corpo se manifesta nosangue, quem está com o sangue “agitado” não devecomer comida “reimosa”. Mas outros estadostambém são levados em consideração. Além de

13 GALVÃO, E. Santos e visagens.São Paulo: CompanhiaEditora Nacional. 1955.

14 NOVIÓN, M. I. Op. cit ;MAUÉS, 1990. Op. cit . ;MAUÉS, 1993. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5325

Page 26: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas

26 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

mulheres menstruadas ou em resguardo, tambémoutras situações de liminaridade ou ambigüidadeimpedem a ingestão de tais alimentos – o luto, aconvalescência, o xamanismo e a “couvade”; estaúltima, bastante comum na Amazônia e tambémobservada no Distrito Federal, implica a idéia de queo homem também “tem a criança” e o resguardopaterno (40 dias, tal qual o materno) igualmente visagarantir a sobrevivência do recém-nascido. São estadosque representam momentos de passagem, semprecercados de cuidados rituais.

O luto (40 dias), juntamente com a encomendaçãoda alma do falecido, o velório, as missas de sétimo diae de mês são ritos de passagem que asseguram orenascer do defunto numa “outra vida” e evitam oretorno da alma, o que ocorreria se a passagem nãose completasse, permanecendo a alma no limbo, istoé, em situação liminar. Em partes da Amazônia onascimento e a morte são representados pela mesmasimbologia: uma vela de barco estendida na entradada casa, denotando a percepção dos dois eventoscomo uma viagem.15

O xamanismo é associado a uma doença por açãodos “companheiros do fundo”, entidadessobrenaturais que habitam o fundo das águas16. Oxamã nunca se restabelece por completo. Ele deveobservar um conjunto de proibições alimentaressemelhantes ao da mulher no período de resguardopós-parto. Como iniciando, ele deve morrersimbolicamente para renascer como xamã e duranteuma semana deve permanecer em total isolamento.Ao longo de sua vida deverá obedecer a prescriçõesrituais e alimentares para que a doença original nãovolte a se manifestar.

A criança, durante os dois primeiros anos de vidae, mais particularmente, durante os primeiros 40 dias,é cercada de cuidados alimentares. Logo após onascimento a criança é alimentada com leite, mas nãoaquele da própria mãe, pois este é considerado

15 MAUÉS i MAUÉS. Op. cit.

16 GALVÃO. Op. cit.; MAUÉS,1993. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5326

Page 27: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Klaas Woortmann

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 27

“venenoso”, isto é, muito “reimoso”, dada a presençado colostro. O leite da mãe é também proibido casoesta, durante o período de amamentação, se tornenovamente grávida já que neste estado todo oorganismo da mulher é percebido como“venenoso”17. O mesmo observei no Brasil Central.O leite será nesses casos fornecido por outra mulherque tenha um filho de alguns meses que ainda mame;esta mulher se torna, então “mãe de leite” da criança ecomadre de sua mãe “verdadeira”.

Durante os primeiros 40 dias a criança se alimentaapenas de leite e durante o primeiro ano de vida umasérie de alimentos considerados “reimosos” sãointerditos. Ao longo de todo o período deamamentação a criança continua a ser percebida comoligada fisiologicamente à mãe. De fato, a criança só setorna um ser em si mesmo com o advento dacapacidade de locomoção bípede e do uso da palavra.Durante a amamentação a criança continua a sealimentar do sangue materno, tal como em sua vidaintra-uterina, pois o leite materno (“sangue branco”) épercebido como o sangue uterino transformado noseio. Os dois primeiros anos são, pois, um períodoliminar cercado de cuidados para que se processe apassagem. Igualmente, deve a criança se abster dealimentos “quentes”, já que o nascimento deriva deum organismo ao extremo “quente”, o da mãe durantea gravidez.

Na mulher, um ciclo de longo prazo, da menarcaà menopausa, contém vários ciclos de curto prazo,nos quais se acentua a ambigüidade socialmenteconstruída. A partir da menarca a menina socialmenteindiferenciada se torna um ser definido mas, ao mesmotempo, ambíguo: torna-se mulher e, como tal, afastadados domínios masculinos. Entre pescadores daAmazônia fica proibida de contato com osinstrumentos de pesca, notadamente quandomenstruada, período durante o qual deve mesmoevitar qualquer contato com a água do mar. Na mesma

17 NOVIÓN. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5327

Page 28: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas

28 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

região, sua periculosidade é expressa pela noção de“panema”18, isto é, pela crença de que pode“empanemar” os homens, fazendo com que nãoconsigam mais pescar ou caçar (“empanemar” significatransmitir algo semelhante a “azar” ou “má sorte”).Numa comunidade de oleiros da Bahia, pude observarque ficavam proibidas de qualquer contato com otorno, instrumento que simboliza a identidademasculina e da comunidade como um todo. Durantea menstruação, como vimos, lhe são proibidos osalimentos “quentes” e “reimosos”: não somente estáela sujeita a perigos (como o do sangue “subir para acabeça”) mas também representa ela mesma um perigopara a sociedade, em virtude de estar “poluída”,“reimosa” e “venenosa”.

Com a menopausa, cessam as proibiçõesalimentares a que a mulher deve obedecer. Não apenasnão está mais sujeita a perigos, mas torna-se agora, talcomo a menina, inofensiva para a sociedade. Após amenopausa, ela “vira homem”, expressão comum naAmazônia, no Brasil Central e no Nordeste, podendoaté mesmo desempenhar atividades definidas comomasculinas.

Como já se viu, a mulher é particularmente sujeitaa prescrições/proibições alimentares, uma linguagemque é parte da construção ideológica da mulher comopessoa social. Como observou Maués19 os processosnaturais fornecem os elementos para que o simbólicose torne uma forma de controle do social. Se, deum lado, as prescrições/proibições alimentaresexpressam os princípios de uma medicina popularem que o alimento é percebido em sua relação como organismo, de outro lado elas aproximamsimbolicamente certas categorias de pessoas edeterminados alimentos que, num plano real, devemser mantidos afastados. No caso da mulher,particularmente sujeita a prescrições/proibições, falarda “reima” do alimento é falar da ambigüidade doser feminino. Mas é também uma forma de falar de

19 MAUÉS, 1993. Op. cit.

18 GALVÃO. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5328

Page 29: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Klaas Woortmann

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 29

estados de liminaridade mais gerais, como os aquidescritos.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

BRANDÃO, C. R. Plantar, colher, comer. Rio de Janeiro: Graal,1981.

CURRIER, R. L. The hot-cold syndrome and symbolic balancein Mexican and Spanish-American folk medicine. Ethnology, 5,1966, p. 251-263.

DOUGLAS, M. Purity and danger. An analisis of concepts ofpollution and taboo. London: Routledge & Kegan Paul, 1966.

GALVÃO, E. Santos e visagens. São Paulo: Companhia EditoraNacional, 1955.

HARTOG, F. Le mirroir d’Hérodote. Essay sur la répresentation del’autre. Paris: Gallimard, 1980.

MAUÉS, R. H. A ilha encantada. Medicina e xamanismo numacomunidade de pescadores. Belém: UFPa, 1990.

MAUÉS, M. A. Trabalhadeiras e camarados. Relações de gênero,simbolismo e ritualização numa comunidade amazônica. Belém:UFPa, 1993.

MAUÉS, R. H. i MAUÉS, M. A. Hábitos e ideologias alimentaresnuma comunidade de pescadores. Brasília: UnB, Departamento deAntropologia, 1976.

NOVIÓN, M. I. Anátomo fisiologia popular e alimentação na mulher eno binômio mãe – fi lho. Brasília: UnB, Departamento deAntropologia, 1976.

PEIRANO, M. A reima do peixe. Pesquisa Antropológica 21.Brasília: UnB., Departamento de Antropologia, 1979.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5329

Page 30: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Quente, frio e reimoso: alimentos, corpo humano e pessoas

30 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

REDFIELD, R. The little community/Peasant society and culture.Chicago: Chicago University Press, 1960.

WOORTMANN, E. i WOORTMANN, K. O trabalho da terra. Alógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: UnB, 1997.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5330

Page 31: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 31

Mexicanas’ Public Food Sharing inMexicanas’ Public Food Sharing inMexicanas’ Public Food Sharing inMexicanas’ Public Food Sharing inMexicanas’ Public Food Sharing inColorado’s San Luis VColorado’s San Luis VColorado’s San Luis VColorado’s San Luis VColorado’s San Luis Valleyalleyalleyalleyalley11111

Carole Counihan

Resumo: O trabalho feminino em torno da alimentaçãoenvolve produção e reprodução e ultrapassa as fronteirasentre a esfera doméstica do lar e a esfera pública dacomunidade. O trabalho de campo etnográfico, realizadodurante dez verões no município de Antonito – predo-minantemente hispânico, localizado na área rural de Co-nejos County, Colorado, EUA –, revelou que, ao esten-derem suas responsabilidades de dar de comer para alémda família, abarcando a comunidade mais ampla, as mu-lheres são essenciais para garantir a segurança alimentarnesta região rural empobrecida. Em cinqüenta e seis horasde gravações, em que foram registradas histórias de vidacentradas na comida, as dezenove mulheres que entrevisteifalaram sobre suas crenças e comportamentos em tornoda produção, distribuição e consumo de alimentos. Elasdescreveram como o seu trabalho de alimentar possibili-tou que elas minimizassem a fome, agissem politicamente,construíssem valores públicos baseados na partilha e de-sempenhassem a representatividade.

Palavras-Chave: Histórias de Vida Centradas na Comida.Mexicanas. Representatividade. Fome. Segurança Alimentar.

Abstract: Women’s food work involves both productionand reproduction and traverses boundaries between thedomestic sphere of the home and the public sphere ofcommunity. Ten summers of ethnographic fieldwork in thepredominantly Hispanic town of Antonito in rural ConejosCounty, Colorado, USA, has revealed that women are

Dra. Carole Counihan. Sociology-Anthropology Department. MillersvilleUniversity. [email protected] Millersville, PA 17551 USA 1 Texto recebido: 22/08/2008.

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1531

Page 32: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

32 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

instrumental in ensuring food security in this poor ruralregion by extending their responsibilities for feedingbeyond the family to include the broader community. Infifty-six hours of tape-recorded food centered life historiesI conducted with nineteen women, they talked about theirbeliefs and behaviors surrounding food production,distribution, and consumption. They described how theirfeeding work enabled them to minimize hunger, actpolitically, construct public values based on sharing, andenact agency.

Keywords: Food Centered Life Histories. Mexicanas.Agency. Hunger. Food Security.

IntroductionIntroductionIntroductionIntroductionIntroduction

This paper examines how women cross over anddissolve the boundaries between public and privatespheres in their roles in combating hunger. The casestudy focuses on Mexicanas in the predominantlyHispanic town of Antonito (population 873) in ConejosCounty in southern Colorado, USA.2 I hope to showthat in extending their responsibilities for feeding beyondthe family to include the broader community, womenact politically, construct public values based on sharing,and enact agency. I define agency as “purposive actionexpressing freedom”3 and suggest that foodways are animportant arena for women’s agency.

I conducted ethnographic fieldwork in Antonitoduring summers from 1996-2006 with my husband,anthropologist Jim Taggart4. Antonito is just six milesnorth of the New Mexico border on the northernfrontier of what anthropologists have called GreaterMexico-that area of the US that has longstandingMexican influence5. Antonito is in an area that waspart of Mexico from 1821-1846—the rural San LuisValley, an 8000-square-mile cold desert valley lying at7500-8000 feet above sea level between the San Juanand Sangre de Cristo mountain ranges6. Mexicano

2 People of Hispanic back-ground in the Antonito arearefer to themselves by manyterms depending on their age,generation, and preference.They use the Spanish termsmexicanas/os, españoles, andhispanos and the English termshispanic, spanish, spanish-american and chicanas/os.They rarely use the terms mexi-can american and latinas/os.

3 COUNIHAN, C. A tortilla islike life: mexicanas stories offood, identity and land. In:Colorado’s San Luis Valley.Austin: University of TexasPress, forthcoming, 2009.

4 TAYLOR, J. I.; TAGGART,J. M. Alex and the hobo: achicano life and story. Austin:University of Texas Press,2003.

5 Paredes defined GreaterMexico as “all the areasinhabited by people of a me-xican culture” in the US as wellas in Mexico (PAREDES,Américo. A texas-mexicancancioneiro. Urbana: Universityof Illinois Press, 1976). Seealso LIMÓN, José E. Americanencounters: greater Mexico, theUnited States, and erotics ofculture. Boston: Beacon Press,1988.

6 The southern San Luis Valleywas long the territory of theUte indians (MAESH,Charles. People of the shiningmountains: the Utes of Colo-rado. Boulder: Pruett, 1991;OSBURN, K. Southern Utewomen: autonomy and assi-milation on the reservation,1887-1934. Albuquerque: Univ.of New Mexico Press, 1998;SIMMONS, V. McConell. TheUte indians of Utah, Coloradoand New Mexico. Boulder:University Press of Colorado,2001; YOUNG, R. K. The Uteindians. Norman: University

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1532

Page 33: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 33

settlers came to north from Rio Arriba and Taoscounties in New Mexico in the mid 1850s and foundedthe agricultural hamlets of Conejos, Guadalupe,Mogote, Las Mesitas, San Rafael, San Antonio, Ortiz,La Florida, and Lobatos. Antonito came later, in 1881,when the Denver and Rio Grande Railroad built astation there and laid out a town site running six blocksfrom east to west and twelve blocks from south tonorth along highway 285. The town grew steadily dueto its commercial importance, saw mills, perlite mines,ranching, and agriculture through and after World WarII, with its population peaking at 1255 in 1950 and thendropping steadily to 873 in 2000. In that year’s census,ninety per cent of residents defined themselves“Hispanic”.

of Oklahoma Press, 1977) andwas settled in the mid-nine-teenth century by Spaniardsand Mexicans from Old andNew Mexico (DEUTSCH, S.No separate refuge: culture, class,and gender on an Anglo-His-panic frontier in the Americansouthwest, 1880-1940. NY:OXFORD, 1987). Anglos arri-ved in ever greater numbers inthe late nineteenth centurywith the U.S. military (sent tovanquish the Utes). The Churchof the Latter Day Saints ho-mesteading claims, and therailroad. On the history, cul-ture, and land use of the SanLuis Valley, see BEAN, L. E.Land of the blue sky people.Alamosa, CO: Ye Olde PrintShoppe, 1975; DEUTSCH.Op. cit.; GARCIA, R. Notes on(Home) Land Ethics: ideas,values and the land. In: DE-VON, P. Chicano culture, ecology,politics: subversive kin. Tucson:University of Arizona Press,1998, p. 79-118; GUTIE-RREZ, P. ECKERT, J. Con-trasts and Commonalities:hispanic and anglo farming.CONEJOS C. Colorado. RuralSociology, 56, 2, 1991, p. 247-263; MARTINEZ, R. O.Chicano lands: acquisition andloss. Wisconsin Sociologist 24,2/3, 1987, p. 89-98; SIM-MONS, V. McConnell. TheSan Luis Valley: land of thesix-armed cross. Boulder:Pruett, 1979; TAGGART, J.M.; Jose Inez Taylor. Slow 31,2003, p. 46-49; TAYLOR;TAGGART. Alex and the hobo:a chicano life and story. Austin:University of Texas Press,2003; TUSHAR, O. L. The peo-ple of el valle: a history of thespanish colonials in the SanLuis Valley. Pueblo, CO: ELEscritorio, 1992; and WE-BER, K R. Necessary butInsufficient: land, water, and

Antonito has a pharmacy, locally owned super-market, three restaurants, two gas stations, a video store,a hair salon, a barbershop, and several gift and used-goods stores. There are around 450 students in theelementary, junior high, and high schools, which drawnot only from the town of Antonito but also from theneighboring hamlets. Many people struggle to find

Figure 1. Main Street, Antonito, Colorado, USA /Rua principal, Antonito, Colorado, EUA

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1533

Page 34: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

34 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

jobs and go in and out of the workforce. The fewimportant employers are the town, the county, theschools, the hospitals in La Jara and Alamosa, and theservice economy in Alamosa, population 9000, thirtymiles north. Many people get by on odd jobs, baby-sitting, trading in used goods, public assistance jobs,and welfare. In the summer and fall there is sometourism due to hunting, fishing, and vacationing in thenearby San Juan Mountains and the popular narrowgauge Cumbres & Toltec Scenic Railroad that travelsfrom Antonito over the spectacular San Juan Mountainsto Chama, New Mexico.

Food Centered Life Histories and TFood Centered Life Histories and TFood Centered Life Histories and TFood Centered Life Histories and TFood Centered Life Histories and Testimoniosestimoniosestimoniosestimoniosestimonios

For ten summers, I lived and conducted ethnographicresearch in Antonito, using a food centered life historymethodology. Food-centered life histories are tape-recorded semi-structured interviews with willingparticipants on their beliefs and behaviors surroundingfood production, preparation, distribution, andconsumption. I have tape-recorded and transcribed 55interviews with nineteen women and amassed 80 hoursof tape-recordings and approximately 2000 pages oftranscriptions. Interviews focused on women’s expe-riences and memories of farming, gardening, canning,cooking, diet, recipes, everyday and ritual meals, foodsfor healing, eating in pregnancy, breast-feeding, eatingout, and many other topics.

For many women food was a powerful voice ofself-expression as well as a channel through whichthey related to nature, the family, and the local andglobal community. In the meals they cooked, therituals they observed, and the memories they preserved,women communicated powerful messages andemotions7. Moreover, Hispanic culture in the San LuisValley revolved around subsistence food productionuntil after World War II when the local ranching andfarming economy began to decline (Deutsch 1987).

economic devolopment. his-panic southern Colorado. Jour-nal of Ehnic Studies, 19,2, p.127-142.

7 On food as women’s voice seeBRUMBERG, J. J. Fasting gilrs:the emergence of anorexianervosa as a modern disease.Cambridge: Harvard Universi-ty Press, 1988; COUNIHAN,C. The Anthropology of food andbody: gender, meaning andpower. New York: Routledge,1999; _____ Around the Tuscantable: food, family and gender.In: Twentieth Century Florence.New York: Routledge, 2004;DEVAULT, Marjorie. Feedingthe family: the social organi-zation of caring as genderedwork. Chicago: University ofChicago Press, 1991; HAUCK-LAWSON, Annie S. Whenfood is the voice: a case-studyof a polish-american woman.Journal for the study of food andsociety 2, 1,1988, p.21-28;Thompson, Becky W. A hungerso wide and so deep: americanwomen speak out on eatingproblems. Minneapolis: Uni-versity of Minnesota Press,1994.

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1534

Page 35: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 35

Food-centered life histories have suited my feministanthropological perspective, which defines gender asa crucial category in social life and social analysis,emphasizes women’s diversity, and challenges genderoppression9. The experiences and voices of women—particularly those of economically and politicallymarginalized ethnic groups—have too long been absentfrom the historical record. Recuperating them enrichesour understanding of American culture and is a centralgoal in feminist ethnography and oral history10.

Food-centered life histories emulate the testimoniogenre, a form of writing that emerged out of LatinAmerican liberation movements11. Testimonios areordinary people’s narratives about events they havewitnessed that center on a compelling “story that needsto be told—involving a problem of repression, poverty,subalternity, exploitation, or simply survival”12. Likeethnography, testimonios are based on collaboration

8 CABEZA DE BACA, wroteabout the recipes, cooking, andculture of Hispanic Las Vegas,New Mexico (CABEZA DEBACA, Fabiola. The good life.Santa Fe: Museum of NewMexico Press, 1982 (1949);______. We fed them cactus.Albuquerque: University ofNew Mexico Press, 1994 (1954);______. Historic cookery. SantaFe: Ancient City Press, 1970(1942)). JARAMILLO, Cleo-fas. had long descriptions offoodways in her memoir ofgrowing up in norther NewMexico and she too produceda cookbook (JARAMILLO, C.(orig. 1939). The genuine NewMexico tasty recipes. Santa Fe:Ancient City Press, 1981;______. (orig. 1955). Romance ofa little village girl. Albuquerque:University of New MexicoPress, 2000). Many of the Me-xican American women inter-viewed by Elsasser et al. (Lasmujeres: conversations from ahispanic community. NewYork: the feminist press, 1980)in northern New Mexico andPatricia Preciado Martin (Songsmy mother sang to me. An OralHistory of mexican women.Tucson: University of ArizonaPress, 1992) in Southern Ari-zona described foodways anddishes similar to those of An-tonio. Abarca made “culinarychats” the center of her studyof Mexican and Mexican Ame-rican working class women(ABARCA, Meredith. Los chi-laquiles de mi’ama: the langua-ge of everyday cooking. In:POZOLE, Pilaf; THAI, Pad.American women and ethnic food.Amherst: University of Massa-chusetts Press/Sherrie A.Inness. 2001, p. 119-144;______. Authentic or not, it’soriginal. Food and foodways 12, 1,2004, p.1-25; ______. Voices in

Like Mexican and Mexican-American women cooksand writers from other regions, the women of Antonitoused food in rich ways to express themselves andstrive for agency8.

Figure 2. Janice DeHerrera doing a food-centered life historyinterview / Janice De Herrera concedendo uma entrevista

(história de vida centrada na comida)

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1535

Page 36: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

36 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

the kitchen: views of food andthe world from Mexican andMexican American working-class women. College Station,TX: Texas A&M Press, 2006),and Perez has used “kitchen-table ethnography” to camparethe lives of mexicanas in LasCruces. NM and Casas Gran-des. Chihuahua (PÉREZ, R. L.Kitchen table ethnography andfeminist anthropology. Paper pre-sented at the Association forthe study of food and SocietyAnnual Meeting. Hyde Park,NY, 2004). On chicanas andfood, see also (BLEND, Benay.I am an act of kneading: foodand the making of chicanaidentity. In: Cooking lessons:The politics of gender andfood. Lanham, MD: Rowmanand Littlefield/Sherrie A.Inness, 2001a; ______. 2001b.In the kitchen family bread isalways rising! Women’s cultureand the politics of food. In:POZOLE, Pilaf; THAI, Pad.American women and ethnicfood. Amherst: University ofMassachusetts Press/Sherrie A.Inness, p. 119-144); (COU-NIHAN, C. Food as womens’svoice in the San Luis Valley ofColorado. In: Food in the USA:a reader. New York: Routledge,2002, p. 295-304; ______. Foodas Border, Barrier and Bridgein the San Luis Valley ofColorado. In: VOSKI, ArleneA.; HABER, B. From Bettycrocker to feminist food studies:critical perspectives on womenand food. Amherst: Universityof Massachusetts Press, 2005;MONTAÑO, M. The history ofmexican folk foodways of SouthTexas: Street Vendors, OffalFoods, and Barvacoa de Ca-beza. Ph. D. Dissertation,University of Pennsylvania,1992; REBOLLEDO, T. D.Women singing in the snow: a

cultural analysis of chicanaliterature. Tucson: University ofArizona Press, 1995, andSWADESH, F. L. Los primerospobladores: Hispanic Americansof the Ute Frontier. NotreDame: University of NotreDame Press, 1974.

9 BEHAR, R.; GORDON, D. A.(ed.) Women writing culture. Ber-keley: University of CaliforniaPress, 1995; MOORE, H.Feminism and Anthropology.Minneapolis: University ofMinnesota Press, 1988; WOLF,M. A thrice told tale: feminism,postmodernism, and ethno-graphic responsibility. Stan-ford, CA: Stanford UniversityPress, 1992.

10 See BEHAR, R.; GORDON,D. A. (ed.). Op. cit.; GLUCK,S. B.; PATAI, D. Women´swords: the feminist practice ofOral History. New York:Routledge, 1991; WOLF, M.A Thrice told tale: feminism,postmodernism, and ethno-graphic responsibility. Stan-ford, CA: Stanford UniversityPress, 1992.

11 Testimonios emerged as a li-terary genre out of liberationstruggles of indigenous peo-ple, workers and campesinosin Latin América in the 1960sand 1970s and are widelyknown through the book I,Rigoberta Menchu (MEN-CHÚ, R.; BURGOS-DE-BRAY, E. I Rigoberta Menchú:an indian woman in Guate-mala. Translated by AnnWright. London: Verso, 1987).(BEVERLY, J. Against lite-rature. Minneapolis: Universityof Minnesota Press, 1993, p.70-71), defines testimonios as“told in the first person by anarrator who is also the realprotagonist or witness of theevents she or he recounts…The production of a testi-

monio often involves the taperecording and then the trans-cription and editing of an oralaccount by an interlocutor whois an intellectual, journalist, orwriter. The Latina FeministGroup defines testimonios as“a crucial means of bearingwitness and inscribing intohistory those lived realitiesthar would otherwise succumbto the alchemy of erasure.

12 BEVERLY, J. Op. cit., p. 73.

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1536

Page 37: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 37

between the narrator/witness and the compiler/ethnographer. The goal of testimonios is “to rewrite andto retell… history and reality from the people’sperspective” as diverse and complex as that may be13.Food centered life histories are like the testimoniosutilized by the Latina Feminist Group (2001)—personalstories from marginalized women that revealsubjectivity and diversity while calling attention tobroad political and economic forces. They give voiceto the relatively powerless rural Hispanic women inthe remote southern San Luis Valley about whom littleis known, contributing to their empowerment and tothe process of “documenting silenced histories”14.

My forthcoming book, tentatively titled A Tortillais Like Life: Mexicanas’ Stories of Food, Identity andLand in Colorado’s San Luis Valley15 shows howAntonito women described land and water, definedfood and meals, and enacted family, gender, and com-munity relations. Interviews showed women playingimportant roles in the production, distribution, andconsumption of food both inside and outside the home.Women gave high value to being able to provide fortheir families. Older women remembered having gar-dens and gathering wild food, and demonstrated deepties to the land. All women valued earning money tobe able to buy food and other things for their families.Their food centered life histories revealed complexrelationships to cooking and feeding, which were wi-dely seen as women’s duties and which connoted bothdrudgery and creativity, burden and pleasure, andsubordination and power. Many of the women I in-terviewed extended their responsibility for cookingand feeding into the public sphere and were importantcontributors to community dinners which sprang upfor church events, funerals, weddings, anniversaries,fund raisers, sports team banquets, and other publicoccasions. Women also played an ongoing role in manyactivities designed to combat public food insecurity.

13 GUGELBERGER, G.; KE-ARNEY, M. Voices for thevoiceless: testimonial literatu-re in Latin America. Latin Ame-rican Perspectives 18,3,3-14,1991,p. 11.

14 LATINA FEMINIST GROUP.Telling to live: Latina FeministTestimonios. Durham: DukeUniversity Press. 2001, p. 3.DEUTSCH. Op. cit. writes:“written history of female mi-norities or ‘ethnics’ is rare, thatof chicanas or Hispanic wo-men rarer though increasing,andof chicanas or Hispanicwomen in Colorado vituallynon-existent.”

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1537

Page 38: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

38 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

PPPPPoverty and Food Insecurityoverty and Food Insecurityoverty and Food Insecurityoverty and Food Insecurityoverty and Food Insecurity

Poverty was a problem in Antonito, Conejos County,and the predominantly Hispanic rural region ofNorthern New Mexico and Southern Colorado thatMartínez16 calls the siete condados del Norte17. Jobs werefew, employment was precarious, some people sufferedfrom physical and mental impairments, and a fewpeople in town were struggling to get enough goodfood to eat. Conejos County was one of the poorestin the nation. In 2004, the percent of people belowpoverty in Conejos County was a staggering 19.1% vs.10.2% in Colorado and 12.7% in the U.S. In 2005 theannual median personal income per capita for ConejosCounty was $18,875, barely over half of the Coloradofigure of $37,510, and the U.S. figure of $34,47118. InConejos County the average monthly Food Stampcaseload was over 7% of the population—614 out ofapproximately 8500 inhabitants (Colorado Fiscal PolicyInstitute, n.d.)19.

Poverty jeopardized food security and threatenedcommunity ideals of equality and collective respon-sibility. But the women I interviewed felt that the poorwere able to stave off hunger for three reasons: therewas a caring community; there was assistance—bothgovernmental and private; and the traditional diet wascheap, available, and nutritious. Women played keyroles in assuring adequate food through all three ofthese channels. Even people who did not have muchmoney and did not tackle the twenty-one pageapplication for Food Stamps could survive by eatingculturally appropriate and adequate though perhapsmonotonous foods, while benefiting from informal andformal food sharing. There were several safeguardsagainst hunger: the school breakfast and lunch pro-grams, the Food Bank in the basement of the St. Au-gustine Church, the Senior Citizens Center lunches,and Meals on Wheels for elderly shut-ins. Womenwere instrumental in all of these organizations and in

15 COUNIHAN, C. 2009. Op. cit.16 MARTINEZ, R. O. Social

Action Research, Bioregio-nalism, and the Upper RioGrande. In: PEÑA, D. G.Chicano culture, ecology, politics:subversive kin. Tucson:University of Arizona Press,1998, p. 70.

17 Martinez describes the sietecondados del norte as “the sevencontiguous rural counties innorthern New México andsouthern Colorado that haveChicano/o demographicmajorities”. They are Costillaand Conejos Counties inColorado, and Taos, RioArriba, San Miguel, Mora, andGuadalupe in New Mexico(MARTINEZ, R. O. Op. cit.p.70).

18 These figures come from thewebsite http://www.fedstats.gov/qf/states/08/08021.html consulted 12/20/07.

19 The Colorado Fiscal PolicyInstitute (n.d.) reported thatbetween March 2006 andFebruary 2007, approximately220,000 Coloradons werefood insecure and 251,000(5.3%) were on food stamps,an increase of over 61% since2000. Nord, Andrews andCarlson (2006) reported that12% of Colorado house-holds were foodinsecure. Theaverage price of Food Stampmeal was $1.19 in 2007 and thisamount has declined since the“welfare reform” of 1996when the standard deductionfor applicants was frozen at$134 ignoring the rising costof living (Colorado FiscalPolicy Institute 2007).

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1538

Page 39: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 39

propagating a theory and practice of communityresponsibility. Janice DeHerrera expressed communitysentiment when she said, “Nobody that has food willdeny somebody that’s hungry that asks for food.”

Fifty-two year old Bernadette Vigil rememberedgrowing up in Antonito in the 1950s and painted anidyllic picture of her people taking care of each other:

It was wonderful, being brought up in Antonito was,oh, it was wonderful. We didn’t know what prejudicewas, we didn’t know what hunger was—no matter howpoor everybody was, you didn’t know what hunger was.You knew who your neighbor was, and who helped who,and everybody got along with everybody, everybody,all the kids… We were poor, but hey, we didn’t lackanything. And if we were missing anything, I sure didn’tknow about it. None of us did…

Vigil gave an example of how the community ralliedto combat the rare cases of extreme poverty:

There was this woman, and she was real, real poor…Her husband went completely insane one day. Com-pletely insane. She was left with fifteen kids… Theywould kill birds. What were they doing with birds? Whywould they want to kill birds? Well we didn’t know, butthey were eating them. They would kill them, pluckthem and eat them. We had no idea. Little birds. Sothen we told my daddy. And my daddy says, “I don’tbelieve this.” So he went and he told Mr. Daniels whoowned the grocery store. Mr. Daniels wanted to go see,so they went to go see, and sure enough they were sopoor. There was no welfare at that time. There was nosocial services, there was no nothing. So from that dayMr. Daniels would let her come in [to the store] andget whatever she needed.

Community beneficence helped people survivepoverty before there were formal institutions to help

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1539

Page 40: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

40 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

them such as Food Stamps and welfare. Forty-fiveyear old Janice DeHerrera also remembered expe-riences of helping needy people in the past in Albu-querque, NM. Her value system around food mirroredthat of Antonito and showed how embedded foodsharing was in Mexicano culture. She told a story herfather had told her about his youth, and then went onto talk about how as a young adult she used to feedthe homeless when she was learning to cook:

In Albuquerque there was this blind man, he was mydad’s neighbor. They didn’t have welfare or food stampsin those days, before the war. My dad was a little kidand his mother had a deep conscience and she told himto take the man to go beg for food. My dad would takehim once a month to go begging for his food. Theywould get a little wagon that they used to bring woodin and he would pull the wagon door to door and he’dask people and they’d give him a couple pounds ofbeans, of rice and somebody else would give him flour.That was their welfare system…[When I was learning to cook] I started feeding thehomeless because they’d smell me cooking all day, andthey would come to the house and ask for food. Iwouldn’t let them in because I was always kind of afraid.But I would tell them to go around to the other sideand I would make them a plate and told them that theycould eat in privacy, in like a little patio yard that wasfenced off… I’d get a lot of homeless people knockingon the door. It was real strange. But I always think thosewere God breezes or God sends. A lot of people gotto eat my first foods.

TTTTTraditional Foodways, Sharing and Making Doraditional Foodways, Sharing and Making Doraditional Foodways, Sharing and Making Doraditional Foodways, Sharing and Making Doraditional Foodways, Sharing and Making Do

As Janice DeHerrera’s stories revealed, an ethosof sharing food had deep roots in the Mexicano cultureand was a barrier against hunger. Sixty-six year oldTeddy Madrid confirmed, “Oh there was a lot of

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1540

Page 41: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 41

sharing”. But she observed that families with alcoho-lism, neglect, or death of the breadwinner were indanger of hunger:

I was aware that there were some men that did notprovide for their families simply because of alcohol. Idetest that because I saw it from childhood. I also sawit when I was teaching as a nineteen-year-old [in 1953]…I had one child in my class that… she was so thin and soskinny and dark circles under her eyes. I would tell her,‘Did you bring a lunch?’… She did not bring a lunch,and she did not go home… I would bring things for her,but she wouldn’t eat. I think her stomach had shrunk…

Teddy Madrid pointed out that there was hungerbut with hard work and resourcefulness, ranching andfarming families could get enough to eat fromcultivated and wild foods:

It depended on how astute the mothers were… Theylearned to use a lot of, for example, the wild spinach[lambs quarters]… They would either dry it or can it…They would have the champes [rose hips] for jelly…They would also pick the verdolagas [purslane], the littleround greens… They would have their own onions. So,in a sense, many of them were vegetarians, but therewere also the rabbits. At that time, it wasn’t hard to killrabbits. And there was fish, if the kids would go fish…

The natural environment did provide diverse foods,so that with hard work people could still eat even ifthey lacked jobs and money. Janice DeHerrera said thateven in recent times not only was the traditional dietinexpensive to purchase, but potatoes could be had forfree if a person wanted to go out gleaning—hard butremunerative work:

People around here don’t need much… A lot of themaren’t starving here, because of the traditional food of

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1541

Page 42: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

42 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

beans, tortillas, and potatoes. Potatoes are a hundredpounds for eight dollars, or ten dollars. There’s a lotof meals with a hundred pounds of potatoes. A hundredpounds of beans, ten dollars, you can’t eat a hundredpounds of beans in one year. We tried… We ate eightypounds, and… that was a lean year, when we didn’t havemuch money… If you eat beans and chili every daythere is no stigma to that… There is no stigma to eatburritos, one of the cheapest foods you can make…If you have a little bit of money you can get by, becausethere is food around… If the field is empty accordingto the potato grower and then you just go in and dig,kick around the dirt a little bit, you’ll find potatoeshidden in there. You just take what’s left over… It’shard work… The one time I went, I didn’t like it. Thenafter that [my husband] Ted just took the kids. Theyhad all kinds of energy… Then there is people that goand [glean potatoes] and… try to sell them, to thepeople… There’s a lot of food if you are starving. Itisn’t necessarily yummy food, but you won’t starve.

Hunger in SchoolHunger in SchoolHunger in SchoolHunger in SchoolHunger in School

Figure 3. Antonito High School / Escola de Antonito

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1542

Page 43: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 43

Even though food was available in the environmentand the traditional diet was inexpensive to purchase,there was still hunger. Through her job at theelementary school, Janice DeHerrera saw evidenceof hungry children, just as Teddy Madrid had fiftyyears earlier, which DeHerrera attributed to parentalneglect. But there was a safety net of free schoolbreakfasts and highly subsidized lunches Mondaythrough Thursday when school was in session (therewas no school on Fridays), and there was an ethos ofcommunity care:

In the school that I work in, there are a couple kidswho are not getting enough nutrition… I think that it islaziness of the parents. The mothers are lazy, and theyhave boyfriends and they drink and they go out… Iknow the children have malnutrition because they’reskinny little things. But when they come to school theyask for seconds for breakfast and they go three timesfor lunch. On Mondays, they go hurry to get in thatline like they haven’t had enough food during theweekend…But on poverty I think that there are people in herethat could be in that position but our community doesnot allow it. First of all we are losing money in ourcafeteria and the school takes the loss, a big loss, I meanmajor big, big monies to keep the food program theway it is and they keep it low… For our children it’sonly 50 cents, and everybody gets to eat breakfast.Nobody has to come to school hungry or be in schoolhungry because they have a free breakfast, no mattertheir income. So we know that the kids at least fourdays a week are getting good nutrition… And then theynever deny kids seconds or thirds unless they are noteating their plate and only coming for cake. But if theyare eating their food and they go and take their trayand show that they’ve eaten all their food or most ofit, they’ll give them more food. So nobody is deniedseconds or thirds…

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1543

Page 44: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

44 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

I don’t think that anybody’s hungry. I don’t know, forsome reason people will tell you if they are hungry.They’ll come to the principal and tell them… This onelittle girl, the lady didn’t have very much money andthey moved in and the mother said that they had tospend all the money on the deposit to get the apartmentand that she couldn’t afford any crayons and stuff thekid needed for school. I told her that’s OK. I’ll get hersome. I went to the secretary and asked, told her thesituation and she gave me what she had and whatevershe didn’t have I went and bought for the kid… Wewent around asking people for stuff…

DeHerrera and Madrid described several formaland informal ways that people overcame the threat ofhunger—often through the intervention of women—through gleaning, gathering, wild foods, school feedingprograms, and private charity.

Antonito Food BankAntonito Food BankAntonito Food BankAntonito Food BankAntonito Food Bank

In addition to help from community members,government assistance was available to the poor andhungry in the form of Food Stamps, the WIC program,the Commodity Food Program, and The EmergencyFood Assistance Program, but not everyone in needwas eligible or willing to apply for these forms ofassistance20. For local people, the food bank at theCatholic Church was an important barrier againsthunger. In 2004 I interviewed Tina Casias, then theChurch administrator, about the food bank. She saidit had about thirty clients, who could come six timesper year. Casias encouraged them to come every othermonth to spread the food out over the year, but shesaid sometimes they came six months in a row.

Casias said that the policy was to allow clients topick a specified number of items depending on thesize of the family, as follows:

20 Nort, Andrews and Carlsonreport that Food Stamps, Na-tional School Lunch Programand WIC are the three largestfood assistance programs. In2005 FS provided benefits to25.7 million people, costingover $28 billion, with anaverage benefit per person of$93/month. National SchoolLunch Program in 2005operated in around 100,000schools, served an average ofover 29 million meals/day,over 60% of which were freeor reduced price. In 2005, WICserved an average of 8 millionpeople per month with anaverage monthly benefit of$38 per person. Nord, An-drews and Carlson report thatin 2005 TEFAP (The Emer-gency Food Assistance Pro-gram) of the USDA supplied476 million pounds of com-modity food to soup kitchensand food pantries. “Some 4million households (3,5% ofall households) obtainedemergency food from foodpantries one or more timesduring the 12 month periodending in December 2005”.(NORD, ANDREWS andCARLSON. Household foodsecurity in the United States,2005. Washington, DC: U. S.Department of Agriculture,Economic Research Service,2006, p.32).

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1544

Page 45: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 45

1 person 15 items2 253 354 455 and up 55

Casias made the point that they let clients chooseitems, whereas many food banks gave out pre-packedbags with no choice. But because people had differenttastes and some had health issues too—high bloodpressure, diabetes, or allergies—the Antonito FoodBank policy was to let clients select what they wantedand needed. Casias said the Food Bank had “everything,”and she took me down to the Church basement to seeit. We walked through a church hall floored in redlinoleum, and at one end were two freezers. Thefreezers were old and not very big, around 4’ x 3’ x 2’.She opened the first and inside were a few packagesof hot-dogs, eight or ten packs of hamburgers, andsliced turkey breast. Casias limited people to two pa-ckages of meat per visit to make sure there was enoughfor everyone. In the second freezer was bread ofvarious types: sandwich bread, packs of rolls, ham-burger and hot dog buns, and processed bread items.

Next Casias took me over to a padlocked door inthe wall, which had a sign on it that said: PLEASEDO NOT STACK ANYTHING AT THIS DOOR.IT IS THE FOOD BANK. Casias unlocked the doorand we went in. The Food Bank was a bright, clean,well-organized room with shelves containing a bountyof different food items, welcoming clients to chooseitems to feed themselves. There were many staples,including flour, sugar, dried milk, rice, dried pintobeans, yellow masa, and oats. There were several kindsof canned vegetables and fruits including pumpkins,green beans, peas, corn, cranberries, pears, and peaches.There were some processed items like macaroni andcheese, salad dressing, mayonnaise, HamburgerHelper, Stove-Top dressing, and several canned soups.

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1545

Page 46: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

46 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

The nearby Alamosa food coop bought items in bulkand bagged them, and when Casias got cash donations,she gave the money to Alamosa and they returned theequivalent in bulk goods.

Casias said the Food Bank got donations from allover. The Alamosa and Denver food banks sent regularshipments. A local arts group, Arco Iris, donated a lotof non-food items like paper towels, napkins,toothbrushes, toothpaste, and toilet paper, so clientscould choose these too. The St. Augustine CatholicChurch and the Presbyterian congregation had regularfood drives organized and supported by womenparishioners in both the Catholic and Presbyteriancommunities.

Figure 4. Antonito Food Bank shelves / Prateleiras do Banco de Comida de Antonito

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1646

Page 47: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 47

Teddy Madrid, a Presbyterian, told how themembers of her church supported the food bank:

The first week of the month everyone brings their food,or money, whichever they prefer. My sister is in chargeof it and she brings it down to the [Catholic] Church…The Presbyterian Church in Pueblo grants our churcha hunger fund. I think they’ll give us somewhere to 300-500 dollars a year… Two or three ladies will go to thegrocery store—we patronize our local grocery store,and we buy the groceries there... On Superbowl Sunday,we have a Superbowl food bank day, and this year allthe people who came to church brought cans. Somebring soup, others bring salmon, other cans, whateverit is, and some give money… Food is something thatfamilies need, that children need. Without food, theywill not thrive… They need it.

Figure 5. Antonito Presbyterian Church / Igreja Presbiteriana de Antonito

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1647

Page 48: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

48 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Teddy Madrid articulated the important culturalvalue on sharing food, which was a religious value aswell. “It gives us satisfaction, spiritual satisfaction, thatwe can help someone else”, she said. Concordant withthe attitude that food was a basic need and right, accessto the food bank was straightforward and immediate.In contrast to the complicated bureaucratic proceduresnecessary for getting government food stamps, all foodbank clients had to do was be residents of southernConejos County and fill out an application, whichincluded name, address, phone, social security number,family members, and income. Verification of incomewas not required. The Food Bank administrator TinaCasias said, “The needy are honest.” She added, “Ifthey’re coming here, they need it.” As soon as peoplefilled out an application they could go with Casiasright away to the basement and choose their food. Allkinds of people used the food bank: a family with twodisabled parents and several children, a single motherwith six children, some elderly people, and somealcoholics.

Janice DeHerrera described the food bank ethos:

The church has a food bank… People in the community[contribute]… The church has drives for food all thetime. They ask people to bring in canned food or pas-ta or anything people have… In the past we had thispriest that came in and he says, “The only people thatare going to get free food from the food bank, … arepeople that have food stamps...” He put a requirementand that got everybody mad, a lot of people mad. Itgot me mad because some people won’t go for foodstamps because they don’t want the government to knowanything about them… Sometimes somebody’s hus-band… used the food budget for the liquor and they’restill within the income where they wouldn’t qualify forfood stamps. So they would be denied—they’re notgoing to eat for a week until they get another paycheck,or two weeks… There’s people that are barely making

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1648

Page 49: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 49

it and something else came up. They’ve got to go tothe doctor or something and then they don’t have moneynow for food. So I don’t believe they should have res-trictions… Our conscience is stronger than the law.

ConclusionConclusionConclusionConclusionConclusion

Janice DeHerrera’s words struck a powerful chord.She showed how women’s propagation of communityethics of sharing overcame the hierarchical policypromoted by the priest. She affirmed how her com-munity took seriously the task of making sure everyonehad enough to eat and offered a hopeful vision ofcommunity responsibility. Mexicanas in the Antonitoarea have always been instrumental in food distribution,which has given them a public role and status21. They

Figure 6. Antonito Catholic Church / Igreja Católica de Antonito

21 See DEUTSCH, 1987. Op. cit.p. 53. My forthcoming book(COUNIHAN, 2009. Op. cit. )has a chapter on women´sroles in commensal ritualssurrounding death.

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1649

Page 50: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

50 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

are like the Chicana community organizers in EastsideLos Angeles who “link family concerns to a widernetwork of resources” and “bridge the social distancethat separates residents”22. In East LA, some womenspent countless hours cooking Mexican food forpolitical and parish events and turned normally defined“private” labor into public work that built community.Like the East LA Chicanas, the women of Antonitowere political actors in sharing food and combatinghunger.

With high unemployment in Conejos County andfew job opportunities nearby, community support wasessential to aiding needy people to survive. Particularlyat risk were the elderly and the children, for whomhunger had devastating health consequences23, and forwhom women were the primary caretakers. Womenwere also instrumental in both informal practices offood sharing and in formal institutions like the schoolbreakfast and lunch programs, the Food Bank, theSenior Citizens Feeding Program, Meals on Wheels,and the Catholic Church’s Share Program, whichprovided Thanksgiving and Christmas food boxes tofamilies in need. These were important means ofstaving off hunger and maintaining values of mutualresponsibility, particularly the community value on foodsecurity for all.

Through the methodology of gathering women’sfood-centered life histories, this paper has promotedseveral feminist goals. It has given voice to long-ignoredrural Hispanic women and thus has enriched thehistorical record. It has shown that women’s feedingroles have significance beyond the walls of the homeand can play an important political function in pro-moting food security in the community. It has thuschallenged the false but lingering stereotype thatwomen’s work matters in the private domestic sphere,but has little impact on the public world. It opens theway for future studies of how command of food bringswomen agency and power in pubic, and suggests their

22 PARDO, M. Creting commu-nity: mexican american wo-men in eastside Los Angeles.In: Las obreras: chicana politicsof work and family. Vicki L.Ruiz. Los Angeles: UCLAChicano Studies ResearchCenter Publications, 2000, p.108. On Chicanas´activismlinding the personal and thepolitical, see also Davis, 1998.Op. cit..

23 MARSHAL, J. A.; LOPEZ, T.K.; SHETTERLY, S. M.;MORGENSTERN, N. E.;BAER, K.; SWENWON, C;BARON, A.; BAXTER, J.;HAUMMAN, R. F. Indicatorsof nutricional risk in a ruralelderly hispanic and non-hispanic white population:San Luis Valley Health andAging Study. Journal of theAmerican Dietetic Association.1999, 3. p. 315-22.

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1650

Page 51: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 51

huge potential contribution to social justice movementscentered on food access and sustainability.

ReferencesReferencesReferencesReferencesReferences

ABARCA, Meredith. Los chilaquiles de mi´ama: the language ofeveryday cooking. In: POZOLE, Pilaf; THAI, Pad. American womenand ethnic food. Amherst: University of Massachusetts Press/SherrieA. Inness. 2001, p. 119-144.

_________. Authentic or not, it’s original. Food and foodways 12, 1:1-25, 2004.

_________. Voices in the kitchen: views of food and the worldfrom Mexican and Mexican American working-class women.College Station, TX: Texas A&M Press, 2006.

BEHAR, Ruth; GORDON, Deborah A. (ed.). Women writing culture.Berkeley: University of California Press, 1995.

BEAN, Luther E. Land of the blue sky people. Alamosa, CO: YeOlde Print Shoppe, 1975.

BEVERLY, John. Against literature. Minneapolis: University ofMinnesota Press, 1993.

BLEND, Benay. I am an act of kneading: food and the making ofchicana identity. In: Cooking lessons: the politics of gender and food.Lanham, MD: Rowman and Littlefield/ Sherrie A. Inness, 2001a.

_________. In the kitchen family bread is always rising! Women’sculture and the politics of food. In: POZOLE, Pilaf; THAI, Pad.American women and ethnic food. Amherst: University ofMassachusetts Press/ Sherrie A. Inness, 2001b. p. 119-144.

BRUMBERG, Joan Jacobs. Fasting girls: the emergence of anorexianervosa as a modern disease. Cambridge: Harvard UniversityPress, 1988.

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1651

Page 52: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

52 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

CABEZA DE BACA, Fabiola. The good life. Santa Fe: Museum ofNew Mexico Press, 1982(1949).

_________. We fed them cactus. Albuquerque: University of NewMexico Press, 1994 (1954).

_________. Historic cookery. Santa Fe: Ancient City Press,1970(1942).

Colorado Fiscal Policy Institute. n.d. Priorities for food stampreauthorization. http://www.cclponline.org/pubfiles/Food%20Stamp%20Reauthorization%20Priorities.pdf consulted5/11/08.

Colorado Fiscal Policy Institute. 2007. The Value of Food StampBenefits in Colorado is Eroding: Congress Must Address this Issuein the 2007 Farm Bill. May, 2007. http://www.cclponline.org/pubfiles/2007_05_16FSerosion.pdf consulted 5/11/08.

COUNIHAN, Carole. The anthropology of food and body: Gender,Meaning and Power. New York: Routledge, 1999.

_________. Food as women’s voice in the San Luis Valley ofColorado. In: Food in the USA: A Reader. New York: Routledge.2002, p. 295-304.

_________. Around the tuscan table: food, family and gender.In: Twentieth century florence. New York: Routledge, 2004.

_________. Food as border, barrier and bridge in the San LuisValley of Colorado. In: VOSKI, Arlene HABER, Barbara A. FromBetty crocker to feminist food studies: critical perspectives on Womenand Food. Amherst: University of Massachusetts Press, 2005.

_________. A tortilla is like life: mexicanas stories of food, identityand land. In: Colorado’s San Luis Valley. Austin: University of TexasPress, forthcoming, 2009.

MALIA, Davis. Philosophy meets Practice: A critique ofecofeminism through the voices of three chicana activists. In: Devon

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1652

Page 53: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 53

G. Peña. Chicano culture, ecology, politics: subversive kin. Tucson:University of Arizona Press, 1998, p. 201-231.

DEUTSCH, Sarah. No separate refuge: culture, class, and gender onan anglo-hispanic frontier in the American Southwest, 1880-1940.NY: Oxford, 1987.

DEVAULT, Marjorie. Feeding the family: the social organization ofcaring as gendered work. Chicago: University of Chicago Press,1991.

ELSASSER, Nan; MACKENZIE, Kyle; TIXIER, Yvonne y Vigil.1980. Las mujeres: conversations from a hispanic community. NewYork: The Feminist Press, 1980.

GARCIA, Reyes. Notes on (home)land ethics: ideas, values andthe land. In: DEVON, P. Chicano culture, ecology, politics: subversivekin. Tucson: University of Arizona Press, 1998, p. 79-118.

GLUCK, Sherna Berger; PATAI, Daphne. Women’s words: thefeminist practice of Oral History. New York: Routledge, 1991.

GOLDMAN, Anne. I yam what I yam: cooking, culture andcolonialism, p. 169-195. In: SMITH, S.; WATSON, J. De/colonizingthe subject: The politics of gender in women’s autobiography.Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992.

GUGELBERGER, Georg; KEARNEY, Michael. Voices for thevoiceless: testimonial literature in Latin America. Latin Americanperspectives. 18, 3, 3-14, 1991.

GUTIERREZ, Paul; ECKERT, J. Contrasts and commonalities:hispanic and anglo farming in Conejos County, Colorado. Ruralsociology, 56, 2, 1991, p. 247-263.

HAUCK-LAWSON, Annie S. When food is the voice: a case-study of a Polish-American Woman. Journal for the study of food andsociety 2, 1, 1998, p.21-28.

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1653

Page 54: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

54 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

JARAMILLO, Cleofas. (orig. 1939). The genuine New Mexico tastyrecipes. Santa Fe: Ancient City Press, 1981.

_________. (orig. 1955). Romance of a little village girl. Albuquerque:University of New Mexico Press, 2000.

LATINA FEMINIST GROUP. Telling to live: latina feministtestimonios. Durham: Duke University Press, 2001.

LIMÓN, José E. American encounters: greater Mexico, the UnitedStates, and erotics of culture. Boston: Beacon Press, 1998.

MARSH, Charles. People of the shining mountains: the Utes of Colorado.Boulder: Pruett, 1991.

MARSHAL J. A.; LOPEZ, T. K. SHETTERLY, S. M.;MORGENSTERN, N. E; BAER, K.; SWENSON, C. BARON,A.; BAXTER, J. and HAUMMAN, R. F. Indicators of nutritionalrisk in a rural elderly hispanic and non-hispanic white population:San Luis Valley Health and Aging Study. Journal of the american dieteticassociation. 99, 3, 1999, p. 315-22.

MARTIN, Patricia Preciado. Songs my mother sang to me. An OralHistory of mexican american women. Tucson: University ofArizona Press, 1992.

_________. Beloved land: an Oral History of mexican americans insouthern Arizona. Collected and edited by Patricia Preciado Martin.With photographs by José Galvez, Tucson: University of ArizonaPress, 2004.

MARTINEZ, Rubén O. Chicano Lands: Acquisition and Loss.Wisconsin sociologist 24, 2/3, 1987, p. 89-98.

_________. Social action research, bioregionalism, and the upperRio Grande. In: PEÑA, D.G.Chicano Culture, ecology, politics: subversivekin. Tucson: University of Arizona Press, p. 58-78, 1998.

MENCHÚ, Rigoberta; BURGOS-DEBRAY, Elisabeth. I Rigoberta

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1654

Page 55: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Carole Counihan

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 55

Menchú: an indian woman in Guatemala. Translated by Ann Wright.London: Verso, 1987.

MONTAÑO, M. The history of mexican folk foodways of south Texas:Street Vendors, Offal Foods, and Barbacoa de Cabeza. Ph.D.Dissertation, University of Pennsylvania, 1992.

MOORE, Henrietta. Feminism and anthropology. Minneapolis:University of Minnesota Press, 1988.

NORD, MARK, MARGARET, Andrews, and STEVEN Carlson.Household food security in the United States, 2005. Washington,DC: U.S. Department of Agriculture, Economic Research Service,2006.

OSBURN, Katherine. Southern Ute women: autonomy and assimilationon the reservation, 1887-1934. Albuquerque: Univ. of New MexicoPress, 1998.

PARDO, Mary. Creating community: mexican american womenin eastside Los Angeles. In: Ruiz, Vicki L. (Org.). Las obreras: chicanapolitics of work and family. Los Angeles: UCLA Chicano StudiesResearch Center Publications, p. 107-135, 2000.

PAREDES, Américo. A texas-mexican cancionero. Urbana: Universityof Illinois Press, 1976.

PEÑA, Devon, ed. Chicano culture, ecology, politics: subversive kin.Tucson: University of Arizona Press, 1998.

PÉREZ, Ramona Lee. Kitchen table ethnography and feminist anthropology.Paper presented at the Association for the Study of Food andSociety Annual Meeting. Hyde Park, NY, 2004.

REBOLLEDO, Tey Diana. Women singing in the snow: a culturalanalysis of chicana literature. Tucson: University of Arizona Press,1995.

SIMMONS, Virginia McConnell. The San Luis Valley: Land of the

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1655

Page 56: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mexicanas’ Public Food Sharing in Colorado’s San Luis Valley

56 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Six-Armed Cross. Boulder: Pruett, 1979.

_________. The Ute indians of Utah, Colorado and New Mexico.Boulder: University Press of Colorado, 2001.

SWADESH, Frances León. Los primeros pobladores: hispanic ameri-cans of the Ute Frontier. Notre Dame: University of Notre DamePress, 1974.

TAGGART, James M. Food, Masculinity and place in the hispanicsouthwest. In Food in the USA: A Reader. Ed. Carole Counihan.New York: Routledge, 2002, p. 305-313.

_________. José Inez Taylor. Slow 31, 2003, p.46-49.

TAYLOR, José Inez; TAGGART, J.M. Alex and the hobo: a chicanolife and story. Austin: University of Texas Press, 2003.

THOMPSON, Becky W. A hunger so wide and so deep: american womenspeak out on eating problems. Minneapolis: University of Minne-sota Press, 1994.

TUSHAR, Olibama López. The people of el valle: a history of the spanishcolonials in the San Luis Valley. Pueblo, CO: El Escritorio, 1992.

WEBER, Kenneth R. Necessary but insufficient: land, water, andeconomic development in hispanic southern Colorado. Journal ofethnic studies, 19, 2, 1991, p.127-142.

WOLF, Margery. A thrice told tale: feminism, postmodernism, andethnographic responsibility. Stanford, CA: Stanford University Press,1992.

YOUNG, Richard K. The Ute indians. Norman: University ofOklahoma Press, 1997.

Cad Esp Femi v10 n1_artigo Carole.pmd 17/6/2009, 16:1656

Page 57: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

ESPESPESPESPESPAÇO DOMÉSTICO E PROFISSIONALAÇO DOMÉSTICO E PROFISSIONALAÇO DOMÉSTICO E PROFISSIONALAÇO DOMÉSTICO E PROFISSIONALAÇO DOMÉSTICO E PROFISSIONAL

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5457

Page 58: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5458

Page 59: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 59

Mulheres, açúcar e comidas no BrasilMulheres, açúcar e comidas no BrasilMulheres, açúcar e comidas no BrasilMulheres, açúcar e comidas no BrasilMulheres, açúcar e comidas no Brasilseiscentistaseiscentistaseiscentistaseiscentistaseiscentista11111

Claude G. Papavero

Resumo: Os procedimentos de aprovisionamento e deconsumo alimentar em uso no Brasil colonial seiscentistaforam utilizados para pensar as peculiaridades da vidacotidiana e da condição feminina. Por esse viés de análise,compensou-se a escassez das informações sobre as atividadespermitidas às mulheres. Com efeito, a sociedade colonialsoteropolitana ou pernambucana, fortemente marcada porcritérios de hierarquia social associados à produção e àexportação do açúcar, outorgava pouca visibilidade social àsmulheres.

Palavras-Chave: Brasil Colonial. Abastecimento Alimentar.Textos de Cronistas. Condição Feminina. Abstract: Procedures of food provisioning and alimentaryhabits were employed to study the peculiarities of daily lifeand feminine condition during the 17th century in colonialBrazil. The analysis was conducted to compensate the scarcityof information about the activities that women were allowedto perform. As a matter of fact, in the highly hierarchic societyof Bahia and Pernambuco that was devoted to theproduction and exportation of sugar, little social visibilitywas alloted to women.

Keywords: Colonial Brazil. Food Provisioning. FeminineCondition.

Claude G. Papavero Doutora em Antropologia Social pela FFLCH-USP em [email protected]

1 Texto recebido: 27/05/2008.Texto aprovado: 27/07/2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5459

Page 60: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

60 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

As mulheres na formação da colôniaAs mulheres na formação da colôniaAs mulheres na formação da colôniaAs mulheres na formação da colôniaAs mulheres na formação da colônia

Nos primórdios do século XVII, os maioresentrepostos comerciais do Brasil, Salvador, a capital ea vila de Olinda (sita a uma légua do porto de Recife)desfrutavam de uma inaudita prosperidade decorrenteda expansão comercial do açúcar. Tanto em Portugalquanto na Europa, o produto constituía ainda, porsua raridade e suas propriedades energéticas, um itemde alto custo, mais presente nas boticas e nas ocasiõesfestivas que no cotidiano plebeu. Pessoas ricasacrescentavam punhados de açúcar aos guisados decarne e mandavam cozinhar em calda diversos tiposde frutas e de vegetais (como os talos de alfaces),segundo atestava o depoimento quinhentista dasreceitas apresentadas no livro de cozinha da InfantaDona Maria, neta do rei D. Manuel o Venturoso2.Mesmo com a herança da doçaria árabe abrindoespaço a receitas clássicas, como os manjares brancos(feitos de farinha de arroz, leite, açúcar e peito defrango desfiado), o uso do açúcar representava umluxo e faltava apurar o conhecimento das sutilezas depreparos e dos pontos de cocção.

O açúcar fabricado no Nordeste brasileiro, fossebranco ou mascavado, destinava-se sobretudo àexportação, porém, numa colônia que vivia paraproduzi-lo, os moradores lusos da terra reservavamsempre algumas caixas para uso próprio e consumiamno dia a dia parte dos subprodutos obtidos na feiturados pães: a garapa, o mel e a rapadura. Durante odomínio holandês, a insensibilidade dos credoresbatavos que arrebatavam toda a produção dosengenhos endividados sem deixar no local nem umacaixa de branco para “confortar os doentes”,escandalizou Manuel Calado:

Se algum senhor de engenho devia alguma coisa aos daCompanhia, lhe mandavam pôr olheiros em seus engenhos,os quais não lhe deixavam tirar nenhuma arroba de açúcar

2 LIVRO de Cozinha da InfantaD. Maria , Códice daBiblioteca Nacional deNápoles, Fac-símile,Imprensa Nacional / Casada Moeda, Lisboa, s/d.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5460

Page 61: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 61

para fazer doces para os enfermos, senão que tudo lhe levavam,e sobretudo lhe sustentavam os olheiros enquanto a safradurava... 3.

Descrevendo as delícias e os pecados da vidapernambucana, frei Calado, assim como outroscronistas lusos e flamengos do segundo quartel doséculo XVII, atribuiu o castigo da invasão holandesa(profetizado por um pregador expulso de Olinda) àira divina desencadeada pela extravagante exibição deluxos. Num depoimento bem documentado, osacerdote censurava o estilo de vida dos colonos:

As delícias de mantimentos, e licores, eram todos os que seproduziam assim no reino como nas ilhas. O fausto, e aparatodas casas era excessivo, porque por mui pobre, e miserável setinha o que não tinha seu serviço de prata. Os navios quevinham de arribada, ou furtados aos direitos do Peru, alidescarregavam o melhor que traziam. As mulheres andavamtão louçãs, e tão custosas, que não se contentavam com ostafetás, chamalotes, veludos, e outras sedas, senão quearrojavam as finas telas, os ricos brocados; e eram tantas asjóias com que se adornavam, que pareciam chovidas em suascabeças, e gargantas as pérolas, rubis, esmeraldas e diamantes.Os homens não haviam adereços custosos de espadas, e adagas,nem vestidos de novas invenções, com que se não ornassemos banquetes cotidianos, as escaramuças, e jogos de canas, emcada festa se ordenavam, tudo eram delícias, e não pareciaesta terra senão um retrato do terreal paraíso4.

A colonização iniciada em Pernambuco por voltade 1536 e firmada na Bahia em 1549, após a chegadado primeiro governador geral, sofreu por algumasdécadas de séria escassez de povoadores dispostos adefender as terras ocupadas. Temiam-se os ataquesde indígenas e ainda a cobiça de outras naçõeseuropéias. Com efeito, as vilas brasileiras, mesmoestabelecidas em áreas portuárias bem localizadas,pareciam prometer negócios menos reluzentes que as

3 CALADO, Frei Manuel. Ovaleroso Lucideno e triunfo daliberdade. Belo Horizonte /São Paulo: Itatiaia / EDUSP,1987. v. I, p. 219 e 220.

4 Ibidem, v. I, p. 47 e 48.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5461

Page 62: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

62 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

feitorias asiáticas, onde o comércio de especiariasexistia antes das frotas portuguesas freqüentarem osmares orientais. Não obstante os capitães-moresfinanciarem às suas custas as viagens de muitoslavradores e artesãos5, a necessidade de produzir oaçúcar exportado, a dependência em relação aotrabalho da mão-de-obra escrava e a escassez dedefensores fizeram com que a colônia acolhessetambém homens de conduta pouco recomendável que,mesmo sem dispor de capitais para investir, almejavamenriquecer facilmente6. A insegurança reinante fez aindacom que, inicialmente, poucas esposas se arriscassema acompanhar os maridos, uma circunstância quevalorizou a presença de indígenas catequizadas e deescravas africanas. Medidas oficiais foram tomadaspara amenizar as queixas de colonos, ressentidos coma ausência de companheiras portuguesas: órfãscasadoiras e mulheres de vida fácil desembarcaramna colônia para auxiliar a dar feições lusas à vida local7.

Nos séculos XVI e XVII, a despeito do convíviodos portugueses com nativas e cativas africanasincentivar a mestiçagem, incorporando paulatinamenteà sociedade local uma população crescente demamelucos e de mulatos gerados em terras demassapé, os colonos se esforçaram para manter emuso os valores que traziam da metrópole. Elesprocediam de uma sociedade organizada em termosde estamentos, na qual as atividades permitidasdependiam em parte do prestígio social dos indivíduose conceberam sua nova sociedade em termossemelhantes. Aliás, muitos entre os povoadores dacolônia tinham experimentado previamente aimportância dos sistemas de castas noutras paragensdo Império português, de modo que as diferençasentre categorias sociais de colonos continuaramfundamentais. Distinções foram percebidas entrehomens que eram livres, escravos ou alforriados,cristão velhos ou cristãos novos, ricos ou pobres,membros de uma elite sustentada por escravos ou

5 COSTA PORTO. Os temposde Duarte Coelho. Recife:Secretaria de Educação eCultura, 1978.

6 MARCHANT, Alexander.Do escambo à escravidão. SãoPaulo: Cia. EditoraNacional, 1943.

7 FREYRE, Gilberto. Casagrande e senzala. Rio deJaneiro: José Olympio,1966. Segundo afirmava oautor: “No primeiro séculoàs “considerações priápicas”há que sobrepor acircunstância da escassez,quando não da faltaabsoluta, de mulherbranca“. p. 22 e 92.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5462

Page 63: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 63

oficiais mecânicos8 vivendo de trabalho manual. Uma certaflexibilização dos critérios operou, todavia, em favorde homens enriquecidos na lida colonial e da prolemestiça de colonos lusos de grande projeção. Segundoassinalou Laima Mesgravis9, nenhuma pecha de sangueimpuro maculava oficialmente os descendentes denativos, à diferença dos mulatos, dos descendentes decristãos novos e de mouros e dos homens que viviamda prática considerada degradante do trabalho braçal.No final dos anos seiscentos, Gregório de Matos,dando livre curso a seu desprezo por homens do povoque conseguiam ascender socialmente, versejavaexemplarmente: “Que se despache um caixeiro /criado na mercancia / com foro de fidalguia / semnobreza de escudeiro! / e que a poder de dinheiro, /e papeis falsificados / se vejam entronizados / tantomecânico vil, / que na ordem mercantil / são criadosdos criados!”10.

Durante o processo da colonização, todos oshomens livres, fizessem ou não jus à primazia,procuraram ser considerados homens bons, isto é,homens que gastavam generosamente os benspossuídos para demonstrar que pertenciam à nobrezada ter ra. Zacharias Wagener, jovem soldado daCompanhia das Índias Ocidentais holandesa (por umtempo despenseiro do conde de Nassau) expressouem seu livro de memórias intitulado Thierbuch as idéiasque os colonizadores holandeses, pautados nos usos enas idéias dos colonos portugueses, formulavam arespeito do papel social atribuído às mamelucas:

Do conúbio ilícito de mulheres brasileiras tanto comportugueses quanto com holandeses, nascem muitos destesfilhos de prostitutas, entre os quais não raro encontram-setipos formosos e delicados, quer de homens quer de mulheres.Comumente, estas trajam belas e longas camisas brancas dealgodão durante a semana, mas aos domingos e dias de festaenfeitam-se mui garridamente à moda espanhola, adornandoo pescoço, as orelhas e as mãos com corais e pedras falsas em

9 MESGRAVIS, S. Laima. Osaspectos estamentais daestrutura social do Brasilcolônia, Estudos Econômicos,n. 13, 1983, p. 799 – 811.

10 MATOS, Gregório de.Crônicas do viver baianoseiscentista. Obra completade Gregório de Matos, 7 v.,AMADO, James (Org.),Bahia, Ed. Universitária,sem data. v. IV, p. 907.

8 Artesãos.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5463

Page 64: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

64 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

profusão. Devido a sua airosa figura, algumas passam pordonzelas espanholas. Os homens são inclinados a exercer todaa sorte de profissões lícitas ou a aproveitar com vantagem osnobres afazeres militares. Muitas mulheres se casam entre agente de sua própria casta; outras, no entanto, e quase amaioria delas, são mui honesta e legitimamente cobiçadaspara esposas legítimas, às vezes, por portugueses bastantericos, como também por alguns holandeses ansiosos poresposas”. Em suma, os espanhóis e os portugueses, osbrasileiros e tapuias, os mulatos e mamelucos vivem quasetodos entre si à moda das impuras bestas lascivas, não obstantetodos aqueles, que chamam a si cristãos, tivessem tido umclaro e evidente exemplo das ameaças da ira e dos visíveiscastigos de Deus contra essa vida perversa e sodomítica,quando viram, há alguns anos, os nossos (como instrumentosmandados para esse fim) se apoderarem à mão armada dassuas poderosas e seguras cidades, saqueando, devastando edestruindo igrejas, conventos e belos edifícios, o restantesendo reduzido a cinzas, expulsando os portugueses com suasmulheres e filhos, impelindo-os para regiões totalmentedesertas e selvagens...11.

O dispenseiro do conde prosseguia o relato,enfatizando a imoralidade da vida sexual colonial quejustificava a fácil vitória das tropas holandesas (pontode vista freqüente entre os cronistas do período).

O mesmo autor apontava ainda como osindivíduos chamados Mulaten, gerados em conúbioentre escravas negras e portugueses livres, permaneciamcativos, caso o pai compadecido não comprasse suaalforria ao vizinho ou ao amigo a quem a mãe pertencia:

Depois de crescidos, são muito utilizados em toda a sorte deações militares, sabendo lidar bem com toda a espécie dearmas e em especial com as espingardas, [com as quais] caçamdiariamente pássaros e animais silvestres, atrevendo-se,finalmente, do mesmo modo, com o pretexto de passarinhar,a se emboscarem no mato para assaltar os passantes, o que ébastante sabido e manifesto tanto entre os portugueses como

11 WAGENER, Zacharias,Thierbuch In: TEIXEIRA,Dante M. (Org.), BrasilHolandês: documentos daBiblioteca Universitária deLeiden. 3 v., Rio de Janeiro,Index, Ilustrada, 1997. p. 181-183.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5464

Page 65: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 65

entre os nossos, sendo por isso em geral considerados velhacos,levianos, falsos e traidores12.

O comentário de Wagener permitia avaliar quãodifícil podia ser a vida dos mulatos na colônia, mesmoquando tinham a sorte de conseguir a alforria. Tratava-se quase de um manual de instruções de uso paraserviços prestados. A acolhida na carreira das armas,a caça de aves e de animais silvestres e os assaltos atranseuntes constavam efetivamente entre asoportunidades abertas aos mulatos. Wagener poderiater acrescentado que, quando sabiam um ofício, setornavam empregados assalariados em propriedadesrurais. O viajante espanhol Francisco Coreal, aliás,declarou que todos os soldados eram assassinoscovardes, luxuriosos, mal disciplinados e prontos paratudo, menos para exercer a profissão da guerra. FreiManuel Calado, entretanto, elogiou o heroísmo e anobreza de João Fernandes Vieira, mulato industriosoque se tornou senhor de engenho no Brasil holandês eprotegia as mulheres desvalidas, provendo às maispobres roupas de aparato sem as quais elas nãoousariam freqüentar igrejas: “e começou a despendersua fazenda com os pobres, casando órfãs, vestindoas viúvas, e donzelas, dando-lhes saias, e mantos, e onecessário, por cuja falta deixavam de ir à Igreja aouvir missa nos Domingos e festas”13.

Numa colônia onde as noções de honra e dehierarquia fundamentavam um estilo de vida dotadode uma ética peculiar e de uma estética perdulária,todos desejavam desfrutar de um prestígio social quepermitia exercer atividades rentáveis. Normalmenteas elites soteropolitanas ou pernambucanas e suasfamílias residiam em domínios rurais situados noentorno do núcleo urbano, mas, em ocasiõesimportantes, como festas religiosas, eleições,nascimentos ou lutos da família real, desembarque debispos ou de governadores, etc, todos se reuniam nasede da capitania para celebrar os acontecimentos com

12 Ibidem, p. 180.

13 CALADO, Frei Manuel. Op.cit., p. 105.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5465

Page 66: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

66 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

banquetes, jogos, roupas de aparato, mulheresparamentadas com jóias e cavalos ricamente ajaezados.

Ambrósio Fernandes Brandão, a quem foi atribuídaa autoria dos Diálogos das Grandezas do Brasil14, comentouvários conceitos caros à colônia. Segundo Capistranode Abreu, esse contratador dos dízimos dePernambuco e de Itamaracá que participou daconquista da Paraíba, chegou a possuir três engenhosnaquela capitania. Nos diálogos registrados na obraescrita em 1618, Brandônio, um morador do Brasil beminformado explicava ao recém-chegado Alviano oteor dos sentimentos e dos procedimentos usuais doscolonos. Analisando as cinco condições de gente quecompunham a sociedade local, Brandão assinalou apresença de homens vinculados às atividades marítimasque traziam anualmente mercadorias do Reino e navolta para casa carregavam os produtos brasileiros. Asegunda condição de gente reunia diversos tipos demercadores. Parte desses homens também visitavaanualmente a colônia, e trazia gêneros europeus que,no Brasil, eram comutadas por cargas de açúcar. Outraparte dos comerciantes, estabelecida na Bahia ou emPernambuco, possuía lojas e vendia mercadoriasrecebidas do Reino graças aos bons ofícios decorrespondentes. A terceira condição de gente incluíadiversos tipos de artesãos (os oficiais mecânicos) e a quarta,homens assalariados. Na quinta condição, afinal,classificavam-se os lavradores, senhores de engenho,lavradores de canas e de tabaco ou de mantimentos:

e estes tais se dividem ainda em duas espécies: a uma dos quesão mais ricos, têm engenhos com títulos de senhores deles,nome que lhes concede Sua Majestade em suas cartas eprovisões, e os demais têm partidos de canas; a outra, cujasforças não abrangem a tanto, se ocupam em lavrarmantimentos legumes. E todos, assim uns como outros, fazemsuas lavouras e granjearias com escravos de Guiné, que paraesse efeito compram por subido preço; e como o do quevivem é somente do que granjeiam com os tais escravos, não

14 BRANDÃO, AmbrósioFernandes . Diálogos dagrandeza do Brasil. São Paulo:Melhoramentos, 1977.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5466

Page 67: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 67

lhes sofre o ânimo ocupar a nenhum deles em cousa que nãoseja tocante à lavoura...15.

Deixando de lado as afirmações do descaso doscolonos com a melhoria da qualidade de sua vidacotidiana e do pouco amor que sentiam pela terra, odepoimento de Brandão permite notar que os homensdenominados em seus diálogos moradores lusos do Brasil16

(designação recorrente também nos textos de freiVicente do Salvador e de frei Manuel Calado) jádispunham de uma classificação local de categoriasde pessoas.

As obras do período apresentavam uma ausênciaflagrante de descrições detalhadas sobre as idéias quenorteavam as interações correntes entre homens emulheres. Referências ocasionais a procedimentos depreparo alimentar ou de abastecimento permitiram,por conseguinte, instrumentar uma reflexão etno-histórica sobre as circunstâncias materiais da vidafeminina numa colônia onde tudo girava em tornodo açúcar produzido. Com efeito, quando,porventura, algum autor se atrevia a mencioná-las, elealudia, muitas vezes, a preparos culinários específicose suas alusões permaneciam discretas mesmo quandoas narrativas de procedimentos pressupunhamforçosamente a mão de alguma mulher: “Das batatasfazem pão e várias cousas doces” escrevia, porexemplo, o padre Cardim17.

Escassearam os comentários sobre o lugarreservado às moradoras lusas e às outras mulheres nasociedade colonial soteropolitana ou pernambucana,e ainda sobre as razões que motivaram a reclusãodrástica das esposas e filhas dos colonos. As descriçõesde hábitos coloniais redigidas por cronistas lusosdestinavam-se a leitores que viviam na metrópole.Conhecedores dos costumes metropolitanos e dosusos coloniais, os autores evitaram esmiuçar assuntosque invadiam o recato dos lares. Em compensação,os textos de forasteiros que publicaram relatos de

15 Idem, p. 33 e 34.

16 Pelo menos até lutaremcontra os holandeses pelaposse do território entre1645 e 1654.

17 CARDIM, Fernão. Tratadosda terra e gente do Brasil. 3. ed.,São Paulo: INL/ MEC/ Cia.Editora Nacional, 1978. p.47.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5467

Page 68: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

68 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

viagem, apesar de mais prolixos que as obras doscronistas locais em descrições de fatos surpreendentes,revelam que eles não entenderam necessariamente asmaneiras de agir e de pensar dos colonos. Em virtudeda natureza fragmentária dos dados, aliás, seria atépossível supor uma certa fragilidade da documentaçãoanalisada e das hipóteses relativas à condição femininaapresentadas, se os depoimentos de tantos autores quetão pouco tinham em comum, não se mostrassemtão consistentes em torno de alguns temas de granderecorrência.

Quanto à compreensão do lugar reservado àsmulheres na colônia seiscentista, cabe assinalar arelevância dos poemas satíricos e burlescos deGregório de Matos. Compostos entre 1683 e 1694por um homem nascido em Salvador e educado emPortugal, suas brincadeiras, por vezes de gostoduvidoso, destinavam-se a um público soteropolitanoque compartilhava uma maneira própria de concebero mundo. Num registro indireto, as lamentaçõesdramáticas dos moradores lusos de Pernambuco,transcritas por frei Calado, também ilustraram eventosque, infringindo a normalidade, evidenciavam asformas usuais da vida cotidiana. Descrevendo aretirada para a Bahia da população que acompanhouo exército do conde de Bagnuolo derrotado pelastropas holandesas, o sacerdote lastimava:

Considerar agora a multidão de gente de todas as idades quese ia retirando, assim por a praia, como por entre os matos, ecomo iam deixando por os caminhos as alfaias de suas casas,por não as poderem carregar; aqui os tristes ais dos meninos,os suspiros das mães, o desamparo das donzelas descalças, emedidas por a lamas, e passarem os rios com poucacompostura de seus corpos alheios da honestidade, erecolhimento em que haviam sido criadas (o que sentiammais do que perder as vidas) aqui umas desmaiadas, outrascom os pés abertos, porque o descostume de andar não asdeixava dar um passo adiante; as pragas que rogavam ao

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5468

Page 69: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 69

Conde de Banholo (o qual depois que entrou em Pernambucotudo foi de mal a peor), o ver os amancebados levar a cavaloas mancebas brancas, mulatas e negras, e deixarem ir suasmulheres a pé, e sem saberem parte delas, a fome que todosiam padecendo, o dormirem por o pé das árvores, sem amparonem abrigo; não é coisa que se pode escrever, porque muitosdos que o viram, com os olhos, como eu, tendo os coraçõesférreos, não se podiam refrear sem derramar grande cópia delágrimas18.

Ressaltava no texto o hábito colonial de protegeras mulheres recolhendo-as à santidade do lar,precaução que permitia furtar à vista de estranhos oespetáculo irresistível de seus corpos em movimento.O depoimento do sacerdote atestava particularmentea falta do hábito de andar das moradoras da colônia,a inadequação de seus calçados e a precedência nosafetos que vários colonos dedicavam às mancebas,em detrimento de suas famílias legítimas. Semelhantescomentários sublinhavam também como, numasociedade que tentava se manter lusa apesar deincorporar proporções crescentes de mestiços, asclassificações sociais teóricas obliteravam-sefreqüentemente na prática das interações afetivas,burlando as regras instituídas no dia à dia.

Na década de 1930, cientistas sociais como GilbertoFreyre ou como o historiador Sérgio Buarque deHolanda se debruçaram sobre os valores patriarcais quemarcavam os relacionamentos coloniais. Gilberto Freyreautor de Casa-grande e senzala, defendeu a idéia de umsadismo do conquistador branco complementado pelomasoquismo de uma mulher indígena ou negra e pelasubmissão da esposa “criatura reprimida sexual esocialmente dentro da sombra do pai ou do marido”que, por ciúme, maltratava, às vezes, suas escravas19. Oestudioso, todavia, reconhecia às amas-de-leite o direitode se afeiçoarem às crianças amamentadas e dedesfrutarem do afeto de jovens que auxiliavam a criar20.

A leitura dos versos de Gregório de Matos sugere

18 CALADO, Frei Manuel. Op.cit., v. I, p. 83 e 84.

19 FREYRE, Gilberto. Op. cit.,p. 51.

20 Ibidem, p. 326 e 327.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5469

Page 70: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

70 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

outras razões que o masoquismo para a ocorrência depromiscuidades entre escravas negras, moças alforriadase homens brancos. Favores sexuais remuneravam-secom dinheiro ou presentes. As moças solicitadas pediamroupas ou quantias em dinheiro e serviços dessa naturezapossibilitavam acumular pecúlios freqüentementedestinados à compra da liberdade.

Mais recentemente historiadores como StuartSchwartz21 ao analisarem as peculiaridades do tráficonegreiro, destacaram elementos significativos para acompreensão da vida das cativas em solo brasileiro.No rastro do desaparecimento gradual da escravidãoindígena, no primeiro quartel do século XVII, foramafricanos e crioulos que asseguraram a permanênciadas atividades coloniais. Houve, todavia, uma ampladisparidade entre o número de homens e de mulheresdesembarcados22, decorresse o fenômeno de umadecisão dos fornecedores africanos ou da preferênciados colonos que adquiriam a mão-de-obra. Schwartz,pois, salientou como a população mestiça nãorepresentava na capitania da Bahia senão uma minoriada força de trabalho e como, à vista do número restritode nascimentos de filhos de escravas registrados emdocumentos de engenhos, era forçoso concluir que arenovação da mão-de-obra cativa dependeu,sobretudo, do tráfico atlântico.

Sérgio Buarque de Holanda, por sua vez, em Raízesdo Brasil, apontou a ânsia de prosperidade sem custo,de riquezas e de títulos honoríficos amealhados semexcesso de trabalho, como fatores de um espíritoaventureiro luso que teria incentivado o recurso aotrabalho compulsório de escravos. O historiadorindicava a escravidão praticada em Lisboa, antes dafrota cabralina descobrir Porto Seguro, como a fontede inspiração para a criação do novo modelo colonialde exploração agrícola instaurado no Brasil. No quedizia respeito às relações sociais entre senhores eescravas, o autor defendeu a tese de uma certa doçura,alegando que a influência sinuosa das cativas dissolvia

21 SCHWARTZ, Stuart B.Segredos internos: engenhos eescravos na sociedadecolonial. São Paulo: Cia. dasLetras, 1999. (Capítulo 13 -A população escrava naBahia).

22 Schwartz mencionou 30 a40 % de mulheres e 2 a 6%de crianças presentes abordo das naus negreiras.Op. cit., p. 286.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5470

Page 71: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 71

qualquer idéia de separação das categorias sociais:“Uma suavidade dengosa e açucarada invade, desdecedo, todas as esferas da vida colonial”23. A ênfase doautor sobre semelhantes princípios da vida colonialdeixou-lhe, entretanto, pouco espaço para maioresreflexões sobre as peculiaridades da condição femininana formação do Brasil.

Cronistas locais, viajantes forasteiros e estudiososdo sistema de vida patriarcal sublinharam todos aproteção dispensada às mulheres. A necessidade deresguardo derivou provavelmente da insegurança quepodia reinar nas estradas e nas ruas das cidades, masos perigos físicos se desdobravam ainda no âmbitosocial. Pais nobres temiam que homens de condiçãoinferior seduzissem suas filhas. A honra de cada famíliaencontrava-se atrelada à conduta moral da esposa edas filhas. Escrevendo em 1711, o jesuíta Antonilsublinhava a necessidade dos engenhos possuíremacomodações externas para alojar os hóspedes depassagem, já que, num Brasil “falto totalmente deestalagens”, os aposentos oferecidos aos viajantescostumavam ser muito requisitados. O autor afirmava:“Ter casa separada para os hóspedes é grande acêrto,porque melhor se recebem e com menor estorvo dafamília e sem prejuízo do recolhimento que hão deguardar as mulheres e as filhas e as moças de serviçointerior, ocupadas no aparelho do jantar e da ceia”24.

O viajante espanhol François Coreal estranhou asusceptibilidade exacerbada dos colonos em relaçãoà honra:

Não é que eles não pareçam corteses e afáveis em seus modos,mas eles são tão sensíveis nas questões relativas a sua honra,tão ciumentos no que diz respeito às mulheres & tão vaidososde sua própria importância, que é muito difícil, para nãodizer impossível, de fazer amizade com eles25.

Tamanhas precauções não impediam as mulheresde acreditar que a flor de sua virgindade murcharia se

23 HOLANDA, SérgioBuarque de. Raízes do Brasil.12. ed. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1978. p. 31.

24 ANTONIL, André João.Cultura e opulência do Brasil. 2.ed., São Paulo: Ed. Nacional,1967. p. 141 e 167.

25 COREAL, François. Voyagesde François Coreal aux IndesOccidentales contenant cequ’il y a vu de plusremarquable pendant sonséjour depuis 1666 jusqu’en1697. Paris: André Cailleau,1722. p. 170 e171. (Minhatradução).

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5471

Page 72: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

72 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

não fosse colhida nos primeiros anos de vida e, muitasvezes, elas tomavam iniciativas arriscadas. Corealobservou:

As mulheres são menos vistas que no México, por causa dogrande ciúme dos maridos, mas para satisfazer sua paixão elascolocam em obra todo tipo de estratagema, apesar de agiremem detrimento de sua honra & de sua vida, pois, caso flagradasna prática do crime, seus maridos as esfaqueiam sem maisnem menos & seus pais ou seus irmãos as prostituem. Elas setornam então cortesãs públicas servindo igualmente brancos& negros. Se a persecução dos maridos não impede as intrigasde suas mulheres, aquela dos pais não impede as mães desocorrerem caridosamente as filhas tão logo se tornem núbeis26.

Os passeios de mulheres honradas incluíam idas àmissa e visitas a parentes e amigas. Acompanhadaspor escoltas de escravos, elas se deslocavam em cadeiracoberta ou numa rede suspensa em forte vara demadeira que os carregadores apoiavam sobre oombro. Em suas memórias Wagener retratou umasenhora rica deitada numa rede que dois negrosdescalços transportavam. Uma fila de serviçaisseguiam-na, carregando sobre a cabeça cestas de belasfrutas destinadas à anfitriã. Um texto explicativocomplementava a ilustração aquarelada. O autorressaltava:

Desta forma deixam-se transportar, por dois fortes escravos, àcasa de amigos ou à igreja, as esposas e filhas de ilustres e ricosportugueses; penduram sobre varas os bonitos tapetes de veludoou damasco, afim que o sol não as queime muito forte. Tambémtrazem atrás de si uma variedade de lindos e saborosos frutoscomo presente àqueles que pretendem visitar27.

O mercenário inglês Cuthbert Pudsey reparavatambém:

Nesta cidade as classes de mulheres mais elegantes usavam,

26 Ibidem.

27 WAGENER, Zacharias. Op.cit., p. 190 e 191.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5472

Page 73: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 73

em lugar de sapatos, chapins, de meio pé de comprido, deprata. Tampouco saiam de portas afora para a rua, mesmoque fosse pelo espaço de meia pedrada, sem serem carregadasentre dois escravos numa rede de grande valor. E sobre elas,para guardá-las do sol, um pano de rico bordado engastadode pérolas. 28.

As moças alforriadas ou escravas, que pertenciama irmandades de sua própria condição social,participavam com maior liberdade que as senhoraslusas das festas religiosas celebrando santos de suadevoção. Depois das missas, os festeiros costumavamoferecer cozidos de carne, vinho e aguardente.Gregório de Matos que parecia apreciar o tema,compôs poemas burlescos sugerindo que em tais festas,onde dança e bebida corriam soltas, as jovens bebiamtanto, bebendo com vinho e “não como convinha”que, por vezes, desbebiam o líquido ingerido29.

Os homens bons saíam de casa acompanhados porescravos de confiança e munidos de adagas e depistolas30, cuja função não era apenas de aparato. Omédico francês Gabriel Dellon que, em 1679, ficoualgum tempo em Salvador notou a profusão deescravos da Guiné, de Angola e de outros lugares quehavia nas ruas da capital e comentou: “aqueles quetêm a sorte de agradar a seu Amo, são dispensadosdos trabalhos mais rudes & destinados aos cuidadosda casa. Eles seguem seus Senhores quando esses sedeslocam pela cidade e ajudam a carregá-los...”31.

Quando não cavalgavam, os homens tambémusavam redes. Caso não possuíssem uma ou nãopudessem dispor de escravos próprios, eles recorriamàqueles que alugavam os préstimos e entregavam odinheiro apurado a seus donos. Gregório de Matos,por exemplo, relatou em versos um passeio com algunsamigos, ao Rio Vermelho, para onde foi levado numarede que dois pais do ganho seguravam: “eu na rede umcação”32. Na chegada ao destino, uma missa seguidade lauto banquete esperava o grupo. Contudo, as

28 PUDSEY, Cuthbert. Asmemórias de CuthbertPudsey sobre o Brasilholandês (1629 – 1640), In:História Naturalis, Rio deJaneiro, Seropédica, 2001.folio 8 r e 8 v.

29 MATOS, Gregório de. Op.cit., v. III, p. 624 e p. 628.

30 COREAL, François. Op. cit.,p. 170 e 172.

31 DELLON, Gabriel B.Relation de l’Inquisition de Goa.Paris: Daniel Hortemels.1688. p. 207.

32 MATOS, Gregório de. Op.cit., v. III, p. 585.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5473

Page 74: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

74 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

pretensões à nobreza não se limitavam às mulheres devida exemplar. Noutro poema, Matos ridicularizouduas moças de vida fácil33. Alugando uma rede parair a uma festa de sua irmandade, elas caíram ao chãoquando os punhos da rede cederam.

Distinguiam-se no Brasil colonial mulheres casadas,honestas, de outras dispostas a manter relações sexuaisocasionais ou amancebamentos. Importava saber seeram, ou não, nascidas na terra, cristãs velhas, cristãsnovas ou mouras e se vinham de famílias ricas oupobres, pois, o status do pai ou do marido repercutiaamplamente na posição social da esposa e das filhas.Mulheres de senhores de engenho ou de outroslavradores lusos mantinham a precedência sobre asesposas de oficiais mecânicos. Às mulheres casadaspobres e às viúvas sem recursos, a posse de algumaescrava quitandeira proporcionava um meio de vidavisto como digno e a possibilidade de vender nas ruasdoces ou comidas preparados nas cozinhas de suascasas, já que a obrigação de manter resguardosdecorosos dificultava as condições de sua subsistência.Àquelas que mereciam respeito, Gregório de Matosdedicou poemas cerimoniosos, cheios de metáforaspreciosas que contrastavam com o tom familiar dosversos endereçados às outras. Os versos do poetaexemplificavam um leque diversificado de atividadesque podiam ser observadas em Salvador e o teor dospreconceitos vigentes contra condutas consideradaspouco honoráveis:

Nos Diálogos das grandezas do Brasil, Brandônio,relatava:

não poucos [colonos] usam também de pão, que mandamamassar e cozer em suas casas, feito de farinha que compramdo Reino ou mandam buscar às casas das padeiras, porque hámuitas que vivem desse ofício. As mulheres se trajam muitobem e custosamente, e quando vão fora caminham em ombrosde escravos, metidas dentro em uma rede34.

33 Ibidem, v. VI, p. 1331.

34 BRANDÃO, AmbrósioFernandes. Op cit., Diálogosexto, p. 246.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5474

Page 75: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 75

Em princípio, um parâmetro de visibilidade ou deinvisibilidade acompanhava a posição social dasmulheres. Quanto mais elevado o status, mais difícil aespecificação das atividades que cada uma teria odireito (ou o dever) de executar. A condição honrosadaquelas que, por pertencerem à elite, circulavam emredes de aparato, lembrava um pouco a situação dasmulheres do islã, obrigadas ao uso do véu para seremvistas como pessoas35. Tanto em Olinda quanto emSalvador, elas se deslocavam, assaz inacessíveis,debaixo dos cortinados que recobriam seu meio delocomoção.

A invisibilidade social que era seu apanágio,apresentava um corolário curioso: aconteciam poucasfeiras nas vilas lusas da colônia. As mulheres doscolonos respeitáveis recebiam os alimentos em casaou mandavam alguém comprá-los. Segundo observouJosé Antônio Gonsalves de Mello36, quando osholandeses conquistaram Recife, eles passaram aproceder de modo diferente: “Havia vários mercados,como o mercado do peixe, o mercado do Recife, omercado de carne, o de verduras e o Mercado Grandede Maurícia no terreiro dos coqueiros”. Efetivamente,o sistema luso de aquisição de víveres, documentadonos comentários de Wagener sobre a “Molher negra”,não precisou esperar até o século XVIII para serinstituído no Brasil:

As mulheres negras não são de talhe menos esbelto e bemproporcionado que os homens. Nem por isso, todavia, sãopoupadas, tendo de trabalhar de forma exaustiva nos engenhose canaviais da mesma maneira que os homens e crianças. Háalgumas delas que conhecem bem o dinheiro espanhol eholandês; mandam-nas então os donos à rua, a fim devenderem galinhas, pássaros, peixes secos e toda a sorte demagníficas frutas, tudo bem contado, item por item; quando,porém a negra é descuidada e aceita dinheiro falso ou depouco valor, de volta a casa, deixa em seguida, de dar acorreta conta ao senhor pelas mercadorias, é na mesma hora

35 FERREIRA, FrancirosyCampos Barbosa. Imagemoculta : reflexões sobre arelação entre osmuçulmanos e a imagemfotográfica. Dissertação demestrado apresentada aoDepartamento deAntropologia da FFLCH -USP: São Paulo, 2001.

36 MELLO NETO, JoséAntônio Gonsalves de.Tempo dos flamengos. 1947. p.129 e 130.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5475

Page 76: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

76 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

amarrada e duramente açoitada; por esse motivo, preferemser empregadas em outros serviços mais penosos a ocuparem-se nessa perigosa mercancia37.

A situação das mulheres livres contrapunha-seàquela das escravas que apenas obedeciam às ordense costumavam palmilhar ruas e caminhos, descalças eatarefadas, ocupadas no serviço dos campos, das casase da moenda ou na função de negras de ganho. Porvezes, um certo escalonamento de matizes de cor depele, parecia influir também, no modo como eramtratadas, como sugeriam os poemas de Gregório deMatos.

Nos engenhos ou nas cidades, muitas moçasalforriadas ocupavam posições sociais assaz ambíguas.Quando elas eram dispensadas da obrigação decontinuar a servir suas antigas senhoras, elas preferiamevitar o exercício de trabalhos manuais (vistos comodegradantes) e depender de amantes remediados quelhes asseguravam a subsistência, roupas decentes e umócio honroso. Elas também faziam questão de possuirsapatos, um privilégio custoso negado às escravas.

Outro interstício na hierarquia social assinalava ocaso de moças lusas obrigadas a se tornar religiosas(tivessem ou não vocação para tanto) para poupar aherança dos filhos homens. Os pais forçavam-nas àreclusão, quando, impossibilitados de prover-lhesdotes ou marido adequados, eles temiam que elas osdesonrassem com homens indesejáveis. Nos poemasde amores conventuais de Matos que vituperava aavareza de tais parentes, sonhos, ambrosias, chouriçostemperados e peixes cozidos atestavam amplamenteque as artes culinárias eram prendas femininaspermitidas às freiras38.

Em suma, nos primeiros séculos da colonizaçãocozinhar figurava entre as atribuições das mulheres,mas as informações registradas na literatura de umasociedade que estimava ostentar prestígio e valorizavao ócio, despertaram mais dúvidas do que satisfizeram

37 WAGENER, Zacharias, Op.cit., p. 175.

38 MATOS, Gregório de. Op.cit., v. IV, p. 843 a 879.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5476

Page 77: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 77

a curiosidade. Quem eram as mulheres quecozinhavam? Quem decidia o cardápio das refeições?Que técnicas de preparo utilizariam? Para quemcozinhavam?

As mulheres lusas na cozinha das casas coloniaisAs mulheres lusas na cozinha das casas coloniaisAs mulheres lusas na cozinha das casas coloniaisAs mulheres lusas na cozinha das casas coloniaisAs mulheres lusas na cozinha das casas coloniaisseiscentistasseiscentistasseiscentistasseiscentistasseiscentistas

Consideradas no âmbito da longa duração, astécnicas de cultivo e de transformação de mandiocasbravas e aipins em alimentos gostosos, saudáveis enutritivos constituíram efetivamente uma herançaindígena com valor identitário da qual puderam seorgulhar os descendentes de forasteiros estabelecidosno Brasil colonial. Em meados do século XVI,entretanto, o desconhecimento nativo dos requintesda culinária e da doçaria européia escandalizou oscolonizadores. Gabriel Soares de Sousa, por exemplo,ao descrever a complexidade dos preparos demandiocas e a diversidade das farinhas, não hesitouem afirmar que, nas aldeias de origem, as índias nãocozinhavam. Elas apenas traziam das roças mandiocascultivadas e coziam-nas. Segundo o cronista, elastampouco lavavam roupas e apenas trançavam os fiosde algodão fiados, pois, não sabiam tecê-los39.Condutas tão impróprias à condição feminina nãoadvinham, porém, de uma falta de habilidade. Oautor assinalava como nos primórdios do períodocolonial, as matronas portuguesas se apressavam emensinar as técnicas da arte de cozinhar às jovensíndias, à par dos trabalhos de agulha, do catecismo edos usos morais. Os preparos culinários referidosna literatura permitem deduzir que essas jovensforam então ensinadas a manejar novos condimentos,entre os quais ressaltava o açúcar, e que aprenderamtambém a assar em fornos e a fritar em gordura,procedimentos que ignoravam anteriormente. Soaresde Sousa explicava:

39 SOUSA, Gabriel Soares de.Tratado descritivo do Brasil em1587. 4. ed., São Paulo: Cia.Ed. Nacional / EDUSP,1971. p. 312.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5477

Page 78: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

78 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Também as moças deste gentio [tupinambá] que se criam edoutrinam com as mulheres portuguesas, tomam muito bemo cozer e lavrar, e fazem todas as obras de agulha que lheensinam, para o que têm muita habilidade, e para fazeremcousas doces, e fazem-se extremadas cozinheiras; mas são muitonamoradas e amigas de terem amores com os homens brancos40.

Uma concepção lusa de alimentação parece terprevalecido, quaisquer que fossem as mulheres na lidadas panelas ou dos experimentos culinários. Odepoimento de Soares de Sousa sugeria a colaboraçãoestreita de mulheres de diferentes condições sociais,preparando lado a lado, iguarias de estilo português:confeitos, bolos assados e bolinhos fritos, etc.. Quandocativas africanas começaram a substituir as mulheresnativas no serviço das casas, no último quartel doséculo XVI, sua presença tampouco deve terdesencadeado alterações imediatas nas receitas, adespeito do termo quitandeira já figurar nos versosde Gregório de Matos, no final do século seguinte. Opoeta relatava saborear em Salvador e no Recôncavobaiano: sonhos, ambrosias, ovos reais com canela,arroz de leite, filhós, fatias, mal-assadas e pastéis, paranão citar as galinhas de cabidela, os chouriços, asmorcelas, as saladas, os repolhos ensopados e oscozidos à moda portuguesa41.

Em fins do século XVI, o padre Cardim, aoassinalar a adoção do pão da terra entre os colonos,listou vários tipos de preparos que transformavam osvegetais da dieta indígena em pães ou em docesdistanciados de qualquer herança nativa:

Desta mandioca curada ao fumo se fazem muitas maneiras decaldos que chamam mingáos, tão sadios e delicados que dãoaos doentes de febres em lugar de amido e tizanas, e da mesmamassa se fazem muitas maneiras de bolos, coscorões, fartes,empenadilhas, queijadinhas d’açúcar, e misturadas comfarinha de milho ou de arroz, se faz pão com fermento, elevedo que parece de trigo42.

40 Ibidem, p. 313 e 314.

41 PAPAVERO, Claude.Ingredientes de uma identidadecolonial: os alimentos napoesia de Gregório deMatos. Tese de doutoradoapresentada aoDepartamento deAntropologia da FFLCH -USP: São Paulo, 2007. p. 294e 295.

42 CARDIM, Fernão. Op. cit., p.46.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5478

Page 79: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 79

A incorporação de ingredientes brasileiros naculinária colonial não se fez às cegas. A despeito deevidenciar um apego luso às tradições alimentares,Gabriel Soares de Sousa também sugeriu que o sensocrítico das soteropolitanas operou, avaliando caso acaso a qualidade da matéria prima disponível:

Desta carimã e pó dela bem peneirado fazem os portuguesesmuito bom pão e bolos amassados com leite e gemas de ovos,e desta mesma massa fazem mil invenções de beilhós, maissaborosos que de farinha de trigo, com os mesmos materiais,e pelas festas fazem as frutas doces com a massa desta carimã,em lugar de farinha de trigo, e se esse a que vai à Bahia doreino não é muito alva e fresca, querem as mulheres antes afarinha de carimã que é alvíssima e lavra-se melhor com aqual fazem tudo muito primo43.

