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Performance, gnero, linguagem e alteridade: J. Butler leitora de
J. Derrida
Carla RodriguesDoutora em Filosofia, PUC-Rio
Professora (Filosofia/UFF, Comunicao Social/PUC-Rio)
Pesquisadora do Programa de Ps-Doutorado Jnior do CNPq
Rio de Janeiro, Brasil
> [email protected]
Sexualidad, Salud y SociedadR E V I S T A L A T I N O A M E R I
C A N A
ISSN 1984-6487 / n .10 - abr. 2012 - pp.140-164 / Rodrigues , C
. / www.sexualidadsaludysociedad.org
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Resumo: Este artigo se prope a uma discusso terica sobre duas
proposies da filsofa Judith Butler: gnero como performance e gnero
como pardia. Para isso, recupera o pen-samento do filsofo Jacques
Derrida e apresenta hipteses de articulao entre os dois auto-res,
articulaes estas que contribuiriam para a compreenso dos argumentos
de Butler no contra o feminismo, mas como uma problematizao dos
termos em que as reivindicaes emancipatrias da poltica identitria
se instituram.
Palavras-chave: feminismo; gnero; ps-estruturalismo; teoria
queer; Judith Butler
Performance, gnero, lenguage y alteridad: J. Butler leyendo a J.
Derrida
Resumen: Este artculo propone una discusin terica sobre dos
proposiciones de Judith But-ler: el gnero como performance y el
gnero como parodia. Para ello, retoma el pensamiento de Jacques
Derrida y presenta hiptesis de articulacin entre ambos autores, que
contribui-ran a la comprensin de los argumentos de Butler no como
contra el feminismo sino como una problematizacin de los trminos en
que se han instituido las reivindicaciones emancipa-torias de la
poltica identitaria.
Palabras clave: feminismo; gnero; post estructuralismo; teora
queer; Judith Butler
Performance, gender, language and otherness: Butler as reader of
Derrida
Abstract: This article discusses two propositions by philosopher
Judith Butler: gender as per-formance and gender as parody. A
retrieval of the works of philosopher Jacques Derrida sup-ports
hypotheses on the dialogue between the two authors, which allow for
an understanding of Butlers arguments not as against feminism, but
as a challenge to the terms by which the emancipatory claims of
identity politics have been formulated.
Keywords: feminism; gender; Post-structuralism; Queer Theory;
Judith Butler
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Performance, gnero, linguagem e alteridade: J. Butler leitora de
J. Derrida1
Introduo
A palavra performance destes significantes que, ao longo do
tempo, foram adquirindo tamanha polissemia que hoje se torna difcil
us-la sem uma explica-o prvia do que se pretende dizer. A deciso de
t-la no ttulo exigiu de mim, por isso, comear recuperando a sua
etimologia. No como um exerccio meramente formal ou por uma busca
de um sentido exato que pudesse resgatar algum tipo de pureza do
significado, mas para que esta etimologia possa ajudar na tarefa a
que este artigo se prope: uma leitura do gnero como performance,
tal qual pro-posto por Judith Butler, e sua articulao eu tambm
poderia dizer filiao, se esta no fosse uma palavra por demais
patriarcal com o pensamento do filsofo franco-argelino Jacques
Derrida, cuja influncia nas proposies de Butler e de outras tericas
feministas ps-estruturalistas notria.2
Performance tem como origem latina a palavra formare, que chega
at ns como formar, dar forma a, criar. Por sua ligao com criar, seu
uso no cam-po das artes bastante amplo. Pode designar espetculo em
que o artista atua com inteira liberdade e por conta prpria,
interpretando papel ou criaes de sua prpria autoria e atividade
artstica inspirada em formas de arte diversas (Di-cionrio Houaiss,
2001). Performance tambm d origem a dois outros termos que
eventualmente podem se confundir, mas em muito diferem: performtico
e performativo. Para performtico, o dicionrio registra sua origem
no Brasil dos anos 1970, quando a palavra passou a ser usada para
designar forma de arte colaborativa surgida na dcada de 1970 com
uma fuso de diversas linguagens de arte, como pintura, cinema,
vdeo, msica, drama e dana.
J performativo um termo que vai alm das ligaes que performance
tem com as atividades artsticas. seu uso nos campos da lingustica e
do gnero que pretendo explorar aqui: a articulao entre performance
de gnero, tal qual pro-posta por Judith Butler, com o pensamento do
filsofo franco-argelino Jacques Derrida. Para esta discusso,
primeiro situo e apresento, ainda que em linhas ge-
1 Este artigo faz parte de projeto de pesquisa da autora no
mbito do Programa de Ps-Douto-rado Jnior do CNPq, perodo 2011/2012,
sob a superviso de Fabio Duro (IEL/Unicamp).
2 Destaco, alm de Butler, Drucilla Cornell e Elizabeth Grosz.
Mais sobre as ligaes entre o pensamento da desconstruo e as tericas
feministas ps-estruturalistas, ver Rodrigues, 2008a; 2008b;
2009.
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rais, o debate de Derrida em relao linguagem, por onde ele comea
sua trajet-ria filosfica, nos anos 1960, abrindo se no um confronto
com os estruturalistas, pelo menos interrogando a sua supremacia
para, em um segundo momento, propor ligaes entre Derrida e Judith
Butler.