Os depoimentos de autores seiscentistas, mesmosem enveredar por detalhes triviais, atestavam queaçúcar, manteiga, farinha de arroz ou de milho, ovos,água de flor de laranjeira ou canela eram adicionadosàs diferentes farinhas de mandioca seca ou fresca, aospolvilhos ou aos beijus nativos. Uma grandediversidade de frutas locais cozidas com açúcar (asconservas) constava entre as iguarias prediletas e oconsumo de doces marcava o ritmo dos hábitos desociabilidade. Em dias como o natal ou o entrudo,adoçavam-se os convívios. No cotidiano, belas frutas(como os cajus em épocas de safra) ou doceselaborados alegravam os amigos. Gregório de Matos,por exemplo, recebeu, no engenho da Cajaíba, sonhosmandados por uma jovem a quem tinha dedicadoum poema quando ela substituiu um amante brutalpor outro homem:

Veio a frota da Guaíba, / entrou, e tomando terra, / achouduas naus de guerra / de comboio té a Cajaíba: / estava euvendo de riba / o Serigipe famoso, / quando vi com ventoairoso / vir entrando pela barra / por cabo Inácio Pissarra, /

43 SOUSA, Gabriel Soares de.Op. cit., p. 178 e 179.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5479

Page 80: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

80 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

e por fiscal João Cardoso.// [...] Partiu-se o doce excelente, /em que os presentes têm parte, / que entre ausentes não separte, / o que veio de presente: / cada um se foi contente /velhos, mancebos, meninos, / e estão em rogo contínuos / pedindo co’aboca toda, / que o doce façais de boda, para que sejamos dignos44.

Noutra ocasião, quando o poeta visitava apropriedade de um amigo que residia na ilha Grande,a filha do anfitrião fez questão de lhe oferecer sonhos.Com enorme emoção e respeito Matos celebrou acortesia da menina:

Deu-me a rapariga uns sonhos / tão ricos como ela própria, /sonhava em me regalar: / não foi mentira, o que sonha. /Visitou-me sua Avó, / que é mui honrada pessoa, / só quemtem honra, dá honra. / Assim o façam meus Filhos, / comoentão o fez Macota45.

Entretanto, ao receber uma moqueca oferecida pelaamásia do feitor da Cajaíba, o poeta brincou, muitomenos respeitoso, no tom levemente irônico queadotava para flertar com negras da cozinha, em casasde amigos que costumavam recebê-lo:

Susana: o que me quereis, / que me trazeis tão mimoso, / nãosou homem tão baboso, / que com pouco me enganeis: / queo vosso peixe me deis, / convém que dar-mo vos deixe, /mas é razão que me queixe, / de dar-mo, por que eu vos dê,/ que não sou eu homem, que / a carne vos dê por peixe46.

Em Salvador, como no Recôncavo ou como emOlinda, cozinhava-se não somente para alimentarfamílias, agregados e escravos, mas ainda parademonstrar caridade e ostentar importância social.Talvez as esposas dos homens bons não estivessemsempre atentas às refeições oferecidas a pessoasnecessitadas, pois existiam intendentes encarregadosde supervisionar essa tarefa. O médico francês GabrielDellon, preso pela Inquisição de Goa por solicitar que

44 MATOS, Gregório de. Op.cit., v. VI, p. 1502 e 1503.

45 Ibidem, v. VI, p. 1521.

46 Ibidem, v. VI , p. 1533.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5480

Page 81: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 81

um paciente não fosse obrigado a beijar uma imagemsanta, conseguiu passar algumas horas diárias longeda cadeia. A nau da carreira das Índias na qual seguiaviagem, a caminho do tribunal lisboeta, fez escala emSalvador e ele obteve a permissão de apenas dormirem sua cela, graças à intervenção de amigossoteropolitanos:

O Brasil apresenta a particularidade de não ter ninguémreduzido a tal estado de miséria que precise mendigar o pão,& os infelizes que chegam de países distantes, tão incapazesque possam estar de trabalhar, nunca são rejeitados pelaspessoas de posses, cada uma delas considerando uma questãode honra abrigar em sua residência tantos miseráveis quantoconsegue, & até acontece freqüentemente que Senhores dequalidade alimentem em sua casa um número considerável depobres inválidos, sem nem sabê-lo, seus intendentes tendorecebido ordens definitivas para receber e agasalhar todosaqueles que se apresentam, sem que seja necessário informaros Donos da casa 47.

No início do mesmo século, outro viajante francêsde fortuna modesta, Pyrard de Laval, relatava umepisódio um pouco semelhante. Contou que, em certaocasião, foi procurado por uma escrava de Angolaque, após algumas voltas pela cidade, o levou à casade uma jovem portuguesa:

que me fêz mui bom gasalhado e me mandou logoaprestar uma mui boa refeição; e vendo que meuchapéu não era bom, ela com sua própria mãomo tirou da cabeça e me deu outro novo de lã deEspanha com uma bela presilha, fazendo-meprometer que tornaria a visitá-la, e de sua parteprometendo-me que me favoreceria e me dariagôsto em tudo o que pudesse. [...] Tive tambémconhecimento e amizade com outra raparigaportuguesa, natural do Porto, chamada MariaMena, que era dona de uma casa de pasto, de sorte

47 DELLON, Gabriel B. Op.cit., p. 204 e 205. (Traduçãominha).

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5481

Page 82: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

82 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

que me não faltava de comer e de beber, porquemo dava quando eu o queria, sem dizer coisaalguma a seu marido e ainda me dava dinheiropara eu pagar na presença dêle. Chamava-me elao seu camarada48.

Maria Mena não era a única soteropolitana quecomercializava comidas e bebidas. Além das viúvase das mulheres pobres que preparavam doces eguisados vendidos nas ruas ou em lojas por intermédiode escravas quitandeiras, outras mulheres livres oualforriadas também viviam de fornecer gêneroscomestíveis à população. Destacava-se o exemplo,supracitado, das padeiras, cuja produção fazia sucessogarantido na Cidade da Bahia. Os poemas de Matosmencionavam de relance um “Lobato patifão, maridoda confeiteira”, pasteleiros munidos de cepos queassavam empadas de carnes e ainda um sem númerode taverneiros e de taverneiras socialmente desprezíveis49.

As Atas da Câmara Municipal soteropolitana, porsua parte, censuravam os comerciantes queatravessavam víveres e mantimentos, açambarcandotodos os gêneros disponíveis, antes mesmo que osbarcos dos produtores chegassem ao porto da cidade.A venda desses alimentos tornados escassos erevendidos com benefícios polpudos nas lojas ou nasruas da cidade dificultava a tarefa dos almotacês quevigiavam o preço e a qualidade das mercadoriasvendidas, o peso e o pagamento das taxas devidas àmunicipalidade.

Quando faltava dinheiro líquido na colônia, oaçúcar, produto exportado e consumido, serviu, porvezes, como instrumento de barganhas pessoais.Segundo Gregório de Matos, lascas e caixas de açúcarpodiam facilitar a obtenção de favores sexuais. O autor,certa vez, acusou de furto o feitor da Cajaíba: “Sefurtais tanto fragmento / de açúcar para as mulheres,/ pode ser, se lho não deres, / que tenhaisentendimento...”50

49 MATOS, Gregório de. Op.cit., v. IV, p. 908; v. IV, p.856 ev. II, p. 494.

50 Ibidem, v. VI, p. 1462.

48 PYRARD de Laval,François. Viagem de FranciscoPyrard de Laval. Porto: Livr.Civilização. 1944.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5482

Page 83: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 83

Noutra ocasião, ele censurou um colono que deixoude manter o trato apalavrado: Tudo a Môça suportou,/ tudo sofreu a tal Môça, / porque a caixa tudo adoça,/ e a ela tudo amargou: / nèsciamente se enganou /sem desculpa, e sem razão, / pois na fôrça da sezão, /devia ver, que a encaixa / quem lhe promete uma caixa,/ para correr-lhe o caixão 51.

A etiqueta social observada pelas mulheres lusashonradas em visitas a parentes e amigas, parece terimpressionado muito o conde de Nassau e seusconselheiros. No primeiro relatório que os responsáveispelo Brasil holandês encaminharam à Companhia dasÍndias Ocidentais, eles descreveram:

As mulheres porém se vestem custosamente e se cobrem deouro, trazem poucos diamantes ou nenhum e poucas pérolasboas, e se ataviam muito com jóias falsas. Só saem cobertas esão carregadas em uma rede, sobre a qual se lança um tapete,ou encerradas em uma cadeira de preço, de modo que elas seenfeitam para serem vistas somente pelas suas amigas ecomadres. Quando vão visitar, primeiramente mandamparticipar, a dona [da casa] senta-se sobre um belo tapeteturco de seda estendido sobre o soalho e espera as suas amigas,que também se sentam a seu lado sobre o tapete, à maneirados alfaiates, tendo os pés cobertos, pois seria grande vergonhadeixar alguém ver os pés52.

O caso paradigmático de Dona Jerônima deAlmeida, mulher de Rodrigo de Barros Pimentel,colono luso que se retirou para a Bahia na seqüênciada conquista holandesa de Pernambuco, permite quese perceba diversos usos do cotidiano colonial.Segundo frei Calado, essa senhora respeitável, mãe demuitas filhas e filhos, chegou a ser multada pelosholandeses em noventa caixas de açúcar para se livrarda acusação de acolher e alimentar uma tropa desoldados inimigos que lhe traziam cartas do marido.Encarcerada, condenaram-na a ser degolada emvirtude da acusação de um escravo que ela mandara

51 Ibidem, v. II, p. 382 a 384.

52 BREVE discurso sobre o estadodas quatro capitaniasconquistadas de Pernambuco,Itamaracá, Paraíba e RioGrande, situadas na partesetentrional do Brasil . In:MELLO NETO, José A. G.(Org.). Fontes para a históriado Brasil holandês. V. I, Aeconomia açucareira,Recife: Parque Históricodos Guararapes / MEC /SPHAN / Fundação Pró-Memória, 1981. p. 108 e 109.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5483

Page 84: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

84 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

açoitar. Foi preciso que uma delegação de senhorasportuguesas da melhor estirpe, moradoras dosarredores de Recife, solicitasse pessoalmente acomutação da pena ao conde de Nassau. Atendidasem seu pedido, elas agradeceram cortesmente o favor,mas declinaram o convite de um jantar:

elas lhe beijaram a mão por a mercê, e favor, e lhe responderamque o banquete que elas vinham buscar a sua casa era, queachando graça em seus olhos, fosse servido S. Excelência deacudir a tão grande crueldade, e perdoar a Dona Jerônima: eque o jantar à sua mesa haviam por recebida a mercê, porémque não era uso nem costume entre os Portugueses comeremas mulheres, senão com os seus maridos, e ainda com estes eraquando não havia hóspedes em casa (não sendo pai ou irmãos)porque nestes casos não se vinham assentar à mesa... 53.

Os conselhos do poeta Gregório de Matosdestinados a uma noiva incluíram recomendaçõesprecisas sobre os procedimentos que convinham auma moça prendada:

Irá mui poucas vêzes à janela, / Mas as mais que puder irá apanela: / Ponha-se na almofada até o jantar, / E tanto há decoser como de assar / Faça-lhe um bocadinho mui caseiro /Porém podendo ser coma primeiro, / E ainda que o vejapequenino, / Não lhe dê de comer como a menino 54.

No mesmo poema, Matos recomendava à jovemque em lhe vindo a sua doençinha mandasse Madalenapedir à mãe água de flor de laranjeira. Fosse ou não anoiva versejada pessoa de condição modesta, prepararum bocadinho caseiro para o marido, tarefa que lhecabia, não excluía a presença de alguém na casa, a quemela podia mandar procurar algo necessário, dentro oufora da residência.

À Marana, jovem amásia de um dos homens quecontavam no engenho da Cajaíba, Matos tambémaconselhava:

53 CALADO, Frei Manuel. Op.cit., v. I, p. 111.

54 MATOS, Gregório de. Op.cit., v. V, p. 1089 e 1090.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5484

Page 85: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 85

Já tenho dito a Marana, / que na casa onde habita, / se dêmuito a respeitar / com as negras da cozinha, / Se lhe entrapor um ouvido, / sai pelo outro: é menina, / o que faz, éandar folgando / co Cabra Vicente, e Chica. / Com que lhenão tem respeito, / e se ela toma farinha / para mandar a estacasa, / qualquer negrinho lhe grita. / Tenho lhe dito Marana,do peixe da pescaria / o melhor à vossa Mãe, / que assim faza boa Filha. / Em vindo as mariscadeiras / do manguecarregadinhas, / ninguém meta a mão nos Cestos, / que osmelhores são de Quita. / Remetei-os logo ao Sítio, / e fiqueembora vazia / a casa de vosso amigo, / porque primeiro estáa minha. / Se lá tendes nessa casa / dez hóspedes cada dia, /cá tendes vossas irmãs, / vossa Mãe, vossas Sobrinhas55.

Marana não era uma esposa oficial, porém, aresponsabilidade da casa e a escolha dos víveresdistribuídos pelas diversas residências do engenhorecaíam visivelmente sobre seus ombros. Esperava-seque decidisse, mandasse fazer e fosse obedecida.

Os dados esparsos, recolhidos nos versos do poetasoteropolitano ou nas obras de cronistas lusos ouholandeses, comprovam a injustiça cometida porestudiosos que anularam o papel das mulheres lusasem seus retratos de práticas coloniais. Era poucoprovável que, apenas por disporem de escravas,mulheres de homens prestigiados abdicassem dodireito de opinar a respeito da composição dasrefeições, dos ingredientes utilizados e dos temperosque aromatizariam as panelas, já que os alimentosservidos se apresentavam impregnados do desejo deostentar honorabilidade. Ora supervisionando opreparo de iguarias, ora mandando efetuar tarefas,ora participando à criação culinária, ora, talvez,distribuindo porções de guloseimas às escravas quemexiam o conteúdo das panelas (para evitar que osdoces desandassem, uma recomendação expressa dainfanta portuguesa Dona Maria), a invisibilidade socialnas ruas nunca impediu as mulheres lusas de estarempresentes nas casas do Brasil colonial, tanto quanto as

55 Ibidem, v. VI, p. 1526.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5485

Page 86: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

86 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

concubinas de todos os matizes de pele e condiçãosocial que fizeram as vezes de esposas num sem númerode lares. Ao se analisar a contribuição indígena, brancae negra à formação de uma culinária brasileira, seria,portanto, conveniente detalhar melhor o processo daaceitação de modos de cocção e de ingredientes comes-tíveis à dieta alimentar luso-brasileira, sem atribuir aépocas prístinas predileções que levariam muitas décadaspara se impor ao conjunto da população colonial.

Nos versos seiscentistas de Gregório de Matos,em todo caso, imperou um nítido viés luso em relaçãoà dieta alimentar, já que o poeta ridicularizoufreqüentemente as iguarias que a população indígena,africana ou mestiça comia. A aceitação pelos colonosde quitutes de sabor exótico, marcados pela criatividadee competência culinária de escravas e de mulherespobres, encobriu certamente vivências difíceis e ricasem valores culturais. Como bem observou Jeffrey M.Pilcher56, no final do século XIX, quando as tortilhas,vistas apenas como ingredientes de uma dieta nativa,se tornaram emblemáticas da identidade mexicana, foiatravés de uma opção coletiva e deliberada dapopulação que elas foram transformadas em alimentoamplamente representativo de um estilo de vida e deuma identidade local.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ANTONIL, André João. (João Antonio Andreoni). Cultura eopulência do Brasil. 2. ed. (Texto da ed. de 1711), São Paulo: CiaEditora Nacional, 1967.

BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos da grandeza do Brasil.São Paulo: Melhoramentos, 1977.

BREVE discurso sobre o estado das quatro capitaniasconquistadas de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande,situadas na parte setentrional do Brasil. In: MELLO NETO, JoséAntônio G. de (Org.). Fontes para a história do Brasil holandês. v. I,

56 PILCHER, Jeffrey, M. Vivanlos tamales! La comida y laconstrucción de la identidadmexicana. México: Ed. De laReina Roja / CONACULTA/ Ciesas. 2001. Cap. Eldiscurso de la tortilla: p. 119a 150.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5486

Page 87: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Claude G. Papavero

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 87

A economia açucareira, Recife: Parque Histórico dos Guararapes/ MEC / SPHAN / Fundação Pró-Memória, 1981.

CALADO, Frei Manuel. O valeroso Lucideno e triunfo da liberdade. 2v., Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/ EDUSP, 1987.

CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 3. ed., SãoPaulo: INL/ MEC/ Cia. Ed.Nacional, 1978.

COREAL, François. Voyages de François Coreal aux Indes Occidentalescontenant ce qu’il y a vu de plus remarquable pendant son séjourdepuis 1666 jusqu’en 1697. Paris: André Cailleau, 1722.

COSTA PORTO, Os tempos de Duarte Coelho. Recife: Secretariade Educação e Cultura, 1978.

DELLON, Gabriel B. Relation de l’Inquisition de Goa. Paris: DanielHortemels, 1688.

FERREIRA, Francirosy Campos Barbosa. Imagem oculta: reflexõessobre a relação entre os muçulmanos e a imagem fotográfica.Dissertação. [Mestrado em Antropologia]. FFLCH - USP, SãoPaulo, 2001.

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1966.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 12. ed. Rio deJaneiro: José Olympio, 1978.

LIVRO de Cozinha Da Infanta D. Maria, Códice da BibliotecaNacional de Nápoles, Fac-símile, Imprensa Nacional / Casa daMoeda, Lisboa, s/d.

MARCHANT, Alexander. Do escambo à escravidão. São Paulo:Cia. Nacional, 1943.

MATOS, Gregório de. Crônicas do viver baiano seiscentista. Obracompleta de Gregório de Matos, 7 v., AMADO, James (Org.).Bahia: Editora Universitária, s/d.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5487

Page 88: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mulheres, açúcar e comidas no Brasil seiscentista

88 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

MELLO NETO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos.Rio de Janeiro: José Olympio. Documentos Brasileiros, 1947.

MESGRAVIS, S. Laima. Os aspectos estamentais da estruturasocial do Brasil colônia. Estudos Econômicos, n.13, 1983, p. 799-811.

PAPAVERO, Claude G. Ingredientes de uma identidade colonial: osalimentos na poesia de Gregório de Matos. Tese. [Doutorado emAntropologia] FFLCH - USP, 2007.

PILCHER, Jeffrey, M. Vivan los tamales! La comida y la construcciónde la identidad mexicana. México: Ed. De la Reina Roja /CONACULTA / Ciesas, 2001.

PUDSEY, Cuthbert. As memórias de Cuthbert Pudsey sobre oBrasil holandês (1629 – 1640). In: História Naturalis, Rio deJaneiro, Seropédica, 2001.

PYRARD de Laval, François. Viagem de Francisco Pyrard de Laval.Porto: Livraria Civilização, 1944.

SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil 1500-1627. 5. ed.,São Paulo: Melhoramentos, s/d.

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos nasociedade colonial 1550 –1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.

SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 4.ed., São Paulo: Cia. Ed. Nacional / EDUSP, 1971.

WAGENER, Zacharias. Thierbuch In: TEIXEIRA, Dante M.(Org.), Brasil Holandês: documentos da Biblioteca Universitáriade Leiden. 3 v., Rio de Janeiro: Index, Ilustrada, 1997.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5488

Page 89: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 89

Comida quente, mulher ausente: produçãoComida quente, mulher ausente: produçãoComida quente, mulher ausente: produçãoComida quente, mulher ausente: produçãoComida quente, mulher ausente: produçãodoméstica e comercialização de alimentosdoméstica e comercialização de alimentosdoméstica e comercialização de alimentosdoméstica e comercialização de alimentosdoméstica e comercialização de alimentospreparados no Rio de Janeiro no século XIXpreparados no Rio de Janeiro no século XIXpreparados no Rio de Janeiro no século XIXpreparados no Rio de Janeiro no século XIXpreparados no Rio de Janeiro no século XIX11111

Almir Chaiban El-Kareh

Resumo: O preconceito construído por certos viajantes deque a senhora carioca era preguiçosa, apesar de evidências emcontrário encontradas na mesma literatura de viagens e emoutras fontes do século XIX, vem sendo repetidoacriticamente nos últimos duzentos anos, inclusive porhistoriadores. Pretendo aqui jogar este preconceito por terra,munido principalmente de outras crônicas de viagens e deanúncios de jornais, estes últimos aqui trabalhados de maneirasistemática num período de 40 anos, e provar que não só asmulheres pobres e as escravas trabalhavam, mas também assenhoras cariocas, cujo trabalho permaneceu “invisível”.

Palavras-Chave: Produção Doméstica. AlimentosPreparados. Comércio Ambulante de alimentos. TrabalhoFeminino. Estratégias e Práticas Empresariais.

Abstract: The bias of some travelers against the carioca ladyas being lazy, despite evidence to the contrary found in thesame travel literature and other sources of the nineteenthcentury, has been perpetuated uncritically in the past twohundred years, even by historians. I propose to put an endto this bias armed mainly with other travel chronics andnewspaper classified advertisements that were analyzed in asystematic way over a period of 40 years, and demonstratethat not only lower class women and female slaves worked,but also the carioca lady, whose work remained “invisible”.

Almir Chaiban El-Kareh Doutor/EHESS/Paris. NEMO/Depto.Antropologia/UFF. Prof. Visitante Especial/[email protected].

1 Texto recebido: 29/06/2008.Texto aprovado: 03/07/2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5589

Page 90: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

90 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Keywords: Domestic Production. Processed Food. StreetVendors Food. Women´s Work. Strategies and CommercialPractices.

Desconstruindo um mitoDesconstruindo um mitoDesconstruindo um mitoDesconstruindo um mitoDesconstruindo um mito

O comentário de alguns viajantes da primeirametade do século XIX de que as mulheres cariocasviviam num ócio total, se propagou como umincêndio de ravina seca pela literatura de viagens. Ora,desfalecidas de prazer, deitadas com a cabeça recostadasobre os joelhos de suas mucamas que lhes faziamcafuné ou lhes catavam piolhos2; ora, num ato depreguiça extrema, ocupando as escravas em servi-lhesum copo de água que, portanto, estava ao alcance desuas mãos; ora empunhando o chicote ameaçando depuni-las, ora punindo-as com ele ou com a palmatória,passavam, assim, o dia engordando sentadas em suasesteiras ou recostadas em suas marquesas.

Em contrapartida, alguns viajantes comentavamque as famílias brasileiras eram muito numerosas nãosendo “ [...] incomum verem-se dez, doze ou quinzefilhos de uma mesma mãe”3; outros, ainda que viajadose experientes, talvez exagerassem afirmando que o“sentimento doméstico entre os brasileiros”, além deser difundido em todas as classes, era muito forte,pois “[...] em país algum, os pais se sacrificam tantopelos filhos” e “[...] em lugar algum os filhos são maisgratos; uma lição para aquele odioso ser: o pai enérgicoda Europa”4. Prova deste sentimento doméstico eramas festas de famílias e os aniversários celebrados comentusiasmo5. Afirmavam, igualmente, que a senhoracarioca, quando tinha uma “[...] folga na sua faina deandar fiscalizando escravos e tomando conta da casa”,era levada pelo marido a Petrópolis ou à Tijuca, oupara passar “[...] algumas semanas ao ar livre, emConstância”6, em Teresópolis.

Maria Graham, por sua vez, visitando algumas

2 EXPILLY, Charles. Mulherese Costumes do Brasil, trad.,prefácio e notas de GastãoPenalva, 2. ed., primeirapublicação em 1863, SãoPaulo: Cia. EditoraNacional, 1977. p. 247.

3 KIDDER, Daniel P.Reminiscências de Viagens ePermanências no Brasil (Rio deJaneiro e Província de SãoPaulo). CompreendendoNotícias Históricas eGeográficas do Império edas Diversas Províncias. SãoPaulo: Martins Fontes/EDUSP, 1972. p. 195.

4 BURTON, Richard Francis.Viagem do Rio de Janeiro aMorro Velho. Apresentação enotas de Mário GuimarãesFerri. Trad. David JardimJunior. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1976, p. 326-327.

5 KIDDER, Daniel P. Op. cit.p. 195.

6 Idem, p. 194.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5590

Page 91: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 91

famílias do subúrbio do Rio, comentou que, em casade uma delas, após a refeição do meio dia, algunsmembros se retiraram para a sesta, enquanto que asmulheres “dedicaram-se a bordados”, de resto muitobonitos, e “[...] às ocupações da casa e à direção dasescravas domésticas”7. De outra feita, quando foiconvidada para um baile e concerto em casa dabaronesa de Campos, ela se espantou com a extremajuventude de algumas crianças que aí estavam emcompanhia de suas mães. Tomando a liberdade dedizer a estas últimas que “[...] na Inglaterraconsideraríamos isso maléfico para elas, sob todos ospontos de vista”8, e que, àquela hora, as criançasestariam na cama ou em companhia de suas amas egovernantas, obteve como resposta, das mãesinterpeladas, que aqueles que amavam seus filhosprecisavam tê-los debaixo de suas vistas e que, ali,naquele baile, não podiam aprender nenhum mal,enquanto que, se ficassem em casa entregues aoscuidados e ao exemplo dos escravos, poderiam sedeixar influenciar por seus hábitos e práticas imorais.

E como, antes da chegada de D. João VI, nãohavia escolas e nem era possível contar com as escravasdomésticas para a educação dos filhos dos senhores,eram as senhoras que se encarregavam de educá-los,mantendo a educação, sobretudo das mulheres, dentrodos limites dos cuidados do lar. Posteriormente, aeducação das crianças livres e abastadas foi entregue acolégios privados e ao Colégio Pedro II, subordinadoao Ministério do Interior, geralmente internatos, e apreceptores de ambos os sexos9 que se deslocavamaté as casas de seus alunos ou aí viviam.

Vê-se, pois, que as mulheres das classes maisabastadas estavam plenamente ocupadas com osafazeres domésticos, que compreendiam o fiar, o tecer,o costurar e o bordar para si mesmas e suas famílias epara dar de presente. Além de terem a seu cargo criare educar seus numerosos filhos, ensinar às jovensescravas a executar as tarefas quotidianas da casa, como

7 GRAHAM, Maria. Diário deuma viagem ao Brasil . SãoPaulo: Itatiaia, 1990. p. 335.

8 Idem, p. 327-328.

9 A educação das crianças eadolescentes e a formaçãode uma camada deprofissionais do ensino,diretores de escolas eprofessores, de ambos ossexos e de diferentesnacionalidades, serãoobjeto de um outro artigo.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5591

Page 92: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

92 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

limpar, arrumar, lavar e passar a roupa, cozinhar ecuidar dos seus senhores e dos seus filhos (inclusivelavá-los, vesti-los, penteá-los e calçá-los). Somentequando dispunham de escravas, geralmente crioulas,ou seja, nascidas numa família brasileira e aí criadas,adestradas e formadas nas artes do lar, ou entãoafricanas que já se haviam iniciado e se tornado peritasnelas, era que as senhoras podiam transferir o encargode formar as escravas novas às mais velhas. Quanto àadministração da casa e controle dos escravospermaneciam sob a esfera exclusiva de sua ação ou,em algumas famílias mais ricas, sob a direção de umagovernanta, frequentemente livre. O comentário deKidder e Fletcher é disso um testemunho:

Quase todas as senhoras fazem os seus próprios vestidos oupelo menos cortam-nos e arranjam-nos para as escravascosturarem, pelos últimos figurinos de Paris. Sentam-se nomeio de um circulo de negrinhas, pois sabe bem que, se”oolhar do mestre engorda o cavalo” da mesma forma o olharda patroa faz a agulha andar mais depressa10.

Em outras famílias, menos abastadas, as mulheresse dedicavam, além das atividades propriamentedomésticas, a atividades ditas produtivas, porquelucrativas. Entre elas estava a confecção deguardanapos, toalhas, lençóis e fronhas bordados.Entretanto, a mais importante dessas atividadesdomésticas era, sem dúvida, a de preparar, com a ajudade escravas, quitutes, doces e salgados, para seremvendidos nas ruas. E a parisiense Adèle Toussaint-Samson, que viveu no Rio de Janeiro de 1850 a 1869,aproximadamente, contrariando a versão propaladado ócio das mulheres cariocas, afirmava:

Uma das opiniões mais geralmente aceitas sobre a brasileira éque é preguiçosa e permanece ociosa o dia inteiro. Enganam-se. A brasileira não faz nada por si mesma, mas manda fazer;põe seu amor-próprio em jamais ser vista em uma ocupação

10 KIDDER, D. P.;FLETCHER, J. C. O Brasil eos Brasileiros (Esboçohistórico e descritivo), trad.Elias Dolianiti. Revisão enotas de Edgar Süssekindde Mendonça. São Paulo /Rio de Janeiro / Recife /Porto Alegre: CompanhiaEditora Nacional, 1941. p.187.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5592

Page 93: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 93

qualquer. Porém, quando somos admitidos em suaintimidade, encontramo-la, de manhã, os pés nus emtamancos, um penhoar de musselina por toda vestimenta,presidindo a confecção dos doces, da cocada, arrumando-osno tabuleiro de suas negras ou de seus negros, que logo vãovender pela cidade os doces, as frutas ou os legumes dahabitação.À saída deles, as senhoras preparam costura para as mulatas,pois quase todas as roupas dos filhos, do dono e da dona dacasa são cortadas e costuradas em casa. Ali também são feitosguardanapos e lenços com ponto de crivo, que são enviadospara vender, como todo o resto; é preciso que cada um dosescravos ditos “de ganho” traga à sua senhora uma somaindicada, no fim de sua jornada, e muitos são espancadosquando voltam sem ela. É isso que constitui o dinheiro paraas despesas pessoais das brasileiras e lhes permite satisfazersuas fantasias11.

Senhoras, libertas, escravas e o comércio ambulanteSenhoras, libertas, escravas e o comércio ambulanteSenhoras, libertas, escravas e o comércio ambulanteSenhoras, libertas, escravas e o comércio ambulanteSenhoras, libertas, escravas e o comércio ambulantede alimentosde alimentosde alimentosde alimentosde alimentos

A vida das senhoras cariocas menos abastadas seriabem mais risonha se trabalhassem apenas para satisfazeras suas fantasias, mas infelizmente a sua realidade erabem diferente e elas não só trabalhavam paracomplementar a renda familiar, como também, noscasos das viúvas e mães solteiras ou abandonadas, parao seu sustento e o de seus dependentes. Elas,contrariamente ao que poderia acontecer com umasenhora rica que coraria se fosse “surpreendida emuma ocupação qualquer”, não podiam professar “[...]o mais profundo desprezo por tudo que é trabalho”12,pois trabalhavam para sobreviver, ainda que fossem“senhoras”, ou seja, livres.

Não resta dúvida que, como o trabalho destassenhoras era realizado no espaço da casa, longe doolhar alheio, era socialmente aceito, não sendoreprovado como era, inicialmente, o trabalho dasprofessoras que, “[...] por ir a pé, sozinhas ganhar a

11 TOUSSAINT-SAMSON, A.Uma parisiense no Brasil. trad.Maria Lucia Machado,prefácio Maria Inês Turazzi,Rio de Janeiro: Capivara,2003. p. 156-157.

12 Idem, p.159.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5593

Page 94: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

94 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

vida a ensinar”,13 eram vistas como prostitutas esubmetidas a constantes vexames. E esta invisibilidadedo trabalho doméstico estimulava muitas mulheresremediadas a que trabalhassem em suas casas, às vezescom a ajuda de algumas poucas escravas, quando nãode apenas uma. E, como eram estas últimas que setornavam visíveis no momento da venda de suaprodução no espaço público, eram elas também quearcavam com todos os preconceitos contra o trabalho,e em especial o feminino. Enquanto isso, suas senhoraspodiam manter as aparências de uma dignidadehonrada pelo ócio.

Ainda que fosse verdade que, no Rio, “[...] todomundo quer ser senhor, ninguém quer servir”14, estenão era o caso de outras mulheres livres, mas pobres,entre elas muitas ex-escravas, que se dedicavam aopreparo e venda de bebidas e alimentos, às vezesconfeccionados na rua mesmo, sob o olhar de todos.Elas eram procuradas por pessoas de todas as classessociais, especialmente os pobres e os escravos quetrabalhavam nas ruas o dia inteiro, onde realizavam,ao menos, sua refeição principal, a do meio-dia.

O número de vendedoras ambulantes de bebidase alimentos preparados que circulava pelas ruas epraças do centro do Rio de Janeiro chamava a atençãodos viajantes estrangeiros que visitavam a cidade ouque aí viviam, e podia dar uma idéia da importânciadeste ramo do comércio. Entre elas, as que maisatraíam a curiosidade eram as vendedoras de pão-de-ló, de angu e as baianas vendedoras de pamonha, acaçáe aluá.

A venda do pão-de-ló, “[...] uma espécie debiscoito de Sabóia fino, redondo, da largura de umpires comum”15, feito à base de farinha de trigo, açúcare ovos batidos constituía, sem dúvida, um excelentenegócio, haja vista que, segundo dizia-se, os seusprincipais fabricantes eram membros de uma sófamília, numerosa, que vivia exclusivamente destecomércio. E, ainda que não se mencionasse quem eram

13 Idem, p.153.

14 Idem, p.159.

15 DEBRET, Jean Baptiste.Viagem pitoresca e histórica aoBrasil, trad. e notas de SergioMillet, tomo I (volume 2),São Paulo: EDUSP/Itatiaia,1978. p. 296. DEBRET, JeanBaptiste. Viagem pitoresca ehistórica ao Brasil , trad. enotas de Sergio Millet,tomo I (volume 2), SãoPaulo: EDUSP/LivrariaItatiaia Editora, 1978. p. 341.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5594

Page 95: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 95

eles, certamente se tratava de senhoras que organizavama sua produção caseira, dirigindo numerosos escravos,cozinheiros e cozinheiras, qualificados, do tipo dosque eram anunciados nos jornais, como aquela “[...]preta cozinheira de forno e fogão e faz doces” queera alugada na rua da Alfândega n. 141"16.

Eram estas senhoras que, certamente, estabeleciamtambém a estratégia de venda deste quitute, em funçãodo horário de seu maior consumo, uma vez que era amelhor companhia para o café ou o chocolate comleite da manhã ou o chá da noite. Desta forma, suasescravas vendedoras percorriam as ruas da cidade duasvezes ao dia: muito cedo de manhãzinha e no meioda tarde. Saindo bem cedo de casa, “[...] começavamabastecendo os cafés e em caminho entravam nas casasde suas freguesas mais madrugadoras para entregar opão-de-ló do café da manhã, à razão de um porpessoa”. Esse negócio era tanto mais rendoso “[...]quanto as famílias brasileiras são em geral numerosas”17.

Sua rotina era, aproximadamente, a seguinte: elassaíam da casa de seus senhores às seis horas da manhãe voltavam às dez, normalmente com uma certaquantidade de ovos para a produção vespertina.Descansavam até às duas horas da tarde e tornavam asair para voltar, somente ao anoitecer, lá pelas seis emeia. A venda da tarde se destinava “[...] às sobremesasdo jantar e às provisões para o chá, refeição habitualservida em todas as casas da cidade entre oito e dezhoras da noite”18. Por esta descrição, percebe-se queestas escravas se dedicavam exclusivamente à vendado pão-de-ló, enquanto que as suas colegas cozinheirasempregavam-se não só na sua produção, comotambém no preparo das refeições de seus senhores.

Um segundo aspecto desta estratégia era de índolebem feminina: as escravas vendedoras deviam chamara atenção e ser identificadas por seus trajes e por sualimpeza, uma espécie de marca do negócio: “As negrasandam sempre vestidas com muito asseio e às vezeselegância”, dizia Debret, e acrescentava: “Nossos

16 Jornal do Commercio, Rio deJaneiro, R. J., (doravante JC)01/07/1849, Anúncios, p. 3.

17 DEBRET, Jean Baptiste. Op.cit., p. 342.

18 Idem, ibidem.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5595

Page 96: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

96 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

ambulantes [franceses] muito raramente lhes chegamaos pés”19. E esta estratégia era tanto mais importantequanto “[...] a venda nas ruas não é menos lucrativa”do que aquela de porta em porta e junto aos cafés,pois ela tinha por clientela alvo os muito numerososescravos e libertos que viviam do trabalho na rua, comoos escravos de ganho, as quitandeiras e mesmo osmoleques de recado: “[...] a primeira despesa matutinada maioria dos operários consiste na compra do pão-de-ló que eles consideram substancial e bom para opeito”20.

Em terceiro lugar, esta estratégia consistia emvender o pão-de-ló em quatro tamanhos diferentes,em que o menor custava apenas um vintém, de modoa alcançar o maior público possível: “O preço dosmenores é de um vintém, mas fazem-se outros dodobro ou do quádruplo do tamanho, cujo preçomáximo é por conseguinte de 4 vinténs”21.

E como este negócio era muito lucrativo, outrassenhoras passaram a participar dele, mas em escalamais reduzida, “[...] procurando apenas com o lucrorelativo pagar a alimentação diária de seus escravos”22.Neste caso, a venda do pão-de-ló ocupava as escravastão somente até às 10 horas da manhã. De regresso àsresidências de seus amos, elas eram empregadas nosafazeres quotidianos da casa.

Que a venda de alimentos nas ruas do Rio de Janeiroconstituía um bom negócio, bastava ouvir o alaridodos vendedores ambulantes que passavam o dia inteiroa oferecer suas mercadorias gritando os seus pregões.Era formada, em geral, de escravos de “pequenoscapitalistas”, ou seja, de pessoas livres que possuíammuito poucos escravos e que viviam da renda obtidacom o seu trabalho na rua, fosse como escravos deganho que vendiam seus serviços, especialmente comocarregadores, fosse como vendedores ambulantes.Havia também, entre eles, muitas negras livres, poiseram as mulheres libertas as que mais se entregavam aeste tipo de negócios, por exigirem um pequeno capital

19 Idem, ibidem.

20 Idem, ibidem.

21 Idem, p. 341-342.

22 Idem, p. 342.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5596

Page 97: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 97

inicial, além de seu saber-fazer e seu saber-negociar.Entre elas estavam as inumeráveis vendedoras debebidas e frutas refrescantes, de grande consumodurante o calor excessivo do verão carioca, que muitasvezes se prolongava pelo outono adentro.

Entre as bebidas refrescantes, vinha em primeirolugar “[...] o econômico aluá, feito de arroz maceradoe açucarado”23, que, por sua barateza, tornara-se overdadeiro néctar dos trabalhadores de rua, escravos,libertos e brancos pobres. Entre as frutas refrescantes,vendidas pelos ambulantes, estavam a cana-de-açúcar,cuja maturação coincidia com o verão, e a lima oulimão doce, fruta cítrica com “grande quantidade deessência de um perfume forte e agradável”, que eravendida descascada para que o comprador pudessedesalterar-se mais rapidamente, mas também “[...] paraconservar a casca para fazer doce”24 que, certamente,era posteriormente comercializado por elas. As limaseram vendidas até três unidades por um vintém.

A cana-de-açúcar, por sua vez, era vendida empedaços, a chamada “cana em rolos”. Este sistemaconsistia em cortar a cana em pequenos pedaços docomprimento do intervalo entre dois nós, que eramraspados a fim de retirar-lhes a casca fibrosa. Eramem seguida mergulhados na água fresca e amarradosem pequenos feixes de sete ou oito pedaços, ou rolos,que se conservavam debaixo de uma toalha molhada.Eram vendidos a dez réis cada feixe. Esses pequenosrolos, de um verde esbranquiçado e transparente,convidavam, na opinião de Debret, o transeunte adesalterar-se, “[...] pois a cada dentada enchem-lhe aboca de um suco abundante, inodoro e muito doce”25.Quanto ao bagaço, que ficava na boca e não passavade um feixe de fibras, era aproveitado para os cavalos,bois e burros, que o apreciavam bastante.

No entanto, as ruas não se esvaziavam com o fimdo verão, e, à voga das substâncias refrescantes sucedia,então, “[...] o amor às guloseimas, mantido em apetite,sucessivamente pelas vendedoras de manuê, de pastéis

23 Idem, p. 296.

24 Idem, ibidem.

25 DEBRET,J. B. Op. cit. ,p. 296-297.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5597

Page 98: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

98 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

quentes, de sonhos, doces, etc.”, cujas receitas, segundoDebret, eram muito diferentes das da Bahia. O manuê,por exemplo, não era um doce, mas “um folheadorecheado de carne, bastante suculento e bom para secomer quente”. Por isso, a vendedora tinha o cuidadode cobrir sempre o tabuleiro com uma toalha e umacoberta de lã. Como esse “petisco burguês”26 se faziacom os restos da refeição do meio-dia do senhor, sóera vendido à noite. E, na sua opinião, era “o pratofavorito das negras das casas ricas ou das empregadasde loja, únicas capazes de pagar o preço exigido”27,pois cada pequena empada se vendia a dois vinténs28.

As vendedoras ambulantes de doces faziam umgrande sucesso junto às crianças cariocas, “[...]encantadas quando avistam na rua as pretas com ofavorito tabuleiro cheio de doces e brinquedos” nacabeça. E lá vinha ela gritando o seu refrão, com oseu filhinho amarrado nas costas: “Chora menina, choramenino, papai tem dinheiro bastante, compra menina,compra menino”29.

Entre outros doces, elas vendiam sonhos, “[...]fatias de pão passadas no melaço e com certaquantidade de pevides por cima”. Segundo o artistafrancês, “[...] esse doce duro e um tanto insignificante,sempre cheio de poeira”, por ser vendido adescoberto e amontoado em pirâmides, a dez réiscada um, era “[...] particularmente apreciado pelascrianças, tão pouco exigentes no Rio de Janeiro, comseus sonhos empoeirados, quanto em Paris com seuspães de mel mais empoeirados ainda”30.

Com a chegada ao Rio de Janeiro, a partir de 1822,de “inúmeros trânsfugas” que se esquivavam àsperturbações políticas resultantes da declaração deindependência na Bahia, apareceram, entre asquitandeiras da cidade, negras baianas, livres, “[...]notáveis pela sua indumentária e a sua inteligência”.Podiam ser reconhecidas facilmente por sua camisade musselina ricamente bordada sobre a qual colocavauma baeta, cujo riscado caracterizava a fabricação

26 Talvez Debret se refira aomanuê como um “petiscoburguês”, porque a“cozinha burguesa” ( lacuisine bourgeoise) consistia emreutilizar as sobras darefeição anterior naexecução de novos pratos.

27 DEBRET, J. B. Op. cit., p. 297.28 Apesar de não estar claro

no texto de Debret, tudoindica que era a escravacozinheira que, à noite,depois de haver servido aceia dos seus senhores,produzia e comercializavao manuê em benefíciopróprio.

29 KIDDER, D. P. Op. cit., p.186.

30 DEBRET, Jean B. Op. cit., p.297.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5598

Page 99: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 99

baiana. Mas também, e sobretudo, “[...] pelo seuturbante, bem como pela altura exagerada da faixa dasaia”31, além da quantidade de jóias de ouro com quese adornavam, aumentando sua faceirice e os atrativosde suas mercadorias.

Umas mascateavam musselinas e xales, outrasofereciam como novidade algumas guloseimas dacozinha baiana. Foram elas que introduziram no Riode Janeiro o “acaçá”32, a pamonha e o “aluá”, bemcomo o uso do “[...] polvilho de forma, amidopreparado em pequenos quadrados de uma polegadade espessura e próprios para engomar roupa”.

O acaçá, segundo Debret, era uma espécie “[...] decreme de arroz doce vendido frio dentro de umcanudo de folha de bananeira”33, e a pamonha era umbolo de canjica, ou seja, uma “[...] pasta açucaradafeita com farinha de milho e leite e vendida em folhasde mamoeiro”34. Estes quitutes fizeram grande sucessoe passaram a ter um lugar cativo no cardápio dacozinha popular carioca.

O aluá35,” [...] feito de arroz macerado eaçucarado”, era uma bebida de fácil fabricação, à basede arroz fermentado, ligeiramente acidulada, emboraaçucarada, e muito fresca e agradável de beber-se.Devido ao seu baixo preço, se tornou a bebidapreferida dos trabalhadores de rua, escravos, libertose brancos pobres. A montagem deste pequeno negócioera simples e exigia um pequeno capital inicial, poisbastava à vendedora livre “[...] possuir um pote debarro, um prato, uma grande xícara de porcelana e,finalmente, um coco de cabo de madeira”. Este últimoutensílio, uma espécie de concha, lhe servia ao mesmotempo de medida de capacidade, pois seu conteúdoera suficiente para encher a xícara, que era vendida adez réis. Esse negócio era, além de tudo, prático: “[...]todo esse aparelhamento, solidamente amarrado eembrulhado numa toalha é fácil de carregar à cabeça”36.

As vendedoras de aluá, tais como as de pão-de-ló,eram “[...] notáveis pela elegância ou, ao menos, pela

31 Idem, p. 302-303.

32 Bolinho da culinária afro-brasileira, feito de milhomacerado em água fria edepois moído, cozido eenvolvido, ainda morno,em folhas verdes debananeira. Culinária Afro-Brasileira, http://www.colegiosaofrancisco.com.br

33 Notar a diferença para estadefinição atual do acaçá:“Bolinho da culinária afro-brasileira, feito de milhomacerado em água fria edepois moído, cozido eenvolvido, ainda morno,em folhas verdes debananeira”. Culinária Afro-Brasileira, http://www.colegiosaofrancisco.com.br

34 DEBRET, Jean Baptiste. Op.cit., p. 302.

35 Bebida feita de milho, dearroz ou de casca de abacaxifermentados com açúcarou rapadura. CulináriaAfro-Brasileira, http://www.colegiosaofrancisco.com.br

36 DEBRET, Jean Baptiste. Op.cit., p. 296.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:5599

Page 100: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

100 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

limpeza de seus trajes, naturalmente proporcionais àfortuna dos senhores”37. Mas, sabendo-se que aadministração da cozinha era uma tarefa feminina, éevidente que era a senhora que organizava tanto aprodução quanto a comercialização desta bebida, eque era ela a mentora desta estratégia, tão feminina,de conquistar a clientela através de vendedoras bemapessoadas. Mas, ao que parece, para obter algumavantagem na disputa pelos possíveis compradores, elaera ajudada pelas qualidades pessoais de suasvendedoras escravas. Era aí que a vendedora negra,“de natural faceiro e interesseiro”, podia obter o seuganho, aproveitando-se da ocasião para travar novos“conhecimentos lucrativos”, que ela cultivava duranteo resto do ano, “mediante visitas furtivas” que lhedavam algum dinheiro a título de gorjeta ou de “[...]recompensa por pequenos obséquios prestados comcondescendência”38.

Outro grande negócio do ramo da alimentaçãode rua era o angu. Alimento substancial, era o pratopredileto dos pobres e dos escravos que trabalhavamnas ruas do Rio de Janeiro. Ele era preparado pelasquitandeiras em suas barracas e consumido no local“[...] por escravos e gente do povo que às vezes achammais econômico ou mais cômodo comer dessamaneira”39.

O angu constituía-se, basicamente, de uma massaconsistente de farinha de milho ou de mandioca comágua e sal escaldada ao fogo. A sua menor porçãocustava um vintém e correspondia a duas colheradasda grande colher de pau de cabo comprido que seusava para servi-lo. No entanto, “[...] um escravooperário de grande apetite”40 necessitava, para a suarefeição, de uma porção de três vinténs que, da mesmaforma que os escravos de ganho, pagava com suaseconomias.

A montagem deste negócio de alimentospreparados não custava muito, além de seu saber-fazer,pois bastavam-lhes:

37 Idem, ibidem.

38 Idem, ibidem.

39 KIDDER, D. P. Op. cit. , p.72.

40 DEBRET, Jean B. Op. cit., p.310.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55100

Page 101: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 101

[...] duas marmitas de ferro batido colocadas sobre fornosportáteis; um pedaço de pano, de lã ou de algodão, por cimada tampa de cada marmita, completa o aparelhamentoculinário, a que se acrescentam duas grandes colheres de paude cabo comprido. Conchas grandes e chatas e cacos de barrofazem as vezes de pratos para os transeuntes que se lembramde parar, e uma concha volumosa de marisco serve de colher41.

As senhoras donas de pensões de família e de comidaAs senhoras donas de pensões de família e de comidaAs senhoras donas de pensões de família e de comidaAs senhoras donas de pensões de família e de comidaAs senhoras donas de pensões de família e de comida

Enquanto a população pobre e a população escravadas ruas permaneciam numericamente estáveis e eramcompostas por pessoas que, à noite, voltavam parasuas respectivas casas, onde dormiam e, no dia seguinte,tomavam o café da manhã antes de retomarem alabuta quotidiana, o comércio de alimentos preparadosnão mudou muito de caráter. No entanto, a chegada,sobretudo depois de 1850, de milhares de imigrantes,em sua grande maioria pobre e celibatária, sacudiu omercado imobiliário42 e alimentício do Rio de Janeiro.Vivendo em pequenos quartos, às vezes a dois, nãotendo onde cozinhar e nem tendo tempo para isso,eram obrigados a realizar todas as suas refeições nasruas, como os pobres em geral. Muitas vezes, os maispobres dentre eles eram obrigados a se contentar comum punhado de farinha de mandioca molhada nocaldo de laranja, não podendo sequer complementaresta refeição com os quitutes baratos apregoados pelasvendedoras ambulantes, nem com o substancial angudas quitandeiras.

Em sua maioria portugueses, esses imigrantestrouxeram hábitos alimentares distintos dos brasileiros.Preferiam o chá ao café, o vinho à cachaça, o pão àfarinha de mandioca, o bacalhau com batata e cebolaao feijão preto com toicinho e carne-seca. Parasatisfazer a demanda dessa população, inúmeraspensões de famílias começaram a disputá-la.

O enorme número de anúncios nos jornais cariocasonde donos e donas de casa ofereciam quartos para

41 Idem, p. 309.

42 KAREH, Almir C. EL. Apobreza pertinho do céu:moradia e alimentação dospobres no Rio de Janeiro(1850-1889). Maracanan, AnoIII, n. 1, jan. 2005/mar. 2007,Rio de Janeiro: UERJ, p. 73-96.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55101

Page 102: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

102 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

alugar em suas próprias residências, com ou semrefeição, ou ofereciam apenas as refeições (maisusualmente, o jantar, ao meio-dia), são umademonstração cabal das transformações sociais eurbanísticas da cidade.

Em nossa amostragem dos anúncios de jornais43,que vai de 1849 a 1888, podemos perceber a evoluçãoda oferta e procura por cômodos, mobiliados ou não,com ou sem serviço de quarto, com ou sem refeições,e a do perfil do hóspede mais que o do hospedeiro.

Desde muito cedo, esta atividade econômica serevelou ambígua e depreciada socialmente, apesar deseu papel fundamental no funcionamento da economiaurbana carioca. Ambígua, por se tratar de uma formade hotelaria que, por ser realizada no espaçodoméstico, se confundia com a hospitalidade familiar,aliás muito presente nos costumes brasileiros. Ambígua,também, por que eram os donos de casa os donos dapensão ou, ao menos, quem a administrava, e o queera uma atividade eminentemente econômica ficava,por razões sócio-culturais, empanada pela atividadedoméstica, obscura e depreciada. E ainda maisdepreciada porque, normalmente, realizada pormulheres. Mulheres sós, mulheres estrangeiras, mulheresremediadas quando não pobres.

E só porque eram extensões da economiadoméstica é que as mulheres puderam, com o seusaber-fazer doméstico, não somente participar destafatia do mercado de alimentos preparados, comodominar este setor da alimentação. Como elasdetinham, no âmbito da casa, o monopólio do saber-cozinhar ou, ao menos, do saber dirigir e organizar asatividades domésticas, uma vez sós e estimuladas pelademanda de quartos e de refeições prontas, foramcapazes de transformar um saber puramentedoméstico e não lucrativo, numa profissão rentável,ainda que não percebida socialmente como tal.

O ambiente familiar e a comida caseira que aspensões de família ofereciam, correspondiam aos seus

43 Nossa pesquisa foi feita noJornal do Commercio(1849-1888) e no CorreioMercantil (1854-1858),ambos periódicos do Riode Janeiro.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55102

Page 103: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 103

valores e sentimentos domésticos e, pari passu,realizavam o desejo dos expatriados de reencontrarseus lares. Daí, certamente, mas apenas em parte, oseu sucesso. Aos altos preços, já por si sósdesestimuladores, cobrados pelos relativamente pouconumerosos hotéis, somava-se sua freqüênciapredominantemente masculina para inibir a presençade senhoras desacompanhadas de seus maridos, quepreferiam buscar abrigo em casas de famílias.

Aos poucos, os “pequenos capitalistas”, homens emulheres proprietários de pouquíssimos escravos, aomesmo tempo domésticos e de ganho, que lheforneciam uma pequena renda, bem como mulheresviúvas ou solteiras viram na possibilidade de alugarpartes de sua casa uma forma de aumentar seus ganhos.Estas casas, normalmente sobrados situados no centrocomercial, que alugavam cômodos com ou semcomida e as que forneciam apenas comida surgiampara atender a demanda desta numerosa classe pobre,oriunda da imigração, e começaram a concorrer comas pensões de famílias mais confortáveis e,consequentemente, mais caras, que ocupavam casasinteiras em bairros mais afastados do comércio. Elasprocuravam atrair, sobremaneira, as camadasintermediárias dos caixeiros, ou seja, dos empregadosdo comércio. Sendo assim, tinham que conformar oshorários de suas refeições ao horário do comércio,que abria às 9 horas da manhã e fechava às 4 da tarde.Diferentemente das pensões de família mais distantesdo centro da cidade, onde seus hóspedes sóconsumiam o café da manhã e a ceia da noite,realizando a refeição principal, o jantar ao meio-dia,no centro comercial, as casas de pensão de comidaofereciam especialmente o jantar que, muitofrequentemente, era levado ao local de trabalho dosseus fregueses entre meio-dia e uma hora da tarde.

A disputa por estes hóspedes potenciais pode seracompanhada em suas diferentes etapas através dosanúncios de jornais. Neles, é possível perceber a melhoria

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55103

Page 104: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

104 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

do nível de renda de parte destes caixeiros que podiampagar mais, fosse por quartos maiores, mais arejados emais bem mobiliados e até mesmo com direito a banho“de chuva”, fosse por pensões de família maisconfortáveis, onde se podia comer melhor.

Em todos os casos, para transformar uma casa defamília numa pensão de família, era preciso alguminvestimento de capital. E nem todas as casas eramsuficientemente grandes a ponto de poderem sertransformadas sem grande alteração de suas divisõesinternas. E como, no mais das vezes, as que se situavamnas paróquias centrais da cidade ocupavam umsobrado próprio ou alugado, que inicialmente serviraapenas de residência, esta mutação em pensãoimplicava numa alteração do espaço do lar e dasrelações de família, com perda de sua intimidade eprivacidade. A cozinha familiar adquiria o status delocal de produção comerciável e a sala de estar,eventualmente, ou qualquer outro espaço, o derefeitório de pensionistas, estranhos à família. Mas, aomesmo tempo, os hóspedes pensionistas deviam seracolhidos como se fossem membros dela, deviam “sesentir em casa”. Esta promiscuidade era socialmentepercebida como nefasta para a família na medida emque expunha a intimidade e privacidade dela e,especialmente, da dona de casa e suas filhas.

A demanda crescente dos hóspedes por maiorindependência, intimidade e conforto e,posteriormente, por melhores condições higiênicas,refletia o aumento do nível de vida das pessoas, oconsumo cada vez maior de gêneros importados, aaquisição de hábitos e modos de vida europeus e deuma nova forma de viver e ocupar o espaço urbano.

Um trunfo bastante convincente na disputa entreos proprietários de pensões de família era a sualocalização. As que ficavam mais próximas do centroda cidade, ou nele mergulhadas, tinham a vantagemde desonerar seus hóspedes de todo tipo de gastocom transporte, podendo mesmo aí realizar todas as

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55104

Page 105: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 105

suas refeições. Aliás, esta proximidade dos negóciosera, talvez, de todas, a maior vantagem das casas de“pensão de comida”, que não exigiam muitatransformação do espaço doméstico.

Não resta dúvida de que elas tinham que disputara clientela formada basicamente pelo pessoal docomércio, mas também pelos estudantes universitários,com os restaurantes, que viviam quase queexclusivamente dela, e com as padarias, confeitarias ecafés que rivalizavam com elas oferecendo salgadinhosos mais variados44. E era notável a sua capacidade deluta utilizando os mesmos meios de propaganda queos restaurantes, ou seja, os anúncios nos jornais. É bemverdade que dispunham de menores recursos e queseus reclamos ocupavam menos espaço, o que não asimpedia, entretanto, de estarem permanentementepresentes, ao lado de seus rivais, nas colunas dosanúncios dos periódicos mais importantes da cidade.

Estas casas de “pensão de comida” não recebiamapenas “pensionistas para o almoço e o jantar” comotambém, e sobretudo, entregavam “comida em casa”.E o negócio de mandar comida “para fora” era detal maneira lucrativo que algumas delas só serviam aocomércio: “Na travessa de São Francisco de Paula n.18 continua-se a fazer jantares para fora com todo oasseio que é possível, por ser de casa particular,declarando-se que só se cozinha para casas decomércio”45.

E a necessidade de carregadores de “caixas decomida” cresceu na mesma medida. No início, às vezes,era o pessoal do comércio que tomava a iniciativa dealugar escravos para este serviço: “Precisa-se de umpreto ou moleque para ir buscar a comida para umaloja, no qual serviço gasta uma hora por dia, por serperto, quem pretender dirija-se à rua Velha de SãoFrancisco n. 15, armarinho”46. Mas, em função daconcorrência crescente entre os fornecedores de“jantares para fora”, este serviço se tornou umaatribuição das pensões, restaurantes e hotéis.

44 KAREH, Almir C. El.;BRUIT, Héctor. Cozinhare comer, em casa e na rua:culinária e gastronomia naCorte do Império do Brasil.Estudos Históricos, Rio deJaneiro, n. 33, jan./jun. de2004, p. 76-96.

45 Correio Mercantil , Rio deJaneiro, R. J. (doravante,CM), 01 out. 1856,Anúncios, p. 3.

46 CM , 24 mar. 1854,Anúncios, p. 2.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55105

Page 106: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

106 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

49 JC, 01 out. 1872, Anúncios,p. 6.

A contratação de meninos negros, os moleques, ede adolescentes estrangeiros, os “moços”, ou deadultos, escravos e livres, para carregar as “caixas decomida”, dependia do tamanho do negócio. Quantomaior era o número de caixas a serem carregadas,maior a necessidade de pessoas fortes, sendo entãopreferidos os homens adultos. E, na medida em que amão-de-obra escrava encarecia e se rarefazia na cidade,maior era a tendência a se preferir os trabalhadoreslivres. E, enfim, quando o número de caixas a seremcarregadas passou a exigir vários carregadores,inflando os custos do serviço de entrega, introduziu-se o carrinho para levá-las: “Precisa-se comprar umcarro para condução de caixas, que esteja em bomuso; quem tiver, deixe carta no escritório desta folha aS. B.”47

A concorrência entre esses distintos fornecedoresde comida pronta se fazia em diferentes níveis. Pelapropaganda nos jornais48, oferecendo maior confortoem suas salas e comida melhor, propondo umcardápio mais variado e alimentos em maior quantidadee preços melhores, e as que forneciam quartos, maiorconforto hoteleiro. Outros meios de propaganda eramos letreiros e tabuletas, colocados à frente dosrestaurantes e pensões de comida, contendo a lista dospratos oferecidos e, certamente, a publicidade feitapelos próprios pensionistas. O acirramento destadisputa pode ser acompanhado através da propagandanos jornais. Os artifícios encontrados iam da guerrade preços, passando pela quantidade e qualidade dospratos, até subterfúgios totalmente alheios àalimentação propriamente dita, como por exemplo,o status social de seus fregueses ou o direito a prêmios,como este: “Atenção. Almoços com dois pratos, pãoe café, 280 rs.; jantares com quatro pratos, pão esobremesa, a 500 rs.; e sendo pensionista 20$ pormês a toda a hora e com direito a um bilhete deloteria, no hotel Santo Antonio, rua de São José n.116 onde se acharão melhores explicações a respeito”.49

(Grifo meu).

47 JC, 23 nov. 1871, Anúncios,p. 1.

48 KAREH, Almir C. El.Cantando espalharei portoda a parte, Se a tanto meajudar engenho e arte:Propaganda, técnicas devendas e consumo no Riode Janeiro (1850-1870), noprelo da RevistaAntropolítica da UFF.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55106

Page 107: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 107

Mas quem eram esses proprietários de pensão eporque metiam tanto medo nos proprietários derestaurantes e hotéis? A leitura sistemática dos reclamosdos jornais nos fornecem algumas pistas.Primeiramente, as pensões eram muito numerosas eestavam presentes em toda a cidade, ainda queconcentradas no seu centro comercial, próximas daslojas comerciais e da alfândega que lhes forneciam amaioria dos clientes. Em segundo lugar, elas ocupavamnormalmente os sobrados, ou seja, os mesmos locaisdas residências das famílias remediadas que forneciamos “jantares para fora”. Daí que os anúncios insistiamsobre a origem da comida que devia ser melhor porser “de casa de família” ou de “casa particular”. Eelas podiam empregar os escravos domésticos e seuspróprios familiares tanto na produção de alimentospreparados quanto na sua entrega acondicionados emcaixas. O que concorria para baratear o seu preço finale aumentar a sua procura. Aliás, todos os anúncios deprocura por pensão de comida, de nossa amostragem,solicitavam os serviços de casas particulares.

Como, normalmente, os anúncios de pensão decomida eram anônimos e impessoais, torna-se difícilidentificar o gênero dos seus proprietários. Semembargo, como se sabe que a cozinha era daresponsabilidade da mulher, diretamente, decidindo epreparando os pratos, ou indiretamente, vigiando econtrolando o trabalho dos cozinheiros e cozinheiras,escravos e livres, seria correto supor que a maioriadas pensões pertencesse a mulheres, donas de casa,ou fosse por elas dirigidas. No mais das vezes, ofornecedor de pensão de comida se identificava apenasquando se tratava de um restaurante que servia“jantares para fora”.

Em apenas dois casos de nossa amostragem osanunciantes se identificam como mulheres50. Numdeles, datado de 1857, uma senhora se identifica comotal, mas não se tratava de uma pensão de comida, esim do fornecimento de salgados e doces para festas,

50 No entanto, eram muitas asmulheres, geralmenteviúvas, que detinham ocontrole de casascomerciais de todo tipo,inclusive botequins, depoisda morte de seus maridos:“Aviso ao público. A viúvaMaria Amália Duhrkoop,tendo traspassado o seuestabelecimento debotequim, sito dentro doPasseio Público, à Sra. ElizaPetzold, julga nada dever apessoa alguma; [...]”. JC, 01jul.1872, Anúncios, p. 6.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55107

Page 108: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

108 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

o que era socialmente aceitável: “Receitas Particulares.Na rua do Rezende n. 21 há uma senhora que seincumbe de aprontar empadas e doces para mesas,em porções grandes e pequenas, para a Semana Santa,e outro qualquer dia, sendo tudo muito bem feito”51.Num outro caso, datado de 1888, depois deanunciarem-se como uma pensão de comida, elasagregam: “O serviço é dirigido por senhoras”52.Fazendo supor que muitas dessas pensões eramorganizadas por senhoras que necessitavam de se juntarpara poder montar um empreendimento deste gêneroe que já era possível às mulheres assumir publicamenteseus status de empresarias contido na expressão“dirigido por senhoras”, como se quisessem significarcom isso que “não sujavam as mãos na cozinha”.

Quanto aos homens, parece que não padeciamdeste problema. Já nos anos 1870, pelo menos, “Fiúzacom casa de dar comida ao comércio e pensionistas,declara aos seus fregueses e amigos que se mudou dobeco de Bragança n. 18, para a rua da Candelária n.42, 2o andar, onde continua a bem servir os seusfregueses”53.

O crescimento do número de pensões, queabocanhava uma parte substancial da população querealizava sua principal refeição na rua, pode serigualmente aquilatado pelo número de cozinheirasque eram procuradas e se ofereciam através dosjornais para a produção doméstica de alimentos. Ora,como sabemos, que as mulheres não eramempregadas nos restaurantes e hotéis, com raríssimasexceções, podemos concluir que as cozinheiras, livrese escravas, anunciadas para o comércio se dirigiamquase exclusivamente às pensões de família ou decomida. Em nossa amostragem, mesmo sesupusermos que nenhum cozinheiro foi trabalhar naspensões, o que é falso, no ano de 1860, aparecem 15cozinheiros e 20 cozinheiras; no de 1870 eles são 48para 53 cozinheiras; no de 1880, eles são 70 enquantoelas somam 147, ou seja, mais do dobro; e no de

51 JC, 04 abr. 1857, Anúncios,p. 3.

52 “Fornece-se comida para ocomércio e casa de família,com todo o asseio eprontidão; na Rua Sete deSetembro n. 203, sobrado.O serviço é dirigido porsenhoras”. JC, 13 mai.1888,Anúncios, p. 8.

53 JC, 01 out. 1872, Anúncios,p. 7.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55108

Page 109: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 109

1887, apesar de haver uma queda em númerosabsolutos, a proporção é de 21 cozinheiros para 67cozinheiras, portanto, elas são mais do triplo. Doque se pode concluir que o ritmo de crescimentodas pensões de família e, sobretudo, das pensões decomida chegava a ser três vezes maior do que o dosrestaurantes e hotéis no final da monarquia, semincluirmos os cozinheiros que, de fato, trabalhavamnelas.

No entanto, o mercado de alimentos preparadosdevia atender a todos os níveis salariais, e eram muitosos que não podiam freqüentar diariamente nemmesmo as pensões de comida mais baratas e se viamobrigados a fazer suas refeições em locais sem higienee a comer comida de qualidade discutível:

Uns vão regularmente comer a certas casas comerciais, outrosse arranjam pelas impossíveis casas de pasto da Cidade Nova,os “freges”, onde as refeições não passam de duzentos réis.[...] às sextas-feiras são infalíveis nas comezainas gratuitasdos frades de São Bento54.

A proliferação de casas de pasto e tavernas baratase sem nenhuma higiene dava uma idéia da situação dapopulação trabalhadora urbana, menos favorecida:

As casas de pasto do troço e as tavernas. Recomenda-se àpolícia e junta de higiene as imundas casas de pasto e tavernasque por aí formigam, que envenenam quotidianamente asclasses operárias. Não existe rua que não tenha imensas dessaspocilgas; onde correm parelhas a porcaria com a imoralidade.Argos55.

A insistência em relação à higiene que devia presidiro preparo das comidas explica a recorrência daexpressão “com asseio” nos anúncios de restaurantese pensões de comida. Neles transparece a idéia, aindavigente, de que a comida feita “em casa” era maishigiênica: “Na travessa de São Francisco de Paula n.

54 Azevedo, Aluízio de. Casade Pensão. Rio de Janeiro:Globo, 1987. p. 300.

55 JC, 02 jan. 1864, Anúncios,p. 4.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55109

Page 110: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

110 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

18 continua-se a fazer jantares para fora com todo oasseio que é possível, por ser de casa particular”56.

Outra marca da concorrência estabelecida entre osfornecedores de alimentos preparados, foi suaadaptabilidade à composição social do seu públicoalvo. Como a maior parte do pessoal do comércio,tanto comerciantes quanto comerciários, era estrangeirae, mais particularmente, portuguesa, muitos foram osque procuraram adaptar-se a seus gostos. Os jornaisestavam repletos de anúncios de padarias, confeitarias,cafés, restaurantes e hotéis, onde se oferecia umavariedade enorme de salgadinhos, doces e pratos, emsua maioria, portugueses, mas também italianos,franceses e brasileiros. O que explica a procura e aoferta crescentes de bons cozinheiros e cozinheirassabendo cozinhar “à portuguesa”, “à francesa”, “àitaliana” e preparar massas e fazer doces.

No entanto, o preparo de comida estrangeiraimplicava na aquisição de produtos importados, maiscaros, o que encarecia sua confecção. Por esta razão,supomos que as pensões mais baratas deviam servir acozinha trivial carioca, ou seja, o invariável o feijãopreto com toicinho, farinha de mandioca e carne-seca,sempre acompanhados pelo molho de pimentamalagueta. Por bebida, água, e como sobremesa,alguma fruta da estação, a laranja e a banana sendo asmais baratas. E um cafezinho para encerrar.

O angu, também, devia fazer parte do cardápiode muitas pensões. De qualquer modo, ele continuavaa ser vendido nas ruas e já ganhara um certo status,sendo anunciado nos jornais: “Angu muito bem feito,todos os domingos na quitandeira da rua Nova doConde n. 23”57. É provável, também, que algumaspensões de comida e casas de pasto, visando ànumerosa clientela portuguesa, hajam adaptado ocardápio ao seu gosto, oferecendo o barato bacalhau,acompanhado de batata e cebola nacional vinda daregião de Nova Friburgo que, por ser de qualidadeinferior, era mais em conta que a de Lisboa. As pensões

56 CM , 17 maio 1856,Anúncios, p. 3.

57 JC, 18 set. 1864, Anúncios,p. 3.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55110

Page 111: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 111

de família mais caras certamente estavam mais aptas asubordinar seu cardápio ao gosto de uma clientelacom poder aquisitivo mais elevado.

Mas o que a nossa amostragem revela é,especialmente, a melhoria da qualidade da cozinha daspensões e dos restaurantes e hotéis, bem como dasfamílias cariocas no correr da segunda metade doséculo XIX. A demanda por cozinheiros, livres eescravos, “de forno e fogão” e “de forno, fogão emassas”, mas sobretudo por “perfeito cozinheiro”,cresce de tal maneira, que se tornou de longe,juntamente com os ajudantes de cozinha, a profissãomais requisitada no Rio de Janeiro, não só para atenderaos restaurantes, hotéis e pensões, mas também àsfamílias: “Aluga-se um cozinheiro branco, de forno efogão, que sabe ocupar o seu lugar, para casa particulare de tratamento, cozinhando à italiana, à francesa e àportuguesa; na rua dos Inválidos n. 86.”58.

Porém, havia os que preferiam, talvez por ser maiseconômico, ter uma cozinheira ou cozinheiro nopróprio local de trabalho, ao invés de comer de pensão.E se a motivação fosse diminuir os gastos com aalimentação, preferiam-se escravos velhos e mulhereslivres, porque mais baratos. Mas podia ser, também,por querer-se uma comida mais bem feita e de umanacionalidade específica. E como o salário era divididoentre vários comensais, era possível engajar, porexemplo, “um perfeito cozinheiro, branco, italiano, queentenda muito de compras, para casa de comércio;na travessa da Barreira n. 1”59.

Nos casos em que o cozinheiro era escravopróprio, certamente ele dormia no emprego e, alémde preparar as refeições, fazia os demais serviços dacasa. Quando livre, ou mesmo escravo de aluguel, elepodia dormir fora do local de trabalho. Ou, então,viver no local do trabalho, provavelmente numarelação de promiscuidade com o patrão: “Faleceu nodia 02 do corrente José Ferreira Bastos e Silva, naturalde Portugal [...] Deixou [...] à sua criada, cozinheira,

58 JC, 10 out. 1871, Anúncios,p. 1.

59 JC, 04 set. 1864, Anúncios,p. 4.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55111

Page 112: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

112 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Teresa Rosa Pinto, todo o trem de cozinha e tudoquanto existir dentro da sala dos fundos da venda,onde dormia”60.

De qualquer forma, é possível perceber-se osurgimento de uma categoria de cozinheirasautônomas vivendo sós ou dividindo um quarto comum companheiro ou uma amiga numa casa decômodos. Ou então, tornando-se amante de seu patrão,solteiro, para quem continuava a trabalhar,transformando uma relação econômica desfavorávelnuma relação afetiva vantajosa.

A invisibilidade do trabalho femininoA invisibilidade do trabalho femininoA invisibilidade do trabalho femininoA invisibilidade do trabalho femininoA invisibilidade do trabalho feminino

À medida em que a escravidão se aproximava deseu fim, homens e mulheres, livres e libertos, quedetinham o saber-fazer culinário, podiam, com maiorou menor facilidade, montar um negócio de vendade alimentos preparados, fosse uma pensão decomida, fosse uma quitanda de angu. E o espaço daprodução doméstica de moradia e de alimentaçãotendia a se feminizar. À tradicional produção domésticade alimentos comercializada por vendedoresambulantes, veio acrescentar-se a pensão de comida ea de família. E entre elas havia uma diferençafundamental. A primeira estava sujeita às variações deum mercado consumidor muito inconstante, poisdependia de variáveis pouco controláveis, como otempo instável e as mudanças climáticas, o humor daspessoas e sua predisposição momentânea para oconsumo de alimentos considerados guloseimas, aindaque não fosse esse o caso de alguns deles, como porexemplo o pão-de-ló, a princípio consumido comoacompanhante indispensável da refeição matinal e dochá da noite. Este tipo de produção se adequava aomercado consumidor das primeiras décadas do séculoXIX, muito restrito e voltado para uma clientelaformada basicamente de pessoas muito pobres quepassavam o dia na rua.

60 JC, 04 mar. 1877, Gazetilha,Testamentos, p. 4.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55112

Page 113: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 113

Os indivíduos de maior poder aquisitivo realizavamsuas refeições em casa ou em restaurantes, e, nocomércio ambulante de rua, consumiam apenasguloseimas e bebidas e frutas refrescantes. A chegadade um grande contingente de imigrantes europeuscelibatários que, ainda que pobre, era assalariado enecessitava de moradia e alimentação, subverteu aordem vigente, que não estava preparada para recebê-lo. A conseqüente crise da alimentação foi mitigada,mas somente em parte, pela proliferação devendedoras de angu, que realizavam sua produção noespaço público da rua, e continuaram a satisfazer aclientela mais pobre. Enquanto que a maior parte dapopulação pobre, constituída de “moços docomércio”, era saciada pelas pensões de comida e defamília e pelas casas de pasto, que também forneciampensão.

A vantagem que os restaurantes e casas de pastoviam no fornecimento de pensão estava em possuiruma freguesia relativamente estável, o que permitia ocálculo econômico, o balanço de suas atividades e arealização de projeções. A importância da fidelidadeda clientela pode ser medida nos anúncios queprocuram segurar o cliente oferecendo uma reduçãosignificativa àqueles que contratassem a pensão mensal.

No entanto, a invisibilidade das donas de pensãode comida e de pensão de família, apesar do seu alaridonos jornais e sua presença nos romances de época,como A Casa de Pensão de Aluízio de Azevedo, chegaa chocar. Elas sequer são mencionadas nas seletas listasdas profissões do Almanak Laemmert61. Sua pertençaao espaço doméstico e sua proximidade da cozinha,com a qual se confundiam, estigmatizaram estaprofissão que nunca adquiriu um nome próprio, sendoreferida sempre de forma impessoal – “casa particular,dá-se almoço, jantar e ceia” ou, simplesmente, “jantaresdo comércio” – e a partir do produto e não doprodutor, como no correspondente francês, o traiteur,que trata, que negocia.

61 ALMANAK, Administrativo,Comercial e Industrial(Almanak Laemmert), Rio deJaneiro, 1849-1889.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55113

Page 114: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida quente, mulher ausente: produção doméstica e comercialização dealimentos preparados no Rio de Janeiro no século XIX

114 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

No Rio de Janeiro, estas mulheres permaneceram,até às vésperas da queda da monarquia, praticamenteno anonimato, o que as livrava da mácula impressaem todo individuo pelo trabalho. E, por isso mesmo,ainda que a sua presença e a sua marca domésticaimpregnassem o lócus – a “casa de pensão” –,contaminassem o alimento – “a comida caseira” – econtagiassem o consumidor – “o pensionista” quedevia se sentir “em casa” como um membro da família,era preciso que a mulher empresária, a dona de pensão,responsável pela produção e comercialização de“jantares para fora” da casa, permanecesse invisível,envolta pela fumaça de sua cozinha.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ALMANAK, Administrativo, Comercial e Industrial (AlmanakLaemmert), Rio de Janeiro, 1849-1889.

AZEVEDO, A. de. Casa de Pensão. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

BURTON, R. F. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho.Apresentação e notas de Mario Guimarães Ferri; trad. DavidJardim Júnior. São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1976.

CORREIO Mercantil. Rio de Janeiro, RJ, 1854-1858.

Culinária Afro-Brasileira, http://www.colegiosaofrancisco.com.br

DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Trad.e notas de Sergio Millet, tomo I (v. 2), São Paulo: EDUSP/Livraria Itatiaia,1978.

EXPILLY, Charles. Mulheres e costumes do Brasill. Trad., prefácioe notas de Gastão Penalva, 2. ed., primeira publicação em 1863.São Paulo: Itatiaia, 1990.

GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil, São Paulo:Itatiaia, 1990.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55114

Page 115: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Almir Chaiban El-Kareh

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 115

JORNAL do Commercio, Rio de Janeiro, RJ, 1849-1888.

KAREH, Almir C. El; BRUIT, Héctor H. Cozinhar e comer, emcasa e na rua: culinária e gastronomia na corte do império doBrasil. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 33, jan-jun. de 2004,p. 76-96.

KAREH, Almir C. El. A pobreza pertinho do céu: moradia ealimentação dos pobres no Rio de Janeiro (1850-1889).Maracanan, Ano III, n. 1, janeiro 2005/março 2007, Rio de Janeiro:UERJ, p. 73-96.

______. Cantando espalharei por toda a parte, se a tanto meajudar engenho e arte: propaganda, técnicas de vendas e consumono Rio de Janeiro (1850-1870), Antropolítica (UFF), v. 21, p. 13-49, 2008.

KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanências noBrasil (Rio de Janeiro e Província de São Paulo). CompreendendoNotícias Históricas e Geográficas do Império e das DiversasProvíncias. São Paulo: Martins Fontes/ EDUSP, 1972.

TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma parisiense no Brasil, trad.Maria Lucia Machado, prefácio Maria Inês Turazzi, Rio de Janeiro:Capivara, 2003, p. 156-157.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55115

Page 116: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55116

Page 117: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 117

Culinária no feminino:Culinária no feminino:Culinária no feminino:Culinária no feminino:Culinária no feminino:os primeiros livros de receitas escritos poros primeiros livros de receitas escritos poros primeiros livros de receitas escritos poros primeiros livros de receitas escritos poros primeiros livros de receitas escritos por

portuguesasportuguesasportuguesasportuguesasportuguesas11111

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Resumo: O presente texto tem como objetivo o estudo dosprimeiros livros de cozinha escritos por portuguesas duranteo século XX, tendo em conta o enquadramento sócio políticoda época.

Palavras-chave: livros de culinária; mulheres; Portugal.

Abstract: The present text aims to study the first cookbookswritten by the Portuguese during the 20th century, taking intoaccount the social and political framework of that age.

Key words: Cookbooks; women; Portugal.

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, Professora Auxiliar comAgregação da Faculdade de Letras da Universidade de [email protected]

1 Texto recebido: 10/06/2008.Texto aprovado: 28/07/2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55117

Page 118: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

118 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Antes do século XX, a publicação de livros dereceitas em Portugal foi escassa2 comparativamentecom outros espaços europeus3, tais como Espanha,França, Inglaterra e Itália. De qualquer modo, duasobras marcaram o panorama nacional durante séculos,a de Domingos Rodrigues, intitulada Arte de Cozinha,publicada pela primeira vez em 16804, e a de LucasRigaud, saída dos prelos cem anos depois e intituladaNova Arte de Cozinha5. Ambas conheceram sucessivasedições e foram objecto de plágio quer em outroslivros quer em publicações periódicas de Oitocentos6.Exclusivamente dedicada à doçaria, apareceu, em 1788,a discreta Arte Nova e Curiosa para Conserveiros, Confeiteirose Copeiros7.

Foi necessário esperar pelo século XX para asmulheres portuguesas se aventurarem na escrita dadenominada “culinária de papel”, na expressão deLaura Graziela Gomes e Lívia Barbosa8.Efectivamente, se bem que, desde sempre, muitasmulheres se tenham dedicado à cozinha foi sótardiamente que passaram a produzir receituáriospublicados, embora os cadernos de receitasmanuscritos para uso particular fizessem parte doquotidiano, tanto de freiras9 como de leigas. Porexemplo, em 1818, D. José Trasimundo, futuromarquês de Fronteira e Alorna, deu conta da circulaçãode receitas familiares manuscritas. A propósito decerto jantar em Portalegre, pôde registar nas suasMemórias:

tivemos um esplêndido jantar, onde a doçaria era imensa e avelha senhora, forte conserveira, queria dar-nos a receita detodos os bons doces que, com gosto, provámos. Eu fiz aaquisição de várias receitas que trouxe a minha sogra, quemuito as apreciou, porque tinha estado em Portalegre elembrava-se sempre das guloseimas da terra 10.

2 Veja-se o elenco que dáconta das existências daBiblioteca Nacional dePortugal, Livros portugueses decozinha. 2. ed., coorde-naçãoe pesquisa bibliográfi-ca deManuela Rêgo. Lisboa:Biblioteca Nacional, 1998.

3 SIMON PALMER, Carmen.Bibliografia de la gastronomíaespañola: Notas para surealización. Madrid:Ediciones Velazquez, 1978;MENNELL, Stephen. AllManners of Food: Eating andTaste in England and Francefrom the Middle Ages to thePresent. 2. ed. Urbana andChicago: University ofIllinois Press, 1996, pp. 166-199; HYMAN, Philip;HYMAN, Mary. Imprimer laCuisine: Les Livres deCuisine en France entre leXVe et le XVIe siècles. In :FLANDRIN, Jean Paul,MONTANARI, Massimo(dir.). Histoire de l’Alimentation,Paris : Fayard, 1996, p. 643-655 ; HYMAN, Philip;HYMAN, Mary. Livres etCuisine au XIXe siècle. In :A Table au XIXe siècle. Paris :Musée d’Orsay, Flammarion,2001, p. 80-89; LAURIOUX,Bruno. Le Règne de Taillevent :Livres et pratiquesculinaires à la fin du MoyenAge. Paris : Publications dela Sorbonne, 1997; EHLERT,Trude. Les manuscritsculinaires médiévauxtémoignent-ils d’un modèlealimentaire Allemand ?. In :BRUEGL, Martin;LAURIOUX, Bruno (dir.).Histoire et identités alimentairesen Europe. [s.l.]: Hachette, 2002,p. 121-136; LEHMANN,Gilly. The British Housewife:Cookery books, cookingand society in Eighteenth-Century Britain .[s.n.]:Prospect Books, 2003.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55118

Page 119: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 119

Um primeiro paradoxo se faz notar. Isto é, sedesde sempre abundaram as cozinheiras, também éverdade que os grandes nomes da arte culinária foramquase sempre do sexo masculino. E tal verificação étanto mais verdadeira quanto se recuacronologicamente. Imagem estereotipada ou não, certoé que, segundo Leo Moulin, por toda a Europa, acozinheira estava associada à confecção dos pratostradicionais e saborosos, que se repetiam semperspectivas de inovação, enquanto o cozinheiro erao artista artesão, o monarca absoluto da cozinha,dotado de espírito inventivo11. Assim se compreendeque o século XIX tenha assistido, um pouco por todoo lado, à diferenciação clara entre o cozinheiroprofissional, o maître, e o cozinheiro doméstico,frequentemente uma cozinheira12.

Em Portugal, a situação foi semelhante à de outrospaíses europeus13. Isto é, no século XIX, foramcomuns os anúncios publicados nos jornais solicitandocozinheiras e criadas que dominassem a arte culinária,como por exemplo, “precisa-se de uma criada quesaiba bem cozinhar, dando boas abonações” ou“precisa-se de uma criada que saiba coser e engomare de uma cozinheira”14, mas o destaque foi para Joãoda Mata, o mais célebre e emblemático chef de então.Este começou por ser moço de cozinha, passou acozinheiro em várias casas de Lisboa, depois de terfeito a sua aprendizagem com especialistas franceses.Em 1848, abriu uma casa de pasto na rua do Alecrim,em Lisboa. Mais tarde, em 1858, optou por umespaço maior na rua do Ouro e, em 1864, criou oshotéis Mata. Foi autor de um opúsculo denominadoArte de Servir á Mesa ou Preceitos Uteis para Creados eDono de Casas (1872) e de um famoso livro intituladoArte de Cozinha, publicado em 1876, com quatroedições até 190015.

A culinária no feminino passava quer pelacontratação de uma cozinheira para as casas abastadasquer pelo ensino das mulheres de acordo com a secular

4 RODRIGUES, Domingos.Arte de Cozinha. Leitura,apresentação, notas eglossário por Maria daGraça Pericão e Maria IsabelFaria. [Lisboa]: ImprensaNacional-Casa da Moeda,1987 [a primeira edição éde 1680].

5 RIGAUD, Lucas, CozinheiroModerno ou Nova Arte deCozinha [...]. 3. ed. Lisboa:Oficina de Simão TadeuFerreira, 1798 [a primeiraedição é de 1780].

6 Sobre estas obras, cf.BRAGA, Isabel M. R.Mendes Drumond. Portugalà Mesa: Alimentação,Etiqueta e Sociabilidade(1800-1815). Lisboa: Hugin,2000, p. 103-114; Idem,Alimentação e CódigosComportamentais nasegunda metade do séculoXIX. In BRAGA, Isabel M.R. Mendes Drumond. DoPrimeiro Almoço à Ceia:Estudos de História daAlimentação. Sintra: ColaresEditora, 2004, p. 119-156.

7 Arte Nova e Curiosa paraConserveiros, Confeiteiros eCopeiros. Estudo eactualização do texto deIsabel M. R. MendesDrumond Braga. Sintra:Colares, 2004.

8 GOMES, Laura Graziela;BARBOSA Lívia. Culináriade Papel. Estudos Históricos,Rio de Janeiro, n. 33, p. 1-22, 2004 (consultado naversão on-line disponívelin http://www.cpdoc.fgv.br/revista/asp/dsp).

9 O Livro da Última Freira deOdivelas. Introdução,actualização do texto enotas de Maria Isabel deVasconcelos Cabral. Lisboa:Verbo, 1999.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55119

Page 120: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

120 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

trilogia de boas esposas, boas mães e boas donas decasa16. Efectivamente, ao longo dos séculos XIX e XX,em leituras recreativas com fins moralizantes e deacordo, inclusivamente, com os programas escolares,incutiam-se noções de economia doméstica visando aformação das boas donas de casa. Por exemplo, numaobra de Julie Fertiault, traduzida para português porAlfredo Pimenta, em 1877, pode ler-se “a ciência daeconomia é para a mulher a ciência por excelência.Não há situação alguma pecuniária que isente uma donade casa, uma mãe de família, da obrigação de sereconómica”17. Uma outra obra, do final do séculoXIX, igualmente traduzida, intitulada EconomiaDoméstica, dedicou muitas páginas à questão alimentar,sempre na perspectiva de definir as necessidades, osdiferentes tipos de alimentos, a maneira de os preparare os utensílios necessários para tal18.

No século XX, as mesmas práticas mantiveram-se. Sendo de salientar dois tipos de obras, umasdedicadas às senhoras endinheiradas e outras àsmulheres mais pobres. Exemplificativa do primeirogrupo é, por exemplo, um volumoso livro de Virgíniade Castro e Almeida, publicado em 1906 e comsucessivas edições, intitulado Como devo Governar a minhaCasa, no qual a cozinha, os alimentos e as práticasalimentares ocuparam papel de relevo. Aí pode ler-se:“a cozinha está completamente entregue ao cozinheiroou cozinheira, mas exige o especial cuidado da donade casa […] a cozinha é a grande consumidora dosrecursos financeiros e é preciso que dela não saiaapenas o sustento indispensável mas sim um poucode prazer, sobretudo para o dono da casa que tantocontribui para as despesas” 19. Em dado momento, aautora lembra que não é necessário ter-se um cozinheiro,pois o segredo é “saber dirigir bem a cozinheira”20,naturalmente a quem se paga menos, numa clarahierarquia masculino feminino à volta dos tachos.

Outra parcela de mulheres jovens e com poucosrecursos era visada por um pequeno manual de

10 Memórias de Marquês deFronteira e d’ Alorna D. JoséTrazimundo MascarenhasBarreto ditadas por ele próprioem 1861 . Revistas ecoordenadas por ErnestoCampos de Andrada.Edição em fac-símile daedição de Coimbra:Imprensa da Universidade,1926-1932, vol. 1: [Lisboa],Imprensa Nacional Casa daMoeda, 1986, p. 365.

11 MOULIN, Leo. Les Liturgiesde la Table : Une HistoireCulturelle du Manger et duBoire. [Paris] : AlbinMichelle, 1989, p. 184.

12 MENNELL, Stephen. AllManners of Food […], p. 200-201.

13 Para França, cf. PERROT,Michelle, Personagens ePapéis. In: ARIÈS, Philippe;DUBY, Georges (dir.).História da Vida Privada.Tradução portuguesa comrevisão científica deArmando Luís de CarvalhoHomem. vol. 4 (Da Revoluçãoà Grande Guerra). Porto:Afrontamento, 1990, p. 179-184. Para o Brasil, marcadopor outras realidades, orecurso a negros paracozinheiros era igualmenteuma realidade. Cf. EL-KAREH, Almir Chaiban,HERNÁN BRUIT, Héctor.Cozinhar e Comer, em Casae na Rua: Culinária eGastronomia na Corte doImpério do Brasil. EstudosHistóricos, Rio de Janeiro, n.33, 2004, p. 1-23 (consultávelna versão on-linedisponível in http://www.cpdoc.fgv.br/revista/asp/dsp)..

14 O Grátis: Jornal deAnnuncios e do Comercio,n. 33, de 1 mar. 1837.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55120

Page 121: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 121

Economia Doméstica. Este, destinado às alunas dasterceira e quarta classes do ensino primário (actualterceiro e quarto anos do ensino básico), publicadoem 1928, em harmonia com a legislação daquele ano21,definiu a dita economia doméstica, como “a ciênciada felicidade e da prosperidade da família”22, nelaenglobando, entre os deveres da dona de casa, “sabercozinhar, fazer a barrela, olhar pela casa, talhar, coser,consertar as peças de vestuário simples da família econhecer a higiene, que é a arte de conservar e melhorara saúde e de evitar as doenças”23. As alunas da terceiraclasse acabavam o ano com a matéria do capítulo 10,sobre a cozinha, a baixela de preparar os alimentos,os utensílios e sua conservação e, finalmente, a lavagemda louça. Assim, recomendava-se que a cozinha, fossearejada, iluminada e asseada, que o trem de cozinhafosse composto por tábua de picar, tábua de amanharpeixe, tábua de estender massas, máquina de prepararpicados, espremedor, batedeira para ovos, passador,funil, aparelho para cortar batatas, facas e serrote;sugeria-se especialmente louça de barro e de alumínioe indicavam-se os produtos específicos para a limpezade determinados utensílios (por exemplo, sal e vinagrepara limpar cobre e água carbonatada para barro)24.A matéria da quarta classe era toda dedicada àalimentação, nomeadamente objectivos da mesma,necessidades humanas, escolha dos alimentos, refeições,papel das mulheres na luta contra o alcoolismo,conservação dos alimentos, receitas de ovos, sopas,carne e peixe, além de indicações acerca das compras.Sobressaem conselhos acerca da maneira de poupar.Por exemplo, “ao caldo de porco juntam-se batatas,feijões, couves que dizem bem com o excesso degordura do caldo. Obtém-se, assim, duma só vez,uma refeição inteira e consegue-se desta formaeconomizar tempo e dinheiro”25. Um capítulo éintegralmente dedicado ao aproveitamento dos restosde comida, aliando conselhos práticos e reflexõesmorais, ligadas à importância da poupança.

15 FERRO, João Pedro.Arqueologia dos hábitosalimentares. Introdução deMARQUES, A. H. deOliveira. Lisboa: DomQuixote, 1996, p. 127-129.

16 BRAGA, Isabel M. R.Mendes Drumond. AEducação Feminina emPortugal no século XVIII:Tradição ou Inovação. InBRAGA, Isabel M. R.Mendes Drumond. Cultura,Religião e Quotidiano: Portugalséculo XVIII. Lisboa: Hugin,2005, p. 135-163.

17 FERTIAULT, Julie. Afelicidade na família: Cartas d’uma Mãe a sua Filha.Tradução de AlfredoPimenta. Porto: ErnestoChardron. Braga: EugénioChardron, 1877, p. 69.

18 NEWSHOLME, Arthur;SCOTT, Margarida Leonor.Economia domestica com ospreceitos de hygiene applicados ávida e arranjos da casa.Tradução de Alberto Telles.Lisboa: Tipografia da Acade-mia Real das Ciências, 1893.

19 ALMEIDA, Virgínia deCastro e. Como devo governara minha casa. Modificação eadaptação do livro italianode Giulia FerrarisTamburini. 3. ed. Lisboa:Clássica, 1924, p. 135.

20 Ibidem, p. 136.21 Concretamente decreto n.º

16077, publicado no Diáriodo Governo, 1.ª série, n. 247,de 26 out. 1928.

22 Economia Doméstica: 3.ª e 4.ªClasses para o EnsinoPrimário Elementar. Porto:Figueirinhas, 1928, p. 3.

23 Ibidem, p. 4.24 Ibidem, pp. 27-30.25 Ibidem, p. 51.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55121

Page 122: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

122 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Além dos manuais escolares e dos livros deconselhos úteis para o governo da casa dedicados àsmulheres, em algumas revistas, mesmo de caráctermundano, estas temáticas chegaram a aparecer. Tal éo caso, por exemplo, da ABC. Durante os últimosanos da Primeira República (1910-1926), a revistaincluiu nas suas páginas alguns artigos sobrealimentação e, mais raramente, etiqueta ou, maisgenericamente, sobre os cuidados do lar. Não eramestas as temáticas preferidas desta revista que nuncateve nenhuma secção sobre estes assuntos mas, mesmoassim, de forma esporádica, incluiu alguns artigos.Nestas parcas contribuições, as preocupaçõesabrangeram sobretudo a área da culinária, através daindicação de algumas receitas, uma parte delas de teorregional, sem esquecer a apresentação e decoração damesa das refeições, em particular das familiares26.

Durante o Estado Novo (1933-1974), Salazar nãodescurou as mulheres tentando mantê-las em casa emoldá-las de acordo com os seus ideais políticos27.Assim, os manuais escolares dedicados ao sexofeminino fizeram eco do ideal educativo queprivilegiava o governo da casa28, ao mesmo tempoque se tornou obrigatória a inscrição na MocidadePortuguesa Feminina das jovens entre os sete e os 14anos e das alunas que frequentassem o primeiro ciclodo liceu, por decreto de 193729. A organização deveriaeducar a mulher nas perspectivas moral, cívica, física esocial. Era nesta última vertente que se incluía a vidadoméstica. A presidente do Movimento, MariaGuardiola, não deixou de notar que toda a mulherdeveria ser educada para defender a trilogia Deus,Pátria e Família30.

A Mocidade Portuguesa Feminina levava a efeitopublicações de entre as quais vale a pena referir umSuplemento Auxiliar ao Programa de Culinária, aparecidoem 196931. Nele, alude-se a dois tipos de mulheres, asque faziam as tarefas domésticas e as que assuperintendem. Por exemplo, logo no inicio da

26 BRAGA, Isabel M. R.Mendes Drumond.Alimentação e PublicidadeAlimentar na Revista ABC(1920-1926). In: SILVA,Carlos Guardado da(Coord.). Turres Veteres IX.História da Alimentação.Lisboa: Colibri. TorresVedras: Câmara Municipal,2006, p. 215-225.

27 Sobre esta realidade, cf.BELO, Maria; ALÃO, AnaPaula; CABRAL, IolandaNeves. O Estado Novo e asMulheres. In: O EstadoNovo: das origens ao fim daautarcia (1926-1959), v. 2,Lisboa: Fragmentos, 1987, p.263-279.

28 MÁXIMO, Maria Elsa dosSantos Costa. A PolíticaEducativa no Estado Novo emRelação à Mulher, no Tempo doMinistro António FariaCarneiro Pacheco (1936-1940):Contributo para a Históriado Género em Portugal.Lisboa: Dissertação deMestrado em Didáctica daHistória, 2007.

29 Trata-se do decreto n.º28262, de 8 de Dezembrode 1937. Cf. PIMENTEL,Irene Flunser. História dasorganizações femininas doEstado Novo. Lisboa: Temase Debates, 2001, p. 202.

30 Ibidem, p. 220.

31 Suplemento Auxiliar doPrograma de Culinária.Lisboa: MocidadePortuguesa Feminina, 1969.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55122

Page 123: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 123

brochura, pode ler-se: “mesmo dispondo de umacozinheira e, embora o emprego (se o tiver) lhe ocupegrande parte do seu tempo, não deve [a mulher] deixarde aproveitar alguns momentos diários para dar umpouco de assistência à cozinha”32. Seguem-seinformações acerca das condições físicas das cozinhas,dos materiais para preparar os alimentos e higienizaro equipamento, além da explicação técnica dos termoscozedura, guisado, estufado, assado, grelhado, fritura,salteado e pontos de açúcar, tendo em conta quealimentos poderiam sofrer determinadas operações ecomo essas mesmas operações deveriam ser levadasa efeito.

A análise de um caderno de actividades circum-escolares, do final do Estado Novo, concretamentedo ano lectivo de 1970-1971, pertença de Isabel MariaHenriques Pedro, então aluna do Liceu NacionalInfanta D. Maria (Coimbra), mostra-nos a vertenteprática da transmissão dos conhecimentos formativosdas futuras donas de casa33. Efectivamente, asactividades circum-escolares eram compostas por aulasteóricas sobre economia doméstica, governo da casae alimentação e aulas práticas de culinária, durante asquais se procedia à elaboração de um prato (nãoparticularmente requintado) e, enquanto aquele cozia,era ditada a receita, lavada a louça e arrumada a cozinha.No final, eram dadas indicações acerca do modo deapresentar o prato, finalizando a aula prática com aprova. As receitas nem sempre indicam separadamenteingredientes e processos de execução, as quantidadese os tipos de carne ficaram quase sempre omissas talcomo os tempos de cozedura e os tipos de fornos.De notar ainda que a maior parte das receitas de carneera preparada com aquele ingrediente passado, o que,naturalmente, pressupõe a possibilidade deaproveitamento de restos.

32 Ibidem, p. 5.

33 Estas informações foramobtidas através de umtrabalho práticoapresentado por IsabelMaria Henriques Pedro, noseminário de Temas deHistória Moderna, doMestrado em Didáctica daHistória, da Faculdade deLetras da Universidade deLisboa, no ano lectivo de2007-2008, por nósleccionado.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55123

Page 124: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

124 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

A culinária aparece, pois, muito mais ligada àsatisfação das necessidades básicas das famílias do queà ostentação, ao luxo e à criatividade proporcionadospelos chefs. Assim, no quadro doméstico reinam ascozinheiras que são simultaneamente as donas de casa,ou as cozinheiras que servem pessoas mais abastadas.A coadjuvar esta verificação, atente-se na publicidadeque, de forma sistemática, explora a ligação entre oselementos do sexo feminino e a cozinha, no que serefere aos diferentes produtos que se relacionam coma preparação e confecção dos alimentos.

Figs 1 e 2 - Capa do Caderno de Actividades Circum-Escolares e Receita do mesmo Cadernopertença de Isabel Pedro, enquanto aluna do Liceu Nacional Infanta D. Maria (1970-1971).

(Arquivo Particular).

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55124

Page 125: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 125

2. Apesar do quadro em questão não ser o maisfavorável à produção de livros de cozinha no femininonem todas as mulheres se limitaram a “preparar asreceitas de cabeça”. De facto, no século XX, algumaspassaram à impressão das suas criações. Sem pretensõesde exaustividade, quer de autores quer de obras, eexcluindo compilações, colunas de jornais e agendascom receitas de cozinha, salientaremos as maisrelevantes obras escritas por mulheres durante a últimacentúria, centrando-nos nas pioneiras.

É certo que a I Guerra Mundial (1914-1918)implicou uma simplificação dietética, aliada à escassezdos géneros alimentares e ao consequenteracionamento, o que levou a alterações nos hábitosgastronómicos, com a diminuição de pratos porrefeição34, pondo fim à longa herança de sumptuosasrefeições quotidianas entre os abastados. Mas, é certo

Figs 3 e 4 – Publicidade que associa mulheres e preparações alimentares (Lisboa, Biblioteca Nacional).

34 MARQUES, A. H. deOliveira. A Alimentação. In:MARQUES, A. H. deOliveira (Coord.). Portugal daMonarquia para a República(Nova História de Portugal,direcção de Joel Serrão eA. H. de Oliveira Marques,v. 11). Lisboa: Presença,1991, p. 619.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55125

Page 126: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

126 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

também que é antes do conflito bélico que aparece oprimeiro livro de doçaria publicado por uma mulher.Trata-se de Sofia de Sousa, a autora do Real ConfeiteiroPortuguês e Brasileiro, publicado em 190435, obra tributáriade uma outra anónima publicada no século XIX, OCosinheiro dos Cosinheiros36, consequentementeapresentando um conjunto de receitas não inovadoras.

Se passarmos para os livros de cozinha maisgeneralistas, então a primeira autora foi Isalita, comDoces e Cosinhados: Receitas Escolhidas, publicado em 1925e com 25 edições até 197737. Na obra, a autora propôsmenus diários de almoços e jantares quotidianos e derefeições mais sumptuosas, uma lista de hors-d’oeuvres eum vasto conjunto de receitas agrupadas nas seguintestipologias: sopas, molhos, ovos, peixe, entradas, soufflés,carnes, aves e caça, galantines, mousses, aproveitamentosde carnes assadas e aves, massas, massas italianas,batatas, tomates, pimentos, alcachofras, espargos,beringelas, cenouras, couves, couve-flor, pepinos,chuchus, espinafres, favas, ervilhas, feijão, alfaces,castanhas, brócolos, nabos, arroz, saladas, geleia, docesde fruta, pudins, doces de fim de jantar, soufflés, massas(para doces), doces para chá, bolachas, biscoitos, pãespara chá e sorvetes. Como se pode verificar, Isalitacomeçou pelos pratos salgados e terminou nos doces,criando muitas subdivisões nas preparações à base delegumes. A obra é importante, serviu de inspiração aoutros livros e foi objecto de cópia por parte deautoras menores. De notar algumas constantes entreos menus de almoços e jantares.

35 SOUSA, Sofia de. Realconfeiteiro português e brasileiro.Lisboa: Livraria ClássicaEditora de A. M. Teixeira,1904.

36 O cosinheiro dos cosinheiros:Colecção de mais de 1000Receitas. Lisboa: TipografiaLuso-Britanica, 1870.

37 Isalita, Dôces e cosinhados:Receitas Escolhidas. Lisboa:Centro Gráfico Colonial,1925.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55126

Page 127: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 127

Isalita, de cujos menus propostos escolhemos algunspatentes no quadro acima, investiu sobretudo nosjantares compostos sempre por sopa e, regra geral,prato de peixe, prato de carne, acompanhamento delegumes e sobremesa. Quando não havia prato depeixe a sopa era preparada com alguma espéciemarítima. Os almoços apresentados eram mais sóbrios.Não apresentaram nem sopa nem sobremesa masinsistiram ou num prato de peixe e num de carne ouem preparados de ovos, hortaliças e carne ou ovos,massas e carne.

Quadro IExemplos de Menus de Almoço e de Jantar propostos por Isalita

Menus de Almoço Menus de Jantar

Peixe ensopado com ervilhasEntrecôte florentino com batatas à inglesa

Sopa de camarãoCroquetes de carnePato assado com batatas palhaEsparregado de espinafresMaçãs no forno

Ovos com cervejaSoufflé de várias hortaliçasCoelho à caçador

Sopa de grão com espinafresFiletes de linguado MarinettaRolo de carne picada com hortaliça àjardineiraPudim de couve-florCreme de baunilha

Bacalhau com queijoBifes à Sorel com batatas salteadas

Sopa de puré de cenouras e tomatesPudim de peixeLombo de porco assadoPepinos recheadosTigelinhas finas

Ovos mexidos com espinafresGnocci ao gratinPombos fritos à burguesa

Sopa de pargoRissóis de galinhaLombo à tirolêsFavas estufadas com coentrosDoce de castanhas inteiras

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55127

Page 128: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

128 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Cronologicamente próxima surgiu Agarena deLeão, com a obra A Cosinha Familiar, publicada em192638. Em termos de título e de conteúdo, a autoramarcou o toque dos livros de cozinha escritos a pensarnas donas de casa que tinham que preparar refeiçõescom poucos recursos, toque esse que vai manter-sealém dos efeitos da II Guerra Mundial (1939-1945).Por seu lado, em 1929, Alinanda ficou conhecida pelaArte de Bem Comer39, com toque francês, desenhos parafacilitar determinadas preparações e fotografias a pretoe branco de alguns pratos já preparados. Alinanda teráinspirado, anos depois, o texto de Auronanda, umaobra um pouco mais sofisticada.

A partir dos anos 30, Rosa Maria, de quem nadase sabe, marcou gerações de mulheres na cozinha,através das suas diferentes obras, com destaque paraA Cosinheira das Cosinheiras (com 30 edições em 1982)40.Esta autora popularizou-se nos anos 50 através detítulos como 100 Maneiras de Cozinhar Acepipes, Molhose Saladas41, 100 Maneiras de Cozinhar Bacalhau42, 100Maneiras de Cozinhar Aves43, 100 Maneiras de CozinharOvos44, 100 Maneiras de Cozinhar Peixes45, 100 Maneirasde fazer Sopas46, 100 Maneiras de Cozinha Vegetariana47 e100 Maneiras de Fazer Doces Económicos48 (todos comedições até ao final do século XX). Se bem que, emboa parte dos casos, se desconheça a data da primeiraedição da maioria das suas obras, sabemos que noperíodo entre as duas Grandes Guerras, já Rosa Mariapublicava livros apelando aos baixos custos. Sãoexemplos, Como se Almoça por 1$50: 100 AlmoçosDiferentes49, saída em 1933, e Como se janta por 3$00:100 Jantares Diferentes50, cuja data de publicação sedesconhece.

Rosa Maria terá tido como rival outra autora suacontemporânea, pois, em data desconhecida, mas entreos anos 30 e 50, apareceram as populares e pequenasobras de Clara T. Costa: Guia da Cosinheira Familiar51,cuja nona edição é de 1952 e a 10.ª de 1962, e ADoceira Familiar : Método Práticto de Fazer Doces, Pudins,

38 LEÃO, Agarena de. Acosinheira familiar. Lisboa:Tipografia a Rápida, 1926.

39 ALINANDA. Arte de bemcomer. Porto: Domingos deOliveira, 1929.

40 MARIA, Rosa. A cosinheiradas cosinheiras: higienealimentar e mais de 500receitas para cozinhar, fazerdoces, gelados, compota,etc. 30. ed. Porto:Civilização, 1982.

41 MARIA, Rosa. 100 maneirasde cozinhar acepipes, molhos esaladas. Porto: LivrariaCivilização, 1956.

42 MARIA, Rosa. 100 maneirasde cozinhar bacalhau. Porto:Livraria Civilização, 1956.

43 MARIA, Rosa. 100 maneirasde cozinhar aves. Porto:Livraria Civilização, 1956.

44 MARIA, Rosa. 100 maneirasde cozinhar ovos. Porto:Livraria Civilização, 1956.

45 MARIA, Rosa. 100 maneirasde cozinhar peixes . Porto:Livraria Civilização, 1961.

46 MARIA, Rosa. 100 maneirasde fazer sopas. Porto: LivrariaCivilização, 1965.

47 MARIA, Rosa. 100 maneirasde cozinha vegetariana para usodas famílias. Porto: LivrariaCivilização, 1956.

48 MARIA, Rosa. 100 maneirasde fazer doces económicos: bolos,pudins, compotas, sorvetes,etc. Lisboa: EmpresaLiterária Universal, [1958].

49 MARIA, Rosa. Como se almoçapor 1$50: 100 Almoçosdiferentes. Lisboa: EmpresaLiterária Universal, 1933.

50 MARIA, Rosa. Como se jantapor 3$00: 100 jantaresdiferentes. Lisboa: EmpresaLiterária Universal, [s.d.].

51 COSTA, Clara T.. Guia da

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55128

Page 129: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 129

Sorvetes, Compotas52, cuja sétima edição, revista eaumentada é de 1957 e a oitava de 1964, obras que sepautaram por directrizes e interesses semelhantes.

As obras de Rosa Maria, mormente A Cosinheiradas Cosinheiras, pretenderam aliar higiene, ideias sobrenutrição, sobriedade alimentar, saúde, receitas práticase economia. Dirigidas às donas de casa, visavamfacilitar as tarefas daquelas no que à alimentaçãofamiliar se referia. A autora teve em conta asnecessidades calóricas das pessoas de acordo com aidade, a actividade física e as estações do ano,caracterizou os alimentos e propôs regimes específicospara diabéticos, artríticos e ainda os que apresentamproblemas de estômago, fígado e rins. Antes de passaràs receitas, apresentadas por ordem alfabética,primeiro os salgados e depois os doces, aindaapresentou um capítulo acerca da necessidade decozinhar os alimentos. Em certos momentos nãofaltaram considerações de teor moral. Por exemplo,ao referir-se ao vinho, explicitou: “do abuso do vinhotêm resultado terríveis enfermidades, como a deliriumtremens, a loucura, doenças de fígado, etc. e não menornúmero de desordens e desgraças de ordem moral,que têm levado muitos ao degredo, à penitenciária eao patíbulo”53.

Rosa Maria, logo no início das receitas salgadas,incluiu açorda à andaluza, açorda de bacalhau àalentejana e açorda à portuguesa. Recordemos que estaúltima era um prato consumido por pobres eremediados desde sempre, além de ser o prato nacionalinfantil. Por exemplo, em O Cozinheiro Indispensavel, obrado final do século XIX, pode ler-se: “a açorda é umpreparado de cozinha muito usado em grande partedo nosso país e fora dele e com que em muitaslocalidades alimentam de preferência as crianças, desdeque as separam do leite até que atingem certa idade”54.Por outro lado, já antes, nos anos 20 da mesma centúria,a inglesa Marianne Baillie sublinhou, em tom crítico,que as crianças portuguesas eram alimentadas

cosinheira familiar. 9. ed.Lisboa: Empresa LiteráriaUniversal, [1952].

52 COSTA, Clara T.. A doceirafamiliar : método práctico defazer doces, pudins,sorvetes, compotas… 7. ed.,rev. e aum. Lisboa: EmpresaLiterária Universal, 1957.

53 MARIA, Rosa. A cosinheiradas cosinheias […], p. 13.

54 O cozinheiro indispensavel:Repositorio dos melhoresprocessos de preparar asmais saborosas iguarias […].Porto: LivrariaInternacional de ErnestChardron, 1894, p. 21.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55129

Page 130: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

130 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Rosa Maria apresentou uma novidade pois serviu-se de uma forma poética56 para dar a receita da açordaà portuguesa:

Pão de trigo, sem ter sombra de joio;Azeite do melhor, de Santarém;Alho do mais pequeno, e do saloio;Ponha no lume brandinho e mexa bem;

Sal que não seja inglês – porque é remédio,Toda a criança assim alimentadaÉ capaz de deitar abaixo um prédioQuatro meses depois de desmamada.

Fig. 5 – Capa de uma das obras de culinária portuguesa maispopulares do século XX , da autoria de Rosa Maria

(Lisboa, Colecção Particular).

exclusivamente com uma espécie de papa feita compão, água, azeite e alho, isto é, açorda55.55 BAILLIE, Marianne. Lisbon

in the years 1821, 1822, 1823,v. 1, Londres: John Murray,1824, p. 111.

56 MARIA, Rosa: A cosinheiradas cosinheiras […], p. 23.Comentem-se algunspassos da receita,nomeadamente o uso doazeite da mais emblemáticaregião produtoraportuguesa, o do alhoproveniente da regiãosaloia, isto é, à volta deLisboa, especialmente azona de Sintra; e do salportuguês, de grandequalidade e objecto deexportação desde cedo.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55130

Page 131: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 131

Com este bom pitéu, sem refogados,Invenção puramente lusitana,Os ilustres varões assinaladosPassaram além da Taprobana.

Fortes p’la açorda, demos nós aos mouros,Como se sabe, uma fatal derrota;E abiscoitámos majestosos lourosPara os nobres troféus de Aljubarrota.

A assinalar o final da II Guerra Mundial, a cantoralírica Berta Rosa Limpo (1981), publicou em 1945, OLivro de Pantagruel, um clássico que, em 1997, deu aoprelo a 63a. ed., com revisão e actualização de MariaManuela Limpo Caetano. Esta é uma obra ímpar nopanorama editorial culinário português, contandooriginariamente com 1500 receitas, muitas delas decunho vincadamente internacional. Ao contrário dequase todos as obras anteriores, este livro de culinárianão foi escrito a pensar nos remediados. No prefácioda primeira edição, a autora confessou a sua paixãopela culinária, a primeira compilação das receitas defamília, que levou a efeito em 1914, e o contactodirecto com chefes cozinheiros franceses e italianosdos diferentes hotéis europeus por onde passava emdigressão, que lhe forneceram receitas diversas. Deuigualmente conta que todas as receitas haviam sidoexperimentadas e que todas davam bons resultadosse seguidas as instruções à risca57.

Nos anos 50, destaque para Auronanda com a Artede bem Saborear, saída dos prelos em 195258, umvolumoso livro que faz lembrar o de Alinanda e o deBerta Rosa Limpo e em cujo prefácio se alude àimportância da culinária para agradar ao marido. Aobra refere a preparação dos alimentos e o materialde cozinha e de limpeza, incluiu o desenho de diversosobjectos para preparar os alimentos, de um glossário,onde aparecem termos portugueses e franceses (comopor exemplo chifonnade, ciseler, glacer…), uma tabela de

57 LIMPO, Berta Rosa: O Livrode Pantagruel. Lisboa: Círculode Leitores, 1997, que incluio prefácio da primeiraedição em páginas nãonumeradas.

58 AURONANDA. Arte de bemsaborear. Porto: LivrariaSimões Lopes, 1952.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55131

Page 132: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

132 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

equivalência de pesos e medidas e muitas receitas decarácter internacional, a par de estampas coloridas depratos preparados.

Na mesma década de 50, Libânia de Sousa Alves,publicou pequenas obras de cozinha e de doçaria,nomeadamente As Melhores Receitas de Cozinha59, AsMelhores Receitas de Cozinha Natural60 e Doces Seleccionados61,enquanto Mirene ficou conhecida como autora doTesouro das Cozinheiras62, cuja terceira edição é de 1957.Estas autoras e estas obras pouco ou nadaacrescentaram de relevante ao panorama editorial deentão, o mesmo se pode afirmar em relação aos livrosde doçaria de Maria Olímpia Areal: Doces Familiares63,esta com quatro edições, e O Meu Livro de Doces64.

Finalmente, referência para Maria de LurdesModesto (1930-…), a mais mediática autora, comvasta obra publicada desde a década de 50 e cuja famacomeçou por se alicerçar em programas de televisão,onde preparava receitas em directo. Foi professoraem várias escolas femininas, manteve programas deculinária na rádio e tem colaborado activamente emjornais e revistas com colunas de cozinha. Entre osseus livros destaque para Receitas Escolhidas65 e paraCozinha Tradicional Portuguesa66, uma área que temprivilegiado em termos de divulgação. Trata-se de umlivro ilustrado e organizado tendo em conta asdiferentes regiões do país, incluindo os arquipélagosda Madeira e dos Açores67.

Não sendo, no início do século XX, a culináriaentendida como algo particularmente importante, doponto de vista da obtenção de notoriedade social,nota-se, tanto no feminino como no masculino, orecurso a anagramas e a pseudónimos para escondero verdadeiro nome. Assim, Agarena de Leão é oanagrama de Helena de Aragão, enquanto Auronandaé o pseudónimo de Aurora Jardim Aranha, Isalita ode Maria Isabel Campos Henriques, Mirene o de MariaIrene Andrade Braga da Silva Teixeira e FrancineDupré, o de Maria de Lurdes Modesto que, entretanto

59 ALVES, Libânia de Sousa.As melhores receitas de cozinha.[s.l .] : Edição do Autor,[1955].

60 ALVES, Libânia de Sousa.As melhores receitas de cozinhanatural. [s.l .] : Edição doAutor, [1956].

61 ALVES, Libânia de Sousa.Doces seleccionados. Porto:Edição do Autor, [1955].

62 MIRENE. Tesouro dascozinheiras. Porto: PortoEditora, [s.d.].

63 AREAL, Maria Olímpia.Doces familiares. 2. ed. Porto:Asa, 1959. Desconhecemosa data da primeira edição.

64 AREAL, Maria Olímpia. Omeu livro de doces: receitasseleccionadas eexperimentadas. Porto:Edição do Autor, 1953.

65 MODESTO, Maria deLurdes. Receitas escolhidas.Lisboa: Verbo, 1978.

66 MODESTO, Maria deLurdes. Cozinha TradicionalPortuguesa. 3. ed. Lisboa:Verbo, 1982.

67 Sobre Maria de LurdesModesto, cf. http://www.iplb.pt (Maria deLurdes Modesto) consul-tado a 13 abr. 2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55132

Page 133: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 133

3. Ao longo do século XX, as mulheres portuguesasdespertaram para a publicação de livros de cozinha.Das autoras, com excepção de Maria de LurdesModesto, pouco ou nada sabemos, contudo, as obrasque existem permitem levar a efeito estudos maisdesenvolvidos. De qualquer modo, algumas ideiasparecem claras. As autoras do princípio do séculoforam particularmente tributárias das obras escritasna centúria de Oitocentos, recolhendo e copiando oque de mais simples essas obras apresentavam. Poroutro lado, como as principais preocupações de umaboa parte das autoras foram no sentido de produzirtextos básicos para o serviço das donas de casa,tentando fornecer receitas apetitosas e económicas, a

o abandonou, acompanhando o crescente interesse epopularidade que o público lhe foi dispensando.

Fig. 6 – Capa de uma das obras de culinária deMaria de Lurdes Modesto

(Lisboa, Colecção Particular).

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55133

Page 134: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

134 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

que não foram alheios a austeridade, a escassez dealimentos, o racionamento e a pobreza de uma partesignificativa da população, em especial mas nãoexclusivamente durante os períodos de guerra, aspropostas apresentadas passaram muito pelainsistência na simplicidade e sobriedade, ao mesmotempo que forneceram indicações nutricionais, o quenão deixava de ser coadjuvado na publicidade e noensino ministrado às raparigas na área da economiadoméstica, uma matéria sob a atenção da MocidadePortuguesa Feminina. No final do século, tudo mudou,veja-se o caso de Maria de Lurdes Modesto que, nocontexto português, conheceu alguma mediatização,a par de outras autoras que apareceram a partir dosanos 80, se bem que sem conseguirem destronar apioneira da culinária na televisão e na rádio.

Tal como nos manuais de economia doméstica,nos livros de receitas também se perfilam duas grandeslinhas. As obras sofisticadas, com referências à culináriainternacional, mormente à francesa e, secundariamenteà italiana, e as obras mais populares. Entre as primeirasrefiram-se as de Alinanda, Berta Rosa Limpo eAuronanda, pois todas as restantes visaram um públicomais modesto, mas desejoso de aprender a cozinhar ea poupar, a bem do equilíbrio do orçamento familiar.Note-se que um autor, que comungava destes ideais eescreveu obras afins às referidas, Manuel da Mata, assinouos seus livros como Febrónia Mimoso, eventualmentepara chegar mais facilmente às donas de casa.

A par dos livros das autoras referidas tambémdeveremos juntar os que foram escritos e assinadospor homens, quer os generalistas quer osexclusivamente dedicados à doçaria, e cujos conteúdostambém não se afastam cabalmente do que foienunciado ao longo deste estudo. Efectivamente, aculinária no masculino, conheceu alguns nomes comrelevância, seja-nos permitido lembrar Carlos Bentoda Maia e Olleboma, isto é, António Maria de OliveiraBelo, sem esquecer Emanuel Ribeiro, que só se

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55134

Page 135: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 135

interessou por doçaria. Nestes casos, particularmentenos dois primeiros, estamos perante obras quemarcaram gerações de cozinheiros.

Finalmente realcemos três aspectos: por um lado,a longevidade de muitos títulos com sucessivas ediçõesao longo dos tempos, o que se relaciona com o factode o Estado Novo ter incutido na população não sóa trilogia Deus, Pátria e Família como ter incentivadoquer a prática da poupança familiar quer a má vontadeface à mudança, assegurando que sucessivas geraçõescontinuassem a adquirir as mesmas obras,reproduzindo, assim, os mesmos modelos, realidadealiás que ultrapassou o final da Ditadura; por outrolado, o pouco apreço da culinária enquanto actividadeque estava longe de assegurar a quem a praticava osucesso mediático que os actuais chefs alcançam. Ouseja, durante uma boa parte do século XX, a culináriano feminino era, antes de mais, a possibilidade de bemalimentar as famílias, uma tarefa eminentementepertença das mulheres e, em especial, das donas decasa; e, finalmente, a necessidade de se proceder aoestudo comparativo de todas as obras de culináriapara, perceber as inspirações e os plágios, tãofrequentes nestas matérias. Para isso, o apuramentodas datas das primeiras edições e a comparação dosreceituários, quer ao nível dos títulos quer dosconteúdos, revela-se fundamental enquanto linha deinvestigação susceptível de aprofundar osconhecimentos nestas matérias.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

FONTES

ALINANDA. Arte de bem comer. Porto: Domingos de Oliveira,1929.

ALMEIDA, Virgínia de Castro. Como devo governar a minha casa.Modificação e adaptação do livro italiano de Giulia FerrarisTamburini. 3. ed. Lisboa: Clássica, 1924.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55135

Page 136: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

136 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

ALVES, Libânia de Sousa. As melhores receitas de cozinha. [s.l.]:Edição do Autor, [1955].

ALVES, Libânia de Sousa. Doces seleccionados. Porto: Edição doAutor, [1955].

ALVES, Libânia de Sousa: As melhores receitas de cozinha natural.[s.l.], Edição do Autor, [1956].

AREAL, Maria Olímpia. Doces familiares. 2. ed. Porto: Asa, 1959.

AREAL, Maria Olímpia. O meu livro de doces: receitas seleccionadase experimentadas. Porto: Edição do Autor, 1953.

ARTE nova e curiosa para conserveiros, confeiteiros e copeiros. Estudoe actualização do texto de Isabel M. R. Mendes Drumond Braga.Sintra: Colares, 2004.

AURONANDA. Arte de bem saborear. Porto: Livraria SimõesLopes, 1952.

BAILLIE, Marianne. Lisbon in the years 1821, 1822, 1823. v. 1.Londres: John Murray, 1824.

COSINHEIRO (O) dos cosinheiros: colecção de mais de 1000receitas. Lisboa: Tipografia Luso-Britanica, 1870.

COSTA, Clara T. A doceira familiar : método práctico de fazerdoces, pudins, sorvetes, compotas… 7. ed., rev. e aum. Lisboa:Empresa Literária Universal, 1957.

COSTA, Clara T. Guia da Cosinheira Familiar. 9. ed. Lisboa:Empresa Literária Universal, [1952].

COZINHEIRO (O) Indispensavel: repositorio dos melhoresprocessos de preparar as mais saborosas iguarias […]. Porto:Livraria Internacional de Ernest Chardron, 1894.

DIÁRIO do Governo, 1.ª série, n. 247, de 26 de Outubro de 1928.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55136

Page 137: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 137

ECONOMIA Doméstica: 3.ª e 4.ª Classes para o Ensino PrimárioElementar. Porto: Figueirinhas, 1928.

GRÁTIS (O): Jornal de Annuncios e do Comercio, n. 33, de 1 deMarço de 1837.

ISALITA. Dôces e cosinhados: receitas escolhidas. Lisboa: CentroGráfico Colonial, 1925.

LEÃO, Agarena de. A cosinheira familiar. Lisboa: Tipografia aRápida, 1926.

LIMPO, Berta Rosa. O Livro de Pantagruel. Lisboa: Círculo deLeitores, 1997.

LIVRO (O) da última freira de Odivelas. Introdução, actualizaçãodo texto e notas de Maria Isabel de Vasconcelos Cabral. Lisboa:Verbo, 1999.

MARIA, Rosa. 100 maneiras de cozinha vegetariana para uso dasfamílias. Porto: Livraria Civilização, 1956.

---------------. 100 maneiras de cozinhar acepipes, molhos e saladas. Porto:Livraria Civilização, 1956.

---------------. 100 maneiras de cozinhar aves. Porto: Livraria Civilização,1956.

---------------. 100 maneiras de cozinhar bacalhau. Porto: Livraria Civi-lização, 1956.

---------------. 100 maneiras de cozinhar ovos. Porto: Livraria Civilização,1956.

---------------. 100 maneiras de cozinhar peixes. Porto: Livraria Civilização,1961.

---------------. 100 maneiras de fazer doces económicos: bolos, pudins,compotas, sorvetes, etc. Lisboa: Empresa Literária Universal,[1958].

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55137

Page 138: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

138 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

MARIA, Rosa. 100 maneiras de fazer sopas. Porto: LivrariaCivilização, 1965.

---------------. A cosinheira das cosinheiras: higiene alimentar e mais de500 receitas para cozinhar, fazer doces, gelados, compota, etc.30. ed. Porto: Civilização, 1982.

---------------. Como se almoça por 1$50: 100 almoços diferentes. Lisboa:Empresa Literária Universal, 1933.

---------------. Como se janta por 3$00: 100 jantares diferentes. Lisboa,Empresa Literária Universal, [s.d.].

MEMÓRIAS de Marquês de Fronteira e d’ Alorna D. José TrazimundoMascarenhas Barreto ditadas por ele próprio em 1861. Revistas ecoordenadas por Ernesto Campos de Andrada. Edição em fac-símile da edição de Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926-1932, v. 1: [Lisboa], Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986.

MIRENE. Tesouro das cozinheiras. Porto: Porto Editora, [s.d.].

MODESTO, Maria de Lurdes. Cozinha tradicional portuguesa. 3.ed. Lisboa: Verbo, 1982.

MODESTO, Maria de Lurdes. Receitas escolhidas. Lisboa: Verbo,1978.

RIGAUD, Lucas, Cozinheiro moderno ou nova arte de cozinha [...]. 3.ed. Lisboa, Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1798.

RODRIGUES, Domingos. Arte de Cozinha. Leitura, apresentação,notas e glossário por Maria da Graça Pericão e Maria Isabel Faria.[Lisboa]: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987.

SOUSA, Sofia de. Real confeiteiro português e brasileiro. Lisboa:Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1904.

SUPLEMENTO Auxiliar do Programa de Culinária. Lisboa:Mocidade Portuguesa Feminina, 1969.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55138

Page 139: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 139

OBRAS DE REFERÊNCIA

LIVROS Portugueses de Cozinha. 2. ed., coordenação e pesquisabibliográfica de Manuela Rêgo. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1998.

SIMON PALMER, Carmen. Bibliografia de la gastronomía española:notas para su realización. Madrid: Ediciones Velazquez, 1978.

BIBLIOGRAFIA

BELO, Maria; ALÃO, Ana Paula; CABRAL, Iolanda Neves. OEstado Novo e as mulheres. In: O Estado Novo: das origens ao fimda autarcia (1926-1959), v. 2, Lisboa: Fragmentos, 1987, p. 263-279.

BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Alimentação e códigoscomportamentais na segunda metade do século XIX. In: BRAGA,Isabel M. R. Mendes Drumond. Do primeiro almoço à ceia: estudosde história da alimentação. Sintra: Colares, 2004, p. 119-156.

BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Alimentação epublicidade alimentar na Revista ABC (1920-1926). In: SILVA,Carlos Guardado da (coordenação). Turres Veteres IX. História daAlimentação. Lisboa: Colibri. Torres Vedras: Câmara Municipal,2006, p. 215-225.

BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. A Educação Femininaem Portugal no século XVIII: Tradição ou Inovação. In: BRAGA,Isabel M. R. Mendes Drumond. Cultura, Religião e Quotidiano.Portugal século XVIII. Lisboa: Hugin, 2005, p. 135-163.

BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Portugal à mesa:alimentação, etiqueta e sociabilidade (1800-1815). Lisboa: Hugin,2000.

EHLERT, Trude. Les manuscrits culinaires médiévauxtémoignent-ils d’un modèle alimentaire allemand ? In : BRUEGL,Martin; LAURIOUX, Bruno (Dir.). Histoire et identités alimentairesen Europe. [s.l.]: Hachette, 2002, p. 121-136.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55139

Page 140: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Culinária no Feminino: os primeiros livros de receitas escritos por portuguesas

140 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

EL-KAREH, Almir Chaiban; BRUIT, Héctor, H. Cozinhar ecomer, em casa e na rua: culinária e gastronomia na corte doimpério do Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 33, 2004,p. 1-23 (consultável na versão on-line disponível in http://www.cpdoc.fgv.br/revista/asp/dsp).

FERRO, João Pedro. Arqueologia dos hábitos alimentares. Introduçãode A. H. de Oliveira Marques. Lisboa: Dom Quixote, 1996.

FERTIAULT, Julie. A felicidade na família: cartas d’ uma mãe asua filha. Tradução de Alfredo Pimenta. Porto: Ernesto Chardron.Braga: Eugénio Chardron, 1877.

GOMES, Laura Graziela; BARBOSA, Lívia. Culinária de papel.Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 33, p. 1-22, 2004 (consultadona versão on-line disponível in http://www.cpdoc.fgv.br/revista/asp/dsp).

HYMAN, Philip; HYMAN, Mary. Imprimer la cuisine: les livresde cuisine en France entre le XVe et le XVIe siècles. In :FLANDRIN, Jean Paul; MONTANARI, Massimo (Dir.). Histoirede l’Alimentation, Paris : Fayard, 1996, p. 643-655.

HYMAN, Philip; HYMAN, Mary. Livres et cuisine au XIXe siècle.In : A Table au XIXe siècle. Paris : Musée d’Orsay, Flammarion,2001, p. 80-89.

LAURIOUX, Bruno. Le Règne de Taillevent : livres et pratiquesculinaires à la fin du Moyen Age. Paris : Publications de laSorbonne, 1997.

LEHMANN, Gilly. The british housewife: cookery books, cookingand society in eighteenth-century Britain. [s.n.]: Prospect Books,2003.

MARQUES, A. H. de Oliveira. A alimentação. In: MARQUES,A. H. de Oliveira (Coord.). Portugal da Monarquia para a República(Nova História de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. deOliveira Marques, v. 11). Lisboa: Presença, 1991, p. 617-627.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:55140

Page 141: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 141

MÁXIMO, Maria Elsa dos Santos Costa. A política educativa noEstado Novo em relação à mulher, no tempo do ministro António FariaCarneiro Pacheco (1936-1940): contributo para a história do géneroem Portugal. Lisboa: Dissertação de Mestrado em Didáctica daHistória, 2007.

MENNELL, Stephen. All manners of food: eating and taste inEngland and France from the Middle Ages to the present. 2. ed.Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 1996.

MOULIN, Leo. Les liturgies de la table : une histoire culturelle dumanger et du boire. [Paris] : Albin Michelle, 1989.

NEWSHOLME, Arthur; SCOTT, Margarida Leonor. Economiadomestica com os preceitos de hygiene applicados á vida e arranjos da casa.Tradução de Alberto Telles. Lisboa: Tipografia da Academia Realdas Ciências, 1893.

PERROT, Michelle, Personagens e Papéis. In: ARIÈS, Philippe;DUBY, Georges (Dir.). História da Vida privada. Traduçãoportuguesa com revisão científica de Armando Luís de CarvalhoHomem. v. 4 (Da revolução à grande guerra). Porto: Afrontamento,1990, p. 179-184.

PIMENTEL, Irene Flunser. História das organizações femininas doEstado Novo. Lisboa: Temas e Debates, 2001.

SÍTIOS NA INTERNET

http://www.iplb.pt (Maria de Lurdes Modesto) consultado a 13abr. 2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56141

Page 142: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56142

Page 143: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 143

Cozinha doméstica e cozinha profissional:Cozinha doméstica e cozinha profissional:Cozinha doméstica e cozinha profissional:Cozinha doméstica e cozinha profissional:Cozinha doméstica e cozinha profissional:do discurso às práticasdo discurso às práticasdo discurso às práticasdo discurso às práticasdo discurso às práticas11111

Janine Helfst Leicht Collaço

Resumo:Este texto é uma reflexão inicial decorrente deobservações feitas ao longo do tempo em trabalho sobre otema da alimentação sob a perspectiva da antropologia. Nessesentido, foi interessante notar a existência de contrastesmarcantes com relação ao trabalho feminino em cozinhasprofissionais e, ao contrário do que circula no senso comum,veículos de comunicação, faculdades de gastronomia efuncionários de restaurantes, o contingente de braçosfemininos é uma força expressiva nas cozinhas que servemrefeições fora de casa. Os contornos que o trabalho femininoadquiriu nas cozinhas coletivas e de restaurantes, contudo,não abandonaram resquícios das hierarquias existentes naesfera doméstica. A cozinha é um espaço de disputas e estetexto propõe articular algumas reflexões em torno da questão,analisando a partir de um caso em particular, o ofuscar dotrabalho feminino em restaurantes de cozinha italiana nacidade de São Paulo, como gênero, trabalho e cozinhadialogam em distintos planos.

Palavras-Chave: Identidade. Cozinha Italiana. TrabalhoFeminino. Restaurantes.

Abstract: This text is a result of an initial reflection thatemerged from observations of a work about food under theperspective of the anthropology. This way, it is interesting tonotice the existence of remarkable contrasts related to thefeminine work in professional cuisines. Opposite to the

Janine Helfst Leicht Collaço. Doutoranda PPGAS-USP e ProfessoraVisitante do Centro de Excelência em Turismo da Universidadede Brasília (CET/UnB). [email protected]

1 Texto recebido: 01/06/2008.Texto aprovado: 30/07/2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56143

Page 144: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

144 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

common idea spread out in the media, gastronomy faculties,and restaurant workers, the feminine work is an expressivework force in the outdoors’ kitchens. The profile femininework has got in community and restaurants’ kitchens,however, did not abandon the hierarchic traces that exist inhome life. The kitchen is a space of disputes. This textproposes to reflect on this issue, analyzing a specific case, inorder to show the devaluation of the feminine work in Italiancuisine restaurants in São Paulo, while gender, work andcuisine dialogue in different planes.

Keywords: Identity. Italian Cuisine. Feminine Work.Restaurants.

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Este texto é uma reflexão inicial decorrente de umlongo período envolvida com estudos em alimentaçãosob a perspectiva da antropologia. Recentemente, emfunção da pesquisa de doutorado, ficou bastante nítidauma faceta já notada em outras ocasiões, os contrastesmarcantes com relação às representações do trabalhofeminino em cozinhas profissionais. E, não foi semalguma surpresa, descobrir a partir de um estudoconduzido pelo IPEA (Instituto de PesquisaEconômica Aplicada), em setembro de 2007, que aforça de trabalho feminina nas cozinhas representa 65%do total de empregos no setor2, contrariando oimaginário comum com relação a esse tipo de ocupaçãonormalmente atribuído ao universo masculino.

Nesse contexto, as mulheres teriam dificuldadesinerentes a um trabalho considerado pesado, sujo,exaustivo e até, perigoso. Totalmente inapropriado àscondições femininas, sua força seria rapidamenteextenuada pelas horas de trabalho em pé em umambiente consumido pela pressão e altas temperaturas.Então, como explicar esse aparente paradoxo?

A hipótese inicialmente levantada diz respeito aorestaurante em que as mulheres atuam, possivelmente

2 Na área de atendimento,composta por garçons,barmen, copeiros e sommeliers,as mulheres ocupam 42%aproximadamente dosempregos.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56144

Page 145: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 145

menos relacionado a uma gastronomia distintiva, adita “alta gastronomia”3 e mais relacionado àsrefeições cotidianas. Dessa forma, a presença femininaestaria naqueles estabelecimentos que se dedicam aservir refeições diárias, especialmente o almoço, atrabalhadores e pessoas que não podem voltar paracasa a fim de comer. Esse aspecto ressalta que ocozinhar, mesmo que de forma profissional e apesardo que se imagina, é ainda uma tarefa feminina.

Essa constatação sugere que os contornosadquiridos pelo trabalho feminino permanecem aindapresos a hierarquias da esfera doméstica transpostasao domínio público. A cozinha de todo dia,considerada uma tarefa quase que obrigatoriamentefeminina, estendeu-se ao universo das relações detrabalho. Restaurantes de caráter mais popular paraatender refeições cotidianas incorporam maiornúmero de mulheres, ao contrário de restaurantes queservem refeições mais elaboradas, onde a maioria doschefs é masculina, assim como os funcionários que alitrabalham e servem comensais em busca deexperiências distintivas.

Esse aspecto ficou ainda mais evidente ao analisara trajetória dos restaurantes italianos na cidade de SãoPaulo, objeto de minha pesquisa de doutorado e pontode partida para avançar nas articulações entre cozinha,comunidade italiana e espaço urbano. Ao longo dasentrevistas, foi notório entrever nas memórias dosinterlocutores uma presença subjacente das mãosfemininas como instrumento de consolidação de uma“culinária italiana” e sua fundamental articulação aouniverso familiar. No entanto, essa associaçãodesaparece quase que integralmente quando o assuntoé a cozinha do restaurante4.

Foi instigante notar, ao reunir um volume deinformações presentes em memorialistas, relatos eelementos históricos, que as mulheres tiveram umaparticipação importante na constituição da cozinhaitaliana na capital paulista, extrapolando idéias

3 Termo derivado do francês,haute cuisine , um tipo decozinha moldada sobcondições pontuais em queingredientes, técnicas efama dos cozinheirosjogam um papelimportante. Surgiu no fimdo século XVIII, mas defato se fortaleceu no séculoseguinte pelas mãos dasnovas classes sociaisascendentes na França pós-Revolução.

4 COUNIHAN, Carole.Around the tuscan table. NewYork: Routledge, 2004.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56145

Page 146: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

146 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

consolidadas que tendem a vê-las como as mammasou nonnas preparando refeições em casa ou para asfestas tradicionais5.

Várias trilhas emergem para abordar a questão, massem dúvida o fato de que as mulheres possuem umalonga associação com a alimentação doméstica revelarelações profundamente arraigadas e reproduzidasentre gerações que custam a desaparecer mesmo diantedas mudanças recentes que são observadas no trabalhofeminino. No entanto, nas últimas décadas tem-seobservado o enfraquecimento mais acentuado dessevínculo em decorrência de fatores que influenciaramas dinâmicas da vida contemporânea e as mulheresbuscam menos o cozinhar em casa, substituindo atarefa pelo comer fora ou pelo uso de produtosindustrializados ou processados6.

A revelação de vestígios do universo domésticona cozinha profissional reforça o diálogo travado entrecomida, espaço e hierarquias sociais. Este processoserá em parte abordado pela análise da colaboraçãofeminina em restaurantes de comida italiana na cidadede São Paulo, tomando como ponto de partidamemórias dos proprietários de restaurantes de cozinhaitaliana com mais de cinqüenta anos na cidade e seusenfrentamentos com articulações recentes à experiênciado cozinhar profissional.

As As As As As mammasmammasmammasmammasmammas e sua cozinha: flutuações entre o público e e sua cozinha: flutuações entre o público e e sua cozinha: flutuações entre o público e e sua cozinha: flutuações entre o público e e sua cozinha: flutuações entre o público eo privadoo privadoo privadoo privadoo privado

O hábito de comer fora atualmente engloba tantoas refeições realizadas por necessidade como pordiversão, ampliando o leque de opçõesdisponibilizadas aos comensais. Nesse sentido, ocozinhar que antes era eminentemente doméstico,migrou para a esfera pública e trouxe com isso váriasimplicações, especialmente na divisão do trabalho docozinhar e nas distinções de gênero. No entanto,refeições feitas fora de casa não eram comuns até duas

5 Nossa Senhora deAchiropita no bairro doBexiga; San Vito, no Brás;San Gennaro na Mooca,entre outras.

6 MURCOTT, Anne. On thesocial significance of the“cooked dinner” in SouthWales. Social ScienceInformation, v. 21, n. 4/5, 1982.É preciso levar emconsideração que arealidade inspiradora paraa autora é bastante distintadaquela que presenciamosno Brasil . É inegável apersistência do trabalhodoméstico aqui, de maneiraque a tarefa do cozinhar é,em boa parte, transferidapara outro personagem, aempregada doméstica.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56146

Page 147: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 147

décadas atrás, fato que trouxe também umaredefinição de papéis na família e na condução daalimentação doméstica7

Assim, o cenário dos primeiros restaurantes decomida italiana na cidade de São Paulo se configuravade maneira bastante distinta da realidade atual.Restaurantes no sentido contemporâneo não existiam,eram normalmente espaços que serviam pessoashospedadas ou em trânsito. No entanto, ao meaproximar desse universo de restaurantes de cozinhaitaliana, foi possível entrever uma relação distinta queultrapassava o cozinhar em casa ou para as festas, ondeas mulheres normalmente predominam, e perceberos meandros de uma intensa presença feminina nacozinha dos restaurantes, apesar de estarem quaseinvisíveis nas falas e nas memórias.

Nos relatos dos entrevistados, a maioria homens emuitos herdeiros dos fundadores dosestabelecimentos, falavam orgulhosos do restaurante,a contribuição de seu trabalho para a cidade, emborapoucos estivessem diretamente na cozinha. Contavamhistórias “míticas” com relação ao surgimento doestabelecimento, lembravam das habilidades culináriasdas nonnas e mammas, essas sabiam cozinhar, despertandosentimentos prazerosos entre os comensais que, emsuas falas, pertenciam quase que exclusivamente aosmembros da família.

Mas, se as mulheres detinham o conhecimento dessacozinha e, supostamente as mulheres não trabalhavam foranessa época, como foi que essas receitas transpuseram ouniverso doméstico e conseguiram chegar à cozinhados restaurantes, como muitas falas nos deixaram emdúvida?

Um olhar de relance na constituição do espaçopúblico para realizar refeições na capital paulista,deixou claro que a relação entre cozinha doméstica ecozinha profissional não tinha limites claros como hoje.Diante da comparação dos relatos levantados, relatosde memorialistas, assim como alguns trabalhos

7 Não irei aprofundar essaquestão, há uma extensabibliografia que trata doassunto e que discuti emCOLLAÇO, Janine HelfstLeicht. Restaurantes de comidarápida: soluções à moda dacasa – Representações docomer em restaurantes de“comida rápida” em praçasde alimentação em shopping-centers . São Paulo, 2003.Dissertação (Mestrado emAntropologia Social) –Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas,Universidade de São Paulo.Ver também ABDALA,Mônica. Mesas de Minas: asfamílias vão ao self-service. SãoPaulo, 2003. Tese[Doutorado em Sociologia]– Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanasda Universidade de SãoPaulo.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56147

Page 148: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

148 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

históricos dessa época, a colaboração das mammas nagênese da cozinha italiana na cidade de São Paulo foicentral, embora formalmente sua contribuiçãopermaneça silenciosa.

Na verdade, é preciso estar muito atento aosmecanismos de funcionamento da memória que nemse dobra unicamente ao fluxo de tempo retilíneo,histórico. Nesse sentido, os limites imprecisos dosprimeiros restaurantes, se assim podem ser chamados,que surgiam nos bairros étnicos8 e a precariedade vividapelos seus ancestrais, raramente emergiram nas falasdos entrevistados.

As lembranças que compuseram um mosaico dedifícil compreensão são retiradas de vários lugares, daexperiência pessoal, da experiência social, da históriaoficial e temperam os sabores de uma trajetória emque os planos individuais, familiares, de comunidadese entrelaçam de tal modo que formam uma camadadensa e extensa de representações e práticas. Asmulheres, nesse caso, quase nunca são mencionadascomo elementos ativos nesse processo, sua presença écolateral, levantando novamente a delicada questão dehierarquias entre gêneros e valorização de seu trabalho.

De qualquer maneira, é importante apontar que osprimeiros estabelecimentos a servir refeições nos novosbairros étnicos eram eminentemente espaços difusosentre o doméstico e o público, de modo que o trabalhofeminino transitava entre dois universos nãonecessariamente separados. O modelo de restauranteque se pode inferir à época era de um espaçoprofundamente marcado pelo viés étnico, umaextensão da casa e onde a comida servida para osfamiliares era a mesma para os clientes. Na verdade,não seria nem mesmo necessário dizer que as mulheressaíam para trabalhar, pois elas conduziam seus afazeresnos próprios limites da casa, engordando os proventoscom refeições servidas aos paisani, membros dacomunidade, muitas vezes vizinhos ou colegas detrabalho dos maridos ou parentes que mantinham uma

8 É curioso notar que em SãoPaulo, no início do séculoXX, os imigrantes quechegaram e decidirampermanecer na cidade sereuniram em algumasregiões, formando umapaisagem diferenciada comrelação a outras áreas dacidade. Nesse sentido,alguns pontos foramtransformados em bairrosétnicos no sentido decongregarem váriosmembros de origemcomum, como italianos(Brás, Mooca, Bexiga, BomRetiro), judeus (BomRetiro), “árabes” (Centro,Paraíso), japoneses(Liberdade) e ficaramconhecidos pela associaçãoentre essas comunidades eo espaço que ocuparam.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56148

Page 149: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 149

conta mensal quitada religiosamente quando recebiamseus salários. A indefinição de limites era umacaracterística da época, conforme apontado por Rago9

e as primeiras cantinas traduziram parte de umaexperiência que se alinhava às relações constituídas entrecasa e rua.

A utilização dos espaços em frente às moradiaspara distribuir algumas mesas e cadeiras, servindovinhos e queijos importados, tornou-se comum. Osclientes eram vizinhos ou colegas de trabalho que aliprocuravam um espaço com o intuito de estreitar laços.Nesses pequenos bares, rapidamente as mammaspassaram a acompanhar os queijos com pãesproduzidos em casa, além de servir alguns poucospratos como macarrão com molho de tomate e sopas(minestrone).

Apesar das dificuldades, esse tipo de comérciorepresentou à época uma modalidade de sobrevivênciafundamental. Segundo Pinto10 era uma forma deconquistar um lugar na nova sociedade repleta deobstáculos, entre os quais o fato de boa parcela dosimigrantes não saber ler nem escrever, além de nãoter um passado urbano que pudesse fornecer um ofíciopossível de ser exercido no novo meio. Na verdade,era uma forma de comércio de custo mínimo einspirado no conhecimento doméstico, no qual asrefeições servidas aos membros da comunidade italianarepresentaram, para muitas famílias, um meio desustento diante de suas poucas condições, comércioesse que também contava com pequenas produçõesartesanais de pães e massas vendidas pelos ambulantes.

Por isso, essas primeiras cantinas11, por assim dizer,surgiam nos bairros de imigração italiana, como oBrás, Bexiga, Belém, Bom Retiro. Raramente algumvisitante de fora se espreitava nesses lugares, uma vezque eram espaços eminentemente étnicos. Nessecontexto, a fartura era apenas uma imagem longínquado paraíso, pois a alimentação servida era bastantesimples e de baixo custo, assim como tampouco se

9 RAGO, Margareth. Ainvenção do cotidiano nametrópole: sociabilidade elazer em São Paulo, 1900-1950. In: PORTA, Paula.História da Cidade de São Paulov.3: a cidade na primeirametade do século XX. SãoPaulo: Paz e Terra, 2004.

10 PINTO, Maria InezMachado Borges. Cotidianoe sobrevivência : a vida dotrabalhador pobre na cidadede São Paulo, 1890 a 1914.São Paulo, 1984. Tese deDoutorado (Departamentode História) – Faculdade deFilosofia, Letras e CiênciasHumanas, Universidade deSão Paulo.

11 A palavra cantina emitaliano significa despensa,o tipo de restauranteequivalente na Itália é aOsteria ou Trattoria, segundome informou um dos meusinterlocutores. É possívelque a origem dessanomeação tenha sidodecorrente do fato de queesses primeiros espaçosabrigavam tonéis de vinho,queijos e embutidospendurados em ganchos,uma espécie de “venda”.Talvez esteja aí também aorigem do costume dedecorar as cantinas atuaiscom esses elementos.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56149

Page 150: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

150 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

pode falar em atendimento profissional, já que servirmesas, trazer e tirar pratos eram atividades dos maridosou filhos. A participação de cada membro da famíliaera fundamental para a sobrevivência, inclusive criançastambém eram incorporadas ao ritmo dessa atividade12.

Esse aspecto é relatado pela filha de uma italianamoradora do Brás que descreveu o trabalho de suamãe em casa produzindo massas destinadas às cantinasdo bairro. Ela lembra que essa atividade era necessáriaporque não “tinham máquinas como hoje (...) era tudomanual” e “nós (filhos) ajudávamos um pouco, masnão muito, pois estudávamos”, mostrando apreocupação recorrente desse grupo, a busca pelaascensão social, em especial, por meio dos filhos.

O que não era produzido em casa era entãoadquirido de outras produções artesanais,multiplicando o sistema de trocas. O molho de tomateera comprado nas pequenas vendas, já que havia umaimportação constante desse produto, assim comoqueijos, vinhos e azeitonas13. Algumas verduras eramplantadas nos pequenos quintais. Mas, foi sem dúvidagraças a esses pequenos negócios bastante prósperosque muitas mulheres puderam oferecer seus produtose aportar financeiramente no orçamento doméstico,uma atividade comum nesses primeiros tempospautada pelo objetivo de melhorar de vida, especialmentedos descendentes. Por outro lado, se o trabalho familiarera fundamental, à medida que alguns italianosprosperavam imediatamente abriam as portas a outrosmembros da comunidade, que se beneficiavam dessetipo de arranjo.

Esse processo emerge de maneira bastante confusanas memórias, ora as mulheres estão presentes, oranão. No início, as avós e mães tinham pleno domíniodas cozinhas, como lembrou Afonso Roperto, emboranas gerações seguintes essa atividade fosse delegada afuncionários, especialmente homens. Alguns pratos,como caças e carnes, eram de responsabilidademasculina, as massas e pães caseiros eram das mulheres,

12 Segundo ALVIM, ZuleikaM.F. Brava gente! São Paulo:Brasiliense, 1986; a famíliade imigrantes não erainterpretada pela classedominante da época comoum núcleo semelhante aoseu. Ao contrário, ainda severificava um ranço daescravidão no modo detratar esses novostrabalhadores. Essa situaçãode conflito com relação aonúcleo familiar dosimigrantes gerou posturasde embate, especialmentequando as mulheresitalianas eram tratadas taisquais as escravas negras quemal podiam se defender deseus senhores. Não forampoucas as queixas dasitalianas de maus tratos edesrespeito sofridos nasfazendas. Na verdade, aaceitação de que a famíliaconsistia em um vínculoimportante nas classestrabalhadoras demoroualgum tempo para serabsorvida pelos antigossenhores e, em parte, essedesrespeito motivou a fugade muitas famílias do meiorural para o meio urbano.Por outro lado, as relaçõesentre familiares não eramde todo calmas, como asmemórias de Armandinhodo Bexiga deixaramentrever.

13 HELSTOSKY, Carol. Garlic& oil: food and politics inItaly. New York: Berg, 2004;analisa a permanentecomunicação entre a terranatal, Itália, e a comunidadede imigrantes no exterior,mostrando que a indústriaitaliana foi impulsionada,em boa medida, pelademanda de italianos emoutros países.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56150

Page 151: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 151

embora pães também fossem produzidos por homense alguns procuraram abrir pequenas padarias nasredondezas do atual Memorial dos Imigrantes.

Nos relatos de Armandinho do Bexiga14 aparecemtambém menções às italianas que serviam suas massasaos vizinhos e moradores do bairro, com mesassimples e sem nenhum tipo de serviço profissional.Angelo Luisi, proprietário da Cantina Capuano,lembrou dessas italianas que se encontravam pelobairro, hoje praticamente sem nenhum vestígio de suaexistência.

Outras formas de comércio também foramobservadas, como as pensões. “Luzia Napolitana”,no Brás, foi uma das mais famosas. Contando com aajuda da família, preparava refeições para os operáriosdas redondezas, inicialmente italianos, mais tardeimigrantes nordestinos. Mas Luzia não foi única, muitasitalianas se dedicaram a essa atividade como formade encontrar um sustento para a família.

Nesse contexto, é evidente que havia uma circulaçãode bens e pessoas para além dos registros oficiais epode ter sido dado início a um intenso sistema detrocas, cuja visibilidade permaneceu apenas evidenteentre os limites dos bairros étnicos e ao pequenoincremento que isso representava para as famílias.Entre os interlocutores com os quais estive essasatividades não eram mencionadas diretamente, emgeral, as referências eram sobre os vendedoresambulantes que circulavam pelas ruas cantando eoferecendo seus produtos.

O que essas imagens sugerem é que parte douniverso doméstico tampouco era visível, pois se aimagem da rua predomina, as referências domésticascirculam internamente pelos limites das famílias. Nessecaso as mammas e sua comida, especialmente as massaspreparadas com molho de tomate à moda do “sul”– curtido durante horas em fogo lento – fortaleceram umaimagem de boas cozinheiras e desse conhecimentoconquistaram posições melhores, embora não

14 MORENO, Júlio. Memóriasdo Armandinho do Bexiga. SãoPaulo: SENAC, 1996.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56151

Page 152: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

152 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

reconhecidas e valorizadas publicamente. Seu trabalhoficou apenas em parte exposto, inclusive pelascaracterísticas das primeiras cantinas que circulavamtanto pelo universo privado como público.

O modelo de restaurante forjado nesse momentofoi dado em condições adversas. O fato das mulheresterem ampla participação foi que, em certa medida,era preciso se valer de conhecimentos já existentes paraconceber algo que pudesse ser comercializado, nessecaso a comida. Sem o uso de ingredientes diferenciadosou técnicas complicadas, essa cozinha era substanciale feita por pessoas menos privilegiadas que serviamiguais. Na prática, as mulheres com seus saberesaprendidos há gerações e sua origem rural e modesta,conseguiram abrir um espaço para que a famíliapudesse melhorar de vida.

Mulheres italianas: volta ao larMulheres italianas: volta ao larMulheres italianas: volta ao larMulheres italianas: volta ao larMulheres italianas: volta ao lar

O modus operandi desse modelo étnico de restaurantepermaneceu vivo por muitas décadas, embora fossemais evidente nos bairros da comunidade italiana.Contudo, a partir da crescente separação entre osuniversos do público e do privado, são delineadasnovas formas de sociabilidade e usos dos espaços,assim como tempos da cidade, afetando hábitoscotidianos, inclusive nos bairros de imigrantes.Operários empregados na incipiente indústria paulistanão desfrutavam de plena liberdade, muitas vezessujeitos às imposições de industriais ditos progressistasque tentavam reformular a sociabilidade de seusfuncionários.

Na realidade, havia entre as camadas privilegiadasuma percepção pouco favorável quanto aos estilosde vida dos imigrantes, normalmente vistos comosujos, desordeiros, briguentos e com formas dediversão repudiadas pelas camadas favorecidas. Asmanifestações populares observadas nosestabelecimentos e festas eram, na verdade, ocorrências

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56152

Page 153: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 153

que deveriam ser combatidas a favor de uma vidamais apropriada. O Estado passa de ausente a intensoincentivador cultural, embora ainda ignorasse boaparte dos imigrantes, mesmo aqueles aqui nascidos.

Desse modo, o tempo ocioso de seus empregadosnão deveria ser gasto em bares, botequins e lugarescom jogo e álcool. Era a formação de um cidadãohigiênico, de maneira que muitos empresários colocaramcomo objetivo educar os operários, ocupando o tempolivre com atividades educativas e esportivas, aspectostocados por Rago15 quando analisou a formação dadicotomia entre trabalho e lazer.

Com o fim da 2ª Guerra Mundial, essa distânciaficou ainda mais evidente acompanhada de outrofenômeno, a adoção de um estilo de vida moldadosob a influência norte-americana. Diante de um novocenário, as cantinas anteriormente servindo um públicopredominantemente masculino, foram lentamentetransformadas em espaços de convívio familiar,especialmente de famílias de descendentes, muitas jáfora dos bairros étnicos e ocupando novas posiçõessociais. Um grupo ignorado pelo poder público tentamarcar sua existência na cidade, especialmente as novasfamílias italianas abastadas que se envolvem naconstrução do Parque do Ibirapuera, marco dascomemorações do 4º Centenário da cidade.

As mulheres que antes estavam à frente da cozinhacomeçaram a sair de cena, uma vez que as cantinas seenquadram em novos ritmos, assim como apopulação urbana de modo geral. Além disso, aascensão econômica e social permitiu distribuiratividades que antes eram concentradas nas famílias aempregados contratados, muitos substituindo asmulheres na cozinha. Esse processo abriu espaço paraque imigrantes menos prósperos tivessemoportunidade de trabalho e, mais tarde, fossemsubstituídos pelos imigrantes nordestinos. Além disso,os descendentes de italianos já contavam com umaposição mais confortável o que favoreceu o

15 RAGO, M. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56153

Page 154: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

154 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

crescimento dos casamentos exogâmicos e, portanto,uma nova forma de circulação da cozinha italiana,favorecendo uma menor desconfiança com relação àcomida. Por meio da mobilidade social dessesimigrantes o acesso a outras esferas da cidade foi umfenômeno decisivo e marcante de sua presença.

Essa transição não é referida com clareza pelosinterlocutores, mas as mudanças introduzidas nessemomento desdobraram-se em diversos planos. Naquestão da sociabilidade, os imigrantes estavam maisintegrados à sociedade local, seus descendentesassumem novas relações fora dos limites dos bairrosétnicos. Por outro lado, era crescente a influência dosfilmes norte-americanos e, posteriormente osprogramas de TV, que também impactaram naconstituição de vínculos sociais e uso do espaçopúblico.

Com o crescente vigor da vida cultural e aconcentração de teatros e cinemas no centro da cidade,muitos estabelecimentos permaneciam abertos apósos espetáculos e rapidamente se transformaram empontos de encontro para espectadores que ali paravampara beber ou comer alguma coisa, conversar ecomentar a peça ou filme. É também quando asmulheres ganham o espaço público, circulando commaior desenvoltura pelas novíssimas casas de chá ecafés, além de exercer novas práticas de consumo emlojas de departamentos.

Época de grande efervescência cultural eeconômica, o centro se transformou na regiãoprivilegiada para diversão e muitos estabelecimentossurgiram nesse período. As cantinas étnicas dos bairrosda comunidade italiana passaram a conviver comrestaurantes que despontavam no centro da cidade,ainda tímidos, porém muitos abertos por imigrantesitalianos que vislumbraram uma boa oportunidade detrabalho.

Pelas origens dos proprietários, muitos desseslugares tinham pés fincados na cozinha italiana, embora

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56154

Page 155: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 155

servissem um público mais eclético. Era o surgimentode um diálogo para além da comunidade étnica,despertando novos sabores, sobretudo, à novaintelectualidade da cidade. Artistas, escritores,jornalistas, acadêmicos circulavam pela região eapreciavam estender a programação noite adentro. Semmuito capital econômico, mas amplo capital cultural16,fato que talvez os tenha predisposto a experimentaros novos sabores oferecidos nos restaurantesrecentemente abertos, tiveram ampla participação nadifusão desses novos hábitos17.

Com as transformações desse momento, nonnas emammas produziam massas para os novos restaurantes,assim como algumas foram para suas cozinhas, mas éverdade que com a prosperidade, muitas dessasmulheres foram se afastando de suas atividades e seconcentraram nos afazeres domésticos. Filhas e netastampouco continuaram responsáveis pela cozinha equando eventualmente envolvidas no negócio familiar,as ocupações eram menos “estafantes”, como cuidardo caixa ou da decoração.

Esse movimento se iniciou nas cantinas do Brás edo Bexiga, embora não fosse abrupto. Nesse sentido,havia sido constituída uma rede de comércio informalbastante ampla, especialmente entre restaurantes queprecisavam de ingredientes e os buscavam nas pequenasproduções domésticas que também forneciam paraos novos estabelecimentos no centro da cidade. Naverdade, o Brás começou a mudar intensamente a partirdo fim dos anos 1960 e no início da década seguinte,quando o fluxo de imigrantes nordestinos aflui naregião, afetando esses pequenos comércios informaise étnicos que praticamente desaparecem, restandoapenas algumas poucas cantinas.

Com o passar dos anos, a clara definição dasatividades da casa e da rua, a sensível melhoraeconômica e novos ritmos urbanos foi possívelcontratar funcionários para o desempenho das tarefasna cozinha. Quando perguntei a um interlocutor, hoje

16 BOURDIEU, Pier re. Ladistinction. Paris: EditionsGallimard, 1979. Tambémconsultar WARDE, Alan.Consumption, food and taste.Londres: Sage, 1997.

17 VAN OTTERLOO,Anneke. Chinese andIndonesian restaurants andthe taste for the exotic foodin Neatherlands: a local-global trend. In:CWIERTKA, Katarzyna;WALRAVEN, Boudewijn.Asian Food: The global andthe local. Honolulu:University of Hawai’I Press,2001. A autora notou algosemelhante no processo degênese de uma cozinhainternacional na Holandapelas mãos dos imigrantesasiáticos, lembrando que osrestaurantes considerados“exóticos” eramfreqüentados porintelectuais e personagensde grande capital cultural,contribuindo paraextrapolar as fronteirasétnicas, um fenômeno quese iniciou em meados dosanos 1940.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56155

Page 156: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

156 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

responsável pela cantina herdada de seu pai, que porsua vez foi deixada pelo seu avô ao seu pai, comentouque sua mãe não participou das atividades relativas àcozinha do restaurante, mas lembrava que sua avó eramuito ativa. “Naquela época, as mulheres cuidavamda cozinha e os maridos da administração (compras,atendimento e financeiro)”, processo que não foiexclusivo em seu estabelecimento e que nas geraçõesseguintes se transformou em uma ajuda eventual.

Esse fenômeno ocorreu em outras cantinas. Em1953 uma napolitana recentemente instalada na cidadeabriu uma pizzaria onde era o bairro dos “alemães”(a região hoje entre os bairros Brooklin e Morumbi),servindo pizzas e alguns pratos. Alguns anos depoisprocurou se fixar no Bexiga que, segundo sua neta,era o bairro que “tinha muito italiano e cantina”.Inicialmente à frente dos negócios, acompanhou ocrescimento do estabelecimento e o treinamento dosfuncionários para o preparo da pizza e outros pratos,mas logo que as coisas começaram a prosperar, foipassando a responsabilidade do dia-a-dia para seufilho, embora continuasse a supervisionar a execuçãodas receitas. O envolvimento passou a ser ocasional,atitude que se estendeu entre outras mulheres queestiveram envolvidas com essa cozinha de cantinas.

Houve também o surgimento de outro fenômeno,a entrada de uma nova leva de imigrantes vindos apósa 2ª Guerra com características muito distintas de seusantecessores. Eram imigrantes com alto capital cultural,alguns com capital econômico, que rapidamenteencontraram ocupações de bom nível, alguns inclusivejá contratados desde a Europa. Engenheiros, técnicose profissionais de distintas áreas rapidamente seinseriram nas novas ocupações urbanas e demarcaramseu espaço a partir de um distanciamento com ositalianos já instalados na cidade, considerados pelosnovos aportados como “rústicos”.

Essa diferença na comida revela outros desníveisentre grupo e comida. A cozinha dos primeiros

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56156

Page 157: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 157

imigrantes ficou associada ao mundo doméstico, àsnonnas e mammas de origem humilde, camponesa e,sobretudo com uma cozinha do “sul”, onde o molhode tomate e o queijo predominam no acabamentodos pratos. Os novos imigrantes que chegam, em suamaioria do “norte”, viam com desprezo essesprimeiros imigrantes e seus descendentes devido àsorigens humildes, a falta de instrução, o atrasoeconômico.

Segundo uma entrevistada, filha de um advogadoconhecido de Roma e casada com um engenheiro queveio trabalhar nas Indústrias Matarazzo, ela teve oprivilégio de acompanhar a consolidação dacomunidade italiana na cidade. Comentou que viu oCircolo Italiano nascer, uma associação de italianos quepossuía um dos melhores restaurantes da cidade,instalado no também Edifício Itália, e durante décadasum dos pontos mais elegantes da capital paulista.Contou, de maneira jocosa, que “[...] não conheciacomida italiana, pelo menos a que encontrei no Brasil.Eu não sabia o que era lasanha, bife à parmegiana”,comidas que deveriam ser próprias dos primeirosimigrantes, uma opinião compartilhada por outrositalianos que chegaram à cidade na mesma época epassaram por experiências parecidas.

Agravava essa distância o fato de que a cozinha do“norte”, na maioria dos casos, não era preparada pelasmammas, pelo menos nos novos restaurantes que eraminaugurados, praticada pelos homens como bemlembrou a mesma entrevistada e outros exemplosdeixaram entrever. A hipótese é que este é o ponto departida para uma crescente desvalorização da cozinhadas mammas servida nas cantinas. Além disso, aseparação da cozinha italiana entre “norte” e “sul”,“profissional” e “doméstica”, “sofisticada” e “rústica”revela diferenças na própria comunidade, comosugeriram distintas falas.

As mulheres ainda tinham seus lugares nas cantinastradicionais, mas agora concorriam com novos

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56157

Page 158: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

158 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

profissionais da cozinha vindos da Europa.Restaurantes de comida das mammas, simples, do “sul”estavam colocados em lado oposto aos incipientesrestaurantes de cozinha profissional, elaborada, do“norte”. No meio desse eixo, as cantinas que abriramno centro da cidade, servindo comida de origemdoméstica para comensais ecléticos, atendidos por umserviço especializado, normalmente garçons deorigem européia (italianos e espanhóis).

As cantinas continuam explorando seu viés étnico,mas a cozinha doméstica praticada pelas primeirasmammas começa a ficar restrita ao domínio da casa eàs fronteiras dos bairros ligados à comunidade italiana.Nesse sentido, consolida a fama de algumas regiões,como o Bexiga, conhecido como um bairro italianotambém pela quantidade de cantinas que ali seinstalaram18.

As famílias de italianos que haviam saído dosbairros tradicionais começaram a substituir o públicoeminentemente masculino, especialmente aosdomingos, quando raramente contavam com algumtipo de auxílio, especialmente a empregada doméstica,buscando reproduzir nesse dia uma refeição familiarcom elementos da cozinha até então conhecida, porémagora menos praticada pelas novas articulações emseu cotidiano.

No centro, são os salões dos restaurantes que estãoabertos depois dos espetáculos que atraem uma legiãode novos comensais. Muitas vezes, sendo muitos dosclientes conhecidos e habituais freqüentadores, podiamcontar com a benevolência do estabelecimento e dosgarçons que deixavam “pendurar a conta”, quitadaquando possível. Nos restaurantes mais sofisticados,as camadas favorecidas iam freqüentar para realizarsua performance distintiva19.

O trabalho feminino não é considerado apropriadona esfera do comer público, ou pelo menos, nãoconcede prestígio à comida e ao estabelecimento. Poroutro lado, continua angariando simpatia das famílias

18 O Bexiga durante muitosanos não foi um bairroexclusivamente italiano, eratambém uma região queconcentrou muitos ex-escravos. Ambos os grupos,segundo contou um dosinterlocutores, se davambem, mas sem dúvidapredominou a imagem debairro italiano, exploradaainda pela festa anual deNossa Senhora deAchiropita. Esse aspectonão foi tratado na pesquisade doutorado, mas podeabrir outros desdobramen-tos instigantes entrecomida, gênero e cidade.

19 FINKELSTEIN, Joanne.Dinning out. New York: NewYork Universtiy Press, 1989.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56158

Page 159: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 159

de descendentes que buscam nesses sabores resgatarelementos próximos e reconfortantes, muitas jádesfrutando posições privilegiadas na cidade. Noentanto, não atraem os novos imigrantes italianos, pelomenos a princípio, que olham para essa comida comcerta desconfiança.

Esse processo é ilustrado por vários restaurantesque abriram suas portas a partir dos anos 1950. Entremuitos italianos que chegaram e se dedicaram a essetipo de trabalho, veio uma família originariamente deRoma que inaugurou seu primeiro restaurante em 1953,na cidade de Santos. Alguns anos mais tarde, vierampara a cidade de São Paulo e se instalaram em umbairro que à época era uma promessa, Paraíso, ao ladode outro estabelecimento de comida árabe.

No entanto, ao contrário do modelo anterior, asdiferenças entre o morar e trabalhar estavam maisclaras. O imóvel servia tanto para trabalhar como paramorar, o restaurante na entrada para a rua e no patamaracima, a residência da família20. A matriarca raramentecirculava pelas dependências do restaurante, quemcuidava do restaurante era o marido e seus filhos, quejá contavam com alguma experiência do pai, poishavia trabalhado como garçom e chefe de salão emum restaurante importante na cidade de Roma e tinhagrande experiência no preparo de flambados à frentedo cliente, outra novidade naquele momento.

Carnes e crepes incendiados à vista do comensalatraíram uma clientela que transformou o lugar emum espaço de camadas favorecidas. O pai era ajudadopelos três filhos na cozinha e no salão, à filha coubeuma função menos comprometedora, cuidar do caixa,“uma atividade apropriada às mulheres”. Sua esposacuidava da casa e não opinava sobre a comida dorestaurante, evidenciando um movimento bem distintodo anterior. Rapidamente treinou vários assistentes queficavam responsáveis pelas atividades cotidianas dacozinha.

O mesmo pode ser notado na constituição dos

20 Ou famílias, já que muitosimóveis eram compar-tilhados por mais de umnúcleo familiar,conhecidos pelo nome decortiços.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56159

Page 160: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

160 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

negócios de outra família que tinha um passado emadministração de restaurantes e hotéis na Europa. Asmulheres praticamente não são mencionadas. Quandofundaram o restaurante, em meados da década de1950, a cozinha era responsabilidade de dois chefsitalianos trazidos especialmente para a atividade e queiniciaram um processo intenso de formação de mão-de-obra para restaurantes, assim como noatendimento de salão, outra novidade, já que esta áreatambém se profissionalizava.

Nesse sentido, as mammas como definidas comcerto ar pejorativo por um dos entrevistados, apenassabiam fazer pratos “boiando em molho de tomate equeijo”. Tomate e queijo, segundo sugere Capatti21,eram ingredientes acessíveis à população pobre quecostumava incluir esses ingredientes para melhorar osabor dos pratos, sobretudo das pizzas encontradasem Nápoles e marcava a “comida de pobres”. Dessemodo, não se trata apenas de uma distinção entredoméstico e profissional, mas também umadesigualdade relativa ao grupo. Os primeirosimigrantes e seus descendentes fugiram da pobreza,da vida rústica do campo, eram analfabetos e vindosdo sul da Itália. Estes novos atores não tinham essascaracterísticas, e suas mulheres não precisavam“trabalhar fora para sustentar a família” como disseum entrevistado com alguma ironia.

É evidente que os anos 1950 estabeleceram umdiálogo distinto entre trabalho, mulheres e comida.Começando a sair das cozinhas, as mulheres assumemo papel de cuidar da casa e da família, algumascontinuam envolvidas nas atividades, especialmente nascantinas, mas seu trabalho não é reconhecidopublicamente, na verdade fica restrito aos limites dorestaurante. Os homens continuam responsáveis pelaadministração, compras, mas muitas mulheressimplesmente não cozinham mais. Em seu lugarfuncionários entram para assumir a cozinha, no início,imigrantes europeus menos prósperos, alguns anos

21 CAPATTI, Alberto. La pizza:Quand lê casse-croute desmiserables passe a table.Autrement. Serie Mutations(1989), França, n. 206, 2001.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56160

Page 161: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 161

mais tarde, imigrantes nordestinos que formarão ogrande contingente de mão-de-obra em restaurantesnas décadas seguintes.

Novos arranjos na capital gastronômica: algumasNovos arranjos na capital gastronômica: algumasNovos arranjos na capital gastronômica: algumasNovos arranjos na capital gastronômica: algumasNovos arranjos na capital gastronômica: algumasconsiderações finaisconsiderações finaisconsiderações finaisconsiderações finaisconsiderações finais

A grande maioria dessa leva de trabalhadores nãopossuía formação específica na área de cozinha, excetoos chefs que vieram de fora, mas rapidamente a mão-de-obra que substituiu as mulheres adquiriu oconhecimento necessário. Esse fenômeno foi intensoe na verdade estimulado pelo interesse em ascendersocialmente, uma mobilidade bastante comum nessesegmento. Muitos que começaram em posiçõesmodestas como lavadores de pratos ou auxiliares delimpeza tiveram oportunidades de ascensão social eeconômica, ora ocupando funções de mais prestígio,ora sendo os donos de seu próprio restaurante.

Nesse processo as mammas foram lentamentedesaparecendo das cozinhas e sua contribuição ficousilenciada na memória da cidade, fato que não se deuda mesma forma para as méres (mães) que contribuírampara a construção de outra capital gastronômica22,Lyon. Cidade extremamente reverenciada pela suagastronomia, sua fama é atribuída à contribuição dacozinha doméstica das méres que fizeram reputação dacidade e foram ícones dos primeiros movimentos emtorno da valorização da cozinha local, uma respostaao incentivo político que desejava valorizar asdiferenças regionais como base da identidade nacionalfrancesa.

São Paulo, no entanto, nos oferece outrasparticularidades. Os restaurantes que surgiam nãoofereciam uma cozinha paulista ou uma cozinha dedistintas localidades nacionais, como ocorreu na Françano fim do XIX e ao longo do século seguinte. E talveza valorização do trabalho das mammas seja diferenteporque não foram instrumentos de uma política mais

22 Uma rápida pesquisa naInternet apontou que alémde Lyon e São Paulo, temosainda como “capitaisgastronômicas”: Paris,Bolonha, Parma, Barcelona,Copenhague, Londres,Dijon, Genève, SanSebastian, Bruxelas, NovaYork e Toulouse. Vertambém Relatório de trabalho.lyon, capitale mondiale de lagastronomie? Rapport du groupede travail - Lyon 2020, GrandLyon – communautéurbaine. Directeur de lapuclication: CorinneTourasse. Coordination:Emmanuel Arlot, Jean-Loup Molin. Tirages: 2000exemplaires, Février 2007.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56161

Page 162: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

162 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

ampla voltada para a construção de identidades,mesmo porque eram imigrantes e pertencentes a umgrupo ignorado pelo estado até meados do séculoXX. Essa imagem foi revertida à medida que o grupose assentou na cidade e começou a ser visto, assimcomo outros imigrantes, como a base do progressourbano e fator de desenvolvimento que possibilitou ametrópole ser cosmopolita.

Na verdade, a comida das mammas iniciou suaexistência como meio de dar visibilidade a um grupoparticular no interior de um caldo étnico, na tentativade delimitar suas diferenças e marcar sua presença. Asméres, ao contrário das mammas, eram centrais naconstrução de uma identidade nacional e jogaram luza uma cozinha que tampouco era organizada enitidamente reconhecida, mas encontrou estofo àmedida que o turismo se consolidava e as diferençasregionais se demarcavam para formular uma imagemde nação23. É verdade também que sua contribuiçãofoi sendo apagada à medida que os homens entraramem cena, mas ao menos regionalmente as méres aindacontam com algum reconhecimento.

Na verdade, a cidade de São Paulo só foi ter umnúmero de restaurantes razoável a partir dos anos 1970.Antes disso, era um punhado de estabelecimentos queofereciam algumas alternativas em geral em extremosopostos, restaurantes muito simples para as camadaspopulares ou sofisticados para os mais privilegiados.Ainda, o conceito de uma cozinha local teve comoprincipal interlocutor a cozinha italiana e dissoocorreram desdobramentos em distintos níveis. Ainfluência dos sabores italianos se fez presente em boaparte dos primeiros estabelecimentos e continuoupresente de várias formas. Contudo, nova reviravoltase dá com a chegada do fenômeno da globalização.

Esse fenômeno aliado à urbanização e às mudançasno cotidiano das cidades influenciou o hábito de comerfora de casa, que ganhou fôlego entre as camadasmédias. Por outro lado, incentivou o surgimento de

23 LAFERTÉ, Gilles. Laproduction d’identitésterritoriales à usagecommercial dans l’entre-deux-guerres enBourgogne. Cahiers d’economieet sociologie rurales, France:n.62, 2002. O autor apontoupara a questão na região daBorgonha e, em especial, noperíodo que se estendeuentre as duas guerras. Para arelação entre espaço,ambiente e geografia,consultar tambémDEFFONTAINES, Jean-Pierre. Le terroir, unenotion polysémique. In:BÉRARD, Laurence;CEGARRA, Marie; DJAMA,Marcel; LOUAFI, Sélim;MARCHENAY, Philippe;ROUSSEL, Bernard;VERDEAUX, François(Comission Editoriel).Biodiversité et savoirs naturalistslocaux en France . Paris:Editions Cirad, Idar, IFB,Inra, 2005.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56162

Page 163: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 163

uma ampla gama de restaurantes que oferecemrefeições desde para quem precisa até para quem saipor lazer e dessa variedade é que a cidade conquistoua denominação de Capital Mundial da Gastronomia, em1998, valendo-se do número de cozinhas, “de maisde 45 países” presentes nos restaurantes da cidade.

Diante desse novo fenômeno que trouxe areboque a cozinha italiana contemporânea, o cenário derestaurantes foi afetado profundamente. As cantinastradicionais de bairros como Bexiga e Brásenfrentaram uma crise sem precedentes, uma vez quemuitos estabelecimentos funcionavam nessa região eacabaram fechando frente à dita baixa qualidade deseus restaurantes. Tidos como lugares de comida decarregação que imediatamente foi associada às mammas,evidenciou-se um discurso depreciativo de seuconhecimento frente às habilidades dos chefs ecozinheiros profissionais.

Novos estabelecimentos abriram servindoverdadeira cozinha italiana, introduzida pela intensacirculação promovida pela globalização e já surgiammarcando seu distanciamento da comida de cantina,colocada no submundo gastronômico, assim comoqualquer relação entre essa cozinha e mãos femininas.

As cantinas tradicionais, muitas nas mãos das novasgerações, se depararam com essa questão e emergemvárias saídas. Alguns estabelecimentos buscam servalorizados como tradicionais e “parte da história aindaviva da cidade”, sendo que alguns tentam se vincularaos processos de patrimônio cultural24. Outros tentamse renovar e buscam novos bairros para abrir filiaisde seus estabelecimentos e onde podem exercitar asnovidades com maior flexibilidade. Para outros, a saídafoi resgatar as memórias e receitas para dissolver osentimento de distanciamento com a comida,proporcionando conforto em um mundo em quepredomina a gastro-anomia alimentar25. No entanto,qualquer que seja o caminho privilegiado, asdificuldades são maiores para as mulheres, pois o

24 Essa questão foi abordadaem um trabalho anteriorapresentado no IVANPTUR, na cidade de SãoPaulo em agosto de 2007 eainda está sendodesenvolvida em maiorprofundidade.

25 FISCHLER, Claude.L’Homnivore. Paris: ÉditionOdile Jacob, 1990. O autordefine os alimentos semorigem, preparaçõesdistanciadas doconsumidor final, produtosdesconhecidos, novasdescobertas tecnológicas ecientíficas confundindo ocomer.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56163

Page 164: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

164 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

predomínio da voz masculina no interior das famíliaspersiste.

Não são poucos os conflitos enfrentados pelasnetas e bisnetas que tentam assumir os negócios. Acomida da cantina foi depreciada frente às novascozinhas italianas, sendo penalizada pela estreita ligaçãocom o universo doméstico, pois sua imagem é de umlugar em que “a cozinha é com jeito de comida decasa”. Se for feita por uma mulher, a percepção éainda mais negativa. O caseiro não desapareceucompletamente do imaginário e adquire especificidades.

Nesse sentido, a categoria de “comida caseira” ébastante paradoxal, mas elucidativa desse aspecto. Podeser percebida de maneira positiva quando possui umaconotação de proximidade e conforto, especialmenteaos olhos dos comensais, mas adquire uma percepçãonegativa quando se demarca a divisão do trabalho e acomida servida. Ainda, se um chef de cozinha“recuperar” o caderno de receitas da família e oferecerno cardápio de seu restaurante, “caseiro” adquire umapercepção positiva. Mas, se forem pratos preparadospor cozinheiros ou cozinheiras de restaurantescotidianos, esse “caseiro” adquire uma conotaçãodesfavorável frente a outros profissionais da cozinha.

“Comida caseira” parece ser mais adequada aosrestaurantes cotidianos e onde se concentram a maioriadas mulheres que trabalham como cozinheiras eatividades afins, trabalho silencioso e poucoreconhecido. Nesse caso, o saber doméstico éfundamental para alimentar os comensais que nãopodem voltar para casa e comer, de modo que elassão presenças constantes em restaurantes self-service, fast-foods, restaurantes de refeições coletivas destinadas auma comunidade (empresa, escola, fábrica etc.);hospitais; bares e botequins que costumam servir oprato feito (PF) e na profissão de nutrição.

Nos restaurantes italianos as mulheres raramenteintegram a cozinha. No entanto, nas cantinas perduramas reminiscências femininas em torno dos pratos, do

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56164

Page 165: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 165

apelo familiar, embora não ofereçam uma refeiçãocotidiana e esse ponto cria obstáculos na incorporaçãode mudanças. Se a cozinha italiana é renovada emalguns restaurantes, nas cantinas e restaurantes italianostradicionais esse processo é custoso e demorado,sobretudo entre gerações. A questão é permanecerou não fiel às receitas de antigamente, sobretudo aquelasque foram trazidas pelas nonnas ou mammas. Preservarparte desse conhecimento é uma preocupaçãoconstante das gerações que estão passando o comandoe uma encruzilhada para os novos membros que estãoassumindo os lugares de seus pais.

Essa fidelidade está diretamente ligada à família,uma vez que parte da trajetória do estabelecimento esuas memórias foram moldadas pelo trabalho dosavôs e bisavôs e desse trabalho resultoureconhecimento, melhor padrão social, prestígio, “umnome a ser cuidado, o nome que está aí na placapendurada na frente do restaurante”. Essa questão nãoaparece de modo tão agudo em restaurantes quetiveram cozinheiros profissionais, embora aqueles commaior tempo de existência lidem com o fato de seremvistos como antiquados, pois também são desconfiadoscom relação às inovações. O sucesso de outrora estágravado nas memórias, assim como os pratos queatraíram comensais, dificultando as mudanças. Perdera “identidade” do estabelecimento, renegar as raízesou enfrentar a globalização são pontos que perpassampela cabeça das novas gerações e as mulheres nãofogem ao dilema.

Não deixa de ser paradoxal, no entanto, quealgumas dessas mudanças estejam na pauta de extensasreuniões familiares e a palavra final das inovações sejadas matriarcas, isto é, sem sua aprovação tudo continuacomo está. Se as mulheres não estão diretamenteligadas ao processo produtivo, por que a opinião delasé tão importante? Pois elas sabem cozinhar e, portanto,possuem autoridade suficiente para legitimar qualquerinovação.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56165

Page 166: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

166 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Nesse caso, alguns interlocutores frisaram que oimportante é “não inventar muita coisa, mudar ascoisas sem consultar” 26, por isso sua preferência àmão-de-obra já existente e sua desconfiança comrelação aos chefs, para muitos interlocutores, sinônimode complicação na cozinha, pois não “seguem asreceitas, querem fazer de seu jeito”. Inclusive, algunsentrevistados criticaram a atuação desses profissionais,sobretudo aqueles recém formados em faculdades ecursos de gastronomia27. Nesse sentido, qualidadescomo respeito, obediência, fidelidade são valorizadasem detrimento da criatividade e individualidade. É o“respeito às receitas com mais de cem anos, comodisse um dos interlocutores, ninguém pode alterar umareceita e fazer do seu jeito”.

Receitas enraizadas são oriundas da idéia do“cozinhar bem” e que está associado à vida doméstica,às mulheres e ao progresso da família. Esse ponto éum nó quase insolúvel diante das dificuldades de manterum restaurante nas condições de hoje, uma vez que onúmero de estabelecimentos cresceu, assim como ostipos de cozinha e essa nova realidade exige adaptações.

Permanecer fiel às receitas das mães, renovar oumudar é uma questão de fundo entre esses novospersonagens, muitas vezes sobrecarregados pelo pesodo sucesso de seus ancestrais que serviam pratos quehoje são tidos por muitos comensais como“antiquados” “engessados no tempo”, sobretudoquando comparados à luz da cozinha italiana exercidaatualmente. Nesse caso, as massas preparadas commuito molho de tomate, curtido exaustivamente emfogo lento, e complementadas com queijo, ao lado deassados rústicos, são pratos que não dialogam com atrajetória recente da cozinha italiana ligada à leveza, aoazeite, à simplicidade de preparo.

As novas gerações se deparam com todas essasquestões e se acirram quando há um evidentedescompasso entre o trabalho das mulheres e otrabalho dos homens, este ainda muito valorizado entre

26 Nesse caso, as referênciasde homens e mulheresforam bastante similares.

27 Esse ponto não serádiscutido, mas é claro quehá um imaginário em tornodos chefs que fortalece umapercepção distorcida desua atuação, associado àidéia de que são artistas,inventivos e criativos,embora pouco se fale quea criação de novos pratos,técnicas, preparos e receitasé apenas uma parte mínimade suas atividades.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56166

Page 167: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 167

os membros das famílias de descendentes de italianos.O caso de uma herdeira foi exemplar para ilustrar asdisputas que ainda permeiam o universo das cozinhase entre gêneros. Depreciada pela família do outrosócio, irmão de seu pai, ela foi ao limite quando soubeter sido preterida para ocupar o lugar de responsávelpelas cozinhas do empreendimento, cargo que ficoucom seu primo e que, segundo ela, era um“despreparado, mas homem”. Abriu dois restaurantescom o sobrenome da família e iniciou uma longa edolorosa batalha judicial para obter o direito de usarseu sobrenome nos novos empreendimentos, fato queatraiu o desprezo da família de seu pai, causando umdesgaste profundo entre os envolvidos.

Essa atitude combativa seria uma aberração emoutros tempos, mas deixa claro que há um desnívelpersistente com relação à valorização das capacidadesde homens e mulheres no tocante ao espaço dacozinha. Há ainda outro agravante, o fato de que hojemuitas herdeiras têm oportunidade de realizar um cursoprofissionalizante e ingressam no restaurante sentindoinúmeras dificuldades. Se os pais incentivam seus filhose filhas a cursarem uma faculdade e assumirem osnegócios de modo “mais profissional”, a integraçãoao trabalho nem sempre é um processo suave,conturbado na maioria das vezes com embates deopinião e posições, assim como dificuldades em lidarcom funcionários antigos, principalmente aqueles queestão na cozinha. Nesse caso, a boa formação queproporcionou um título de chef, por exemplo, ao invésde ser um ganho, passa a ser um problema.

Essas condições observadas de modo bastanterecorrente nos restaurantes que compuseram otrabalho de campo de minha pesquisa refletem outrasituação não colocada de modo claro. Na verdade,ao falar sobre manter ou não pratos no cardápio, aceitara vinda de um chef ou não, revela a preocupaçãoacentuada com o futuro. As novas gerações e, emespecial as mulheres, precisam mostrar sua capacidade

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56167

Page 168: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

168 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

de dar continuidade ao trabalho de sua família eancestrais, pressionados para “dar certo” como seuspais e avôs. No fundo, não é manter o que foiconstruído, mas medo de perder todo o trabalho degerações. As mulheres se questionam a respeito de seupreparo para enfrentar esses obstáculos, muitas vezessem incentivo no interior da família para assumir aresponsabilidade do estabelecimento, amargandovários dissabores.

De qualquer modo, o fato é que restaurantes decomida italiana hoje na cidade de São Paulo raramentesão conduzidos por mulheres e quando isso ocorre,sua colaboração continua despercebida. É o caso deuma famosa cantina paulistana e que pouca gente sabeque sua cozinha está na mão de uma única cozinheirahá mais de trinta anos. Sua prática não foi adquiridade aprendizado em escolas ou cursos internacionais,pelo contrário, mas a comida servida no restaurante éfamosa na cidade, especialmente um dos pratos feitosà base de carne, uma criação dela e do proprietáriodo estabelecimento, normalmente apontado como o“autor da invenção”.

A ausência de um reconhecimento nos leva aperguntar se de fato estamos diante de mudanças nasrelações de trabalho e a cozinha parece nos indicarque as mulheres ainda enfrentam dificuldades nessesegmento. O fato de que as mulheres não conquistaramo mesmo valor quando desempenham funçõesequivalentes aos homens na cozinha, abre somente umespaço menos favorecido para sua atuação, reforça asraízes da desigualdade, especialmente aquelasobservadas no espaço doméstico.

O fato é que embora se afirme com veemência aigualdade de oportunidades e acessos, não é o queocorre na realidade. As mulheres acabaram dissolvidaspelo ácido corrosivo das memórias de uma cidadeque se vê cosmopolita e Capital Mundial daGastronomia, algumas poucas encontram seu lugar,mas em geral são exceções à regra. Permanecem entre

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56168

Page 169: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 169

sombras e o eterno caminhar com a cozinhadoméstica, invisíveis aos olhos da cidade, emboraenchendo estômagos anônimos da cidade plural.

A partir de suas colaborações em distintosmomentos e contextos, as mulheres tentam hojedelimitar sua existência não apenas como vultosfragmentados na história da cidade, dos grupos e dasfamílias. Não querem ser apenas uma “ajuda” nosnegócios, embora ainda enfrentem muitos conflitosespecialmente quando o empreendimento é herdadoe pertence a um núcleo familiar mais amplo.Reconhecer esse trabalho é retirar da escuridão oenvolvimento profundo dos braços femininos ematividades que no senso comum dizem respeito aomundo masculino, mas como se pôde observar, sãopercepções ainda presas às armadilhas da desigualdade.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ABDALA, Mônica Chaves. Self-services: espaços de uma nova cenafamiliar. Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, v. 6, n.6, jan/jul.1999.

________ . Do tabuleiro aos self-services. Caderno Espaço Feminino,Uberlândia, v. 13, n.16, jan/jun., 2005.

ALVIM, Zuleika M.F. Brava Gente! São Paulo: Editora Brasiliense,1986.

________ . O Brasil Italiano (1880-1920). In: FAUSTO, Boris(org.). Fazer a América. São Paulo: Edusp, 2000.

COUNIHAN, Carole. Around the tuscan table. New York:Routledge, 2004.

COUNIHAN, Carole; VAN ESTERIK, Penny (Eds.). Food andculture. New York: Routledge, 1997.

DEFFONTAINES, Jean-Pierre. Le terroir, une notion

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56169

Page 170: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas

170 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

polysémique. In: BÉRARD, Laurence; CEGARRA, Marie;DJAMA, Marcel; LOUAFI, Sélim; MARCHENAY, Philippe;ROUSSEL, Bernard; VERDEAUX, François (ComissionEditoriel). Biodiversité et savoirs naturalists locaux en France. Paris:Editions Cirad, Idar, IFB, Inra, 2005.

FINKELSTEIN, Joanne. Dinning out. New York: New YorkUniverstiy Press, 1989.

GABACCIA, Donna. We are what we eat. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1998.

HELSTOSKY, Carol. Garlic & Oil: food and politics in Italy.New York: Berg, 2004.

HUTCHINSON, Bertram. Mobilidade e Trabalho: Um estudo nacidade de São Paulo. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de PesquisasEducacionais, INEP – Ministério da Educação e Cultura, 1960.

LAFERTÉ, Gilles. La production d’identités territoriales à usagecommercial dans l’entre-deux-guerres en Bourgogne. In: Cahiersd’economie et sociologie rurales, n.62, 2002.

MASPLÈDE, Jean-François. Trois étoiles au Michelin. Paris:Editions Gründ, 2004.

MURCOTT, Anne. Family Meals – a thing of the past?. In:CAPLAN, Pat. Food, health and identity. London: Routledge, 1997.

MURCOTT, Anne. Raw, cooked and proper meals at home. In:MARSHALL, David. Food choice and the consumer. Glasgow: BlackieAcademic & professional, 1995.

MURCOTT, Anne. On the social significance of the “cookeddinner” in South Wales. In: Social Science Information, v. 21, n. 4/5, 1982.

PENTEADO, Jacob. Belenzinho, 1910. São Paulo: CarrenhoEditora da Um, 2003.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56170

Page 171: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Janine Helfst Leicht Collaço

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 171

PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e Sobrevivência: Avida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo, 1890 a 1914.Tese [Doutorado em História] Faculdade de Filosofia, Letras eCiências Humanas -USP, 1984.

RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole:sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950. In: PORTA, Paula.História da Cidade de São Paulo v.3: a cidade na primeira metade doséculo XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

RICHARDS, Audrey. Hunger and work in a Savage tribe. London:Oxford University Press, 1939.

VAN OTTERLOO, Anneke. Chinese and Indonesian restaurantsand the taste for the exotic food in Neatherlands: a local-globaltrend. In: CWIERTKA, Katarzyna; WALRAVEN, Boudewijn.Asian Food: The global and the local. Honolulu: University ofHawai’I Press, 2001.

Outras referênciasOutras referênciasOutras referênciasOutras referênciasOutras referências

RELATÓRIO de Trabalho. Lyon, Capitale Mondiale de laGastronomie?Rapport du groupe de travail - Lyon 2020, Grand Lyon– communauté urbaine. Directeur de la publication: CorinneTourasse. Coordination: Emmanuel Arlot, Jean-Loup Molin. fév.2007.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56171

Page 172: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56172

Page 173: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CORPOCORPOCORPOCORPOCORPO, IDENTID, IDENTID, IDENTID, IDENTID, IDENTIDADE E POLÍTICAADE E POLÍTICAADE E POLÍTICAADE E POLÍTICAADE E POLÍTICA

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56173

Page 174: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56174

Page 175: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 175

Genero, clase y gusto alimentario. unaGenero, clase y gusto alimentario. unaGenero, clase y gusto alimentario. unaGenero, clase y gusto alimentario. unaGenero, clase y gusto alimentario. unaaproximación teóricaaproximación teóricaaproximación teóricaaproximación teóricaaproximación teórica11111

Pedro Sánchez Vera

Resumen: El artículo versa sobre las relaciones entre género,cuerpo y alimentación y se pone en relación con la clase socialy el estilo de vida, haciéndose particular énfasis en la perspectivadel hábitus de Bourdieu.

Palabras-Chave: Alimentación (sustancia y forma). ClaseSocial. Estilo de Vida. Cuerpo. Aspecto Físico. Sobrepeso.

Abstract: This article deals with connections between bodyand nutrition, relating social class to life style, stressing inparticular Bordieu´s habits.

Keywords: Nutrition (substance and form). Gender. SocialClass. Lifestyle. Body. Physical Appearance. Overweight.

Pedro Sánchez Vera. Doctor en Sociología (especialidad Población)y Licenciado en Filosofía. Catedrático de Universidad deSociología desde 2002. Universidad de Murcia. Departamento deSociología y Política Social - Facultad de Economía y Empresa.Campus de Espianrdo. 30.100 Murcia (España) [email protected]

1 Texto recebido: 14/03/2008.Texto aprovado: 02/06/2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56175

Page 176: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

176 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

1. Introducción1. Introducción1. Introducción1. Introducción1. Introducción

Vemos en este artículo algunas de las tendenciassociales sobre el cuerpo, haciendo especial énfasis enla incidencia de la alimentación en el cuerpo, y comolas sociedades ejercen un creciente control sobre loscuerpos. El asunto de definir y caracterizar al sujetopor su aspecto corporal es antiguo. Ya el espíriturenacentista puso de moda la vieja “ciencia” clásica dela fisiognómica, esto es: adivinar el carácter de unapersona a través de sus rasgos físicos, principalmentelos del rostro, o las aproximaciones pre-científicas aclasificar los hombres en función de sus rasgoscorpóreos.

La presentación del cuerpo es un aspecto centralen nuestras sociedades. Los especialistas en sociologíadel cuerpo suelen poner de rieve la importancia de larelación con el otro en el moldeado de la corporeidad2

. Una disociación entre el aspecto físico y “alma delmismo” es de lo que se trata. Cada vez es más difícilleer el “origen social” del cuerpo, lo cual no excluyeque siga habiendo una estrecha relación entre origensocial y aspecto físico, siendo un condicionante cadavez mayor el estilo de vida y los aditamentos con losque acicalamos y presentamos nuestro cuerpo3.

El aspecto físico del cuerpo (que incluyeconformación física propiamente dicha y forma depresentarlo), es siguiendo a Bourdieu, de todas lasmanifestaciones de la “persona” la que menos y másdifícilmente se deja modificar, expresando el serprofundo o la naturaleza de la persona. La distanciaentre un cuerpo real y cuerpo legítimo (“el cuerpohabla incluso cuando no se quiere que hable”)4. Resultaeste hecho paradójico en sociedades que se esfuerzanen cambiarse y en disimular el aspecto físico (que elcuerpo no hable diciendo nuestra edad o nuestroorigen social). De un lado, la distancia cultural con laque los sujetos queremos separarnos de la naturaleza.De otra las políticas que ejercen un control cada vez

2 Le Bretón, D. La sociologíadel cuerpo. Nueva visión. B.Aires, 2002.

3 SCHILDER, P. Imagen yapariencia del cuerpo humano:estudios sobre las energíasconstructivas de la psiqué.Paidós. Barcelona, 1983.

4 BOURDIEU, P. Notasprovisionales sobre la percepciónsocial del cuerpo, en VV.AA.Materiales de SociologíaCrítica. Las ediciones de laPiqueta. Madrid, 1986.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56176

Page 177: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 177

más real y efectivo sobre los cuerpos. En cualquiercaso, el cuerpo –y este en sus relaciones con laalimentación y el - está sujeto a una complejidadconceptual (y que desborda el cometido de estaspáginas). La importancia conceptual y epistemológicadel género y del sexo en los procesos identitarios esun asunto del mayor alcance para la sociología delcuerpo contemporánea5

La clase y cada vez más los estilos de vida, diferentesestos últimos según los sexos, van a determinar lasrelaciones y el consumo de alimentos, así como lapercepción que cada uno de los géneros hace de supropio cuerpo.

El cuidado del cuerpo y en particular laalimentación tiene un valor social y cultural de primerorden. Así, no solo es la clase la determinante del gustoen alimentación. Ya Bourdieu pone de relieve laimportancia de esta en los distintos hábitos alimenticiosde distintos colectivos (v.gr: empresarios, profesores,trabajadores, etc)6. No es de extrañar pues que elcuerpo esté estrechamente ligado y condicionado porlos “estilos de vida”. Sobre este particular, algunosespecialistas en consumo llegan a firmar que en nuestrassociedades, el cuerpo es más exponente del estilo devida que de la propia posición social7. Siguiendo conesta perspectiva, no es de extrañar que un ciertointerclasismo alimentario se haya ido instalando en lassociedades a medida que estas se desarrollan y elcontrol sobre los propios cuerpos se haceprogresivamente interclasista e igualitario para losgéneros8. Dicho interclasismo e igualdad de género -visto desde una perspectiva cronológica- viene dadopor una mejora colectiva en la alimentación y en uncontrol progresivo sobre la ingesta de calorías que haráque los cuerpos se igualen progresivamente tambiénen el peso. La mejora de la alimentación en calidad seva traducir en un incremento de las estaturas y en unaprogresiva tendencia a la igualación de las formas(menor peso) –con una cada vez mayor independencia

5 v.gr: BUTLER, J. Cuerpos queimportan (sobre los límitesmateriales y discursivos del“sexo”). Paidos, Barcelona.2002; PERA, C. Pensar desdeel cuerpo (Ensayo sobre lacorporeidad humana).Tricastela. Madrid, 2006.

6 BOURDIEU, P. La distinción.Taurus. Madrid, 1991.

7 CASTILLO CASTILLO, J.El cuerpo recreado: laconstrucción social de losatributos corporales. Rev.Sociología n. 2. Universidadeda Coruña. A Coruña, 1997.p. 41-42.

8 DE MIGUEL, A. Sobre gustosy sabores: los españoles y lacomida. Alianza. Madrid,2004 y DE MIGUEL, A.; DEMIGUEL, I. Saber beber sabervivir. Opiniones de losespañoles sobre la ingestade alcohol y otros usos.Centro de InvestigacionesSociológicas. Madrid, 2002.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56177

Page 178: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

178 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

de la clase social y del género-, conforme las sociedadesadquieren un cierto grado de desarrollo.

Los estilos de vida, no cabe duda que estándeterminando –junto a la clase- por la relación y elcontrol que tienen los sujetos sobre los alimentos queingieren y por su manifestación en el aspecto físico(antropometría: estaturas, pesos). Este hecho ha sidopuesto de relieve por diferentes expertos en sociologíadel consumo, algunos de los cuales llegan a hablar dela fragmentación social, el individualismo y las nuevasdesigualdades sociales que operan en nuestrassociedades contemporáneas9, otros hablan de laincidencia de la globalización y el consumo en laproducción de estilos de vida10.

2. Género-clase y alimentación2. Género-clase y alimentación2. Género-clase y alimentación2. Género-clase y alimentación2. Género-clase y alimentación

Con referencia a la alimentación, algunosespecialistas han puesto de relieve como la cocina y elpreparado de los alimentos está estrechamente ligadoa las clases sociales11, Bourdieu ha señalado12, laexistencia de una cultura de género en relación al tipode alimentos, a la cantidad y a su forma de consumirlos.

Para Bourdieu, el gusto sobre alimentación, estávinculado a la idea que cada clase se hace del cuerpo,de los efectos de la alimentación sobre el mismo(fuerza, salud, belleza) y de las categorías empleadaspara la evaluación de dichos efectos. En PierreBourdieu, el hábitus tiene una estrecha relación con laalimentación, hasta el extremo de que son un exponenteno solo ya de la interacción entre la estructura del gastoen alimentación, sino también de la estructura social yla sociología del gusto de cada sujeto. Culturaconvertida en natura, esto es incorporada, clase hechacuerpo, el gusto contribuye a hacer el cuerpo de laclase (..) el cuerpo es la más irrecusable objetivacióndel gusto de clase, que manifiesta de diversas maneras.En primer lugar, en lo que tiene de más natural enapariencia, es decir en las dimensiones (volumen,

9 ALONSO, L. E.,Fragmentación social,individualización y nuevasdesigualdades. Rev. AbacoSegunda Ëpoca. n. 37-38.Madrid, 2003.

10 CALLEJO, J. La producciónde estilos de vida desde laglobalización del consumo.Rev. Abaco Segunda Ëpoca. n.37-38. Madrid, 2003.

11 v.gr : GOODY, J. Cocina,cuisine y clase (estudio desociología comparada).Gedisa. Barcelona, 1995.

12 BOURDIEU, P. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56178

Page 179: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 179

estatura, peso, etc) y en las formas (redondas ocuadradas, rígidas y flexibles, rectas o curvas, etc) desu conformación visible, en las que se expresa de milmaneras toda una relación con el cuerpo, esto es, todauna manera de tratar el cuerpo, de cuidarlo, de nutrirlo,de mantenerlo, que es reveladora de las disposicionesmás profundas del hábitus13.

Una diferencia primigenia de Bourdieu14 en loconcerniente al gusto (de cualquier tipo) es la que seestablece entre “gustos de lujo” y “gustos denecesidad”, siendo los primeros propios de quienestienen unas condiciones materiales de existencia queles distancian de la pura necesidad. Respecto a losgustos de de necesidad, expresan las necesidades delas que son producto, pudiéndose deducir estos gustos“populares” en lo concerniente a los alimentos, por lapreferencia por los alimentos más alimenticios y máseconómicos. En cualquier caso, la idea de “gusto” enBourdieu es un concepto básicamente burgués, puestoque lleva implícita la libertad absoluta de elección, yestá tan vinculada a la idea de libertad que hace difícilentender el gusto por necesidad.

Ciertamente que la posición de Bourdieu parece ala sazón excesiva, salvo en situaciones de extremamenesterosidad (donde también caben gustos ypreferencias), hecho inconcebible en las sociedades declases medias y de consumo de masas. En cualquiercaso, es un discurso pedagógico y analítico sobre elgusto y la libertad de elección e implícitamente aceptaque existen preferencias también dentro del gusto pornecesidad.

El gusto por necesidad, deviene en un “estilo devida” propio, que se define como tal negativamente ypor defecto, por la relación de privación con otrosestilos de vida. Así, desde el “racismo de clase” –entérminos bourdieanos- se entiende que esos estilos devida basados en la necesidad “no saben vivir”. Estoexplica que sean esas clases basadas en la necesidad,las que dediquen más dinero a alimentos pesados,

13 Ibidem, 1991. p.188.14 Ibidem, p. 177.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56179

Page 180: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

180 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

groseros y vulgares, a los que más engordan (pan,patatas, grasas), los que menos dedican a vestido y acuidados corporales, a la cosmética y a la estética, losque “no saben descansar” y siempre encuentran algoque hacer (no saben vivir)15 .

Bourdieu señala como el comer y el beber son sinduda de los pocos terrenos que quedan en los que lasclases populares se oponen al arte de vivir legítimo16,sin embargo se echan en falta más reflexiones sobre elsexo (uno de los placeres de los que Malthus queríaprivar a los pobres), su papel y los gustos sobre loscuerpos unidos a la sexualidad, en relación de las clasessociales (y de los estilos de vida).

Así, la definición social de los alimentosconvenientes está ligada a la representación del cuerpopercibido (gordura o delgadez) y del esquema corporalque vincula la manera de mantener el cuerpo duranteel acto de comer, lo que condiciona la selección dedeterminados alimentos. Esto explica según Bourdieu,como el pescado es poco conveniente para las clasespopulares y en particular para los hombres, y esto porvarias razones, por un lado porque se trata de unaalimentación ligera que no sostiene al cuerpo (comidade enfermos y de niños), y porque al igual que lasfrutas (con excepción del plátano) requieren un ciertomanipulado por manos expertas.

Un aspecto enfatizado por Bourdieu, es como laidentidad masculina (virilidad) de las clases populares,pasa mucho a través de las expresiones del comer. Deesta manera, con el pescado, las manos del hombrede clase popular (es como un niño), tiene impotenciaen su manipulado, ya que exige ser comido de unaforma que contradice la propia manera masculina decomer, y requiere comerlo con cuidado y moderación(a bocados pequeños, masticándolo ligeramente, conla parte delantera de la boca, manteniéndolo en la puntade los dientes a causa de las espinas). Así nos habla deuna forma masculina de comer (con todos los dientesy a grandes bocados), y una forma femenina de comer

15 Ibidem, p. 178-179.

16 Ibidem, p. 179.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56180

Page 181: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 181

(con desgana y a trocitos). También los hombrescomerán y beberán, más cantidad y de alimentos másfuertes:

durante el aperitivo, a los hombres se les servirán dos veces (ymás si es fiesta) y colmando los vasos, que serán grandes (..)y dejarán las cositas de picar (galletitas saladas, cacahuetes,etc.) para los niños y las mujeres que beben solo un vasopequeño (“es preciso no perder la cabeza”) (…De igual modo,entre las entradas, la chacinería es más bien para los hombrescomo luego el queso y éste tanto más, cuanto más fuerte es,mientras que las frutas y las verduras crudas son más bienpara las mujeres (..) La carne, alimento nutritivo porexcelencia, fuerte y que da fuerza, vigor, sangre y salud, es elplato de los hombres, del que repiten, mientras que las mujeresse sirven un trozo pequeño17.

La cantidad, la abundancia está indisolublementeligada a la masculinidad (especialmente identitaria enla clases populares) y a la restricción en las mujeres. Alos hombres el plato y el vaso se les llena dos veces yhasta arriba (privilegio que como señala Bourdieu18,es un privilegio que marca el paso a la adultez. Estehecho condiciona el aspecto físico, pues además valigado a la ingesta de determinado tipo de alimentosespecialmente nutritivos y ricos en grasas.

Las reflexiones sobre género, comida y gusto sonmuy abundantes y enriquecedoras, tanto desde lasociología como desde la antropología. Desde laperspectiva antropológica, Levi-Straus ha analizado laforma de cocinar y la estructura del lenguaje universalde la cocina19: Crudo (asado) Cocido (ahumado),Podrido (hervido). Así, lo asado se relaciona con laexo-cocina (cocinado fuera), vinculado al hombre(cocina en la barbacoa, el hombre vive en el bosque),lo hervido se asocia a la endo-cocina 20.

Cada una de estas clases de alimentos, tienen efectosdistintos en el cuerpo. Así, la comida es en cierta manerauna extensión de nuestro propio cuerpo, contribuyendo

17 BOURDIEU, P. Op. cit., p.189.

18 Ibidem, p. 193.

19 LEVI-STRAUSS, C. El origende las maneras de mesa. SigloXXI. México, 1970, p.428.

20 LEVI-STRAUSS, C. De lamiel a las cenizas. Siglo XXI.México, 1971, p.196.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56181

Page 182: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

182 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

a su moldeado o forma (topos). Lo que entra en elcuerpo (comida), en cierta manera le pertenece, lo quesale es una extensión de él (hedor, excrementos:mayores y menores, etc)21. En un evocador trabajosobre el género y los alimentos, este autor22 relacionabala figura femenina con los alimentos23 y con lanatalidad, señalando como la mujer ha sido sometidaa reglas en sus papeles de madre metafórica que nosalimenta y de madre metonímica que nos pare24.Poniendo de relieve como -en el imaginario social-,de la madre nos viene el cuerpo y el alimento natural(naturaleza), y del padre el alimento espiritual (cultural).Y como lo cultural viene de lo natural. Lo cultural quepreserva y potencia lo natural tiene sexo masculino,mientras que lo cultural que degenera natural esfemenino. El hombre es cultura y la mujer es paso dela naturaleza a la cultura. La cultura femenina es laregulación de la naturaleza, un periodo o regla: “tanfatal sería que las mujeres dejaran de parir -o que nonos dieran de comer- como que parieran sin parar –oque nos atiborraran (…) La sujeción de las mujeres alas reglas periódicas (periodo o regla: “estoy con elperiodo”, “me he puesto mala”) funda el orden social:de ahí el peligro de la insubordinación, de la alteraciónde sus ritmos fisiológicos (..) Hay una analogía entrelos excrementos y la sangre menstrual (…) La mujerno puede aparearse o tocar los alimentos que cocinacuando tiene la menstruación: pues los posibles restos(la naturaleza no completamente periodizada)contaminarían lo que tocaran25. Así, en cierta manera,la mujer que no cuida –que no da de comer, inclusoabsteniéndose ella- es como la que no pare26.

Jesús Ibáñez27, va a resaltar como –de ciertamanera-, lo que comemos –los alimentos queingerimos-, pasan a formar parte de uno mismo. Espor esto, haciendo una extensión freudiana –nuestrosolores, heces y excrementos- son una extensión denuestros cuerpos.

Freud de manera muy poética pondrá de relieve

21 IBAÑEZ, J. Para una sociologíade la vida cotidiana. Siglo XXI.Madrid, 1994, p. 81.

22 Ibidem, p. 80-91.23 Ibidem

24 Ibidem, p. 83.

25 Ibidem, p: 81-83.

26 SAU, V. El vacío de lamaternidad. Icaria. Barcelona,1995.

27 IBANEZ, J. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56182

Page 183: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 183

como el niño durante la fase anal -de control deesfínteres- regala “con amor” sus heces a sus padres28.La fase anal se extiende, aproximadamente, entre losdieciocho meses y los cuatro años y la actividad analadquiere unas connotaciones libidinosas. El ano seconstituye en la zona erógena (fuente corporal deexcitación) por excelencia. Otra característica de estafase es la aparición de la polaridad actividad-pasividad,ligada a la posibilidad tanto de retener como expulsarlos excrementos. La limpieza, el orden y la belleza,claros productos culturales aunque aún nocomprendidos del todo, incidirán en la vida del sujetode aquí en adelante; sobre todo la limpieza en estafase. Es en este sentido que la madre en el acto delimpiar al niño de las respectivas necesidades queproduce, erogenizará la zona anal; con la que el sujetobuscará satisfacción autoerótica mediante la expulsióny retención de heces. Se observa que el “yo” estáconstituido y que, también, existe un “mundo externo”(M.E.) productor de placer y displacer. El niñocomprende esa división entre “yo” y el “mundoexterior” y se manifiesta sobre él, con el único objetoque produce: las heces. Así, a través de la retención ola expulsión, el niño expresa su afecto u odio hacia lamadre o “mundo externo”. El niño comprende esteM.E. y la existencia de los objetos presentes en él,mediante la investidura (depositar carga) de su libidoyoica en los objetos formando la libido objetal (fuerzapulsional de variación cuantitativa, cuando la libidoyoica catectiza a los objetos). También existe un afánde dominio hacia el mundo exterior, apreciable en laaparición de los pares opuestos: sadismo-masoquismoy exhibición-contemplación (el niño destruye, manipulaobjetos y observa a los objetos: personas). Esta fasees crucial en relación a la intervención de la cultura,impone ciertas reglas de conducta frente a algunossucesos: el niño debe ir al baño por sí solo, debe serlimpio y ordenado, debe llevarse bien con otraspersonas, etc. Se empiezan a formar los diques

28 FREUD, S. Introducción alpsicoanálisis. AlianzaEditorial, Madrid, 1979.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56183

Page 184: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

184 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

psíquicos que impedirán a las pulsiones exteriorizarsesino es por la vía de la sublimación, o reprimirán a laspulsiones. La formación reactiva y las mocionesreactivas (fuerzas anímicas contrarias) aparecen y seprolongarán en el curso de la vida, colaborando en eldesarrollo anímico del individuo, según las exigenciasculturales, así la cultura fabrica conceptos como: asco,vergüenza, etc.29.

Volviendo a Bourdieu, otro de sus elementoscentrales es todo lo concerniente a la actitud corporaly a las formas de comer. Así, frente al comer “confranqueza” propio de las clases populares (todo en elmismo plato, comiendo con los dedos si conviene,sin importar la forma de presentarse en la mesa y depresentar la mesa), se opone la forma burguesa de“guardar las formas”, donde hay una secuenciaciónde fases en la comida (presentación-aperitivo, nudo-platos, desenlace-postre-sobremesa), presentación delos alimentos, y de la mesa (disposición de loscubiertos, copas, manteles, servilletas, etc), una formade estar vestido, tras cada plato hay un cambio deescenografía en la mesa, etc. Así, se contraponen doshábitus: el de la comida como necesidad, y el de lacomida como ceremonia social. Es decir la concepciónde los alimentos y del acto de comer, en suma, laoposición entre “forma y “substancia”, “ser” y“parecer”, lo “natural” frente a la “apariencia”30.

3. Control, disumulo y gusto alimentario3. Control, disumulo y gusto alimentario3. Control, disumulo y gusto alimentario3. Control, disumulo y gusto alimentario3. Control, disumulo y gusto alimentario

Sobre la presentación del cuerpo en sociedad ysobre el valor simbólico de este, los sujetos estamossujetos desde una cierta lógica del poder, a ejercer uncontrol sobre nuestros propios cuerpos, poniéndolosen la escena social, e interiorizando los dictámenes quela realidad social objetiva ejerce sobre los mismos31.Como señalaba Foucault32, una pauta de control sociales aquella que se encuentra larvada en distintos ynumerosos puntos del terreno social, formando una

29 FREUD, S. Obras completas(3 v.). Biblioteca Nueva,Madrid, 1973.

30 BOURDIEU, 1991.

31 Sánchez Vera, P.; Bote Díaz,M. Los mayores y el amor (unaperspectiva sociológica ).Colección Edad ySociedad. Nau Libres.Valencia, 2007.

32 v.gr : FOUCAULT, M.Microfísica del poder. LaPiqueta, Madrid, 1980;FOUCAULT, M. et al.Espacios de poder. La Piqueta,Madrid, 1981.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56184

Page 185: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 185

especie de constelación de estructuras, la cual está entodas partes y en ninguna a la vez. Así, el control –aveces obsesivo –sobre nuestros cuerpos y las muyvariadas formas de “disimulo” del origen social, sonasuntos muy abordados por la sociología, tal comohemos señalado más arriba. La perspectiva de géneroes central para poder entender en toda su magnitud elejercicio del control y del disimulo sobre los cuerpos33

Vamos a ver a continuación, y a modo de ejemploa través de un pasaje literario de El Quijote como el“control” sobre el cuerpo y el “disimulo” de losapetitos de este, generan contradicciones entre elcuerpo real y el deseado, corroborando así una a unala perspectiva de Pierre Bourdieu sobre cuerpo yalimentación.

Los muy atinados consejos de D. Quijote a Sancho,son un ejemplo del “disimulo” del origen social. Perocomo señala Bourdieu (con su proverbial sentidocrítico), el cuerpo -a pesar de todas las estrategiasdestinadas a hacerlo presentable o representable-, esde todas las manifestaciones de la persona la que menosy más difícilmente se deja modificar tanto de modoprovisional como de modo definitivo ya que es elmejor exponente del origen social34.

Volviendo a Sancho y reinterpretando a Bourdieu,respecto al gusto por necesidad, existe en su opiniónun “racismo de clase” que asocia al pueblo con “logrueso y con lo graso rojo fuerte (...) con lo tosco,con los zuecos, con los trabajos pesados, con lasrisotadas, con las bromas pesadas y groseras, etc.”35.

El gusto alimentario de Sancho va estar ligado a loque Bourdieu llamará la idea que cada clase se hacedel cuerpo y de los efectos de la alimentación sobre símismo (fuerza, salud, belleza) y de las categorías queutiliza para evaluar estos efectos36. Así las clasespopulares estarán más atentas a la fuerza del cuerpo(masculino) que a la forma, tendiendo a buscaralimentos más baratos y nutritivos.

También, respecto a la comida hay maneras

33 v.gr: GIL, M.; CÁCERES, J.(coords.) Cuerpos que hablan(Géneros, identidades yrepresentaciones sociales).Montesinos. Madrid, 2008;GIL CALVO, E. Mediasmiradas (un análisis culturalde la imagen femenina).Anagrama. Barcelona, 2000.

34 BOURDIEU. 1986. p.183-184.

35 BOURDIEU. 1991, p. 177.

36 Ibidem, p. 188.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56185

Page 186: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

186 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

obsesivas, una de ellas es la obsesión por la comida,paradigma de los pueblos secularmente hambrientos.No es de extrañar que Sancho tenga una cierta obsesiónpor la comida, teniendo en cuenta lo miserable de sudieta (pan duro, cebollas, queso revenido y bellotas).En esencia el pensamiento de Sancho es el de “Primumvívere”, como señala un renombrado sociólogoespañol37, puede que el mote de “Panza”, resaltara elimperioso deseo de comer que tenían sus antepasados.Sancho, aparece a ojos de Don Quijote como suopuesto necesario: “Yo nací para vivir muriendo, y túSancho para morir comiendo”.38

Forma y substancia según Bourdieu, están ligadasal cuerpo. En un caso (la burguesía) dará prioridad ala forma (cuerpo) relegando a segundo orden lasubstancia o fuerza. Mientras que la substanciaalimenticia estará vinculada a la función del alimento:mantener el cuerpo fuerte, lo que generará prioridadpor alimentos fuertes, grasos y pesados (cerdo, grasoy salado), frente al pesado o la fruta (poco sabroso ydifíciles de comer).

Sobre estos menesteres relacionados con el cuerpo(y su presencia), la comida y el gusto, Sancho Panzapodría aparecer como un perfecto paradigma paracorroborar algunas de las ideas de Bourdieu. Veamosalgunos pasajes:

En lo que toca a cómo has de gobernar tu persona y casa,Sancho, lo primero que te encargo es que seas limpio, y que tecortes las uñas, sin dejarlas crecer, como algunos hacen, aquien su ignorancia les ha dado a entender que las uñas largasles hermosean las manos, como si aquel escremento yañadidura que se dejan de cortar fuese uña, siendo antesgarras de cernícalo lagartijero: puerco y extraordinario abuso.

No andes, Sancho, desceñido y flojo, que el vestidodescompuesto da indicios de ánimo desmazalado, si ya ladescompostura y flojedad no cae debajo de socarronería, comose juzgó en la de Julio César.

37 DE MIGUEL, A. Sociologíadel Quijote. CIS. Madrid, 2005,p. 165.

38 El Quijote, cap II.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56186

Page 187: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 187

Toma con discreción el pulso a lo que pudiere valer tu oficio,y si sufriere que des librea a tus criados, dásela honesta yprovechosa más que vistosa y bizarra, y repártela entre tuscriados y los pobres: quiero decir que si has de vestir seispajes, viste tres y otros tres pobres, y así tendrás pajes para elcielo y para el suelo; y este nuevo modo de dar librea no laalcanzan los vanagloriosos.

No comas ajos ni cebollas, porque no saquen por el olor tuvillanería.

Anda despacio; habla con reposo, pero no de manera queparezca que te escuchas a ti mismo, que toda afectación esmala.

Come poco y cena más poco, que la salud de todo el cuerpo sefragua en la oficina del estómago.

Sé templado en el beber, considerando que el vino demasiadoni guarda secreto ni cumple palabra.

Ten cuenta, Sancho, de no mascar a dos carrillos, ni de erutardelante de nadie. (D. Quijote, cap.. XLIII).

-Y ¿a quién llaman don Sancho Panza? -preguntó Sancho.

-A vuestra señoría -respondió el mayordomo-, que en estaínsula no ha entrado otro Panza sino el que está sentado enesa silla.

-Pues advertid, hermano -dijo Sancho-, que yo no tengo don,ni en todo mi linaje le ha habido: Sancho Panza me llaman asecas, y Sancho se llamó mi padre, y Sancho mi agüelo, ytodos fueron Panzas, sin añadiduras de dones ni donas; y yoimagino que en esta ínsula debe de haber más dones quepiedra (cap.XLV)

Negociante necio, negociante mentecato, no te apresures;

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56187

Page 188: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

188 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

espera sazón y coyuntura para negociar: no vengas a la horadel comer ni a la del dormir, que los jueces son de carne y dehueso y han de dar a la naturaleza lo que naturalmente lespide (cap. XLIX).

Mirad, señor doctor: de aquí adelante no os curéis de darmea comer cosas regaladas ni manjares esquisitos, porque serásacar a mi estómago de sus quicios, el cual está acostumbradoa cabra, a vaca, a tocino, a cecina, a nabos y a cebollas; y, siacaso le dan otros manjares de palacio, los recibe con melindre,y algunas veces con asco. Lo que el maestresala puede haceres traerme estas que llaman ollas podridas, que mientras máspodridas son, mejor huelen, y en ellas puede embaular yencerrar todo lo que él quisiere, como sea de comer, que yo selo agradeceré y se lo pagaré algún día; y no se burle nadieconmigo, porque o somos o no somos: vivamos todos ycomamos en buena paz compaña (cap. XLIX).

Unos pasajes muy interesantes respecto al “hábitus” modosde vida- destino social y cuerpo), es cuando Sancho vueltaa sus raíces:

Vistióse, en fin, y poco a poco, porque estaba molido y nopodía ir mucho a mucho, se fue a la caballeriza, siguiéndoletodos los que allí se hallaban, y, llegándose al rucio, le abrazóy le dio un beso de paz en la frente, y, no sin lágrimas en losojos, le dijo:

-Venid vos acá, compañero mío y amigo mío, y conllevadorde mis trabajos y miserias: cuando yo me avenía con vos y notenía otros pensamientos que los que me daban los cuidadosde remendar vuestros aparejos y de sustentar vuestrocorpezuelo, dichosas eran mis horas, mis días y mis años;pero, después que os dejé y me subí sobre las torres de laambición y de la soberbia, se me han entrado por el almaadentro mil miserias, mil trabajos y cuatro mil desasosiegos.(cap. LIII)

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56188

Page 189: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 189

Abrid camino, señores míos, y dejadme volver a mi antigualibertad; dejadme que vaya a buscar la vida pasada, para queme resucite de esta muerte presente. Yo no nací para sergobernador, ni para defender ínsulas ni ciudades de losenemigos que quisieren acometerlas. Mejor se me entiende amí de arar y cavar, podar y ensarmentar las viñas, que de darleyes ni de defender provincias ni reinos.Mejor me está a mí una hoz en la mano que un cetro degobernador; más quiero hartarme de gazpachos que estar sujetoa la miseria de un médico impertinente que me mate de hambre;y más quiero recostarme a la sombra de una encina en elverano y arroparme con un zamarro de dos pelos en elinvierno, en mi libertad, que acostarme con la sujeción delgobierno entre sábanas de holanda y vestirme de martascebollinas (cap. LIII)

Otros episodios respecto a la forma de presentarel cuerpo, se pueden ver cuando Sancho desea volvera la comodidad –y a la naturalidad- de su atuendo:

(..) volvámonos a andar por el suelo con pie llano, que, si nole adornaren zapatos picados de cordobán, no le faltaránalpargatas toscas de cuerda. Cada oveja con su pareja, y nadietienda más la pierna de cuanto fuere larga la sábana; y déjenmepasar, que se me hace tarde (cap. LIII)

En un muy interesante trabajo sobre El Quijote,Amando de Miguel39 pone de relieve, como ante elinesperado encumbramiento de Sancho en el episodiode la Ínsula Barataria, D. Quijote va reprochar aSancho su origen humilde, el “haber guardadopuercos” (II, 42).

De otra parte, un análisis de la figura ascética de D.Quijote, sería paradigmática sobre el control que ejerceel sujeto sobre su propio cuerpo, ayuno, abstinencia ydietas hipocalóricas, serían la viva imagen de un sujetoanoréxico40.

39 DE MIGUEL, A. SanchoPanza lee el Quijote. SociedadEstatal dec o n m e m o r a c i o n e sCulturales. Madrid, 2004, p.130.

40 Ibidem, p.101-109

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56189

Page 190: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

190 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

4. Alimentacion, estilo de vida y patologias sociales.4. Alimentacion, estilo de vida y patologias sociales.4. Alimentacion, estilo de vida y patologias sociales.4. Alimentacion, estilo de vida y patologias sociales.4. Alimentacion, estilo de vida y patologias sociales.AAAAAlgunas tendencias socialeslgunas tendencias socialeslgunas tendencias socialeslgunas tendencias socialeslgunas tendencias sociales

Que la alimentación y el control sobre la misma esun hecho de primer nivel en nuestras sociedades, esun hecho al que se le viene prestando creciente atencióndesde la sociología41. Referido al control sobre elcuerpo, en un muy interesante trabajo un expertoseñala: “el cuerpo deviene metáfora de la contingenciacomo espacio impuro –degradable- quecontinuamente debe ser “culturalizado” o reintegradoen la sacralidad de las reglas morales de la comunidada la que pertenece el sujeto, invitándonos al exorcismo–expulsión del mal, que no catarsis- y reglamentaciónnormativa de su materialidad o expresión corporea42.

Nuestras sociedades otorgan al aspecto físico unestatus capital, de tal suerte que hay una exaltación deltrinomio salud-belleza-imagen en todos los órdenes,dentro de una sociedad manifiestamente hedonista.Paradójicamente este hedonismo conlleva un ciertosufrimiento: las dietas y sus privaciones, el ejerciciofísico sacrificado, son algunas formas de infringir undolor a los cuerpos. Es cierto que a través del procesode secularización de las sociedades, el cuerpo ha dejadode estar regido por las creencias religiosas –más omenos severas-, pero ese control del cuerpo ha pasadoa estar en manos de la ciencia. Así, nuestro cuerpo,siempre sometido al rigor de las normas sociales, hoymás que nunca se encuentra sometido a los preceptosde la racionalidad instrumental o formal43.

Desde los muy atinados estudios de Max Webersobre la racionalización de las sociedades y laimportancia del cuerpo humano en la moderna historiaoccidental, a través de una ética (la derivada delprotestantismo calvinista) que trata de regular lasenergías corporales y el destino de estas, controlandoy/o negando los placeres carnales44, o sobre la influenciade la religión católica en general sobre los cuerpos45, olas Igualmente muy interesantes consideraciones de

41 v.gr : CASTILLOCASTILLO, J. El cuerporecreado: la construcciónsocial de los atributoscorporales. Rev. Sociología n.2. Universidade da Coruña.A Coruña, 1997; DEMIGUEL, A. Sobre gustos ysabores: los españoles y lacomida. Alianza. Madrid,2004; SÁNCHEZ VERA, P.Ese oscuro objeto deldeseo: Cuerpo y sexualidaden las sociedades post-industriales. En:MUNÁRRIZ Antropología dela Sexualidad. Regional.Comunidad Autónoma dela Región de Murcia.Murcia 2008; SÁNCHEZVERA, P. ¿Hacia unasociología de la eternidad ?Bases para una prospectivade las sociedades macro-longevas. En VV.AA.Homenaje al profesor MiguelBeltrán. CIS. Madrid, 2008.

42 R O D R Í G U E ZREGUEIRA, J. L.Autonomía y dependencia.La divinización del cuerpo.En: Nómadas (Rev. Críticade Ciencias Sociales yJurídicas) 011 En. - Jun.Madrid, 2005.

43 TURNER, B. S. Avancesrecientes en sociología delcuerpo. Revista Española deInvestigaciones Sociológicas n. 68.Centro de InvestigacionesSociológicas. Madrid, 1994.

44 WEBER, M. La éticaprotestante y el espíritu delcapitalismo. Península.Barcelona, 1969.

45 BROWN, P. El cuerpo y lasociedad (los cristianos y larenuncia sexual). Muchnik.Barcelona, 1993.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56190

Page 191: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 191

Emile Durkheim sobre el suicido y sus tipos –no haymayor negación del cuerpo que quitarlo de en medio46,o las reflexiones de este mismo autor sobre laimportancia del cuerpo en las sociedades de creciente“solidaridad orgánica” como las nuestras, donde nosvemos obligados definir el significado de nuestrocuerpo ante los demás y ante nosotros mismos, 47comoforma de búsqueda de nuestra posición vital, adiferencia del modelo de solidaridad mecánica(sociedades tradicionales donde los sujetos entran enla misma con un cuerpo previamente definido)48.

Otras reflexiones sobre el cuerpo y los “sufrimientos”a los que lo sometemos nos llevan directamente aFriedrich Nietzsche, el cual nos hace ver el placer quenos puede generar hacernos daño, y como esto puedeser una necesidad fundamental del hombre:

“(..) tal vez la escritura mayúscula de nuestra existenciaterrena induciría a concluir que la tierra es el astroauténticamente ascético, un rincón lleno de criaturasdescontentas, presuntuosas y repugnantes, totalmenteincapaces de liberarse de un profundo hastío de sí mismas, dela tierra, de toda la vida, y que se causan todo el daño quepueden, por el placer de causar daño, probablemente su únicoplacer (..) Tiene que ser una necesidad de primer rango lo queuna y otra vez hace crecer y prosperar esta especie hostil a lavida, -tiene que ser, sin duda, un interés de la vida misma elque el tal tipo de autocontradicción no se extinga”49.

No es de extrañar, pues que entre las aficiones delos hombres haya estado a lo largo de la historia elmortificar su propio cuerpo, siendo distintas las razonesy motivos que a ello le han conducido, bien sea motivosrituales (v.gr: manifestaciones de luto como expresiónde la muerte de un ser querido), por motivospedagógicos (“la letra con sangre entra”), por motivosde fe (cilicios, ayunos, duchas de agua fría, etc), o pormotivos de carácter terapéutico (lavativas, purgantes,etc).

46 DURKHEIM, E. El suicidio.Schapire. Buenos Aires,1965.

47 DURKHEIM, E. Las formaselementales de la vida religiosa.Akal. Madrid, 1982.

48 Ibidem.

49 NIETZSCHE, F. Lagenealogía de la moral. Alianza.Madrid, 1972, p.136-137.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56191

Page 192: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

192 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Resulta paradójico que en las sociedades post-industriales, en las que prima el principio del placer,sin embargo, la mortificación del cuerpo sigue estandopresente. Así los ritos de iniciación (pérdida devirginidad, primera borrachera, primer porro) u otrasrazones: el deporte, las dietas de adelgazamiento, noson más que exponentes del daño que infringimos anuestro cuerpo. Otros elementos identitarios tan enboga como pueden ser los piercing – veces en lugaresimposible-, o el boom del tatóo -tatuajes en todas laspartes del cuerpo-, antes relegado a sectores socialesmarginados, son algunos indicadores de esa paradójicaactitud de las sociedades, hedonistas de una parte ycapaces de infringirse dolor de otra. Esto es, comolas prácticas ascéticas del presente, resultan ser elcontrapunto posmoderno de la severidad de la éticaprotestante50, o aún más, el control sobre el cuerpo através de la cirugía estética (liftin, estiramientos,tratamientos sobre la piel, las manchas, el color:aclaramientos, bronceados, etc).

Tal como señala una experta antropóloga, tantanegación del cuerpo en nuestras secularizadassociedades, quizás tenga que ver con “la conquista dela carne, y para algunos esta puede ser la única victoriade su vida”51. Un espacio específico merecerían lasdietas. Quizás sobre las dietas, merezca resaltar comomuchas de ellas están inspiradas en un ascetismo laicono muy alejado del “ayuno” y de la “abstinencia” quepreconizaba el ascetismo monacal, donde se señalabancomo enemigos del hombre: “mundo, demonio ycarne”.

Por otra parte, algunas de las patologías socialesrelacionadas con el cuerpo son un exponente delsufrimiento al que estamos dispuestos a someter anuestro propio cuerpo con el objeto de mantener unaimagen que consideramos adecuada. Dichas patologíasse producen en todas las clases sociales, siendo puescada vez más interclasistas. Así la anorexia (y bulimia)–antes privativa a chicas de estatus alto-, presente a

50 CASTILLO CASTILLO, J. Elcuerpo recreado: laconstrucción social de losatributos corporales. Rev.Sociología n. 2. Universidadeda Coruña. A Coruña, 1997.

51 VLAHOS, O. Body, theultimate symbol. J.B.Lippincott Co. Nueva York,1979, p. 196.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56192

Page 193: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 193

edades cada vez más jóvenes y cada vez más indiferenteal hábitat –antes localizada exclusivamente en lasgrandes ciudades- y del género (antes exclusivamentefemenina y hoy creciendo el número de varonesjóvenes anoréxicos)52, o la aún más reciente vigorexia,esto es, la obsesión por tener un cuerpo musculosollegando a provocar una dismorfía muscular creada apartir de una excesiva práctica del deporte y de unaobsesiva persecución de la belleza física. Ambasenfermedades: anorexia y vigorexia, hunden sus raícesen un alteración de la imagen que el sujeto tiene de símismo, derivada de un rechazo por su cuerpo y eldeseo de acercarse a unos cánones estéticos. Ambasenfermedades han sido definidas por algunosespecialistas como “patologías del narcisismo”53.

Simultáneamente aparece una nueva patología socialdenominada ortorexia, definida como la obsesiónpatológica por consumir solamente comida sana. Estaobsesión puede llegar a transformarse en enfermedadsi no se ingieren carnes, pescado u otros alimentosnecesarios y se producen carencias nutricionales. Estanueva enfermedad, cada vez más patente en lassociedades occidentales, tiene como precedentes laobsesión por las dietas, el culto al cuerpo y el miedo ala comida tratada con productos artificiales.

El interés creciente por la dietética, en tanto que“ciencia que trata de la alimentación conveniente enestado de salud y en las enfermedades” (RAEL), unidoel creciente interés por la alimentación sana –no reñidacon los nuevos hábitos sociales-, así como la dimensiónque está alcanzando el segmento de productosdietéticos y light, son un indicador de la cada vez másgeneralizada preocupación de las sociedades por elcuerpo como realidad física y de la integración deltrinomio salud-belleza-imagen. La antes referida nuevapatología social la “ortorexia” es una obsesiónpatológica por consumir sólo comida de cierto tipo:orgánica, vegetal, sin conservantes, sin grasas, sin carnes,o sólo frutas, o sólo alimentos crudos. La forma de

52 T I N A H O N E SMADUEÑO, F. J. Anorexia ybulimia. Una experienciaclínica. Díaz de Santos.Madrid, 2003.

53 TORO, J. El cuerpo como delito:anorexia, bulimia, cultura ysociedad. Ariel. Barcelona,2.005.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56193

Page 194: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

194 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

preparación - verduras cortadas de determinadamanera— y los materiales utilizados - sólo cerámica osólo madera, etc.- también son parte del ritualobsesivo. Las personas ortoréxicas recorren kilómetrospara adquirir los alimentos que desean pagando porellos hasta diez veces más que por los ordinarios –unkilo de peras a salvo de plaguicidas supera los seiseuros–; si no los encuentran o dudan de su inmaculadoorigen, prefieren ayunar; huyen de los restaurantes yrehusan invitaciones para merendar en casa de losamigos por no saber qué les van a ofrecer. Cuandoincumplen sus propósitos, les embarga un sentimientode culpa que desemboca en estrictas dietas o ayunos.

De otra parte, el debate político sobre el controlde los cuerpos no ha hecho más que comenzar. Undiscurso político –cada vez más hegemónico yglobalizado- implica cada vez más a Estados einstituciones supranacionales –Unión Europea,Organización Mundial de la Salud- a favorecerlegislaciones encaminadas a la erradicación de estosmales de nuestras sociedades fundamentalmente laobesidad y el tabaquismo. Con independencia delcarácter de cruzada –que en opinión de algunos, talesactuaciones tienen-, no es menos cierto que entre lasfunciones del Estado está el favorecer la salud de susciudadanos, para lo cual parece mucho más querazonable que se pongan en juego políticas activas elcontrol del peso, así como el ejercicio de una ciertapedagogía entre los ciudadanos en favor de su saludy que a parte de afectar a la calidad de vida de losciudadanos, puede afectar a los principios de lasolidaridad. Así, algunos Parlamentos han iniciado eldebate –en el que se cruzan y coinciden a vecesposiciones neoliberales con posiciones más sociales-sobre los límites en la implicación del Estado y de losparticulares en la prestación de determinados serviciosde salud a personas obesas y a personas adictas altabaco y que no han querido someterse a tratamientosantiobesidad o desintoxicantes. De esta manera, el

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56194

Page 195: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 195

Estado –como expresión de la sociedad- se preguntahasta que punto tiene que ser solidario con losmiembros que no participan activamente a favor desu salud. Desde el mundo de las aseguradoras algoparecido ocurre cuando estas ponen límites a susprestaciones cuando concurren actos de negligenciapor parte de sus asegurados como puede ser el nollevar casco y padecer un accidente de motocicleta.

La obesidad se ha constituido en una de las grandesenfermedades de nuestras sociedades hedonistas ydonde una cierta opulencia está ligada al nivel de vida(a pesar del manifiesto interclasismo de la misma). Lavida sedentaria y el consumo de la denominada comidabasura (fast food) sobre todo de la bollería industrialsobre todo en la población infantil está haciendo crecerde manera alarmante el número de personas obesas,siendo la obesidad infantil la más llamativa de lasenfermedades a la que hacen referencia muy variados,científicos y documentados estudios. Uno de estos másrecientes estudios referido a los Estados Unidos señalaque la estimación más conservadora supondría lapérdida de entre 4 y 9 meses en la expectativa de vidapara la población de EE. UU en menos de cincodécadas, aunque puede estar pasando ya, la posiciónmás catastrofista eleva el descenso de la esperanza devida entre 2 y 5 años, si no se modifican los hábitos devida urgentemente, así la obesidad superaría el impactodel cáncer o de las enfermedades del corazón sobrela esperanza de vida. En dicho informe se señala quelas dos terceras partes de los ciudadanosnorteamericanos tienen sobrepeso, un tercio de ellosobesidad; y casi un 30 % de los niños sobrepasan concreces el peso ideal54.

Las nuevas tendencias sociales ponen en conexiónla salud con la estética, sin embargo, la estética vacobrando un espacio creciente entre las preocupacionesde las poblaciones, a veces incluso por encima de lapropia salud, tal como lo atestigua el hecho de lasmuy abundantes clínicas y empresas de todo tipo

54 Diarío: ABC n. 19-03-2005,p. 47, Madrid.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56195

Page 196: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

196 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

dedicadas al control de la obesidad, y que la estéticaen mucha mayor medida que la salud sea la razónpara ponerse a dieta para control del peso.

La imbricación creciente entre alimentación y salud-belleza es otra de las tendencias sociales más relevantes.Tal como hemos señalado en otros lugares55 –apropósito de las tendencias de las sociedades longevas-estas vendrán definidas entre otras cosas por unatendencia a la medicalización de la alimentación.

El cuerpo como elemento de interacción social haido cobrando un estatus capital en nuestras sociedades.El cuerpo como plusvalía social y como elemento demovilidad social merecería ser tomado más enconsideración por parte de los sociólogos en lospróximos años. Para una adecuada comprensión dela prospectiva social, el cuerpo no puede ser entendidomás que como una unidad o una totalidad, esto es: laintegración del cuerpo físico sano y la imagen quetransmite a través del cuidado integral del mismo. Endicho cuidado cada vez se hace más difícil deslindarlos aspectos estrictamente médicos de los terapéutico-preventivos, y de los relacionados con la belleza y laimagen.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ALONSO, L. E. Fragmentación social, individualización y nuevasdesigualdades. Rev. Abaco Segunda Ëpoca, n.37-38. Madrid, 2003.

BOURDIEU, P. Notas provisionales sobre la percepción socialdel cuerpo. VV.AA. Materiales de Sociología Crítica. Las edicionesde la Piqueta. Madrid, 1986.

BOURDIEU, P. La distinción. Taurus. Madrid, 1991.

BROWN, P. El cuerpo y la sociedad. (Los cristianos y la renunciasexual). Muchnik Barcelona, 1993.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56196

Page 197: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 197

BUTLER, J. Cuerpos que importan (Sobre los límites materiales ydiscursivos del “sexo”). Paidos, Barcelona. 2002.

CALLEJO, J. La producción de estilos de vida desde laglobalización del consumo. Rev. Abaco Segunda Ëpoca n. 37-38.Madrid, 2003.

CASTILLO CASTILLO, J. El cuerpo recreado: la construcciónsocial de los atributos corporales. Rev. Sociología n. 2. Universidadeda Coruña. A Coruña, 1997.

DE MIGUEL, A. El espíritu de Sancho Panza. El carácter española través de los refranes. Espasa. Madrid, 2000.

DE MIGUEL, A. Sobre gustos y sabores: los españoles y la comida.Alianza. Madrid, 2004.

DE MIGUEL, A. Sancho Panza lee el Quijote. Sociedad Estatal deConmemoraciones Culturales. Madrid, 2004.

DE MIGUEL, A. Sociología del Quijote. Centro de InvestigacionesSociológicas. Madrid, 2005.

DE MIGUEL, A.; DE MIGUEL, I. Saber beber saber vivir.Opiniones de los españoles sobre la ingesta de alcohol y otrosusos. Centro de Investigaciones Sociológicas. Madrid, 2002.

DURKHEIM, E. El suicidio. Schapire. Buenos Aires, 1965.

DURKHEIM, E. Las formas elementales de la vida religiosa. Akal.Madrid, 1982.

FOUCAULT, M. et. al. Espacios de poder. La Piqueta, Madrid,1981.

FOUCAULT, M. Microfísica del poder. La Piqueta, Madrid, 1980.

FREUD, S. Obras completas (3 v.). Biblioteca Nueva, Madrid,1973.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56197

Page 198: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Genero, Clase y Gusto Alimentario. Una Aproximación Teórica

198 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

FREUD, S. Introducción al psicoanálisis. Alianza Editorial, Madrid,1979.

GIL, M.; CÁCERES, J. (coords.) Cuerpos que hablan (Géneros,identidades y representaciones sociales). Montesinos. Madrid, 2008

GIL CALVO, E. Medias miradas (Un análisis cultural de la imagenfemenina). Anagrama. Barcelona, 2000.

GOODY, J. Cocina, cuisine y clase (Estudio de sociologíacomparada). Gedisa. Barcelona, 1995.

IBAÑEZ, J. Para una sociología de la vida cotidiana. Siglo XXI. Madrid,1994.

LEVI-STRAUSS, C. El origen de las maneras de mesa. Siglo XXI.México, 1970.

LEVI-STRAUSS, C. De la miel a las cenizas. Siglo XXI. México,1971.

NIETZSCHE, F. La genealogía de la moral. Alianza. Madrid,1972.

PERA, C. Pensar desde el cuerpo (Ensayo sobre la corporeidadhumana). Tricastela. Madrid, 2006.

RODRÍGUEZ REGUEIRA, J. L. Autonomía y dependencia.La divinización del cuerpo. Nómadas (Rev. Crítica de CienciasSociales y Jurídicas) 011 Enero-Junio. Madrid, 2005.

SÁNCHEZ VERA, P. Tendencias sociales y turismo. Hacia unadeconstrucción del hecho turístico. En: CARMONA, F. (ed.).Libros de viaje y viajeros en la literatura y en la historia. Libro homenajeal profesor Pedro Lillo Carpio. SP. Universidad de Murcia. Murcia.2006, p. 301-333.

SÁNCHEZ VERA, P. Ese oscuro objeto del deseo: Cuerpo ysexualidad en las sociedades post-industriales. En: MUNÁRRIZ, L.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56198

Page 199: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Pedro Sánchez Vera

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 199

Antropología de la Sexualidad. Regional. Comunidad Autónoma dela Región de Murcia, 2008.

SÁNCHEZ VERA, P. ¿Hacia una sociología de la eternidad?Bases para una prospectiva de las sociedades macro-longevas.En: VV.AA. Homenaje al profesor Miguel Beltrán. Centro deInvestigaciones Sociológicas. Madrid, 2008.

SÁNCHEZ VERA, P.; BOTE DÍAZ, M. Los mayores y el amor.(Una perspectiva sociológica). Colección Edad y Sociedad. NauLLibres. Valencia, 2007.

SAU, V. El vacío de la maternidad. Icaria. Barcelona, 1995.

SCHILDER, P. Imagen y apariencia del cuerpo humano : estudiossobre las energías constructivas de la psiqué. Paidós. Barcelona,1983.

TINAHONES MADUEÑO, F.J. Anorexia y bulimia. Unaexperiencia clínica. Díaz de Santos. Madrid, 2003.

TORO, J. El cuerpo como delito: anorexia, bulimia, cultura ysociedad. Ariel. Barcelona, 2005.

TURNER, B. S. Avances recientes en sociología del cuerpo. RevistaEspañola de Investigaciones Sociológicas. n. 68. Centro deInvestigaciones Sociológicas. Madrid, 1994.

VLAHOS, O. Body, the ultimate symbol. J.B. Lippincott Co. NuevaYork, 1979.

WEBER, M. La ética protestante y el espíritu del capitalismo. Península.Barcelona, 1969.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56199

Page 200: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56200

Page 201: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 201

Dimensões da prática social de cozinharDimensões da prática social de cozinharDimensões da prática social de cozinharDimensões da prática social de cozinharDimensões da prática social de cozinharna participação política de mulheres emna participação política de mulheres emna participação política de mulheres emna participação política de mulheres emna participação política de mulheres em

movimentos sociais da Argentinamovimentos sociais da Argentinamovimentos sociais da Argentinamovimentos sociais da Argentinamovimentos sociais da Argentinacontemporâneacontemporâneacontemporâneacontemporâneacontemporânea11111

Adriana Marcela Bogado

Resumo: Com o objetivo de ampliar entendimentos sobrea participação política feminina, neste ensaio apresentamosalgumas dimensões que assume o cozinhar no cotidiano demulheres integrantes de movimentos sociais da Argentinacontemporânea.

Palavras-Chave: Cozinhar. Gênero. Política.Empoderamento.

Abstract: Aiming to broaden the understanding aboutwomen’s political participation, in this essay we present somedimensions that cooking assumes in the daily life of womenwho are members of contemporary social movements inArgentina.

Keywords: Cooking. Gender. Politics. Empowerment.

1 Texto recebido: 27/07/2008.Texto aprovado: 10/08/2008.

Adriana Marcela Bogado, Universidade Federal de São Carlos.Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFSCar) desenvolve pesquisa sobre a participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea,sob orientação da Profa. Doutora Maria Aparecida de Moraes Silvae com financiamento da FAPESP. Mestre em Ciências Sociaispelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCSo/UFSCar). Membro do Grupo de Pesquisa “Terra, Trabalho, Memóriae Migrações”, do Diretório do CNPq, nas linhas gênero e memória.Licenciada em Ensino de Língua e Comunicação, pela UniversidadeCAECE (Buenos Aires, Argentina). Profa. Em Língua, Literatura eLatim, pelo Instituto Superior de Formação docente n. 39 (BuenosAires, Argentina). [email protected]

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56201

Page 202: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

202 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Neste ensaio, identificamos diferentes dimensõesassumidas pela prática social de cozinhar no cotidianode movimentos sociais da Argentina contemporânea,apontando articulações entre o cozinhar, a política e ogênero, e salientando a necessidade de referenciaisteórico-metodológicos que permitam revelar acomplexidade e multiplicidade de sentidos dessaprática social.

Inicialmente, é necessário esclarecer queentendemos o cozinhar como “prática social”, com osentido dado por SILVA et al.2: relações estabelecidasentre pessoas, pessoas e comunidade que, numprocesso intersubjetivo se apropriam de valores ecomportamentos vinculados a uma cultura, numdeterminado contexto histórico, encaminhando-separa a criação de si mesmos. Também entendemosque:

No ato alimentar humano são ingeridos nutrientes, mastambém valores. O quê, como, quando, onde e com quemse come refletem escolhas realizadas por um grupo social.Visões de mundo se expressam nos atos de selecionar ecombinar ingredientes e modos de preparo da comida, deeleger maneiras de ingeri-la e de descartá-la. Assim é quepodemos dizer que a cultura se materializa no prato e,ainda, que a comida fala, expressando identidades erelações sociais, inclusas as de gênero.3

Mas, antes de prosseguir, cabe esclarecer que nossaproposta de estudo pretende contribuir para asuperação de visões distorcidas e estereotipadas acercado tema foco de nossa pesquisa: a participação políticade mulheres em movimentos sociais da Argentina,surgidos nas últimas décadas como formas deresistência às conseqüências do modelo neoliberalimplementado no país. Uma das principais dificuldadesapresentadas a tal estudo refere-se ao fato de que a

2 SILVA, Petronilha et al.Práticas sociais e processoseducativos : costurandoretalhos para a colcha. SãoCarlos/SP: 2007, textomimeo, p. 4-6.

3 ABDALA, Mônica;MENASCHE, Renata;ASSUNÇÃO, Viviane K. de.Proposta para o SimpósioTemático Comida e Gênero.In: FAZENDO GÊNERO,VIII, 2008, Florianópolis.Disponível em: <http://www.fazendogenero8.ufsc.br/st06.html> Acesso em: 20ago. 2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56202

Page 203: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 203

política é uma atividade historicamente negada àsmulheres, segundo o sistema patriarcal de sexo-gênerovigente na nossa sociedade4. Embora com avanços,tais como a recente e crescente presença de mulheresocupando cargos de governo em alguns países daAmérica Latina, o campo da política continua sendoum dos mais resistentes ao ingresso feminino5.

Porém, quando se analisa a participação políticanos movimentos sociais, um fato que poderia serinterpretado como contraditório é amplamenteobservado: a presença majoritária de mulheres e adiversidade de suas formas de intervenção eparticipação. Assim, no contexto atual, os movimentossociais se apresentam como espaços privilegiados parao estudo da participação política feminina. Nessesentido, a própria dinâmica dessas organizaçõespermite o ingresso dos sujeitos mais afastados da açãopolítica, pois visa à expressão de interesses econsecução de metas, com normas, regras e relações“ainda não cristalizadas em estruturas sociais”6, e apartir de uma institucionalidade que pode sercontestada e renegociada. Porém, nos estudos sobreesses movimentos, nas representações da mídia e, àsvezes, nas apreciações das/os próprias/osparticipantes, a presença das mulheres é, geralmente,invisibilizada e/ou o caráter político de sua atuaçãoneutralizado. Um dos mecanismos maisfrequentemente utilizados para neutralizar o caráterpolítico da atuação das mulheres no espaço público éfocalizar em algumas de suas ações e práticas einterpretá-las como extensão amplificada de seusafazeres domésticos.

Assim, nos propomos explorar a prática social decozinhar para ampliar entendimentos sobre aparticipação política das mulheres, considerando arelevância dessa prática nos movimentos pesquisados,o fato de ter sido tematizada nas entrevistas e por ser,muitas vezes, utilizada para “neutralizar” a ação políticafeminina. Cabe assinalar que, enquanto prática social,

4 SAFFIOTI, Heleieth I. B.Gênero, patriarcado, violência.São Paulo: Fundação PerseuAbramo, 2004.

6 MELUCCI, Albert.Movimentos sociais,inovação cultural e o papeldo conhecimento, NovosEstudos CEBRAP, n. 40,1994, p.152-166, p.155.

5 ARAÚJO, Clara.Participação Política eGênero: AlgumasTendências AnalíticasRecentes, in: BIB, São Paulo,n. 52, 2001, p. 45-77.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56203

Page 204: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

204 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

o ato de cozinhar envolve interações que suscitam açõesvisando determinados objetivos, sejam estesorientados à manutenção da realidade (como transmitirconhecimentos, tradições), sejam à transformação(como expandir a participação política de pessoas,grupos, comunidades), num processo de construçãopermanente.

Para nossa discussão retomaremos dados coletadosem uma pesquisa de mestrado concluída e no trabalhode campo de pesquisa de doutorado em andamento7.Cabe apontar que ambas pesquisas estudammovimentos sociais e a de doutorado focaliza naparticipação política de mulheres nesses espaços. Nasduas pesquisas, a prática social de cozinhar foiabordada nas entrevistas realizadas, no marco dametodologia da História Oral, nas observações eregistros no Diário de Campo, e na documentaçãoimagética. Contamos com depoimentos orais de:Laura Padilla, liderança dos primeiros piquetes (Cutral-co, Neuquén); Norma Durante, liderança do Movimientode Mujeres en Lucha (MML, General Roca, Río Negro);participantes de Assembléias de Bairro (Asamblea de SanTelmo-Plaza Dorrego e Asamblea de Palermo Viejo, emBuenos Aires); participantes da Corriente Clasista yCombativa (CCC, província de Buenos Aires); registrosescritos e fotografias.

A seguir, descrevemos brevemente os movimentospesquisados e, em seguida, apresentamos seisdimensões que, segundo nossas observações e análises,a prática social de cozinhar assume nos movimentossociais com os quais convivemos: Cozinhar paraprotestar; Cozinhar é protestar; Cozinhar para recuperar oespaço público; Cozinhar para amparar a militância; Mudar ocozinhar para militar, e Cozinhar para se empoderar. É precisodizer que estas dimensões são apresentadas no intuitode aproximação ao nosso objeto de estudo, que é aparticipação política de mulheres, na procura de umolhar que considere a categoria gênero, mas semengessar os sentidos dessa atuação política.

7 A pesquisa de mestradodesenvolveu-se noPrograma de Pós-graduaçãoem Ciências Sociais daUniversidade Federal deSão Carlos (PPGCSo/UFSCar), foi financiadapela CAPES e orientada pelaProfa. Dra. Maria Aparecidade Moraes Silva. A pesquisade doutorado é realizadajunto ao PPGS (UFSCar),financiada pela FAPESP eorientada pela Profa. Dra.Maria Aparecida de MoraesSilva.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56204

Page 205: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 205

Apresentando os movimentos pesquisadosApresentando os movimentos pesquisadosApresentando os movimentos pesquisadosApresentando os movimentos pesquisadosApresentando os movimentos pesquisados

Em BOGADO8, estudamos as Assembléias deBairros, surgidas na Argentina após os panelaços9 dosdias 19 e 20 de dezembro de 2001. As Assembléiasforam caracterizadas por promover mecanismos dedemocracia direta, organização territorial, autonomiaem relação aos partidos políticos e por estaremcompostas, geralmente, por setores médiosempobrecidos. Em diferentes bairros de Buenos Airese em outras cidades do país, os/as participantesdebatiam e geravam ações orientadas a criar alternativasante a crise e desenvolviam um espaço com novasformas de se relacionar com a política, aprofundandoo processo de democratização.

Na pesquisa de doutorado, que desenvolvemosatualmente, estudamos dois movimentos sociais daArgentina, surgidos na década de noventa: Movimentode Mujeres en Lucha (MML), e Corriente Clasista y Combativa(CCC). O MML surgiu na província de La Pampa,em junho de 1995, para impedir que propriedades depequenos e médios produtores/as rurais fossemleiloadas pela impossibilidade de pagar empréstimoshipotecários assumidos frente à pressão damodernização produtiva. Tal movimento social éformado por produtoras, esposas de produtores,familiares e outras mulheres que se solidarizaram coma causa. O movimento tem como principalinstrumento de luta a interdição dos leilões, que érealizada por meio de intervenções das participantespara obstaculizar o desenvolvimento do ato, comorezar em voz alta ou cantar o Hino Nacional Argentino.Atualmente, o movimento atua em vários estados dopaís.

A Corriente Clasista y Combativa (CCC) é umaorganização político-sindical surgida em 1994, ligadaao Partido Comunista Revolucionário (PCR).Reconhece-se herdeira das agrupações classistas quedesde a década de sessenta trabalharam com grêmios

8 BOGADO, A. M.. Assembléiasde Bairro na Argentina: criandoespaços de ação política parareconstruir o tecido social .Dissertação (Mestrado emCiências Sociais)Departamento de CiênciasSociais, UniversidadeFederal de São Carlos, SãoCarlos, 2006.

9 Mobilizações espontâneasde milhares de cidadãos ecidadãs por iniciativaprópria em repúdio àdeclaração do estado desítio decretado pelogoverno.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56205

Page 206: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

206 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

industriais e rurais, estatais e de serviços. Entre 1996 e1997, a organização expandiu-se por todo o país.Atualmente, a CCC é uma das correntes maisnumerosas do movimento piqueteiro conta com trêsafluentes: trabalhadores/as ocupados, trabalhadores/as desocupados e aposentados/as.

Cozinhar para protestarCozinhar para protestarCozinhar para protestarCozinhar para protestarCozinhar para protestar

A primeira dimensão salienta a prática social decozinhar para suprir a necessidade de sobrevivência e,portanto, como condição para que protestos possamacontecer. Assim, quando analisamos um dosprimeiros levantamentos (puebladas) que deram origemao movimento piqueteiro, os vínculos entre comida epolítica se tornam evidentes. Em 20 de junho de 1996,no norte da Patagônia, duas cidades petroleiras emcrise protagonizaram um dos protestos maisimportantes na história do país. Habitantes de Cutral-có e Plaza Huincul bloquearam por seis dias, asrodovias nacional e provincial, sendo que muitaspessoas foram aos piquetes10 para expressar suasreivindicações contra um modelo e uma política queos excluía. Laura Padilla, que se converteu em liderançanesses dias de bloqueio, e que ficou conhecida como“a mãe dos piqueteiros”, diz que foi “comer umchurrasco”.

Uma vez no piquete, encontrou pessoas conhecidasque, por ser professora, lhe pediram que conversassecom um grupo de adolescentes alcoolizados. Lauraconversou com eles e conseguiu convencê-los de que,se parassem de beber, levar-lhes-ia alguma coisa paracomer. Em seguida, com um grupo de mulheres,começou a organizar a refeição, distribuiu a lenha e osalimentos para que os jovens e o restante das pessoaspudessem comer. Com sua atuação, Laura tornou-sevisível e ganhou a confiança e o respeito do grupo demanifestantes, convertendo-se em uma das liderançasdo protesto11.

10 Forma de protesto queconsiste em um bloqueiode uma pista ou caminho.Os/as manifestantesconstroem uma espécie debarricada com pneus,pedras e/ ou paus,impedindo o trânsito.

11 ANDÚJAR, Andrea. De laruta no nos vamos: lasmujeres piqueteras (1996-2001). In: Jornadas Interescuelas,X, 2005, Rosario.Disponível em: http://www.monog ra f i a s.com/t r a b a j o s 3 1 / m u j e r e s -piqueteras-no-abandonan-rutas/mujeres-piqueteras-no-abandonan-rutas.pdf,consultado em: 01 abr. 2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56206

Page 207: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 207

A comida utilizada, inicialmente, como “motivação”no marco do clientelismo dos políticos locais, teveuma função central no momento em que os/aspróprias/os manifestantes assumem as rédeas doprotesto. Permanecer nos piquetes por dias, semrecursos e submetidos à inclemência do clima, teriasido impossível sem comida. Nesse sentido, LauraPadilla afirma que o sucesso dos piquetes de Cutral-có e Plaza Huincul deve-se, em grande parte, ao apoiodas pessoas que forneceram comida para os/asmanifestantes que estavam na rodovia:

(…) Y esas veinte mil personas que subieron ese día, peroponéle, ponéle que diez mil estaban fijas, ponéle, ¿no? Pero aesas diez mil alguien les dio de comer. ¿Quién les dio

de comer? El abuelito que preparó un guiso en su

casa y que cuando pasó un jeep lo llevó a la ruta.

Entonces ese abuelito, que no fue a la ruta, es

fundamental, porque si durante seis días en pleno

invierno no tenemos comida, ¿cómo hacemos para

estar ahí? Entonces acá nadie puede decir que fue másimportante que el otro. (…) Grifo nosso

As palavras de Laura apontam para um aspectotão “básico”, a comida (sua preparação, fornecimentoe consumo), que, por um lado, fica esquecido nasanálises a respeito desse protesto. Tal aspecto, por outrolado, quando considerado serve para despolitizar aatuação das mulheres, relacionando a prática ao espaçodoméstico. Assim, Javier Auyero, a partir da leiturado diário de Laura, refere-se à sua atuação nosseguintes termos: “A Laura se la percibe bastante comouna especie de comodín para todo servicio, la típica ysubestimada ama de casa”12. Por sua parte AndreaAndújar, analisando a participação da liderançamencionada e de outras mulheres nos piquetes,reconhece a multiplicidade de suas atividades que“misturam ações vinculadas com a extensãoamplificada a escala coletiva de seus ‘naturais’ papéis

12 AUYERO, Javier. Vidasbeligerantes . Dos mujeresargentinas, dos protestas yla búsqueda dereconocimiento. BuenosAires: UniversidadNacional de Quilmes, 2002.p. 111-112.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:56207

Page 208: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

208 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

de cuidadoras no espaço doméstico, com outras desua prática política/pública, manifestando uma leituratotalizadora e contra-hegemônica da realidade”13.

No estudo da participação política das mulheres,são freqüentes as análises que naturalizam seu papelao âmbito privado ou que, mesmo questionando essanaturalização, interpretam a atuação delas a partir deum roteiro tradicional de gênero14. Assim, tais análisesreducionistas entendem que o cozinhar no piquete sejaextensão das atividades domésticas ou simplesreprodução de um habitus15. Porém, essa interpretaçãodesconsidera o contexto da ação, o discurso que afundamenta, e as implicações que essa atuação tempara o protesto. Salienta o caráter reprodutivo daprática, em detrimento de seu caráter político.

Cozinhar é protestarCozinhar é protestarCozinhar é protestarCozinhar é protestarCozinhar é protestar

Esta segunda dimensão revela que a prática socialde cozinhar, em si, pode ser o centro da ação política.Neste sentido, o cozinhar esteve muito presente nocotidiano das Assembléias de Bairro, que realizaram ollaspopulares (panelas) ou organizaram refeitórios. Estaforma de protesto, surgida nos últimos anos da ditaduramilitar argentina (início de 1982), consistia napreparação de uma refeição coletiva. Organizadas porgrupos de moradores/as, em bairros populares dazona Sul da Província de Buenos Aires, a ollas serviampara denunciar a situação e os impactos do desempregoe da baixa dos salários16. Em pouco tempo, converteu-se em uma ação em si mesma ou foi realizada paraacompanhar diferentes reivindicações gerando, comoapontam os autores citados, um forte sentimento desolidariedade entre as pessoas participantes. A fins dadécada de 1990, moradores e moradoras de bairrosem diferentes pontos do país e, especialmente, nochamado conurbano bonaerense organizaram refeitórioscomo forma de remediar das conseqüências maisvergonhosas do neoliberalismo no país: a fome.

13 ANDÚJAR. Op. cit., p. 8.

14 TRONTO, Joan. Mulherese cuidados: o que asfeministas podem aprendersobre a moralidade a partirdisso? In: Gêner o, Cor po,Conhecimento. Rio de Janeiro:Rosa dos Tempos, 1997, p.186.

15 BOURDIEU, Pierre. ADominação Masculina. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil,1999.

16 LOBATO, Mirta;SURIANO, Juan. La protestasocial en la Argentina. BuenosAires: FCE, 2003, p. 129.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57208

Page 209: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 209

Uma das Assembléias pesquisadas, a AsambleaPopular de San Telmo-Plaza Dorrego, começou a fazerollas em ruas e praças em 2002 e, em pouco menos dedois anos, construíram um refeitório. A atividade foidesenvolvida inicialmente por um grupo de mulherese, no momento da pesquisa, era realizadaconjuntamente por homens e mulheres.

Participantes da Asamblea Popular de San Telmo-Plaza Dorrego preparando a olla, no refeitório.Fotografia realizada pela pesquisadora, Buenos Aires, 2004.

Às vezes, por causa da chuva, tinham que cozinharos alimentos separadamente, cada uma dasparticipantes na sua casa, juntando mais tarde tudoem uma única panela. Assim, a partir de uma práticaconsiderada feminina, a ação das mulheres irrompiana lógica de segregação sexual do espaço, que tem ointuito de remarcar as fronteiras do público e doprivado, como domínios de atuação separadossegundo o gênero. Fazer ollas implicava diariamentefranquear as fronteiras que separam o público do

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57209

Page 210: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

210 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

privado, demonstrando a flexibilidade das mesmas.Nesse sentido, Michelle Perrot identifica esse processode definição estrita do público e do privado naconstrução das democracias ocidentais.

Uma das suas chaves talvez seja a definição do espaço públicocomo espaço político reservado aos homens. A burguesiadaquela época exclui da política os operários e as mulheres. Eos operários, quando reivindicam o acesso à esfera pública,reproduzem o modelo burguês, excluindo as mulheres 17.

A autora salienta que as fronteiras entre público eprivado nem sempre existiram, são variáveis, mudamcom o tempo e estão atravessadas pelo micro-espaçodoméstico. Por sua parte, Heleieth Saffioti afirma quemesmo existindo o predomínio de atividades públicasno espaço do trabalho, do Estado, do lazer coletivo,o público e o privado são “espaços profundamenteligados e parcialmente mesclados. Para fins analíticos,trata-se de esferas distintas; são, contudo, inseparáveispara a compreensão do todo social”18.

Cabe destacar que, durante uma das entrevistas,uma assembleísta explicava que a olla popular não podiaser resumida ao fornecimento de comida. Para ela,era importante que as pessoas soubessem como surgiua “Assembléia”, o trabalho que desenvolvia e porquea olla era realizada. Esclarece:

(...) es hacer política todo el tiempo, porque cuando

nosotros estamos en la olla, se lo decimos claramente

que lo que estamos haciendo es política. Nosotros nosomos caritativos, no somos nada buenos, nosotros lo que

queremos es organizar el campo popular que está

desorganizado. O por lo menos ayudar a que empecemos aorganizar algo que estaba hecho pedazos. (...)19. Grifo nosso

Mediante a realização das ollas, os/as assembleístasativavam as redes de solidariedade no bairro,constituindo espaços de solidariedade e sociabilidade

17 PERROT, Michelle. Osexcluídos da história :operários, mulheres,prisioneiros. São Paulo: Paze Terra, 1992, p. 218.

18 SAFFIOTI. Op. cit., p. 54.

19 BOGADO, A. M.. Op. cit., p.174.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57210

Page 211: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 211

entre setores médios e baixos. No depoimento citado,percebe-se claramente que a entrevistada consideravaessa atividade como uma ação política, no sentido dadopor Hannah Arendt, isto é, atividade exercidadiretamente entre as pessoas, correspondente àcondição humana da pluralidade. Segundo apensadora, “Todos os aspectos da condição humanatêm alguma relação com a política; mas esta pluralidadeé especificamente a condição – não apenas a conditiosine que non, mas a conditio per quam – de toda vidapolítica”20. Em virtude da pluralidade humana, ação ediscurso são indispensáveis para que haja entendimentomútuo. Na ação e no discurso “os homens mostramquem são, revelam ativamente suas identidades pessoaise singulares, e assim apresentam-se ao mundohumano”21. Porém, separar a ação do discurso implicadestituir a primeira de seu caráter de revelação e,portanto, de seu sujeito.

Sem discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveriaator; e o ator, agente do ato, só é possível se for, ao mesmotempo, o autor das palavras. A ação que ele inicia éhumanamente revelada através de palavras; e, embora o atopossa ser percebido em sua manifestação física bruta, semacompanhamento verbal, só se torna relevante através da

palavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o

que fez, faz e pretende fazer.22 Grifo nosso

A ação de nossa entrevistada esteve acompanhadade discurso; aconteceu no espaço público, num “estarentre os homens”, e possuía esse caráter de revelação,apontado por Hannah Arendt, pois na ação e nodiscurso ela revelou-se aos outros. Também, o própriodiscurso veiculado em publicações da Assembléiaexpressava o caráter político de fazer ollas, consideradouma forma de confrontar o Estado com umanecessidade insatisfeita, ao mesmo tempo em que seconstituía um meio de organização popular. A atividadeera considerada, sobretudo, como um espaço de

20 ARENDT, Hannah. Acondição humana . Rio deJaneiro: ForenseUniversitária, 2007. p.15.

21 Ibidem, p. 192.

22 Ibidem, p. 191.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57211

Page 212: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

212 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

participação aberto tanto para os/as assembleístas comopara as pessoas do bairro, que contribuíam commercadorias ou cozinhavam e para aquelas que iampara comer.

Cozinhar para recuperar o espaço públicoCozinhar para recuperar o espaço públicoCozinhar para recuperar o espaço públicoCozinhar para recuperar o espaço públicoCozinhar para recuperar o espaço público

Esta dimensão revela que o cozinhar se politiza noespaço público, não apenas porque esse espaço sejaconsiderado o lugar prioritário para a ação política,pois como aponta23 nem todo o público é político,senão também, pelo discurso que acompanha essaprática, ao tempo em que esta envolve uma ocupaçãoe recuperação do espaço público como lugar de todose todas.

Há espaços públicos legitimados historicamentepela ação do movimento popular, inclusive em plenaditadura militar, como é o caso da Praça de Maioapropriada como espaço de reivindicação pela açãodas “Madres de Plaza de Mayo”. Lugares tãosignificativos são freqüentemente escolhidos pordiferentes grupos para veicular suas demandas.Precisamente, durante a pesquisa de campoacompanhamos a marcha e acampamento da CorrienteClasista y Combativa (CCC), na Praça de Maio. Odiscurso veiculado em panfletos distribuídos comantecedência entre os/as participantes, manifestava:“Acampamos contra el hambre (...) Millones estamosviviendo una situación muy difícil. ¿Cómo es posibleque en el país de los alimentos esté prohibido paranuestras familias llevar una ensalada a nuestra mesa?24.

Os preparativos para o acampamento envolveramo cozinhar antes e durante o protesto. Como atividadesprévias, três mulheres ficaram no dia anterior aoacampamento preparando tortafritas. No segundo diado acampamento, foi realizada uma olla popular na Praçade Maio.

Nesses protestos, cozinhar é uma atividade central,em virtude da elevada presença de mulheres com

23 PERROT, 1992, p.179-180.

24 CCC. Acampamos contra elhambre. No al aumento delos precios. Buenos Aires,Setembro de 2007, 4p.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57212

Page 213: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 213

crianças e pela duração das ações de reivindicação que,às vezes, se estendem por muitas horas e até diasinteiros. Porém, tal prática não pode ser reduzida aocozinhar no lar, mesmo que haja membros da famíliano protesto, pois nesse contexto forma parte de umprocesso de construção de identidade coletiva, no caso,o ser piquetero/a. Refletindo a respeito dasreivindicações levantadas pelos/as manifestantes,cozinhar no espaço dá legitimidade à ação coletiva erecupera esse espaço como território político.

Retomando a análise de um participante daAsamblea de Palermo Viejo, o movimento para o espaçopúblico era reconhecido como forma de superaçãodo medo instaurado na ditadura militar: “A ruaconvertida em terreno perigoso durante a ditaduramilitar por temor à repressão, e na democracia pelaviolência, é procurada como objeto de re-apropriação,que quebre o individualismo e o encerramento portasadentro de décadas”25.

Mulheres da CCC fazendo uma olla popular, no segundo dia doacampamento, Praça de Maio, Buenos Aires. Fotografia

realizada pela pesquisadora, setembro de 2008.

25 BRIEGER, Pedro. Lesassemblées des voisins, uneexpérience inédite dans lapolitique. In: AAVV.Argentine, enjeux et racines d’unesocieté en crise. Paris:Tiempo.Editions du Félin,2003.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57213

Page 214: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

214 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Para outro assembleísta, o esvaziamento do espaçopúblico era conseqüência da reforma neoliberal, maispatente durante o governo de Menem, envolvendouma mudança na organização do bairro, no sentidode um “abandono das obrigações estatais com oespaço público”26. Assim, a ação das Assembléias eradestacada por re-fundar esse espaço, produzindo valore laço social. Nesse intuito de recuperar espaço público,os/as assembleístas empreenderam as mais diversasformas de intervenção urbana, como passeatas,jornadas em repúdio ao terrorismo de Estado, eventosculturais, as já mencionadas, ollas populares etc.27.

Cozinhar para amparar a militânciaCozinhar para amparar a militânciaCozinhar para amparar a militânciaCozinhar para amparar a militânciaCozinhar para amparar a militância

Uma dimensão interessante do cozinhar se revelaem situações adversas à militância, em que o discursoque acompanha a prática pode assumirintencionalmente o roteiro tradicional de gênero comoforma de despolitizar a ação, amparando a agente noestereótipo da função feminina.

Nesse sentido, uma de nossas entrevistadas,Armonía, participante da Asamblea de Palermo Viejo,lembrava seus primeiros passos como militanteanarquista, na Argentina da década de 30. Ela e outrasmulheres visitavam a cadeia todas as semanas, levandocomida e notícias aos companheiros de militânciapresos, políticos da época. Era uma forma de mantero contato, dar apoio e passar informações aoscompanheiros sem se colocar em risco.

No contexto da ditadura militar no Brasil, OlíviaJoffily revela diferentes formas de participação dasmulheres, mas que por estar “amparadas” no espaçodoméstico permaneceram como resistência invisívelà ditadura, entre elas: o cozinhar28.

No caso de Norma, liderança do Movimiento deMujeres en Lucha, sendo policial, não lhe era permitidoparticipar de organizações que fossem contra a ordemestabelecida. Assim, a comida, seu preparo e/ou

26 PEZZOLA, Andrés. ¿Quépapel juega el barrio en laefectividad política denuestra asamblea?Acontecimiento, n. especial 24-25, p.79-87, 2003.

27 BOGADO, A. M.. Op. cit.

28 JOFFILY, Olívia Rangel.Esperança equilibrista :Resistência feminina àditadura militar no Brasil(1964-1985). 2005.167 p.(Doutorado em CiênciasSociais). PontifíciaUniversidade Católica deSão Paulo, São Paulo.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57214

Page 215: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 215

fornecimento era o pretexto que dava para justificarsua presença nos protestos. Ela conta que nos piquetes,costumava haver um posto policial de vigilância econtrole. Desta maneira, cada vez que ela ia ao piqueteera indagada sobre sua presença ali, pelos próprioscolegas de trabalho. Em tais situações, respondia-lhesque ia levar comida para o filho.

Norma: Uy, era comiquísimo, yo te cuento. Yo salía de laComisaría a las dos de la tarde, viste. Acá en Stefanelli habíaun ómnibus interurbano (..) Obviamente que bajaba dondeestaban los policías [reproduz o diálogo] ‘Hola, Sargento,

¿cómo le va?’, ‘Bien’, ‘Oh, ¿qué anda haciendo?’, ‘Le

traigo comida a mi nene’, ¿Y dónde está su nene?’,

‘Acá en el piquete’. Y como yo no iba uniformada sino conuna chaqueta, con la jerarquía acá [assinala o peito e o ombro]agarraba y me sacaba la chaqueta, la metía dentro del bolso yme escondía por allá al fondo (…) cuando venían lospatrulleros o pasaban los jefes mirando qué pasaba, yo meescondía. Y los chacareros y mi amiga sabían y me avisaban.Mientras tanto no venían, mientras tanto la policía no

estaba, yo me paraba en el medio de la ruta a repartir

con mis amigas a repartir volantes y manzanas [ríe] ydespués claro me volvía con mi hijo en el tractor. Viste ya no

me podían decir nada porque yo volvía con mi hijo,[reforça] mi hijo era el que iba a cortar la ruta o a hacer todasesas cosas, yo no. Yo lo iba a acompañar o a llevarle

comida, cualquier cosa, era la disculpa (…) Grifo nosso.

Assim, o cozinhar aparece como uma forma deresistência cotidiana29, com uma transcrição pública quelegitima a atuação a partir de um estereótipo de gênero,“protegendo” a agente que a executou. Porém, comotoda forma de resistência, há também uma transcriçãooculta que poderia ser obtida “fora do palco”30, longeda observação de quem possui, nessa interação, umaparcela maior de poder. Nesses casos, a metodologiada História Oral revela sua potencialidade para otrabalho com a história recente, permitindo recuperar

29 SCOTT, James C. Formascotidianas da resistênciacamponesa. Raízes, CampinaGrande, v.. 21, n. 1, p. 10-31,jan./jun. 2002.

30 MENEZES, Marilda. Ocotidiano camponês e suaimportância enquantoresistência à dominação: acontribuição de James C.Scott. Raízes , CampinaGrande, v. 21, n.1, p. 32-44,jan./jun. 2002, p. 35.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57215

Page 216: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

216 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

essa transcrição oculta em outro momento, desde queas fronteiras entre o dizível e o indizível podem serdeslocadas31. Pensando na recuperação de uma históriade mais longe, Heleieth Saffioti destaca a necessidadede estudos sobre mulher(es), em virtude de que a atuaçãodelas sempre foi pouco registrada. Considera que essahistória precisa ser “descrita para que haja empoderamento,não de mulheres, mas da categoria social por elasconstituída”32.

É interessante observar que nessa história tambémé possível identificar articulações entre a prática socialde cozinhar, a política e o gênero. Michelle Perrotfornece alguns exemplos nesse sentido, como o papelpolítico de donas-de-casa exigindo a intervenção doEstado na regulamentação de preços ou nos motins dafome na Inglaterra do século XVIII. Segundo afirmaTHOMPSON33, esses protestos eram ações popularescomplexas, disciplinadas e com objetivos claros,legitimadas pelo consenso da comunidade. MichellePerrot os descreve como “verdadeiras invasões dasfeiras, dos caminhos, das estradas, dos moinhos quevisam àqueles que detêm os víveres”, reprimidos deforma mais ou menos violenta, quando aconteciamprocessos judiciais a imagem de mãe “protegia” asmulheres acusadas34. A presença das mulheres noespaço público, regrediu com a regulação do mercado.No século XIX, as manifestações foram cada vez maisoperárias e masculinas. Porém, as mulheres se inseriramcom tenacidade nas greves mistas organizando“cozinhas coletivas, ponto forte da solidariedadeoperária”35.

María Del Carmen Feijoó, pesquisadora argentina,assinala que “as lutas olvidadas pela historiografiaoficial estão de alguma maneira presentes e operandona memória das mulheres, na determinação dasancoragens de sua identidade e no imagináriocoletivo”36. Assim, podemos compreender que essaslutas sejam retomadas com a presença e protagonismodas mulheres, enfrentando e lidando nos processos

31 POLLAK, Michael.Memória, esquecimento,Silêncio. Estudos Históricos,Rio de Janeiro, v.5, n. 10,1992, p. 200-215.

32 SAFFIOTI. Op. cit., p. 103.

33 THOMPSON, Edward P.Costumes em comum . SãoPaulo: Companhia dasLetras, 1998.

34 PERROT, Michelle. Minhahistória das mulheres . SãoPaulo: Contexto, 2007, p.146-147.

35 Ibidem, p. 148.

36 FEIJOÓ, Maria del C. Latrampa del afecto: mujer ydemocracia en Argentina.In: LEÓN, Magdalena(comp.). Mujeres yParticipación Política: Avancesy desafíos en AméricaLatina. Bogotá: TMEditores, 1994, p. 321.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57216

Page 217: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 217

de crise de diversa índole: econômica, bélica, social,política etc. No intuito de dimensionar e qualificar aparticipação das mulheres, um dos fatores queampliaram a compreensão foi considerar que aspossibilidades e suas opções tendem a ser limitadaspor um conjunto de fatores e relações sociais efamiliares e não somente é uma questão de escolhasracionais e/ou pessoais. Portanto, seria precisoconsiderar os processos sociais, políticos, institucionais,históricos etc., nos quais elas estão imersas e quecondicionam seu engajamento.

Nesse sentido, a autora questiona a “posteriorretração” dessa atuação, salientando que ascaracterísticas pendulares da participação femininapodem ser provocadas pelos regimes políticos37, mastambém ser “conseqüência do mesmo discurso dasmulheres e da lógica e a legitimidade a partir da qualas mulheres constroem e argumentam sobre asmodalidades de sua participação nos períodos de criseconstruindo uma lógica específica de gênero”38. Istose torna mais evidente quando mulheres que nãorespondem a esse papel tradicional de gênero se valemdo estereótipo feminino para “amparar” sua militância.Contudo, o questionamento a esses papéis começa aser colocado no interior dos próprios movimentos eexplorar a prática de cozinhar permite identificartensões existentes e caminhos empreendidos pelasmulheres para tornar possíveis a militância.

Mudar o cozinhar para militarMudar o cozinhar para militarMudar o cozinhar para militarMudar o cozinhar para militarMudar o cozinhar para militar

A quarta dimensão contribui para visualizaralgumas mudanças na prática social de cozinhar noespaço privado decorrentes do desenvolvimento damilitância política. Ao explorar o que acontece com ocozinhar no lar, a partir da experiência de engajamentode nossas entrevistadas, percebemos que não apenasno espaço público essa prática pode ser ressignificada,senão que também no espaço privado o cozinhar se

37 Também, ARAÚJO (Op. cit.)destaca que a “exceção” éum fato que agrava aindamais as possibilidades devisibilidade política paragrupos ou setores queforam excluídos da política.

38 Ibidem, p. 320.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57217

Page 218: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

218 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

redimensiona. Desenvolver uma militância soma maisuma jornada para as mulheres, trabalhem fora ou não,implicando na sobreposição de funções e tarefas.Inicialmente, elas se valem de diversas estratégias erearranjos para conseguir militar, reorganizando astarefas domésticas, administrando o tempo de novasformas, mas também renegociando funções comoutros membros da família.

Esses rearranjos, quando diferenciados pelo gênero,podem reproduzir a divisão de tarefas tradicional.Nesse sentido, o estudo de Valdete Boni a respeitodas relações de gênero entre sindicalistas rurais deChapecó (SC), aponta que quando o homem milita amulher assume com ajuda dos filhos as funções doparceiro, porém a recíproca não é verdadeira“principalmente se os filhos são pequenos, e não hánenhuma filha mulher que possa assumir o papel damãe”39.

Na nossa pesquisa, encontramos experiências emque os rearranjos, promovidos pelas mulheres a partirda necessidade de tempo para militar, geram pequenastransformações na dinâmica e nas relações de gênerono lar. Inicialmente, os maridos tentam impedir amilitância da mulher apontando para o cumprimentode suas funções “tradicionais”: cuidado dos filhos,afazeres domésticos e, no âmbito rural, criações ehorta40. Nesse sentido, os relatos salientam asdificuldades de conciliar a militância com as atribuiçõesdo espaço privado41. Uma de nossas entrevistadascomentava que nos dias em que ia ao protesto tinhaque ser uma “mulher dez” para que lhe reclamassemum pouco menos. Acontece que com sua saída, asmulheres desafiam a ordem patriarcal e os homens(maridos, parceiros, filhos) percebem a possível perdade privilégios.

Mary, participante da CCC, conta que cada vezque ia para um protesto tinha que ouvir as reclamaçõesdo marido, por deixar a casa e os filhos. Ela explica:“Bueno, mis chicos ya están grandes. No estoy diciendo

39 BONI, Valdete. Poder eigualdade: as relações degênero entre sindicalistasrurais de Chapecó, SantaCatarina. Estudos Feministas,Florianópolis, 12 (1):360,jan./abr. 2004, p.298.

40 BONI. Op cit., p. 296.

41 Ver também o trabalho de:ANTUNES, Marta. Asguardiãs da floresta debabaçu e o tortuosocaminho doempoderamento. In:WOORTMANN, Ellen;MENACHE, Renata;HEREDIA, Beatriz (Org.).Margarida Alves: coletâneasobre estudos rurais egênero. Brasília: MDA, IICA,2006, p. 122-149.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57218

Page 219: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 219

tengo de tres, cuatro, cinco años que tengo que dejar,si come o no come, el peligro de acá. [Assinalando paraseu filho caçula] Este se hace se sabe hacer mate cocido,milanesa, de todo”.

Por sua parte, Ema Martín, ao relatar o início desua trajetória no MML, comenta que, nessa época,seus filhos eram adolescentes e freqüentavam o colegial.Como moravam no campo, ela tinha que levá-lostodos os dias para a escola; quando tinha atividadescom o movimento o traslado dos filhos era uma tarefarenegociada com o marido. Porém, mesmoadministrando o tempo, valendo-se da tecnologia erecorrendo a outros membros da família, o cozinharenvolvia resistências:

(…) Por ejemplo me pongo a cocinar a las once de la nochepara dejarle la comida lista a mi marido, porque mi maridopuede dejar (de trabajar) para ir a buscar a los chicos al colegio,pero tampoco puedo darle la tarea de que haga la comidapara él y para los chicos. Después, desde que tengo el

freezer me solucionó un montón de cosas, aunque a él

no le gusta la comida de freezer, pero bueno. Yo porejemplo suelo tener salsa, entonces un arroz yo lo dejopreparado, vos solamente tenés que prender la cocina, les

enseño a los chicos a hacer arroz. A eso se niegan, los

varones, se niegan a (cocinar). Y bueno, en eso te complicaun montón, en la vida cotidiana (…) Grifo nosso

Gladys, delegada da CCC, ao relatar como lidacom as exigências do lar e sua militância, explica:

(…) me organizo bastante bien, porque si yo sé que, porejemplo, mañana tengo marcha hoy ya lavo todo lo que tengoque lavar, cocino, dejo la comida preparada solo para que lacocinen (esquentem). Viste, ya dejo todo, yo me voy a la mañanay ya dejo todo lo que tienen que hacer listo. Y bueno despuésla nena se encarga de limpiar la casa, mi marido viene y se

atiende solo [pequeno riso]. Pero sí, nos organizamos bien.Al principio no le gustaba mucho porque a veces tenía que

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57219

Page 220: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

220 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

cocinar él a la noche, pero generalmente lo hace la nena. No,pero todo bien. Ya nos acostumbramos, ya los

acostumbré (…) Grifo nosso.

Neste ponto é importante assinalar que o fato deque as filhas mulheres assumam algumas tarefas (comocozinhar, fazer a faxina e outras) não pode serentendido apenas como reprodução de um habitus degênero, sem considerar a solidariedade intergeracionaldas mulheres42. Nesse sentido, destacamos aexperiência de Norma Durante, liderança do MML,relatada sob o olhar de sua filha Rocío. Ela observavaque participar do movimento não eximia sua mãe dastarefas agrícolas que deviam ser realizadas no sítio eque costumavam aumentar quando não contavam comrecursos econômicos para contratar mão-de-obraexterna. Ademais, somavam-se às tarefas domésticas.Ao falar da participação da mãe considerava que eraimportante apoiá-la, acompanhá-la, estar com ela. Essaforma de apoio que possibilitava a militância podiaser, por exemplo, emprestar sua casa para as mulheresdo movimento, quando não tinham um espaço parase reunir, e/ou assumir algumas tarefas domésticaspara evitar sobrecarregar a mãe. Seu apoio esolidariedade se fundamentavam no fato de concordarcom as principais reivindicações do movimento.

Os relatos apresentados mostram que as mulheresempreendem diferentes mudanças para poder militare que as mesmas atingem as relações e dinâmicas degênero no cotidiano familiar. No caso do cozinhar, asmudanças enquanto quem faz, para quem e/ou como,desafiam a divisão sexual do trabalho, por issoenfrentam resistências. Os filhos homens precisamaprender a cozinhar, de fato alguns já aprenderam, osmaridos podem comer comida de freezer, emboranão gostem e, também, se atenderem sozinhos.

Cabe destacar que estas aprendizagens sãocompartilhadas com outras mulheres nos diferentesespaços de sociabilidade, nas interações do dia-a-dia,

42 Não ensinar a cozinharassim como poupar as filhasde outros afazeresdomésticos são formas desolidariedade e resistênciafeminina, principalmente,utilizadas por mulheresprovenientes de classespopulares e sem formaçãoacadêmica para que suasfilhas possam investir nosestudos.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57220

Page 221: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 221

no bairro, na rua enquanto marcham, protestam e/oucozinham. Finalmente, apontamos que as mudançaspodem refletir processos de empoderamento quandoas mulheres conseguem validar suas escolhas e tornarmais igualitárias as relações nos diferentes espaços deatuação.

Cozinhar para se empoderarCozinhar para se empoderarCozinhar para se empoderarCozinhar para se empoderarCozinhar para se empoderar

Esta dimensão destaca como a prática social decozinhar é utilizada por nossas entrevistadas como ummeio para construir vias de empoderamento.Definimos “empoderamento” como um processo emque pessoas ou grupos que possuem uma parcelapequena de poder e, portanto, vêem limitadas e/ouanuladas suas possibilidades de escolha, decisão e ação,adquirem parcelas maiores de poder que lhes permitemo exercício de uma cidadania mais plena43. Quandoutilizamos este conceito estamos reconhecendo adistribuição desigual de poder em nossa sociedade e,principalmente, a necessidade de desenvolverestratégias que possibilitem mudar essa situação. Algunsautores e autoras feministas consideram que oempoderamento, por transformar as relações degênero, é uma precondição para a obtenção daigualdade entre homens e mulheres. Contudo, éimportante salientar que se trata de um processo nãolinear, com avanços e recuos, e que por ser “moldadopara cada indivíduo ou grupo através de suas vidas,seus contextos e sua história” não implica em um finaligual para todas as mulheres 44.

Várias de nossas entrevistadas relataram que quandocomeçaram a participar em movimentos enfrentaramdiscriminações e desqualificações por serem mulheres.Às vezes, esses tratamentos reforçavam a crença deque não estavam preparadas para a ação política,principalmente, no caso das mulheres que não tinhammilitância prévia. Sentiam que estavam onde nãodeviam e que careciam dos conhecimentos necessários

43 IORIO, Cecília. Algumasconsiderações sobreestratégias deempoderamento e dedireitos. In: ROMANO,Jorge; ANTUNES, Marta.Empoderamento e direitos nocombate à pobreza. Rio deJaneiro: ActionAid Brasil,2002.

44 DEERE, Carmen D.; LEÓN,Magdalena. O empoderamentoda mulher. Direitos à terra edireitos de propriedade naAmérica Latina. PortoAlegre: UFRS, 2002, p. 55.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57221

Page 222: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

222 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

para lidar com essa situação. Tornar-se conscientes desua capacidade de luta e de que o que não sabiampoderia ser aprendido na práxis foi um processoconstruído coletivamente. Rosa, participante do MML,lembra “decían que nosotras no éramos capaces, queno podíamos hacer, que éramos unas mujeres que noteníamos nada que hacer pero salíamos a la calle. Ynosotras vimos que no era así”.

Os relatos destas mulheres mostram que aoingressar a um movimento, começam a se valer deuma série de conhecimentos advindos do seu mundocotidiano, tanto familiar como profissional, para aresolução de diferentes problemáticas enfrentadas nosespaços de atuação. Como portadoras de experiênciasmarcadas pelo sistema patriarcal de sexo-gênero, ocozinhar é um saber que muitas dominam e que, emalguns casos, pode constituir uma porta de entradapara o engajamento. Assim, algumas começamcozinhando, sentem-se úteis, ganham autoconfiança ereconhecimento no movimento, ao tempo que vão sevinculando com questões mais amplas. Contudo, ocozinhar é tema freqüente nas conversas, porém nãoé o único e nas interações as mulheres conseguemtransitar entre diferentes temas, que remetem aopúblico e ao privado, indistintamente. Nesses casos,podemos observar o empoderamento pessoal,vinculado à auto-estima, e o empoderamento coletivo,desenvolvido nas interações com os/as membros daorganização.

O cozinhar pode ser, também, um ofício aprendidona militância. De fato, duas das organizações quepesquisamos: o grupo da CCC e a Asamblea Popular deSan Telmo-Plaza Dorrego, desenvolviam padarias comomicro-empreendimentos para os/as participantes queestavam desempregados/as. Mary, da CCC, queparticipou do empreendimento de produção de pãocaseiro, valorizava ter aprendido um ofício que seconstituiu em fonte de renda nos tempos dedesemprego do marido.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57222

Page 223: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 223

Na entrada da Asamblea Popular de San Telmo-PlazaDorrego há um forno de barro e uma churrasqueira. Oforno era utilizado para fazer pão e outros produtos,tais como empanadas, massa pré-cozida para pizza epão recheado, enquanto a churrasqueira era empregadapara fazer sanduíches de lingüiça para venda noseventos da Assembléia. O micro-empreendimentogerava emprego para quatro participantes e, também,era uma forma de arrecadar fundos para o movimento.

Outro relato, em que a prática de cozinhar se articulacom a política e a geração de renda, foi apresentadopor uma assembleísta ao rememorar como surgiu a idéiade elaborar artesanalmente e vender lemoncello (licor delimão):

(...) Todo empezó que nosotros comprábamos muchos limonesporque había siempre gases lacrimógenos45, que nos cagabana gases (...) cuando veíamos estaba por venir la represiónporque veíamos cambios, nos retirábamos de la plaza (...)Nosotros llevábamos una bolsa llena de limones y sobrabanmuchos limones viste que ya estaban cortados y preparadospara entregar y había que hacer algo, de una, porque no podéshacer tanto con tres kilos de limones todos los viernes.

Participantes do micro-empreendimento de padaria.Gentilmente cedida por Estela Fourmantin.

45 Segundo ilustra o relato daentrevistada, mastigarlimões ameniza os efeitosdo gás lacrimogêneo.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57223

Page 224: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

224 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Entonces yo les sacaba todos los días la carne del limón ydejaba la cáscara, los ponía en alcohol (...) para empezar ahacer lemonchello. Saqué la receta, hice lemonchello yempezamos a vender lemonchello. O sea, pero a partir unexcedente que sobraba [riso] (...)

Os exemplos citados remetem, por um lado, àsituação de crise generalizada em que essas trajetóriasde militância se desenrolam, ao tempo que a práticade cozinhar se articula com diferentes ações políticas.Por outro, o cozinhar apresenta-se como uma formade obter renda para as pessoas desempregadas,assegurando os recursos necessários para a sobrevivên-cia familiar. Novamente, insistimos em salientar queem um contexto de crise o consumo se restringe aosprodutos de primeira necessidade, por isso fazer evender alimentos é uma opção viável, no último doscasos os mesmos serão consumidos no núcleo familiar.

O cozinhar como atividade que gera rendamanifesta a dimensão econômica do empoderamento.Segundo BRUMER & ANJOS46, o empoderamentopode ser percebido em diferentes dimensões:econômica, pessoal, social e política. Na dimensãoeconômica “consideram-se as perspectivas de aumentoda renda, da quantidade e qualidade nutricional dosalimentos e da qualidade de vida da família, assimcomo o controle das mulheres sobre os resultadoseconômicos de seu trabalho”47. Precisamente quandoexplorarmos essa dimensão econômica é possívelidentificar diferentes vias de empoderamento que asmulheres constroem, e as articulações entre asdimensões do empoderamento, tendo comoinstrumento a prática social de cozinhar.

Em vários dos relatos coletados, participantes doMML manifestaram que costumavam fazer doces,geléias, molho de tomate, pêssegos em calda etc.,destinados ao consumo familiar e, às vezes,comercializados. Como mulheres rurais, vinculadas àprodução agropecuária familiar, a produção de

46 BRUMER, Anita; ANJOS,Gabrielle. Mulheres emassentamentos: o que sepode esperar de suamobilização e da ação dasagências governamentais namudança das relações degênero? In: III Jornadas deestudos de assentamentos rurais,2007, Campinas. CD IIIJornada de Estudos emAssentamentos rurais 2007.Campinas: FEAGRI-UNICAMP, 2007, p. 2.

47 Ibidem, p. 2.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57224

Page 225: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 225

alimentos era uma de suas principais tarefas. Quandocomeçaram a participar do MML, a produção ecomercialização desses produtos, assim como apreparação de comidas caseiras (como empanadas48,pastas, pães), passaram a ser formas de arrecadarfundos necessários para assumir os custos dedeslocamentos vinculados às ações do movimento.Impedir leilões implicava realizar viagens a cidadesvizinhas, pegar táxis, ônibus, pernoitar em hotéis etc.Como já eram cobradas pelos maridos por sair dolar, arcar elas mesmas com esses gastos fazia quepudessem “enfrentar” suas reclamações, pois o dinheironão vinha deles nem do orçamento familiar. Assim,garantiam a própria militância e, conseqüentemente, apossibilidade de empoderamento social e político.Portanto, observamos que mesmo a partir de umaatividade considerada feminina e, muitas vezes, reflexoda submissão de gênero, as mulheres construíam viaspara o empoderamento individual e coletivo, ganhandoautonomia para suas escolhas.

Ao refletirmos sobre as articulações entre asdimensões do empoderamento percebemos a

Participantes do Movimiento de Mujeres en Lucha, durante arealização de empanadas para arrecadar fundos para aorganização. Gentilmente cedida por: Susana García.

48 Comida semelhante aopastel, massa com recheiode carne, verduras etc.,cozida ao forno ou frita.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57225

Page 226: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

226 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

possibilidade de que estas se reforcem mutuamente.Contudo, algumas pesquisas alertam-nos para o fatode que o empoderamento conseguido, por exemplo,na esfera pública não sempre se traduz emempoderamento individual transferido à esferaprivada49. A pesquisadora assinala que o processo deveser percebido nas diferentes arenas de luta, nosdiferentes papéis que as mulheres ocupam, pois cadauma se apropriará e utilizará o poder de formadiferenciada, segundo a situação de vulnerabilidadeque vivencie em cada espaço, no intuito de lidar etransformar os desequilíbrios de poder.

Refletindo a respeito de que atividadesempreendidas pelas mulheres entrevistadas poderiamcontribuir para o empoderamento pessoal, mastambém se relacionam com um empoderamentocoletivo, apresentaremos dois exemplos mais. Oprimeiro é a participação de mulheres da CCC e doMML, nos Encontros Nacionais de Mulheres50,realizados a cada ano em diferentes estados do país.Para reunir o dinheiro da viagem, em fundo comumou não, empreendem diferentes atividades ao longodo ano. À prática social de cozinhar, já descrita, sesomam outras práticas como, por exemplo, arealização de bingos familiares.

O segundo exemplo é a experiência de LauraPadilla, para quem cozinhar foi uma forma de obteros recursos necessários para realizar o primeiro cursode Especialização sobre Violência Familiar. Na época,ela tinha organizado a Associação “Por tu família”51,sentia a necessidade de estudar, de adquirirconhecimentos na temática, mas carecia de dinheiropara investir na sua formação:

(…) Ponéle me salía cien pesos el curso, más otros cien pesosde materiales y no sé de viajes ponéle treinta pesos, porqueentre el pasaje, la comida y qué sé yo. Hice de todo, desde

tallarines, pan casero, remendaba ropa, lo que sea, y

me empecé a pagar los cursos y ahí hice las

49 ANTUNES. Op. cit., p. 147.

50 Iniciados em 1986, sãoeventos autoconvocados,pluralistas, sem exclusõesnem censuras, mas seproíbe a representaçãopolítica oficial einstitucional. A dinâmicadas discussões nos gruposde trabalho prioriza ahorizontalidade e oconsenso na tomada dedecisões. No caso de nãoatingir o consenso, asdiferentes posições sãoregistradas nas atas. Nosegundo dia, realiza-se umapasseata. No último dia, sãolidas as conclusões eescolhida a sede para opróximo ano.

51 A associação dedica-se aconter e darassessoramento a mulherese seus filhos/as vítimas deviolência doméstica,auxiliando na realização detrâmites jurídicos para apensão alimentícia.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57226

Page 227: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 227

especializaciones. Hice la especialización en violenciafamiliar y al año siguiente hice maltrato y violencia sexualinfantil. (…) Y es como que bueno, después de eso, ahí escomo que comienzo a hacer estos trabajos que ahora estoyhaciendo de enfrentar al sistema judicial. (...) Grifo nosso

Esses conhecimentos e o título recebidopossibilitaram seu empoderamento e, no vínculosolidário estabelecido com outras mulheres a partirda Associação, contribui com a defesa dos direitos deoutras mulheres.

Quando as mulheres não cozinhamQuando as mulheres não cozinhamQuando as mulheres não cozinhamQuando as mulheres não cozinhamQuando as mulheres não cozinham

Existem situações em que as mulheres se negam acozinhar. Uma dessas situações nos foi relatada poruma ex-piqueteira, que tinha desistido de participardo grupo porque, segundo ela, nas marchas só alevavam para cozinhar. Outra das situações foicomentada por participantes do MML, querememoraram um piquete realizado junto aosprodutores da Câmara de General Roca. O protestose prolongou por 15 dias; uma das mulheres do MMLrelata: “De noche nos quedábamos, todo el grupohaciendo comida, empanadas, tallarines. Toda lacomida para toda la gente que venía, capaz que erancuarenta, cincuenta, cien personas. ¿Vos sabés lo quetrabajamos?”. Porém, na entrevista, essas mulheresafirmaram que não cozinhariam nunca mais para osmembros da Câmara. Expressavam, assim, a rupturado movimento com eles, em virtude da escolhapolítica do MML, em favor dos/as produtores/asfamiliares, e da falta de respeito de alguns membrospara com produtoras que participavam do espaçoinstitucional.

Considerando que alguns produtores da Câmarasão familiares das participantes do MML: pai, marido,irmãos e/ou filhos, a decisão de não cozinhar eramuito significativa, pois muitas delas de fato

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57227

Page 228: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

228 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

continuariam realizando essa tarefa no lar. A posiçãoassumida por estas mulheres reflete que são conscientesde que cozinhar no lar não é a mesma coisa quecozinhar em um protesto, pois neste espaço a práticase politiza. E, também, que essa ação tem caráter derevelação52, quer dizer, mostra o posicionamentopolítico daquele que a realiza.

Uma das lideranças do MML, ao contemplar afotografia de suas companheiras cozinhando,apresentada acima, expressa: “[...] hay una diferenciaentre ellas y yo, viste que ellas hacen de comer.[Assinalando a fotografia] ¿Ves?, son todas señorascasadas, formalmente casadas, no casadas a mediascomo yo. Entonces ellas son más cuidadosas, o sea,yo también ayudé pero no era que me dedicaba aeso”. O depoimento reflete o cozinhar vinculado avalores, particularmente, a uma imagem de mulher“certa”. Trata-se do olhar de uma observadora que,mesmo sendo companheira de militância, se diferenciapor quebrar duplamente com o papel de gêneroestabelecido, sendo uma mulher que não cozinha eque é “casada a medias”.

Seu questionamento, embora expondo ambigüida-des e ambivalências do vínculo entre o cozinhar e apolítica, revela os limites de uma análise a partir doroteiro tradicional. Se o cozinhar expressa identidadese relações sociais, estas não se reduzem a uma divisãode sexo-gênero fixa e cristalizada, senão a um processoem que “masculinidades e feminilidades são produzidas,reproduzidas, atualizadas”53, mas, também, no qual afeminilidade precisa ser renegociada entre as mulheres.

A fogo lentoA fogo lentoA fogo lentoA fogo lentoA fogo lento

Neste ensaio, iniciamos uma discussão a respeitodos sentidos que assume a prática social de cozinharna experiência de mulheres participantes demovimentos sociais. Tentamos abordar as articulaçõesentre cozinhar, política e gênero com um olhar

52 ARENDT. Op. cit., p. 191.

53 ABDALA, Mônica;MENASCHE, Renata;ASSUNÇÃO, Viviane K. de.Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57228

Page 229: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 229

feminista, que nos permitisse ir além das interpretaçõesdo cozinhar como atividade feminina e, muitas vezes,reflexo da submissão de gênero. Retomandodepoimentos de participantes e lideranças de distintasorganizações, pudemos apreciar que a prática socialde cozinhar tem múltiplos sentidos.

A ação das mulheres irrompe na lógica desegregação sexual do espaço, a partir de uma práticaconsiderada feminina. O cozinhar legitima a açãocoletiva, a prática em si mesma se politiza no espaçopúblico, ao tempo que recupera território político.Nessa prática, as mulheres atravessam as fronteiras que“separam” o espaço público do privado, e a práticade cozinhar também se transforma neste último. Emum contexto em crise, o cozinhar é um meio paraconstruir vias de empoderamento, que garantam asescolhas que as mulheres realizam. Como prática socialpossibilita a participação em um espaço desociabilidade, solidariedade e mobilização popular, emque também novas identidades podem ser construídas.

Para nosso trabalho sobre a participação política,analisar a prática social de cozinhar teve como principalcontribuição dar visibilidade à atuação política dasmulheres pesquisadas, pois, contando com umametodologia adequada, permite recuperar as vozesdas próprias agentes da ação e os sentidos atribuídosà mesma. A análise das dimensões apresentadas expõeas articulações entre a prática de cozinhar, a política eo gênero, mas são aproximações iniciais e, sem dúvida,precisam de maior aprofundamento. Contudo,apontam alguns caminhos e contribuições na procurade referenciais teórico-metodológicos que dêem contada complexidade e multiplicidade de sentidos dessaprática social, principalmente, ao revelar os limites deinterpretações da atuação política das mulheres a partirdo roteiro tradicional.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57229

Page 230: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

230 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ABDALA, Mônica; MENASCHE, Renata; ASSUNÇÃO, VivianeK. de. Proposta para o Simpósio Temático Comida e Gênero.Fazendo gênero, VIII, 2008, Florianópolis. Disponível em: <http://www.fazendogenero8.ufsc.br/st06.html> Acesso em: 20 ago.2008.

ANDÚJAR, Andrea. De la ruta no nos vamos: las mujerespiqueteras (1996-2001). In: Jornadas Interescuelas, X, 2005,Rosario (texto mimeo). Disponível em: <http://www.monografias.com/trabajos31/mujeres-piqueteras-no-abandonan-rutas/mujeres-piqueteras-no-abandonan-rutas.pdf>.Acesso em: 01 abr. 2008.

ANTUNES, Marta. As guardiãs da floresta de babaçu e o tortuosocaminho do empoderamento. In: WOORTMANN, Ellen;MENACHE, Renata; HEREDIA, Beatriz (Org.). Margarida Alves:coletânea sobre estudos rurais e gênero. Brasília: MDA, IICA,2006, p. 122-149.

ARAÚJO, Clara. Participação Política e Gênero: algumastendências analíticas recentes, in: BIB, São Paulo, n. 52, 2001, p.45-77.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2007.

AUYERO, Javier. Vidas Beligerantes. Dos mujeres argentinas, dosprotestas y la búsqueda de reconocimiento. Buenos Aires:Universidad Nacional de Quilmes, 2002.

BOGADO, Adriana M. Assembléias de Bairro na Argentina: criandoespaços de ação política para reconstruir o tecido social.Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Departamento deCiências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos,2006.

BONI, Valdete. Poder e igualdade: as relações de gênero entre

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57230

Page 231: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Adriana Marcela Bogado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 231

sindicalistas rurais de Chapecó, Santa Catarina. Estudos Feministas,Florianópolis, 12 (1):360, jan./abr. 2004, p. 289-302.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1999.

BRIEGER, Pedro. Les assemblées des voisins, une expérienceinédite dans la politique. In: AAVV. Argentine, enjeux et racinesd’une societé en crise. Paris: Tiempo. Editions du Félin, 2003.

BRUMER, Anita; ANJOS, Gabrielle. Mulheres em assentamentos:o que se pode esperar de sua mobilização e da ação das agênciasgovernamentais na mudança das relações de gênero? III Jornadasde estudos de assentamentos rurais, 2007, Campinas. CD III Jornadade Estudos em Assentamentos rurais 2007. Campinas: FEAGRI-UNICAMP, 2007.

CORRIENTE CLASISTA COMBATIVA (CCC). Acampamoscontra el hambre. No al aumento de los precios. Buenos Aires,Setembro de 2007.

DEERE, Carmen; LEÓN, Magdalena. O empoderamento da mulher.Direitos à terra e direitos de propriedade na América Latina.Porto Alegre: UFRS, 2002.

IORIO, Cecília. Algumas considerações sobre estratégias deempoderamento e de direitos. In: ROMARNO, Jorge; ANTUNES,Marta. Empoderamento e direitos no combate à pobreza. Rio de Janeiro:ActionAid Brasil, 2002.

FEIJOÓ, María del Carmen. La trampa del afecto: mujer ydemocracia en Argentina. In: LEÓN, Magdalena (comp.). Mujeresy Participación Política: Avances y desafíos en América Latina.Bogotá: TM Editores, 1994.

JOFFILY, Olivia Rangel. Esperança equilibrista: Resistênciafeminina à ditadura militar no Brasil (1964-1985). Tese (Doutoradoem Ciências Sociais). Pontifícia Universidade Católica de SãoPaulo, São Paulo, 2005.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57231

Page 232: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Dimensões da prática social de cozinhar na participação política demulheres em movimentos sociais da Argentina contemporânea

232 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

LOBATO, Mirta; SURIANO, Juan. La protesta social en la Argentina.Buenos Aires: FCE, 2003.

MELUCCI, Albert. Movimentos sociais, inovação cultural e opapel do conhecimento, Novos Estudos CEBRAP, n. 40, 1994,p.152-166.

MENEZES, Marilda. O cotidiano camponês e sua importânciaenquanto resistência à dominação: a contribuição de James C. Scott.Raízes, Campina Grande, v. 21, n.1, p. 32-44, jan./jun. 2002.

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres,prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

_____. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.

PEZZOLA, Andrés. ¿Qué papel juega el barrio en la efectividadpolítica de nuestra asamblea? Acontecimiento, n. especial 24-25,2003, p.79-87.

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. EstudosHistóricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo:Fundação Perseu Abramo, 2004.

SCOTT, James. C. Formas cotidianas da resistência camponesa.Raízes, Campina Grande, v. 21, n. 1, p. 10-31, jan./jun. 2002.

SILVA, Petronilha et al. Práticas sociais e processos educativos:costurando retalhos para a colcha. São Carlos/SP. 2007. (textomimeo).

THOMPSON, Edward P. Costumes em comum. São Paulo:Companhia das Letras, 1998.

TRONTO, Joan. Mulheres e cuidados: o que as feministas podemaprender sobre a moralidade a partir disso? In: Gênero, corpo,conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57232

Page 233: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 233

Comida de mãe:Comida de mãe:Comida de mãe:Comida de mãe:Comida de mãe:notas sobre alimentação, família e gêneronotas sobre alimentação, família e gêneronotas sobre alimentação, família e gêneronotas sobre alimentação, família e gêneronotas sobre alimentação, família e gênero11111

Viviane Kraieski de Assunção

Resumo: Este artigo explora a intersecção entre comida,família e gênero, mostrando que as práticas e saberesalimentares são reveladores das dinâmicas das relaçõesfamiliares. Através de observações de campo, evidencia-se opapel preponderante das mães nas cozinhas, além dehierarquias e papéis de gênero nas famílias.

Palavras-Chave: Comida. Família. Gênero. Maternidade.

Abstract: This article explores the intersection among food,family and gender, in order to show that nourishing practicesand knowledge can reveal the dynamics of familiarrelationships. The fieldwork data highlights the main role ofthe mothers in the kitchens and the hierarchies and genderroles in the families.

Keywords: Food. Family. Gender. Motherhood.

Viviane Kraieski de Assunção, doutoranda em Antropologia Social –Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social daUniversidade Federal de Santa Catarina (PPGAS-UFSC)[email protected]

1 Texto recebido: 08/06/2008.Texto aprovado: 02/07/2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57233

Page 234: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida de Mãe: notas sobre alimentação, família e gênero

234 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Entre fevereiro e abril de 2007, realizei umaetnografia de recepção de programas de culinária noMorro da Caixa, comunidade de camadas médias epopulares do município de Tubarão, no sul de SantaCatarina. Meu objetivo era entender quais os sentidosdados pelos telespectadores à mensagem televisiva dosprogramas de culinária e investigar as possíveis relaçõesentre esta mensagem e a alimentação cotidiana dasfamílias pesquisadas. Logo no início, minha pesquisade campo foi perpassada por um recorte de gênero– ao perguntar aos homens da comunidade se assistiamaos programas de culinária, freqüentementerespondiam: “Claro que não! Este é um programa demulher!”. A pesquisa de recepção foi, portanto,realizada apenas com mulheres – a maioriaautodenominava-se dona-de-casa – que assistiam aosprogramas de culinária entre suas atividadesdomésticas.

Durante três meses, assisti aos programas deculinária com as mulheres,2 realizei entrevistas commoradores, participei das atividades cotidianas dealgumas famílias, entre as quais me foi permitidoacompanhá-las em almoços, jantares e no preparo derefeições. Nesta pesquisa, deparei-me com o papelpreponderante das mulheres em suas famílias – emespecial a centralidade da mãe 3 – e sua estreita relaçãocom a alimentação de seus familiares. Ao destacar afigura da mãe e de outras mulheres das famílias, minhapesquisa passou a considerar como os discursos epráticas alimentares atuam na organização e definiçãodos papéis de gênero. 4

As intersecções entre comida, gênero e família têmsido destacadas por pesquisadores sociais. Woortmannafirma que quando se constrói a refeição, o gênero éconstruído no plano das representações 5. Nestesentido, a comida não apenas define identidades, 6 comotambém as relações que as pessoas mantêm entre si.7

2 Concentrei minha pesquisaem duas ruas do Morro daCaixa, e em alguns becosdessas ruas. Durante trêsmeses (no período defevereiro a abril de 2006),assisti aos programas deculinária com 14 mulheres– de camadas médias epopulares – que afirmavamter o hábito de assisti-los,realizei entrevistas e visitasconstantes a elas e a outrosmoradores. A pesquisa finalconta com comentários,opiniões e observações decerca de 30 mulheres(ASSUNÇÃO, 2007).

3 Utilizo o termo “mãe”,neste texto, como categoriaêmica.

4 Aqui gênero refere-se àconstrução social do sexo,termo que distingue adimensão biológica dadimensão sócio-culturaldos indivíduos(HEILBORN 1991, SCOTT1990). Como define Grossi,“gênero é uma categoriausada para pensar as relaçõessociais que envolvemhomens e mulheres,relações histori-camentedeterminadas e expressaspelos diferentes discursossociais sobre a diferençasexual” (1998, p.6). Segundoa mesma autora, o gêneroestá permanen-tementesujeito a mudanças, pois“está sendo todo o temporessignificado pelas intera-ções concretas entre indiví-duos do sexo masculino efeminino” (1998, p.7). Nestemesmo sentido, pode serconsiderado como papel degênero “tudo aquilo que éassociado ao sexo biológicofêmea ou macho emdeterminada cultura”(GROSSI, 1998, p.7).

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57234

Page 235: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Viviane Kraieski de Assunção

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 235

Segundo o antropólogo inglês Edmund Leach, aoobservar um grupo de pessoas à mesa, é possível dizerquem é o chefe da família e quem é o convidado, pelamaneira de se comportarem ou pela posição na mesa8.Deste modo, a refeição apresenta sua dimensão ritual,pois é constituída de atos simbólicos, cujos significadossão partilhados por seus participantes.

A comida está relacionada aos laços sociais, poisevoca lembranças, emoções e sentimentos que nosremetem às memórias do passado e dos indivíduoscom quem nos relacionamos 9. Além de reforçar osvínculos que unem os membros de uma família, acomensalidade também expressa tensões, conflitos edistinções entre familiares. Como ensina Douglas, acomida é um código, cuja “mensagem trata dediferentes graus de hierarquias, de inclusão e exclusão,de fronteiras e transações através das fronteiras” 10.Assim, as refeições podem reproduzir simbolicamenteas relações de poder e posições hierárquicas entreindivíduos de um mesmo grupo social.

Muito além de ser um ato puramente biológico, aalimentação é, portanto, perpassada por relaçõessociais, dentre as quais destaco aqui as relaçõesfamiliares e de gênero. Se a alimentação não pode serpensada de forma naturalizada, tampouco o papel demãe – que considero fundamental para se pensar aspráticas e saberes alimentares de meus interlocutores– pode ser tomado de maneira essencializada. Antesde relatar meus dados de campo, discorro sobre aconstrução e consolidação da maternidade como valorsócio-cultural em sociedades ocidentais, ainda, bastantearraigado em alguns contextos sociais.

A invenção da maternidadeA invenção da maternidadeA invenção da maternidadeA invenção da maternidadeA invenção da maternidade

“Ser mãe” não pode ser um atribuído a umaessência ou natureza feminina. Disciplinas comoAntropologia, Sociologia e História contribuíram comestudos que apresentam a maternidade como uma

5 WOORTMANN, Klaas. Acomida, a família e aconstrução do gênerofeminino. Revista de CiênciasSociais, 29 (1), 1986, p.31.

6 FISCHLER, Claude.L’Homnivore. Paris: OdileJacob. 1992

7 DA MATTA, Roberto. O quefaz o brasil, Brasil?. 9. ed. Riode Janeiro: Rocco, 1998. p.56

8 LEACH, Edmund. Culturae comunicação: a lógica pelaqual os símbolos estãoligados – uma introduçãoao uso da análiseestruturalista emAntropologia Social. Rio deJaneiro: Zahar, 1978.

9 MACIEL, Maria Eunice.Cultura e alimentação ou oque têm a ver osmacaquinhos de Koshimacom Brillat-Savarin?Horizontes Antropológicos . Porto Alegre, v. 7, n. 16, 2001.

10 DOUGLAS, M. Deciphering aMeal. In: GEERTZ, C. (Org.)Myth, Symbol and Culture.New York: Norton, 1971. p.61.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57235

Page 236: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida de Mãe: notas sobre alimentação, família e gênero

236 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

construção histórica e sócio-cultural, variável segundodiferentes contextos, e que apresenta funçãopreponderante na definição e consolidação deideologias de gênero ao longo da história.

O famoso livro da historiadora francesa ElisabethBadinter é um marco em estudos sobre maternidade.Através de uma extensa pesquisa histórica da sociedadefrancesa, a autora declara que o interesse e a dedicaçãoda mãe à criança não existiram em todas as épocasnem em todas as camadas sociais. Por isso, a autoraconclui que o instinto materno é um mito e, portanto,não é universal nem próprio de uma natureza feminina.O amor materno, tal como se verifica até hoje,apresenta-se como resultado de profundas mudançassociais. Badinter apresenta dados que mostram que,nos séculos XVII e XVIII, o conceito do amor damãe aos filhos era diferente do que conhecemoscontemporaneamente. As crianças eram normalmenteentregues, ainda bebês, às amas, que as criavam, e sóeram devolvidas ao lar após os cinco anos. 11

A partir do final do século, XVIII, “ser mãe”consolidou-se como o papel central da mulher e/ouesposa. Essa “construção da maternidade” foiconcomitante à emergência do capitalismo, queacompanhou grandes mudanças econômicas, sociais,políticas e culturais. A família nuclear passou a ser omodelo a ser seguido pela burguesia, em um períodoem que os Estados modernos e as propriedadesprivadas se fortaleceram.12 Ariès descreve o processode privatização da vida familiar que ocorreu entre ofim do século XVII e início do século XVIII, queocasionou “o recolhimento da família longe da rua,da praça, da vida coletiva, e sua retração dentro deuma casa melhor defendida contra os intrusos e melhorpreparada para a intimidade”.13

As formas como as mulheres exercem o papel demães – os significados dos vínculos afetivos queestabelecem com os filhos, os cuidados com ascrianças, as maneiras de socialização – estão atrelados

11 BADINTER, Elisabeth. Umamor conquistado: o mito doamor materno. 2. ed. Rio deJaneiro: Nova Fronteira,1985.

12 ENGELS, Friedrich. Aorigem da família, da propriedadeprivada e do Estado. Rio deJaneiro: CivilizaçãoBrasileira, 1981.

13 ARIÈS, Philippe. Históriasocial da criança e da familia.Rio de Janeiro: Zahar, 1978.p. 23.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57236

Page 237: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Viviane Kraieski de Assunção

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 237

aos modos de organização social da produção de bensmateriais. Nas sociedades modernas, quando aprodução foi transferida do domínio doméstico parao público – e o parentesco substituído pelas relaçõesde mercado na organização dessa produção – areprodução tornou-se tarefa por excelência dasfamílias e, principalmente, das mulheres.14 SegundoChodorow, “a maternação das mulheres é central paraa divisão do trabalho por sexos”. Neste sentido, “asmulheres como mães são agentes decisivos na esferada reprodução social”, pois “a função materna dasmulheres tem profundos efeitos nas suas vidas, naideologia sobre elas, na reprodução da masculinidadee desigualdade dos sexos, e na reprodução dedeterminadas formas de força de trabalho”.15

A emergência da maternidade como valor surgiu,portanto, aliada a um novo modelo de família – afamília nuclear burguesa, base social do capitalismo –mas também acompanhou outra construção sócio-cultural: a da infância. A família tornou-se responsávelpela criação e cuidados das crianças. Como mostraÁries, até o século XVII, a vida da família erarepresentada basicamente pela vida pública, nãohavendo uma vida familiar íntima e privada. A famílianão existia, ainda, enquanto valor social. O sentimentode família surgiu entre os séculos XV e XVIII emfunção de uma nova forma como as crianças passarama ser vistas pelos adultos, que começaram a se interessarpelos cuidados e estudos dos filhos. A família passoua se organizar em torno da criança, dando-lhe umaimportância que modificou ainda os afetos existentesna dinâmica das relações familiares. A partir dessasmudanças, a família deixou de ser uma instituiçãopública e externa, e se tornou privada. 16

Giddens situa essas transformações sociais ehistóricas sob um novo enfoque. Para o sociólogoamericano, houve transformações, na esfera daintimidade, desde o final do século XVIII, das quaisas mulheres foram pioneiras. A invenção da

14 BARBOSA, Regina HelenaSimões. Mulheres, reprodução eaids: as tramas da ideologiana assistência à saúde degestantes HIV+ .[Doutorado] FundaçãoOswaldo Cruz, EscolaNacional de Saúde Pública;2001.

15 CHODOROW, Nancy.Maternidade, dominaciónmasculina y capitalismo. ElPatriarcado capitalista y elfeminismo socialista.Buenos Aires: SigloVeintiuno, 1980. p. 28.

16 ARIÈS, Philippe. Históriasocial da criança e da familia.Rio de Janeiro: Zahar, 1978.p. 23.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57237

Page 238: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida de Mãe: notas sobre alimentação, família e gênero

238 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

maternidade enquanto valor social é uma das mudançasque ocorreram no período em que amor românticotinha grande influência sobre a vida das mulheres. Oamor romântico era, segundo o autor, essencialmentefeminilizado. A criação do lar, ou seja, a separaçãoentre lar e lugar de trabalho, enfraqueceu domíniodireto que o homem tinha sobre a família. Ao mesmotempo, o controle das mulheres sobre os filhosaumentou à medida que as famílias ficavam menorese as crianças passaram a ser identificadas comovulneráveis e necessitando de um desenvolvimentoemocional a longo prazo. Neste sentido, se por umlado as idéias do amor romântico confinaram esubordinaram as mulheres ao lar, por outro,representaram uma expressão do poder das mulheres.A construção moderna da maternidade foiacompanhada por uma idealização da figura da mãe.Giddens destaca que fusões dos ideais do amorromântico e da maternidade permitiram às mulhereso desenvolvimento de novos domínios da intimidade,enquanto os sentimentos da camaradagem masculinaforam sendo relegados a atividades marginais, comoo esporte, por exemplo. 17

Hoje em dia, ainda segundo Giddens, vivemos nasociedade da separação e do divórcio, em que asfamílias são recombinadas. Os laços de parentescoestão sujeitos a uma maior negociação, pois há, naspalavras do autor, uma nova ética da vida cotidiana.Mas a relação entre pais e filhos, ao contrário do quese pode pensar, não é mais permissiva do que a deantes. O que ocorre é que hoje em dia a intimidadesubstitui a relação de autoridade dos pais,demandando-se sensibilidade e compreensão dos doislados. No entanto, não há um desaparecimentocompleto da autoridade – ela pode ser defendida demaneira que envolva princípios. 18

Das transformações ocorridas desde o fim doséculo XVIII na sociedade ocidental moderna, gostariade destacar que o valor da maternidade continua

17 GIDDENS, Anthony. Op. cit.

18 GIDDENS, Anthony. Atransformação da intimidade :sexualidade, amor &erotismo nas sociedadesmodernas. 2. ed. São Paulo:UNESP, 1993.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57238

Page 239: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Viviane Kraieski de Assunção

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 239

presente de forma extremamente arraigada. Sugiroque se o lar é o espaço da família, a cozinha – talcomo observei entre minhas interlocutoras no Morroda Caixa – é o espaço privilegiado da mulher, ou,especificamente, da intimidade entre mulheres.19 É nacozinha em que pode ser verificado o protagonismoda mãe, especialmente no preparo da comida e naprodução e manutenção de um certo saber culinário.

A casa da mãeA casa da mãeA casa da mãeA casa da mãeA casa da mãe

No Morro da Caixa, eu era recebida por minhasinterlocutoras, na maioria das vezes, na cozinha da casa.Toda casa, mesmo as muito pequenas, têm umacozinha. A casa de Caroline20, por exemplo, construídanos fundos da casa da mãe e do padrasto, tem umacozinha e um quarto. Ela, o marido e a filha pequenautilizam o banheiro da casa da mãe. A família nuclearconstitui-se, portanto, em torno de um “fogo”, deuma cozinha separada. 21

Como afirma Rial, a cozinha é o espaço da mulhere da sociabilidade entre as mulheres.22 É o lugar daintimidade, onde eu era recebida “sem cerimônia”.As casas – tanto das famílias de camadas médiasquanto das populares – possuem uma porta na frenteda casa, que geralmente dá acesso à sala, e uma portana lateral, mais aos fundos da casa, por onde se entrapela cozinha. Em casas mais modestas das famílias decamadas populares, onde não há um cômodoexclusivo para a sala, a cozinha está localizada na parteda frente da casa. É neste espaço da casa onde é feitaa maior parte das refeições da família.

Comer junto está profundamente associado aoslaços afetivos entre os membros de uma família. Issopode ser constatado nos discursos das donas-de-casaque passavam por desavenças no relacionamento comum dos familiares.23 Madalena, ao me contar sobre asbrigas que tinha com o ex-marido, disse-me que elenão permitia que ela e os filhos almoçassem junto com

19 RIAL, Carmen Silvia. Mar-de-dentro: a transformação doespaço social na lagoa daConceição. Dissertação(Mestrado) - UniversidadeFederal do Rio Grande doSul, Instituto de Filosofia eCiências Humanas, PortoAlegre, 1988.

20 Todos os nomes de minhasinterlocutoras foramsubstituídos por nomesfictícios para garantir suaprivacidade.

21 WOORTMANN, Klaas.Casa e família operária.Anuário Antropológico 80 .Fortaleza/Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro / UFCE,1982. RIAL. Carmen Silvia.Op. Cit.

22 RIAL, C. S. Op. cit.23 A relevância de se comer

junto é ressaltada quandonos deparamos com suasinterdições, como mostraSimmel, ao revelar osvalores da comensalidadeem épocas medievais.

23 Transcrevo a passagem emque o autor relata estasinterdições alimentares: “aGuilda de Cambridgeimpôs, no século XI, umapesada pena para quemcomesse ou bebesse comalgum assassino de umirmão da Guilda; domesmo modo, o Concíliode Viena de 1267, forte-mente direcionado contraos judeus, determinou

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57239

Page 240: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida de Mãe: notas sobre alimentação, família e gênero

240 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

ele, como demonstração de autoridade: “Ele tinha quealmoçar antes de todos. A gente só comia depois dele.”Zilá também me relatou os problemas que tinha como filho de 36 anos, que é usuário de drogas e moracom ela e o marido. Enquanto estavam brigados, ofilho recusava-se a partilhar a mesa com a mãe. “Elenão senta na mesa comigo. Pega o prato de comida evai comer em outro lugar”.

A mulher – especialmente a mãe – tem papelpreponderante na preparação da comida. É a mulherque decide os alimentos que serão consumidos, aindaque estes respeitem o gosto individual dos filhos enecessite da aprovação deles e do marido. Raramenteuma mulher prepara uma comida apenas paraconsumo próprio. No momento das refeições24,geralmente é a última a sentar-se à mesa. Muitas delasservem primeiramente os demais membros da famíliaantes de se servirem.

Algumas mulheres afirmaram não gostar ou nãosaber cozinhar. No entanto, isso não significa que estasmulheres não cozinhem, mas que cozinham apenas oque chamam de “básico”, que seria a preparação decomida para o almoço. Dona Simone diz não gostar“de fogão”. Segundo ela, só faz “o básico”: arroz,feijão, salada, uma carne e batata-frita. A filha, casada,que mora em um bairro vizinho, é quem prepara bolosquando vai à sua casa. Raquel também não gosta decozinhar. Prepara apenas almoço. Quando os filhosquerem comer um “doce diferente”, pede para a vizinhafazer. Quando tem alguma festa de aniversário nafamília, pede à sua cunhada, que trabalha em umapadaria, vir até sua casa e preparar a torta.

Poucos homens cozinham. Sua participação napreparação da comida e em outras atividades domés-ticas, como limpar a casa, lavar louças e lavar roupas,é pequena. Quando fazem algumas destas atividades,seu trabalho é considerado uma “ajuda” à mulher. Issoacontece quando a mulher não pode realizar estafunção – por exemplo, quando ela fica doente.

muito obsequiosamenteque os cristãos nãodeveriam colocar-se à mesacom eles; assim também,na Índia, deixar-se contami-nar por comer com alguémde casta inferior pode tereventualmente conseqüên-cias funestas. Freqüente-mente o hindu comesozinho para estar completa-mente seguro de que nãocompartilha a mesa com umcompanheiro proibido”(SIMMEL 2004, p. 2).

24 Poulain define o termo“refeição”, diferenciando-o de “tomadas alimentares”.Segundo o autor, asrefeições “são fortementeinstituídas, ou seja, sobre asquais pesam regras sociaisbastante precisas tanto aonível da estrutura quanto dohorário, da localização, docontexto social e daritualização. Entendemospor ‘tomada alimentar foradas refeições’ todas asingestões menosfortemente instituídas deprodutos sólidos oulíquidos que têm uma cargaenergética” (2004, p. 73). Omesmo autor explica o usodos termos “comensal” e“comedor”, indicando queo primeiro refere-se a umato coletivo, enquanto osegundo está associado aum ato individualizado.Rial (1996) critica estasdiferenciações entre“refeição” e “tomadaalimentar” ao discutir adicotomia refeição e snack(tomada de alimentoestruturada ou não).Segundo a autora, amudança alimentarcontemporânea não secaracteriza por umaausência de estrutura, mas

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57240

Page 241: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Viviane Kraieski de Assunção

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 241

O marido de Márcia é uma exceção. Sabe cozinhar“o básico”, porque ela o ensinou para que pudesseajudá-la no tempo em que trabalhava comorecepcionista em um condomínio residencial. Quandoo casal chegava do trabalho, dividia as atividadesdomésticas. Essa atitude era repreendida pela famíliado marido. “Os irmãos dele dizem que homem nacozinha é bicha. Um dia, a minha sogra me viu lavandoa louça e ele secando. Me disse que homem não deveriafazer isso. Falei para ela: ‘nem parece que a senhora émulher’.”

No entanto, nem sempre a “ajuda” do homem nacozinha é bem-vinda pelas mulheres. Algumasinterlocutoras relataram-me que não gostavam quandoseus maridos tentavam preparar a comida. Suelitrabalha todas as manhãs na oficina do marido. Faz acontabilidade e atende telefonemas. Durante à tarde,prepara sempre o almoço do dia seguinte, para quepossa esquentar a comida quando chega com o maridodo trabalho ao meio-dia. Eles almoçam junto com osdois filhos, um de oito e outro de 18 anos. Contou-me que, um dia, ao preparar pão para o café, sentiu-se mal, e o marido resolveu ajudá-la. “Fiquei tãonervosa que resolvi fazer eu mesma o pão. Ele nãotem jeito pra cozinha”.

Cozinhar, para as donas-de-casa pesquisadas,significa “cozinhar para” alguém. A cozinha é semprecitada como uma atividade feita para os outrosmembros da família.

Neste sentido, é importante observar as mulheresque dizem não se dedicar mais à cozinha. Luíza,divorciada, mãe de três filhos, todos casados, deu ostrês livros de receita que tinha às noras. Disse-me quenão precisava mais dos livros porque agora “ésozinha”. Antônia, que mora com a mãe e o irmão,gosta de preparar pizzas, mas afirmou que não preparamais porque os sobrinhos não moram mais perto.Ela não faz pão, porque “é caro, e eu não tenho filhomesmo”.

por novas estruturas. Rialcita a definição dohistoriador francêsFlandrin, que propõe que“consideremos comorefeição toda tomadaalimentar tendo um nome,quer dizer, sendo vistacomo refeição pelo gruposocial em questão” (1996,p. 99).

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57241

Page 242: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida de Mãe: notas sobre alimentação, família e gênero

242 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

A alimentação aparece fortemente associada aocuidado das mães com os filhos. Dona Guilherminacontou-me sobre o tempo em que “deixava de comerpara dar comida aos filhos”. Já Antônia utilizou aalimentação como exemplo da falta de cuidados quesua irmã tem com o filho. “A gente [ela e os irmãos]mamou até os dois anos. Comia feijão. Ela [a irmã]não dá comida direito e depois quer que o médico dêjeito”.

É interessante perceber as dificuldades dos pais eavós ao lidar com as interdições alimentares devido aproblemas de saúde, principalmente das crianças. Afilha de Caroline, Ana Paula, de dois anos e oito meses,não pode ingerir lactose. Durante minha estada emcampo, a criança foi internada no hospital por tertomado iogurte. A bebida tinha sido comprada pelopadrasto, no “rancho” do mês. Ele comprou um potepara cada criança da casa, para que nenhuma delastivesse tratamento diferenciado. Léia contou-me sobreuma criança que é cilíaca – não pode comer glúten.Costumava-se pedir à mãe da criança que não alevassem a festinhas de aniversário, porque tinham penadela, que não podia comer as guloseimas servidas.

Além de alimentar bem os filhos, as mães tambémdevem reconhecer o gosto individual de cada um deles.Dona Ana já chegou a fazer “quatro tipos diferentesde carne seguindo o gosto de cada um”. Tem dia quechega a cozinhar para até 13 pessoas, contando comos filhos e netos. Em sua casa, mora com a filha solteira.Aos fundos, vive o filho divorciado, e, na casa ao lado,mora a ex-nora (fora casada com um filho de DonaAna que morrera em um acidente de carro) com oatual marido e filhos. Dona Ana prepara o almoçopara todos eles, além de fazer bolos e outros doces.Geralmente, distribui a comida para que cada umcoma em sua própria casa. A refeição é feita emconjunto aos domingos. A nora, os filhos ou um dosnetos fazem as compras da casa, já que Dona Anatem problemas de coração e não pode fazer esforço.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57242

Page 243: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Viviane Kraieski de Assunção

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 243

Eles seguem as recomendações da lista de comprasda senhora, comprando inclusive o produto da marcasolicitada. A compra é paga por Dona Ana.

Fátima tem dois filhos e uma filha, todos casados.Dois deles moram em outros bairros de Tubarão, ooutro em Capivari de Bairro, cidade vizinha. Fátimacuida do neto de nove anos desde que ele tinha trêsmeses para que a filha possa trabalhar fora. A dona-de-casa conhece os horários de folga dos filhos. Porisso, tem sempre em casa a comida que é de preferênciadeles. A filha almoça diariamente na casa da mãe. Jáos filhos homens a visitam com freqüência. Preparapão doce para o filho que prefere doce, e pão salgadocom lingüiça para o outro. Um deles, que é policialrodoviário, nos dias de folga chega a visitá-la até trêsvezes no dia, sempre para “tomar um café”. Aosdomingos, costuma preparar o almoço para filhos,noras e netos em sua casa. O almoço de domingo é omomento em que costuma ensinar às noras comopreparar a comida preferida dos filhos. Elas costumamtelefonar para a sogra para perguntar determinadasreceitas.

Os exemplos de Dona Ana e Fátima são bastanterepresentativos da importância central da casa da mãee do caráter ritual do almoço de domingo.Woortmann cita o trabalho de Souto de Oliveira comoperários do Rio de Janeiro, destacando essa refeiçãosemanal. Segundo o autor, o almoço de domingo sedistinguiria do almoço dos outros dias da semana porser um momento em que o operário pode comer“mais” – por estar associado a um dia de lazer edescanso – e comer “melhor” – pela presença de umacarne “melhor”, como o churrasco, ou um assado aoinvés de cozido. O almoço de domingo se caracterizariaprincipalmente pela presença do “pai de família” noalmoço 25. Entre as famílias que pesquisei, o almoçode domingo se distinguiria das outras refeições dasemana pelo tipo de comida que é preparada, assimcomo nas famílias de operários cariocas, e pela

25 WOORTMANN, Klaas,1986, Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57243

Page 244: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida de Mãe: notas sobre alimentação, família e gênero

244 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

presença dos filhos na casa dos pais, especialmente nacasa das mães. Nesse sentido, a mãe – e não o pai,como apontado no trabalho de Souto de Oliveira – éa figura ritualmente privilegiada.

As refeições – principalmente os almoços – sãomomentos de sociabilidade. Mas no “comer junto”também aparecem as individualidades, que sãorespeitadas pela mãe. Simmel foi um dos primeirosautores a destacar o caráter socializador das refeições.Para o autor, “o prato aparece como uma criaçãoindividualista face à gamela, da qual cada um podia seservir diretamente, em épocas primitivas”, e que ainda“indica que esta porção de comida é exclusivamentepara esta única pessoa”. 26 A individualidade, segundoSimmel, não se dissolve na coletividade, maspermanece autônoma e livre.27 O autor destaca queos pratos da mesa de jantar superam o“individualismo simbólico” na medida em queestabelecem um “compartilhamento formal” que nãoadmitiria “nenhum tipo de individualidade”. Diz oautor: “pratos e copos diferentes, destinados adiferentes pessoas, seria extremamente absurdo e muitofeio”. 28 No entanto, em minhas observações comfamílias no Morro da Caixa, percebi que aindividualidade na hora das refeições é valorizada. Estanão se expressa em diferentes pratos, copos ou talheres.É na comida, que a mãe prepara tentando respeitar ogosto de cada um dos filhos e do marido, que aindividualidade se reflete.29

Entre minhas interlocutoras, era bastante recorrentea idéia de que “cada um tem seu gosto”. Assim, cabe àmulher que prepara a comida – particularmente à mãe– a detenção deste saber. O gosto tem tanto uma basebiológica – pertence a um conjunto “olfativo-gustativo”, como também cultural. Flandrin, retomadopor Maciel, afirma que “se os órgãos evoluem ao ritmoda natureza, as percepções, elas, evoluem ao ritmodas culturas”. 30 Cada cultura estabelece regras e critériosconforme, entre outros fatores, “o que é chamado

26 SIMMEL, Georg. Sociologiada refeição. Estudos Históricos.Rio de Janeiro, n. 33, 2004.Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/375.pdf> Acesso em:08 dez. 2006.

27 WAIZBORT, L e o p o l d o .As aventuras de Georg Simmel.São Paulo: 34, 2000.

28 SIMMEL, Georg. Sociologiada refeição. Estudos Históricos.Rio de Janeiro, n. 33, 2004.Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/375.pdf> Acesso em:08 dez. 2006.

29 O desabafo de uma deminhas interlocutoras ébastante emblemático daimportância do reconheci-mento desta individuali-dade. Ivete relatou-me ummomento de dificuldadeem sua vida após aseparação do marido que atraíra com outra mulher. Adona-de-casa passou poruma depressão. “Antes [dadepressão] eu não sabianem quem eu era. Sabia queum filho não gostava deervilha, que o outro nãogostava de abóbora. Nãosabia do que eu gostava“.Ivete disse que “antes viviana cozinha“, mas que hojeo preparo da comida temque ser mais rápido e práti-co. Ela ensina as filhas aaprenderem “o básico“ e a“não se preocuparem coma cozinha“. Segundo Ivete,a mulher hoje em dia ébem mais exigida que a dotempo de sua mãe. “A gentetem que ser boa no traba-lho, boa mãe, boa esposa...”

30 MACIEL, M. E. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57244

Page 245: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Viviane Kraieski de Assunção

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 245

‘gosto’, este conjunto de ‘sensibilidade e percepção’,para usar as palavras de Matty Chiva31, onde a sensaçãogustativa traz uma “dupla conotação - informação eemoção - inscrita num dado contexto sócio-cultural”.32

Há uma analogia entre gosto e conhecimento,como nos lembra Maciel. Saber e sabor têm umaorigem parecida, do latim sapere, que significa “tergosto”.33 Neste sentido, ter conhecimento e ter saborse confundem. Ressalto que o conhecimento da mãesobre os gostos dos filhos lhe confere certos poderese autoridade na família e na relação com as noras,como descrevo mais adiante.

Não apenas a partilha da comida no momentodas refeições apresenta seu caráter de sociabilidade,como apontado por Simmel, mas também seupreparo. As tortas para datas comemorativas da famíliasão geralmente feitas por mulheres da família. Elianafaz bolos de aniversário para a família e vizinhos. Elatem fotos dos bolos que preparou, com decoraçõesde personagens de história em quadrinhos e desenhosanimados: desenhos do Mickey, do Pato Donalds, doHomem Aranha... As tortas compradas prontas empadarias não são apreciadas. Fátima sempre faz tortasem datas comemorativas para a família. Só no finaldo ano passado comprou uma torta pronta napadaria, porque estava doente. Ninguém de sua famíliagostou. Madalena também não aprova o sabor dastortas de padaria, que considera “seca”. A torta dafesta de aniversário da mãe de Antônia foi feita porela e pela irmã. Antônia preparou o “Bolo de BaixaCaloria”, que ela tanto gosta por não ter manteiganem margarina, que são gorduras. Já a irmã fez orecheio de pêssego e ameixa em calda.34

A preparação da comida envolve a ocultação dealguns de seus procedimentos. A cozinha é, portanto,o território do segredo. Simmel propõe entender osegredo como uma forma sociológica “que semantém neutra e acima do valor dos seus conteúdos”.35

O mistério em torno da informação, segundo o autor,

32 Ibidem.

34 A comida estabelecevínculos não apenas entrefamiliares, mas tambémentre vizinhos. Aparecidapediu conselhos à vizinhapara alimentar a filha adotivade sete meses, que nãoestava comendo há doisdias. A vizinha sugeriu quelhe desse sopa, iogurte...Quando Aparecida querpreparar “algo diferente”,também recorre à vizinha,que lhe empresta seucaderno de receitas. É neleque está anotada a receitade bolo de cenoura que elatanto gosta. Kátia semprepede o caderno de receitasda vizinha quando desejapreparar um bolo dechocolate. Tanto Kátiaquanto Aparecida nãoanotam as receitas, masdispõem do caderno dasvizinhas sempre quedesejam preparar o bolo.

35 SIMMEL, Georg. ASociologia do segredo e dassociedades secr etas . Trad.Simone Maldonado. JoãoPessoa, 2002. p. 13.

31 CHIVA, Matty, 1979, p. 4.

33 MACIEL, M. E. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57245

Page 246: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida de Mãe: notas sobre alimentação, família e gênero

246 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

ajuda a criar a “falácia de que tudo o que é secretodeva ser profundo e importante”. O segredo é umaforma de distribuição social do conhecimento quediferencia os indivíduos (entre aqueles que sabem e osque desconhecem) e cria uma relação social específica,uma relação de poder, regida por uma tensão que sedissolve na revelação. Deste modo, oscila-seconstantemente entre níveis de revelação e deocultação.

Do contraste entre estes dois interesses, o de esconder e o dedescobrir, brotam o matiz e o destino das relações mútuasentre os homens. (...) se estas relações tiverem comocaracterística a quantidade de segredo existente nelas ou emtorno delas, o seu desenvolvimento dependerá da proporçãoem que se dêem as energias que tendem a manter o segredo eas que induzem a revelá-lo.36

Simmel entende o segredo como uma “sociação”que preside a sociabilidade. No momento do preparoda comida, principalmente em almoços de domingoou em comemorações festivas, as relações entre asmulheres na cozinha oscilam entre a revelação de algunssegredos e a manutenção de outros. As receitas sãopassadas em maior quantidade da mãe ou da sograpara as filhas ou noras, e em menor quantidade nosentido inverso. Este movimento de transmissão dosaber culinário evidencia uma relação de poder, nosentido de que são as mães que detém o conhecimentosobre o melhor preparo da comida, e são elas queconhecem o gosto dos membros da família,principalmente dos homens.

“Rápido e prático”“Rápido e prático”“Rápido e prático”“Rápido e prático”“Rápido e prático”: a inserção no meio urbano: a inserção no meio urbano: a inserção no meio urbano: a inserção no meio urbano: a inserção no meio urbano

Além da transmissão do saber culinário da mãepara filhas e noras, é interessante perceber comominhas interlocutoras narravam seu aprendizado dacozinha. No discurso destas mulheres, aprender a

36 SIMMEL, Georg. Op. cit,2002. p. 14

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57246

Page 247: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Viviane Kraieski de Assunção

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 247

cozinhar aparece relacionado à trajetória individual decada uma delas. Apenas duas mulheres do Morro daCaixa afirmaram ter aprendido a cozinhar com suasmães. As diferenças entre a comida que preparam e aque suas mães preparavam são apontadas comomaiores entre aquelas que viveram a infância na zonarural: a inserção no meio urbano representa umamudança alimentar. Recorrentemente, associam acomida de suas mães como “mais simples”, “maispesada” e “grosseira”. 37 Já a comida de hoje estárelacionada à praticidade e à rapidez. Ivete, dona decasa, diz que “hoje em dia não se pode mais perdertempo com a cozinha”.

Algumas receitas são elogiadas por serem“práticas” e “rápidas”. Márcia gosta de preparar “umprato só” para o almoço. Segundo ela, o maridoreclamava, mas acabou se acostumando. Outrasinformantes manifestaram o desejo de prepararrefeições de “um prato só”. Antônia elogiou o “Arrozde Braga”, preparado no programa televisivo MaisVocê, por ser o suficiente para um almoço em família.Ela gosta de preparar pizzas, que ela também classificacomo “um prato só”. Estas pizzas são sempre recheadas“com o que se tem na geladeira”. Antônia, e outrasdonas-de-casa, fazem pizzas com carne moída, sardinha,frango desfiado, que sobraram do almoço ou da janta.

Estas comidas consideradas “um prato só” sãovalorizadas por sua praticidade e rapidez.38 A rapidezpode ser pensada como um valor da modernidade.Deste modo, ela não é própria apenas dos grandesmeios urbanos e de grupos empresariais, preocupadoscom o aumento da produtividade. Como afirma Ortiz,a rapidez “permeia a vida dos homens”. “No mundomoderno o tempo é uma função da inter-relação deum conjunto de atividades, entre elas: morar, vestir,fazer compras, trabalhar, passear etc. adaptar-se ounão a seu ritmo passa a ser uma questão fundamental.“Perder tempo” significa estar em descompasso coma ordem das coisas”.39

37 Bourdieu afirma que há umpreconceito de classeembutido nas idéias queassociam as preferênciasalimentares populares ao“grosseiro”, “pesado” e“gordo”, e que as caracterizacomo mais próximas dasatisfação de necessidades.Mas o autor reconhececomo próprio das camadaspopulares o “gosto denecessidade” (que seriagostar do que se pode teracesso), oposto ao “gostode luxo” de grupos demaior capital cultural eeconômico. (BOURDIEU,P. La Distinction : critiquesociale du jugement. Paris:Editions de Minuit, 1979.p. 199).

38 Em certas ocasiões, a faltade variedade dos pratosservidos tem conotaçãonegativa. Dona Madalena,cozinheira acostumada apreparar almoços e jantarespara eventos políticos,recusa-se a fazer carreteiroou risoto para estasocasiões. “Mesmo quandoé bom, bem-feito, temgente que sai falando.” Acozinheira prefere preparararroz, salada, maionese ecarne assada – comidasemelhante aos almoços dedomingo. Para ela, “umprato só” nestas refeiçõesé sinal de avareza dopolítico.

39 ORTIZ, Renato. Mundializa-ção e Cultura. 2. ed. São Paulo:Brasiliense, 1994. p. 83.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57247

Page 248: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida de Mãe: notas sobre alimentação, família e gênero

248 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Márcia conta que aprendeu a cozinhar sozinha,sem a ajuda da mãe. “Foi fazendo, misturando tudopra ver o que dá”. Ela cita os fios de ovos salgadoque inventou, para comer com queijo. Seus pais eramda zona rural. A mãe costumava matar coelho egalinha. Disse-me que há pouco tempo chegou acomprar galinhas vivas que estavam sendo vendidasem um caminhão que passara em frente a sua casa.Chamou uma vizinha para ajudá-la a matar as galinhase a limpá-las, e, em troca, deu-lhe algumas galinhas.Márcia disse que gosta de galinha caipira, mas nãoconseguira comê-las. Ela classifica a comida feita porsua mãe como “mais simples” e “mais pesada” doque a que ela prepara atualmente.

Luzinete, que também nasceu na zona rural, ondeseus pais continuam morando, cria cinco galinhas noquintal de casa. Diz não criar mais porque os vizinhosreclamam por causa do cheiro. Luzinete não mata asgalinhas para consumir a carne; seu interesse está apenasno consumo dos ovos. Ela diz não ter coragem dematá-las, ao contrário de sua mãe, que costuma abateras aves. A dona-de-casa – da mesma forma que Márcia– considera a comida preparada pela mãe como “maissimples” do que a sua, principalmente por ser menostemperada.

Márcia e Luzinete possuem fogão à lenha em casa,mas o utilizam pouco. Márcia prepara a comida docachorro no fogão à lenha, e Luzinete diz usá-lo apenaspara comidas que necessitam horas para ficaremprontas. Marisa destaca a “rapidez” como principaldiferença entre a comida feita por sua mãe quandoera criança e a que prepara agora, e aponta o fogão àlenha como responsável pela “lentidão”. “Era maisdemorada... levava a manhã inteira...”

Estes exemplos mostram como os fogões a lenhasão classificados em oposição a valores modernos eurbanos. Refletindo sobre a modernidade e areconfiguração de sistemas hierárquicos, Ortiz cita JackGoody, que mostra que em Gana a introdução da

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57248

Page 249: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Viviane Kraieski de Assunção

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 249

cozinha industrial surge como referência para os estilosde vida. Uma nova estratificação social aparece a partirdo consumo de novos alimentos, bebidas e deprodutos para a preparação destes. Segundo o autor,em Gana, o fogão à lenha seria utilizado pelas camadasmédias. Já as camadas inferiores utilizariam lareira depedras para cozinhar alimentos, enquanto as camadassuperiores teriam o fogão elétrico à disposição. Comoconclui Ortiz, “a legitimidade dos objetos fundamentauma maneira de viver, que algumas vezes temostendência de considerar como ‘européia’, mas que nofundo traduz a abrangência e a autoridade de umamodernidade-mundo”. 40

À guisa de conclusãoÀ guisa de conclusãoÀ guisa de conclusãoÀ guisa de conclusãoÀ guisa de conclusão

Ao longo deste texto, utilizei categorias que, apesarde corriqueiramente associadas a uma supostacondição natural e essencial dos seres humanos – nasconversas cotidianas, em alguns discursos médicos, namídia etc – são construções sociais e culturais, cujoconteúdo e significado variam no tempo e no espaço.Desta maneira, “ser mãe” é um valor da modernidade,associado também a outras modificações históricas,como o surgimento da infância e do sentimento defamília. A alimentação e o gosto têm suas dimensõesculturais que marcam identidades, situando-nosenquanto indivíduos e/ou pertencentes a um grupo,relacionados a sentimentos e à memória. A intersecçãoentre maternidade e alimentação evidencia formas desociabilidade familiar, marcadas por hierarquias.

Como me disse uma de minhas interlocutoras,“hoje em dia não se pode mais perder tempo nacozinha”. No entanto, a cozinha, tantas vezes associadaà posição desigual da mulher em relação ao homem,aparece em minha etnografia como espaçoprivilegiado para o exercício de uma certa autoridadeda mulher. Ela – no papel de mãe – através doconhecimento sobre o gosto individual de cada um

40 ORTIZ, R. Op. cit. p. 195.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57249

Page 250: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida de Mãe: notas sobre alimentação, família e gênero

250 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

dos filhos, estabelece relações de poder com outrasmulheres – especialmente as noras – e detém umconhecimento sobre as preferências alimentares dosmembros da família que é tão primordial para aconstrução de identidades, sejam estas individuais,coletivas, de gênero. A “comida de mãe” nos remetea um pertencimento, a uma memória, a um tempo e aum lugar. Observei na convivência com as famíliasdo Morro da Caixa que a “casa da mãe” é umareferência alimentar para os filhos – ainda que estessejam casados, morem em casas distantes ou tenhamos pais separados.

Para Fischler, não há nada de mais vital nem íntimoquanto o ato de comer: “os alimentos devemultrapassar a barreira oral, se introduzir em nós etornar-se nossa substância íntima”.41 É através dodomínio da intimidade que as mulheres conquistaramum espaço – da família, do lar – de acordo comGiddens,42 nos últimos séculos. A mãe não alimentaos filhos apenas nos primeiros meses de vida atravésdo leite materno. A preparação da comida e oconhecimento que constrói sobre as preferênciasalimentares dos membros da família constituem laçosdas relações familiares que perduram ao longo dosanos. A comida tem o potencial de transformar estasrelações em memórias, evocadas através do cheiro edo gosto. É nesta dinâmica que a maternidadeenquanto valor social, representada na comida da mãe,é transmitida e “realimentada”.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio deJaneiro: Zahar, 1978.

ASSUNÇÃO, Viviane. Nem toda receita é Mais Você: estudoetnográfico sobre consumo e recepção de programas televisivosde culinária em camadas médias e populares. Dissertação.(Mestrado em Antropologia Social). UFSC, Florianópolis, 2007.

41 FISCHLER, Claude. Op. cit.p. 07.

42 GIDDENS, Anthony. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57250

Page 251: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Viviane Kraieski de Assunção

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 251

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amormaterno. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BARBOSA, Regina Helena Simões. Mulheres, reprodução e aids: astramas da ideologia na assistência à saúde de gestantes HIV+.[Doutorado] Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de SaúdePública; 2001.

BOURDIEU, Pierre. La Distinction: critique sociale du jugement.Paris: Editions de Minuit, 1979.

CHODOROW, Nancy. Maternidade, dominación masculina ycapitalismo. El Patriarcado capitalista y el feminismo socialista.Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1980.

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. 9. ed. Rio deJaneiro: Rocco, 1998.

DOUGLAS, M. Deciphering a Meal. In: GEERTZ, C. (Org.)Myth, Symbol and Culture. Nova York: Norton, 1971. p. 61-81.

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada edo Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

FISCHLER, Claude. L’Homnivore. Paris: Odile Jacob. 1992.

_____. Gastro-nomía y gastro-anomía: sabiduría del cuerpo ycrisis biocultural de la alimentación contemporânea. In:CONTRERAS, Jesús. Alimentación y cultura: necesidades, gustos ycostumbres. Barcelona: Universitat de Barcelona, 1995.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade,amor & erotismo nas sociedades modernas. 2. ed. Sâo Paulo:UNESP, 1993.

GROSSI, Miriam Pillar. Identidade de gênero e sexualidade.Antropologia em Primeira Mão. Programa de Pós-Graduação emAntropologia Social. Universidade Federal de Santa Catarina,1998.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57251

Page 252: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida de Mãe: notas sobre alimentação, família e gênero

252 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

HEILBORN, Maria Luiza. Gênero e condição feminina: umaabordagem antropológica. In: Instituto Brasileiro de AdministraçãoMunicipal, Rio de Janeiro: Escola Nacional de Serviços Urbanos.Núcleo de Estudos Mulher e Políticas Públicas. 1991. p. 23-37.

LEACH, Edmund. Cultura e comunicação: a lógica pela qual ossímbolos estão ligados – uma introdução ao uso da análiseestruturalista em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Zahar,1978.

MACIEL, Maria Eunice. Cultura e alimentação ou o que têm aver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin? Horizontesantropológicos. Porto Alegre, v. 7, n. 16, 2001. Disponível em:www.scielo.br. Acesso em: 21 jan. 2007.

ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. 2 ed. São Paulo: Brasiliense,1994.

POULAIN, J-P. Sociologias da alimentação. O comedor e o espaçosocial alimentar. Florianópolis: UFSC, 2004.

RIAL, Carmen Silvia. Mar-de-dentro: a transformação do espaçosocial na lagoa da Conceição. Dissertação (Mestrado) -Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofiae Ciencias Humanas, Porto Alegre, 1988.

_______. Fast-foods: A nostalgia de uma estrutura perdida.Horizontes antropológicos. Porto Alegre, ano 2, n. 4, 1996. p. 94-103.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v.15, n.2, p.5-22, 1990.

SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição. Estudos Históricos. Riode Janeiro, n. 33, 2004. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/375.pdf> Acesso em: 08 dez. 2006.

_________. A Sociologia do segredo e das sociedades secretas. Trad.Simone Maldonado. João Pessoa, 2002.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57252

Page 253: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Viviane Kraieski de Assunção

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 253

WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. SãoPaulo: 34, 2000.

WOORTMANN, Klaas. A Comida, a família e a construção dogênero feminino. Revista de Ciências Sociais, 29 (1), 1986, p.103-30.

________. Casa e família operária. Anuário Antropológico 80.Fortaleza/Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/UFCE, 1982.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57253

Page 254: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57254

Page 255: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 255

Comida e simbolismo entre imigrantesComida e simbolismo entre imigrantesComida e simbolismo entre imigrantesComida e simbolismo entre imigrantesComida e simbolismo entre imigrantesitalianos no Rio Grande do Sul (Brasil)italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)11111

Miriam Oliveira Santos*

Maria Catarina C. Zanini**

Resumo: Este artigo tem por objetivo efetuar algumasreflexões comparativas acerca da comida entre descendentesde imigrantes italianos no Rio Grande do Sul (Brasil). Partindode duas pesquisas etnográficas diversas, pretende-se analisarcomo a comida, em suas diferentes fases e momentos é algovalorizado entre esses descendentes, e envolve um processoque depende da organização do trabalho familiar e coletivo,em que estão imbricadas relações de gênero, etárias,hierárquicas, entre outras.

Palavras-Chave: Italianos. Comida. Identidade Étnica.

Abstract: This paper aims to reflect on some comparativequestions about food and eating among descendents ofItalian settlers in Rio Grande do Sul (Brazil). With twoethnographic researches, our objective is to analyze how foodin its differents phases is something relevant to thosedescendents.

Key words: Italians. Food. Ethnic Identity.

1 Texto recebido: 30/06/2008.Texto aprovado: 28/07/2008.

Miriam Oliveira Santos., doutora em Antropologia Social. Atualmenteé pesquisadora associada do Núcleo Interdisciplinar de EstudosMigratórios e professora adjunta do Instituto Multidisciplinar daUniversidade Federal Rural do Rio de [email protected] Catarina C. Zanini, doutora em Ciências Sociais pela USP.Professora Adjunta da Universidade Federal de Santa Maria [email protected]

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57255

Page 256: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

256 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Nosso objetivo neste artigo é tecer algumas brevesreflexões acerca da comida e das comensalidades esuas múltiplas significâncias, fases, momentos eimportâncias entre descendentes de imigrantes italianosno Rio Grande do Sul, especialmente considerandoque a “cozinha”, enquanto espaço doméstico, éconsiderado um ambiente do universo feminino.Baseado em duas pesquisas etnográficas realizadas emespaços e tempos próximos, mas diversos,pretendemos, comparativamente, apontar elementoscomuns (ou não) deste processo rico e cada vez maisestudado que tem envolvido a comida nas coletividadeshumanas.

Como salientado por Murrieta, não há dimensãoda vida social que abarque de melhor forma “ascontradições do processo cotidiano de tomada dedecisão”2 como a alimentação. Pensamos desta formatambém. Embora inicialmente em nossas pesquisasesse não fosse um tema central em nossas investidasetnográficas, foram os descendentes de italianos quenos chamavam constantemente a atenção para aimportância da comida em suas vidas e na de seusantepassados também. Além disso, observamos oquanto as mulheres tinham “poder” e voz paraintroduzir ou rejeitar alimentos no universo doméstico,especialmente aqueles considerados “inovações”,como os temperos prontos, embutidos e pãesindustrializados, congelados, entre outros. Por vezes,tratava-se de um conflito entre gerações também,salientando o quanto o “gosto” é uma instância quebebe das interações sociais maiores e que o “por amesa” é uma atividade repleta de negociações.

Nas pesquisas desenvolvidas com objetivosdiversos, em diferentes regiões do Rio Grande doSul, ambas as pesquisadoras encontraram naquelaspopulações um forte investimento remetido à comida,em suas múltiplas dimensões (econômicas, simbólicas,organizacionais, religiosas, identitárias, rituais, entreoutras) e que merece ser estudado mais detalhadamente.

2 MURRIETA, Rui Sérgio.Dialética do sabor:alimentação, ecologia e vidacotidiana em comunidadesribeirinhas da Ilha de Itaqui,Baixo Amazonas, Pará.Revista de Antropologia: USP,São Paulo, v. 44, n.2, 2001. p.40.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57256

Page 257: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 257

Nosso objetivo aqui é, de uma forma breve, baseadasem nossas pesquisas, refletir e, talvez, inspirar novospesquisadores a investirem neste campo de pesquisa.

Como ressaltado por Mintz, o comportamentoreferente à comida está diretamente vinculado ao“sentido de nós mesmos e à nossa identidade social”3.Nosso objetivo neste artigo é, de certa forma,apresentar elementos históricos e etnográficos queauxiliem a melhor compreender e interpretar porquea comida foi e ainda é algo tão valorizado entre aquelaspopulações descendentes de imigrantes italianos querumaram para o Brasil num contexto complexo comoaquele dos finais do século XIX. Cabe destacar que osimigrantes são grupos relevantes de serem investigadosnos estudos sobre comida, pois como alerta Mintz,os “people on the move”4 são importantes agentesdas mudanças dietárias. Diria que estas mudançasafetam tanto a sociedade hospedeira como a migrante.Estas trocas findam por revelar muito das capacidadeshumanas de dialogar com as adversidades e asdiferenças. Ou seja, falam sobre as pessoas e a formacomo processam as mudanças e as necessidadescotidianas.

Além disso, a comida assume um papel muitoimportante na construção das memórias coletivasdestes grupos que, marcados por rupturas, passadas epresentes, elaboram sinais diacríticos específicos comodemarcadores de seus pertencimentos e origens. E,para os italianos no Rio Grande do Sul, a comidafarta e forte foi e ainda é um importante demarcadorétnico. Ela deve ser servida à mesa, em exposição deabundância e trabalho produtivo. Serve para o paladare para os olhos também. Como ressalta Woortmann,a comida e a comensalidade, quando desnaturalizadas“expressam meios de sociabilidade e apontam paradistinções socialmente identificáveis”5. A comida seconverteria, igualmente, como elemento extremamenteimportante na conformação do habitus6 e dos gostosdestes descendentes e faz parte de sua história enquanto

3 MINTZ, Sidney. Comida eantropologia. Uma breverevisão. Revista Brasileira deCiências Sociais, São Paulo,v.16, n.47, 2001. p. 31.

4 MINTZ, Sidney; DU BOIS,Christine. Theanthropology of food andeating. Annual Reviwe ofAnthropology.v. 31, 2002. p.105. Disponível em:jstor.org/stable/4132873.Acesso em: ago. 2008.

5 WOORTMANN, Ellen.Padrões tradicionais emodernização: comida etrabalho entre camponesesteuto-brasileiros. In:MENASCHE, Renata (Org).A agricultura familiar á mesa:saberes e práticas daalimentação no vale doTaquari. Porto Alegre:UFRGS, 2007. p.177.

6 No sentido que Bourdieuatribui a este, ou seja,estruturas internalizadas,BOURDIEU, P. Questões deSociologia. Rio de Janeiro:Marco Zero, 1983.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57257

Page 258: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

258 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

coletividade no Brasil. Em suma, suas trajetórias estãoenvoltas em e com comidas. Neste processo histórico,contudo, é importante salientar o quanto as mulheresforam protagonistas e também elementosextremamente importantes de manutenção de gostos,paladares e costumes culinários étnicos. Elas, de certaforma, em suas cozinhas, no ensinamento de receitasde mães e avós para as filhas e netas, passaram muitosvalores do universo “italiano” de origem. Ensinavam,além de culinária, posturas para a vida: quem deveriaser servido primeiro, para quem seria destinado omelhor pedaço de alimento, como servir as visitas, oque deveria ser destinado à caridade, onde sentar, comquem falar, sobre o que falar, entre tantos outrosensinamentos. Enfim, além de comida, ensinava-secomo uma “boa mulher italiana” deveria se comportardentro e fora de casa, quais as hierarquias sociaisexistentes e como deveriam ser respeitadas (ou não).

Salientamos que compreendemos os descendentesde italianos no Rio Grande do Sul como grupos étnicosno sentido de que estes se auto-atribuem e sãoreconhecidos como portadores de uma origemdistinta7 e também no sentido apontado por Seyferth8,de que os grupos migrantes no Brasil, historicamente,converteram-se em grupos étnicos.9. Processo esse queenvolve uma série de perspectivas históricas e políticasque vão desde relações pessoais a relaçõesmacroestruturais. Compreendemos também que aetnicidade é algo que reside nos domínios dosimaginários e dos discursos e não necessita estarnecessariamente materializada, embora se saiba oquanto às materializações são importantes para sereavivar códigos, posturas e valores entre os indivíduos.Os domínios étnicos são abertos e em constantenegociações porque sintonizados em contextosespecíficos, como os Estados nacionais e suashegemonias, por exemplo.

Neste sentido, apresentamos os descendentes deitalianos no Rio Grande do sul, num recorte analítico,

7 BARTH, Frederik. Osgrupos étnicos e suasfronteiras. In: LASK, Tomke(Org.). O guru, o iniciador eoutras variações antropológicas.Rio de Janeiro: Contra CapaLivraria, 2000.

8 SEYFERTH, F. Imigração ecultura no Brasil . Brasília:EDUNB, 1990.

9 Além disso, compartilhama crença na origem comume é desta que procede a boaparte dos sentimentosassociados à pertença.WEBER, M. Economia eSociedade: fundamentos dasociologia compreensiva, v.1. 3 ed. Brasília: UNB, 1994.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57258

Page 259: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 259

também enquanto grupo de interesse10 que, de formasdiversas, tem negociado posições e representações emarenas diversas usando o demarcador étnico comoum recurso (quando necessário). Contudo, importanteobservar, como referido por Zanini11 em sua pesquisa,que as italianidades são variadas, situacionais,contextualizadas e acionadas por sujeitos históricoscom interesses específicos. O papel da comida, emnossa compreensão, deve ser compreendido no interiordesta dinâmica. Ele é um importante sinal diacríticoque representa a capacidade produtiva e generosa, sejadas pessoas ou da terra. Poderíamos dizer, igualmente,que esta é a versão externa, no interior dos domíniosdomésticos, há todo um cenário anterior a estaexposição da comida que merece ser conhecidotambém. Nele estão imbricadas relações de gênero,etárias, hierárquicas e outras que mostram que a comidaé um processo que depende da organização dotrabalho familiar e coletivo, especialmente entrecamponeses. Compreendemos estes camponesescomo colonos, no sentido atribuído por Seyferth12,ou seja, de que são, além de trabalhadores da terra,indivíduos que reivindicam uma origem distinta, nocaso, a italiana. Entre descendentes de italianos urbanos,há variedades de formas de relação com a comidaque será analisada ao longo deste artigo. Concordamoscom Maciel, que enfatiza o quanto a comida envolveemoção e “trabalha com a memória e comsentimentos”13. É esse universo específico ao qual acomida remete entre os descendentes de imigrantesitalianos no Rio Grande do Sul que pretendemosmelhor compreender. Afinal, o que se observa nestesgrupos é um processo contínuo de reinvenção14 desuas tradições, e modos se ser e estilos de vidaenvolvidos, também em sua posição enquantoconsumidores.15

10 COHEN, A. Custom andpolitics in urban África .London: Routledge andKegan Paul, 1979.

11 ZANINI, Maria Catarina.Italianidade no Brasilmeridional. A construção daidentidade étnica na regiãode Santa Maria-RS. SantaMaria: UFSM, 2006.

12 SEYFERTH, G. Identidadecamponesa e identidadeétinica (um estudo de caso).Anuário Antropológico. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro,1993, p. 31-63.

13 MACIEL, Maria Eunice.Cultura e alimentação ou oque tem a ver osmacaquinhos de Koshimacom Brillat-Savarin?Horizontes Antropológicos ,Porto Alegre, ano 7, n.16,2001. p. 151.

14 HOBSBAWN, E.;RANGER, T. (Org.). Ainvenção das tradições. 2. ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra,1997.

15 FEATHERSTONE, M.Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: StudioNobel, 1995.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57259

Page 260: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

260 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

A imigração italiana “em massa” para o Rio GrandeA imigração italiana “em massa” para o Rio GrandeA imigração italiana “em massa” para o Rio GrandeA imigração italiana “em massa” para o Rio GrandeA imigração italiana “em massa” para o Rio Grandedo Sul – agentes, paisagens e encontrosdo Sul – agentes, paisagens e encontrosdo Sul – agentes, paisagens e encontrosdo Sul – agentes, paisagens e encontrosdo Sul – agentes, paisagens e encontros

A Itália, em finais do século XIX, era um país emreviravoltas (políticas, religiosas, culturais, econômicas)que não oferecia um bom nível de vida a todos osseus cidadãos. Marcado por muitas desigualdades, porum campesinato explorado que se proletarizava cadavez mais, a emigração se convertia para aquelaspopulações mais pobres, num bom negócio16 e umaforma de manter uma determinada sobrevivênciacultural também17. Lorenzoni 18, jovem migrante quechega ao Brasil em 1877, narra, em suas memórias, a“febre” que acometeu muitas das localidades italianasempobrecidas e mal-alimentadas e o papel dos agentesmigratórios e suas promessas de riqueza e fartura naAmérica. Nestas memórias, uma das características maismarcantes ao leitor, são as narrativas do encontro comos sabores, temperos e bebidas da nova terra, emespecial a carne bovina, que no Brasil haveria emabundância naqueles finais de século XIX. As gentesdiferentes também aguçam seu olhar, especialmenteos negros escravos.

O processo colonizador da região serrana doestado do Rio Grande do Sul começa em 1875 e oda região central, em 1877/78. Em sua maioriaformada por camponeses pobres, católicos, estamigração familiar foi marcada pela expectativa da“cucagna”, da terra em que os “salames dariam emárvores” e a conquista da riqueza seria uma questãode tempo e algum trabalho. Ou seja, além deascenderem socialmente, tornarem-se proprietários,aquelas populações queriam comida e a queriam emabundância. Na Itália, segundo os relatos dosmemorialistas, comia-se muito mal e pouco.

Em uma pesquisa na região central do Rio Grandedo Sul, foram encontradas narrativas de algumasfamílias, relatos sobre a falta de comida que osantepassados haviam sofrido na Itália e a forma como

16 LORENZONI, J. Memórias deum imigrante italiano. PortoAlegre: Sulina, 1975.POZZOBON, A. Umaodisséia na América. In:POZZOBON, Z. F. (Org.).Uma odisséia na América .Caxias do Sul: EDUCS,1997.

17 ALVIM, Z. M. F. Brava gente!Os italianos em São Paulo1870-1920. São Paulo:Brasiliense, 1986.

18 LORENZONI. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57260

Page 261: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 261

elaboravam formas criativas para “enganar oestômago” (seus e das proles extensas). Carne e leiteeram relatados como alimentos escassos e privilégiodos mais abastados. Aos pobres sobrava o quedenominavam de “frutas” e os farináceos menosprivilegiados. Como ressaltou uma das entrevistadas,camponesa, de 76 anos, moradora da zona rural19:

Ela dizia que só lá não era como aqui. Ela disse que lá quandocomia o salame, cortava as fatias e era só os velhos que comiame eles comiam fruta e de noite pra elas fazer crochê, trabalhar,essas coisas, ela disse que tinha a estrebaria das vaca entãonum lado ficava as vaca e num lado ficava aquelas quetrabalhava pra se esquentar porque não tinha lenha pra fazerfogo. Então, eu acho que no folgo das vaca, na respiração dasvaca, ficava quente. Lá que elas ficava, senão não tinha comoe ia pastar as vacas no serro, que tinha só aquele pedacinho deterra. Mas, que comia salame era só velhos e as criança comiafruta. Ela sempre. Aquilo sim, ela sempre contava. Depoisaqui, começaram a plantar arvoredo, criar as vaca e entãotinha a vontade o leite, a comida, o milho. Então, tinha àvontade, ela dizia, agora sim, não é como lá.

Nas épocas de penúrias, de guerras ou deintempéries climáticas, segundo relatos, recorriam àreligião como forma de “alimentar o espírito”. Paraos italianos, na perspectiva católica cristã, não somenteo corpo deve ser alimentado, mas o espírito também.Mesmo pobres, aqueles emigrados, construíramsuntuosas capelas e Igrejas em todo o Rio Grande doSul e as adornaram de uma forma enriquecida, combeleza e requinte, coisa que a grande maioria não tinhaem suas próprias casas. A comida, seja a do corpo oua do espírito, transforma-se, ao longo de mais de umséculo de processo colonizador, num sinal importantedo sucesso da empreitada migratória.20 Numa Itáliaque se unificara (de direito, em 1870), aquelaspopulações, quando vieram para o Brasil, não sesentiam italianos num sentido genérico, mesmo porque

19 Estaremos usando rural eurbano neste artigo comoreferência geográfica ebaseadas nas divisõesadministrativas daslocalidades que estudamos.Salientamos que, de nossoponto de vista, estesdomínios são muito maiscomplexos e difíceis dedelimitar. WIRTH, L Ourbanismo como modo devida. In: VELHO, O. G. Ofenômeno urbano. 4. ed. Rio deJaneiro: Guanabara, 1987. p.90-113.

20 Neste artigo, contudo,trataremos somente dacomida do corpo. Areligiosidade destas popula-ções é um capítulo à parte.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57261

Page 262: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

262 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

não havia uma identidade nacional elaborada edeterminante ainda, como não existe ainda hoje.Falavam dialetos diversos, adoravam santos distintos,casavam e comiam de formas diferenciadas. Serãoalguns destes elementos que pretendemos analisar aolongo deste artigo, salientando o quanto nossosargumentos devem ser interpretados se considerandoo que está acima exposto: historicidade, etnicidade erupturas, em trajetórias individuais e coletivas que semesclam no interior de um contexto político, o Estadobrasileiro.

A comida adentra este cenário como umimportante elemento de diálogo com o Novo Mundoe suas novidades: as frutas diferentes, a mandioca, ofeijão preto, o charque, as carnes de um modo geral,21

entre outros. De certa forma, este diálogo com acomida é uma fonte muito interessante para seobservar o quanto as coletividades ressignificam o queseja “tradicional” ou não e como as comidas, aoadquirem significações e estarem incorporadas nas“estruturas de significado”22, podem se tornar partede seu mundo. Alguns elementos e ingredientes novosencontrados na terra hospedeira passam por filtros eacabam por serem introduzidas em receitas culináriastidas como típicas que podem ser transformadas desdeque por pessoas legitimadas para isso, como as nonnas,por exemplo. Contemporaneamente o discursomédico também tem trazido importantes elementosde mudança no interior do universo culinário destesgrupos, fazendo-os reinterpretar, não semressentimentos, a noção de “boa comida” que,segundo os médicos, não poderia conter banha, friturase excesso de carboidratos, coisas que muitos apreciamdemais.

Para melhor mantermos o tom etnográfico denossas pesquisas ao longo deste artigo, cada uma dasautoras relatará em separado seu encontro com osdomínios da comida, partindo de seus camposespecíficos.

21 Um dos informantes(agricultor, cerca de oitentaanos) relatava que uma dascarnes mais apreciadaspelos antepassados era a depassarinhos, caçados comespingarda em verdadeiras“caçadas”. Como estesanimais eram entraves aosplantios, estragando espigasde milho, cachos de uva,entre outros malefícios, suacaça era algo bem-vindo efestejado. Este informanteressaltava que hoje, com osagrotóxicos, até ospassarinhos tinham sumido.A caça era um esporteapreciado entre os jovens,que aprendiam a caçá-loscom “bodoque”(estilingue) e depois comespingardas. Estespassarinhos eram limpos efritos, servidos compolenta e vinho. A polentaé um alimento que se fazmisturando farinha demilho e água. Na Itália,originalmente, era ummingau com leite. O quese costuma denominar depolenta no sul do Brasil foi,na verdade, uma adaptaçãoculinária.

22 GEERTZ, Clifford. AInterpretação das culturas. Riode Janeiro: LTC, 1989.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57262

Page 263: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 263

Uma etnografia em Caxias do sul - festa da uva, jantaresUma etnografia em Caxias do sul - festa da uva, jantaresUma etnografia em Caxias do sul - festa da uva, jantaresUma etnografia em Caxias do sul - festa da uva, jantaresUma etnografia em Caxias do sul - festa da uva, jantarese muita comidae muita comidae muita comidae muita comidae muita comida

Parece paradoxal que Caxias do Sul, umametrópole industrial, tenha como festa maior, a FestaNacional da Uva uma celebração da colheita. Algunsdias na cidade possibilitam a percepção da importânciada uva para a cidade. Ela consta do brasão e dabandeira e na Câmara Municipal videiras enlaçam oprédio, demonstrando como o fruto é ao mesmotempo símbolo e representação da cidade. Além dosimbolismo da uva que dá nome à festa (e é distribuídaàs toneladas durante o evento), há uma preocupaçãoconstante em enfatizar a fartura da mesa italiana.

Por quê? Em depoimentos tomados na cidade,recebi explicações diferentes, mas complementares, deduas professoras da cidade. Segundo Cleodes Piazza23,a uva é símbolo do trabalho dos imigrantes italianosque fundaram Caxias do Sul e também uma dasprimeiras fontes de riqueza da cidade. Loraine Giron24,lembra-nos que a celebração, a festa e a ênfase nagastronomia, estão ligadas à “fome milenar” doscamponeses. Sendo assim, a uva e o vinho,funcionariam como um símbolo da fartura, dasaciedade que compensa os anos de privações. Estasexplicações se coadunam com o que afirma Teixeira:

(...) penso que se pode dizer que [estas festas] se constituem,duplamente em ritos de prosperidade. Duplamente, porquese destinam a mostrar a prosperidade permanente, já alcançadapelas coletividades promotoras, e a proclamar a disposiçãode todas elas, de sempre, se esforçarem para aumentá-la.25

Segundo seus organizadores, ao longo da históriaas comemorações da Festa da Uva em Caxias do Sulpassaram por quatro fases bem marcadas: origem, de1931-1937, de afirmação, 1950-1972;profissionalização de 1975-1992 e de volta as origens,de 1994 aos dias atuais. Durante este tempo a

23 Profª da Universidade deCaxias do Sul e autora,entre outros, do livroRIBEIRO, Cleodes P. Festa& Identidade: como se fez afesta da uva. Caxias do Sul:EDUCS, 2002.

24 Profª da Universidade deCaxias do Sul e autora,entre outros, do livroGIRON, Loraine Slomp.Caxias do Sul: evoluçãohistórica. Caxias do Sul:Editora da Universidade deCaxias do Sul, 1977.

25 TEIXEIRA, Sérgio Alves.Os recados das festas. Rio deJaneiro: FUNARTE, 1988,p.10.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:57263

Page 264: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

264 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

periodicidade da festa se alterou, passando de anualno primeiro período para quadrienal no segundo. Em1975 há outra alteração no calendário para fazercoincidir a Festa com o Centenário da ImigraçãoItaliana no Rio Grande do Sul, sendo atualmente bienal.

Desde os seus primórdios a Festa se caracterizacomo uma Festa da cidade de Caxias do Sul, quecelebra aquilo que Roberto da Matta chamou de“festas da ordem”, atribuindo-lhes a função desedimentar as diferenças e gradações sociais,conservando hierarquias e poderes.

Em geral, todas essas festas comemoram ou celebram algumacoisa que, supomos, realmente aconteceu. (...) As festaspatrocinadas pelo Estado, como as comemorações daIndependência, também celebram uma ocorrência real, onascimento de uma nação, e por isso são eventos paradigmáticosque justificam a importância da data.26 .

O período oficial da Festa Nacional da Uva de2002, a 24ª Festa da Uva e a 18ª Feira Agroindustrial,foi de 15 de fevereiro até 03 de março, mas na verdadea preparação começa muito antes. Em 2002, escolheu-se o tema Mulher imigrante: graça, força, inspiração E osadjetivos escolhidos e a ordem em que foramcolocados na frase dizem muito sobre o papeldestinado à mulher.

Apesar do tema da festa ser: “Mulher Imigrante”a comissão organizadora da festa era composta sópor homens. Quando interrogados sobre a questão,informaram que, na verdade, o casal sempre “trabalhajunto”. O que quer dizer que as mulheres trabalham,mas não são nomeadas e apenas os homens entrampara a história das festas como organizadores, para asmulheres sobram os papéis de Rainha e Princesas.27

No dia 23 de fevereiro de 2002, no primeirosábado da festa, houve uma chamada no JornalNacional da Rede Globo de Televisão. Intitulava-se:“Imigrantes italianas são um dos destaques da Festa

26 DA MATTA, Roberto. O quefaz o brasil, Brasil? Rio deJaneiro, Rocco,1986. p.89.

27 Analogamente ao queChaves observa em relaçãoàs Folias de Reis: “Asmulheres não ocupamposições na organizaçãointerna do grupo (...). Essaaparente não participação,na verdade pode ser olhadapor outro ângulo, querevela intensa participação,só que ‘oculta’, ‘invisível’”(CHAVES, W. Na jornada desantos reis. Uma etnografia daFolia de Reis do MestreTachico. Rio de Janeiro.Dissertação (Mestrado emAntropologia Social).PPGAS do MuseuNacional/UFRJ, 2003, p. 44.Teixeira declara que osprincipais atores da festa dauva de Caxias do Suldividem-se em duascategorias: “homens com podere mulheres com beleza”. Oshomens com o poder sãoo Presidente da República,Governadores de Estado,ministros, Secretários deEstado, Embaixadores,Parlamentares Federais eEstaduais, DignatáriosReligiosos, Dirigentes deOrganismos OficiaisImportantes, PrefeitosMunicipais, Presidentes dasFestas, Técnicos em Produ-tividade. E as mulheres sãoas rainhas e princesas.TEIXEIRA, S. A. Os recadosdas festas . Rio de Janeiro:FUNARTE, 1988. p. 42.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58264

Page 265: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 265

da Uva no Rio Grande do Sul”:

O sacrifício das mulheres que trocaram a Itália para começaruma vida nova no Rio Grande do Sul está recebendo umahomenagem. Elas são um dos destaques da festa da uva, quevai até o dia três de março.Pela primeira vez, a rainha não é a figura mais importante dafesta. As imigrantes italianas são as homenageadas da festa,que desde 1933 mostra o melhor da produção de vinho e uvada serra gaúcha. A colheita deste ano deve ultrapassar 500mil toneladas, o que representa 90% da produção nacional.O cultivo foi trazido pelos italianos, que chegaram ao Brasilno início do século XIX. Dona Norma, de 73 anos, aindaajuda a fazer vinho na cantina da família. Um negócio quenão teria crescido sem ela por perto. ‘Era tudo diferente, erapipa de madeira, não tinha máquina, não tinha nada’, contaNorma Bampi, de 73 anos.As mulheres não sabem se foi discriminação ou esquecimento.Mas esta é a primeira grande homenagem que elas recebempelo trabalho na colonização italiana. Na roça, nos parreirais,na educação dos filhos, no serviço da casa. Em época decolheita, esforço redobrado. Dias ainda mais cansativos. É oque contam as histórias espalhadas por um pavilhão inteiroda Festa da Uva. Fotos e depoimentos mostram que asmulheres trabalharam tanto ou mais do que os homens.O passado, tão presente, quase ofusca a principal atração dafesta: as uvas. A qualidade da safra, a melhor dos últimos 10anos, é tão comentada quanto à saga da mulher imigrante,lembrada por orgulhosas mamas e nonas28 .

Nota-se no texto acima que as mulheres imigrantessão pensadas enquanto mamas e nonas, mães e avós, enão como imigrantes. São vistas como reprodutorasnos dois sentidos da palavra: aquelas que dão filhosaos imigrantes, mas também as que zelam pelamanutenção da tradição italiana. A novidade é oreconhecimento ao trabalho das mulheres, que aolongo dos anos foi sempre pensado como “ajuda” enão trabalho.29 Há um reforço dos papéis diferenciados

28 h t t p : / /jornalnacional.globo.com/T e l e j o r n a i s / / J N /0,,MUL540507-10406,00-IMIGRANTES+ITALIANAS+SAO+UM+DOS+DESTAQUES+DA+FESTA+DA+UVA+NO+RIO+GI

08 abr. 2003. (citação n. 17).(Texto extraído do site doJornal Nacional).

29 Ver, por exemplo,PAULILO, M. I. O peso dotrabalho leve. Revista CiênciaHoje. Rio de Janeiro: SBPC,v. 5, n. 28, 1987.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58265

Page 266: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

266 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

e, por vezes, desiguais que homens e mulheresdesempenham.

A comida, e especialmente o apelo à fartura e aabundância são centrais na propaganda da festa. Nela,o preparo das comidas típicas aparece como deresponsabilidade exclusiva das mulheres, sendofreqüentemente ilustrados com fotos de “mamas” enonas” gordas e sorridentes. A mesa farta é o moteprincipal de cartazes, folders e cartões postais. Nestesúltimos, além das fotos da mesa farta comuns aosoutros dois, temos também os textos, cheios de alusõesà fartura e abundância:

Junte duas das culinárias mais ricas do mundo: a gaúcha e aitaliana. Misture ao agradável clima da serra gaúcha e tempereao seu gosto. O resultado será um festival gastronômicoincomparável. Do churrasco ao galeto com fortáia, do feijãomexido às melhores massas e pizzas, tudo vai à mesa emCaxias do Sul, pólo da região que mais produz uvas e vinhosno Brasil.

E no final de outro cartão: “Venha curtir nossastradições, a excelência da gastronomia e da culináriaítalo-gaúcha, tudo regado ao bom vinho da região”.

Não podemos esquecer também o caráter deidentidade portátil que a gastronomia adquire e comoela sinaliza para as diferenças entre os povos. SegundoDutra:

O paladar, muitas vezes, é o último a se desnacionalizar, aperder a referência da cultura original. A culinária atua comoum dos referenciais do sentimento de identidade; é por suacaracterística de “portable” (...) que ela pode se tornarreferencial de identidade em terras estranhas.30

Nas últimas festas, a Secretaria Municipal daAgricultura, tem desempenhado papel de fundamentalimportância é o responsável pela Vice-Presidência daAgricultura da Comissão Comunitária que coordena

30 DUTRA, Rogéria. A boamesa mineira: um estudo decozinha e identidade.Dissertação (Mestrado emAntropologia Social).Museu Nacional/UFRJ. Riode Janeiro. 1991. p.17.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58266

Page 267: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 267

partes estratégicas da Festa Nacional da Uva, como aExposição de Uvas, o Concurso e Premiação dosExpositores, o Parque Temático, o Palácio das Uvas eo Seminário da Vitivinicultura.

Localizada na entrada do Pavilhão II, a Exposiçãode Uvas, ganhou, em 2002, lugar de destaque, com apassagem obrigatória dos visitantes. O número deexpositores inscritos cresceu de 230 para mais de 400nas últimas três edições. Durante a Exposição de Uvasé realizado o concurso das melhores uvas e apremiação dos viticultores.

No Concurso das Melhores Uvas, os produtoresde toda a Região concorrem com 13 variedadesindividuais, na categoria de conjuntos e na mostra pordistritos. A escolha do prêmio que será entregue aosvencedores é decidida pelos próprios viticultoresexpositores. O prêmio é, geralmente, uma viagem, quepode ser para uma região de viticultura do Brasil, ouainda para países que tenham tradição no setor.

O visitante dos Pavilhões da Festa da Uva, ao entrarno parque, pode se dirigir ao Palácio das Uvas paradegustar a fruta gratuitamente, embora não possa saircom ela do espaço destinado à degustação. As uvassão também distribuídas fartamente nos desfiles decarros alegóricos, a camada mais pobre da população,costuma levar sacolas plásticas para estes eventos,voltando para casa com as mesmas transbordandode uvas. Para suprir tal demanda, são adquiridos 250mil quilos de uvas das variedades Niágara Branca,Niágara Rosa e Isabel, envolvendo em torno de 50agricultores.

Um dos pontos altos da Festa da Uva, o jantar-baile do viticultor é um evento fechado, paraprodutores de uvas e autoridades locais, onde sãoentregues os prêmios aos agricultores, que sedestacaram na produção de uvas durante o ano.

Na edição 2002 o jantar aconteceu no dia 23 defevereiro no salão paroquial de Forqueta, um dosdistritos de Caxias do Sul. Como o regime de chuvas

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58267

Page 268: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

268 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

durante o ano de 2001 ajudou, comemorava-seantecipadamente a excelente safra que seria produzidaem 2002. O clima era de alegria e otimismo, além dosviticultores e suas famílias, estavam presentes osecretário municipal de agricultura, um representanteda Câmara dos Vereadores, o prefeito e a vice-prefeita,o presidente da Comissão Comunitária da Festa daUva, representantes da imprensa, a rainha da Festa eas princesas. Inicialmente acontecem os discursos e aentrega dos prêmios aos melhores viticultores, depoiso jantar animado por coral, bandinha de música italianae uma apresentação de dança folclórica, tambémitaliana. Após o jantar, retiram-se as mesas e começao baile.

O jantar é extremamente farto, em cada mesaencontram-se garrafas de vinho tinto e branco e os“copeiros”, recrutados entre os jovens e as senhorasda comunidade passam por entre as mesas servindoa todos. Iniciou-se o jantar com uma sopa de agnolini(retângulos de massa recheada com carne fervidos emcaldo de galinha).31 As sopeiras foram colocadas sobrea mesa acompanhadas de queijo ralado e pão. Sempreque se esvaziavam, os copeiros traziam mais. A seguir,serviu-se a carne lessa32, que são postas da carne dasgalinhas que serviram para fazer o caldo dos agnolini.Acompanhando a carne, salada de batatas commaionese, salada verde temperada com vinagre ecrem.33 O crem é feito de raízes raladas e postas emvinagre. Ainda junto com a carne lessa foi servido orisoto com miúdos de galinha. No fim, churrascotambém até sobrar, o jantar se encerrou com ochurrasco, não foi servida nenhuma sobremesa. Ainclusão do churrasco é uma adaptação da tradiçãoitaliana a gastronomia local.

Acreditamos que a ênfase na fartura representa aprosperidade e o desejo de perpetuá-la de que falavaTeixeira34, mas remete também para um sinal diacrítico:a fartura dos italianos (ou de seus descendentes) emcontraste com, por exemplo, o refinamento e as

31 Segundo Ribeiro (1998,p.188). A sopa típica daregião por quase um séculofoi a Minestra uma sopa deverduras com feijão quenormalmente servia dejantar para a maioria doscolonos. Só bem maistarde se populariza a sopade agnolini ou capeleti (adiferença entre o agnolini eo capeleti é somente oformato da massa).

32 Lessa é uma reminiscênciaem dialeto, significa cozidaem água fervente.

33 Raiz forte. O tubérculo quedepois de ralado dá origema este prato é conhecido naregião das colônias alemãspor meerettich, onde ele éusado para fazer um pratosemelhante.

34 TEIXEIRA, S. A. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58268

Page 269: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 269

pequenas porções da nouvelle cousine francesa. Qual osignificado que a ênfase na fartura e na gastronomiaassume na Festa da Uva? Parece acertado concluirque a comida é aqui utilizada como símbolo identitárioe a abundância está associada com a prosperidade.

Desperdício? Talvez não, uma vez que odesperdício é sempre um símbolo de fartura, umaforma de afirmar: Tenho tanto que não preciso mepreocupar com as sobras. Mas devemos lembrar quea carne que sobra assada do churrasco, e que era partede um jantar em que se celebrava a identidade italiana,pode entrar no arroz de carreteiro do dia seguinte e aíse passa de um pólo ao outro desta sociedade que épensada como dual: ítalos-gaúchos.

Do nosso ponto de vista, a comida é utilizadacomo símbolo identitário e a abundância associadacom a prosperidade e o sucesso da empreitadamigrantista. Como afirma Douglas:

Se a comida é tratada como um código, as mensagens que elacodifica serão encontradas no padrão de relações sociais queestão sendo expressas. A mensagem trata de diferentes grausde hierarquia, de inclusão e exclusão, de fronteiras e transaçõesatravés de fronteiras (...) as categorias de comida, porconseguinte, codificam eventos sociais35

Para entender melhor o significado da fartura naFesta da Uva é preciso entender como a lógicacamponesa é contextualizada pela sociedade a qualestá associada, a ressignificação e a revalorização dacomida camponesa, transformada agora em comidade festa, e conseqüentemente na revalorização eressignificação do rural, algo que já acontece emalguns lugares do Rio Grande do Sul, especialmentenaqueles onde foram implantados projetos de turismorural, como é o caso, aliás, da própria região nordestedo Rio Grande do Sul, onde Caxias do Sul estáinserida.

Essa valorização da “comida étnica” acaba levando

35 DOUGLAS, Mary.Deciphering a meal. In:GEERTZ, Clifford (Org.).Myth, Symbol, and culture,Nova York: Norton,1971,p. 61.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58269

Page 270: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

270 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

também a uma valorização do saber-fazer feminino,no qual a mulher se considera e é considerada detentorade saberes que se constituem em cultura imaterial.

Relatos etnográficos da região central do Rio GrandeRelatos etnográficos da região central do Rio GrandeRelatos etnográficos da região central do Rio GrandeRelatos etnográficos da região central do Rio GrandeRelatos etnográficos da região central do Rio Grandedo Sul: risoto, salsa, sálvia e manjerona, “tudo àdo Sul: risoto, salsa, sálvia e manjerona, “tudo àdo Sul: risoto, salsa, sálvia e manjerona, “tudo àdo Sul: risoto, salsa, sálvia e manjerona, “tudo àdo Sul: risoto, salsa, sálvia e manjerona, “tudo àvontade”vontade”vontade”vontade”vontade”

Quando aquelas populações de emigrados italianoschegaram à região central do estado do Rio Grandedo Sul, os encontros com os sabores, as cores e anatureza chamaram sua atenção a tal ponto quedeixaram isto registrado36. Segundo Lorenzoni, osprimeiros tempos transcorridos no Barracão dosImigrantes37, onde foram alojados assim que chegaramna Colônia Silveira Martins foi marcado pordificuldades, época em que comiam bolachas quevinham em barris e tinham que trabalhar na aberturade estradas para conseguir recursos econômicos extras.Além disso, as moléstias perseguiam alguns que, apósuma travessia oceânica de trinta e poucos dias embarcos nem sempre em boas condições sanitáriasadoeciam38.

Após o processo de instalação nos lotes, que teriam,em média, 22 hectares39, aqueles colonos foramconstruindo suas casas, fazendo os primeiros plantios,tendo as primeiras colheitas e se enraizando na terraestrangeira, ainda considerada “floresta” ou “mato”.Quando efetuei minha pesquisa de campo (de 1997 a2001), várias famílias ainda moravam nos lotes quetinham sido adquiridos por seus antepassados em finaisdo século XIX. Alguns em declives, com terrenospedregosos e irregulares que me faziam pensar comoaquelas populações tinham conseguido produzir emtais terras, com tantas pedras. Encontrei pequenosplantios, dispersos nas propriedades e variados emespécies (batata, feijão, milho, frutíferas, entre outras).No contínuo da região central do estado, que hojeestá reivindicando a alcunha de IV Colônia de

36 LORENZONI, J. Op. cit. ePOZZOBON, A. Op. cit.

37 No lugar em que este estarialocalizado foi construído,por descendentes, umMonumento ao Imigrante eque é fonte de visitaçãoconstante. O termo Barracãodos Imigrantes possui umasimbologia muito forteentre os descendentescontemporâneos queconstroem, sobre ostempos pretéritos, umasérie de narrativas.

38 MOLINARI, A. Aspettisanitari dell´emigrazionetransoceanica di massa.História : debates etendências. Passo Fundo, v.1, n. 1, p. 205-224.

39 SAQUET, M. A. Os tempos eos territórios da colonizaçãoitaliana. Od e s e n v o l v i m e n t oeconômico da colôniaSilveira Martins (RS). PortoAlegre: EST. 2003.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58270

Page 271: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 271

Imigração Italiana40, há, nos terrenos mais altos edifíceis, o plantio de batatas e milho, na medida emque os terrenos se aplainam, planta-se majoritariamentearroz (e alguma soja). Aliás, a soja é um produto poucoencontrado nas pequenas propriedades desta regiãomais vizinha a Santa Maria. A batata, contudo, élargamente encontrada e tem se tornado a grande fontede renda daqueles camponeses.

As populações rurais contemporâneas têm hortaspróximas às casas, nas quais produzem para suassubsistências ou para algum pequeno comércio nasfeiras de Santa Maria, cidade mais próxima e quepossui um bom mercado para estes produtosdenominados de “coloniais” e roças (ou lavouras)maiores dispersas nas propriedades, conforme osterrenos permitem. Os plantios maiores ou quenecessitassem de algum veneno “mais forte”costumam estar mais afastados da casa. Aliás, umadas reclamações dos entrevistados, era a quantidadede veneno que necessitavam utilizar no plantio dabatata. Para o consumo caseiro e dos parentes, algunsplantavam roças separadas, sem veneno. Na zonaurbana, encontrei muitas casas com hortas imensas,maravilhosamente cuidadas, com chás, verduras,leguminosas e temperos plantados. Eram cuidados,em sua grande maioria, pelos membros mais idososda família, que tinham com esta, uma verdadeirarelação de afetividade e pertencimento, fosse aomundo camponês ou ao mundo dos antigos41 italianos.Encontrei homens e mulheres cuidando destas hortasem espaço urbano42. Na zona rural, encontrei maismulheres cuidando das hortas e os homens cuidandocom mais afinco das roças. Contudo, as mulherescamponesas, embora os maquinários, tenham-nasretirados do trabalho mais pesado, ainda auxiliam naslavouras quando necessário, sejam jovens ou de maisidade. Segundo uma descendente, camponesa,moradora da zona urbana, já idosa:

40 Esta região seria compostapelos municípios deAgudo, Dona Francisca,Faxinal do Soturno, Ivorá,Nova Palma, Pinhal Grande,Restinga Seca, São João doPolêsine e Silveira Martins.Silveira Martins éconsiderado o berço dacolonização italiana naregião central do estado. AColônia Imperial foidesmembrada em 1888 eesta localidadetransformada em distrito deSanta Maria, tendo sidoemancipada somente em1987.

41 Este mundo dos antigos éalgo que deve ser observadocomo relativo e nãoabsoluto. Torna-se umtempo de contraste entre oque consideram seu tempode hoje e um tempopassado, marcado por ummaior apego à “tradição”.São, em verdade, mundosem contraste. Tanto podequerer se referir ao tempodos pais, dos avós oumesmo dos pioneiros. Porvezes, trata-se de contrasteem suas trajetórias de vida,quando marcadas pormigrações entre o mundocamponês e o mundourbano.

42 Ressalto que, na zonaurbana, não foram encon-trados jovens envolvidosnestas atividades.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58271

Page 272: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

272 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Ah, eles trabalhavam na lavoura, faziam tudo em casa, sim onormal né, comida, pão, ajudavam na lavoura também elasiam, a mãe sempre contava que ela se criou acho que desdepequena sempre, sempre trabalhando na lavoura né, e fazia oserviço em casa também, costurava quando chovia, não davapra ir pra lavoura... então remendava, costurava.

Esta era, enfim, a rotina dos descendentes deitalianos na produção da comida, que envolvia afamília como um todo, numa organização de trabalhoorientada pelos pais, particularmente o pai, que decidiaqual atividade cada filho deveria realizar. Como salientei,fosse na zona urbana ou rural, produzir sua comida,plantar, colher e conhecer a procedência do alimentoera algo muito valorizado. Havia, também, uma redede trocas entre famílias que possuíam propriedadesrurais, moravam nas cidades e traziam gênerosalimentícios para os parentes urbanos, com custosmenores ou sem custo algum, dependendo de comoa família extensa entendia que deveria haver a “troca”,que reforçava laços de solidariedade e de parentesco.

Do tempo dos antigos, o que permaneceu comoum gosto foi o fato de comer em família e ter, comoalimento, determinados sabores e texturas, como pães(doces ou salgados), cucas43, salame44, polenta, radicci eo aroma especial de alguns temperos como a salsa, asálvia e a manjerona.45 Aliás, estas, segundo algumasdas entrevistas, seriam imprescindíveis. Pode-se incluirtambém o manjericão e o alecrim, menos usados. Oalho e a cebola devem ser usados em abundânciatambém. O radicci, uma verdura relativamente amarga,tendo varias subespécies, conhecido como almeirãoem algumas localidades, é adorada e em torno delahá uma verdadeira rede de troca de semestres ediscussões sobre melhorias de plantios, seja na zonaurbana ou rural. Acompanhei várias cenas em que setrocavam sementes e a espera da germinação da novaespécie era algo comemorado e comentado. Eumesma, fui inserida neste “fluxo” de troca de sementes,

43 Cuca é uma espécie de bolodoce com cobertura de uvae farelos de açúcar comfarinha. No Rio Grande doSul há muitas variedades decuca. A cuca alemã é mais“baixa”, tendo menos massae mais recheio. A cucaitaliana é mais “alta”, tendomais massa e um poucomenos de recheio. Em SantaMaria, há um tipo de pãodoce com cobertura defarelos de açúcar comfarinha que é denominadode cuca também.

44 Salame é um embutido decarne suína misturada comalho, vinho, pimenta eoutros condimentos.Depois de pronto, édefumado e se deixa“secar” por algum tempo,até adquirir a consistênciamais firme. Este tempovaria conforme as estaçõesdo ano, a umidade do ar,entre outros fatores.

45 Como ressalta Messer “[...]texture and visualproperties are two othersensory caracteristics bywhich foods are judgededible, preferred, andappropriate for a particularethnic cuisine or life style”.(MESSER, E.A n t h r o p o l o g i c a lPerspectives on Diet.Annual Review ofAnthropology, v. 13, 1984, p.219. disponível em:jstor.org/stable/2155668.Acesso: ago. 2008, p. 219).

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58272

Page 273: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 273

plantando e colhendo, apreciando os diferentessabores, e texturas das folhas, que podiam ser maioresou menores, mais ou menos amargas. Uma grandenovidade quando estava em campo, foi a introduçãoda espécie roxa que, diziam, teria vindo da Argentina.Era um verdadeiro acontecimento a troca destassementes, sendo acompanhado de narrativas longassobre sua circulação, procedência e como teria vindoparar em suas mãos. Certa vez, acompanhei o trânsitode sementes vindas do Paraná para Santa Maria e acomemoração quando as sementes recebidasbrotaram.

No comércio de Santa Maria e da IV Colôniacomo um todo há, contemporaneamente, a venda devários tipos de sementes de radiccis e de outras espéciesapreciadas. Contudo, a relação que se estabelecia entrea troca de sementes caseiras era algo muito particularde ser analisado porque se observava que, ao trazeruma semente de sua casa para a casa do outro, vocêestaria com ele estabelecendo um vínculo especial, deamizade e afinidade. Eu recebi sementes de tomates,radiccis, feijões, pimentas, pimentões, salsa, mudas decouves, manjerona, sálvia, manjericão e chás. Aoobservar meu gosto por comida e horta, muitasdescendentes mulheres me levavam para mostrarcomo cuidavam das suas, o que plantavam, comoplantavam e como faziam circular sua produção. Aliás,eu mesma, como descendente de italianos e residenteem zona urbana, passei a cultivar em minha casa umapequena horta.

Em Santa Maria encontrei verdadeiros mundoscamponeses em miniaturas nas zonas urbanas. Estesuniversos camponeses na cidade refletem todo umethos sobrevivente e que remete a uma noção particularde italianidade baseada na terra e suas valorações. Acomida produzida nestes pequenos espaços era algoapreciado, pois segundo meus informantes, teria sabor,em detrimento da comida comprada nossupermercados.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58273

Page 274: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

274 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Das hortas, passei às receitas e ao conhecimentode uma série de pequenas ou grandes substituiçõespermitidas no preparo dos alimentos tidos como“tradicionais”: o pão, o salame, o risoto, a polenta. Omais comentado pelas mulheres era a introdução doscaldos em cubo de carne de frango que, segundo asdescendentes mais idosas, poderiam ser usados, nãohavia problema nenhum, dizia-me uma delas, “mastinha que ser bom”, era necessário que fosse “Knorr”(uma marca comercial de caldos de carne). Assim,observou-se a domesticação das novidades efetuadaspelas mulheres mais idosas que adaptavam suas receitasàs novidades do mercado. O risoto, que em seupreparo requer uma série de etapas, estaria sendo mais“facilitado”, mas segundo uma descendente risoteira46,teria que se saber fazer. A introdução do caldo prontode carne seria um destes facilitadores. Aliás, diria queas descendentes de italianos são muito pragmáticas nacozinha, tentando aliar “sabor tradicional” à economiade esforços e de recursos produtivos.

Não feitura do pão, igualmente, foi introduzido ofermento biológico e mesmo o químico, por vezes,mas algumas descendentes, mesmo jovens, aindapreferiam o uso do fermento caseiro, feito à base defermentação da batata. O consumo do pão caseirobranco, na atualidade, está sendo desestimulado pelosmédicos, o que leva aqueles descendentes que temmaiores recursos financeiros a comprar o pão integralcom redução de calorias vendidos nos supermercadose padarias. Encontrei muitas famílias fazendo pãesintegrais também e trocando receitas sobre a melhoriadas massas dos mesmos.

Quanto às carnes, muito apreciadas na dieta diária,encontrei, durante minha pesquisa, formas variadasde preparo, contudo era-me ressalvado que teriamque ter “tempero”, em especial manjerona, sálvia, alhoe cebola, “tudo à vontade”. O “descanso” da carneno vinho ou no vinagre era algo tambémrecomendado, para melhorar o sabor. Nas camadas

46 Risoteira é a forma comosão denominadas asmulheres que fazem osrisotos nas festas e nasgrandes comemorações, ouseja, aquelas cozinheirasque dominam a técnica dopreparo em larga escala.Durante minha pesquisaouvia, “A Sra. X é umagrande risoteira”, ou“risoteira boa é a Sra. Y”.Uma delas era da zona rurale os descendentes da zonaurbana de Santa Maria abuscavam e levavam em casapara ter um risoto feito porela.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58274

Page 275: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 275

médias urbanas, encontrei homens que cozinhavam,especialmente carnes e massas. Não encontrei adeptosde refeições congeladas industrializadas, contudo.

Nas situações rituais nas quais a comida é utilizadacomo elemento agregador, foi observado que, naatualidade, em festas de casamentos, de bodas e outras,pode-se fazer uso de buffets que prestam serviçoelaborando refeições para estes eventos. Na zona rural,o mais comum é se fazer churrasco, acompanhadode salada de maionese (batata inglesa com maionese etemperos variados), cerveja, mandioca, farinha demandioca, salada de radicci ou de tomate com cebola,risoto ou arroz branco. O galeto47 também é bastanteapreciado, tendo todo um ritual de preparo quecomeça no dia anterior. O mesmo deve ser deixadomarinar numa mistura de vinho, vinagre, cebola, alho,pimentas diversas, salsa e outros temperos. Depoisdesta etapa, que duraria 12 horas (em média), ele éassado em espetos, no fogo, como churrasco.

A introdução dos novos elementos na alimentaçãodos descendentes de italianos foi algo que ocorreudesde o começo do processo colonizador e foi sendonegociado no interior dos domínios doméstico esendo legitimado nas festas religiosas, dos clubes eassumindo versões mais “misturadas”. Muitas daquelasdescendentes rurais diziam que se determinadanovidade era boa, “por que não experimentar?”.Alguns produtos mais quimicamente elaborados eramexperimentados e descartados. Assim vi acontecer comsopas instantâneas em pacote, sucos em pó e pão desanduíche de farinha de trigo branca. Um doselementos que foi introduzido devagar e acabou porse legitimar como algo “do gosto” do italiano foi ochimarrão. Como já ressaltado por mim em outrosescritos havia, sobre o chimarrão, o estigma de serbebida brasileira, ou seja, nativa e depreciativa. Depoisdas ultimas décadas do século passado, quando houvetodo um trabalho regional de ressemantização do atode beber chimarrão, os descendentes de italianos, que

47 Frango de menor porte,que é cortado em pedaços,temperado e depois assadoem espetos.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58275

Page 276: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

276 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

já o faziam nos domínios domésticos, tornaram talhábito público. Como me foi ressaltado em campo,“o mate chama para o trabalho”, ou seja, é uma bebidareconhecida como coadjuvante na lida ou que dádisposição para o trabalhar, valor muito apreciadoentre os descendentes.

Em suma, os domínios da comida ressaltam oquanto os grupos, sejam étnicos ou não, dialogam comos entornos nos quais se inserem (ou são inseridos) ecomo, enquanto seres reflexivos e abertos em suasnegociações, podem aceitar ou não determinadasnovidades e elementos e elaborar, sobre as mesmas,novas ou velhas significações. Desta forma, entendoque, enquanto manifestação de determinados gostos,sabores e texturas, a comida pode ser compreendida,também, como um espaço lúdico, de criação erecriação de significados. E, neste espaço denegociação, as mulheres desempenham um papelfundamental.

O preparo da comida, entre os descendentes deitalianos deve ser observado como algo que envolvea pessoa em sua totalidade e expressa algo da mesma.Uma boa comida, bem feita, caprichada, revelaria partedo “interior” da pessoa e sua forma de se relacionarcom aqueles para quem faz a mesma, ou seja, com os“outros/próximos”. Ouvia reclamações de sograsitalianas com relação a suas noras brasileiras, dizendoque estas não eram caprichosas no fazer comida paraseus filhos porque não despediam muito tempo nacozinha, preparando a comida de uma forma maiselaborada. Ou seja, eram mais modernas, maisapressadas, o que poderia significar pouca atençãodelegada àqueles para quem se cozinharia. Contudo,quando avaliavam seu trabalho na cozinha, estasdescendentes também salientavam que as novidadesque faziam “ganhar tempo” eram boas. Em suma, acomida se torna cenário de representações e disputas,na verdade, entre papéis sociais específicos.

Ao longo do processo colonizador, o que se

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58276

Page 277: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 277

observa é que a comida e o preparo desta foramsofrendo transformações na medida em que as famíliasascendiam socialmente. Neste aspecto, há contradiçõesentre as descendentes modernas e “as antigas”. Comoas antigas iam para as roças com os maridos e filhos,levavam comida feita para parte do dia e à noitecaprichavam mais, na polenta com fortaia48 ou naminestra49. Algumas descendentes contemporâneasqueriam, por vezes, ressaltar o capricho das antigas,por outras vezes, desculpavam as mesmas por fazeraquelas comidas “misturadas”, como a minestra , porexemplo, porque elas não teriam tempo para cozinharcom mais afinco, uma vez que tinham que trabalharna roça, cuidar da casa e dos filhos, sem trégua.Segundo relatos de entrevistados, na medida em quea situação econômica e de vida dos emigrados seestabeleceu, alguma das mulheres podiam permanecermais tempo em casa e levavam o “lanche” para aquelesque estavam trabalhando “com a enxada”, na roça.Podia ser um lanche mais leve, com vinho (ou café),pão e salame ou uma refeição completa com polenta,fortaia, pão e salame. Aliás, o pão é algo muitoconsumido até dos dias de hoje, tendo sobre seupreparo uma elaboração imensa. O fermento paraalgumas descendentes, não poderia ser o industrial,teria que ser o elaborado por elas mesmas por meioda fermentação da batata. Outra comparaçãointeressante que ouvia em campo eram ascomparações entre as comidas das italianas e a dasalemãs, tidas como mais caprichosas nos bolos e doces.As italianas, segundo elas, seriam mais apressadas e asalemãs, mais detalhistas, o que interferiria na aparênciado doce. Enfim, a comida, além de boa para comer,é boa para “pensar”, “classificar” seres e coisas.

Considerações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações FinaisConsiderações Finais

Observamos que o poder das mulheres nodomínio da comida é muito grande em seu preparo,

48 Fortaia é uma omelete queé feita com bastante queijoe salame. É muito apreciadae se come acompanhada depolenta e salada de radicci.Esta seria considerada umarefeição completa. Osmoradores da zona rural afritam na banha de porco.Esta, contudo, tem sofridograndes ataques por partedo discurso médico ealguns descendentes a têmsubstituído por óleosvegetais.

49 Ouvi narrativas diversassobre a minestra. Mas, deuma forma simples, seriauma mistura de feijão,arroz ou massa e restos decomida de uma refeiçãoque formariam uma espéciede “sopa de feijão”. Algunschamam de minestra, outrosde minestrona. Segundo umade minhas entrevistadas, 40anos, moradora da zonaurbana, pertencente aclasses médias de SantaMaria, a minestra poderia serinterpretada como “comidade pobre”. Ou seja, feita derestos e de misturas.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58277

Page 278: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

278 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

contudo a distribuição (ainda) passa pelo crivo daautoridade masculina. Era o pai que separava o melhorproduto para a venda, o melhor salame, o queijo maisperfeito, o melhor vinho, a verdura mais inteira. Aofalar sobre esse assunto, algumas mulheres de maisidade, apresentavam um relato repleto deressentimentos, pois trabalhavam lado a lado com oshomens, produziam e eram alienadas do valor de trocade seus produtos. O dinheiro era administrado pelopai da família e acabava, por vezes, privilegiando osfilhos homens que eram incentivados a estudar, emdetrimento delas. Elas não podiam consumir nemusufruir o lucro obtido com a inserção destes produtosno mercado.

Aliás, o dinheiro é uma categoria que merece sermelhor analisada no cruzamento entre comida, suaprodução, circulação e consumo. Para algumasmulheres, deter o comércio de alguns produtos, comoos ovos e o queijo, é algo muito importante, poissentem que podem manejar seu dinheiro, investir naeducação de algum filho (a) ou mesmo napropriedade. O poder das mulheres “em relação àcomida” estaria mais sintonizado com a elaboraçãoda mesma, nos sabores e texturas destas e namanutenção das “receitas étnicas”. Num grupo devaloriza amplamente a comida farta e forte e que temusado este sinal adscritivo para valorizar o turismorural e o turismo para suas cidades, salienta-se que,com certeza, a comida entrando como um valorespecífico num cenário de mercado como o deturismo, muitas transformações e trocas devem estaracontecendo.

Em função do incentivo, tanto do governo federal,quanto do estadual à formação de cooperativas e depequenas indústrias familiares a dimensão do preparoda comida deixa de ser um domínio exclusivo dasmulheres e passa a ser permeado por uma série de“saberes externos”. São orientações de técnicos sobrenormas técnicas de higiene e conservação que, por

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58278

Page 279: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 279

vezes, entram em confronto com as receitas“tradicionais” e os domínios do mundo de origem.No entanto, nas situações em que presenciamos talaprendizado, o diálogo era pragmático, seguiam asnormas técnicas apenas quando produziam para omercado. Em suas casas, faziam como gostavam epodiam.

A alcunha “gringo polenteiro” que no passadoincomodava alguns descendentes, pois remetia à noçãode colono, trabalhador da terra e rude, parece estar seressemantizando na contemporaneidade. Diríamos queo papel de “agentes culturais” desempenhado pelosdescendentes urbanos das classes médias que assumemeste “gosto” como algo valorizado e fazem questãode torná-lo público, tem ajudado muito. O papeldesempenhado pelas associações e entidades italianasno Rio Grande do Sul também tem contribuído paratal positivação. Em Santa Maria, apesar de muitasdivergências entre os membros das entidades italianas,festeja-se a “Noite da Polenta”, quando esta é assumidacomo um gosto estilizado e se elaboramacompanhamentos mais requintados, o que nos revelao quanto a comida e as comensalidades são domíniosem constante dinâmica.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ALVIM, Zuleika Maria Forcione. Brava gente! Os italianos emSão Paulo 1870-1920. São Paulo: Brasiliense, 1986.

AZEVEDO, Thales de. Italianos e gaúchos. Rio de Janeiro/Brasília:Catedra/INL,1982.

AZEVEDO, Thales de. Os italianos no Rio Grande do Sul. Caxiasdo Sul: EDUCS,1994.

BARDENSTEIN, Carol. Transmission interrupted: reconfiguringfood, memory and gender in the cookbook – memoirs of middleEastern exiles. Signs, v. 28, n.1, Gender and cultural memory,

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58279

Page 280: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

280 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

p.353-387, 2002. Disponível em : jstor.org/stable/3175712.Acesso em: ago. 2008.

BARTH, Frederik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. IN: LASK,Tomke (Org.). O guru, o iniciador e outras variações antropológicas.Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.

BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. Bases culturais da identidadeétnica no México. In: ZARUR, George de Cerqueira Leite (Org).Região e nação na América Latina. Brasília: UnB; São Paulo:Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 135-161.

BATTISTEL, Arlindo I.; COSTA, Rovílio. Assim vivem os italianos.Vida, história, cantos, comidas e estórias. Porto Alegre/Caxiasdo Sul: EST/EDUCS,1982.

BATTISTEL, Arlindo. Colônia italiana: religião e costumes. PortoAlegre: EST, 1981.

BOURDIEU, Pierre. Lições de aula. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1998.

BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: MarcoZero, 1983.

CINQUANTENARIO della colonizzazione italiana nel Rio Grandedel Sud 1875-1925. [S.L.: s.n], 1925.

CHAVES, Wagner Neves Diniz. Na Jornada de Santos Reis. Umaetnografia da Folia de Reis do Mestre Tachico. Rio de Janeiro.Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Museu Nacional/UFRJ, 2003.

COHEN, Abner. Custom and politics in urban África. London:Routledge and Kegan Paul, 1979.

COSTA, Rovílio et al. Imigração italiana no Rio Grande do Sul.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58280

Page 281: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 281

Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: EDUCS, 1986.

DA MATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro:Rocco, 1986.

DACANAL, José H.; GONZAGA, Sérgio. RS: Cultura e Ideologia.Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980.

DE BONI, Luis Alberto (Org.). A presença Italiana no Brasil. PortoAlegre: EST. 1987.

DE BONI, Luis Alberto; COSTA, Rovílio. Os italianos do RioGrande do Sul. 2. ed. Porto Alegre/ Caxias do Sul: EST/Universidade de Caxias do Sul, 1982.

DE BONI, Luis Alberto. O catolicismo da imigração: do triunfo àcrise. In: LANDO, Aldair et al (Org). Migração & Colonização.Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. p. 234-255.

DEUS, Sandra de Fátima Baptista. Camponeses: organização ecomunicação- as relações de liberdade e opressão. Dissertação(Mestrado em Extensão Rural) Santa Maria, 1989.

DOUGLAS, Mary. Deciphering a meal. In: GEERTZ, Clifford(Org.). Myth, Symbol, and culture. Nova York: Norton, 1971.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. SãoPaulo: Martins Fontes, 1996.

DUTRA, Rogéria. A Boa Mesa Mineira: um estudo de cozinha eidentidade. Dissertação (Mestrado em AntropologiaSocial). Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro. 1991.

DUVIGNAUD, Jean. Festas e Civilizações. Ceará/Rio de Janeiro:UFC/Tempo Brasileiro, 1983.

FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo.São Paulo: Studio Nobel, 1995.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58281

Page 282: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

282 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro:LTC, 1989.

GIRON, Loraine Slomp. Caxias do Sul: evolução histórica. Caxiasdo Sul/Porto Alegre: UCS/EST,1977

GROSSELI, Renzo Maria. Vencer ou morrer . Camponesestrentinos (venetos e lombardos) nas florestas brasileiras.Florianópolis: Editora da UFSC, 1987.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice,Editora Revista dos Tribunais, 1990.

HOBSBAWN, Eric.; RANGER, Terence (Org.). A invenção dastradições. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1997.

LORENZONI, Julio. Memórias de um imigrante italiano. PortoAlegre: Sulina, 1975.

MACIEL, Maria Eunice. Cultura e alimentação ou o que tem aver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin? HorizontesAntropológicos, Porto Alegre, ano 7, n.16, p.145-156, 2001.

MACHADO, Paulo Pinheiro. A política de colonização do Império.Porto Alegre: Edufrgs, 1999.

MAESTRI, M. (Org.) Nós, os ítalo-gaúchos. Porto Alegre: Editorada Universidade,1996.

MAESTRI, Mário. Os Senhores da serra. A colonização italiana noRio Grande do Sul (1875-1914). Passo Fundo: UPF, 2000.

MANFRÓI, Olívio. A Colonização italiana no Rio Grande do Sul.Implicações econômicas, políticas e culturais. 2. ed. Porto Alegre:EST, 2001.

MENASCHE, Renata. (org.) A agricultura familiar à mesa. Saberese práticas da alimentação no Vale do Taquari. Porto Alegre:UFRGS, 2007.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58282

Page 283: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 283

MESSER, Ellen. Anthropological Perspectives on Diet. AnnualReview of Anthropology, v.13, p.205-249, 1984. Disponível em:jstor.org/stable/2155668. Acesso: ago 2008.

MINTZ, Sidney. Sweet, salt na the language of love. MLN, v.106,n.4. Cultural representation of food, set.1991, p.852-860. Disponívelem: jstor.org/stable/2904627. Acesso em: ago 2008.

MINTZ, Sidney; DU BOIS, Christine. The anthropology of foodand eating. Annual Reviwe of Anthropology. v.31, p.99-119, 2002.Disponível em: jstor.org/stable/4132873. Acesso em: ago. 2008.

MINTZ, Sidney. Comida e antropologia. Uma breve revisão.Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.16, n.47, p.31-41, 2001.

MOLINARI, Augusta. Aspetti sanitari dell´emigrazionetransoceanica di massa. História: Debates e Tendências. PassoFundo, v.l, n.1, p.205-224, jun 1999.

MOREIRA, Igor et al. Espaço e sociedade no Rio Grande do Sul. 4ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995.

MURRIETA, Rui Sérgio. Dialética do sabor: alimentação,ecologia e vida cotidiana em comunidades ribeirinhas da Ilha deItaqui, Baixo Amazonas, Pará. Revista de Antropologia, USP, SãoPaulo, v.44, n.2, p.39-88, 2001.

PAULILO, Maria Ignez. O peso do trabalho leve. Revista CiênciaHoje. Rio de Janeiro:SBPC, v. 5, n. 28, p. 64-70, 1987

POZZOBON, Andréa. Uma Odisséia na América. In:POZZOBON, Zolá Franco. (Org.). Uma odisséia na América.Caxias do Sul: EDUCS, 1997.

RIBEIRO, Cleodes Maria Piazza Julio. Festa e Identidade. Caxiasdo Sul: EDUCS, 2002.

RIGHI, José Vicente et al. Povoadores da Quarta Colônia. PortoAlegre: EST, 2001.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58283

Page 284: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e Simbolismo entre Imigrantes Italianos no Rio Grande do Sul (Brasil)

284 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

SANTIN, Silvino; ISAIA, Antônio. Silveira Martins: patrimôniohistórico-cultural. Porto Alegre: EST, 1990.

SANTIN, Silvino. A imigração esquecida. Porto Alegre: EST; Caxiasdo Sul: EDUCS, 1986.

SANTOS, M.O. Bendito é o Fruto: Festa da Uva e identidade entreos descendentes de imigrantes italianos de Caxias do Sul – RS,Rio de Janeiro, Tese (Doutorado em Antropologia Social). MuseuNacional, UFRJ, 2004.

SAQUET, Marcos Aurélio. Os tempos e os territórios da colonizaçãoitaliana. O desenvolvimento econômico da colônia SilveiraMartins (RS). Porto Alegre: EST, 2003.

SAYAD, Abdelmalek. A imigração. São Paulo: Edusp, 1998.

SEYFERTH, Giralda. Identidade camponesa e identidade étnica(um estudo de caso). Anuário Antropológico 91. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1993. p.31-63.

SEYFERTH, Giralda. Imigração e cultura no Brasil. Brasília: EdunB,1990.

SEYFERTH, Giralda. Identidade étnica e folclore. Anais do ISeminário sobre Folclore Alemão, Blumenau, s/d.

SPONCHIADO, Padre Luiz. A anágrafe de Nova Palma e osinícios da Colônia Silveira Martins. In: DE BONI, Luis Alberto(Org.). A presença italiana no Brasil. v.2. Porto Alegre: EST; Torino:Fundação Giovanni Agnelli, 1990. p.425-446.

TEIXEIRA, Sérgio Alves. Os recados das Festas. Rio de Janeiro:FUNARTE, 1988.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologiacompreensiva. 3. ed. Brasília: UNB, 1994. vol1.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58284

Page 285: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Miriam Oliveira Santos, Maria Catarina C. Zanini

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 285

WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. In: VELHO,Otávio Guilherme. O fenômeno urbano. 4. ed. Rio de Janeiro:Guanabara, 1987. p.90-113.

WOORTMANN, Ellen. Padrões tradicionais e modernização:comida e trabalho entre camponeses teuto-brasileiros. In:MENASCHE, Renata (Org.). A agricultura familiar à mesa: saberese práticas da alimentação no Vale do Taquari. Porto Alegre:UFRGS, 2007. p.177-196.

ZANINI, Maria Catarina Chitolina. Ítalo-brasileiros: arevivificação da identidade étnica em Santa Maria-RS. Travessia.Revista do migrante. CEM, São Paulo, ano XII, n.34, p.20-23,maio/ago, 1999.

ZANINI, Maria Catarina. Italianidade no Brasil meridional. Aconstrução da identidade étnica na região de Santa Maria- RS.Santa Maria: Ed.UFSM, 2006.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58285

Page 286: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58286

Page 287: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 287

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani1

Mártin César Tempass*

Resumo: O presente artigo tem como objetivo, a partir detrabalhos etnográficos, tecer uma análise antropológica sobreas práticas alimentares, enquanto sistema, de homens emulheres Mbyá-Guarani, grupo indígena presente no Brasil.

Palavras-Chave: Antropologia. Alimentação. Gênero.Sociedades Indígenas. Mbyá-Guarani.

Abstract: This paper aims to analyze food practices, as asystem, of Mbyá-Guarani people, an indigenous group livingin Brazil.

Key words: Food. Gender. Indigenous Societies. Mbyá-Guarani.

Mártin César Tempass, Doutor em Antropologia e membro do corpoeditorial do Espaço Ameríndio e revisor do mesmo periódico daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)[email protected]

1 Texto recebido: 27/06/2008.Texto aprovado: 10/07/2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58287

Page 288: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani

288 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Muitos autores, desde os primeiros cronistas atéas pesquisas mais recentes, teceram relatos sobre omodelo “democrático” de produção, distribuição econsumo dos alimentos nas sociedades indígenasbrasileiras. Em muitas destas sociedades os alimentossão obtidos a partir do trabalho coletivo e distribuídoseqüitativamente, a fim de que todos os membros dogrupo social tenham as mesmas possibilidades deconsumo. Todos partilham as tarefas alimentares e osbenefícios destas.

Mesmo nas sociedades indígenas onde a produçãoalimentar ocorre em pequenos núcleos familiares essecaráter “democrático” é percebido. Normas sociaisprofundamente enraizadas fazem circular os alimentos,contemplando todos os membros destas sociedades.O alimento produzido não pertence unicamente aquem o produziu, pertence a todo o grupo. Contudo,as fortes regras de reciprocidade fazem com que todosos indivíduos se dediquem à produção alimentar. Umexemplo disso, que pode ser encontrado em inúmerasetnografias em sociedades indígenas, é a norma queestabelece a partilha dos animais caçados. Um animalde grande porte é dividido entre todos os indivíduosda aldeia, os animais menores são repartidos somenteentre os parentes mais próximos. Seja a caça grandeou pequena, nenhum caçador pode estocar oexcedente. A distribuição é compulsória. E, comotodos os indivíduos se dedicam à produção dealimentos, sempre existe um grande volume dealimentos circulando nestas aldeias, fato que nivela aspossibilidades alimentares para todo o grupo.

É devido as razões expostas acima que, na maioriadas sociedades indígenas, nos períodos de escassezalimentar todos os indivíduos passam fome; já nasépocas de fartura, todos se alimentam de formaexagerada. O que um come, todos os demais tambémcomem. A grosso modo podemos afirmar que nestas

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58288

Page 289: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mártin César Tempass

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 289

sociedades todos os indivíduos engordam eemagrecem juntos. Todavia, em algumas sociedadesindígenas esse quadro sofreu alterações recentes. Ocontato com a sociedade envolvente, a dependênciaalimentar do mercado regional, a necessidade derecursos monetários e a venda da força de trabalhoestão minando o princípio da reciprocidade. Esse é ocaso, por exemplo, dos Wari´, estudados por MaurícioSoares Leite2.

A noção exposta acima é bastante genérica, porém,é exatamente o que se constata entre os Mbyá-Guarani.Trata-se de um grupo indígena que possui areciprocidade como princípio cosmológico fundanteda sua sociedade: quem tem dá, quem não tem, recebee em outra oportunidade, retribui. Isso é muito patentena alimentação deste grupo. Entre os Mbyá-Guaraninão existe um indivíduo que esteja passando fomeenquanto o seu vizinho possui alimentos sobrando. Etal fato se observa em todas as demais instâncias dacultura Mbyá-Guarani. Não é à toa que autores, comoClóvis Lugon3, classificaram este grupo indígena como“comunista”.

No entanto, este caráter, digamos, maisdemocrático da alimentação dos Mbyá-Guarani nãosignifica que todos os indivíduos deste grupo sempreconsumam os mesmos alimentos. Existem interdiçõese prescrições que atingem alguns indivíduos do grupoem determinadas ocasiões. Além disso, como nasdemais sociedades, a alimentação dos Mbyá-Guaranipode ser categorizada de diversas formas: comidasde crianças, de adultos e de idosos; comidas do dia-a-dia e de ocasiões festivas; comidas sagradas e telúricas;comidas do dia e da noite; etc. Em todas as sociedades– ou em quase todas – também é possível perceberdistinções significativas entre comidas de homens ecomidas de mulheres. É esta última distinção quepretendo trabalhar neste artigo: analisar as diferençasentre as práticas alimentares de homens e de mulheresna sociedade Mbyá-Guarani. Como a mulher está

2 LEITE, Maurício Soares.Transformação e persistência:Antropologia daalimentação e nutrição emuma sociedade indígenaamazônica. Rio de Janeiro:Fiocruz, 2007.

3 LUGON, Clóvis. A República“comunista” cristã dos guaranis:1610-1768. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1977.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58289

Page 290: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani

290 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

inserida na “democracia” alimentar verificada nestegrupo?

Os Mbyá-Guarani e a produção alimentarOs Mbyá-Guarani e a produção alimentarOs Mbyá-Guarani e a produção alimentarOs Mbyá-Guarani e a produção alimentarOs Mbyá-Guarani e a produção alimentar

Os Mbyá-Guarani são uma das parcialidadesétnicas que, juntamente com os Kayová e os Nandéva(também conhecidos como Xiripá), constituem ogrupo lingüístico Guarani presente no Brasil. Estegrupo pertence à família dos Tupi-Guarani, do troncolingüístico Tupi4. Os Mbyá-Guarani habitam eminúmeras aldeias distribuídas como pequenas “ilhas”entre a sociedade brasileira. Estas “ilhas” encontram-se localizadas em uma imensa área que, antes dos“descobrimentos”, constituía o imenso território destegrupo. No Brasil este território compreende osEstados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná,São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Os Mbyá-Guarani também possuem aldeias no leste doParaguai, no noroeste da Argentina (Província deMissiones) e no Uruguai5. Segundo dados de 2004, osMbyá-Guarani possuem no território brasileiro cercade cem pequenas aldeias, somando, aproximadamente,sete mil indivíduos que as habitam6.

Para o presente artigo são utilizados dadosetnográficos obtidos entre os anos de 2004 e 2008em diversas aldeias e acampamentos provisórios dosMbyá-Guarani, principalmente nas mais próximas aomunicípio de Porto Alegre (RS), como Itapuã,Cantagalo, Estiva, Lami e Petim, onde foramdesenvolvidos trabalhos de campo específicos paraos objetivos do presente artigo. Contudo, advogo queos dados aqui apresentados podem ser estendidos atodos os Mbyá-Guarani. Isso porque uma dasprincipais características dos Mbyá-Guarani é a suaconstante mobilidade entre as aldeias. Apesar de nãoconstituírem um grupo nômade, os indígenas destegrupo mantêm constantes visitações a outras aldeiasem razão de namoros, relações de parentesco, busca

4 MONTSERRAT, RuthMaria Fonini. Línguasindígenas no Brasilcontemporâneo. In:GRUPIONI, Luís Donisete(Org.). Índios no BrasilBrasília: Ministério daEducação e do Desporto,1994. p. 93-104.

5 LINHARES, Bianca deFreitas; TEMPASS, MártinCésar. Cruzar fronteirassem abandonar seuterritório: as migraçõestransnacionais dos Mbyá-Guarani. In: EncontroInternacional do FoMerco – osnovos rumos do Mercosul,6, 2007. CD-ROM. Aracajú:FoMerco, 2007.

6 LADEIRA, Maria Inês;MATTA, Priscila. TerrasGuarani no litoral: as matasque foram reveladas aosnossos antigos avós =Ka’agüy oreramói kuéryojou rive vaekue ~y. SãoPaulo: Centro de TrabalhoIndigenista, 2004.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58290

Page 291: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mártin César Tempass

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 291

por sementes, alimentos e ervas medicinais, velórios,alianças e atritos políticos, mutirões, atividadesreligiosas, transmissão de mensagens, etc. Além disso,os Mbyá-Guarani trocam freqüentemente o seu localde moradia. É muito difícil que um Mbyá-Guaranipermaneça residindo mais de cinco anos em umamesma aldeia. Assim, estes deslocamentos atualizame unificam as práticas alimentares do grupo como umtodo, fazendo com que os dados obtidos em algumasaldeias possam ser estendidos à totalidade dapopulação deste grupo7.

Conforme o exposto acima, os habitantes dasdiversas aldeias Mbyá-Guarani estão em constantecooperação. No que tange a alimentação do grupoisso também é percebido. A abertura de novas roças– o árduo trabalho de derrubada de árvores na mata– é feita por meio de mutirões que contam com acolaboração de indivíduos oriundos de várias aldeias.Seguindo o princípio da reciprocidade, quem recebeuajuda para abrir a roça precisa retribuir colaborandonos mutirões das outras aldeias. A aldeia ou grupofamiliar “dono” da nova roça fornece a alimentaçãopara os trabalhadores e a sua preparação fica sob aresponsabilidade das mulheres do grupo. Assim,homens e mulheres cooperam neste primeiromomento da produção alimentar.

Tradicionalmente, em um segundo momento, oplantio e a colheita das espécies vegetais era tarefaexclusivamente feminina, enquanto o grupo masculinose dedicava à caça, à pesca e à coleta. Contudo,atualmente, com a diminuição das possibilidades decaça, pesca e coleta nas aldeias, devido as suas péssimascondições ecológicas, os homens também vêm sededicando às tarefas de plantio e colheita dos frutosdo roçado. Assim, homens e mulheres dividem asresponsabilidades na obtenção dos alimentos do grupo.

Nas aldeias pequenas – ou acampamentosprovisórios – todo o grupo de indivíduos trabalhajunto em um único roçado e consome conjuntamente

7 TEMPASS, Mártin César.Orerémbiú: a relação entre aspráticas alimentares e os seussignificados com a identidadeétnica e a cosmologia Mbyá-Guarani. Porto Alegre, 2005.Dissertação (Mestrado emAntropologia Social) -Programa de Pós-Graduação emAntropologia Social,Universidade Federal doRio Grande do Sul.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58291

Page 292: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani

292 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

os alimentos obtidos. Porém, nas aldeias grandespodem ser encontradas várias “unidades de comida”,segundo a definição de Jack Goody8. Estas, entre osMbyá-Guarani, são pequenos grupos, geralmente comrelações de parentesco, organizados para a produçãoe consumo alimentar. Cada unidade de comida equivalea um “fogo” (tatarendý), onde são preparados osalimentos e no entorno do qual eles são consumidos.Uma “unidade de comida” pode ser composta deuma ou de várias casas próximas entre si. Mesmocomposta por várias casas, a “unidade de comida”sempre terá apenas um fogo e uma roça.

É neste fogo (tatarendý) – e em torno dele - que asmulheres da “unidade de comida” preparam asrefeições do grupo. Entre os Mbyá-Guarani o ato decozinhar é uma tarefa exclusivamente feminina. Alémde partilhar da produção dos alimentos, também cabeàs mulheres a tarefa de transformá-los para o consumo.Os homens da sociedade Mbyá-Guarani nãocozinham nem em situações de emergência. Quandoinquiri um grupo de mulheres sobre os conhecimentosculinários dos homens, antes de qualquer resposta, ouviuma longa gargalhada coletiva. Se em outras sociedadesas comidas assadas, a alta cozinha e/ou a exocozinhasão atribuídas aos homens, enquanto que às mulherescaberiam os cozidos, a cozinha cotidiana e/ou aendocozinha9, entre os Mbyá-Guarani toda e qualqueratividade culinária é feminina. São, assim, as mulheresque desempenham papel preponderante naalimentação do grupo.

Aspectos identitários e cosmológicos da comidaAspectos identitários e cosmológicos da comidaAspectos identitários e cosmológicos da comidaAspectos identitários e cosmológicos da comidaAspectos identitários e cosmológicos da comida

As mulheres são responsáveis pela sobrevivênciafísica do grupo, posto que dão caráter comestível aosnutrientes. Mas não é só isso. Como sabido, o ato decomer vai muito além do que a simples, porémindispensável, ingestão de nutrientes. A comida despertaemoções e lembranças. A comida pontua ocasiões

8 GOODY, Jack. Cocina, cuisiney clase: estudio de sociologíacomparada. Barcelona:Gedisa Editorial, 1995.

9 LÉVI-STRAUSS, Claude. Otriângulo culinário. In:SIMONIS, Yvan. Introdução aoestruturalismo: Claude Lévi-Strauss ou a paixão doincesto. Lisboa: Moraes,1979, p. 169-176.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58292

Page 293: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mártin César Tempass

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 293

sociais. Ela promove a sociabilidade. A comida é fontede imenso prazer – equivalente em intensidade aoprazer sexual. Ou, ao contrário, uma comida ruim podelevar aos efeitos opostos. A comida simboliza. Elaalimenta também os nossos imaginários. Ao comerestamos incorporando os aspectos, tanto nutricionaisquanto simbólicos, dos alimentos que ingerimos10.

Entre os Mbyá-Guarani, a alimentação é acionadacomo um sinal diacrítico - conforme definição deFrederik Barth11 - que auxilia na diferenciação destegrupo frente aos outros grupos étnicos. A alimentaçãoé utilizada por este grupo para definir quem é e quemnão é Mbyá-Guarani. Não apenas os alimentos em si,mas todo o sistema culinário12. Este compreende aforma de obtenção/produção dos alimentos, oscritérios de seleção, as formas de transporte, aestocagem, a preparação propriamente dita, os saberesculinários, os modos de apresentar e servir, osequipamentos culinários, as técnicas corporaisnecessárias para o consumo dos alimentos, as questõesde comensalidade, etc. Até a forma de dispor dosrestos alimentares é um elemento constitutivo destesistema. Enfim, todo este conjunto diferencia os Mbyá-Guarani dos demais grupos.

Além disso, os Mbyá-Guarani também se valemdos seus alimentos para se diferenciarem dos demaisseres que habitam os diferentes domínios do cosmos.A cosmologia dos Mbyá-Guarani compreende osdomínios dos animais (natureza), dos humanos(sociedade) e das divindades (sobrenatureza). Estas nãosão categorias estanques, pois homens, deuses e animaisconvivem em espaços comuns, em constante interação.As fronteiras entre estes domínios são muito tênues,podendo ser transpostas facilmente. Os Mbyá-Guaranise encontram entre os domínios da natureza e dasobrenatureza. Por um lado, os Mbyá-Guarani podemingressar no domínio da sobrenatureza,transformando-se também em divindades, o que é oobjetivo de todo Mbyá-Guarani. Por outro lado, os

10 FISCHLER, Claude. El(h)omnívoro: el gusto, lacocina y el cuerpo .Barcelona: Anagrama, 1995.

11 BARTH, Frederik. Gruposétnicos e suas fronteiras. In:POUTIGNAT, Philippe;S T R E I F F - F E N A R T ,Jocelyne (Org.). Teorias daetnicidade. São Paulo: Editorada Unesp, 1988. p. 185-227.

12 GONÇALVES, JoséReginaldo Santos. A fomee o paladar: umaperspectiva antropológica.In: Seminário alimentação ecultura. Rio de Janeiro:Funarte, 2002. p. 7-16.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58293

Page 294: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani

294 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Mbyá-Guarani podem sair de seu domínio em direçãoà natureza, tornando-se animais, o que todo Mbyá-Guarani procura evitar. Ocorre que a transposiçãodestes domínios é controlada através do respeito auma série de regras, dentre elas destacam-se as regrasalimentares.

Os Mbyá-Guarani, para se tornarem deuses,precisam atingir o aguyje, que é o estado de totalidadeacabada, a perfeição, a maturidade, a plenitude dodesenvolvimento13. É construir um corpo e uma almaperfeitos. Para tanto os Mbyá-Guarani devemconsumir apenas os “alimentos perfeitos”. Estes sãoalimentos, tanto de origem animal quanto de origemvegetal, criados pelos deuses para que os Mbyá-Guarani possam se alimentar. Os deuses tambémensinaram aos Mbyá-Guarani como devem serobtidos, preparados e consumidos estes alimentos afim de alcançar o aguyje. Em função deste preceitocosmológico estes indígenas se esforçam emconservar uma série de espécies vegetais desde temposimemoriais, tidos como as melhores iguarias da culturaMbyá-Guarani. Também, como poderiam ser ruinsos alimentos criados pelos deuses?

Dentre muitas outras, destacam-se como espéciesvegetais, o milho (avaxi eté), o feijão (komandá), amandioca (mandió), a abóbora (andaí), a melancia(xanjau), a batata-doce (jety) e o amendoim (manduví).São tipos especiais destas espécies que, segundo osMbyá-Guarani, só eles têm. Já dentre as espéciesanimais, igualmente criadas pelos deuses, destacam-seo tatu (kuruxã’î), o porco-do-mato (coxi), os peixes(pirá), o queixada (ta’ý tetú), a anta (mboreví) e algunspássaros (güyra’í). Todos estes alimentos, criados pelosdeuses, fazem bem para o corpo e a alma dos Mbyá-Guarani, além de possuírem um sabor largamenteapreciado. Mal mesmo fazem os alimentos que sãooriundos de fora de sua cultura, como os alimentosdos brancos. Os alimentos dos Mbyá-Guarani sófazem bem.

13 CADOGAN, León. Ayvurapyta: textos míticos de losMbyá-Guaraní del Guairá.Assunção: Fundación“León Cadogan”, 1997.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58294

Page 295: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mártin César Tempass

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 295

Mas, a fim de obter o aguyje, uns alimentos sãomais apropriados que outros. Para tanto, o corpo e aalma dos Mbyá-Guarani não podem ser dissociados.Corpo perfeito significa alma também perfeita e vice-versa. O corpo perfeito, neste caso, é o corpo magro,leve para poder ascender ao mundo sobrenatural aindaem vida. Além disso, a alma perfeita circula peloesqueleto dos indivíduos deste grupo, enquanto que aalma ruim (ou telúrica) circula pela carne e pelo sanguedeles. Desta forma, um corpo magro atrapalha acirculação da alma imperfeita pelos corpos dos Mbyá-Guarani. Assim, dentre os alimentos tradicionais destegrupo, alguns são mais recomendados que outros. Osalimentos que engordam os indivíduos devem serconsumidos com mais parcimônia14.

As formas de preparação dos alimentos são desuma importância para atingir esta perfeição. Ummesmo alimento pode ser mais ou menos “leve” –termo êmico – dependendo do seu modo depreparação. Isso é uma das razões para que os Mbyá-Guarani prefiram os alimentos assados e/ou grelhadosem detrimento dos alimentos fritos e/ou cozidos.

Já a transposição ao domínio da natureza ocorrequando os Mbyá-Guarani são possuídos pelo tupichua(ou simplesmente pichua), que nada mais é que o espíritoda carne crua ou o espírito do jaguar (principal inimigomitológico destes indígenas). Ao se apoderar doscorpos dos Mbyá-Guarani este espírito os transformaem animais. As regras alimentares que evitam esteapoderamento dizem mais respeito às formas depreparação e consumo do que aos alimentospropriamente ditos. Por exemplo, o consumo decarnes cruas é estritamente proibido, pois só os animaisconsomem carnes cruas. Também não se deve comercarnes sozinho na floresta porque, desta forma, estáse negando o princípio social da reciprocidade eagindo como os animais15. Nestes casos o tupichua seapodera dos Mbyá-Guarani transgressores das regrasalimentares.

14 TEMPASS, Mártin César.Orerémbiú: a relação entre aspráticas alimentares e osseus significados com aidentidade étnica e acosmologia Mbyá-Guarani.Porto Alegre, 2005.Dissertação (Mestrado emAntropologia Social) -Programa de Pós-Graduação emAntropologia Social,Universidade Federal doRio Grande do Sul.

15 Ibidem.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58295

Page 296: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani

296 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Culinária e gêneroCulinária e gêneroCulinária e gêneroCulinária e gêneroCulinária e gênero

O interessante é que, tendo a alimentação esteimportante papel na mediação dos domínios docosmos Mbyá-Guarani, passa pelas “mãos” dasmulheres a realização do objetivo de todos osindivíduos deste grupo – que é atingir o aguyje -, poiselas produzem e preparam as comidas. Além de nutrir,as mulheres também são responsáveis pelo destinoextra-humano dos Mbyá-Guarani. Elas detêm o poderculinário. São também as mulheres que realizam asescolhas alimentares no grupo. Elas têm voz ativa nadecisão do que cada “unidade de comida” irá plantarem suas roças, a variedade e a quantidade. Elasescolhem o “menu” de cada refeição, sem consultaros homens do grupo. Isto é, decidem quais alimentosserão utilizados e como eles serão preparados.Também, nos casos de compras no comércio –freqüentes na atualidade – as mulheres possuem aprerrogativa da escolha.

Contudo, os Mbyá-Guarani possuem uma sériede interdições alimentares que atingem algunsindivíduos em determinadas ocasiões. O que chama aatenção é o fato de que a maioria destas interdiçõesrecai justamente sobre as mulheres, protagonistas daspráticas alimentares dos Mbyá-Guarani. Embora amaioria dos Mbyá-Guarani não confirme estainformação, alguns interlocutores afirmaram que oshomens precisam respeitar algumas regras alimentarespor ocasião dos ritos de iniciação, da couvade e dagravidez da esposa.

Já as mulheres Mbyá-Guarani podem comer tudoo que os homens comem, exceto nos períodos deiniciação, de menstruação, de gravidez e amamentação.Ou seja, os períodos em que as mulheres respeitamprescrições alimentares são mais numerosos efreqüentes que os períodos dos homens. Além disso,as mulheres não podem consumir o zapallo (abóboramenina, geralmente utilizada para fazer doces) desde

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58296

Page 297: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mártin César Tempass

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 297

o nascimento até a menopausa. Os Mbyá-Guaranicrêem que o consumo deste alimento deixa o ventre“duro” e dificulta a gestação16.

A menstruação requer uma série de cuidados dasmulheres Mbyá-Guarani. Neste período elas devemse privar de várias coisas e manter alguns cuidadosalimentares. Em suma, a mulher precisa dormirseparada de seu marido e os banhos são proibidos. Amulher menstruada não pode ter contato com a águafria e precisa, obrigatoriamente, ingerir chás de umadeterminada erva – cujo nome não foi revelado pelosMbyá-Guarani. Quanto à alimentação, nestes períodosela não pode consumir nada que contenha sal. Elanão pode nem sequer tocar no sal. A comida não-tradicional – comida dos brancos (juruá) – deve serevitada, principalmente os alimentos industrializados,tidos como mais perigosos. Café, biscoitos esalgadinhos são as comidas mais lembradas pelosMbyá-Guarani quanto a esta interdição. Dentre osalimentos tradicionais da culinária Mbyá-Guarani asmulheres precisam evitar a ingestão de pimentas,doces e amendoim. Este último, juntamente com oaçúcar dos brancos (juruá), é perigoso porque fazcom que a mulher perca sangue em demasia.Durante a menstruação, quanto mais “natural” –expressão êmica – for a comida, melhor. Nãorespeitar estas regras alimentares coloca em risco aprópria vida da mulher e, mais, causa sériosproblemas espirituais aos seus convivas, em funçãodos preceitos cosmológicos.

Tem que CUIDAR. Não sei, branco é diferente, né? Minhamulher, quando tá de misturação [menstruação] ... , nemdurmo com ela. É proibido, né? [...] Fica tratando, dá unsremédios [chás] para ela, e não pode tocar no sal. [...] Tem quebanhar só depois de quatro dias. Vocês não! Vocês podemtomar quando ... Não quero falar da mulher de vocês. [...]Vocês quando tem misturação [menstruação], comebolachinha, come café, doces também. Pra vocês não faz

16 LARRICQ, Marcelo. Ipytuma:construcción de la personaentre los Mbya-Guarani.Missiones: EditorialUniversitária, 1993.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58297

Page 298: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani

298 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

mal, né? Alguma pimenta, sal. Guarani, nada! (Entrevistacom Mbyá-Guarani, 09/06/2005).

Destaquei o termo “cuidar” na citação acima, poisnão é apenas a mulher que precisa ter estes cuidados,mas sim todo o grupo – os membros da “unidadede comida” – que precisam “cuidar” para quenenhuma mulher descumpra as regras alimentares doperíodo da menstruação. Isso porque, como jáexposto, todo grupo corre riscos caso ocorra um“descuido” alimentar. Mais uma vez, o destino dosMbyá-Guarani está nas mãos das mulheres.

Segundo os Mbyá-Guarani, as mulheres sóengravidam através do consentimento das divindades.Para tanto são realizados vários ritos na Opy (casa derezas). Mas, evitar determinados alimentos tambémauxilia na concepção. Infelizmente, os Mbyá-Guaraninão revelaram quais são os alimentos que devem serevitados. Uma vez grávida, a mulher Mbyá-Guaraniprecisa manter outros cuidados alimentares. Aocontrário da nossa sociedade, onde se fala que a mulherprecisa “comer por dois”, as mulheres Mbyá-Guaranidevem ingerir pouca quantidade de alimentos durantea gestação. E apenas alimentos “naturais”. A comidados brancos (juruá), tida como não-natural, deve serevitada, pois esta pode trazer feitiços, matando a mãee/ou o feto. Um simples prato de feijão-com-arroz ecarne, agora freqüentemente preparado pelos Mbyá-Guarani, faz muito mal à mulher grávida por causado ingrediente arroz, que é comida de juruá.

Sobre a gravidez, o que mais foi destacado emminhas conversas com os Mbyá-Guarani, sobretudopelos homens, foram os “desejos” que as mulherestêm enquanto grávidas. Em tom jocoso os Mbyá-Guarani contaram várias histórias sobre os “desejos”alimentares de suas mulheres. Houve um Mbyá-Guarani que teve que se deslocar a várias aldeias a fimde obter um determinado alimento tradicional(orérembi’ú) desejado por sua mulher. Outro Mbyá-

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58298

Page 299: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mártin César Tempass

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 299

Guarani relatou que sua esposa passou dois diasinteiros apenas ingerindo laranjas.

Quando a criança nasce, até o fim da amamentação,é interessante que a mãe continue com seus cuidadosalimentares, sendo então permitido o consumo dequantidades maiores de comida. Machado aponta quea mulher não pode comer sal, carne e doce peloperíodo de, no mínimo, duas luas após o nascimentode seu filho17. Segundo Larricq18, neste período asmulheres devem se abster de ingerir alguns tipos demel e animais silvestres.

Através da alimentação as mulheres Mbyá-Guaranitambém podem controlar o número de filhosnascidos no mesmo parto. O consumo de alimentos“duplos” faz com que as mulheres deste grupo gestemfilhos gêmeos. Como o nascimento de gêmeos,tradicionalmente, representa um perigo para asociedade Mbyá-Guarani, os alimentos “duplos”configuram uma interdição alimentar para as mulheres,inclusive quando ainda são meninas. Os frutosgeminados – como a banana geminada – são exemplosdesta interdição alimentar19.

O número de mulheres por “unidade de comida”é muito variável. Em campo, observei desde“unidades de comida” com apenas uma mulher atéunidades com oito ou nove mulheres. O mais comumé ter cinco ou seis mulheres, em média, em cada umadestas unidades. Ter filhos é uma dádiva para os Mbyá-Guarani, sendo o número elevado de filhos umorgulho para eles. Estes indígenas se tornam pais muitocedo. A mulher Mbyá-Guarani mal acaba deamamentar um filho e já engravida novamente. É esteo ideal do grupo. Adicionando-se a isso os períodosde menstruação, é possível afirmar que, pelo númerode mulheres por “unidade de comida”, sempre – ouquase sempre – há no grupo alguma mulher queprecisa manter maiores cuidados alimentares.

Como afirmado anteriormente, os homenspossuem um menor número de interdições

17 MACHADO, Maria PaulaPrates. Nascendo e crescendocomo Mbyá-Guarani :reflexões sobre práticas ereferências mito-cosmológicas. PortoAlegre, 2006. Monografia(Graduação em CiênciasSociais) – Instituto deFilosofia e CiênciasHumanas, UniversidadeFederal do Rio Grande doSul.

18 LARRICQ, Marcelo. Ipytuma:construcción de la personaentre los Mbya-Guarani.Missiones: EditorialUniversitária, 1993.

19 MACHADO, Maria PaulaPrates. Nascendo e crescendocomo Mbyá-Guarani :reflexões sobre práticas ereferências mito-cosmológicas. PortoAlegre, 2006. Monografia(Graduação em CiênciasSociais) – Instituto deFilosofia e CiênciasHumanas, UniversidadeFederal do Rio Grande doSul.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58299

Page 300: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani

300 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

alimentares, no que tange a ocasiões especiais. E, éinteressante destacar, as regras alimentares dos homens,no caso da couvade e da gravidez de sua mulher, sãosimilares às regras que as mulheres respeitam nesteperíodo. Ou seja, nestes momentos, homens e mulherespodem comer as mesmas comidas.

Na prática é isso que ocorre, com exceção dascrianças menores de um ano que recebem “papinhas”especiais, homens e mulheres consomem os mesmosalimentos. Não só o homem e a mulher “grávidos”,mas toda a “unidade de comida” consome exatamentea mesma comida. Este ponto será melhor trabalhadona seqüência.

Cabe ainda destacar que muitas das prescriçõesalimentares referentes a períodos específicos se“encaixam” nas regras alimentares para atingir o aguyje.Desta forma, os alimentos preparados nestes períodossão bem aceitos por todo o grupo, não apenas pelaspessoas que se encontram com alguma restriçãoalimentar.

Como já afirmado, homens e mulheres partilhamas tarefas de produção alimentar. Os homens caçam,pescam e coletam e as mulheres se dedicam ahorticultura. Já o trabalho de transformação dosalimentos em comida, de acordo com os preceitosculturais, é exclusivamente feminino. Para tanto, asmulheres da “unidade de comida” trabalhamconjuntamente nas tarefas culinárias. Em um ritmo bemcaracterístico da cultura Mbyá-Guarani, de forma lentae constante, as mulheres sempre – ou quase sempre –estão ocupadas com alguma atividade culinária.Diferentemente da nossa sociedade, onde as comidassão preparadas em horários específicos, geralmentelogo antes das refeições, as mulheres Mbyá-Guarani“cozinham” em tempo integral. Ou melhor, pensandoem termos do sistema culinário Mbyá-Guarani, asmulheres estão sempre desenvolvendo algumaatividade relacionada com a alimentação do grupo,seja de produção, estocagem, preparação, etc. Nesse

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58300

Page 301: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mártin César Tempass

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 301

aspecto também se inserem as práticas rituais –desenvolvidas na Opy – para que não faltem alimentosao grupo.

Mas, como já destacado, o ritmo das tarefasculinárias é bastante peculiar. Em campo, acompanheia preparação de um bolo de milho verde, que podeexemplificar este ponto. Tudo começou nas primeirashoras da manhã com a colheita das espigas de milhona roça próxima ao conjunto de casas da “unidade decomida”. Feito isso, as mulheres se ocuparam com aestocagem de feijão e com a secagem das folhas defumo (petyû) – também considerado um alimento pelosMbyá-Guarani. Por volta das doze horas algumasmulheres começaram a ralar o milho verde, enquantoque outras se ocuparam em assar uma carne (xo’ó) decaça. O milho ralado foi guardado e somente no finalda tarde, depois das mulheres assarem algumas batatasdoces e trabalharem mais um pouco na estocagemdo feijão, foi preparada a massa do bolo de milhoverde. Porém, o bolo não foi imediatamente assado.A massa foi guardada para ser assada no outro diapela manhã.

Todo esse trabalho foi realizado em ritmo lento,sendo interrompido várias vezes. Não existe pressana sociedade Mbyá-Guarani. Enquanto trabalham, asmulheres Mbyá-Guarani conversam, riem e brincamcom as crianças. Chama a atenção de quem vê de foraa “leveza” que as mulheres Mbyá-Guarani atribuemas suas atividades culinárias. Tudo parece um grande econtínuo divertimento. Não é à toa que GilbertoFreyre20, falando das sociedade indígenas em geral,afirmou que as atividades culinárias são “agradáveis”às mulheres indígenas.

Este “cozinhar” contínuo das mulheres Mbyá-Guarani faz com que sempre se tenha alguma comidapronta, à disposição de quem estiver faminto. Isso écaracterístico da sociedade Mbyá-Guarani: sempre háalguma panela no fogo ou perto dele com algumacomida pronta. Os Mbyá-Guarani, diferentemente da

20 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formaçãoda família brasileira sob oregime de economiapatriarcal. 13. ed. Rio deJaneiro: José Olympio,1966.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58301

Page 302: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani

302 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

nossa sociedade, não se importam nem um poucoem comer alimentos “frios”. Além disso, eles nãopossuem horários pré-estabelecidos para realizar asrefeições. Comem quando sentem fome (akaruxé). Equando a fome chegar sempre haverá alguma comidapronta para ser servida.

Antes de dar seguimento à argumentação éinteressante desfazermos um mal entendido. Muitosautores, ao relatar as práticas alimentares dos gruposindígenas, afirmam que os homens comem primeiroe só depois comem as mulheres e as crianças. Estatomada alimentar em momentos separadosnormalmente é descrita com um tom altamentepejorativo, em muitos casos é insinuado que mulherese crianças comem o que sobra – e quando sobra –dos alimentos dos homens. Isso não ocorre bem assimentre os Mbyá-Guarani e suspeito que não deve ocorrertambém nas demais sociedades indígenas. De fato, emalgumas poucas ocasiões, a tomada alimentar se dáem momentos separados entre homens e mulheres.Este é o caso, por exemplo, das refeições altamenteformais e duplamente estruturadas (as práticas Mbyá-Guarani são justapostas às práticas dos brancos) quesão servidas aos visitantes brancos nas aldeias. Nestaocasião os hábitos cotidianos são postos de lado eoutros ritos alimentares são acionados em função dapresença dos “estrangeiros”. Ocorre que o contatocom a sociedade envolvente é uma tarefaexclusivamente masculina. Tradicionalmente estecontato é considerado perigoso, e as mulheres sãopreservadas disso. Assim, as mulheres não fazem parteda comensalidade destas refeições, alimentando-se emseparado. Excluídas estas refeições, homens, mulherese crianças Mbyá-Guarani se alimentam quando sentemfome. E, ao menos entre os Mbyá-Guarani, não existenenhum privilégio alimentar masculino.

No final das contas, mesmo com as interdiçõesalimentares específicas, homens e mulheres consomemas mesmas comidas em todas as ocasiões. Ocorre que

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58302

Page 303: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mártin César Tempass

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 303

a comida preparada pelas mulheres é partilhada portodos os indivíduos da “unidade de comida”. O queum come, todos comem. As mulheres decidem o“menu” e neste “menu” nunca haverá algo que elas –ou outros indivíduos – não possam comer. Emnenhuma ocasião presenciei o preparo de algumacomida “especial” para um indivíduo específico. Seum membro da “unidade de comida” não pode nomomento consumir sal, então os alimentos são todospreparados sem sal e todo o grupo comerá estacomida. Assim, além de partilhar alimentos, homense mulheres compartilham também as interdiçõesalimentares. E, como já assinalado, na maioria dasocasiões há no mínimo alguma mulher precisandorespeitar alguma interdição alimentar. Desta forma, aalimentação cotidiana de todos os indivíduos Mbyá-Guarani é pautada pelas prescrições alimentaresfemininas.

Contudo, homens e mulheres Mbyá-Guaraniingerem a mesma quantidade de alimentos? Tal qualem outras sociedades as mulheres consomem maisfrutas e verduras (saladas) enquanto os homensconsomem mais carnes? Os Mbyá-Guarani, quandoquestionados sobre isso, são enfáticos em afirmar quenão existe nenhuma diferença a este respeito. Homense mulheres, além de consumirem os mesmos alimentos,ingerem quantidades similares de alimento. Nasobservações de campo é difícil a comparação entreas quantidades alimentares consumidas por homens emulheres, posto que as refeições ocorrem de formafracionada inúmeras vezes ao dia. Mas, é possívelperceber que tanto homens quanto mulheres ingerempouca quantidade de alimentos, em comparação coma sociedade envolvente. Ocorre que, para fins dealcançar o aguyje, os Mbyá-Guarani devem comerapenas o “necessário”, para tornar o corpo leve. Eeste “necessário” também é muito pouco, posto queas divindades do grupo aliviam o sentimento de fome(akaruxé) dos indivíduos que praticam corretamente

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58303

Page 304: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani

304 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

os ritos. Além disso, os Mbyá-Guarani também sealimentam das Belas Palavras – linguagem divina – ede bons sentimentos. Em suma, os Mbyá-Guarani,por questões cosmológicas, ingerem uma baixaquantidade de alimentos.

As verduras não fazem parte da dieta tradicional(orérembi’ú) dos Mbyá-Guarani. Já as frutas são parteconsiderável da dieta, sendo largamente consumidas.Homens e mulheres consomem as mesmas frutas eem quantidades similares. Se existir alguma diferençasignificativa entre o consumo de frutas entre homense mulheres, arrisco afirmar que os homens comemmais frutas que as mulheres. Ocorre que o consumode frutas está muito relacionado com a ocasião. Comosão os homens que mais andam pelas matas eles sedeparam com as árvores frutíferas maisfreqüentemente. No que tange ao consumo de carnes,homens e mulheres consomem quantidades similares.

Algumas considerações sobre a dinâmica alimentarAlgumas considerações sobre a dinâmica alimentarAlgumas considerações sobre a dinâmica alimentarAlgumas considerações sobre a dinâmica alimentarAlgumas considerações sobre a dinâmica alimentar

Ao longo deste artigo procurei descrever o sistemaculinário Mbyá-Guarani e os seus recortes quanto aosgêneros. Contudo, este sistema culinário, como todosos demais, não é estático. Ao contrário, ele é umprocesso. Uma síntese entre tradição e inovaçãoconstantemente atualizada. Desta forma, o termo“tradicional”, largamente empregado neste artigo,ainda pode ser aplicado para a alimentação atual dosMbyá-Guarani, posto que esta se encontra emtransformação?

Os Mbyá-Guarani, em seus discursos, se mostraminsatisfeitos com as modificações em suas práticasculinárias. Segundo os meus interlocutores, todas asmudanças na alimentação deste grupo são “culpa” dasociedade envolvente. Na concepção dos Mbyá-Guarani, foram os “brancos” que, ao se apropriaremdas terras indígenas, impediram que os Mbyá-Guaraniproduzissem os seus próprios alimentos de forma

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58304

Page 305: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mártin César Tempass

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 305

tradicional21. Com isso, eles se tornaram dependentesde uma série de práticas alimentares da sociedadeenvolvente. Tal discurso, bem ensaiado entre osindivíduos Mbyá-Guarani, reflete uma preocupaçãocom a delimitação da sua identidade étnica, pontuadapela alimentação e, mais do que isso, procura“responsabilizar” a sociedade envolvente pela nãoproteção das culturas indígenas.

No entanto, no trabalho etnográfico é possívelperceber que isso não é bem assim. Afinal, os discursossobre a alimentação costumam não coincidir com aspráticas alimentares. Entre os Mbyá-Guarani, asmudanças alimentares não são apenas determinaçõesexternas. Estes indígenas possuem papel ativo nestasmudanças. Mesmo no contexto atual que lhes édesfavorável, são os Mbyá-Guarani que definem (emgrande parte) as suas trajetórias. E isso é bem patentenas condutas alimentares. Práticas alimentares dasociedade envolvente vêm sendo incorporadas aosistema culinário Mbyá-Guarani como um todo (desdeas técnicas produtivas até as normas de distribuição).Contudo, a incorporação de novos elementos (no caso,alimentos) ao sistema alimentar Mbyá-Guarani nãoreflete uma ruptura com os padrões tradicionais, pelocontrário, assinala uma continuidade22. E estacontinuidade se verifica justamente porque os Mbyá-Guarani são os principais agentes da dinâmica do seusistema alimentar.

Ocorre que, neste sistema altamente dinâmico, asincorporações de novos elementos se dão emconformidade com o estoque de significados culturaispré-existentes. Só é incorporado aquilo que écompatível com o sistema vigente. E, em muitos casos,os novos elementos (alimentos) são ressignificados afim de se encaixarem nos preceitos culturais do grupo.Desta forma, a alimentação muda, mas não deixa deser “tradicional”. Como argumenta Marshall Sahlins23,quanto mais a coisa muda, mais ela permanece.

Diante do exposto e do que foi observado no

21 TEMPASS, Mártin César.Distribuição de cestasbásicas entre os Mbyá-Guarani. In: AssociaçãoBrasileira de Antropologia. 26°Reunião Brasileira deAntropologia, 2008, PortoSeguro. CD-ROM.

22 TEMPASS, Mártin César. Aalimentação tradicional dosMbyá-Guarani: saberes efazeres. In: AssociaçãoBrasileira de Antropologia. 25°Reunião Brasileira deAntropologia: saberes epráticas antropológicas –desafios para o século XXI,2006, Goiânia. CD-ROM.

23 SAHLINS, Marshall. Ilhas dehistória. Rio de Janeiro:Zahar, 1990.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58305

Page 306: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani

306 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

trabalho etnográfico, mesmo com a adoção de algunsalimentos e técnicas novas, com a dinâmica alimentar,o caráter “democrático” na produção e consumo dosalimentos permanece entre os Mbyá-Guarani, inclusiveno que tange a igualdade entre gêneros. Ocorre queos novos elementos acrescentados são compatíveiscom o sistema cultural deste grupo, que tem nareciprocidade um dos seus principais pilares. Mesmocomprando parte dos seus alimentos no comércio –tendo que se dedicar na obtenção de recursosmonetários para tanto – o caráter “democrático” daalimentação Mbyá-Guarani permanece, sendoorquestrado pelas mulheres. Contudo, cabe assinalar,que em outras sociedades indígenas, diferentementedos Mbyá-Guarani, o contato com a sociedadeenvolvente vem produzindo mudanças alimentaresprofundas, afetando inclusive o caráter “democrático”da produção e consumo dos alimentos. Mas, mesmoassim, estas mudanças são compatíveis com o sistemacultural vigente.

Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

Para finalizar, os Mbyá-Guarani, como váriosoutros grupos indígenas, são extremamente“democráticos” na distribuição e no consumo dosalimentos. Nesta sociedade, amplamente calcada noprincípio da reciprocidade, ou todos se saciam outodos passam fome. Homens e mulheres Mbyá-Guarani possuem regras alimentares distintas paradeterminadas ocasiões. Porém, na prática, ambosconsomem os mesmos alimentos e em quantidadessimilares.

A alimentação Mbyá-Guarani, enquanto sistema,está relacionada a todos os demais elementosconstitutivos da cultura Mbyá-Guarani. Desde atransposição dos domínios cosmológicos até a divisãosexual do trabalho. A alimentação é um fato socialtotal – conforme concepção de Marcel Mauss24. O

24 MAUSS, Marcel. Sociologia eAntropologia . São Paulo:E.P.U., 1974. 2v.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58306

Page 307: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mártin César Tempass

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 307

interessante é que este importante papel da alimentaçãona sociedade Mbyá-Guarani é gerenciado pelasmulheres.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

BARTH, Frederik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In:POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne (Org.).Teorias da etnicidade. São Paulo: Editora da Unesp, 1988. p. 185-227.

CADOGAN, León. Ayvu rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá. Assunção: Fundación “León Cadogan”, 1997.

FISCHLER, Claude. El (h)omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo.Barcelona: Anagrama, 1995.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da famíliabrasileira sob o regime de economia patriarcal. 13. ed. Rio deJaneiro: José Olympio, 1966.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A fome e o paladar: umaperspectiva antropológica. In: Seminário alimentação e cultura. Riode Janeiro: Funarte, 2002. p. 7-16.

GOODY, Jack. Cocina, cuisine y clase: estudio de sociologíacomparada. Barcelona: Gedisa Editorial, 1995.

LADEIRA, Maria Inês; MATTA, Priscila. Terras Guarani no litoral:as matas que foram reveladas aos nossos antigos avós = Ka’agüyoreramói kuéry ojou rive vaekue ~y. São Paulo: Centro de TrabalhoIndigenista, 2004.

LARRICQ, Marcelo. Ipytuma: Construcción de la persona entrelos Mbya-Guarani. Missiones: Editorial Universitária, 1993.

LEITE, Maurício Soares. Transformação e persistência: Antropologiada alimentação e nutrição em uma sociedade indígena amazônica.Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58307

Page 308: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Comida e gênero entre os Mbyá-Guarani

308 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

LÉVI-STRAUSS, Claude. O triângulo culinário. In: SIMONIS,Yvan. Introdução ao estruturalismo: Claude Lévi-Strauss ou a paixãodo incesto. Lisboa: Moraes, 1979, pp. 169-176.

LINHARES, Bianca de Freitas; TEMPASS, Mártin César. Cruzarfronteiras sem abandonar seu território: as migraçõestransnacionais dos Mbyá-Guarani. In: Encontro Internacional doFoMerco – os novos rumos do Mercosul, 6, 2007. CD-ROM.Aracajú: FoMerco, 2007.

LUGON, Clóvis. A República “comunista” cristã dos guaranis: 1610-1768. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

MACHADO, Maria Paula Prates. Nascendo e crescendo como Mbyá-Guarani: reflexões sobre práticas e referências mito-cosmológicas.Porto Alegre, 2006. Monografia (Graduação em Ciências Sociais)– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federaldo Rio Grande do Sul.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: E.P.U., 1974.2v.

MONTSERRAT, Ruth Maria Fonini. Línguas indígenas no Brasilcontemporâneo. In: GRUPIONI, Luís Donisete (Org.). Índios noBrasil. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, 1994. p.93-104.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

TEMPASS, Mártin César. Orerémbiú: a relação entre as práticasalimentares e os seus significados com a identidade étnica e a cosmologiaMbyá-Guarani. Porto Alegre, 2005. Dissertação (Mestrado emAntropologia Social) - Programa de Pós-Graduação emAntropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

_______. A alimentação tradicional dos Mbyá-Guarani: saberese fazeres. In: Associação Brasileira de Antropologia. 25° ReuniãoBrasileira de Antropologia: saberes e práticas antropológicas –desafios para o século XXI, 2006a, Goiânia. CD-ROM.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58308

Page 309: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Mártin César Tempass

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 309

TEMPASS, Martin César. Distribuição de cestas básicas entre osMbyá-Guarani. In: Associação Brasileira de Antropologia. 26° ReuniãoBrasileira de Antropologia, 2008, Porto Seguro. CD-ROM.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58309

Page 310: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58310

Page 311: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

REPENSANDO A COMIDA:REPENSANDO A COMIDA:REPENSANDO A COMIDA:REPENSANDO A COMIDA:REPENSANDO A COMIDA:NOVOS OLHARES SOBRE O GÊNERONOVOS OLHARES SOBRE O GÊNERONOVOS OLHARES SOBRE O GÊNERONOVOS OLHARES SOBRE O GÊNERONOVOS OLHARES SOBRE O GÊNERO

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58311

Page 312: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58312

Page 313: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 313

“Cozinha especial e comida a qualquer“Cozinha especial e comida a qualquer“Cozinha especial e comida a qualquer“Cozinha especial e comida a qualquer“Cozinha especial e comida a qualquerhora”: dos serviços de proprietários ehora”: dos serviços de proprietários ehora”: dos serviços de proprietários ehora”: dos serviços de proprietários ehora”: dos serviços de proprietários e

cozinheiros nas casas de pasto,cozinheiros nas casas de pasto,cozinheiros nas casas de pasto,cozinheiros nas casas de pasto,cozinheiros nas casas de pasto,restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)11111

Deborah Agulham Carvalho*

Resumo: Este artigo se propõe a apresentar o panorama dasatividades realizadas por proprietários, chefs, cozinheiros,cozinheiras, criados e conhecedores das artes do preparar e servircomidas, pratos e refeições nas casas de pasto, restaurantes eafins abertos em Curitiba, como forma de caracterizar essesestabelecimentos e respectivos serviços, de modo que espaçoe atividades remetam à questão de gênero.

Palavras-Chave: Casas de Pasto. Restaurantes. Serviços.Curitiba PR. Primeira República.

Abstract: This article presents the activities of owners, chefsand cooks during the preparation or sale of foodstuffs andtheir respective places of commerce in Curitiba. The finalgoal is the characterization of such institution and theirservices, so their respectively space and activities refer to thegender.

Keywords: Commerce. Restaurants. Services. Curitiba PR.First Republic.

1 Texto recebido: 08/06/2008.Texto aprovado: 13/07/2008.

Deborah Agulham Carvalho, Mestre em História pela UniversidadeFederal do Paraná. [email protected]

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58313

Page 314: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

“Cozinha especial e comida a qualquer hora”: dos serviços de proprietários ecozinheiros nas casas de pasto, restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)

314 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Este trabalho surgiu de uma nova leitura dadissertação de mestrado “Das casas de pasto aosrestaurantes: os sabores da velha Curitiba (1890-1940)”2. Na tentativa de recortar os objetos estudadosàquela ocasião - quais sejam, as casas de pasto, osrestaurantes e afins -, vislumbrou-se a possibilidadede pensá-los através das atividades desempenhadaspelos profissionais ligados à cozinha e da competênciados proprietários desses estabelecimentos. À guisa deesclarecimento, o termo afins aplicado emcorrespondência aos estabelecimentos supracitados,deu-se como substituto dos restaurantes que tambémforam parte integrante dos bares, cafés, hotéis epensões e naquela dissertação foram organizados porordem alfabética a partir da palavra subseqüente arestaurante - como restaurante e bar, restaurante e café,restaurante, café e hotel, restaurante e hotel e restaurante epensão.

Na construção desse panorama foram trabalhadosperiódicos e fontes de imprensa, publicados entre 1890e 1940, bem como os Livros de Impostos, Indústrias eProfissões para que se qualificasse e quantificasse taisserviços na cidade supracitada. Para que esseencaminhamento fosse seguido, casas de pasto,restaurantes e afins foram tratados sob dois pontos: (1)pela temática alimentar, caracterizados pelo que neles secomercializava - como os pratos das cozinhas doimigrante, nacional, regional e local -, bem como atravésdos (2) serviços que estavam ligados a eles - a exemploda aquisição de profissionais capacitados - cuja maioriarequisitada nos anúncios da época era do sexo masculino-,ambientes limpos e proprietários (também em sua maioriahomens) bastante atentos quanto à oferta de serviços. Talconjunto de características procurou condizer com a novarealidade, que estava sendo desenhada pela instauraçãode novos espaços de lazer, sociabilidade e, sobretudo,comensalidade.

A trajetória dos proprietários de casas de pasto erestaurantes foi construída com grande fidelidade através

2 Essa dissertação trouxe àtona a trajetória dessese s t a b e l e c i m e n t o scomerciais, tendo comoprioridade a temáticaalimentar. CARVALHO,Deborah Agulham. Dascasas de pasto aos restaurantes:os sabores da velha Curitiba(1890-1940). Curitiba, 2005.Dissertação (Mestrado emHistória) – Faculdade deCiências Humanas, Letras eArtes, Universidade Federaldo Paraná.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58314

Page 315: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Deborah Agulham Carvalho

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 315

da análise dos dados existentes nos Livros de Impostos,Indústrias e Profissões (como o nome do proprietário,endereço do estabelecimento e atividade comercial).Percebeu-se que eles constituíram um grupo atuante nocenário comercial curitibano: entre 1890 e 1940somaram-se 35 proprietárias e 177 proprietários. Esseresultado foi obtido unicamente pela contagem de homense mulheres relacionados nessa fonte enquantoproprietários de casas de pasto e restaurantes, tendo sidoexcluídos dessa amostragem aqueles que não puderamser identificados pelo gênero3.

Com a chegada da República, o Brasil procurouestar imerso no processo de modernização: cidadescomo Rio de Janeiro e São Paulo corresponderamnesse sentido e dialogaram com as mudanças doprocesso de urbanização através da inserção de novaspráticas cotidianas, percebidas nas formas de vestir,comprar, relacionar-se socialmente, que alteraram oritmo de vida da população local.

Ao se aproximar desse contexto, Curitiba tambémprocurou estar envolta pelos ares da modernidade e,para tal, decidida a aplicar mudanças de cunhourbanístico e social. Em meio a essas mudanças, casasde pasto, restaurantes e afins foram elementos queestiveram imbricados na grande teia de relações quepassaram a ser pensadas como constituintes desse novopanorama, cujos proprietários e proprietáriasformaram um novo grupo que passou a ser atuanteno cenário comercial curitibano.

Este texto pretende apresentar em que situaçõeshomens e mulheres exerceram suas atividadesprofissionais quando ligados às casas de pasto,restaurantes e afins na cidade de Curitiba, entre 1890 e1940. Ao passarem por esses estabelecimentos ambosestiveram próximos à comida: ou na qualidade deproprietários e proprietárias, ou como cozinheiros ecozinheiras, – tendo sido esta última atividadedesempenhada em maior incidência por homens.Assim, analisou-se como homens e mulheres

3 A exemplo das associaçõese sociedades recreativas quedispunham do serviço decasa de pasto e restaurante,bem como os proprietáriosque tiveram seus nomesabreviados; a falta de clarezanesse quesito não permitiuque se soubesse quando setratava de homens oumulheres.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:58315

Page 316: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

“Cozinha especial e comida a qualquer hora”: dos serviços de proprietários ecozinheiros nas casas de pasto, restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)

316 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

exerceram seus papéis e a relação entre comida e gênerotravada nos espaços de comensalidade e sociabilidadesupracitados.

Casas de pastoCasas de pastoCasas de pastoCasas de pastoCasas de pasto

Casa de pasto é o “estabelecimento onde se serve decomer”4. Até a atualidade são poucas as informaçõesobtidas sobre elas, visto que muitas vezes elas seconfundem aos restaurantes, seja pela adoção do termorestaurante como substituto de casa de pasto ou pelaausência de informações mais precisas sobre elas. Segundouma reportagem especial sobre alimentação publicadapela revista O Cruzeiro, a casa de pasto surgiu no Rio deJaneiro ao final de 1700, quando a população localparticipava do entrudo.5

No Paraná, enquanto pioneira na comercializaçãode refeições, num período ligeiramente posterior àemancipação político-administrativa ocorrida em1853, ela inovou quanto ao caráter de suas atividades.Na condição de restaurante barato, cuja comida eraservida ao longo do dia, sita no quadro urbano dacapital paranaense, inseriu uma prática diferenciadaquanto ao preparo, aquisição e realização das refeições.Um dos proprietários desse tipo de estabelecimentofoi Guilherme Gotzen que, à época, disponibilizavaao público “[...] comidas á qualquer hora, com todoasseio necessário e preços razoáveis”.6

Entre 1890 e 1940, as casas de pasto apresentaramcerta diversificação das características e no quesitoalimentação comercializavam comidas boas e fartas,brasileiras e italianas, quentes e frias, além de vinhos, café,chá, leite e doces; no mais algumas ofereciam jogos debilhar como divertimento e quartos para pouso a qualquerhora7.

Essa caracterização pôde ser construída em funçãode três anúncios publicados por seus proprietários nosjornais e periódicos da época, como fora feito pelossenhores Theodoro Stock, Angelo Belotto e Lourenço

4 CASA DE PASTO. In:SÉGUIER, Jaime de.Diccionário Prático Illustrado:novo diccionárioencyclopédico luso-brasileiro. 2. ed. revista.Porto: Lello & Irmão, Ltda.Editores, 1928. 1780 p.; p.844.

5 SANTOS, L. S. A. Culináriaatravés dos tempos. OCruzeiro, n. 65, p. 55-61, 23dez. 1967.

6 O Dezenove de Dezembro ,Curityba, 18 jul. 1855, nãopaginado.

7 Diario do Commercio ,Curityba, 09 jul. 1892, nãopaginado; O Olho da Rua, n.32, não paginado, 11 jul.1908; A Sulina, Curityba, n.3, não paginado, 04 out.1919.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59316

Page 317: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Deborah Agulham Carvalho

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 317

Marcassa – então proprietários de casas de pasto noquadro urbano da cidade; no entanto, dentro desseconjunto de características houve outros trêsestabelecimentos, que devido às informações coletadasem depoimento, complementam-se às fontesimpressas.

O primeiro é o estabelecimento da famíliaStenzoski, no Portão, rocio da capital paranaense; deacordo com Escolástica Stenzoski Zanicoski (donaNena), filha do proprietário João Stenzoski, além deterem sido comercializadas refeições, cujos pratos elachamou de “cozinha simples” - a exemplo do feijão,arroz, carne, salada, batata e café – seu estabelecimentoservia de local de parada para aqueles que saiam dorocio para o quadro urbano de Curitiba.

Quanto aos serviços em sua casa de pasto (emboraesta tivesse sido anunciada como Restaurante NovoMundo) dona Nena afirma que ela funcionou “por muitosanos” e que ao se aposentar, seu pai fechou o restaurante;ela mencionou ter trabalhado muito no estabelecimento,o que se deu até seu casamento. Quando os funcionáriosfaltavam ao trabalho, o serviço era dobrado, visto quenuma época em que não havia água encanada e a cozinhae o fogão eram grandes, fazia-se necessário atender àclientela com esmero8. Próximo a ele, e a algumas quadrasde diferença, estava a casa de pasto de Carlos Petersen.

Dona Zélia Petersen, filha de Carlos Petersen, afirmouque o estabelecimento era modestamente chamado “casade pasto”, local em que sua mãe criou oito filhos. Essacasa era freqüentada pelas pessoas provenientes do Umbará,Tatuquara e Ganchinho (também rocio de Curitiba) quetraziam lenha para vender no quadro urbano da cidade.

Quanto à refeição preparada diariamente paravenda, compunha-se de feijão, arroz, carne feita na panelade ferro (semelhante à posta), picadinho de carne commolho - que os colonos comiam pela manhã, paradepois darem seqüência ao seu destino -, macarrão feitoem casa, salada, cujas hortaliças eram aquelas plantadasno fundo da propriedade ou trazidas pelos colonos.

8 ZANICOSKI, Escolástica S.Entrevista concedida a DeborahAgulham Carvalho. Curitiba,05 fev. 2003.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59317

Page 318: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

“Cozinha especial e comida a qualquer hora”: dos serviços de proprietários ecozinheiros nas casas de pasto, restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)

318 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Enquanto esteve aberta a casa de pasto de CarlosPetersen teve grande movimento, inclusive por contada construção do quartel, cujos funcionárioscostumavam fazer suas refeições nesse estabelecimentoque ficava defronte a esta última construção9.

Já a casa de pasto da família Spessato localizava-se naPraça Generoso Marques e próxima ao Paço Municipal(quadro urbano de Curitiba) e funcionou sob o comandodo proprietário, Florindo Spessato. Dentre os serviços,esse estabelecimento adotara o sistema à la carte no períodode almoço e jantar, servindo macarrão, arroz, sopa, bife,picadinho, posta, peixe, camarão e risoto. Após ofalecimento de seu Florindo, sua esposa, dona Joana, passoua comandar o estabelecimento. No ano seguinte ela veioa falecer e o funcionamento da casa de pasto ficou sob aresponsabilidade de um parente.10

Sobre os papéis exercidos nesses trêsestabelecimentos, faz-se necessário pontuar cada qualseparadamente: é interessante notar como no primeiroexemplo dona Nena, a filha do proprietário, esteve nalida da cozinha do Restaurante Novo Mundo até oseu casamento. Tendo preparado os alimentos quedeveriam ser comercializados pela casa de pasto deseu pai, não se sabe qual a razão dela ter estado àfrente da cozinha e deixado de mencionar aparticipação de outras mulheres da família (como dasirmãs, caso as tivesse, ou da própria mãe).

Quanto ao relato de dona Zélia Petersen, nota-seque na casa de pasto de seu pai a família como umtodo interagia nesse local; ainda que não fique claroquem esteve à frente da cozinha, deduz-se que asatividades nesse estabelecimento contavam com acolaboração de todos os membros da família. Assim,acredita-se que o espaço em que a mãe criou os filhostenha sido a extensão da residência dos Petersen. Sobrea família Spessato, nota-se que a figura da mulher àfrente da casa de pasto se deu após o falecimento doproprietário; é provável que esta tenha sido a alternativapara a manutenção do negócio e do sustento da família

9 PETERSEN, Zélia.Entrevista concedida a DeborahAgulham Carvalho. Curitiba,06 fev. 2003.

10 FERREIRA, Adelina LúciaS. Entrevista concedida aDeborah Agulham Carvalho.Curitiba, 23 jan. 2003.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59318

Page 319: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Deborah Agulham Carvalho

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 319

ainda que nesse caso a esposa não tenha sidomencionada na lida da cozinha.

A partir da análise dos anúncios e dos depoimentosconcedidos pelas filhas de proprietários de casas depasto, nota-se que o detalhamento das atividadesdesempenhadas por homens e mulheres se deu pelosdepoimentos. Os anúncios objetivaram chamar aatenção tão somente para a comida e a bebidacomercializadas, bem como para o horário defuncionamento dos estabelecimentos; já osdepoimentos permitiram que se vislumbrassem ospapéis desempenhados pelos funcionários (ou partedeles) fazendo-se conhecer a dinâmica nessesestabelecimentos.

RestaurantesRestaurantesRestaurantesRestaurantesRestaurantes

No geral, eram ambientes caprichosos,confortáveis e de “primeira ordem”, onde era possívelapreciar saladas, maionese, arroz, perdizes, codornas,bife a cavalo, peixes, camarões, comidas frias e quentes.Além dessas opções, preparavam comidas de caráterregional dentre as quais estavam o vatapá e o caruru,sendo o primeiro um prato que era anunciado nosjornais da época como característico do domingo.

A despeito das atividades desempenhadas porprofissionais qualificados a Gruta Paulista de ManoelAthayde, localizada no edifício do Mercado, preparavacomida brasileira, sendo que o comensal pagava omesmo valor pela refeição do almoço e do jantar; seuhabilidoso cozinheiro que havia trabalhado nosrestaurantes dos hotéis da cidade preparava empadas,pastéis e croquetes11.

Outros restaurantes comercializavam comidaitaliana e pratos das cozinhas brasileira, européia eportuguesa12. Dispunham de “cardápios ao altopaladar” e dentre as bebidas os vinhos, os licores, owhisky, o champanhe, a cerveja e o café compunhamesta categoria. Dentre eles estavam os estabelecimentos

11 Diario da Tarde, Curityba, 04set. 1911, p. 3.

12 Diario do Commercio ,Curityba, 13 jan. 1894, p. 3;Diario do Commercio ,Curityba, 12 jan. 1894, p. 3;Diario do Commercio ,Curityba, 19 mar. 1894, p. 2;Diario do Commercio ,Curityba, 10 fev. 1894, p. 2.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59319

Page 320: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

“Cozinha especial e comida a qualquer hora”: dos serviços de proprietários ecozinheiros nas casas de pasto, restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)

320 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

cujos proprietários eram na maioria homens, como oColombo de Augusto Grohs, a Gruta Azul de SilvioRodrigues Teixeira, o Brasil de Alfredo Giraldi, excetoo Zacharias que pertencia à Albina Holmer, todoslocalizados no Centro de Curitiba.13

Já a sofisticação do estabelecimento também ficavapor conta dos nomes atribuídos aos pratos e serviços,cuja escolha por um vocabulário mais rebuscado davaidéia de conhecimento na área: a exemplo disso haviao restaurante de Antonio Hennel, cuja especialidadeera o preparo de coquetéis gin-fizz14 e bebidas finas;os bifes eram a cavalo e à la tartar15, a qualquer horaque se solicitasse, além dos sanduíches diversificadose disponíveis para escolha de acordo com o gosto dofreguês. 16

Outros restaurantes além de servirem refeições àla carte, entregavam comida em casa, preparavammarmitas e organizavam banquetes e festividadescomo batizados e casamentos. Dentre eles estavam oSportmann de Francisco Stumbo, o Ponto Cariocade Antonio Vitale, o Viennense de Othmar Singer, oElegante de José Fontana, o Itália de Dulcidio Soares,o Fritz de Henrique Bassfel dentre outros.17

Havia os estabelecimentos que aceitavam pensionistase, mais especificamente, procuravam empregarprofissionais da arte culinária e de bem servir: como maîtred’hotel estava o Sr. Fontana que trabalhava com “copeirosaptos para atender ao serviço”, no Sportmann deFrancisco Stumbo. Nesse caso, acredita-se que o quadrode funcionários composto por membros do sexomasculino tenha sido a escolha do proprietário.

Já o Restaurante União de Joaquim Gonçalves daMota tinha como sócio Claro Lourenço dos Santos,que era um conhecido cozinheiro na cidade e tambémreferenciado como cozinheiro-chefe, cujo serviço de copaestava a cargo do Sr. Sertori; nesse restaurante bemdecorado servia-se até às 23 horas comida de altopaladar e boas bebidas que compunham a amplaadega do estabelecimento18.

13 Diario do Commercio ,Curityba, 18 dez. 1893, p. 3;A Cidade, Curityba, n. 276,não paginado, 12 out. 1929;Paraná Mercantil, Curitiba,não paginado, dez. 1939;Paraná Mercantil, Curitiba,não paginado, 1940; Gran-Fina, n. 10, não paginado,26 out. 1940.

14 “Bebidas que servem comotônico e estimulante,prestando-se para levantaras forças depois de grandestarefas. As mais típicas sãopreparadas com ovos (gemaou clara), acrescidos deuísque, gim e outros.”FIZZES. In: ALGRANTI,Márcia. Pequeno dicionário dagula. Rio de Janeiro: Record,2000. 544 p. p. 233.

15 O bife a la tartar, embora apalavra bife designe umpedaço de carne bovinagrelhada, frita ou salteada,o termo tartar se refere àcarne crua. TARTAR. In:Ibid., p. 74; 485.

16 O Miko, Curityba, n. 5, nãopaginado, 07 nov. 1914.

17 Diario da Tarde, Curityba, 25abr. 1899, p. 1; Calendario doParaná para 1912, Curityba,não paginado; Terra dosPinheirais, n. 1, não paginado,ago. 1921; Annuario dosImpostos (Federaes, Estaduaes eMunicipaes), Curityba, nãopaginado, 1928; Almanachdos Municipios, Curityba, nãopaginado, 1930; ParanáMercantil , Curitiba, nãopaginado, 1940.

18 Diario da Tarde, Curityba, 07nov. 1906, p. 3; Diario daTarde, Curityba, 06 dez. 1906,p. 2; Diario da Tarde ,Curityba, 10 dez. 1906, p. 1-2; Diario da Tarde, Curityba,15 jan. 1907, p. 7.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59320

Page 321: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Deborah Agulham Carvalho

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 321

Faz-se necessário apontar que ainda que os serviçosde cozinheiro, copeiro e as atividades de proprietáriospermitam identificar homens e mulheres nessasfunções, isso não ocorre quando se trata do públicofreqüentador. Ainda que os anúncios dosestabelecimentos remetam à sua presença e depensionistas que pagavam mensalmente pelas refeições,não há o que precise se eram homens ou mulheres,bem como outros dados mais específicos.

Educação, cavalheirismo e honestidade doproprietário, sendo essa última característica ligada àsua atividade no preparo da comida, contribuíam parao sucesso do estabelecimento: “[...] É proprietário domesmo o honesto profissional da arte culinária Sr.Alfredo Giraldi, cavalheiro de esmerada educação”.19

No quesito aquisição de funcionários, cuja maioriaera representada por homens, asseio era importante efazia a diferença na hora da admissão. Em anúncio,solicitava-se “[...] um criado limpo para restaurante...”20

e também um chef de cozinha capacitado para realizarsuas funções com maestria na área e conhecimentoseuropeus na arte do bem servir:

Atenção. Querem comer bem? E beber melhor? Podemvisitar o Restaurante Familiar de Silvio Tellini há poucotempo inaugurado na Praça Tiradentes 31. Ondeencontrarão comidas exclusivamente à italiana, com hábilchefe de alta culinária, recém chegado da Europa.21

Diante dos estabelecimentos supracitados nestacategoria é possível perceber que a presença masculinanas atividades da cozinha era recorrente: assim,cozinheiros, maître d’hotel, copeiros, cozinheiros-chefes,criados e chefes de cozinha eram os encarregados nopreparo das refeições. Em função da diversificaçãodos pratos, claro está que um significativo grau deconhecimento nas técnicas e no seu preparo eranecessário não só para executá-los comresponsabilidade, mas também aliar à diversidade de

19 Paraná Mercantil, Curitiba,não paginado, 1940.

20 Diario da Tarde, Curityba, 20dez. 1899, p. 1.

21 O Miko, Curityba, n. 2, nãopaginado, 05 set. 1914.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59321

Page 322: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

“Cozinha especial e comida a qualquer hora”: dos serviços de proprietários ecozinheiros nas casas de pasto, restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)

322 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

itens passíveis de serem solicitados pelos clientes acerteza de que, quando fossem pedidos, seriampreparados corretamente.

Restaurante e barRestaurante e barRestaurante e barRestaurante e barRestaurante e bar

O restaurante e bar, ao trazer ao público os doisserviços, instituiu uma segmentação alimentar, cujaescolha passou a compor grupos e finalidadesdiferenciadas, de acordo com o propósito pelo qualo espaço do estabelecimento era procurado: os itensdo restaurante, como os bifes e os pratos da cozinhabrasileira e européia e os do bar - o aperitivo, os frios,as conservas, as empadas e os pastéis.

O São Paulo Bar de Manoel Athayde, era umrestaurante à la carte e tinha comida a preço fixo. Contavacom a colaboração de dois cozinheiros aptos para essafunção e oferecia serviço rápido, com preços acessíveisem salões adequados para a realização da refeição.

Lá degustava-se ragu de carneiro, vatapá, frangoassado, carne de porco, carneiro, filés, omeletes, peixes,camarões, canja e legumes como pratos do restaurante;os petiscos, as empadas e os pastéis de galinha, palmitoe camarão eram tidos como comidas de bar. Dentreas bebidas havia cervejas, chops, vinhos, conhaques,refrescos de xarope, chá, café, leite e chocolate. Assobremesas não ficavam de fora e dentre elas estavamos sorvetes de fruta, a salada de frutas e os doces.

Caso a idéia da junção de bar ao restaurante ouvice-versa fosse empecilho para uma boa freqüência,seu Manoel alertava seus fregueses quanto à decênciade seu estabelecimento, já que era comandado por elee sua senhora e que por esse motivo não deveria serconfundido com os de freqüência duvidosa.22

O Bar Chic, de Luiz Puglieli & Filhos, procuravachamar a atenção da clientela através da expansão dassuas instalações para o Grande Salão Restaurante.Dispunha de um ótimo cozinheiro francês ecozinheiros “sem rivais”, bem como um copeiro

22 Diario da Tarde, Curityba, 04jan. 1913, p. 4; Diario daTarde, Curityba, 11 jan. 1913,p. 4; Diario da Tarde ,Curityba, 18 jan. 1913, p. 5;Diario da Tarde, Curityba, 05fev. 1913, p. 5; Diario daTarde , Curityba, 11 mar.1913, p. 3; Diario da Tarde,Curityba, 22 mar. 1913, p. 4;Diario da Tarde, Curityba, 19jun. 1913, p. 3.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59322

Page 323: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Deborah Agulham Carvalho

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 323

conhecedor dos idiomas inglês, francês, espanhol,alemão e polonês; preparava pratos das cozinhasfrancesa, espanhola, italiana, além de canja de galinha,sopas, peixe, camarão, pombo, frango, vitela, carneiro,leitão, costeletas de porco e de carneiro, omeletesvariadas, cabrito, coelho, talharim, ravióli, maionese evatapá.

Recebia, diariamente, peixes, camarões e ostras deParanaguá e dispunha de uma adega com bebidas finas.Para sobremesa, frutas secas, doces de confeitaria eem calda. Serviços especializados não eram vistoscomo problema, já que preparavam ceias regadas abebidas finas para particulares23.

É interessante notar que os serviços destacados emanúncio por ambos os estabelecimentos remontam àdiversificação dos pratos. Essa diversificaçãocertamente foi possível pela aquisição de profissionaisespecializados e que aqui, a exemplo dos restaurantes,correspondem à figura masculina, conhecedores dafunção e das técnicas de preparo dos itenssupracitados: no São Paulo Bar isso se deu devido àpresença de dois cozinheiros capazes de desempenharas atividades anunciadas e o Bar Chic pelo fato de quedispunha de um cozinheiro europeu.

Quanto aos serviços e à aquisição de pessoalespecializado, ocorreu um fato peculiar: foi solicitadauma garçonete para trabalhar em bar e restauranteque tivesse experiência na função, a qual deveria seapresentar no estabelecimento sito no Centro da capitalparanaense24. Esse tipo de anúncio não era comumem se tratando da busca por profissionais do sexofeminino para compor o quadro de funcionários dosestabelecimentos, como o caso da garçonete paratrabalhar num bar. No entanto, é válido lembrar quemulheres proprietárias de casas de pasto e restaurantesjá estavam em atividade desde o final do século XIXe a presença feminina nos espaços de comensalidadee sociabilidade no exercício de uma profissão era fato.

Do exposto, observa-se que idéia de bar e da

23 Diario da Tarde, Curityba, 06jan. 1913, p. 3; Diario daTarde, Curityba, 14 jan. 1913,p. 4; Diario da Tarde ,Curityba, 10 abr. 1913, p. 5;Diario da Tarde, Curityba, 12abr. 1913, p. 5; Diario daTarde, Curityba, 22 abr. 1913,p. 4; Diario da Tarde ,Curityba, 14 jun. 1913, p. 5.

24 Diario da Tarde, Curityba, 08nov. 1932, p. 3.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59323

Page 324: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

“Cozinha especial e comida a qualquer hora”: dos serviços de proprietários ecozinheiros nas casas de pasto, restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)

324 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

própria informalidade a qual ele remete estava maisligada à categoria do estabelecimento do que àimplantação de gêneros relativos a ele; isso se observapelos produtos culinários anunciados nos periódicos,que ofertavam uma maior variedade de pratos, numaopção bastante superior aos petiscos. Entretanto, apreocupação com o corpo de funcionários (em suamaioria composto por homens) não ficou de lado e aeles os proprietários vincularam qualidade ediversidade nos serviços. Já a figura feminina foireferenciada bastante timidamente: no primeiromomento no comando do estabelecimento ao ladodo esposo e no segundo através da solicitação dafunção específica de garçonete.

Restaurante e caféRestaurante e caféRestaurante e caféRestaurante e caféRestaurante e café

Ao final do século XIX, os cafés eram espaçospúblicos de sociabilidade, cuja presença masculina eraquase unanimidade; assim, tendo sido locais de encontrodesse grupo, esses estabelecimentos apresentavam umamovimentação constante, visto que eram abertos,principalmente, no quadro urbano da capital paranaense.Embora fossem freqüentados com a finalidade dasociabilidade e do encontro seus proprietários nãodescuraram dos serviços internos, que se aperfeiçoaramgradativamente.

Como parte dessa categoria, o Café e RestauranteDuque dos Abruzzo funcionava dia e noite e forneciacomidas para fora a qualquer hora que se desejasse,entregues pelo encarregado das marmitas. Lá erampreparados talharim com ovos e ravióli e aos domingosa especialidade eram os pratos estrangeiros. Preparavaiguarias finas e pratos especiais e dispunha de vinhositalianos.

O “Duque” de Luiz Pugliele estava apto a receberpensionistas que deveriam pagar por mês para usufruirdesse serviço; aceitava encomendas para casamentos,batizados e outras festividades e contava com o serviço

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59324

Page 325: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Deborah Agulham Carvalho

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 325

de bons empregados como o de “uma perfeitacozinheira” e de “um empregado-conductor dasmarmitas”. Comodidade nos preços, cuidado eorganização nas funções de copa e cozinha eram ascaracterísticas desse café-restaurante25.

No Restaurante Vienna, percebe-se a preocupaçãoquanto à questão da organização do estabelecimento:tendo um adequado serviço de copa ligado àpossibilidade de se realizar refeições sem horários fixos,dispunha de chá, café, leite, chocolate, dentre outrasbebidas especiais26.

De forma mais completa, o Restaurante CaféParaíso agregara ambos os serviços da maneira maisdiversificada e para um grupo mais seleto (conformefora anunciado). Em busca de profissionaisqualificados, esse estabelecimento procurava contar,“necessariamente”, com um cozinheiro “perito” naarte culinária e que fosse dotado de qualidades moraispara trabalhar das sete às 20 horas. Mais tarde, esseestabelecimento procurava por “um ajudante decozinheiro e uma mulher para serviços leves” serviçosos quais alegava pagar bem.27

Quando comparados os serviços desempenhadospelos funcionários do restaurante e café aos dascategorias anteriores, nota-se que a solicitação porprofissionais com funções diversas se deu com ligeiroequilíbrio: ela perpassou por aqueles cuja práticaremetia a três atividades auxiliares (mas não menosimportantes) como a de ajudante de cozinheiro, deempregado para conduzir as marmitas e para aexecução de serviços que não exigissem esforço;dentre essas, a última estava destinada à figurafeminina. Quanto à lida direta no preparo da comidaa “perfeita cozinheira” e o cozinheiro “perito” eramsolicitados. Isso aponta para que em meio àscategorias abordadas sejam percebidas as atividadesque atentaram para determinados profissionais emdetrimento de outros, bem como dentro dessesrecortes se perceba as presenças feminina e masculina

26 O Olho da Rua, Curityba, n.12, não paginado, 21 set.1908.

27 Entende-se que taisexigências se faziamnecessárias, em função doque se procurava servir:geléia de mocotó, vatapá,peru assado, frango au petitpois, peixes, angu à baiana,sopa de tartaruga,macarronada, talharim,como pratos do restaurante;empadas de camarão e“petiscos” diversos, alémde sorvetes de creme, decacau, de morango e deabacaxi, salada de frutas, chop,café, leite quente e geladoe chocolate e outrosrefrescos, como itens docafé. Bombons, caramelose doces foram os produtosrelativos à confeitaria, quefora adicionada aoestabelecimento maisadiante. Diario da Tarde ,Curityba, 11 ago. 1911, p. 3;Diario da Tarde, Curityba, 16set. 1911, p. 2; Diario da Tarde,Curityba, 21 set. 1911, p. 2;Diario da Tarde, Curityba, 07out. 1911, p. 2; Diario daTarde, Curityba, 21 out. 1911,p. 2; Diario da Tarde ,Curityba, 11 nov. 1911, p. 2;Diario da Tarde, Curityba, 25nov. 1911, p. 2.

25 Diario da Tarde, Curityba, 01jan. 1901, p. 3; Diario daTarde, Curityba, 07 jan. 1901,p. 3; Diario da Tarde ,Curityba, 28 maio 1901, p. 3.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59325

Page 326: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

“Cozinha especial e comida a qualquer hora”: dos serviços de proprietários ecozinheiros nas casas de pasto, restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)

326 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

ligadas em maior ou menor incidência às referidascategorias e sua relação com a comida.

Restaurante e hotelRestaurante e hotelRestaurante e hotelRestaurante e hotelRestaurante e hotel

Nesta categoria os proprietários dos hotéisprocuravam oferecer ao público local serviços novose diversificados em termos de acomodação e higiene,itens os quais perpassavam pelo espaço da cozinha edos salões de refeição. Por volta da última década doséculo XIX os estabelecimentos relacionados aorestaurante e hotel se preocupavam quanto à oferta dosserviços de cozinha no almoço e no jantar, donde anoção de “boa mesa” incluía bifes e costeletas, docese bebidas como a cerveja nacional ou importada.28

Contando com a especialidade de um chefcapacitado para a execução das tarefas, alguns hotéisjá lançavam mão de serviços a preço fixo e à la carte.A exemplo disso havia o Hotel do Comércio próximoà Estação da Estrada de Ferro que anunciava “[...]cozinha de 1ª. ordem dirigida por hábil chefe francês,podendo assim satisfazer os mais finos paladares.Pratos do dia. Especialidades em banquetes,casamentos, piqueniques, etc.”29

O conhecimento dos demais serviços a seremdesempenhados no hotel também foi levado em contapor um proprietário que, por dois anos consecutivos,chamava a atenção para a aptidão dos candidatos:“Precisa-se no hotel Paraná de um bom copeiro, deuma boa criada para arrumar quartos e de um ajudantecozinheiro; paga-se bem. Trata-se com o proprietário.Agostinho Leandro” e “No Paraná Hotel. Precisa-sede bom copeiro e um ajudante de cozinheiro. Não sefaz questão de preço desde que sejam conhecedoresdo serviço... Agostinho Leandro”30.

Esse tipo de solicitação por pessoal gabaritadodemonstra o quanto o proprietário esperava que oseu negócio não ficasse à margem dos outros. Assim,prezava pela contratação de funcionários

28 Almanach do Paraná, 1899;Diario da Tarde, Curityba, 19e 20 mar. 1900, p. 5;Almanach Paranaense , nãopaginado, 1900.

29 Diario da Tarde, 22 nov. 1899,p. 3.

30 Diario do Commercio ,Curityba, 02 maio 1892, p.3; Diario do Commercio ,Curityba, 02 jan. 1894, p. 2.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59326

Page 327: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Deborah Agulham Carvalho

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 327

conhecedores da área, cujo retorno a esse investimentoviria pelo aumento da freqüência dos clientes.

Outro estabelecimento concorreu em termos dequalidade nos serviços oferecidos: o LondonRestaurante-Hotel. Além de aceitar encomendas parabanquetes, casamentos, batizados e demais festividades– inclusive a domicílio - servia comida ao longo dodia. E sendo o proprietário de tal estabelecimento,Hyppolito Sentenac, de origem francesa, tal condiçãolhe dava autonomia para ocupar um cargo específico,visto que atuara como um dos primeiros chefs decozinha em hotéis parisienses, londrinos, novaiorquinos e fluminenses31.

O Hotel Tassi foi uma pequena venda localizadana esquina da Avenida Sete de Setembro com a PraçaEufrásio Correia e tinha como freqüentadorescarroceiros e passageiros que desembarcavam naEstação. Nessa época, era costume receber pessoasque pediam pouso no estabelecimento, o que, aospoucos, permitiu que o espaço físico do hotel fosseampliado. De gêneros de rápido preparo, passou acomercializar refeições mais elaboradas e em 1900 foiaberto com nome de Hotel Estrada de Ferro, cujobom movimento nesse estabelecimento se dava pelospratos da cozinha italiana, atentamente supervisionadospor dona Ângela Tassi. Em 1911, após duas reformas,mudou seu nome para Hotel Tassi32 e contava comduas cozinhas,

[...] uma do restaurante e uma pequena, ao lado do salão decafé, apenas para o preparo do desjejum. Por trás de umgrande armário, que funcionava como um biombo, os garçonstransitavam do salão de jantar para a cozinha. Esta possuíaum grande fogão de lenha que ficava no centro e muitas pias.[...]. Junto à cozinha do salão de café havia uma despensa,onde eram armazenados os mantimentos, principalmente asmarmeladas, compotas de pêras e pêssegos, molhos de tomateselaborados do plantio da chácara Tassi no Cabral. No porãoarmazenava-se o vinho que chegava da Europa em pipas e

31 Diario do Commercio ,Curityba, 25 jan. 1894, p. 4.

32 Diario da Tarde, Curityba, 19set. 1911, p. 2.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59327

Page 328: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

“Cozinha especial e comida a qualquer hora”: dos serviços de proprietários ecozinheiros nas casas de pasto, restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)

328 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

que era engarrafado, lacrado e etiquetado no próprio hotel.Colocavam uma etiqueta suplementar ao lado do rótulo comos dizeres: “engarrafado por Ângelo Tassi”. 33

Nota-se pela citação acima a existência de todoum processo de organização do estabelecimento, nosentido de não apenas melhor atender os fregueses,mas facilitar as atividades internas do hotel; nessesentido, dispor de espaços funcionais, bem comoproduzir frutas e verduras que eram consumidas nolocal, aliados a um grupo de funcionários capacitados,que nessa citação correspondem aos garçons, fazia-senecessário para que se atraísse a clientela.

Já os demais estabelecimentos como o Hotel doComércio e o London Restaurante-Hotel tinham emcomum a experiência de ter no espaço da cozinhachefs cuja experiência no preparo da comida se dera naFrança. O Hotel Paraná chamava a atenção para anecessidade de integrar em seu quadro de funcionáriosum copeiro e um ajudante de cozinheiro (emmomentos distintos); já a figura feminina, na qualidadede criada, não se encontrava ligada à cozinha doestabelecimento.

Restaurante e pensãoRestaurante e pensãoRestaurante e pensãoRestaurante e pensãoRestaurante e pensão

Esta categoria não se diferenciou das anteriormentetratadas se analisada pelo espaço e serviço de cozinha,pois contemplou as comidas frias, os petiscos finos,as carnes de peixe, camarão e frango e talharins, alémde pratos mais genéricos, dentre os quais os dascozinhas brasileira, italiana e portuguesa, servidos noalmoço e jantar; as bebidas eram nacionais eimportadas e transitavam do café ao champanhe.

Preocupado em diferenciar o cardápio dedomingo dos demais dias da semana, foi que oproprietário e cozinheiro Claro Lourenço dos Santosse organizou para preparar vatapá, dentre outrasvariedades, nesse mesmo dia e aceitava pensionistas

33 TEIXEIRA, E. T. Hotel Tassi:o antigo hotel da estação.Curitiba: FundaçãoCultural de Curitiba, 1991.178 p.; p. 24; 126.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59328

Page 329: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Deborah Agulham Carvalho

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 329

para o salão de refeições de sua Pensão Progresso.Seu estabelecimento contava com quartos confortáveis,luz elétrica, banhos quentes e frios a preços acessíveispara bem acomodar famílias e viajantes34.

Já o proprietário da Pensão Democrata, sita à Ruado Rosário, procurava investir em funcionários bemcapacitados para trabalhar na cozinha do estabelecimento:ele solicitara em anúncio “um hábil cozinheiro, umajudante e uma mulher para pequeno serviço de cozinha”,tendo em vista que preparava comidas variadas e petiscos,regados a vinhos e bebidas de boa procedência. Parachamar a atenção da clientela, valia à pena, inclusive, apostarno diferencial: assim, para o freguês que consumisse maisde um mil réis era dada de brinde uma entrada para ocinematógrafo Central Park35.

Sobre pensões e seus respectivos restaurantes, arevista Calendário do Paraná tão somente as relacionarae, nesse caso, atentou para aquelas que exclusivamenteforneciam comidas: dentre elas duas eram pertencentesa mulheres, quatro a homens e uma não há identificaçãodo proprietário ou da proprietária36.

Nota-se que a especificação desse tipo de serviçopelos estabelecimentos passou a ser informação decerta relevância, já que alguns locais tidos como pensãopassaram a trazer à tona a venda de comidas comoum ponto significativo; nesse sentido, a procura poraquele serviço e o conhecimento prévio dosestabelecimentos que dele se ocupavam, seria facilitadorpara os futuros fregueses e para o comerciante quetinha melhor detalhadas as suas atividades.

Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

Do exposto, caracterizar casa de pasto, restaurante,restaurante e bar, restaurante, café e hotel, restaurante e hotel erestaurante e pensão, sem perder de vista os anúnciosque serviram de amostragem para o seuenquadramento em cada categoria, significa pensaresses estabelecimentos a partir dos sabores e das

35 Diario da Tarde, Curityba, 30abr. 1907, p. 2.

36 Calendário do Paraná para1912 , Curityba, p. 304;Calendário do Paraná, Coritiba,ano IV-V, p. 291, 1915-1916.

34 Caras e Carrancas, Curityba,n. 6, p. 3, 31 out. 1902; Diarioda Tarde, Curityba, 14 out.1911, p. 2; Paraná Mercantil,Curitiba, não paginado,1940.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59329

Page 330: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

“Cozinha especial e comida a qualquer hora”: dos serviços de proprietários ecozinheiros nas casas de pasto, restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)

330 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

atividades que perpassaram pelo espaço da cozinha,serviços e funcionários, conforme foi abordado.

O discurso dos anúncios das casas de pasto, secomparado aos reclames selecionados paraamostragem nas demais categorias, aponta que adiferença entre casas de pasto e os demaisestabelecimentos se dera pela comida: assim, sendo acasa de pasto o estabelecimento cuja comida eracomum, o que fazia a diferença era a diversidade depratos, ainda que as opções fossem mais simples.

No entanto, as demais categorias deestabelecimentos mostram que não só a variedade depratos era necessária para driblar a concorrência, masdispor de funcionários hábeis que fizessem a diferençana hora de executar sua tarefa e, assim, atrair a clientela.Nesse sentido, é provável que as experiências européiasanunciadas a despeito do preparo das refeições nosrestaurantes e afins, tenham sido adquiridas noambiente familiar. Isso se justifica, pois, no Paraná, osimigrantes se instalaram com maior incidência já noprimeiro ano de governo do Presidente de ProvínciaLamenha Lins (1875-1877), com o intuito de geraruma agricultura de abastecimento; em Curitiba, alemães,italianos, poloneses e ucranianos, por exemplo, deramnão apenas uma nova feição à sociedade local, mastambém atuaram nesse espaço, na qualidade decomerciantes – inclusive como proprietários de casasde pasto, restaurantes e afins.

Sobre os funcionários como um todo é importanteressaltar que, dentro de cada categoria, houve apreocupação dos proprietários quanto à escolha porprofissionais que pudessem dar conta do serviço nosestabelecimentos: daí se observa a atuação decozinheiros, chefs, copeiros e ajudantes cozinheiros, cujarepresentatividade se deu em maior grau por homens.

Não se sabe se diante dos anúncios que requisitavamcopeiros e cozinheiros, algumas mulheres quedesempenhavam essas mesmas funções chegaram ase candidatar às atividades demandadas pelos

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59330

Page 331: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Deborah Agulham Carvalho

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 331

proprietários, a ponto de serem contabilizadas comoparte do quadro de funcionários que trabalhavamdiretamente com a comida. Entretanto, conformemencionado, a presença feminina no comando dessesestabelecimentos era recorrente, visto que 35 mulheresexerceram as mesmas atividades que os 177 homenscomo proprietários dos estabelecimentos, no recortede 1890 e 1940.

Quanto à figura feminina, viu-se que ela perpassoupor todas as categorias. Na qualidade de proprietáriaAlbina Holmer surge como anunciante do seurestaurante no quadro urbano da cidade em um únicomomento; no entanto, ela não faz menção a qualqueratividade especializada ligada à cozinha em seuestabelecimento, fosse ela desempenhada por homensou mulheres.

Dentre os profissionais incumbidos da realizaçãodas comemorações de batizados e casamentos, nãose sabe se em maior número homens ou mulheresestiveram à frente do preparo da comida para essasfestividades, lacuna esta que também recai sobre o e aprofissional que cuidava das marmitas.

Por fim, percebe-se que a presença feminina nessesespaços de comensalidade foi mais visível na qualidadede proprietárias e em menor grau quando exerciamoutras atividades no estabelecimento: isso atenta paraa questão da relação entre a mulher e a feitura dacomida no espaço da casa como uma atividade própriada sua natureza e essa mesma relação exercida pelohomem nos estabelecimentos de comensalidade que,neste caso remete à profissionalização.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

CARVALHO, Deborah Agulham. Das casas de pasto aos restaurantes:os sabores da velha Curitiba (1890-1940). Curitiba, 2005.Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de CiênciasHumanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59331

Page 332: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

“Cozinha especial e comida a qualquer hora”: dos serviços de proprietários ecozinheiros nas casas de pasto, restaurantes e afins (Curitiba, 1890-1940)

332 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

CASA DE PASTO. In: SÉGUIER, Jaime de. Diccionário PráticoIllustrado: novo diccionário encyclopédico luso-brasileiro. 2. ed.revista. Porto: Lello & Irmão, Ltda. Editores, 1928. 1780 p.; p.844.

SANTOS, L. S. A. Culinária através dos tempos. O Cruzeiro, n.65, p. 55-61, 23 dez. 1967.

ALGRANTI, Márcia. Pequeno dicionário da gula. Rio de Janeiro:Record, 2000. 544 p.; p. 223; 332; 485.

RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. In: DELPRIORE, Mary. (Org.). História das mulheres no Brasil. 2. ed. SãoPaulo: Contexto, 1997. 678 p.; p. 578-606; p. 590.

TEIXEIRA, E. T. Hotel Tassi: o antigo hotel da estação. Curitiba:Fundação Cultural de Curitiba, 1991. 178 p.; p. 24; 126.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59332

Page 333: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 333

PPPPPara não se perder:ara não se perder:ara não se perder:ara não se perder:ara não se perder:a broa invertendo papéisa broa invertendo papéisa broa invertendo papéisa broa invertendo papéisa broa invertendo papéis11111

Juliana C. ReinhardtVictor Augustus G. Silva

Resumo: Este trabalho apresenta aspectos da broa de centeio,hoje patrimônio imaterial da cidade de Curitiba, o que permitepensar em mudanças nos papéis sociais de homens emulheres a partir de suas relações com os saberes e práticasalimentares.

Palavras-Chave: Tradição Culinária. Identidade. Memória.

Abstract: This research is about aspects of ‘Broa de Centeio’that is currently considered as Curitiba’s patrimony. That allowsus to think of changes on the social roles of men and thewomen because of their relationship with knowledge andfood habits.

Keywords: Cuisine Tradition. Identity. Memory.

1 Texto recebido: 08/06/2008.Texto aprovado: 30/07/2008.

Juliana C. Reinhardt, Professora do Curso de Nutrição das FaculdadesIntegradas (Espírita) – FIES, Mestre e Doutora em História pelaUFPR. [email protected] Augustus G. Silva, Historiador, Mestre em História pela [email protected]

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59333

Page 334: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Para não se perder: a broa invertendo papéis

334 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Em julho de 2007, alguns projetos de pesquisaforam aprovados e financiados pela Fundação Culturalde Curitiba para identificação, registro e divulgaçãode bens culturais de natureza imaterial, representativosda diversidade cultural e social da cidade. Nossoprojeto buscou apresentar a broa de centeio comoPatrimônio Imaterial de Curitiba, produto de umaatividade desenvolvida por atores sociais,conhecedores de técnicas e ou de matérias primas queidentificam a comunidade local.2

Neste artigo apresentaremos a broa de centeiocomo patrimônio imaterial de Curitiba. Em umprimeiro momento, mostramos o caminho trilhadopara defender a broa de centeio como patrimônio.Logo após, tecemos uma breve discussão da relaçãocomida e identidade, dos significados do pão e da memória ehistória. A partir de então, apresentamos algunsaspectos levantados pelo trabalho que apontam parauma reflexão sobre papéis sociais de homens emulheres a partir da cozinha e das práticas e saberesque ela envolve. É importante esclarecer que este artigoapresenta um “diagnóstico atual” dos saberes e práticasalimentares ligados à broa de centeio e inovações dosmesmos, suscitando futuras discussões.

A broa de centeio como patrimônio imaterialA broa de centeio como patrimônio imaterialA broa de centeio como patrimônio imaterialA broa de centeio como patrimônio imaterialA broa de centeio como patrimônio imaterial

Hábito alimentar que, para muitos curitibanos,constitui-se tradição culinária3, a broa de centeio foitrazida pelos imigrantes europeus que se estabeleceramno Brasil, mais especificamente no Sul, e este elementocultural foi repassado aos seus descendentes.

A defesa da broa de centeio como patrimônioimaterial de Curitiba iniciou-se em 2000. PatrimônioCultural Intangível ou Imaterial compreende asexpressões de vida e tradições que comunidades,grupos e indivíduos em todas as partes do mundorecebem de seus ancestrais e passam a seusdescendentes. Apesar de tentar manter um senso de

2 Como resultado dotrabalho, produzimos umdocumentário sobre a broade centeio em Curitiba,denominado “A broa nossade cada dia”

3 Existem diferenças entrehábito alimentar e tradiçãoculinária. O hábitoalimentar ocorre porpraticidade, envolto nacultura de cada indivíduo.A tradição culináriaacontece por umsignificado simbólicopodendo estar deslocadade seu “ambiente original”,seja ele espacial outemporal, cercada de rituais.Sobre tradições e costumesver HOBSBAWM, E. ;RANGER, Terence (Org.).A invenção das tradições. 2. ed.Rio de Janeiro: Imago, 1997,p. 11. Sobre hábitosalimentares e tradiçõesculinárias verREINHARDT, JulianaCristina. O pão nosso de cadadia: a Padaria América e opão das geraçõescuritibanas. Curitiba, 2002.Dissertação (Mestrado emHistória). Setor de CiênciasSociais, Letras e Artes daUniversidade Federal doParaná.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59334

Page 335: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Juliana C. Reinhardt, Victor Augustus G. Silva

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 335

identidade e continuidade, este patrimônio éparticularmente vulnerável uma vez que está emconstante mutação e multiplicação de seus portadores.Por esta razão, a comunidade internacional (UNESCO)adotou a Convenção para a Salvaguarda do PatrimônioCultural Intangível em 2003.4

Elaboramos o projeto para defesa da broa decenteio a partir de duas pesquisas realizadas pelaproponente do projeto: uma de mestrado e outra dedoutorado.

Na dissertação de mestrado5 desenvolvemos umtrabalho sobre a padaria mais antiga de Curitiba, ematividade – a Padaria América – quando buscamosentender a tradição de se fazer e se comprar seu pão,a broa de centeio. Fundada em 1913, por EduardoEngelhardt, filho de um imigrante alemão, semprepertenceu e foi administrada por um membro dafamília do fundador e também a elaboração de suasreceitas sempre permaneceu sob responsabilidade dafamília: o “padeiro-mestre” sempre foi um Engelhardt.Suas receitas foram repassadas de pai para filho,permanecendo a elaboração das mesmas nas mãosda família.

Esta padaria tem, na maior parte de seus clientes,descendentes de imigrantes europeus, predominandoos descendentes de alemães, seguidos dos polonesese ucranianos. O comprar o pão nesta padaria tambémfoi repassado de pai para filho. Os clientes de hoje sãoos filhos e netos dos clientes de ontem.

Em nossa pesquisa demonstramos que aimportância hoje deste estabelecimento em Curitiba esua permanência há 95 anos no mercado se deve aofato da manutenção da tradição de se fazer, se comprare se comer a broa de centeio. Dentre os objetivos dapesquisa realizada procuramos saber o que leva umadeterminada clientela a continuar freqüentando estapadaria, transmitindo esta tradição culinária a seusfilhos e netos e qual o significado deste pão – a broade centeio – para os clientes “tradicionais” da padaria,

4 De acordo com o relatórioda Convenção paraSalvaguarda do PatrimônioCultural Imaterial(UNESCO, 2003), entende-se por “patrimônio culturalimaterial” as práticas,representações, expressões,conhecimentos e técnicas- junto com osinstrumentos, objetos,artefatos e lugares culturaisque lhes são associados -que as comunidades, osgrupos e, em alguns casos,os indivíduos reconhecemcomo parte integrante deseu patrimônio cultural.Este patrimônio culturalimaterial, que se transmitede geração em geração, éconstantemente recriadopelas comunidades egrupos em função de seuambiente, de sua interaçãocom a natureza e de suahistória, gerando umsentimento de identidadee continuidade econtribuindo assim parapromover o respeito àdiversidade cultural e àcriatividade humana. (http:// u n e s d o c . u n e s c o. o r g /i m a g e s / 0 0 1 3 / 0 0 1 3 2 5 /132540POR.pdf - acessoem 24 de outubro de 2008.)

5 REINHARDT, JulianaCristina. O pão nosso de cadadia: a Padaria América e opão das geraçõescuritibanas. Curitiba, 2002.Dissertação (Mestrado emHistória). Setor de CiênciasSociais, Letras e Artes daUniversidade Federal doParaná.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59335

Page 336: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Para não se perder: a broa invertendo papéis

336 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

ou seja, para a população curitibana descendente deimigrantes europeus.

Buscamos entender o que levou esta padariaartesanal a continuar no mercado. Isto porque, hoje,podemos observar que o mundo artesanal dospadeiros e dos doceiros é atropelado com a chegadada cozinha industrial, pois a padronização é umacondição do fast-food, refeição rápida.6 Com estatendência, várias pequenas casas comerciais começarama declinar. Muitos não produzem mais seus própriosprodutos: os pães e doces que muitas padarias vendemsão produzidos em larga escala por outrosestabelecimentos e distribuídos a padarias esupermercados. Por isso a importância do estudo dapermanência dos estabelecimentos tradicionais e suastradições culinárias.

Nesta padaria, o “pão francês”, o pão tradicionaldos dias de hoje para a maioria dos brasileiros, éproduzido em pouca quantidade por não ter quasesaída. O “carro-chefe”, o pão mais vendido, é a broade centeio, que era chamada “o pão do colonoalemão”. Através da pesquisa de mestrado realizadadescobrimos que, por trás da busca desta clientela pordeterminado pão, existem motivos singulares. Não éapenas a aquisição de um pão qualquer, mas um pãoque traz significados. Quando perguntamos para osclientes7 se trocariam a broa de centeio por outro pão,obtivemos respostas semelhantes. Hizir responde: “Dejeito nenhum ... Trocar? Por outro? Não!! Porque é omais gostoso que tem em Curitiba... E faz parte daminha história também ...” 8. Aline também afirma:“Não ... Comer esta broa faz eu lembrar da minhainfância ...” 9. Petra diz: “ Ela [a broa] tem significado...Lembra um pouco o tradicionalismo de Curitiba ...Raízes ... Porque a gente tem que ter raízes em algumlugar, né?”10

Isto ocorre porque a comida pode nos revelarmuito mais que nutrientes – lipídeos, proteínas,carboidratos. A comida é o reflexo da organização

6 ORTIZ, R. Cultura emodernidade-mundo. In:______. Mundialização eCultura . São Paulo:Brasiliense, 1994, p. 74 -87.

7 Os clientes entrevistadosforam os descendentes deimigrantes europeus, osconsiderados pela famíliaEngelhardt comopertencentes à clientela fiel,tradicional da padaria:alemães, poloneses,ucranianos.

8 BAKOVIS, Hizir.ENTREVISTA, abril de2002 . (Descendenteucraniano, 52 anos)

9 BOUTIN, Aline.ENTREVISTA, maio de2002. (Descendente alemã,35 anos)

10 MAKAROV, Petra.ENTREVISTA, abril de2002. (Descendenteaustríaca, 60 anos)

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59336

Page 337: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Juliana C. Reinhardt, Victor Augustus G. Silva

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 337

social, onde os indivíduos elegem o que comer,quando, como, onde e com quem, dependendo deinúmeros fatores, como crenças, valores sociais,cultura, costumes, etc.11 A comida, então, é um doselementos que formam e que expressam nossaidentidade cultural, social, regional ou étnica.

Diante dos resultados da pesquisa mencionada, queapontou a broa de centeio um bem cultural de umaparcela da sociedade curitibana, seu fazer e seu comertransmitidos de geração para geração fazendo comque despertasse tantos significados às pessoas que aconsomem, defendemos a broa de centeio comopatrimônio cultural imaterial de Curitiba.

Se a broa de centeio de uma padaria específica, aPadaria América, tem significado de história ememória para muitos curitibanos – os clientes dapadaria – teria a broa de centeio significado similarpara aqueles descendentes de imigrantes que tambéma consomem, porém a preparam em casa ou aadquirem em outros lugares? Pensamos que sim.

Em outra pesquisa realizada, de doutorado, sobretradições culinárias de descendentes de alemães12,percebemos que o comer e o fazer a broa de centeioé uma tradição culinária que não está ligada apenas àPadaria América, mas que ultrapassa estabelecimentos.De todas as tradições culinárias relatadas pelosdepoentes, o comer a broa de centeio foi a tradiçãoque esteve presente nas falas de todos os entrevistados.E não só o comer, mas também o fazer a broa aindaestá presente na casa de muitas senhoras alemãs.Tradição esta também recebida de seus pais e avós e,agora, repassada aos filhos e filhas, netos e netas.

O pão consumido por todas as pessoasentrevistadas no dia-a-dia é a broa de centeio. Quandonão conseguem fazer a broa em casa, compram nosestabelecimentos de confiança.

Para estas pessoas, a população-alvo das duaspesquisas referidas, a manutenção de tradiçõesculinárias se torna importante por estas tradições

11 DA MATTA, R. Sobre osimbolismo da comida noBrasil. O Correio (Unesco). Riode janeiro, v. 15, n.7, p. 22,julho de 1987.

12 REINHARDT, JulianaCristina. Dize-me o que comese te direi quem és: alemães,comida e identidade,Curitiba, 2007. Tese(Doutorado em História).Setor de Ciências Sociais,Letras e Artes daUniversidade Federal doParaná.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59337

Page 338: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Para não se perder: a broa invertendo papéis

338 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

trazerem memória, história, identidade. A fala de umadelas resume o que estas sentem: “Claro que eumantenho minhas tradições! Por que a tradição é acultura de um povo...”13

Podemos perceber também este sentimento deidentidade e conforto que certas comidas podem nostrazer na fala de outra depoente, quando esta nos relataa respeito de sua chegada com a mãe à Curitiba, depoisde uma viagem longa fora da cidade: “Chegamosmuito cansadas, fuso horário... nós arrebentadas! Aprimeira coisa que mamãe falou quando entramos emcasa: ‘você vai buscar minha broa’?”

Outro exemplo, quem nos dá é Alfonso, dono daPadaria América, contando sobre um cliente que morano interior de São Paulo e ainda liga pedindo paraeles despacharem as broas para sua mais nova cidade.Ele também nos conta sobre outra senhora que semudou para Salvador, nascida e criada em Curitiba,infância regada à broas. Pediu uma receita de broa decenteio para fazer em Salvador, pois, segundo ela, lánão tem broas, só pãezinhos d’água, o que para ela émuito ruim, “ela diz que não se acostuma...”. Depoisde receber a receita, diz que quando faz sua broa,mesmo estando longe, acaba se sentindo novamenteem Curitiba.

Na verdade, nossa pesquisa de mestrado tambémnos mostrou que a Padaria América hoje tem umaimportância grande na cidade não só para osdescendentes de imigrantes, mas representa um papelimportante como difusora de um hábito alimentar,pois devido à tradição mantida e representada pelabroa de centeio, outros curitibanos14 também aprocuram em busca desta tradição culinária,reinventando e sincretizando as suas próprias tradições.A cultura é dinâmica.

Concluímos que o comer a broa de centeioatravessa as casas de muitos curitibanos, apresentandomuitos significados: memória, identidade, história paraalguns; inclusão, inserção regional, para outros: “...uma

13 SEYER, Martha.ENTREVISTA. Maio de2006.

14 Entendemos aqui comocuritibanos tanto aquelesnascidos na capitalparanaense como aquelesque adotaram esta cidadecomo sua.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59338

Page 339: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Juliana C. Reinhardt, Victor Augustus G. Silva

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 339

broa que eu vejo que tudo que é curitibano come...Agora que moro aqui, que sou curitibano também(risos), também como, né! “15 Hoje, os curitibanos,descendentes de europeus ou não, buscam a broa decenteio por toda a história de Curitiba que elarepresenta.

Comida e identidadeComida e identidadeComida e identidadeComida e identidadeComida e identidade

Se você identifica determinada preparação comosignificante, é porque você pertence ao grupo que areconhece como tal. Quando falamos em preparaçõesque têm um significado a nível nacional, não podemosdeixar de falar do feijão com arroz, combinação quefaz parte e que define o dia-a-dia do brasileiro. Sepensarmos em um prato do cotidiano brasileiro,diremos que é o feijão com arroz.

Esta combinação, o “feijão-com-arroz” se constituicomo a comida básica do brasileiro e o prato que ounifica. Este prato define a sociedade brasileira, poiscombina o sólido com o líquido, o branco com onegro, resultando numa combinação que gera umprato de síntese, que representa um estilo brasileiro decomer. Uma culinária relacional que, por sua vez,expressa uma sociedade relacional, isto é, um sistemaonde as relações são mais que mero resultado de ações,desejos e encontros individuais. Elas se constituem emverdadeiros sujeitos das situações16.

Ainda falando destes ingredientes básicos,colocamos a feijoada como “prato típico nacional”.Quando temos a visita de algum estrangeiro equeremos apresentar alguma comida própria daqui,mostrando que somos brasileiros, é certo oferecermosa ele a feijoada. Esta é uma forma de mostrar,consciente ou inconscientemente o nosso sentimentode pertença.

Se pensarmos em comidas que expressam umaidentidade regional, existem determinadas preparações,que, por si só, já nos remetem ao lugar de origem: o

15 Conversa informal com umpaulista afro descendente,que está morando na capitalhá 15 anos.

16 DA MATTA. Sobre osimbolismo da comida noBrasil. O Correio (Unesco).Rio de janeiro, v. 15, n.7, p.22, julho de 1987.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59339

Page 340: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Para não se perder: a broa invertendo papéis

340 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

acarajé à Bahia; o pão de queijo à Minas Gerais; oarroz com pequi à Goiás; o churrasco ao Rio Grandedo Sul17; o barreado ao litoral paranaense. Referindo-nos apenas ao Estado do Paraná, existem “tradiçõesinventadas” que se transformaram no chamariz defestas turísticas, nos fazendo também associar a comidaao lugar, como o porco no rolete de Toledo, o boino rolete de Marechal Cândido Rondon18, o carneirono buraco de Campo Mourão.

Algumas comidas hoje são consideradas patrimôniocultural imaterial de suas regiões, pois esses bens culturaisculinários são capazes de substituir qualquer outraimagem com enorme força, identificando o local deorigem. São os emblemas, de que fala MACIEL,figuras simbólicas destinadas a representar um grupo,que fazem parte de um discurso que expressa umacoletividade e, assim, uma identidade19.

Acreditamos que a tradição culinária é o vínculomais duradouro que o indivíduo tem com seu lugarde origem. As roupas, a música, a língua, por maisque permaneçam por anos, são elementos que, emalgum momento, são deixados para trás. Porém, acomida, de uma maneira ou de outra, acaba por semanter presente20. Por isso, mais cedo ou mais tarde,o indivíduo ou seu grupo utiliza a comida comodiferencial entre ele e os outros.

Dentro da perspectiva que o ato de comer atualizaestados emocionais e identidades sociais e entendendoque bens culturais culinários são capazes de substituirqualquer outra imagem com enorme força,identificando o local de origem e/ ou algum gruposocial, pretendemos pensar em mudanças nos papéissociais de homens e mulheres a partir de suas relaçõescom os saberes e práticas alimentares.

O “pão nosso de cada dia” – o pão e seus significadosO “pão nosso de cada dia” – o pão e seus significadosO “pão nosso de cada dia” – o pão e seus significadosO “pão nosso de cada dia” – o pão e seus significadosO “pão nosso de cada dia” – o pão e seus significados

Se, de todos os elementos culturais diferenciadores,a comida é o bem que tende a se manter presente, o

17 No artigo Churrasco àgaúcha, Maria EuniceMaciel analisa o churrascoenquanto prato emblemá-tico do Rio Grande do Sule enquanto um ritual decomensalidade; uma práticacultural significativa para asociedade riograndenseque expressa julgamentos evalores bem como formasde sociabilidade e deorganização grupal.MACIEL, Maria Eunice.Churrasco à gaúcha. In:Horizontes Antropológicos.Porto Alegre: PPGAS, 1995,ano 2,n. 4, p. 34-48.

18 Sobre o surgimento desteprato e sua festa gastronô-mica ver SCHNEIDER,Claídes Rejane. Do cru aoassado: a festa do boi norolete de MarechalCândido Rondon. Curitiba,2002. Dissertação (Mestradoem História). – Setor deCiências Humanas, Letras eArtes, Universidade Federaldo Paraná.

19 Maciel, Maria Eunice. Iden-tidade cultural e alimenta-ção. In: CANESQUI, AnaMaria; GARCIA, RosaWanda Diez. (Org.)Antropologia e Nutrição: umdiálogo possível. Rio deJaneiro: Editora Fiocruz,2005. p. 49-56.

20 No caso de nossa pesquisade doutorado, com relaçãoà língua alemã, porexemplo, observamos queela não é mais um elementoutilizado como diferencia-dor entre os filhos denossos entrevistados(poucos são os que ainda aconservam). Mas a comidaestá presente no cotidianode todos, principalmentena figura da broa de centeio.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59340

Page 341: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Juliana C. Reinhardt, Victor Augustus G. Silva

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 341

vínculo mais duradouro com seu lugar de origem, detodas as tradições culinárias, a mais duradoura, é oconsumo do pão.

No grupo estudado, os traços culturais quediferenciam este grupo dos outros grupos étnicos sãoalgumas tradições culinárias. Porém, dentre estas, o quese mantém entre os filhos e netos é o consumo de umpão: a broa de centeio.21

O pão é o alimento mais difundido e conhecidode todos os tempos. Em quase toda a trajetória dahumanidade o pão está presente. É o alimento docorpo e da alma. Santo, sagrado, não pode serdesperdiçado. Símbolo do alimento como um todoe do trabalho, não pode nos faltar: “o pão nosso decada dia nos dai hoje”. Quando Jesus Cristo reuniuseus apóstolos para então se despedir, celebrou comuma ceia, onde o pão foi dado como seu “corpo” equem comesse deste “ pão” viveria eternamente - oPão da Vida.

Através da comida também podemos definirclasses sociais e econômicas, grupos étnicos, religiosos,como já comentamos. Esta característica se dátambém com o pão. Na Europa, no século XVIII, opão dos ricos era distinto do pão dos pobres. O dospobres era o “pão preto”, feito com farinhaconsiderada na época de menor qualidade, por sermais integral e misturada com farinhas de outros cereaisconsiderados menos nobres: cevada, centeio, aveia. Odos ricos era o pão branco, fofo, produzido comfarinha branca, refinada, bem peneirada e pura. O“pão preto” constituía o essencial da alimentaçãocamponesa e foi este hábito alimentar que osimigrantes europeus trouxeram para o Brasil e quehoje permanece como tradição culinária para seusdescendentes.

A expansão das padarias nos centros urbanosocorre no final do século XIX, e isto se dá pelo iníciode um novo costume, o de comprar o pão nas padarias,pois antes a produção do pão era somente caseira.

21 Perante o quadro que amodernidade (ou pós-modernidade?) nos impõe,de muito trabalho, de ummodo de viver onde nãocabe mais a demora, ondeo tempo nos pareceescasso, quandoprocuramos tudo que possaotimizar este tempo, istotambém tem reflexo sobrea comida. Algumaspreparações maisdemoradas vão ser deixadaspara momentos especiais. Oque tende a estar maispresente é aquilo quetambém é consumido maisfreqüentemente e quepode ser encontrado maisfacilmente.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59341

Page 342: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Para não se perder: a broa invertendo papéis

342 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

De acordo com PEREIRA: “No último quartel doséculo XIX, o hábito de comprar pães e broas naspadarias já era generalizado. O pão passou a ser vistocomo um alimento ‘indispensável a todas as classes’”e as padarias eram quase todas pertencentes a imigrantesou descendentes alemães.22 Segundo Carlos RobertoAntunes dos SANTOS, o pão então, passou aconstituir-se como alimento indispensável ao conjuntoda população.23

Nestor Vitor dos SANTOS também menciona emsua obra a origem dos donos de padarias em Curitibano início do século XX: “Até à gente mais pobre erafácil prover-se de pão à vontade, porque já seintroduzia na alimentação nacional a enorme e baratabrôa de centeio, fabricada nas padarias allemãs.”24

Entendemos que a manutenção e o resgate detradições culinárias é importante para o processo deinserção na sociedade, isto porque a comida tem opapel de veiculadora de identidades, o que contribuipara o processo de inclusão social. À medida que sãoresgatadas práticas e tradições culinárias, que, segundoM. POLLACK25 são um dos quadros de referênciaque estruturam nossa memória, há todo um processode renovação e reelaboração de identidade, fazendocom que as pessoas sintam-se inseridas em determinadogrupo social, étnico, cultural. Identidade como umpertencimento partilhado, como laço social; o que uneo indivíduo à coletividade, contribuindo para oprocesso ideológico e de inclusão, com a memóriasendo um componente fundamental deste laço social,pois existe uma partilha destes mesmos acontecimentos.Desta forma há o resgate de uma história individual,que também é uma história coletiva, através damemória despertada por um bem cultural, umatradição culinária, no caso, a broa de centeio.

Memória e HistóriaMemória e HistóriaMemória e HistóriaMemória e HistóriaMemória e História

Através da história oral (entrevistas), reconstruimos

22 PEREIRA, M. R. de M.Semeando iras rumo ao progresso.UFPR, 1996, p. 39.

23 SANTOS, C. R. A. dos.História da Alimentação noParaná. Curitiba: FundaçãoCultural, 1995.

24 SANTOS, N. V. A terra dofuturo – impressões doParaná. Rio de Janeiro: Typ.do Jornal do Commercio,de Rodrigues & C, 1913, p.107.

25 POLLAK, M. Memória,esquecimento, silêncio.Estudos Históricos . Rio deJaneiro, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59342

Page 343: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Juliana C. Reinhardt, Victor Augustus G. Silva

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 343

memórias de curitibanos consumidores da broa decenteio, descendentes de alemães e de outras etnias,para demonstrar que este é um dos bens culturais deCuritiba que foi construído historicamente, ou seja,faz parte e é reflexo da História de Curitiba. Se paraos mineiros “broa” é sinônimo de broa de milho, aquiem Curitiba, “broa” é broa de centeio.

Seu fazer e seu comer está enraizado dentro docotidiano da comunidade de descendentes deimigrantes, prática alimentar esta que está sendorepassada aos habitantes da cidade, resultado doscontatos culturais. Hoje, não são apenas os descendentesde imigrantes que buscam a broa. Esta tradiçãoculinária foi se impregnando de significado histórico,o que faz com que outras pessoas a consumam eelaborem outros significados.

Acreditamos que, através da memória despertadapodemos obter a trajetória de alguns que fizeram efazem a história de Curitiba, podendo eleger estatradição culinária como representante da cultura,memória e história da sociedade curitibana.

As memórias reconstruídas e coletadas através deentrevistas, testemunhos ou depoimentos, com osdevidos cuidados, são transformadas em documentose utilizadas como fontes orais. A história oral é ummeio privilegiado para o resgate da vida cotidiana,tendo em vista que esta se mantém firmemente namemória.

O que os historiadores positivistas consideramcomo o ponto fraco da testemunha oral (as omissões,voluntárias ou não, suas deformações, suas lendas eseus mitos) para nós, o que eles chamam de pontofraco, é tão útil quanto as informações que severificaram exatas. Elas nos introduzem no ponto dasrepresentações da realidade que cada um faz e “sãoevidências de que agimos muito mais em função dessasrepresentações do real que do próprio real.”26

São estas questões subjetivas, que fazem com quepossamos chegar ao mundo imaginário e simbólico

26 JOUTARD, P. Desafios àhistória oral para o séculoXXI. In: FERREIRA, M, deM; FERNANDES. T.M.;ALBERTI, V. (Org.). Históriaoral: desafios para o séculoXXI. Rio de Janeiro:Fiocruz / Casa de OswaldoCruz / CPDOC – FundaçãoGetúlio Vargas, 2000, p. 34.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59343

Page 344: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Para não se perder: a broa invertendo papéis

344 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

dos indivíduos, que nos fazem recorrer a estametodologia, podendo entender o significado da broaàs pessoas que a consomem e a elaboram.Acreditamos que estas pessoas, em sua maioriadescendentes de alemães, não procuram a broa apenascomo um pão qualquer, mas sim buscam sensações,lembranças e identidade que este pão pode trazer.

Então, o desafio dos que trabalham com estametodologia é mostrar que a memória é também uminstrumento para garantir o direito às identidades.27 Oreforço das identidades locais ou regionais contrapõe-se à rápida globalização de uma comunidade mundialde pessoas que criam culturas e mudam culturas.

Por essas razões foi de suma importância para apesquisa o uso das fontes orais, pois acreditamos quea história oral fornece informações preciosas que nãopoderíamos obter sem ela. “A opção pela memóriase dá porque o que nos interessa são situações vividas,lembranças que, embora possam parecerinsignificantes à primeira vista, após a análise, poderãose mostrar plenas de significados.”28

A comida desperta a memória, a memóriadespertada reelabora identidades. De um modo oude outro, comida, memória e identidade encontram-se imbricadas.

A broa de centeio invertendo papéisA broa de centeio invertendo papéisA broa de centeio invertendo papéisA broa de centeio invertendo papéisA broa de centeio invertendo papéis

Além de observarmos todos os significados que abroa apresenta para uma parcela da sociedadecuritibana, também percebemos, através da broa, queela acaba redefinindo papéis tradicionais de homens emulheres mantenedores desta tradição.

Para nossa pesquisa de doutorado, inicialmenteentrevistamos mulheres acima de 60 anos. Para odocumentário, incluímos entrevistas com outra geraçãomais nova, para saber se haveria continuidade dastradições. Foi então que entrevistamos Armin, de 50anos, filho de uma depoente, D. Herta, de 82 anos.

27 FERREIRA, M. de M.;FERNANDES, Tania Maria;ALBERTI, Verena (Org.).História oral: desafios para oséculo XXI. Rio de Janeiro:Fiocruz / Casa de OswaldoCruz / CPDOC – FundaçãoGetúlio Vargas, 2000, p. 13.

28 BERNARDO, T. Memória embranco e negro: olhares sobreSão Paulo . São Paulo:EDUSP / UNESCO. 2003,p. 29.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59344

Page 345: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Juliana C. Reinhardt, Victor Augustus G. Silva

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 345

Ele relata sobre a preocupação com a permanênciade suas tradições culinárias:

Você veja... Minha mãe agora está com 82 anos... Ela é quemsempre foi a promotora destas tradições [culinárias]. Ela équem sempre fez as bolachas para o Natal, o marreco compurê de maçã para o Ano Novo, os cuques, a broa de centeio.Eu agora estou apreensivo, porque me pego pensando... Elajá está com uma certa idade... Céus! O que vai acontecerquando ela se for? Por isso comecei a aprender com ela afazer algumas receitas. A primeira coisa que eu quis aprenderfoi a broa de centeio. E já faço até com uma certa qualidade...29

A partir desta entrevista decidimos que, para oprojeto defendendo a broa de centeio comopatrimônio imaterial de Curitiba, realizaríamos outrasentrevistas, agora não só com mulheres, mas comhomens também, para observar sua relação com astradições culinárias.

No decorrer das entrevistas percebemos uma dasmudanças causadas em decorrência da modernidade:uma maior proximidade do homem para com acozinha. Se a cozinha antes era o espaço das mulheres,agora ela também pode ser espaço do homem. Masnão só por motivos como glamour ou novas tendências,mas, também pela necessidade. Armin sentiunecessidade de aprender com sua mãe algumastradições culinárias, pois ficou apreensivo com apossibilidade de perdê-las quando sua mãe não estivermais presente. Quando, para algumas gerações, atendência natural seria que a esposa aprendesse a fazera broa, hoje começam a ocorrer mudanças nestaestrutura das práticas alimentares. Sua esposa trabalhao dia inteiro e não tem tempo de cozinhar, então foiele mesmo quem foi para cozinha receber os legadosde sua mãe.

Outro depoente, Werner, nos conta que tambémaprendeu a fazer a broa de centeio. Como agora nãomora mais com sua mãe em Curitiba, devido ao seu

29 WEBER. Armin.ENTREVISTA, agosto de2006.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59345

Page 346: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Para não se perder: a broa invertendo papéis

346 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

emprego foi transferido para Manaus, teve queaprender a fazer a broa para continuar mantendo suatradição. “Sempre que venho para cá, compro farinhade centeio para fazer lá em Manaus. Eu faço a broa,mas faço uma coisa que minha mãe não faz: agrego àmassa outros elementos, como sementes de girassol”.A cultura é dinâmica e a tradição também. A tradiçãoanda lado a lado com a inovação.

O advento da modernidade trouxe ummovimento duplo sincronizado: a aproximação dohomem com a cozinha e um certo afastamento dasmulheres deste espaço, sempre tão relacionado a elas.Quando, até a década de 1970 as mulheres tinhamcomo função o cuidado com o lar, passando seutempo com os afazeres domésticos, limpeza da casa,cuidado com os filhos, elaboração das refeições,atualmente, a realidade mostra-se um tantodiferenciada.30 Hoje, muitas mulheres não têm mais aprática do cozinhar. Cozinham quando podem. Asnovas gerações acabam não tendo o contato com osaber fazer, não estão na cozinha aprendendo comsuas mães. Agora, suas mães trabalham fora e ocozinhar fica para os finais de semana ou paramomentos especiais. E, muitas vezes, nem os finais desemana tomam este espaço. Em nossa pesquisapercebemos que muitas deixaram de cozinhar, poisquerem ter seu descanso. Saem então, para “comerfora” ou compram pratos prontos. D. Lurdescomenta: “Eu falo pra Ana [sua filha]: faça umacomidinha caseira... Você não pode ficar comendodesse jeito! Sabe que ela ri!! Diz que é fácil falar, poisna minha época era diferente. Diz que não tem tempo,que pra fazer um arroz passaria a manhã inteira nacozinha...” D. Lurdes come a broa, mas comprapronta.

A descendente de alemães Dulce, 45 anos, quandoquestionada se come a broa, afirma enfaticamente quesim. Perguntamos se é ela quem faz, e ela diz“Infelizmente não. Até gostaria... Mas com que tempo?

30 Não podemos afirmar omesmo entre mulheres debaixa renda.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59346

Page 347: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Juliana C. Reinhardt, Victor Augustus G. Silva

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 347

Trabalhando o dia inteiro, não tenho mais tempo pranada. Peço pro meu marido comprar lá no centro.”

Outra depoente do documentário realizado sobrea broa de centeio, filha de poloneses, artesã de 85 anos,quando perguntada se faz a broa de centeio responderapidamente: “Eu não.... Imagina! Isto já está fora demoda! Eu compro a broa em qualquer lugar. Temótimos lugares hoje que fazem a broa de centeio... Sevocê trabalha, não dá para fazer de tudo...”.

Alguns depoentes homens não fazem a broa, porser muita trabalhoso o processo de elaboração. Masrelataram fazer outras tradições culinárias que nãolevam muito tempo para serem feitas. Eduardo, 33anos, faz o requeijão temperado para passar na broa:“Daria até pra comprar pronto, mas o feito em casa édiferente...” Ivo, 41 anos, quando sua esposa trabalhaaté mais tarde, faz para jantar, salsichas com purê debatatas, acompanhados da broa, que ele compra:“meus filhos adoram quando eu vou para cozinha,pois sabem que vou fazer alguma coisa inusitada,geralmente a vina com purê”.31

Os pratos mais elaborados, que muitas vezesabarcam as tradições culinárias, acabam demorandomais tempo para serem preparados, sendo mais difíceisde se fazer, ficando reservados a momentos especiais:festas e finais de semana. É, para muitos depoentes, ocaso do fazer a broa de centeio.

O papel da mulher não é mais apenas o de “dona-de-casa”, pois ela tem a função de produzir a rendadoméstica ou a divide com o marido. Assim, entremuitas famílias de Curitiba que observamos napesquisa para o documentário, as refeições do dia-a-dia são feitas em buffets, restaurantes, fora de casa e,quando dentro de casa, têm em sua base pratos prontoscongelados ou refeições mais rápidas, onde, neste caso,entra a broa. Em muitas casas o jantar é feito atravésdo consumo da broa com seus complementos: ochucrute, a vina, o requeijão, o salame, as geléias.

Esta é uma constatação que ocorre na casa de

31 Em Curitiba, vina ésinônimo de salsicha(wienerwurs é salsicha, emalemão ou, maisespecificamente, salsichade Viena)

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59347

Page 348: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Para não se perder: a broa invertendo papéis

348 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Armin. Sua esposa trabalha em “dois turnos” e nãotem tempo para cozinhar. Por este motivo, para mantersuas tradições culinárias, foi o próprio Armin quemaprendeu com sua mãe a fazer algumas preparações.Nestes momentos, é ele quem cozinha. E seu jantar éformado pela broa com os complementos quemencionamos anteriormente.

Outra alternativa é o comprar. Quando temvontade de comer algo que fazia parte de suas tradiçõesculinárias, e não tem tempo de fazer, ele acabarendendo-se ao comércio de alimentos, como muitosde nossos entrevistados. Armin reflete sobre a questão:

...é que a vida, o regime de trabalho... Por exemplo, nós, naminha infância, mulher era “dona de casa”... E daí ela tinhao domínio pra estas coisas... E hoje não... ela [a esposa] é umafuncionária em escritório. Os afazeres mudaram muito. Opapel feminino, eu suponho que isto aí vai trazer umamudança, eu suponho, na qualidade culinária daqui pra frente,essa mudança do perfil. Weter, Armin. Entrevista. Agosto de2006.

Mesmo com o advento da modernidademodificando algumas estruturas, como a alimentar;trazendo novos papéis sociais para a mulher, já nãosendo mais prerrogativa em novas gerações o domínioda mulher sobre a cozinha, a relação mulher e cozinhaainda fortemente se mantém. Mesmo quebrando-se,em alguns casos, a corrente do “saber fazer”, amanutenção do gosto alimentar ainda permanece,fazendo com que se busquem outras formas desatisfazer este gosto, substituindo o “saber fazer” poroutras alternativas que atendam a esta demanda,mantendo as tradições culinárias.

Se, para a geração nascida nas décadas de 1930 a1940, o fazer era uma realidade, pois foramacostumadas a isso, passaram sua infância e adolescênciaem um período em que as mulheres passavam muitode seu tempo na cozinha e os produtos industrializados

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59348

Page 349: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Juliana C. Reinhardt, Victor Augustus G. Silva

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 349

ainda não haviam chegado com toda sua força, paraseus filhos, a geração mais nova, este cenário já semodifica. Esta já vive em um outro momentohistórico e social, onde as mulheres também participamda economia doméstica e têm em sua volta umainfinidade de oferta de produtos prontos, casasespecializadas em oferecer aquilo que não se tem maistempo para fazer. Como afirma Dulce, “[...] quandoera pequena minha avó fazia o chucrute e o pepino nafolha de parreira. Hoje eu compro eles prontos”. Armintambém relata: “Nós, por exemplo, quando eu nãoconsigo fazer broa, nós vamos à Padaria América,por exemplo. Se bem que o número de padarias quehoje fazem broa é muito maior do que era há vinte,trinta anos atrás”.

A justificativa observada no caso dos mais novos,para o hábito de comprar, é a “falta de tempo parafazer” ou o “não saber fazer”. Também entre os maisvelhos há o hábito de comprar. Mas a justificativa,além da falta de tempo, é a falta de vontade para fazer,pela ausência de ter com quem compartilhar. Algumasdepoentes agora, morando sozinhas, trocam muitasvezes o fazer pelo comprar, para manter suas tradições.Não romperam com o “saber fazer”, que é resgatadoem muitos momentos, mas também recorrem àcomodidade ofertada pela atualidade.

O que percebemos, é a manutenção do gosto,através da manutenção das tradições culinárias e aadequação cultural e social para que estas tradiçõespermaneçam.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

BERNARDO, T. Memória em branco e negro: olhares sobre SãoPaulo. São Paulo: EDUC: Fundação Editora da UNESP, 1998.

CONVENÇÃO PARA SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIOCULTURAL IMATERIAL. http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540POR.pdf. Acesso em: 24 de out. de 2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59349

Page 350: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Para não se perder: a broa invertendo papéis

350 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

DA MATTA, R. Sobre o simbolismo da comida no Brasil.O Correio.(UNESCO), Rio de Janeiro, v. 15, n. 7, jul. 1987, p. 22.

FERREIRA, M. de M.; FERNANDES, T. M.; ALBERTI, V.(Org). História Oral: desafios para o século XXI.Rio de Janeiro:Fiocruz, 2000.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice,1990.

HOBSBAWM, E. ; RANGER, Terence (Org.). A invenção dastradições. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

JOUTARD, P. Desafios à história oral para o século XXI. In:FERREIRA, M. de M.; FERNANDES, T. M.; ALBERTI, V.(Org.). História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro:Editora Fiocruz / Casa de Oswaldo Cruz / CPDOC – FundaçãoGetúlio Vargas, 2000, p. 34.

MACIEL, Maria Eunice. Churrasco à gaúcha. Horizontes Antropoló-gicos – comida. Porto Alegre: PPGAS, 1995, ano 2, n. 4., p. 34-48.

_____ . Identidade cultural e alimentação. In: CANESQUI, A.M., GARCIA; R. W. D. (Org.). Antropologia e Nutrição: um diálogopossível. FIOCRUZ, 2005, p. 51.

ORTIZ, R. Cultura e modernidade-mundo. In: _______.Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 71-87.

PEREIRA, M. R. de M. Semeando Iras rumo ao progresso -ordenamento jurídico e econômico da Sociedade Paranaense,1829-1889. Curitiba: UFPR, 1996.

POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos.Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989, p. 3 – 15

REINHARDT, J. C. O pão nosso de cada dia: a Padaria América e opão das gerações curitibanas. Curitiba, 2002. Dissertação(Mestrado em História). Setor de Ciências Sociais, Letras e Artesda Universidade Federal do Paraná.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59350

Page 351: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Juliana C. Reinhardt, Victor Augustus G. Silva

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 351

REINHARDT, J. C. Dize-me o que comes e te direi quem és: alemães,comida e identidade. Curitiba, 2007. Tese (Doutorado emHistória). Setor de Ciências Sociais, Letras e Artes daUniversidade Federal do Paraná.

SANTOS, C. R. A. dos. História da Alimentação no Paraná. Curitiba:Fundação Cultural, 1995.

SANTOS, N. V. A terra do futuro – impressões do Paraná. Rio deJaneiro: Typ. do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C, 1913,p. 99

SCHNEIDER, Claídes Rejane. Do cru ao assado: a festa do boi norolete de Marechal Cândido Rondon. Dissertação (Mestrado emHistória). Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, UniversidadeFederal do Paraná. 2002.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59351

Page 352: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59352

Page 353: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 353

VVVVVozes femininas, saberes culinários: oozes femininas, saberes culinários: oozes femininas, saberes culinários: oozes femininas, saberes culinários: oozes femininas, saberes culinários: ofeminino e a dinâmica das identidadesfeminino e a dinâmica das identidadesfeminino e a dinâmica das identidadesfeminino e a dinâmica das identidadesfeminino e a dinâmica das identidades

regionais por meio da culináriaregionais por meio da culináriaregionais por meio da culináriaregionais por meio da culináriaregionais por meio da culinária11111

Maria Henriqueta Sperandio Garcia GimenesLuciana Patrícia de Morais

Resumo: No contexto das cozinhas regionais têm-se comosujeitos transmissores das tradições, na sua grande maioria,mulheres consideradas portadoras do passado e, portanto,capazes de estabelecer e re-estabelecer o elo social. Este trabalhoobjetiva enfocar, a partir do depoimento oral de cozinheirastradicionais de Minas Gerais e do Paraná, o papel destasagentes na dinâmica do saber-fazer da culinária regional,apontando intersecções entre os estudos da história daalimentação e os de gênero.

Palavras-Chave: Cozinha Regional. Mulheres. Tradição.

Abstract: In the local cuisine context, women are in mostcases the tradition carriers, since they established and reinforcesocial links. This paper discusses, based on oral statementsof traditional cooks from Minas Gerais and Paraná States,the role of these agents in the know-how dinamics of localcuisine, pointing out intersections between food and genderhistory studies.

Keywords: Local Cuisine. Women. Tradition.

Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes, Doutoranda em Históriapela Universidade Federal do Paraná. Professora do Curso deTurismo da mesma universidade. [email protected] Patrícia de Morais, Doutoranda em História pelaUniversidade Federal do Paraná. Mestre em História pela [email protected].

1 Texto recebido: 31/06/2008.Texto aprovado: 13/07/2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59353

Page 354: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Vozes Femininas, Saberes Culinários: o feminino e a dinâmica das identidades regionais por meio da culinária

354 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Dentro do corpo de estudos sobre história e culturada alimentação as chamadas cozinhas regionais têmganhado cada vez mais destaque. Conjunto de pratose iguarias que constituem e traduzem costumes etradições à mesa, essas cozinhas são construídas a partirde uma série de negociações entre percepções demundo e o que é oferecido regionalmente em termosde ingredientes e matéria prima. Neste universo, o quese oferece são pratos emblemáticos, ao mesmo tempoelementos identificadores e identificantes dos gruposque os preparam e os consomem.

Como observa Luce Giard “[...]os indivíduostendem a ficar identificados a hábitos alimentares desua infância: alimentos que eles se habituam a comerdesde a tenra idade e se estendem ao longo de sua vidacotidianamente”2. Assim, “[...]o comportamento relativoà comida liga-se diretamente ao sentido de nós mesmose à nossa identidade social3”. Como defende MariaEunice Maciel, a alimentação, organizada como umacozinha torna-se “[...] um símbolo de uma identidade(atribuída e reivindicada) através da qual os homenspodem se orientar e se distinguir”4, revelando mais doque hábitos e comportamentos alimentares: expressa omodo de vida de um determinado grupo.

Nota-se que esta premissa da comida como formade expressão identitária está colada na permanência etransmissão das tradições culinárias. Juliana Reinhardtentende que a transmissão de tais tradições se dá degeração para geração em uma mesma população, deforma linear ou ainda intergeracional (como no casoem que a avó transmite tais conhecimentos ao neto).Debruçada sobre a questão das tradições culináriasdos alemães em Curitiba, defende ser possível pormeio destas compreender sentimentos e significadosenraizados, “[...] vestígios oriundos de acontecimentosmarcantes que desencadearam processos de tentativade preservação do grupo estudado por meio da

2 GIARD, Luce. Cozinhar. In:CERTEAU, Michel de.(Org.). A invenção do cotidiano- morar, cozinhar.Petrópolis, RJ: Vozes, 1996,p.250.

3 MINTZ, Sidney. Comida eantropologia - uma breverevisão. Revista Brasileira deCiências Sociais, Rio deJaneiro, v.16, n.47, out. 2001,p.31.

4 MACIEL, Maria Eunice.Uma cozinha à brasileira.Estudos Históricos. N.33, jan-jun 2004, Rio de Janeiro:Centro de Pesquisa eDocumentação HistóricaContemporânea do Brasil.Fundação Getúlio Vargas,p.36.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59354

Page 355: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes, Luciana Patrícia de Morais

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 355

preservação de manifestações étnicas, resgatando oureafirmando uma identidade”5, permitindo assim umacomunicação do presente com o passado através damemória.

A comida regional, a transmissão de tradições e aA comida regional, a transmissão de tradições e aA comida regional, a transmissão de tradições e aA comida regional, a transmissão de tradições e aA comida regional, a transmissão de tradições e adinâmica identitáriadinâmica identitáriadinâmica identitáriadinâmica identitáriadinâmica identitária

Ao se discutir as questões de identidade e tradição,torna-se necessário recuperar o conceito de memóriacoletiva de Maurice Halbwachs, estudioso dedicadoao entendimento dos chamados “quadros sociais damemória” e defensor do pressuposto de que nossaslembranças permanecem coletivas justamente porqueo homem é membro de vários grupos (comunidadesafetivas) e suas lembranças dependem da relação queo indivíduo estabelece com diferentes grupos, pois sónos lembramos de algo a que ainda estamos de algumaforma vinculados. Neste contexto, a memória secaracteriza como um fenômeno social construídocoletivamente e submetido a flutuações,transformações e mudanças constantes6.

Analisando esta dinâmica, tem-se que a transmissãoe reprodução de conteúdos (conhecimentos,percepções, experiências e práticas) é fundamental paraa constituição de identidades e tradições. Neste sentido,deve-se resgatar as contribuições de Marcel Mauss,que, tratando do que denomina fenômenos gerais davida intra-social, em uma análise de sociedades arcaicas,chama a atenção para o fato de que são os mais velhosque transmitem aos mais novos os grandes grupos defenômenos sociais.

Quando uma geração passa a outra a ciência de seus gestos ede seus atos manuais, há tanta autoridade e tradição socialcomo quando esta transmissão se faz pela linguagem. Háverdadeiramente tradição, continuidade; o grande ato é aentrega das ciências, das sabedorias e dos poderes dos mestresaos discípulos. Porque assim tudo pode perpetuar-se7.

5 REINHARDT, JulianaCristina. Dize-me o que comese te direi quem és - alemães,comida e identidade.Curitiba, 2007. Tese(Doutorado em História) -Setor de Ciências Humanas,Letras e Artes, UniversidadeFederal do Paraná. p.16-17.

6 HALBWACHS, Maurice. Amemória coletiva. São Paulo:Vértice, 1990.

7 MAUSS, Marcel. Sociologia yAntropologia. Madrid:Tecnos, 1971, p.115.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59355

Page 356: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Vozes Femininas, Saberes Culinários: o feminino e a dinâmica das identidades regionais por meio da culinária

356 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Ainda tratando do tema, o autor argumenta queapenas algumas pessoas nas sociedades detêm osegredo e o depósito da memória coletiva: sãoguardiões de tradição. Vale lembrar que MauriceHalbwachs também desenvolve a idéia de transmissãodos saberes e das tradições entre as gerações, aindaque utilize outro aparato conceitual. Os velhos, porterem vivenciado o passado e não terem que atendermais às necessidades imediatas do cotidiano, teriam afunção social da lembrança. E não se contentariamem guardar tais lembranças passivamente; há ummovimento constante de consulta à memória (sua edos outros) e de transmissão destas lembranças;contam-nas, quando não as escrevem8.

Jacques Le Goff é outro teórico que sublinha aexistência de especialistas da memória, que têm o ofíciode lembrar. Em sua análise em que estabelece umaespécie de trajetória da memória, coloca que é na IdadeMédia que tem lugar o culto aos antepassados. “Aassociação entre a morte e a memória adquire comefeito e rapidamente uma enorme difusão nocristianismo, que a desenvolveu na base do culto pagãodos antepassados e dos mortos.”9 É também nesteperíodo que os velhos passam a ser vistos comodepositários da memória e por isto, venerados.

No que se refere ao objeto aqui focalizado, éimportante lembrar que a tendência àinterdisciplinaridade nas ciências sociais, presente desdefins da década de 1970, também marca os estudossobre a memória, que passa a ser buscada menos nosdocumentos escritos e mais “nas palavras, nas imagens,nos gestos, nos rituais e nas festas; é uma conversãodo olhar histórico.”10

Essa tradição que se compartilha é constantementeressignificada e recriada a partir da própria dinâmicacultural do grupo social e pode permitir, inclusive,uma conexão memorial por meio do preparo edegustação de um alimento. Isso se torna possívelporque tais práticas culinárias exprimem também o

8 HALBWACHS, Op. cit.

9 LE GOFF, Jacques.Memória. EnciclopédiaEinaudi, v. 1. Lisboa: Casada Moeda, ImprensaNacional, 1984. p. 27.

10 Idem, p. 44.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59356

Page 357: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes, Luciana Patrícia de Morais

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 357

habitus de um grupo, tornando o gosto alimentar, maisdo que um produto proporcionado pelo aparelhosensorial humano, uma experiência relacionada àprópria idéia de gosto defendida por Pierre Bourdieu.Para este autor o gosto caracteriza uma propensão euma aptidão à apropriação material e simbólica deuma determinada categoria de objetos ou práticasclassificadas e classificadoras, constituindo a fórmulagenerativa de um estilo de vida (conjunto unitário depreferências distintivas que formam um princípio deunidade de estilo, um conjunto de gostos específicosque termina por conectar e tornar reconhecíveis osintegrantes de um determinado grupo social)11.

No universo da cozinha regional as mulheres e,em especial algumas mulheres mais velhas, sãopercebidas como depositárias da memória coletiva eportanto, são os sujeitos que têm por excelência aautoridade para efetuar o movimento de transmissãodas tradições culinárias como uma forma de estabelecere re-estabelecer o elo social. A experiência evidenciadapela idade, aliada à familiaridade com o ambiente dacozinha confere a tais mulheres a confiabilidadenecessária para carregarem a missão de transmitirema memória12.

Diante das especificidades do objeto escolhido,optou-se por realizar um exercício de História Oral,metodologia que permite o contato do entrevistadorcom uma memória “reconstituída ou firmementeconstruída por diversos motivos (preservação de umaidentidade coletiva ou de um mito, proteção pessoalda vida passada, risco de ter que mudar derepresentação de sua própria existência, etc)13”. Estemovimento exige do pesquisador, em contrapartida,uma série de reflexões sobre o que é dito, sobre osujeito que fala e sobre as circunstâncias em que elefala, tendo em vista que a lembrança nunca é umareprodução objetiva da situação vivida, mas éimpregnada pelas percepções, pelos valores e pelaprópria experiência de vida do depoente: “memória

11 BOURDIEU, Pierre.Gostos de classe e estilosde vida. In: ORTIZ, R.(Org.). Sociologia. São Paulo:Ática, 1983.

12 Pollak lembra, ao tratar deuma associação desobreviventes do campo deAuschwitz-Birkenau, que“a escolha das testemunhas(...) é percebida como tantomais importante quanto ainevitável diversidade dostestemunhos corre sempreo risco de ser percebidacomo prova dainautenticidade de todos osfatos relatados”. POLLAK,Michael (1989). Memória,Esquecimento, Silêncio.Estudos Históricos. Rio deJaneiro, v. 2 n. 3: 3-15. p. 10.

13 VOLDMAN, Daniele.Definições e usos. In:FERREIRA, M. M.;AMADO, J. (Org). Usos eabusos da História Oral. 5.ed.São Paulo: FundaçãoGetúlio Vargas, 2002, p.37.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59357

Page 358: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Vozes Femininas, Saberes Culinários: o feminino e a dinâmica das identidades regionais por meio da culinária

358 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, comimagens e idéias de hoje, as experiências do passado14”.

Expostas essas premissas, este trabalho tem comoobjetivo enfocar, a partir do depoimento decozinheiras tradicionais do Serro, em Minas Gerais (Sra.Maria Lúcia Clementino Nunes) e de Morretes, nolitoral paranaense (Sra. Maria da Glória AlpendreSilveira), o papel destas agentes na manutenção dosaber-fazer culinário, apontando pontos de intersecçãoe possibilidades entre o estudo da história daalimentação e os estudos de gênero. É importantelembrar que a perspectiva adotada aqui tem a pretensãode fugir de uma visão que interpreta as tradiçõesregionais como algo a ser resgatado e mantido demaneira imóvel. Da mesma forma tem-se claro queo momento atual também não pode ser percebidode forma simplista apenas como uma ameaça àsformas tradicionais de sociabilidade. Jean-LouisFlandrin e Massimo Montanari argumentam:

O elogio da diferença e a preservação da identidade culturalnão fazem parte de uma temática passadista e retrógrada,mas do presente e futuro [...]. É porque as tradições [...] nãoaparecem já completamente formadas na origem, mas sãocriadas, modeladas, definidas progressivamente pela passagemdo tempo e os contatos entre culturas que, segundo osmomentos, se cruzam ou se enfrentam, se sobrepõem ou semisturam. [...] Cada “tradição” é filha da história – e a histórianunca é imóvel15.

A idéia aqui, portanto, é contribuir para uma análisemais complexa da dinâmica das tradições queincorpore, entre outros aspectos, o fato de que éjustamente o momento atual que torna possível umamaior visibilidade do tradicional e do regional.

14 BOSI, Eclea. Memória esociedade – lembranças dosvelhos. 3. ed. São Paulo: Cia.das Letras, 2003, p.55.

15 FLANDRIN, Jean-Louis;MONTANARI, Massimo .Hoje e Amanhã. In:FLANDRIN, Jean-Louis;MONTANARI, Massimo(Org.). História daalimentação . São Paulo:Estação Liberdade, 1998, p.868.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59358

Page 359: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes, Luciana Patrícia de Morais

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 359

TTTTTachos, panelas e memórias: duas mulheres e suasachos, panelas e memórias: duas mulheres e suasachos, panelas e memórias: duas mulheres e suasachos, panelas e memórias: duas mulheres e suasachos, panelas e memórias: duas mulheres e suastradiçõestradiçõestradiçõestradiçõestradições

Eu não pego na colher, na pá, no tacho ou na panela sem pensarna história, porque eu poderia estar fazendo pesquisas ou pratosrequintados, como todo mundo sabe fazer e eu não sei; não querosaber, não quero aprender.

Maria Lúcia Clementino Nunes

Maria da Glória Alpendre Silveira nasceu emMorretes em 1926, em uma família formada porimigrantes portugueses e italianos bastante tradicionalna região. Hoje viúva com três filhos, residiu emMorretes a sua vida inteira. É responsável pela cozinhado Restaurante Nhundiaquara que funciona nasdependências do Hotel Nhundiaquara (o segundohotel a ser aberto em Morretes e o mais antigo emoperação, instalado em um casarão histórico e um doscartões postais da cidade, por sua estratégicalocalização nas margens do rio Nhundiaquara) fundadopor seu pai e transferido para o atual endereço em1941, hoje administrado por ela e por seus filhos.Nota-se que Morretes caracteriza-se atualmente comoum pólo de turismo gastronômico, desenvolvido apartir da oferta comercial do Barreado, um prato deorigem portuguesa que consiste em carne de boi cozidaexaustivamente com vários temperos, em especialcominho, toucinho e louro, e degustada com farinhade mandioca e banana da terra. Dona Maria da Glóriatambém é testemunha do desenvolvimento turísticoda cidade em torno do Barreado, tendo em vista queseu restaurante foi o pioneiro no serviço comercial daiguaria.

Dona Maria da Glória teve sua primeira experiêncianos fogões ainda menina, com nove anos, nasdependências do próprio hotel de sua família. Diantede um mal súbito de sua mãe, ela e a irmã ficaramencarregadas de preparar o almoço e o jantar para oshóspedes, pois o pai saiu em busca de socorro médico.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59359

Page 360: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Vozes Femininas, Saberes Culinários: o feminino e a dinâmica das identidades regionais por meio da culinária

360 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

A partir dessa experiência, começou a observar deperto a atuação da mãe, do pai e da outra cozinheiracontratada para ajudar, aumentando assim seurepertório culinário. O barreado Dona Glóriaaprendeu acompanhando os pais e também Dona NháJesus, uma senhora negra que era carregadeira de águana época em que não existia água encanada na cidade,e que era chamada para preparar o Barreado no hotel.O preparo e a degustação do Barreado fazem partede suas lembranças de infância de Dona Maria daGlória:

Meu pai quando eu era pequena ele fazia esses mutirões emque vinha o pessoal dos outros sítios pra ajudar. Então iamtodos pra roça, pra colheita do arroz, por exemplo. E depoisele também ia ajudar os outros. E lá na roça eles faziam essavala na terra e punham uma panela bem grande naquela valae punham fogo embaixo, por isso que dizem que o barreadoera enterrado. Mas não era enterrado, era uma vala que faziamna terra pra colocar a panela em cima. Daí eles punham,vedavam a panela com folha de bananeira [...], barreavam apanela com pirão. E ficavam alimentando o fogo. E deixavamcozinhar bem, até de noite. E o meu pai tinha uma sala bemgrande no canto do morro e então ali a noite pinduravam noteto um cacho de banana, e levavam um garrafão de pinga eo barreado. E daí ali também tinha o fandango [...]. E eudormia encostada na parede até eles terminarem, daí quandoterminavam a gente vinha embora pra casa [...] Eu lembrodisso eu tinha uns quatro, cinco anos16.

Entretanto, o Barreado só entrou no cardápio doRestaurante anos mais tarde, quando Dona Maria daGlória já era moça, por insistência de seu cunhado.Em um primeiro momento, ironicamente, como oprato era extremamente popular na cidade, preparadopela maioria das famílias, cogitou-se a não inclusão.Mas diante da curiosidade dos turistas, o Barreadoterminou sendo introduzido no cardápio, sendopreparado inicialmente pela mãe de Dona Glória e

16 SILVEIRA, Maria da GlóriaAlpendre. Entrevista concedidaà Maria Henriqueta SperandioGarcia Gimenes. Morretes, 8mai. 2008. 58 min.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59360

Page 361: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes, Luciana Patrícia de Morais

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 361

posteriormente pela própria. Quando iniciaram oserviço do Barreado, na década de 1960, o Restaurantee Hotel Nhundiaquara era o único estabelecimentocomercial que oferecia o prato na cidade.

Lembrando que a clientela do Hotel já é umaclientela tradicional e habitual, Dona Glória afirma quehoje não coloca mais pimenta do reino no seubarreado, porque muitos de seus hóspedes habituaissofrem de hemorróidas. E diante de reservas deadventistas, também bastante freqüentes, não colocao toucinho, tendo em vista a proibição religiosa destegrupo em relação ao consumo de carne de porco.Mas Dona Maria da Glória s orgulha de preparar o“barreado tradicional”, onde usa o toucinho branco,não o bacon, modernismo que alega deixar um sabormuito forte no prato. Mas quando não usa toucinho,apela para um “jeito especial” de montar a panela (otoucinho é tradicionalmente usado para forrar a panelae impedir que a carne queime), para evitar que toda aiguaria seja perdida.

Embora faça adaptações para agradar seushóspedes, Dona Maria da Glória não abre mão daescolha de uma boa carne, de usar um cominho dequalidade moído, alho e cebola bem picados (hoje ospassa no liquidificador) e de colocar folhas de louro,para tornar o prato mais digestivo. Em defesa de umareceita mais tradicional não admite a inclusão de massade tomate:

Aí é um absurdo! Aí não é barreado! Aí acabaram com oBarreado! Tem gente que põe cheiro verde, tem gente quepõe hortelã. Isso é invenção, isso não é Barreado. [...] Aqui éfeito que nem o antigo. A gente continua fazendo do mesmojeito, com o mesmo processo, com fogão de lenha e panela debarro, mesmo fazendo 80 quilos de carne por dia17.

Quando ensina o Barreado, e comenta já terensinado “pra muita gente, pras filhas, pras amigas,pra quem pede a receita aqui no restaurante” Dona

17 Ibidem.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59361

Page 362: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Vozes Femininas, Saberes Culinários: o feminino e a dinâmica das identidades regionais por meio da culinária

362 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Maria da Glória repassa essa versão mais rústica doprato, com a gordura do porco e sem “o modernismodo tomate, dos temperos verdes e outras coisas quenão eram colocadas antes”18.

Maria Lúcia Clementino Nunes, conhecidapopularmente por dona Lucinha é natural domunicípio do Serro – antiga Vila do Príncipe – regiãode Minas Gerais marcada pela exploração dediamantes no período colonial. É proprietária dorestaurante Dona Lucinha, fundado em 1990, em BeloHorizonte. Hoje, com 75 anos, administra trêsrestaurantes (dois em Belo Horizonte e um em SãoPaulo), contando com o auxílio de seus 11 filhos.Juntamente com sua filha Márcia Clementino Nunes,co-responsável pela administração dos restaurantes ehistoriadora, dona Lucinha publicou o livro Históriada Arte da Cozinha Mineira por Dona Lucinha em 2001.No livro, além de receitas da chamada cozinha mineira,as autoras tiveram como objetivo refletir sobre asorigens desta cozinha.

Dona Lucinha nasceu na zona rural e foi na fazendaque deu início aos seus estudos. Deste período, selembra da relação com o ambiente da cozinha.

A criança aos 5 anos, 6 anos, a mãe diz assim: [...] – Busca osabugo pra acender o fogo. Ao buscar o sabugo, você estáfazendo a tarefa de acender o fogo pra fazer a comida. [...]–Vai no curral, busca o leite... então, são muitas tarefasenvolvendo a alimentação, envolvendo o dia a dia da casa,todos os afazeres da casa. [...]Aí tem sempre um fogãozinho,uma casa de bonecas onde você vai cozinhar; onde aquelasprimeiras lições que nós aprendemos, por exemplo, se a mãeestá fazendo um biscoito, a gente está ao lado aprendendo afazer bichinho da massa, pra depois comer... fazendo a bolinha,fazendo as estrelas, e aí você está aprendendo.... [...]Isso tudojá foi o princípio da escola; a mãe é a primeira professora. Ena cozinha isso é muito forte[...]. Então a cozinha começa deuma forma bem carinhosa, bem infantil, e depois ela vaitomando corpo, tomando responsabilidade, porque cozinhar,

18 Ibidem

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59362

Page 363: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes, Luciana Patrícia de Morais

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 363

fazer alimento, é das coisas mais sérias que existe. Porque omédico cuida da saúde... o médico cuida da doença, e nóscuidamos da saúde; quem faz alimento cuida da saúde19.

Na adolescência, mudou-se para a casa da avó nacidade do Serro, com o objetivo de complementaros estudos. Sobre este período, dona Lucinha serecorda das orientações para que se tornasse uma boadona de casa. Sua avó a encaminhou para a casa dascomadres prendadas, para aprender os afazeres decasa e da cozinha.

Então, ela falou: [...] você vai até a casa das minhas comadrestodas, que o doutor Tolentino, seu avô, não cobra de ninguém,e elas todas querem te ensinar muita coisa. Eu falei: - Vóvó,não chega mamãe que me obrigava a ter semana, e trabalhartanto, a senhora também? Ela falou: - Quem não sabe fazer,não sabe mandar; você precisa aprender, você precisa ter osdotes de uma boa dona de casa20.

Dona Lucinha ainda se recorda do fato de quetodas as mulheres da família tinham dotes culinários,ainda que as especialidades variassem. Segundo ela,cresceu em um ninho de águias e, portanto, não tinhacomo não se dedicar também à cozinha. No Serro,formou-se em magistério e casou-se aos 21 anos,voltando para a zona rural, onde lecionou por 12 anosconsecutivos. Neste período, teve início sua reflexãosobre a culinária tradicional e típica. Conta que ia praescola a cavalo e começou a perceber que seus alunosescondiam a merenda que levavam de casa no mato,por vergonha. A partir desta constatação, começou adesenvolver na escola um trabalho de valorização destacomida que estava sendo escondida.

Então, eu comecei a fazer justamente as merendas que elesestavam escondendo no mato. Eu fazia o fubá suado, eu faziao angu doce, a sopa de legumes, os brotos nativos. Aí eu fuitirando aquele complexo que eles tinham e perguntava assim:

19 NUNES, Maria LuciaClementino. Entr evistaconcedida a Luciana Patrícia deMorais, Belo Horizonte, fev.2004. 100 min.

20 Ibidem.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59363

Page 364: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Vozes Femininas, Saberes Culinários: o feminino e a dinâmica das identidades regionais por meio da culinária

364 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

- Se vocês tivessem uma banana cozida em casa ou umacanjiquinha pronta ou um angu doce, se chegar uma visitavocês dão? – Nó, mãe manda correr na venda ou então pediro vizinho se empresta alguma coisa melhor, dona. Isso não éde dar visita não. Então aí que eu percebi que a históriaestava escondida no mato21.

Deste período em diante, o trabalho de pesquisasobre a culinária se fortaleceu, bem como a prática daculinária típica. Em 1964 dona Lucinha abriu seuprimeiro restaurante ainda no município do Serro. Emfins dos anos de 1960 começou a ser convidada paraeventos e festivais de culinária e, em 1990 abriu suaprimeira casa em Belo Horizonte. Seus restaurantessubdividem a cozinha mineira em cozinha da fazenda ecozinha do tropeiro e, ao falar destas cozinhas, donaLucinha refere-se também às formas de sociabilidadesespecíficas destes universos e estabelece uma relaçãodestes com as características do mineiro. Faz questão desublinhar que só trabalha com ingredientes da terra,ainda que na atualidade tenha desenvolvido uma receitadiet da tradicional rosca de mandioca, para seu marido,diabético.

Considerações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finaisConsiderações finais

Os depoimentos de dona Maria da Glória e dedona Lucinha podem nos fornecer pistas para a análisedas fontes sobre comida regional também naperspectiva dos estudos de gênero. Este trabalho tema intenção de indicar possibilidades para a reflexão e,portanto, não oferece respostas definitivas às questõesque se abrem a partir da fala destas senhoras. Mas éjustamente o ponto de interrogação que se coloca apartir de alguns trechos destes relatos que chama aatenção para o fato de que há um caminho a serpercorrido na busca das articulações entre os estudossobre a culinária regional e os estudos de gênero.

Retomando as perspectivas de Mauss, Le Goff e

21 Ibidem.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59364

Page 365: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes, Luciana Patrícia de Morais

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 365

Halbwachs a respeito da transmissão das tradições,poderíamos sugerir que as duas senhorasdesempenham o papel de guardiãs das tradições desuas regiões. São reconhecidas e se reconhecem comotal. É possível perceber esta dimensão em diversosmomentos das entrevistas. Resguardar, resgatar eperpetuar a culinária típica são expressões evocadasem vários momentos por dona Maria da Glória edona Lucinha.

Porque eu não criei... eu não tenho receita Dona Lucinha. Eucaminhei com a história. Então por isto eu sou a raiz; eu souas raízes de uma grande árvore histórica. Quem quiser podefazer enxerto nessa árvore, fazer uma genética na semente,fazer o que quiser; criar outros pratos, outros modos de fazer.Mas eu não posso, porque nem os doces, nem as comidas,nem as quitandas, nem os tira-gostos, nada meu pode sermudado. [...] Eu carrego a história, e a história não podemudar22.

Dona Maria da Glória, admitindo as adaptaçõesque são feitas mediante a demanda da clientela, reforçaseu apego à receita tradicional que possui relação comsua memória afetiva e fala da permanência dadegustação do Barreado na sua família:

Aqui a gente faz o barreado antigo, a não ser quando tem ospedidos dos clientes como eu te falei. Mas eu gosto de fazero Barreado que eu aprendi, que tem a ver com a minha infância,que tem a ver com Morretes. Se a pessoa quiser dar um toquepessoal na sua casa, tudo bem, mas também acho que tem queter um pouco de limite. Porque senão deixa de ser o Barreado,vira uma carne ensopada qualquer. E ninguém vem praMorretes pra comer uma carne ensopada qualquer [...] E tododomingo eu como Barreado, e a minha família come Barreadono domingo. Eu tenho neto, bisneto e todos eles comemBarreado no domingo. Um neto meu casou e a gente serviu oBarreado, preparou o Barreado aqui e levou pra servir nafesta23.

22 Ibidem.

23 Ibidem.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59365

Page 366: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Vozes Femininas, Saberes Culinários: o feminino e a dinâmica das identidades regionais por meio da culinária

366 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

As falas destas mulheres, é interessante sublinhar,refletem o diálogo entre a tradição e a inovação,presente nas análises que tomam as constituiçõesidentitárias como processos dinâmicos. Seus discursossublinham o fato que produzem uma comidatradicional. Ao mesmo tempo, realizam trocas com otempo, incorporando elementos ou práticascaracterísticos da modernidade, sem que se perca aautenticidade da tradição, conforme os trechos dasentrevistas analisados neste texto revelam. A esterespeito, Maria do Carmo Marcondes Brandão Rolime Anamaria Bonin lembram que:

Convivem em uma mesma sociedade, padrões ditos“tradicionais” e “modernos”, com a predominância de um oude outro, conforme a época. Isso se dá, em virtude da sociedadeter também sua dinâmica, e os hábitos alimentares estaremincluídos nela24.

Além disso, estas mulheres carregam em si os papéisque lhe foram atribuídos ao longo de sua infância,adolescência e vida adulta. Ainda que tenham rompidocom alguns padrões impostos à mulher e ao feminino,o fizeram às custas de alguns embates e negociaçõesque marcaram suas trajetórias. É interessante notar queambas desempenham papéis que ultrapassam ouniverso feminino – são cozinheiras e empresárias. Sea cozinha sempre foi um espaço permitido erecomendado às mulheres, o mundo empresarial não.E foi justamente através de sua legitimidade no espaçoque lhes foi concedido pela sociedade que estassenhoras se afirmaram também em um espaço que,principalmente quando se considera sua localizaçãogeracional, era reservado aos homens.

Mas estas mulheres podem, sobretudo, nos permitirvisualizar o lugar da mulher na sociedade, na família ena cozinha. Através de suas histórias, podemosidentificar a dinâmica da sociedade através da lente daculinária regional do litoral do Paraná e de Minas Gerais.

24 BONIN, Anamaria; ROLIM,Maria do Carmo MarcondesBrandão. Hábitosalimentares: tradição einovação. Boletim deAntropologia. Curitiba, v.4, n.1,p.75-90, jun.1991, p. 79.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59366

Page 367: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes, Luciana Patrícia de Morais

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 367

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ACKERMAN, Diane. Uma história natural dos sentidos. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 1992.

BONIN, A.; ROLIM, M. C. M. B. Hábitos alimentares: tradiçãoe inovação. Boletim de Antropologia. Curitiba, v.4, n.1, p.75-90,jun.1991.

BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ,R. Sociologia. São Paulo: Atica, 1983.

FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. Hoje eAmanhã. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo(Org.). História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998,p. 868.

GIARD, Luce. Cozinhar. In: CERTEAU. Michel de. (Org.). Ainvenção do cotidiano - morar, cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996,p.211-332.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice,1990.

LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi, v. 1. Lisboa:Casa da Moeda, Imprensa Nacional, 1984.

MACIEL, Maria Eunice. Uma cozinha à brasileira. EstudosHistóricos. N.33, jan-jun 2004, Rio de Janeiro: Centro de Pesquisae Documentação Histórica Contemporânea do Brasil. FundaçãoGetúlio Vargas, p.25-39.

MAUSS, Marcel. Sociologia y Antropologia. Madrid: Tecnos, 1971.

MINTZ, Sidney. Comida e antropologia - uma breve revisão.Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v.16, n.47,out. 2001.

NUNES, Maria Lucia. Entrevista concedida à Luciana Patrícia deMorais, Belo Horizonte, fev. 2004. 100 min.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59367

Page 368: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Vozes Femininas, Saberes Culinários: o feminino e a dinâmica das identidades regionais por meio da culinária

368 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

REINHARDT, Juliana Cristina. Dize-me o que comes e te direi quemés - alemães, comida e identidade. Curitiba, 2007. Tese (Doutoradoem História). Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes,Universidade Federal do Paraná.

SILVEIRA, Maria da Glória Alpendre. Entrevista concedida à MariaHenriqueta S. G. Gimenes, Morretes, 8 mai. 2008. 58 min.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59368

Page 369: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 369

Escolha alimentar: a questão de gênero noEscolha alimentar: a questão de gênero noEscolha alimentar: a questão de gênero noEscolha alimentar: a questão de gênero noEscolha alimentar: a questão de gênero nocontexto da alimentação fora de casacontexto da alimentação fora de casacontexto da alimentação fora de casacontexto da alimentação fora de casacontexto da alimentação fora de casa11111

Manuela Mika Jomori*

Rossana Pacheco da Costa Proença**

Maria Cristina Marino Calvo***

Resumo: O artigo analisou as diferenças entre gêneros, nocontexto da alimentação fora de casa. Identificaram-se homensque escolhiam pratos sem salada ao mesmo tempo em quemulheres declaravam escolher os alimentos, preocupando-se coma saúde e a estética corporal num restaurante self-service por peso.Esses achados permitiram discutir a complexidade da escolhaalimentar, enfocando conceito de gênero no contexto daalimentação fora de casa.

* Professora Assistente do Curso de Nutrição da UniversidadeFederal de Mato Grosso, na área de Alimentação Coletiva. Membrodo Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições(NUPPRE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).Mestre em Nutrição pela Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC). [email protected]

** Professora Adjunta do Programa de Pós Graduação em Nutriçãoe do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas daUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora doNúcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições(NUPPRE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).Doutora em Engenharia de Produção pela da Universidade Federalde Santa Catarina (UFSC). Pós-doutora em Sociologia daAlimentação pela Université de Toulouse (França).

*** Professora Adjunta do Programa de Pós Graduação em SaúdePública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membrodo Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições(NUPPRE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).Doutora em Engenharia de Produção pela da Universidade Federalde Santa Catarina (UFSC).

1 Texto recebido: 09/06/2008.Texto aprovado: 21/07/2008.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 14:59369

Page 370: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Escolha alimentar: a questão de gênero no contexto da alimentação fora de casa

370 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Palavras-Chave: Escolha alimentar. Gênero. Comensal.Alimentação fora de casa. Restaurante Self-Service por peso.

Abstract: This paper analyzed the differences found betweengenders in the food service context. We found men that chosedishes without salad at the same time that women said theychose food based on healthy and aesthetic factors in a self-servicerestaurant. These findings allowed us to discuss food choicecomplexity focusing on the gender concept in the context of theoutdoors food service.

Keywords: Food choice. Gender. Food service. Self-servicerestaurant.

1. Introdução1. Introdução1. Introdução1. Introdução1. Introdução

A comensalidade contemporânea apresenta, entreoutras características, a necessidade de adaptação dosindivíduos ao meio urbano, encaminhando o ajustedas suas práticas alimentares a questões temporais,espaciais e financeiras. Nesse contexto, o indivíduo éconfrontado, principalmente, com a falta de tempopara voltar para casa e realizar sua refeição, ou mesmopara prepará-la, optando pela alimentação fora decasa.2

Nos últimos anos, registra-se uma porcentagemconsiderável de indivíduos que realizam as refeiçõesfora de casa. A Associação Brasileira de Indústria eAlimentação (ABIA)3 constatou um crescimento médioanual de 12,5% do setor de alimentação fora de casa,os chamados food-service, no período de 1995 até 2005.A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF)4 realizadapelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE), constatou que entre 2002 a 2003 os gastoscom alimentação fora de casa das famílias das grandesmetrópoles brasileiras giraram em torno de 25% dosgastos totais com alimentação. Esses dados refletem anecessidade dos indivíduos realizarem as refeições fora

2 GARCIA, Rosa Wanda Diez.Reflexos da globalização nacultura alimentar: conside-rações sobre as mudançasna alimentação urbana.Revista de Nutrição 2003,Campinas, v.16, n.4, p. 483-492; LAMBERT, Jean Louiset all i . As principaisevoluções dos comporta-mentos alimentares: o casoda França. Revista de Nutrição;Campinas, v.8, n.5, p. 577-91, 2005; PROENÇA,Rossana Pacheco da Costa.Inovação tecnológica na produçãode alimentação coletiva. 2. ed.Florianópolis: Insular, 2000.

3 [ABIA] AssociaçãoBrasileira de Indústrias eAlimentação. Balanço Anual2005 e Perspectivas para2006. Disponível em:<http://www.abia.org.br/a n e x o s /BalancoAnual2005.pdf >.Acesso em: 18 jan. 2006

4 [IBGE] Instituo Brasileirode Geografia e Estatística.Pesquisa de OrçamentoFamiliar – 2002/2003.Disponível em: <http://www.s id r a . i bg e.g ov.b r/bda/orcfam/default.asp> .Acesso em: 30 out. 2004.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00370

Page 371: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Manuela Mika Jomori, Rossana Pacheco da Costa Proença, Maria Cristina Marino Calvo

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 371

de casa por motivos de trabalho, educação ou lazer.Autores destacam que esse quadro é característico domundo globalizado, caracterizado pela falta de tempopara preparo e consumo dos alimentos,principalmente nos grandes centros urbanos, onde osindivíduos necessitam se adaptar às questões de tempoe espaço5.

O setor de alimentação fora de casa engloba tantoestabelecimentos coletivos quanto comerciais6. Um tipode restaurante que tem sido muito freqüentado pelosbrasileiros nos últimos anos, inicialmente no setorcomercial e atualmente também no coletivo, é orestaurante por peso. Esse é um modelo self-service(auto-serviço), onde o comensal escolhe o que desejaconsumir pagando referente ao peso do que foicolocado em seu prato7. Nesse sistema, há uma ofertaampla de opções de preparações alimentares,delegando uma certa autonomia ao comensal paraescolher. Esta característica pode proporcionar que osistema de restaurante por peso seja um ambienteinteressante para se avaliar a escolha alimentar dosindivíduos.

Desse modo, foram pesquisados 293 comensaisde um restaurante por peso em Florianópolis, SC, em20058. Foram comparadas as suas práticas alimentaresobservadas com as declaradas. Para a avaliação dasprimeiras, foram tiradas fotografias dos pratos doscomensais avaliados, no momento em que cada umdeles os colocava na balança do restaurante para pesar.Junto à balança, eram anexadas fichas coloridas enumeradas para serem anotados em seu verso o nomedo indivíduo abordado e o seu respectivo setor detrabalho para ser identificado para a etapa posterior.Assim, para avaliação das práticas alimentaresdeclaradas, foram identificados os comensais atravésdas suas respectivas fichas e realizada a entrevistaatravés de um questionário de avaliação de escolhaalimentar desenvolvido nessa pesquisa. Um dosdestaques encontrados foi a diferença entre homens e

5 GARCIA, 2003; PROENÇA,Rossana Pacheco da Costa.Op. cit..

6 PROENÇA, R. P. da C. Op.cit., p.24.

7 MAGNÉE, Henry M.Manual do self-service. SãoPaulo: Livraria Varela; 1996.

8 A pesquisa fez parte de umadissertação de mestradodefendida pela autora noPrograma de Pós-Graduação em Nutrição naUniversidade Federal deSanta Catarina em 2006.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00371

Page 372: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Escolha alimentar: a questão de gênero no contexto da alimentação fora de casa

372 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

mulheres na escolha alimentar, onde os primeirosescolheram pratos sem saladas, de acordo com as suaspráticas alimentares observadas e as mulheres foramassociadas à escolha pela questão da saúde, valornutricional dos alimentos e estética corporal, a partirda avaliação de suas práticas alimentares declaradas9

Nesse sentido, a escolha alimentar humana estábaseada, por um lado, na condição onívora dohomem, isto é, apresentar a capacidade de comer detudo e, por outro lado, na situação de que o indivíduoé determinado por diversas condições que irãoinfluenciar essa decisão10. Dentre essas condições,expõem-se algumas variáveis relacionadas aosalimentos, por exemplo, a apresentação visual, o sabor,o valor nutricional, os tipos de preparações e avariedade oferecida. Além disso, abordam-se osfatores individuais, como os biológicos, oseconômicos, os sócio-culturais e os antropológicos11.

Destaca-se, contudo, que as diferenças na escolhaalimentar entre homens e mulheres são determinadaspor motivos que vão além das questões biológicasevidentes, já que o contexto histórico-cultural podeexercer uma certa influência na escolha dos indivíduos.Essa questão tem sido discutida nos estudos sobregênero.12

Considerando a complexidade da escolha alimentarhumana e a difusão dos restaurantes self-service por pesono Brasil de acordo com a pesquisa realizada emFlorianópolis, citada anteriormente, o presente artigobusca aprofundar a discussão sobre as relações dosperfis de comensais desse tipo de restaurante com asquestões de gênero, no sentido de refletir sobre aescolha alimentar desses indivíduos com esteenfoque13. Diante dessa abrangência, cabe salientar aimportância da presente publicação e divulgação dessadiscussão.

9 JOMORI, M.M. Escolhaalimentar do comensal de umrestaurante por peso .Florianópolis, 2006.Dissertação de Mestrado emNutrição – Programa de Pós-Graduação em Nutrição,Universidade Federal deSanta Cataria, 2006.

10 COURBEAU, Jean-Pierre;POULAIN, Jean-Pierre.Libres mangeurs? In:COURBEAU, J-P;POULAIN, J.P. (Org.). Penserl’alimentation : entreimaginaire et rationalité .Toulouse: Éditions Privat;2002. p.137-156.

11 JOMORI, Manuela Mika;PROENÇA, RossanaPacheco da Costa; CALVO,Maria Cristina Marino.Determinantes da escolhaalimentar. Revista de Nutrição;Campinas, v.21, n.1, p.63-73,2008.

12 SCOTT, Joan. Gênero: umacategoria útil de análisehistórica. Educação e Realidade,Porto Alegre, v. 16, n. 2, p.5-22, jul/dez. 1990; FLAX,Jane. Pós-modernismo erelações de gênero na teoriafeminista. In: HOLLANDA,Heloísa Buarque de (Org.).Pós-modernismo e Política. Riode Janeiro: Rocco, 1992;BRUSCHINI, Cristina.Gênero e Trabalho noBrasil: novas conquistas oupersistência da discrimi-nação? (Brasil, 1985-1995).In: ROCHA, Maria IsabelBaltar (Org.). Trabalho e Gênero.Mudanças, Permanências eDesafios. Campinas: ABEP,NEPO/UNICAMP, Editora34, 2000.

13 Essa discussão foi iniciadana VII Reunião deAntropologiado Mercosul emjulho de 2007, com a

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00372

Page 373: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Manuela Mika Jomori, Rossana Pacheco da Costa Proença, Maria Cristina Marino Calvo

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 373

2. Diferenças entre os gêneros2. Diferenças entre os gêneros2. Diferenças entre os gêneros2. Diferenças entre os gêneros2. Diferenças entre os gêneros

Com relação à escolha alimentar humana, Gedrichcita o determinante biológico, considerando asdiferenças entre o sexo e a idade, de acordo com asnecessidades energéticas e de nutrientes paramanutenção do metabolismo orgânico14. Entretanto,as dimensões biológicas são esgotadas na dicotomiaentre o sexo feminino e masculino, dando margens adiscussões atuais sobre o gênero para incorporar outrasdimensões nessa temática15

A palavra gênero começou a ser utilizada pelasfeministas no sentido de se referir à organização socialda relação entre os sexos. Segundo J. FLAX,recentemente essa palavra indica uma rejeição aodeterminismo biológico, o qual está implícito no termosexo16. Diante disso, a autora refere-se a gênero comouma categoria de análise, considerando além dasquestões biológicas, as questões históricas, políticas eeconômicas. Assim, ela sugere duas proposições: ogênero como um elemento constitutivo de relaçõessociais, as quais são baseadas nas diferenças percebidasentre os sexos e o gênero como um primeiro modode dar significado às relações de poder. Dessa maneira,o conceito de gênero acentua que as representaçõessobre a ordem biológica (dicotomia entre o masculinoe o feminino) podem diferir de acordo com as relaçõessociais e com as relações de poder. As primeirasreferem-se às representações simbólicas entre as classes,as etnias e culturas, e as raças, as quais levam àsconstruções sociais. Já as relações de poder abarcamos conceitos normativos, característicos das instituiçõestradicionais como as doutrinas religiosas, educativas,científicas, políticas ou jurídicas que classificam ospapéis adequados aos homens e mulheres17. Nesseúltimo aspecto, inclui-se a análise histórica, como umadiscussão da aparente permanência eterna darepresentação binária do gênero18.

Segundo Beck, as conseqüências do processo de

apresentação do trabalhointitulado “A questão degênero na escolha alimentarno contexto da alimentaçãofora de casa”, no Grupo deTrabalho (GT)Antropologia daAlimentação: diálogoslatino-americanos, realizadaem Porto Alegre, RGS.Dando continuidade àdiscussão, o mesmotrabalho foi apresentado noSimpósio Temático Comidae Gênero do SeminárioInternacional Fazendo Gênero 8:Corpo, Violência e Poder,em agosto de 2008, emFlorianópolis,SC, o quepropiciou a publicação dopresente artigo.

14 GEDRICH, Kurt.Determinants ofnutritional behavior: amultitude of levers forsuccessful intervention?Appetite; v.41, n.1; p.231-8,2003.

15 SCOTT, Joan Op. cit.; FLAX,Jane. Op. cit.; BANDEIRA,Lourdes. Relações degênero, corpo esexualidade. In: GALVÃO,L; DÍAZ, J. (Org.). Saúdesexual e reprodutiva no Brasil.São Paulo: Hucitec;Population Council, 1999.

16 FLAX, Jane. Op. cit., p. 217.

17 Ibidem, p. 220.18 SCOTT, Joan. Gênero: uma

categoria útil de análisehistórica. Educação e Realidade,Porto Alegre, v. 16, n. 2, p.5-22, jul/dez. 1990. p. 8.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00373

Page 374: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Escolha alimentar: a questão de gênero no contexto da alimentação fora de casa

374 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

individualização sugeriram investigar as relações sociaisentre os sexos. O próprio autor cita que “Umaconseqüência essencial do novo ímpeto daindividualização é a revolução das relações entre os sexos, talcomo a impeliu o movimento feminista a partir dosanos 70 e a protocolou a pesquisa da mulher”19,referindo-a brevemente como sendo disseminadorada participação da mulher nas relações sociais, nomercado de trabalho, tanto no espaço privado quantopúblico. Esse exemplo sugere investigar essas relações,as quais podem ser verificadas em alguns estudos sobregênero.

Dentre esses estudos sobre gênero20, destaca-seBruschini ao fazer um levantamento relacionandogênero e trabalho, no qual as mulheres representaramuma grande parcela da população no mercado detrabalho, bem como no alto nível de escolaridade, emcomparação aos homens21. Além disso, consideram-se as abordagens de Flax referindo-se às conquistasdas mulheres nesse campo, o que contribuiu paraembasar as teorias feministas, características da pós-modernidade22.

Já Bandeira, incorpora a questão de gênero naabordagem biológica dada as diferenças entre homense mulheres23, conforme citado anteriormente. Damesma forma, Corrêa relata algumas diferenças entreos gêneros na questão saúde. Em sua pesquisa,constatou-se uma maior expectativa de vida entre asmulheres, contrastando com a maior morbidadefeminina, em comparação ao sexo masculino. Algumashipóteses sugeridas pela autora referem-se ao fato deque as mulheres informam mais sobre os seus sintomas,utilizam mais remédios e serviços de saúde, bem comoapresentam maior incidência de problemas de saúdereprodutiva. Abordam, ainda, a questão da construçãoda feminilidade, a qual está relacionada ao fato dasmulheres apresentarem sintomas muito vagos e maiorpreocupação preventiva, recorrendo mais aos serviçosmédicos que os homens24.

19 BECK, Ulrich. Liberdade oucapitalismo – Ulrich Beckconversa com JohannesWillins. Tradução LuizAntônio de O. Araújo. SãoPaulo: Editora UNESP,2003. p. 23.

20 (SCOTT, Joan.Op. cit . ;FLAX. Op. cit.; BANDEIRA.Op. cit.; CORRÊA, Sônia.Gênero e Saúde: campo emtransição. In: BRUSCHINI,C.; UNBEHAUM, S. G.(Org.). Gênero, democracia esociedade brasileira. Edição. 34.São Paulo: Fundação CarlosChagas, 2002).

21 BRUSCHINI, Cristina. Op.cit., p. 22.

22 FLAX, Jane. Op. cit., p. 216.

23 BANDEIRA, Lourdes. Op.cit., p. 181.

24 CORRÊA, Sônia. Op. cit., p.380.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00374

Page 375: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Manuela Mika Jomori, Rossana Pacheco da Costa Proença, Maria Cristina Marino Calvo

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 375

Diante do exposto, destacam-se as mudançasocorridas ao longo da história nas relações sociais entreos sexos, bem como a complexidade do tema dentrodas sociedades contemporâneas. Assim, cabe situar adiscussão sobre gênero no contexto da alimentaçãofora de casa, cujo fenômeno é também característicodo quadro atual de contemporaneidade, sendoinfluenciado pela questão de gênero.

3. Questão de gênero e a alimentação fora de casa3. Questão de gênero e a alimentação fora de casa3. Questão de gênero e a alimentação fora de casa3. Questão de gênero e a alimentação fora de casa3. Questão de gênero e a alimentação fora de casa

O quadro de urbanização atual é caracterizado pelainserção feminina no mercado de trabalho,modificando o cenário doméstico, o que antes erarepresentado pela mulher como a responsável pelaalimentação de outros membros da família25. Algunsautores destacam que, apesar da busca progressiva dasmulheres em se liberar das atividades alimentaresdomésticas, na França, atualmente, 80% dessasatividades ainda são de sua responsabilidade. Salientamque, com a evolução no nível de vida, o modelocultural de dona de casa tende a ser menos evidentenas classes média e rica, devido ao poucoreconhecimento dessas atividades nas sociedadesocidentais contemporâneas, gerandodescontentamento em realizá-las. Dessa forma, amulher tem investido no mercado de trabalho, fatoque reduz o tempo destinado às atividadesdomésticas.26

Nesse quadro de urbanização e da alimentaçãocontemporânea, as escolhas no ambiente fora de casapodem se tornar ainda mais complexas para ocomedor 27 humano, uma vez que ele passa se alimentarjunto a outras pessoas, em outros locais, consumindoalimentos diferentes e com opções variadas. Dessamaneira, isso se torna um “dilema para o comensal,ao ter que decidir quando, o quê, como, com quem eaonde comer”28. Assim, o que antes estava limitadoao cenário doméstico, tendo a mulher como

25 GARCIA, Rosa Wanda Diez.A comida, a dieta, o gosto –mudanças na culturaalimentar urbana. Tese(Doutorado em PsicologiaSocial) - Universidade deSão Paulo, São Paulo, 1999;GARAVELLO, Maria Elisade Paula Eduardo. Arroz,feijão e coca-cola: discussãosobre o comportamentoalimentar. In: Simpósio Sul-Brasileiro de Alimentação eNutrição: História, Ciência eArte. Florianópolis: 26-28,abr., 2000).

26 LAMBERT, Jean Louis etalli. Op. cit; BRUSCHINI. Op.cit.; TORRES, Anália. Aindividualização nofemininino, o casamento eo amor. In: PEIXOTO C.E.;SINGLY, F.; CICCHELLI, V.(Org.). Família eIndividualização. São Paulo:FGV, 2000; VENTURI,Gustavo; RECAMAN,Marisol; OLIVEIRA, Suely.A mulher brasileira nos espaçospúblico e privado. São Paulo,Fundação Perseu Abramo,2004.

27 A palavra comedor,segundo nota de traduçãodo livro Sociologias daAlimentação (POULAIN,2004. p.20), numa traduçãoliteral da língua francesa dapalavra mangeur, significa oser que come, adotado pelasociologia da alimentaçãoatual, no sentido de sedistinguir do termocomensal, que significa oser que come com outraspessoas na mesma mesa.

28 GARCIA, Rosa Wanda Diez.Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00375

Page 376: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Escolha alimentar: a questão de gênero no contexto da alimentação fora de casa

376 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

responsável pela alimentação dos membros dafamília29, passa a ser exercido em horizontes maisamplos, com esta responsabilidade diluída e cadaindivíduo com maior autonomia para escolher o quevai comer.

Segundo Beck, a questão da autonomia pode serentendida a partir da noção de individualização nomundo contemporâneo, na qual os indivíduos estão,de certa forma, encarregados de fazer suas própriasescolhas, de maneira que se desvinculem das instituiçõessociais tradicionais (como, por exemplo, a família).Isso implica na “dissolução desses modelostradicionais, das matrizes de organização do cotidiano,dos deveres atribuídos aos diferentes papéis” tantodo homem quanto da mulher30. Assim, as biografiaspróprias se intensificam pelas decisões individuais,dentro de “uma dinâmica institucional endereçada aoindivíduo e não ao grupo”31. Essa individualizaçãoatribui liberdade aos indivíduos com relação às“diretrizes tradicionais, acerca dos papéis dos sexos epela organização das famílias” 32, podendo tornar-seum aspecto marcante na escolha alimentar dosindivíduos.

Conforme já discutido, no setor de alimentaçãofora de casa, o comensal tem a opção pelo restauranteself-service por peso. Esse modelo pode viabilizar aavaliação da escolha alimentar dos indivíduos, porapresentar uma oferta ampla de opções depreparações alimentares e disponibilizar uma certaautonomia ao comensal para escolher. Abdala33 ressaltaque em serviços por peso e similares, a disponibilidadede grande oferta nos bufês pode induzir os indivíduosa realizarem misturas inusitadas de alimentosrelacionadas ao aumento de peso corporal eproblemas de saúde.

No estudo realizado em Florianópolis, SC, sobrea escolha alimentar de comensais de um restauranteself-service por peso, um dos perfis de comensaisencontrado caracterizava-se predominantemente por

29 GARCIA. Op. cit . ;GARAVELLO. Op. cit.

30 BECK, Ulrich, op. cit. p. 69.31 Ibidem, p. 69.32 Idem Ibidem, p. 69.

33 ABDALA, Mônica Chaves.Self-services: espaços deuma nova cena familiar.Cader no Espaço Feminino,Uberlândia, v. 6, n. 6, p. 79-92, 1999.__________. Representaçõessobre o comer fora: umestudo em sel f-servicesmineiros. In: MACIEL,Maria Eunice; GOMBERG,Estélio (Org.). Temas emcultura e alimentação. Sergipe:UFS/Fundação OviêdoTeixeira, 2007. p. 99-116.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00376

Page 377: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Manuela Mika Jomori, Rossana Pacheco da Costa Proença, Maria Cristina Marino Calvo

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 377

mulheres que escolhiam os alimentos baseadas nasquestões de saúde, de valor nutricional e de estéticacorporal34. Isso não foi detectado entre os homens,os quais escolheram pratos sem salada ao se avaliaremsuas práticas alimentares observadas35 e a maioriadeclarou escolher pelo prazer que o alimentoproporciona, em detrimento do valor nutricional.

Segundo Abdala36, de acordo com asrepresentações das famílias de sua pesquisa que buscamtomar refeições nos restaurantes self-services, a questãodo prazer em comer se contrapõe à preocupaçãoemergente da alimentação ligada à saúde e à estética, aqual é caracterizada por restrições bastante divulgadaspela mídia. Essa abordagem influi de certa forma, nocomportamento alimentar dos indivíduos, desdeidades precoces, de acordo com os relatos das pessoasque realizam as refeições fora de casa em seu estudo.

De acordo com Chambers et al37, as mulheres deseu estudo preocuparam-se mais com a questão desaúde associada ao ideal de aparência física do que oshomens, os quais consideraram não seguir umaalimentação muito saudável. Isso também é condi-zente com os relatos de Corrêa, citados anteriormente.

Esse quadro foi verificado por Batalha et al queavaliaram o comportamento do consumidor,identificando alguns perfis de diferentes tipos deconsumidor (perfis A, B, C, D, E e F). Os autoresconstataram que os indivíduos identificados no perfilC, composto pela maioria mulheres, estavampreocupados com a forma física e com uma vidasaudável38. Dessa forma, destacou-se essa questão aocitar as diferenças entre os gêneros no comportamentode escolha dos alimentos. As mulheres sãoconsideradas mais preocupadas com os aspectosrelacionados à saúde proporcionada pelos alimentosdo que os homens. Isso pode ser justificado pelo fatohistórico-cultural delas normalmente assumirem aresponsabilidade de gerir a despensa dos lares, demanter a família nutrida e saudável e de se

34 JOMORI, Manuela Mika. Op.cit.,2006. p. 89.

35 Idem.

36 ABDALA, M. C. Op. cit.

37 CHAMBERS, Stephanie etalli. The influence of ageand gender on food choice:a focus group exploration.International Journal ofConsumer Studies, v. 32, n.4,p. 356–365, 2008.

38 BATALHA, Mário Otávio;LUCHESE, Telma;LAMBERT, Jean Louis.Hábitos de consumoalimentar no Brasil:realidade e perspectivas. In:BATALHA MO. Gestão deagronegócios – textosselecionados. São Carlos:UFSCar, 2005.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00377

Page 378: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Escolha alimentar: a questão de gênero no contexto da alimentação fora de casa

378 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

preocuparem com a alimentação das crianças. Alémdisso, esses autores constataram que as mulheresestudadas preocupam-se em modificar seus hábitosalimentares e fazer mais esportes para a busca de umavida mais saudável39.

A estética corporal, outra variável evidenciada nogrupo dos Aplicados na pesquisa de Jomori, éconsiderada marcante no comportamento atual dapopulação em geral, com destaque especial entre osindivíduos do sexo feminino40. “As preocupaçõesestéticas e dietéticas, caracterizando o modelo do corpomagro, principalmente entre as mulheres, é umaevidência no mundo globalizado, demonstrada nosmodelos difundidos pela mídia”.41

Esse contexto é abordado por Fischler, quandodiz que as sociedades modernas estão se tornandolipofóbicas, ou seja, adquirindo aversão à gordura. Oautor ressalva que a cultura de massa divulga a imagemde corpos esbeltos, como modelos desejados eprescritos. Por outro lado, as ciências médicas seengajam na luta contra a gordura para a prevenção dedoenças que afetam mais aos homens que àsmulheres42. Apesar disso, a obsessão pela magreza épredominante entre as mulheres, fato que temdesencadeado alguns distúrbios do comportamentoalimentar tais como anorexia e bulimia, entre outros43.Assim, pode-se dizer que a cultura de massa e asociedade têm os discursos médicos e dietéticosbastante interiorizados, pregando o culto à magrezacorporal.44

Nesse contexto, destacam-se Germov eWilliams na discussão sobre o ideal de magrezacorporal e consumo alimentar diferenciado, os quaisestão relacionados ao sexo feminino. Os autoresdelinearam as influências históricas, estruturais eculturais do ideal de magreza corporal e o papel damulher em reforçá-lo ou rejeitá-lo, sinalizandoestratégias para o desafio das práticas alimentares e aquestão corporal45.

39 Ibidem.

40 GERMOV, John;WILLIAMS, Lauren. Asociology of food and nutrition:The social appetite. 2ndEdition, Oxford UniversityPress: National Library ofAustralia, 2004.

41 FISCHLER, Claude.L’Homnivore. Le goût, lacuisine et le corps. Paris:Éditions Odile Jacob, 1990.p. 297.

42 Ibidem, p. 298.43 FISCHLER, Op. cit. ;

ALVARENGA, Marle. Amudança na alimentação eno corpo ao longo dotempo. In: PHILIPPI, S. T.;ALVARENGA M.Transtornos alimentares: umavisão nutricional. São Paulo:Manole, 2004; ALVES,Emilaura. Sintomas deanorexia nervosa e imagemcorporal em adolescentes femininasde Florianópolis. Dissertação(Mestrado em Nutrição) -Universidade Federal deSanta Catarina,Florianópolis, 2006.

44 Idem Ibidem, p. 298,

45 GERMOV, John;WILLIAMS, Lauren. Op. cit.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00378

Page 379: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Manuela Mika Jomori, Rossana Pacheco da Costa Proença, Maria Cristina Marino Calvo

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 379

Além disso, com relação às práticas alimentaresobservadas no estudo realizado em Florianópolis,verificou-se uma forte associação entre os indivíduosdo sexo masculino e a categoria de pratos sem salada46,o que pode representar uma não preocupação pelovalor nutricional e, conseqüentemente, pela saúde naescolha dos alimentos. Um outro perfil, compostopela maioria de homens, foi caracterizado pelasvariáveis prazer e sabor, considerados comoimportantes na escolha alimentar, em detrimento dovalor nutricional dos alimentos47. De acordo com oestudo de Batalha et al, citado anteriormente, um dosperfis encontrados (perfil D) foi o que relacionou aalimentação ao prazer, sendo constituído pela maioriado sexo masculino. Constatou-se que esses indivíduosse caracterizaram por falarem sobre comida, aocontrário do perfil composto pela maioria mulheres(perfil C), o qual se preocupava com o controle deapetite e peso, buscando modificar seus hábitosalimentares48. Assim, a associação entre o sexomasculino e a escolha por pratos sem saladaobservados contrasta com a preocupação com a saúdeverificada no grupo composto pela maioria demulheres, citado no estudo de Jomori49. É importantesalientar que essas questões de gênero não são limitadasàs dimensões biológicas verificadas por Gedrich.Como foi citado anteriormente, alguns estudos sobreo tema acentuam que as representações sobre a ordembiológica (dicotomia entre o masculino e o feminino)podem diferir de acordo com as sociedades,momentos históricos, etnias, religiões, dentre outrosfatores.50

Nesse sentido, Beck aborda a questão daindividualização na contemporaneidade, que se aplicatanto ao homem quanto à mulher, dissolvendo osmodelos tradicionais dos papéis dos sexos dentro dafamília51. Isso pode implicar na escolha individuais. Essecontexto é também discutido por Torres (2004) aoabordar sobre a tendência global para a

46 Ibidem

47 JOMORI, Manuela Mika. Op.cit.,2006. p.112.

48 BATALHA, Mário Otávio;LUCHESE, Telma;LAMBERT, Jean Louis. Op.cit.

49 JOMORI, Manuela Mika. Op.cit.,2006. p.101.

50 SCOTT. Op. cit; FLAX, Op.cit.; BRUSCHINI, Op. cit..

51 BECK, Ulrich. Op. cit., p. 69.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00379

Page 380: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Escolha alimentar: a questão de gênero no contexto da alimentação fora de casa

380 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

individualização e, conseqüentemente para uma maiorautonomia nas decisões no campo amoroso, docasamento e da construção da família52.

5. Considerações finais5. Considerações finais5. Considerações finais5. Considerações finais5. Considerações finais

O estudo procurou orientar-se na necessidade decompreender a forma como o indivíduo opera aescolha alimentar, de acordo com o gênero, nocontexto da alimentação fora de casa, maisespecificamente no restaurante self-service por peso.

Diante disso, procurou-se ref letir sobre aalimentação fora de casa,onde a representação daescolha alimentar pelo gênero feminino parece sermarcada pela preocupação com a saúde e com aestética corporal, enquanto o gênero masculino muitasvezes parece buscar o prazer dos alimentos, sem seimportar com o valor nutricional.53Diante disso,procuramos refletir sobre a caracterização dessequadro, no contexto da alimentação fora de casa, ondea representação da escolha alimentar pelo gênerofeminino parece ser marcada pela preocupação coma saúde e com a estética corporal, enquanto o gêneromasculino muitas vezes parece buscar o prazer dosalimentos, sem se importar com valor nutricional.

A partir da análise, salienta-se a necessidade deinvestigação das representações sociais de indivíduos,buscando as diferenças entre homens e mulheres, quefreqüentam um restaurante self-service por peso comrelação à sua escolha alimentar. Diante disso, na lógicade uma sociedade contemporânea, a necessidade daalimentação fora de casa e a diferença entre os gênerospodem intensificar a complexidade da escolhaalimentar. Portanto, inserção das questões de gêneronesse contexto de escolha alimentar humana podeassim, contribuir para a troca de olhares entre asCiências Nutricionais e Ciências Humanas.

52 TORRES, Anália. Aindividualização nofemininino, o casamento eo amor. In: PEIXOTO, C.E.;SINGLY, F.; CICCHELLI, V.(Org.). Família eIndividualização. São Paulo:FGV, 2000. p. 150.

53 JOMORI. Op. cit., 2006.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00380

Page 381: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Manuela Mika Jomori, Rossana Pacheco da Costa Proença, Maria Cristina Marino Calvo

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 381

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ABDALA, Mônica Chaves. Self-services: espaços de uma nova cenafamiliar. Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, v. 6, n. 6, p. 79-92,1999.

_____. Representações sobre o comer fora: um estudo em self-services mineiros. In: MACIEL, Maria Eunice; GOMBERG,Estélio (Org.). Temas em cultura e alimentação. Sergipe: UFS/Fundação Oviêdo Teixeira, 2007. p. 99-116.

ALVARENGA, Marle. A mudança na alimentação e no corpo aolongo do tempo. In: PHILIPPI, S.T.; ALVARENGA, M. (Org.).Transtornos alimentares: uma visão nutricional. São Paulo: Manole,2004. p.1-20.

ALVES, Emilaura. Sintomas de anorexia nervosa e imagem corporalem adolescentes femininas de Florianópolis. Dissertação (Mestrado emNutrição) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,2006. 122 p.

BATALHA, Mário Otávio; LUCHESE, Telma; LAMBERT, JeanLouis. Hábitos de consumo alimentar no Brasil: realidade eperspectivas. In: BATALHA, M.O. (Org.). Gestão de agronegócios –textos selecionados. São Carlos: UFSCar, 2005.

BANDEIRA, Lourdes. Relações de gênero, corpo e sexualidade.In: GALVÃO, L.; DÍAZ, J. (Org.). Saúde sexual e reprodutiva noBrasil. São Paulo: Hucitec; Population Council, 1999. p. 180-197.

BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo – Ulrich Beck conversacom Johannes Willins. Tradução: Luiz Antônio Oliveira de Araújo.São Paulo: UNESP, 2003.

BRUSCHINI, Cristina. Gênero e Trabalho no Brasil: novasconquistas ou persistência da discriminação? (Brasil, 1985-1995).In: ROCHA, Maria Isabel Baltar (Org.). Trabalho e Gênero.Mudanças, permanências e desafios. Campinas: ABEP, NEPO/UNICAMP, Editora 34, 2000.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00381

Page 382: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Escolha alimentar: a questão de gênero no contexto da alimentação fora de casa

382 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

CHAMBERS, Stephanie et alli. The influence of age and genderon food choice: a focus group exploration. International Journal ofConsumer Studies, v. 32, n. 4, p.356–365, 2008.

CORRÊA, Sônia. Gênero e saúde: campo em transição. In:BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Org.). Gênero, democraciae sociedade brasileira. São Paulo: 34/Fundação Carlos Chagas, 2002,p. 357-388.

COURBEAU, Jean-Pierre; POULAIN, Jean-Pierre. Libresmangeurs? In: COURBEAU, J-P ; POULAIN, J.P. (Org.). Penserl’alimentation: entre imaginaire et rationalité. Toulouse: ÉditionsPrivat; 2002. p.137-156.

FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de gênero na teoriafeminista. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Pós-modernismo e Política. Rio de Janeiro, Rocco, 1992. p. 216-250.

FISCHLER, Claude. L’Homnivore. Le goût, la cuisine et le corps.Paris: Éditions Odile Jacob, 1990.

GARAVELLO, Maria Elisa de Paula Eduardo. Arroz, feijão ecoca-cola: discussão sobre o comportamento alimentar. In: SimpósioSul-Brasileiro de Alimentação e Nutrição: História, Ciência e Arte.Florianópolis: 26-28, abr., 2000. p.149-152.

GARCIA, Rosa Wanda Diez. A comida, a dieta, o gosto – mudançasna cultura alimentar urbana. Tese (Doutorado em PsicologiaSocial). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.

________.Reflexos da globalização na cultura alimentar:considerações sobre as mudanças na alimentação urbana. Revistade Nutrição 2003, Campinas, v.16, n.4, p. 483-492.

GEDRICH, Kurt. Determinants of nutritional behavior: amultitude of levers for successful intervention? Appetite; v.41,n.1; p.231-8, 2003.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00382

Page 383: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Manuela Mika Jomori, Rossana Pacheco da Costa Proença, Maria Cristina Marino Calvo

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 383

GERMOV, John; WILLIAMS, Lauren. A sociology of food andnutrition: The social appetite. 2nd Edition, Oxford UniversityPress: National Library of Australia, 2004, 462p.

[IBGE] Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa deOrçamento Familiar – 2002/2003. Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/orcfam/default.asp>. Acesso em: 30out. 2004.

JOMORI, Manuela Mika. Escolha alimentar do comensal de umrestaurante por peso. Dissertação (Mestrado em Nutrição).Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.

JOMORI, Manuela Mika; PROENÇA, Rossana Pacheco da Costa;CALVO, Maria Cristina Marino. A questão de gênero na escolhaalimentar no contexto da alimentação fora de casa. In: Grupo deTrabalho Antropologia da Alimentação: diálogos latino-americanosda VII Reunião de Antropologia do Mercosul: DesafiosAntropológicos, Porto Alegre, 23 a 26 de julho de 2007.

JOMORI, Manuela Mika; PROENÇA, Rossana Pacheco da Costa;CALVO, Maria Cristina Marino. Determinantes da escolhaalimentar. Revista de Nutrição; Campinas, v.21, n.1, p.63-73, 2008.

JOMORI, Manuela Mika; PROENÇA, Rossana Pacheco da Costa;CALVO, Maria Cristina Marino. A questão de gênero na escolhaalimentar no contexto da alimentação fora de casa. In: SimpósioTemático Comida e Gênero do Seminário Internacional FazendoGênero 8: Corpo, Violência e Poder, Porto Alegre, 25 a 28 deagosto de 2008.

LAMBERT, Jean Louis et alli. As principais evoluções doscomportamentos alimentares: o caso da França. Revista de Nutrição;Campinas, v. 8, n. 5, p. 577-91, 2005.

MAGNÉE, Henry M. Manual do self-service. São Paulo: LivrariaVarela; 1996.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00383

Page 384: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Escolha alimentar: a questão de gênero no contexto da alimentação fora de casa

384 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

POULAIN Jean-Pierre. Sociologias da Alimentação. TraduçãoPROENÇA; RIAL; CONTE. Florianópolis (SC): UFSC, 2004.

PROENÇA, Rossana Pacheco da Costa. Inovação tecnológica naprodução de alimentação coletiva. 2. ed. Florianópolis: Insular, 2000.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica.Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul/dez.1990.

TORRES, Anália. A individualização no femininino, o casamentoe o amor. In: PEIXOTO, C.E.; SINGLY, F.; CICCHELLI, V.(Org.). Família e Individualização. São Paulo: FGV, 2000.

VENTURI, Gustavo; RECAMAN, Marisol; OLIVEIRA, Suely.A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: FundaçãoPerseu Abramo, 2004.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00384

Page 385: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

BIOGRAFIABIOGRAFIABIOGRAFIABIOGRAFIABIOGRAFIA

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00385

Page 386: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00386

Page 387: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 387

Cora Coralina: a construção da Mulher-Cora Coralina: a construção da Mulher-Cora Coralina: a construção da Mulher-Cora Coralina: a construção da Mulher-Cora Coralina: a construção da Mulher-MonumentoMonumentoMonumentoMonumentoMonumento11111

Andréa Ferreira Delgado

Resumo: O processo de metamorfose de Cora Coralina emum Monumento que produz, testemunha e eterniza opassado é investigado a partir do delineamento dosmecanismos de produção de diferentes memórias que seconfrontam na batalha pela instituição da biografiahegemônica da poeta.

Palavras-Chave : Gênero. Memória. Biografia.Autobiografia.

Abstract: The process of transformation of Cora Coralinain a Monument that produces, witnesses and eternizes thepast is investigated from the delineation of mechanisms ofproduction of diferent memories that face each other in thebattle to stablish the hegemonic biography of the poet.

Keywords: Gender. Memory. Biography. Autobiography.

Andréa Ferreira Delgado.. A invenção de Cora Coralina na batalha dasmemórias. Campinas, 2003. Tese (Doutorado em História) – Institutode Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual [email protected]

1 Texto recebido: 08/06/2008Texto Aprovado: 02/07/2008

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00387

Page 388: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

388 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

A escrita deste texto é um percurso pela narrativa“A invenção de Cora Coralina na batalha dasmemórias”2, cuja trama delineia uma rede de memóriasque instauram Cora Coralina como monumento edisputam a instituição da biografia hegemônica: aautobiografia tecida pela poeta, a memória construídapela exposição do Museu Casa de Cora Coralina, abiografia escrita pela filha da poeta e a memóriasubterrânea engendrada na cidade de Goiás.

Para traçar esse novo itinerário, vou investigar ateia discursiva que produz Cora Coralina comosímbolo da cidade de Goiás, entrelaçando o conceitode memória com a categoria gênero. A criação dotermo Mulher-Monumento pretende enfatizar que oprocesso de instituição de Cora Coralina comomonumento agencia continuamente valores, normas,representações, trajetórias e papéis sociaishistoricamente construídos para o gênero feminino3.

O monumento, no sentido tradicional, é uma obraerigida para ultrapassar o presente e transmitir àposteridade a memória de uma pessoa ou fato. Nasociedade contemporânea, a construção de indivíduos-monumentos com o poder de representar, evocar eperpetuar o passado representa objeto privilegiadono estudo da constituição e imposição da memóriacoletiva.

A monumentalização4 de Cora Coralina estáentrelaçada ao processo de instituição de Goiás comocidade histórica e turística. Uma explosão discursivatece a rede que captura a poeta e a cidade para a tramada história da memória, objetivando-os enquanto“lugares da memória”5 por meio de estratégiasentrelaçadas que produzem Goiás como âncora daidentidade regional e, ao mesmo tempo, inventamCora Coralina como símbolo emblemático da cidade.

No campo da memória, como nos ensina LeGoff6, conflitos e relações de poder marcam asdisputas pela dominação da recordação e da tradição.Na cidade de Goiás, portanto, interessa perscrutar

2 DELGADO, AndréaFerreira. A invenção de CoraCoralina na batalha dasmemórias. Campinas, 2003.Tese (Doutorado emHistória) – Instituto deFilosofia e CiênciasHumanas, UniversidadeEstadual de Campinas.

3 O gênero é um dosdispositivos de “governo”dos indivíduos, entendidona acepção foucaultianacomo um conjunto amplode técnicas eprocedimentos destinadosa dirigir homens emulheres: tanto através depráticas de normatização edisciplinarização queobjetivam o sujeito, quantoatravés das práticas dogoverno de si por si, decontrole e de exercício desi sobre si. FOUCAULT,Michel. Les techniques desoi. In: Dits et écrits - IV, 1980-1988. Paris: Gallimard,1994b.

4 Conforme Regina Abreu,monumentalização é oprocesso pelo qual umapessoa passa a integrar opatrimônio de uma naçãoou região. ABREU, Regina.Emblemas danacionalidade: o culto aEuclides da Cunha. RevistaBrasileira de Ciências Sociais.São Paulo, n. 24, p. 66-84,1994.

5 NORA, Pierre. Entrememórias e história. Aproblemática dos lugares.Projeto História. São Paulo, n.10: 7-28, 1993, p. 8 e 28.

6 LE GOFF, Jacques.Memória – História. InEnciclopédia Einaudi , v. 1.Portugal: ImprensaNacional - Casa da Moeda,1984.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00388

Page 389: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 389

também os discursos dissidentes e delinear a memóriasubterrânea que, ao estabelecer a biografia da poeta apartir de determinada concepção do gênero feminino,produz a Cora-estigmatizada.

A artesã e guardiã da memóriaA artesã e guardiã da memóriaA artesã e guardiã da memóriaA artesã e guardiã da memóriaA artesã e guardiã da memória

No entrecruzamento do campo da literatura coma mídia, uma teia discursiva confere visibilidade paraCora Coralina ao entrelaçar obra e história de vidapara instituí-la como artesã e guardiã da memória,socialmente investida do poder de testemunhar eeternizar o passado.

A produção deste acontecimento discursivo é ogesto inicial de construção do Monumento: a recepçãoda obra de Cora Coralina é indissociável dacomposição midiática da personagem da anciã doceirae poeta que vive solitária na Casa Velha da Ponte,dedicando-se a tecer o passado pessoal e coletivo,oralmente ou na escrita da memória, deixando asportas sempre abertas para receber aqueles que aprocuram para comprar seus doces e/ou ouvir suaspalavras poéticas.

As práticas discursivas do processo demonumentalização são acompanhadas de profusafabricação iconográfica. Nas reportagens televisivas,a câmara concentra-se em Cora, detendo-se em closesdo seu rosto e de suas mãos. Em algumas, intercalam-se as imagens da poeta falando ou declamando poesiascom cenas da cidade de Goiás. Nos jornais e revistas,as reportagens são invariavelmente acompanhadas defotografias da poeta, cujas legendas costumam trazeralgumas de suas declarações.

A figura humana entrelaça-se com a produção,circulação e recepção do seu discurso: a velhinha decabelos brancos, magra, face enrugada, de aparênciafrágil, locomovendo-se com dificuldades, encantaquando transforma a voz trêmula num torrencial depalavras fortes.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00389

Page 390: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

390 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

A singularização da experiência do envelhecimentode Cora Coralina foi produzida como uma das facesprincipais do Monumento. Esse processo estáintimamente relacionado com a construção da práticado ofício de doceira como um dos marcosbiográficos da poeta7. Na década de sessenta e,principalmente, nos anos setenta do século passado, apersonagem da doceira-poeta emerge da mídia:

Hoje em dia, a poetisa e doceira famosa faz parte das atraçõesturísticas da cidade. Lúcida e atualizada sobre todos osassuntos, sempre com um dicionário no colo e cercada delivros e jornais de todo o Brasil, ela recebe diariamente dezenasde estudantes, a quem transmite seus conceitos de moral.8

A mulher octogenária que transmite ensinamentosaos jovens é a artesã de doces e poemas, visceralmenteassociados à cidade de Goiás; é a anciã que contahistórias e declama poesias enquanto faz doces comreceitas centenárias. Enfim, é a condição de doceiraque configura o lugar social de emergência da voz dapoeta, conformado pelo sistema de valores erepresentações historicamente atribuído ao gênerofeminino.

Mesmo no início dos anos 1980, quando Cora jánão fazia mais doces devido às dificuldades delocomoção após dois acidentes domésticos, a condiçãode doceira continuou sendo mencionada. Nesseperíodo, a construção da personagem midiáticavisibiliza mais sua produção literária e consagra a poetanonagenária.

Nas entrevistas que concede, espaço midiáticofundamental para a divulgação da sua obra e para aformação da sua imagem pública, a poeta singularizasua escrita ao entremear a matéria poética com aprópria vida. Produzindo sentidos e significados parasua prática literária e para sua biografia, Cora Coralinatorna-se artífice da fundação dos marcos hegemônicosdo processo de monumentalização.

7 DELGADO, AndréaFerreira. Cora Coralina: apoética do sabor. Ilha: Revistade Antropologia .Florianópolis, v. 4, n. 1, p.59-83, jul. 2002.

8 Léo Borges Ramos. Ainteligência não tem idade.Cinco de Março. Goiânia, 12 a18 de julho de 1976.Transcrito da Revista Fatos eFotos, 4 jul. 1976.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00390

Page 391: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 391

Na primeira página do seu livro inaugural,publicado em 1965, Poemas dos Becos de Goiás e EstóriasMais, ela escreve “Ao Leitor” para anunciar que sepropõe a “rever e assinar os autos do Passado antesque o Tempo passe tudo a raso”, dirigindo-se à“geração nova, sempre atenta e enlevada nas estórias,lendas, tradições, sociologia e folclore de nossa terra”para quem afirma ter escrito “este livro de estórias”9.Na página seguinte, faz uma “Ressalva”: “Este livrofoi escrito / por uma mulher / que no tarde da Vida/ recria e poetiza sua própria / Vida”10.

Entretecendo memória coletiva e memóriaautobiográfica, Cora Coralina se declarou capaz deproduzir “os autos do passado” da cidade de Goiás,anunciando que essa tarefa era também recriação daprópria vida. O gênero e a ancianidade são condiçõespara o tecer da memória: essa tarefa é desempenhadapor uma mulher “no tarde da Vida”.

Cora Coralina, ao compor poemas e contarhistórias cujos enredos emergem do jogo da linguagemcom as múltiplas camadas do tempo, interliga passado,presente e futuro pela memória que (re)cria os espaçosda cidade de Goiás. Amalgamando memorialismo eautobiografia, ela inscreve determinado passado namaterialidade urbana e desenha a “memóriatopográfica”11 de Goiás, instituindo imagens-lembranças que consagram o patrimônio tombadopelo Instituto do Patrimônio Histórico e ArtísticoNacional (IPHAN) como lugar da memória coletiva.Cora Coralina delineia, assim, um mapa da memória12

que é peça de múltiplas estratégias no processo deprodução da cidade histórica e turística.

Os gestos da memória não estão, contudo,confinados nos livros. Em constantes aparições namídia, a poeta não se cansa de produzir a articulaçãoda prática literária com a celebração da cidade deGoiás. Ao mesmo tempo, não se furta de falar de si edo seu passado. Mais do que isso, ela inscreve o poetarno “tarde da vida” como condição de singularização

9 CORALINA, Cora. Poemasdos Becos de Goiás e EstóriasMais. Goiânia: Editora daUniversidade Federal deGoiás,1980. p. 39.

10 Ibidem, p. 41.

11 “A memória topográficanão visa à reconstrução dosespaços pelos espaços, masestes são pontos dereferência para captarexperiências espirituais esociais. (...) Lugares e objetosenquanto sinaistopográficos tornam-sevasos recipientes de umahistória da percepção, dasensibilidade, da formaçãodas emoções”. BOLLE,Willi. Fisiognomia da metrópolemoderna: representação dahistória em WalterBenjamin. São Paulo:Editora da Universidade deSão Paulo, 1994, p. 335-336.

12 “Tais mapas não têm valordescritivo como os mapasusuais da cidade, construí-dos a partir de um lugarabsoluto e inexistente, masseu interesse é de outraordem, mais vivencial enarrativo, em que os trajetosestão amarrados às históriase não ao presente contínuoda descrição neutra eabsoluta”. FREIRE, Cristina.Além dos mapas: osmonumentos no imaginá-rio urbano contemporâneo.São Paulo: SESC;Annablume, 1997, p. 70.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00391

Page 392: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

392 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

da sua produção e realiza um minucioso trabalhoautobiográfico associado ao projeto de construçãoda identidade de literata.

Cora Coralina promove a monumentalização dasua trajetória de vida ao entrelaçá-la a todos os tempos,a todas as vidas, a todos os espaços da cidade deGoiás:

Nasci nesta velha casa, nesta velha cidade de Goiás e nasci noséculo passado. Tenho comigo todas as idades. E estou vivendoo melhor tempo da minha vida. Tempo de paz, tempo detranqüilidade, tempo de certezas, tempo em que não tenhonada e nada me falta. E não quero ter mais do que isto quevocê vê. Tudo isto me basta, com sobra.13

A velhice é mitificada pelo dom da palavramemoriosa capaz de tecer o passado, o presente e ofuturo. A Mulher-Monumento anuncia que, vinda doséculo passado, carrega consigo todas as idades e fundana origem da vida a ligação com a cidade. A vivênciano tempo se entrelaça ao espaço como premissa dotrabalho com a memória, condição fundamental parasua produção literária.

Do mesmo modo, quando a obra da poeta éanalisada e avaliada por agentes do mercado de benssimbólicos, na acepção cunhada por Pierre Bordieu, ainstituição das “marcas de distinção - umaespecialidade, uma maneira, um estilo”14 queconfiguram sua singularidade e seu valor literáriofundamentam-se na ancianidade e na associação entrea biografia da escritora e a cidade de Goiás.

Analisando os discursos fundadores da Mulher-Monumento percebe-se que são produzidos pelanecessidade de preencher a “função autor”, tal comodelineada por Michel Foucault15. Na intersecção docampo literário com a indústria cultural, Coratransforma-se em fato midiático quando éconstantemente convocada a falar de si mesma e dolugar onde vive, do seu passado e do passado da cidade

13 Cora Coralina. In: CoraCoralina – Especial Literatura,n. 14, 29 jan. 1985, TVE.

14 BORDIEU, Pier re. Aeconomia das trocas simbólicas.São Paulo: Perspectiva,1987, p. 109.

15 FOUCAULT, Michel. O queé o autor? Portugal: Vega,1992.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00392

Page 393: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 393

de Goiás, da sua condição de idosa que empreendeum projeto literário, das suas opiniões a respeito dosmais variados assuntos.

A Mulher-Monumento constrói a si mesma e éconstruída como repositório do patrimônio culturalque se formou ao longo do tempo e como responsávelpor sua transmissão às novas gerações; como mulher-memória, cuja vida se entrelaça ao passado coletivo;como narradora das histórias e tradições da sua terranatal ao trabalhar a experiência como matéria-primada criação literária e das lições de vida que comunica.

A ancianidade, fio que permeia a teia discursivaque institui Cora como artesã e guardiã da memória,transforma-se num dos fundamentos do processo demonumentalização, pois significados culturais esimbólicos associados a essa fase da vida sãomobilizados para instaurar o corpo envelhecido comoum registro memória e para consagrar a autoridadeda poeta, sua sapiência e seu poder de evocar o passadoe de transmitir ensinamentos.

Ao declamar suas poesias, depor e opinar, CoraCoralina corporifica sua longa experiência de vida. Elaafirma: “Posso confrontar o hoje e o ontem. O grandemestre é o tempo. (...) Eu venho de longe, tenho ascartas na mão. Posso fazer um confronto entre o quefoi e o que é”16. Sem medo de ser anacrônica, elaacredita que a longevidade lhe confere sabedoria paraanalisar o presente e lhe dá o direito de aconselhar asnovas gerações.

Na construção da personagem midiática, a fluênciaverbal da anciã manipula o passado e o presente parainstituir o dom do conselho como um dos atributosda Mulher-Monumento. Quando entrevistada, a poetanunca deixa uma pergunta sem resposta: sua voztrêmula soa forte, incisiva, sem vacilações. CoraCoralina anuncia assertivas, prescrevendo comporta-mentos, atitudes e ações para homens e mulheres.

Considero, portanto, que a recepção às palavrasproferidas por Cora Coralina e à sua obra é

16 Cora Coralina. Cora, umapoesia entre o coração e omundo. Folha de São Paulo.São Paulo, 12 out. 1983.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00393

Page 394: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

394 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

indissociável da experiência de vida que ela transmite,apoiada na autobiografia e longevidade, testemunhadapor sua imagem. Enfim, o poder alcançado pelaspalavras da poeta deve ser compreendido einterpretado a partir do conjunto de valoresagenciados junto com a exposição midiática dadoceira-poeta que reinventa a própria vida na velhice.

A autobiografia e a produção dos marcos biográficosA autobiografia e a produção dos marcos biográficosA autobiografia e a produção dos marcos biográficosA autobiografia e a produção dos marcos biográficosA autobiografia e a produção dos marcos biográficosdo Monumentodo Monumentodo Monumentodo Monumentodo Monumento

Cora Coralina construiu sua obra depois dossessenta e cinco anos de idade, quando passou a morarsozinha na Casa Velha da Ponte, dedicando-se a umaintensa e permanente relação consigo, na qual a escritade si foi um instrumento fundamental.

Na autobiografia enquanto exercício deconfiguração do sujeito, a escrita da memória tece acontinuidade temporal e a coerência entre as etapasda vida pelo arranjo de múltiplas lembranças dispersasque são cuidadosamente dispostas numa narrativa queconfere sentido à trajetória de vida. Com essa técnicade si17, profundamente influenciada por discursos epráticas do presente, mais do que transformar opassado em literatura, a poeta promove atransformação do seu passado pela práticaautobiográfica.

O desejo de Cora Coralina de esmiuçar-se não selimitou à literatura, também em inúmeras entrevistasela realiza um trabalho de enquadramento da memóriapara imprimir determinada versão acerca da suaprópria vida, inscrevendo sua biografia como um dosalicerces que instaura o processo de monumentalização.

Para historiar a si mesma, a poeta criou um modosingular de produção de memórias no qual aautobiografia literária está associada aos depoimentosorais gravados e transcritos em jornais e revistas oufilmados para emissoras de televisão. Para instituir efixar os marcos da sua biografia, Cora repete de forma

17 FOUCAULT, Michel. Lestechniques de soi. In Dits etécrits - IV, 1980-1988. Paris:Gallimard, 1994b.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00394

Page 395: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 395

recorrente um núcleo de lembranças, ao reproduziroralmente o enredo de um conjunto de poemas.

Nesse processo, que Michel Pollak chama de“solidificação da memória”18, ela configura asnarrativas constituintes da sua identidade entretecendoa vivência do presente e o rememorar do passadoaos espaços da cidade de Goiás: a infância, aadolescência e a velhice emergem como temposbiográficos fundamentais para dar sentido esignificados à trajetória construída a partir daidentificação entre o poetar e o viver, entre a matérialiterária e o curso da vida.

Na produção da autobiografia, a poeta define opresente como “o melhor tempo” da sua vida e associao retorno para Goiás à decisão de iniciar a “fabricaçãodoméstica de doces”, concebida como exercício deautonomia e estratégia para a execução do projeto19

de dedicar-se à literatura. O período que se estendede 1964 a 1978, recorrente quando ela traça seu auto-retrato nos poemas autobiográficos ou emdepoimentos, é lembrado pela poeta como aquele deconstrução do “nome bonito de doceira”.

O tempo que eu fazia doce foi um tempo maravilhoso. Umtempo em que eu me sentia realizada. Fui feliz com a minhafabricação doméstica de doce. Fiz doce para ganhar dinheiro,precisava de ganhar esse dinheiro. Apelei para os tachos epara os doces de fruta. Fiz os melhores doces da minha cidadee talvez, vamos dizer, do meu país mesmo. Acredito que emdoce ninguém trabalhasse melhor que Cora Coralina e fiz,sobretudo meu jovem, um nome bonito de doceira, meuorgulho maior.20

Sou mais doceira e cozinheira / do que escritora, sendo aculinária / a mais nobre de todas as Artes: / objetiva, concreta,jamais abstrata / a que está ligada à vida e à saúde humana.21

Para encadear presente e passado, quando lhepedem um resumo biográfico ou lhe propõem delineara trajetória de escritora, Cora narra o retorno para a

18 POLLAK, Michel. Memóriae identidade social. EstudosHistóricos. Rio de Janeiro, v.5, n. 10, p. 200-12, 1992.

19 Gilberto Velho analisa o usoda memória como estratégiado indivíduo para serelacionar com o presentee projetar o futuro, ou seja,como um mecanismo paraconstrução de umaidentidade e para a execuçãode um projeto. VELHO,Gilberto. Memória,identidade e projeto. Projetoe metamorfose. Antropologiadas Sociedades Complexas.Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1994.

20 Cora Coralina. InDepoimento de CoraCoralina. Programa VoxPopuli. TV Cultura de SãoPaulo, s/d. ArquivoAudiovisual do Museu Casade Cora Coralina.

21 CORALINA, Cora. MeuLivro de Cordel. São Paulo:Global, 1994, p.75.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00395

Page 396: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

396 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

cidade de Goiás enquanto ruptura e como marcoinaugural da efetivação da prática literária. Esseacontecimento-chave é construído de maneira singulare com elementos invariáveis, daí a importância de ouvi-lo mais de uma vez, atentando para as estratégiasnarrativas:

Nasci e me criei em Goiás Velho, até que me casei. Nasci noséculo passado, casei-me em 1910 e um ano depois deixeiGoiás e fui para São Paulo com meu marido, que não eragoiano. No Estado de São Paulo vivi 45 anos da minha vida,encaixada e sem voltar à minha terra. Só voltei a Goiás em1956. Em São Paulo tenho quatro filhos, quinze netos equinze bisnetos e tem 21 anos que voltei a minha terra, quesempre esteve presente ao meu emocional. Nunca meapaulistei, nunca deixei de ser mulher goiana e mais que tudo,mulher sertaneja, com todas as marcas de uma mulher sertanejaque me orgulho. Depois de ter dado 45 anos da minha vidaaos filhos, eu quis viver longe deles. (...) Em Goiás, vamosdizer assim, abriram-se as portas do pensamento e escrevi oprimeiro livro publicado22.

O retorno para a cidade de Goiás é instituído comodesencadeador da escrita da memória, instaurando otempo presente em que vivia a poeta.Significativamente, ela indica o ano do casamento,1910, o ano da partida para São Paulo, e a volta em1956, enfatizando que passara quarenta e cinco anossem regressar à terra natal.

Aos 67 anos, viúva há vinte e dois anos, Cora deixafilhos e netos no estado de São Paulo, regressa paraGoiás e passa a morar sozinha na Casa Velha da Ponte.A poeta constrói uma interpretação para esse aconteci-mento-chave, proclamando-o como encerramento deum ciclo vital que se iniciou com o casamento e foiplenamente configurado na maternidade: “Eu já tinhacumprido o meu dever de casa. Meus filhos estavamcriados, parti para viver minha vida”23. O períodovivido em São Paulo, onde o casamento e a

22 Cora Coralina. In Eis umagoiana José. Brasília, 13 a 19ago. 1977.

23 Cora Coralina. Qual areceita, Dona Cora? “Muitotrabalho, minha filha”.Revista Claudia, dez. 1983.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00396

Page 397: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 397

maternidade representam o destino socialmenteconstruído para o gênero feminino e significamrenúncia do desejo de escrever, é contraposto aoretorno à cidade de Goiás para “viver a própria vida”ou ocupar-se de si mesma, vivendo a velhice comotempo de invenção da uma nova trajetória.

Quando transforma o passado em matéria literária,Cora narra os períodos da sua vida a partir dediferentes estratégias de produção de memórias. Nascomposições poéticas que engendram a tramabiográfica, a infância e a adolescência são temasrecorrentes, construídas por meio de lembrançassolidificadas pelo discurso oral, enquanto que ocasamento constitui uma ausência e a maternidaderaramente é poetizada. A profusão de lembrançasassociadas à Casa Velha da Ponte e à cidade de Goiásse contrapõe ao silêncio produzido em torno domarido e do casamento, denotando a dificuldade deconviver com determinadas recordações do passadoe a impossibilidade de ressignificá-las.

Entrevemos, portanto, o quanto a produçãoautobiográfica é seletiva, elaborada por meio de umcomplexo processo de gestão da memória, ondedeterminadas lembranças são muitas vezes narradasoralmente e no discurso literário, mantendo conteúdosquase invariáveis, enquanto outras são zelosamenteadministradas, apenas eventualmente mencionadas emdepoimentos orais. Cora joga para a zona doesquecimento quarenta e cinco anos de sua vida,afirmando que não constituem matéria da memória.Ou seja, o passado é enquadrado pela memóriasolidificada, de modo a circunscrever os períodosreconstruídos minuciosamente como fundamentos dahistória de vida e, ao mesmo tempo, alijar outrosacontecimentos, personagens e lugares da biografia.

Vivenciando a velhice como reinvenção da própriavida, Cora Coralina inventa a si mesma como adoceira-poeta, no processo de construção dedeterminada identidade intimamente relacionada com

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00397

Page 398: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

398 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

o reconhecimento público que lutava por conquistara fim de executar o projeto de dedicar-se a literatura.

Na produção da imagem pública que a singularizacomo poetisa, as reminiscências escolhidas para“compor o passado”, na acepção de AlistairThomson24, revelam que o trabalho de enquadramentoda memória busca conformar sua trajetória de vidaaos códigos sociais usualmente aceitos na sociedadeem que vivia: o auto-retrato na infância édolorosamente traçado pelas lembranças das relaçõesfamiliares e sociais; a adolescência, mesmo sendo otempo dos “primeiros escritinhos”, é remorada a partirde um enredo compartilhado como destino de gênerosocialmente construído - “sonho honesto de um noivo/ o desejo de filhos, / presença de homem, casa dagente mesma, dona ser. Um lar. / Estado de casada”25;a velhice é tempo de traçar nova trajetória depois dehaver cumprido os deveres da maternidade, concebidapela poeta como função primordial da mulher.

Quando rememora o período posterior àadolescência, Cora altera as estratégias narrativas e nãoconstrói enredos autobiográficos, optando por resumirsua história de vida, recorrendo à cronologia paraestabelecer os marcos de uma versão que correspondeaos desejos anunciados: o casamento, a mudança paraSão Paulo, a maternidade, o regresso. Silenciando ouressignificando, assim, os acontecimentos dolorosos,ainda não apaziguados pelo trabalho da memória, quetalvez considerasse ameaçadores para a biografia quequeria fixar no processo de reconciliação com opassado e de construção da identidade de artesã eguardiã da memória coletiva.

Vamos entrever, mais tarde, esse passado quepermanece encoberto ou mudo e que é fundamentalpara a análise da construção autobiográfica, poisdenota as fraturas na memória, encobrindo passagensda vida para as quais não se pode reinventar oucomunicar o passado, sob pena de estilhaçar acoerência da personagem inventada para si.

24 THOMSON, Alistair.Memórias de Anzac :colocando em prática ateoria da memória popularna Austrália. Revista HistóriaOral. São Paulo, v. 4, p. 81-101, 2001.

25 CORALINA, Cora. Vintémde Cobre – meias confissõesde Aninha. Goiânia: Editorada Universidade Federal deGoiás, 1984, p. 43.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00398

Page 399: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 399

Para nossa investigação interessa que esquecer,esconder, silenciar são mecanismos da invenção de sipromovida por Cora Coralina, tanto quanto a profusãodiscursiva que produz um passado e cria uma históriade vida para a Mulher-Monumento.

O museu Casa de Cora Coralina e a consagração daO museu Casa de Cora Coralina e a consagração daO museu Casa de Cora Coralina e a consagração daO museu Casa de Cora Coralina e a consagração daO museu Casa de Cora Coralina e a consagração daimortalimortalimortalimortalimortal

A morte de Cora Coralina, no dia 10 de abril de1985, constitui um marco no processo de suamonumentalização, prenunciando o nascimento daimortal. A perpetuação da poeta como patrimôniode Goiás é indissociável do trabalho realizado pelaAssociação Casa de Cora Coralina que mantém oMuseu Casa de Cora Coralina e organiza o culto àpoeta na cidade de Goiás.

O museu estabelece os rituais simbólicos cíclicosde evocação e celebração da memória da poeta,agenciando a produção contínua de novos discursostextuais e iconográficos. Como lugar da memória, oMuseu não apenas produz e preserva a memóriamaterial de Cora Coralina, mas também engendraincessantemente determinados significados simbólicospara o Monumento. Nas práticas da rememoraçãocomemorativa que compõem o calendário anual dehomenagem à poeta e na montagem da exposição, otrabalho do Museu Casa de Cora Coralina manipulao tempo, de forma que o passado se transfigure numimperecível presente, reinventando constantemente aMulher-Monumento e perpetuando-a para o futuro.

O Museu Casa de Cora Coralina é instituídoenquanto um espaço situado fora do tempo, um “lugarheterotópico”, diria Foucault26, onde um arquivo geralde objetos, imagens e discursos, imune à corrosão dapassagem do tempo e conservado num presenteeterno, configura um projeto de organização eacumulação de todos os tempos da vida da poeta.Nesse museu biográfico, a trama de objetos expostos

26 Conforme Foucault, asheterotopias são “umaespécie de contestação aomesmo tempo mítica e realdo espaço onde vivemos”,onde os homens seencontram em rupturacom o seu tempotradicional. São “lugaresque estão fora de todos osoutros lugares”, ainda quetenham determinadascaracterísticas e sejamlocalizáveis, adquirindoformas variáveis de acordocom a sociedade e omomento histórico.FOUCAULT, Michel. Desespaces autres. In: Dits etécrits,- IV, 1980-1988. Paris:Éditions Gallimard, 1994a,p. 759.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00399

Page 400: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

400 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

agencia tempo e espaço para compor a narrativamaterial da biografia oficial.

O trabalho de produção e gestão da memória éomitido pelo discurso que propõe o resgate daessência de uma história de vida por meio de umaexposição supostamente auto-significante e auto-explicativa. No entanto, o acervo museológico é frutode uma seleção material e simbólica, cujo interesse nãoé reproduzir “tudo como no tempo de Cora”, talcomo consta nos materiais de divulgação, mas éenquadrar o passado dentro dos limites da biografiaque se quer oficializar.

Para delinear a memória biográfica produzida peloMuseu Casa de Cora Coralina, analisarei a seguir aexposição montada para a inauguração em 20 deagosto de 1989 e que se perpetuou sem alteraçõessignificativas até o final de 2001, quando o RioVermelho transbordou e inundou a Casa Velha daPonte, causando grandes estragos ao acervo. Emagosto de 2002, integrando as festividades alusivas aonascimento da poeta, ocorreu a reinauguração comuma nova exposição museológica, que guarda muitassemelhanças com a anterior.

No Museu Casa de Cora Coralina, o deslocamentodo visitante é controlado, acompanhado por um guiae obedece a um único trajeto: o “Quarto da Cora”, a“Sala de Escrita”, a “Sala de Condecorações”, a“Biblioteca”, o “Porão”, a “Sala de Vendas”, a“Varanda”, a “Cozinha” e a “Sala de Memória daObra”. Em cada aposento, os guias relataminformações específicas, cujo núcleo manteve-seinalterado durante doze anos.

Em cada um dos ambientes da Casa de CoraCoralina, um conjunto de móveis, objetos, fotografias,pinturas, painéis com trechos da produção literária dapoeta compõe a exposição museológica e,entrelaçando-se ao discurso do guia, vai construindouma narrativa biográfica que estabelece os contornosda Mulher-Monumento. Ao mesmo tempo, as

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00400

Page 401: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 401

imagens e os discursos evocam a cidade de Goiás e,mais especificamente, a Casa Velha da Ponte. Ou seja,mecanismos de transferência de sentidos atuam parapromover a simbiose da poeta com a cidade econstruir a memória individual enquanto representaçãoda memória coletiva.

Nesse processo, é fundamental considerar que CoraCoralina foi artífice da construção da Casa Velha daPonte como templo da memória. Quando voltou paraGoiás, ela abriu as portas da Casa Velha da Ponte paravender seus doces e conversar com os visitantes,tornando sua casa um dos pontos turísticos maisprocurados da cidade. Entretanto, a associaçãosimbólica entre a poeta e a Casa é muito maiscomplexa, pois constitui um dos mecanismosfundamentais do processo de monumentalização: numtrabalho minucioso de escrita da memória, CoraCoralina converteu a Casa Velha da Ponte num lugarsingular, lendário e mítico. A poeta criou enredos queentreteceram a Casa com a cidade, com a história dosantepassados e com a própria vida, construindomúltiplos passados interligados.

Essa criação literária que ressignifica a Casa Velhada Ponte, anunciando para o visitante que naperenidade do espaço está inscrita a possibilidade deencontrar o passado no presente, compõem aexposição em todos os aposentos do Museu na formade painéis com trechos da obra da poeta, que exercemum papel importante na atribuição de sentidos evalores aos objetos e ao conjunto do espaço museal.

Na montagem da exposição museológica, osconteúdos social e historicamente construídos para ogênero feminino em nossa cultura são agenciadoscontinuamente. No Museu Casa de Cora Coralina, anarrativa material biográfica privilegia a exibição deum conjunto de artefatos femininos que funcionamcomo vetores de construção do gênero e de instituiçãoda Mulher-Monumento.

Na coleção exposta, encontramos objetos pessoais

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00401

Page 402: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

402 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

como roupas, chinelos, valises de viagem, muletas,óculos, leques, canetas e objetos de trabalho como amáquina de costura, a máquina de escrever, a balançae os tachos de cobre. Além de uma infinidade deobjetos domésticos: louças, panelas, utensílios decozinha, toalhas e guardanapos. O gênero estáincrustado nesses objetos biográficos27 que nos contamhistórias femininas, pois são artefatos de que asmulheres se servem, mantêm e conservam diariamente.

Para os objetos-testemunhos do cotidiano de CoraCoralina, os suportes constituem também parte dacoleção biográfica: utilizam-se peças de mobiliário eutensílios que compunham os ambientes domésticosda Casa. Ou seja, os objetos são contextualizados pelacomposição museológica do “Quarto”, da “Varanda”,da “Cozinha”, da “Sala de Escrita”.

Para além da existência banal de artefatosgeralmente produzidos em série, cada um dessesobjetos, deslocado do universo privado para o espaçopúblico, passa a ser considerado único e singular,“auráticos” na expressão benjaminiana28, exatamentepor terem pertencido à Cora Coralina e se interligarementre si, formando uma trama narrativa que compõetanto o cotidiano quanto a imagem pública da poeta.

Os objetos que são as insígnias da consagração daMulher-Monumento - troféus, diplomas, medalhas,condecorações, becas - estão majoritariamenteexpostos em mobiliário museológico: armários evitrines, que compõem a “Sala de Condecorações” ea “Biblioteca”.

Na casa da memória da Mulher-Monumento, aocontrário do que ocorre em museus construídos emtorno de personagens masculinos, os espaços privadosda cozinha e do quarto são valorizados e o ambientefeminino é reconstruído com a utilização dos objetosdo cotidiano.

Na “Cozinha”, os instrumentos que moldam aprática culinária de fazer doces são transformados emobjetos biográficos e modulam o ofício de doceira

27 De acordo com Ecléa Bosi,os objetos biográficos sãoaqueles que “envelhecemcom seu possuidor e seincorporam à sua vida” .BOSI, Ecléa. Memória esociedade, lembranças de velhos.São Paulo: T. A. Queiroz,1987, p. 360.

28 BENJAMIN, Walter. A obrade arte na era dareprodutibilidade técnica.In: Magia e técnica: ensaiossobre literatura e história dacultura. São Paulo:Brasiliense, 1994.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00402

Page 403: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 403

como marco da história de vida: o fogão a lenha, ostachos de cobre, a presença das frutas da região, abalança de pesar o doce e os próprios doces à vendareinventam o prática de fazer doces. Com essas peçassingularizadas pelas marcas deixadas pelo fazercotidiano reconstruímos os gestos e as vivências daquelaque os manipulou, investindo-as de intenso valorsimbólico. Sacralizados pelo ambiente museológico,os doces à venda tornam-se alimentos-signos datradicional arte da doçaria e simbolizam a culinárialocal, constituindo apelo irresistível para o turista.

Nas paredes observamos fotografias: numa delas,Cora posa em frente ao fogão à lenha. Outras duasmostram a poeta envolvida no preparo dos doces.Ao lado, um painel com a poesia: “Minhas mãosdoceiras / Jamais ociosas, / Fecundas. Imensas eocupadas. / Mãos laboriosas. / Abertas sempre paradar, / ajudar, unir e abençoar. (...) In: Meu Livro deCordel”.

Esse poema autobiográfico recria o trabalho comomarco biográfico a partir das marcas inscritas nopróprio corpo. Nesta cozinha, espaço socialmenteconsiderado como domínio feminino, a linguagemespaço-temporal do discurso museológico aproximao visitante do conjunto de gestos, códigos e saberesfemininos. O tempo se acumula nos móveis e utensíliosque representam as antigas cozinhas goianas econdensam o cotidiano das mulheres, tecendo vínculosentre um passado muito antigo e o presente fugidiodo trabalho feminino diário.

O “Quarto”, espaço doméstico que costuma serocultado aos olhares estranhos, é montadomuseograficamente de forma a recompor aintimidade feminina. Significativamente, é o primeiroaposento do roteiro estabelecido para o visitante,constituindo o lugar escolhido para o discursomuseológico estabelecer os fatos fundamentais datrajetória de vida de Cora Coralina. O/a guia queacompanha os visitantes anuncia:

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00403

Page 404: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

404 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

Em 20 de agosto de 1889, Ana Lins dos Guimarães PeixotoBretas, Cora Coralina, nascia neste quarto. A Cora passoutoda a infância nesta casa. (...) Ali atrás, a Cora, com 20 anos.Dois anos depois, em 1911, a Cora casou. Ela casou e tevequatro filhos, 15 netos e 29 bisnetos. Ela morou 45 anos nointerior de São Paulo: Avaré, Jaboticabal e Andradina. Viúvae com os filhos criados, em 56, Cora voltou à essa casa. Corafaleceu em 10 de abril de 85, com 95 anos, em Goiânia29.

O quarto, lugar originário do nascimento, é tambémlimiar da narrativa biográfica. As datas de nascimentoe morte são as balizas do perfil biográfico, pontuadopelas grandes datas de uma vida. A intersecção dotempo cronológico com o tempo social instaura osconteúdos culturais da identidade feminina, apoiando-se em ciclos: infância, juventude, casamento,maternidade, viuvez, velhice. Atravessando asreferências temporais, o espaço emerge como núcleo:a Casa Velha da Ponte é o centro simbólico, espaçoexistencial e sagrado30, que funda o mundo de CoraCoralina – é o centro do seu destino, onde ela nasceu,passou a infância e a juventude. Desse lugar ela partiupara viver o casamento e a maternidade, retornandona velhice para tecer a imortalidade.

De forma mais intensa que nos outros ambientes,no “Quarto”, as marcas que o uso imprimiu aosobjetos biográficos recordam mais do que a passagemdo tempo, são vestígios materiais que ganhamsignificado ao incorporar a interação com o corpoque os manipulou em práticas cotidianas rotineiras: asmuletas rotas que apoiaram o corpo cansado, oschinelos furados, o leque gasto, o castiçal quebrado, afronha furada que tantas vezes guardou o sono dapoeta, evocam a presença de Cora Coralina, seu toquee seus gestos.

Nesse lugar privilegiado da vida íntima, as peçasdo vestuário de Cora Coralina constituem umconjunto de objetos que são vetores da subjetividadefeminina e tornam-se estratégicos para a construção

29 Maria José - guia do MuseuCasa de Cora Coralina desdeo ano da inauguração.Gravação realizada no dia20 ago. 1999.

30 BACHELARD, Gaston. Apoética do espaço. São Paulo:Martins Fontes, 1993.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00404

Page 405: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 405

da narrativa de cunho autobiográfico. Diferentescomposições são formadas com os vestidos simples,a maioria de uso doméstico, combinados comdiferentes lenços, chales, bolsas, chapéu e o guarda-chuva. Inseridas na exposição museológica, esseselementos incorporam a dimensão privada da vidafeminina e mobilizam o desejo do espectador deapreender a intimidade que essas roupas denotaramoutrora31.

Outra prática feminina no trabalho com o passadoé a materialização da memória familiar em artefatoscuidadosamente preservados, alguns guardados eoutros exibidos ao olhar público32. Esta estratégia dememória do espaço doméstico é apropriada peloMuseu e a “Varanda” é o lugar privilegiado damemória familiar. Os objetos ali expostos configuramsignos da genealogia, que evidenciam e destacam aimportância da linhagem e o papel das relações deparentesco na construção biográfica da Mulher-Monumento.

Ao longo da análise dos espaços domésticosreconstituídos, percebe-se que o gênero atribuisignificados à exposição museológica, configurandouma narrativa material engendrada por móveis eobjetos biográficos pessoais e familiares que falam docotidiano, dos afetos e das práticas da Mulher-Monumento.

A exposição da Casa de Cora Coralina expressa oprincípio orientador da biografia oficial: a narrativamuseológica é a solidificação da autobiografiaproduzida por Cora Coralina, na qual presente epassado são construídos, entrelaçando os tempos davida à cidade de Goiás.

A memória de Cora Coralina é amalgamada coma Casa Velha da Ponte, numa prática estratégica paracelebrar, comemorar e imortalizar a poeta comosímbolo da cidade de Goiás. O discurso material,literário e imagético engendra o espaço da Casa Velhada Ponte como síntese de todos os tempos da cidade

31 Michelle Perrot enfatiza oquanto as mulheresregistram o seu passado nomundo material que ascercam, destacando ovestuário como umimportante relicário daslembranças tanto docotidiano de antanhoquanto dos momentos maissignificativos da trajetóriapessoal. PERROT,Michelle. Práticas damemória feminina. RevistaBrasileira de História. SãoPaulo, n. 18, p. 09-18, 1989.

32 BARROS, Myriam MoraesLins de. Memória e família.Estudos Históricos. Rio deJaneiro, vol. 2, n. 3, p. 29-42,1989.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00405

Page 406: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

406 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

e a Mulher-Monumento como artesã e guardiã dessamemória ancestral.

A memória subterrânea e a construção da Cora-A memória subterrânea e a construção da Cora-A memória subterrânea e a construção da Cora-A memória subterrânea e a construção da Cora-A memória subterrânea e a construção da Cora-estigmatizadaestigmatizadaestigmatizadaestigmatizadaestigmatizada

Na batalha das memórias, as construções póstumasque lutam pela consagração da imortal confrontam-se com memórias dissidentes que disputam ainstituição dos regimes de verdade a respeito de CoraCoralina.

Vamos perscrutar os mecanismos de construção,divulgação e preservação de uma memóriasubterrânea na cidade de Goiás que contesta osprincipais marcos da biografia oficializada pelo MuseuCasa de Cora Coralina.

Durante as entrevista com os vilaboenses – comosão conhecidos aqueles que nascem e/ou moram nacidade de Goiás, perpetuando a referência àdenominação anterior de Vila Boa –, quando solicitavaque conversássemos a respeito de Cora Coralina,muitos depoentes mudavam o tom da narrativa, algunspediram para desligar o gravador em muitas passagense outros solicitaram a interrupção da entrevista,alegando temer represálias. Foi necessário prescindirde informações importantes para caracterizar a fontee assegurar que não utilizaria qualquer parâmetro deidentificação, como nome, profissão ou idade. Essaatitude de recear gravar depoimentos, mesmo depoisde ter conversado informalmente com a pesquisadorasobre o assunto, denota a eficiência dos mecanismosde silenciamento dos discursos dissidentes.

A memória subterrânea, na acepção de MichelPollack, se opõe à memória instituída como oficial e“prossegue seu trabalho de subversão no silêncio”33.Os conflitos e a competição entre a memória que criaa Mulher-Monumento e a memória que produz aCora-estigmatizada são ininterruptos na cidade deGoiás. A preservação dessa memória dissidente está

33 POLLAK, Michel.Memória, esquecimento,silêncio. Estudos Históricos.Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p.3-15, 1989, p. 4.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00406

Page 407: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 407

interligada a uma rede de sociabilidade, unindo gruposde moradores que, na maior parte dos casos,convivem desde a infância, encontram-se quasediariamente e guardam um repertório de histórias quesão relembradas constantemente.

Quando evocam Cora Coralina, é comumexpressões como “isto foi minha mãe que contou”,“eu conheço a mocidade dela por causa da minhamãe que contava para nós”, “meu avô contavadireitinho”, “foi no tempo da minha vó”,demonstrando que o estoque de lembranças maisremotas forma uma memória transmitida no interiordo grupo familiar. Os episódios ocorridos depois doretorno de Cora à cidade são reconstruídos com oapoio do testemunho do próprio depoente oureferindo-se aos personagens do seu convívio,explicitando-se referências como “minha prima”,“meus sogros”, ou o nome e sobrenome da pessoa,associando-se ainda complementos como “o filho/afilha da fulana”, “aquela casada com fulano”, “dafamília tal”. Esses códigos trazem para o contexto daentrevista os mesmos parâmetros das conversascotidianas, típicas das relações sociais nas cidadespequenas, onde os personagens são inseridos dentrode um feixe de relações familiares que definem suaposição social.

Na memória subterrânea, os significados e sentidosda vida de Cora Coralina estão concentrados oucifrados num momento crucial, contado comelementos invariáveis:

“Foi quando ela deu aquele passo de escandalizaruma sociedade fechada como a nossa”, analisa umadepoente, “vovó é que contava para mamãe. (...) Opovo antigo da cidade não esqueceu, todo mundoconhece esse histórico de vida dela, que eu acho quefoi um determinismo de vida”.

Segundo um morador, “nossa cidade tem o escolda cultura goiana, e o povo sabe posicionar-se nosseus moldes morais. Como estimar uma mulher que

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00407

Page 408: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

408 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

todo mundo sabe que montou na garupa de não seiquem, um homem de fora, que era casado e foiembora?”

Outra vilaboense assevera: “todo mundo sabe queCora fugiu com um homem casado, viveu com umhomem sem ser casada, acho que nunca casoumesmo”. Repete outro depoente: “Todo mundo sabeque Cora saiu fugida, montada num burro, na garupade um burro, com um homem casado. E foi lá paraSão Paulo”.

Uma parente de Cora considera que essa históriamaculou também os familiares: “Quando Anicanamorou com um homem casado, ela não contounem para mamãe que era íntima dela, mamãe nãosabia de nada. Foi uma mágoa muito grande, todosda família ficaram mal com aquilo. A mãe dela ficoudoente, envergonhada de Cora ter feito aquilo. A mãedela ficou sem sair na rua muito tempo, ficou trancadaem casa”.

Poderíamos “ouvir” essa história contada por maispessoas, porém, os padrões da narrativa e o enredocontinuariam os mesmos: a noite em que Aninha fugiude Goiás com um homem casado, num lombo deburro. A identidade do homem interessa muito pouco,sua condição de casado é que constitui o aspectofundamental deste enredo resumido, que desconsiderao fato que ele já não vivia há muitos anos com aesposa.

A maneira sintética como o acontecimento énarrado encerra seu significado, pois a revelação deum só momento, de uma única cena, de um único atoconverte-se no resumo biográfico a partir do qualinstituem o estigma que marca Cora Coralina e a partirdo qual sua imagem é construída pela memóriasubterrânea. Os depoentes consideram desnecessárioacrescentar outros elementos além da fuga de umajovem com um homem casado, pois aí se condensa ovalor emblemático da transgressão feminina.

Esse acontecimento e os fatos que o antecedem

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00408

Page 409: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 409

são também centrais na biografia “Cora Coragem,Cora poesia”, escrita por uma de suas filhas, VicênciaBretâs Tahan34. Os limites deste texto não permitemuma análise exaustiva, porém, interessa ressaltar que abiógrafa narra detalhadamente com tom romanescos,de forma a configurar uma clássica história de amor,desde o primeiro encontro entre Aninha-Cora eCantídio Bretâs até madrugada da fuga para São Paulo,destacando a gravidez e a coragem do casal,principalmente de Cora, para enfrentar a rejeição dafamília e os preconceitos da época.

Com isso, a biografia promove a ruptura emrelação à autobiografia e aos seus ecos perceptíveis namemória construída no Museu. Ao narrar sua história,Cora Coralina imprimiu uma versão para sua vidaque corresponde ao destino que ela aprendeu a atribuirao gênero feminino, contando sobre o noivado, ocasamento em 1910 e a mudança para São Paulo em1911, citando as respectivas datas dos eventos tal qualacontece no resumo biográfico apresentado no MuseuCasa de Cora Coralina durante a visita ao “Quarto”.

Quando a poeta retorna para a cidade de Goiás,as quatro décadas de ausência não tinham apagado alembrança desse episódio e ela se reencontra com ahistória da fuga da jovem Aninha, transmitida degeração para geração. Conforme resume umdepoente, “essa história ficou na cidade, essas coisas opovo não esquece não”.

Na composição da memória subterrânea, oepisódio da fuga é transformado num estigma, naacepção de Erving Goffmann35, numa marcasocialmente instituída, que configura uma mácula nostatus moral e determina práticas de exclusão doindivíduo. O conjunto de histórias, com as quais umaparcela dos moradores compõe a memória dos anosem que a poeta morou na Casa Velha da Ponte, fazsentido à medida que se relaciona com o mesmomomento crucial e simbólico que funda umaidentidade. A mecânica da estigmatização se estabelece

34 TAHAN, Vicência. CoraCoragem, Cora Poesia. SãoPaulo: Global, 1995.

35 GOFFMANN, Erving.Estigma, nota sobre amanipulação da identidadedeteriorada. Rio de Janeiro:Zahar, 1975.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00409

Page 410: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

410 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

nas relações sociais e associa valores e conceitosdepreciativos aos atos e à personalidade de CoraCoralina.

A memória subterrânea é composta por umconjunto de lembranças dissidentes da imagem oficial,transmitidas e preservadas nas redes familiares e deamizades. Tanto que elas foram expressas com maisfacilidades em entrevistas coletivas, nas quais as pessoasrecorriam umas as outras para referendar o queestavam contando, encadeando histórias que fazemparte de um repertório comum, demonstrando queforam muitas vezes recordadas pelo grupo.

A utilização do termo “fofoca” não desvaloriza,nem questiona o discurso dos depoentes, mas explicitauma rede de comunicação que tem importante funçãona dinâmica social da cidade de Goiás e que se constituinum instrumento de poder. Para nossa investigação,interessa que esses discursos têm a força de construiruma biografia e delinear uma personalidade para apoeta, digladiando-se com a biografia oficial instituídapelo Museu Casa de Cora Coralina.

O relacionamento conflituoso que a poetaestabelecia com os moradores da Cidade é substratode muitos acontecimentos narrados. Como conta umavilaboense, “Cora era grosseira com o povo de Goiás,ela era bem grosseira. O povo de fora ela tratavamuito bem, mas o povo de Goiás, não, conosco não”.

Outra moradora assegura que “Cora não tinhaabsolutamente nenhum respeito pelo povo da cidade,inclusive com os parentes dela, ela não se dava comnenhum parente”, evocando as contendas em tornodo inventário da Casa Velha da Ponte.

“Ela tratava muito bem o turista, agora quandoera uma pessoa daqui ela era mais áspera”, afirmaoutra vilaboense. Esse aspecto foi recorrente em váriosdepoimentos, alguns enfatizados com a afirmação quea doceira-poeta não gostava de fazer doces para osmoradores de Goiás, pois só se interessava em vendê-los aos turistas. Essas pessoas estabelecem, assim, um

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00410

Page 411: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 411

contraponto entre o tratamento que Cora dispensavaao turista e o modo como se relacionava com osmoradores da cidade.

Várias histórias são contadas para confirmar a idéiade que Cora não “tinha educação, amabilidade, nãosabia receber em sua casa”, confrontando seucomportamento “rude, às vezes hostil” à hospitalidadeque caracteriza os vilaboenses e analisando-o a partirde padrões que as depoentes acreditam compor oscódigos femininos de receber e fazer visitas.

Uma depoente sintetizou a interpretação subjacenteaos relatos: “Ela ficou fora da cidade e então nãotinha uma mentalidade muito goiana. (...) na realidade,o povo goiano não se dá muito com o jeito dela. Elaera independente, ela se acostumou na vida de SãoPaulo, naquele temperamento”. Essa “independência”configura-se no fato de Cora viver sozinha na CasaVelha da Ponte, afastada da família e com poucosamigos, interpretado como rompimento com os“laços sagrados da família” e com a rede desociabilidade construída na cidade.

Muitos repetem, “Cora nunca se integrou nacidade”. Ou seja, ao mesmo tempo em que os relatosmostram como a Cora-estigmatizada é excluída doconvívio da “boa sociedade” – como definiu umamoradora, também a censuram por essa nãoparticipação.

O tempo que Cora ficou afastada da cidade érecorrentemente evocado para explicar umcomportamento diferente dos vilaboenses ou goianos.Alguns depoentes referem-se a outros artistas queficaram “todo o tempo em Goiás”, participando dosfatos que se sucederam à transferência da capital paraGoiânia e colaboraram para que a cidadepermanecesse “monopolizando a parte cultural doEstado” – conforme expressa um morador.

Um depoente, pedindo para eu desligar ogravador, cita várias outras poetisas vilaboenses “quetem muito mais valor que Cora”. Na seqüência, ele

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00411

Page 412: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

412 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

afirma que a poeta não participava dos movimentosculturais da cidade: “Cora não participava, no cantinhodela, dentro da venda dos doces, mas dentro da cidadeela não era benquista, não é essa deusa pintada. Sópós Drummond que virou coqueluche da mídia, atéentão era aquela, aquela coisa pequena mesmo”.

Discutindo a relação entre a obra de Cora Coralinae a cidade de Goiás, uma opinião recorrente pode serassim registrada: “ela é que deve à cidade. A cidadenão deve tanto a ela, deve essa projeção ocasional,porque ela não trabalhou para que a cidade fossedestacada, não. A única coisa que ela tinha era aquelacasa e o turismo do doce”.

Enquanto alguns depoentes estabelecem umainterpretação depreciativa para a obra da poeta,valorizada pela biografia oficial, outros tratam dequestionar o ofício de doceira, outro marco damonumentalização.

Quando realizei uma pesquisa acerca das doceirasda cidade de Goiás36, ao entrevistar uma senhora muitoidosa, ela conta, espontaneamente, a história da fuga eafirma que Cora não fazia doces, que ela compravadas outras doceiras para vender aos turistas. Ela enfatizaque começou a fazer doces, “muito antes dessa CoraCoralina”, e exclama “imagina, uma mulher que fugiucom um homem casado!”. Outra doceira questionoua fama de Cora, colocando uma série de defeitos nosdoces que ela confeccionava.

As narrativas que menosprezam os doces da poeta,ou mesmo rejeitam a idéia de que ela os fizesse,demonstram que um dos mecanismos da memóriasubterrânea é a criação de uma imagem, para a mulherque desrespeita as normas de conduta esperadas parao gênero feminino, diametralmente oposta à identidadepositiva que as mulheres depoentes têm de si mesmas.Ou seja, essas doceiras se recusam a compartilhar oofício com uma mulher que elas denigremmoralmente.

Conforme Elias e Scotson também perceberam

36 DELGADO, AndréaFerreira. Memória, trabalhoe identidade: as doceiras daCidade de Goiás. CadernosPagu. Campinas, n. 13, p. 293-325, 1999.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00412

Page 413: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 413

na comunidade que investigaram, “os mexericos decensura apelavam mais diretamente para o sentimentode retidão e de virtude daqueles que os transmitiam”.Ao construir a Cora-estigmatizada, homens e mulheres“reforçam a comunhão dos virtuosos. O fato demexericar com os outros sobre tal assunto era provada própria irrepreensibilidade”37, pois a censura grupalimposta aos que infringem as regras tem uma vigorosafunção integradora.

É preciso destacar que a monumentalização dapoeta é reconhecida mesmo por esses depoentes quediscordam do processo e produzem os marcos damemória subterrânea. Questionar a biografiahegemônica não significa, porém, negar que o “mito”ou o “fenômeno” Cora Coralina, como se referiramalguns depoentes, é a principal atração da cidade eque o Museu, que guarda sua memória, é o local maisvisitado pelos turistas. Comentando a hegemonia damemória oficial, uma vilaboense desabafa: “o mito Corajá é muito forte, e a gente não vai derrubar mesmo”.

Tanto a prática autobiográfica de Cora Coralinaquanto as produções discursivas que instituem a imortalganham novos contornos quando consideramos essecampo de conflitos configurado em Goiás e queconstitui o palco principal onde desenvolvem as lutasdessa batalha das memórias. No confronto constantecom a memória subterrânea, o Monumento precisaser ininterruptamente esculpido, divulgado e protegidodas interpretações que questionam a exemplaridadeda poeta enquanto artesã e guardiã da memóriacoletiva. Os mecanismos da memória, a lembrança eo esquecimento, são faces do processo demonumentalização: o passado é manipulado paraesculpir as lembranças que perpetuam os contornosda Mulher-Monumento ao mesmo tempo queestratégias de poder urdem o esquecimentoconfigurado no silêncio, omissão e ocultamento dasmemórias dissidentes que, entretanto, se mantémlatentes na cidade de Goiás.

37 ELIAS, Norbert;SCOTSON, Jonh. Osestabelecidos e os outsiders:sociologia das relações depoder a partir de umapequena comunidade. Riode Janeiro: Jorge Zahar, 2000,p. 124.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00413

Page 414: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

414 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

ABREU, Regina. Emblemas da nacionalidade: o culto a Euclidesda Cunha. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, n. 24, p.66-84, 1994.

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: MartinsFontes, 1993.

BARROS, Myriam Moraes Lins de. Memória e família. EstudosHistóricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 29-42, 1989.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidadetécnica. In: _______. Magia e técnica: ensaios sobre literatura ehistória da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOLLE, Willi. Fisiognomia da metrópole moderna: representação dahistória em Walter Benjamin. São Paulo: Editora da Universidadede São Paulo, 1994.

BORDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo:Perspectiva, 1987.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade, lembranças de velhos. São Paulo:T. A. Queiroz, 1987.

CORALINA, Cora. Meu livro de cordel. São Paulo: Global, 1994.

_______________. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Goiânia:Editora da Universidade Federal de Goiás, 1980.

CORALINA, Cora. Vintém de Cobre – meias confissões de Aninha.Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás, 1984.

DELGADO, Andréa Ferreira. Memória, trabalho e identidade:as doceiras da Cidade de Goiás. Cadernos Pagu. Campinas, n. 13, p.293-325, 1999.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00414

Page 415: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Andréa Ferreira Delgado

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 415

DELGADO, Andréa Ferreira. Cora Coralina: a poética do sabor.Ilha: Revista de Antropologia. Florianópolis, v. 4, n.1, p. 59-83, jul.de 2002.

DELGADO, Andréa Ferreira. A invenção de Cora Coralina na batalhadas memórias. Campinas, 2003. Tese (Doutorado em História) –Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadualde Campinas.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, Jonh. Os estabelecidos e os outsiders:sociologia das relações de poder a partir de uma pequenacomunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

FOUCAULT, Michel. O que é o autor? Portugal: Vega, 1992.

___________. Des espaces autres. In: ___________. Dits et écrits- IV, 1980-1988. Paris: Éditions Gallimard, 1994a.

___________. Les techniques de soi. In: ___________. Dits etécrits - IV, 1980-1988. Paris: Gallimard, 1994b.

FREIRE, Cristina. Além dos mapas: os monumentos no imagináriourbano contemporâneo. São Paulo: SESC; Annablume, 1997.

GOFFMANN, Erving. Estigma; nota sobre a manipulação daidentidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

LE GOFF, Jacques. Memória – História. Enciclopédia Einaudi, v.1. Portugal: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984.

NORA, Pierre. Entre memórias e história. A problemática doslugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993.

PERROT, Michelle. Práticas da memória feminina. RevistaBrasileira de História. São Paulo, n. 18, p. 09-18, 1989.

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. EstudosHistóricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989, p. 4.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00415

Page 416: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Cora Coralina: a construção da Mulher-Monumento

416 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

POLLAK, Michel.Memória e identidade social. Estudos Históricos.Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-12, 1992.

TAHAN, Vicência. Cora Coragem, Cora Poesia. São Paulo: Global,1995.

THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre arelação entre história oral e as memórias. Projeto História. SãoPaulo, n. 15, p. 51-84, 1997.

THOMSON, Alistair. Memórias de Anzac: colocando em práticaa teoria da memória popular na Austrália. Revista História Oral.São Paulo, v. 4, p. 81-101, 2001.

VELHO, Gilberto. Memória, identidade e projeto. Projeto emetamorfose. Antropologia das sociedades complexas. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1994.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00416

Page 417: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

RESENHARESENHARESENHARESENHARESENHA

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00417

Page 418: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00418

Page 419: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 419

COUNIHAN, Carole. COUNIHAN, Carole. COUNIHAN, Carole. COUNIHAN, Carole. COUNIHAN, Carole. Around the TAround the TAround the TAround the TAround the TuscanuscanuscanuscanuscanTTTTTableableableableable: food, family and gender in twentieth: food, family and gender in twentieth: food, family and gender in twentieth: food, family and gender in twentieth: food, family and gender in twentiethcentury Florence. New Ycentury Florence. New Ycentury Florence. New Ycentury Florence. New Ycentury Florence. New York: Rork: Rork: Rork: Rork: Routledge,outledge,outledge,outledge,outledge,2004, 248p.2004, 248p.2004, 248p.2004, 248p.2004, 248p.11111

Fabiana Thomé da Cruz

O livro intitulado Around the Tuscan Table: food,family and gender in twentieth century Florence, deautoria da antropóloga Carole Counihan aborda acomida, apreendida desde o sistema produtivo até acozinha e o consumo, e inova ao analisar astransformações ocorridas ao longo do século XX emuma região da Itália, a Toscana.

Para tal análise, Counihan entrevistou, no períodocompreendido entre 1982 e 1984, pouco mais de duasdezenas de pessoas, pertencentes à família de seu ex-marido. Seu grupo de informantes abarcou trêsgerações de uma tradicional família de Florença,importante município da região da Toscana2. Junto aeles, a autora explorou questões relativas à produção,conservação, preparação, consumo e troca dealimentos; as dietas passadas e presentes; às refeiçõescotidianas e rituais. Ao longo da obra, trechos dedepoimentos dos entrevistados compõem o texto,entremeando a análise como rendas em um delicadotecido, conduzindo o leitor por histórias de vida,narrativas e memórias. “Quando os florentinos falamsobre comida, eles revelam ricas dimensões de suas

Fabiana Thomé da Cruz. Doutoranda do Programa de Pós-Graduaçãoem Desenvolvimento Rural, da Universidade Federal do RioGrande do Sul (PGDR/UFRGS)[email protected]

1 Texto recebido: 30/06/2008.Texto arpovado: 11/07/2008.

1 A autora agradece a atentarevisão e as importantescontribuições de RenataMenasche na elaboração dapresente resenha.

2 A título de esclarecimento,cabe mencionar que omunicípio de Florença é acapital da região da Toscanabem como da província deFlorença -, situada nocentro da Itália.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00419

Page 420: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

COUNIHAN, Carole. Around the Tuscan Table: food, family and genderin twentieth century Florence. New York: Routledge, 2004, 248p.

420 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

vidas” e o fazem contando da vida em família, deaspectos da sociabilidade, de celebrações e de prazer.Com relação ao lugar das mulheres nesse contexto, aanálise da autora é especialmente interessante, já que,para Counihan, são as mulheres as envolvidas naaquisição, preparação, abastecimento e limpeza, etapasindispensáveis na elaboração das refeições, da comida.

No mesmo período em que foram realizadas asentrevistas, a autora também participou de refeições,escutou descrições e histórias e analisou dois cadernosde receitas manuscritos, etapas metodológicas descritasno primeiro capítulo do livro.3 Vinte anos depois, em2003, a autora retornaria à Toscana, realizando, então,novas entrevistas, procurando perceber as mudançasocorridas em torno dos hábitos alimentares duranteo intervalo de tempo transcorrido.

Ainda que em seu livro Carole Counihan abordeinúmeros temas pertinentes e atuais, como os referentesaos padrões estéticos e suas relações com o corpo,especialmente o feminino ou os cuidados com os filhose a instituição do casamento, nesta resenha será dadoenfoque especial as origens da dieta Toscana e adiscussão de gênero a ela associada, tema central daobra de Counihan, presente em diversos capítulos.

Tendo como base a narrativa culinária dosflorentinos, apresentada no Capítulo 2, Counihancontextualiza as características e transformaçõesocorridas ao longo do século XX, refletindo a partirde temas e categorias tais como classe, cultura, ideologiae identidade. A autora evidencia que, nas famílias daregião, a comida de casa, a cucina casalinga, mantém-seatravés do tempo, fortalecida pela valorização eexaltação da comida da família e da comida daprópria região, percebidas como a comida queproporciona prazer, de modo que a cozinha daToscana constitui-se em importante expressão deidentidade cultural regional.

Nos Capítulos 3 e 4, em que a autora descreve asraízes históricas e as mudanças na cozinha tradicional

3 Vale salientar que as receitasdos tradicionais pratosflorentinos estão anexadasao livro de CaroleCounihan, de modo quetorna-se quase irresistível aoleitor, entre um capítulo eoutro, procurar uma receitae encontrar nela inspiraçãopara preparar uma próximarefeição.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00420

Page 421: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Fabiana Thomé da Cruz

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 421

da Florença, o tema central é o antigo sistema deprodução de alimentos da Toscana, a mezzadria4, queantes da Segunda Guerra Mundial era a instituiçãodominante no campo. Como relata Counihan, aospoucos e sob os impactos da política fascista, essemodo de produzir foi perdendo importância esignificância. Entretanto, os hábitos alimentares a eleassociados já estavam enraizados e permaneceriam,em maior ou menor grau, presentes até os dias dehoje.

Apesar das mudanças das últimas décadas e dasdiferenças entre classes - que durante a mezzadriaevidenciavam-se, principalmente, no (não-)consumode carne, gordura, café, vinho e doces -, a dieta daToscana mantém-se fortemente vinculada à utilizaçãode pães, vegetais frescos, massas e sopas, comidas queforam a base da alimentação camponesa da primeirametade do século XX. Segundo a autora, a escassez -com que os camponeses e classes urbanas menosfavorecidas conviveram, em particular durante aSegunda Guerra Mundial -, teria sido responsável pelofato da comida passar a ser experienciada com muitoprazer. Assim, a gula, o prazer de comer e o amorpela comida seriam aceitos como constantereafirmação da família e da necessidade daalimentação como condição para o trabalho. Contudo,ao mesmo tempo em que a comida é apreciada, oexcesso é condenado - poco ma buono -, refletindovalores das classes camponesa e trabalhadora,fundados em épocas de escassez, que exigiammoderação.

No que se refere às relações de gênero, a autorasalienta que o trabalho masculino era, então, maisvalorizado que o da mulher. Assim, na mezzadria, ohomem, e somente ele, poderia ser o chefe dapropriedade, o que se refletia em sua posição enotoriedade à mesa: era o primeiro a ser servido5. Àmulher cabia, além das atividades domésticas,transformar matérias-primas em comida, ou seja,

4 A mezzadria pode sersintetizada como a quecaracterizava um sistemacamponês de produção, emque os grandesproprietários de terradividiam as propriedadesem lotes menores eforneciam os insumosnecessários - comosementes, bens,ferramentas e animais paratrabalho -, enquanto que oscamponeses aportavam seutrabalho, a mão-de-obra. Acolheita era dividida meioa meio (mezzo) entreproprietário e camponeses.

5 Ao analisar o sentidosimbólico das práticasalimentares em gruposcamponeses e classespopulares no Brasil,Woortmann observaprivilégios semelhantes emrelação ao pai de família ,evidenciados nosmomentos das refeições(WOORTMANN, Klaas. Osentido simbólico daspráticas alimentares. In:ARAÚJO, Wilma MariaCoelho; TENSER, CarlaMárcia Rodrigues (Org.).Gastronomia: cortes erecortes. Brasília: SENAC,2006).

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00421

Page 422: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

COUNIHAN, Carole. Around the Tuscan Table: food, family and genderin twentieth century Florence. New York: Routledge, 2004, 248p.

422 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

transformar grão em pão, leite em queijo e prepararas refeições. “O papel da mulher envolvia não somentea reprodução da família, mas também a produção dealimentos”. As mulheres trabalhavam todo o tempo,contudo eram legalmente consideradas dependentese suas atividades eram desvalorizadas.

A política alimentar fascista, aliada aos impactosda Segunda Guerra Mundial, contribuíram para o fimdo sistema de mezzadria, ocasionando aumento dapobreza e êxodo rural massivo em direção às cidadesemergentes. O conjunto de transformações quecaracterizou a Itália do pós-Guerra marcariadefinitivamente os rumos daquele país, influenciandointensamente, por sua vez, a constituição das famíliase as relações de gênero.

Quando as famílias deixaram o campo rumo àcidade, as dimensões da vida associadas à reproduçãoe à produção separaram-se. A produção passou a sermais intensamente associada ao trabalho masculino ea valores relacionados à sociabilidade, enquanto que areprodução passou a ser percebida como maisestritamente própria às mulheres, que poderiam ficarisoladas em casa. O processo de transição do campopara a cidade e suas conseqüências no que se refereaos papéis de homens e mulheres e suas relações, pontocentral da obra, é profundamente abordado nosCapítulos 5, 6, 8 e 9 do livro de Carole Counihan.

Nesses capítulos, a autora analisa, então, asidentidades de homens e mulheres da Toscana apóssua transição para as cidades, refletindo a partir darelação entre trabalho produtivo e trabalhoreprodutivo. Se a identidade do homem estavaassociada ao trabalho produtivo, ao trabalho fora decasa - para, através da aquisição de bens materiais, sero provedor da família -, a identidade da mulher estavafortemente associada ao trabalho reprodutivo, dentrodo lar e, em especial, à preparação dos alimentos. Paraos florentinos, cozinhar era considerado parte essencialdo trabalho das mulheres, atividade através da qual

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00422

Page 423: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Fabiana Thomé da Cruz

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 423

elas expressavam identidade e poder: era a partir daboa comida que as mulheres conquistavam algum statuse apreciação por outros membros da família. Cabiaàs mulheres, então, um complexo trabalho nãoremunerado, definido por elas como altruísmo e prazer- o que, segundo a autora, evidenciava sua abnegação,bem como um aspecto servil associado ao papelreprodutivo feminino.

No período a partir dos anos 1980, outrasmudanças se desenvolveram no modo de vidacaracterístico dos florentinos, indicando que, dentrodos lares, novas mudanças seriam percebidas tambémno que se refere às relações de gênero. Diante daeconomia orientada para o mercado, as jovensmulheres passaram cada vez mais a integrar o mercadode trabalho e, na medida em que deixaram de sededicar exclusivamente às atividades domésticas, oscasais passavam a experienciar novo tipo de conflito.Esse tema é primorosamente discutido pela autoraque, equacionando diferentes pontos de vista, dehomens e de mulheres, revela a tensa e delicada relaçãoentre marido e mulher ao buscar conciliar o trabalhoremunerado -agora também feminino - com asatividades domésticas.

Os salários dos homens, em geral maiores do queos das mulheres, possibilitavam que eles pagassem amaioria das contas. Como afirmaria um dosentrevistados, trabalhando mais e sendo melhorremunerados, tornava-se possível a eles recusar-se aotrabalho doméstico. Nesse sentido, a autora argumentahaver uma espécie de acordo tácito na educação dosfilhos, que tornaria “natural” que as meninasaprendessem as tarefas domésticas desde cedo, masos meninos não. Assim é que o trabalho do homem é,em casa, considerado ajuda6. E quem ajuda, não precisaresponsabilizar-se.

Por outro lado, a pesquisa de Counihan apontaque se em décadas anteriores era a mulher quem serviaa casa, o marido e os filhos, a partir dos anos 1980 o

6 A respeito do emprego daexpressão ajuda paraevidenciar hierarquia nadivisão sexual do trabalho,vale mencionar o estudo deHeredia et al. Ali os autoresmostram que, nas unidadesdomésticas camponesas doNordeste brasileiro, poreles estudadas, são asmulheres que ajudam notrabalho da roça(HEREDIA, Beatriz;GARCIA, Maria France;GARCIA JR., Afrânio. Olugar da mulher emunidades domésticascamponesas. In: AGUIAR,Neuma (Coord.). Mulheres naforça de trabalho na AméricaLatina. Petrópolis: Vozes,1984).

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00423

Page 424: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

COUNIHAN, Carole. Around the Tuscan Table: food, family and genderin twentieth century Florence. New York: Routledge, 2004, 248p.

424 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

casamento passaria a ser afirmado como uma relaçãode reciprocidade e companheirismo, em que o diálogoe a necessidade de falar sobre os problemas é percebidocomo fundamental para o relacionamento do casal.

Diante de incoerências entre discurso e prática éque, na opinião de Counihan, a Itália caminha parauma eqüidade pública, formal, entre os sexos, mas,no entanto, os privilégios - que teriam tido origemna infância, quando as mulheres, mães, irmãs, enfim,foram complacentes e proporcionaram privilégiosaos homens - continuam dentro de casa, após ocasamento.

Nesse contexto, Carole Counihan aponta outraimportante mudança, essa em relação às refeições eescolhas alimentares. Para a autora, somada à relutânciados homens em contribuir nas atividades domésticas,as mudanças em relação à divisão do trabalho dentrode casa, principalmente a partir do momento em queas mulheres passam a trabalhar fora de casa, têmrefletido em menor tempo para cozinhar, o que,geralmente, conduz a refeições mais rápidas, elaboradasa partir de alimentos processados, ou então à procurapor restaurantes. É assim que, diante do menor tempodestinado às atividades domésticas e de opções maisrápidas para elaboração das refeições, presentesprincipalmente na rotina dos novos casais, a comidatradicional, preparada em casa - a cucina casalinga - foise tornando mais rara e sendo substituída por massasrápidas, alimentos processados e/ou acrescidos deingredientes industrializados.

Outro ponto que merece atenção, explorado porCounihan no Capítulo 7, é a centralidade da famíliaque, para os florentinos, seria a expressão máxima dacomensalidade. Mesmo em 2003, quando do retornoda autora a campo, ela observou que sempre quepossível a família se reunia, se não para o almoço,para o jantar, pois, para os florentinos, as refeiçõessão consideradas o principal momento de diálogo,necessário ao equilíbrio da família. A comida, base do

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00424

Page 425: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Fabiana Thomé da Cruz

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 425

relacionamento nas refeições, está associada ao prazerem comer, especialmente do comer junto.

Ainda que a família permaneça sendo central e,mesmo em 2003, que as refeições em família sejamconsideradas tradicionais, as transformações emdireção a alimentos pré-preparados e a refeiçõesrápidas, bem como o hábito de realizar as refeiçõesfora de casa, foram apontados como contribuindopara a desestruturação das refeições.

Em 2003, quando Counihan retornou à Toscana,ela observou que a comida caseira continuava decaindoem freqüência, principalmente porque os jovens nãotinham tempo ou desejo de preparar os pratostradicionais e, ao mesmo tempo, delicatessen, alimentosprocessados e restaurantes estavam, cada vez mais,preenchendo a falta de tempo e disposição dos jovenspara cozinhar. Contudo, embora as mulherescozinhassem menos, ainda assim consideravam a cozinhaum aspecto essencial para sua identidade de mulher.

Carole Counihan inicia suas Conclusões apontandoque as mudanças ocorridas ao longo do século XX naToscana parecem corresponder a um movimento dopoco ma buono (pouco mas bom) para molto, ma buono?(muito, mas bom?). A sociedade italiana em geral e adieta florentina em particular, que transformaram-seda escassez para a abundância, refletem as mudançassociais e econômicas das últimas décadas, em quehouve grande elevação dos padrões de consumo,principalmente em relação ao acesso aos alimentos,que hoje estão amplamente disponíveis emsupermercados.

Em 1984, quando Counihan realizou as entrevistas,o então informante mais velho considerara que -comparando aos tempos antigos, quando ainda vivia nocampo - haviam passado a ser presentes maior limpeza,cuidados de saúde e progresso na medicina. Noentanto, em sua avaliação, antes a comida tinha maisgosto e era mais desejada, de forma que se esperavapelo domingo, dia em que a refeição era mais rica e

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00425

Page 426: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

COUNIHAN, Carole. Around the Tuscan Table: food, family and genderin twentieth century Florence. New York: Routledge, 2004, 248p.

426 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

abundante. Em oposição, à época da entrevista, esseinformante declarou que hoje todo dia é domingo.

Counihan observa que, ao passo que no passado acozinha tradicional estivera enraizada na tradiçãocamponesa da escassez e subsistência, em 2003, quandoa autora regressa à Toscana, produtos tradicionais -menciona vegetais sem agrotóxicos e alimentos nãotransgênicos - passaram a ser produtos de elite.

Assim, ao mesmo tempo em que os florentinosparticiparam de um aumento global do consumo dealimentos industrializados, resistiram àhomogeneização, buscando revitalizar e apreciaralimentos tradicionais. É nesse contexto que Counihanlembra a emergência do Movimento Slow Food - umaorganização que propõe a defesa da biodiversidade eda diversidade cultural e que propõe como alimentaçãode qualidade aquela realizada a partir do alimento bom,limpo e justo7 - iniciado na Itália, em 1986. E é emcontextos como o apontado por Counihan, queGarine8 afirma que, embora assistamos a um processode homogeneização dos modelos alimentares, oshábitos de alimentação locais continuam presentes.

A longa tradição em priorizar alimentos frescos,variados e produzidos localmente indica que ositalianos podem ser capazes de sustentar o movimentoem direção contrária aos alimentos rápidos e pré-preparados, mas, na medida em que as mulheres e oshomens estão participando do mercado de trabalho -e levando em conta as características (ainda marcadaspela desigualdade) das relações de gênero nos lares -,importantes desafios estão colocados para a cozinhatradicional.

Apesar dos desafios que se apresentam, Counihanconstatou, em 2003, que muitos florentinos seguiamalimentando-se regularmente com comidastradicionais e que as refeições continuavam na base dafamília, da mesma forma que os alimentospermaneciam sendo centrais em eventos, como asrefeições de domingo.

7 Em relação ao MovimentoSlow Food, ver o site http://www.slowfoodbrasil.com.

8 GARINE, Igor de.Alimentação, culturas esociedades. O Correio daUnesco, Rio de Janeiro, 15(7),p.4-7, 1987.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00426

Page 427: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Fabiana Thomé da Cruz

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 427

Em resumo, a cozinha da Toscana e os modos deproduzir adotados por camponeses na primeirametade do século XX, estão, em alguma medida,presentes no início do novo milênio, ainda que tenhamocorrido mudanças nas refeições diárias, na dieta e nacozinha, o que, como observou Carole Counihan, estárelacionado a mudanças na cultura e modo de vidados italianos e, em especial, dos toscanos.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

GARINE, Igor de. Alimentação, culturas e sociedades. O Correioda Unesco, Rio de Janeiro, 15(7), p.4-7, 1987.

HEREDIA, Beatriz; GARCIA, Maria France; GARCIA JR.,Afrânio. O lugar da mulher em unidades domésticas camponesas.In: AGUIAR, Neuma (Coord.). Mulheres na força de trabalho naAmérica Latina. Petrópolis: Vozes, 1984.

WOORTMANN, Klaas. O sentido simbólico das práticasalimentares. In: ARAÚJO, Wilma Maria Coelho; TENSER, CarlaMárcia Rodrigues (Org.). Gastronomia: cortes e recortes. Brasília:SENAC, 2006.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00427

Page 428: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:00428

Page 429: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 429

Das normas para apresentação de originaisDas normas para apresentação de originaisDas normas para apresentação de originaisDas normas para apresentação de originaisDas normas para apresentação de originais

O Caderno Espaço Feminino é uma revistamultidisciplinar que mesmo possuindo seu ConselhoEditorial, não se responsabiliza pelos conteúdos decada texto publicado, à medida em que o objetivo épolemizar e nunca enquadrar os artigos dentro de umaúnica perspectiva teórico-metodológica.

Seguindo a premissa anterior da multidiscipli-naridade, é necessário que cada colaborador(a) trabalheconceituando em nota de rodapé, ou no próprio texto,esclarecendo o(a) leitor(a) o que necessariamente nãopertence à área do(a) autor(a).

Ao aceitarmos artigos inéditos para a publicação,exigimos que os mesmos venham revisados quanto àortografia e sintaxe.

O material para publicação deverá ser encaminhadopara a Coordenação do Setor de Publicações do CDHISem duas vias impressas em papel A4, digitadas emespaço 1,5, fonte Times New Roman, tamanho12 e obedecendo, para margens, as medidas: direitae inferior: 2,5cm; superior: 3cm; esquerda: 4cm;acompanhado de CD-Room ou encaminhado parao e-mail: [email protected], ou submetido à revistaeletrônica: www.seer.ufu.br/index.phd/neguem.

Os trabalhos digitados devem estar de acordo comaspectos formais segundo técnicas e procedimentoscientíficos, bem como padrões atualizados da ABNT(Associação Brasileira de Normas Técnicas).

A O S C O L A B O R A D O R E S ( A S )A O S C O L A B O R A D O R E S ( A S )A O S C O L A B O R A D O R E S ( A S )A O S C O L A B O R A D O R E S ( A S )A O S C O L A B O R A D O R E S ( A S )

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:01429

Page 430: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

430 Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008

As colaborações a serem publicadas na RevistaCaderno Espaço Feminino poderão ter os seguintesformatos:

a) Artigos que apresentem contribuiçãointeiramente nova ao conhecimento e que estejamrelacionados com trabalhos na área de gênero e afins.Incluem-se aqui os resumos de trabalhos comresultados parciais e/ou finais originados de projetosde pesquisa. Devem conter: Títulos, ReferênciasBibliográficas.

b) Os trabalhos devem conter resumo emportuguês e em espanhol ou inglês, com o máximode 04 linhas; palavras-chave em português e emespanhol ou inglês (mínimo de três e máximo de cinco);referências bibliográficas e notas no pé de página. Ostrabalhos não devem exceder a vinte e cinco laudas,incluídos anexos.

c) Artigos considerados de relevância para a áreaainda que não tenham caráter acadêmico.

d) Resenhas que devem conter um mínimo de 03e um máximo de 05 páginas e respeitar as seguintesespecificações técnicas: dados bibliográficos completosda publicação resenhada no início do texto, nome(s)do(s) autor(es) da resenha com informações, no péda página, sobre a formação e a instituição a que estejavinculado; referências bibliográficas e notas no pé depágina.

e) Biografiasf) Entrevistas

Em folha à parte, em envelope lacrado, o(a/s) autor(es/as) deverá(ão) apresentar as seguintes informações:

a) título de trabalho;b) nome completo do(a)(s) autor(a)(es/as);c) titulação acadêmica máxima;d) instituição onde trabalha(m) e a atividade

exercida na mesma;e) endereço completo para correspondência;f) telefone para contato;

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:01430

Page 431: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008 431

g) endereço eletrônico, se for o caso;h) apontar(caso julgue necessário) a origem do

trabalho, a vinculação a outros projetos, a obtençãode auxílio para a realização do projeto e quaisqueroutros dados relativos à produção do mesmo.

Ao enviar o material para publicação, o(a)(s) autor(a)(es) está(ão) automaticamente abrindo mão de seusdireitos autorais, concordando com as diretrizeseditoriais.

Todos os artigos serão apreciados pelo ConselhoEditorial. A simples remessa dos originais, implica emautorização para a publicação do mesmo.

Os originais submetidos à apreciação do ConselhoEditorial não serão devolvidos. A Revista CadernoEspaço Feminino compromete-se a informar osautores(as) sobre a publicação ou não de seus textos.

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:01431

Page 432: CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd

Imprensa Universitária/Gráfica UFU

CADERNO ESP FEM V.19 N.1 2008.pmd 17/6/2009, 15:01432