Alm de Derrida, muitos pensadores franceses foram leituras
decisivas para a obra de Judith Butler. Seus dilogos com Michel
Foucault e Jacques Lacan so ricos na problematizao de questes
ligadas normatizao de gnero. Fao esta observao para que, em funo do
privilgio que este artigo d quando se debru-a sobre as
peculiaridades da influncia de Derrida no pensamento de Butler, no
deixe de registrar outros autores de importncia notria na sua
filosofia.
O contexto estruturalista dos anos 1970
Eu no posso explicar o que a desconstruo sem recontextualizar as
coi-sas. Repito aqui a frase de Derrida (2004b) por tambm
considerar necessrio recontextualizar algumas das questes
levantadas pelo filsofo no incio da sua trajetria filosfica.
Recupero brevemente o contexto no qual surge o seu pensa-mento,
isto que chamamos no Brasil de pensamento da desconstruo e que nos
EUA mais conhecido como ps-estruturalismo. Considero a designao
genrica demais por pretender abarcar um conjunto de autores
heterogneos entre si para serem subsumidos a uma mesma classificao,
mas seu uso se impe por sua refe-rncia inevitvel ao
estruturalismo.
Derrida comeou sua trajetria filosfica nos anos 1960, poca em
que o es-truturalismo exercia forte primazia no pensamento francs.
Seu trabalho foi, em primeiro lugar, uma tomada de posio em relao
ao olhar do estruturalismo. Era um momento no qual as cincias da
linguagem, a lingustica, o tudo lingua-gem eram um discurso
dominante. Eu falo dos anos 1960, quando a desconstru-o comeou a se
constituir, eu no diria como antiestruturalista, mas, em todo caso,
a se demarcar em relao ao olhar do estruturalismo, e contestando
essa autoridade da linguagem (Derrida, 2004b).
Quando justifica esse comeo como uma contestao autoridade da
lingus-tica, da linguagem e do logocentrismo, parece-me que Derrida
est se defendendo de muitos dos seus crticos que o acusaram de
promover um omnilinguistismo, ou um a-linguistismo, ou ainda um
pantextualismo, mas principalmente est recuperando o que eram suas
posies iniciais em relao lingustica. No cap-tulo de Gramatologia em
que se dirige diretamente lingustica, Derrida faz dois gestos. O
primeiro, uma dura crtica:
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A diferena entre significado e significante pertence de maneira
profunda e implcita totalidade da grande poca abrangida pela
histria da metaf-sica, de maneira mais explcita e mais
sistematicamente articulada poca mais limitada do criacionismo e do
infinitismo cristos, quando estes se apoderam dos recursos da
conceitualidade grega. Esta pertena essencial e irredutvel: no se
pode conservar a comodidade ou a verdade cientfica da oposio
estoica, e mais tarde medieval, entre signans e signatum sem com
isto trazer a si tambm todas as suas razes metafsico-teolgicas. A
estas razes no adere apenas (e j muito) a distino entre o sensvel e
o inteligvel, com tudo o que comanda, isto , a metafsica na sua
totalidade. E esta distino geralmente aceita como bvia pelos
linguistas e semi-logos mais vigilantes, por aqueles mesmos que
pensam que a cientificidade do seu trabalho comea onde termina a
metafsica (Derrida, 2004a:15-16).
A este pargrafo segue uma citao de um trecho do linguista Roman
Jakobson,3 no qual ele diz que o signo lingustico comporta dois
aspectos, o sen-svel e o inteligvel. Derrida se dirige pretenso da
lingustica estruturalista de se apresentar como fora da metafsica
(linguistas e semilogos mais vigilantes, por aqueles mesmos que
pensam que a cientificidade do seu trabalho comea onde termina a
metafsica) para fazer, poucas linhas depois, o que estou chamando
de segundo gesto, ao afirmar que no h motivo para renunciar aos
conceitos de significante/significado porque eles so indispensveis
hoje para abalar a herana de que fazem parte (2004b:16).
Embora seja um equvoco tratar a desconstruo como um mtodo de
leitu-ra, pode-se, como reconhece Derrida, observar regularidades
nas maneiras de colocar um certo tipo de questo de estilo
desconstrutivo. Um dos aspectos deste estilo desconstrutivo estaria
no duplo gesto em relao aos autores que l.4 O primeiro gesto seria
perceber o que Derrida chama de sedimentos ocultos na construo de
determinados conceitos, neste caso especfico, os da lingustica e os
do estruturalismo. Este primeiro gesto, que no quer dizer destruir
aquele arca-
3 O pensamento estruturalista moderno estabeleceu claramente: a
linguagem um sistema de signos, a lingustica parte integrante da
cincia dos signos, a semitica (ou, nos termos de Saussure, a
semiologia). A definio medieval aliquid stat pro aliquo
ressuscitada por nossa poca, mostrou-se sempre vlida e fecunda.
Assim que a marca constitutiva de todo signo em geral, e em
particular do signo lingustico, reside no seu carter duplo: cada
unidade lingustica bipartida e comporta dois aspectos: um sensvel e
outro inteligvel de um lado, o signans (o significante de
Saussure), de outro, o signatum (o significado). Estes dois
elementos constitutivos do signo lingustico (e do signo em geral)
supem-se e chamam-se necessaria-mente um ao outro (Jakobson,
1960:162 apud Derrida, 2004a:16).
4 Sobre este duplo gesto, recorro a Duque-Estrada (2005) e
discusso do duplo gesto de Derrida em relao a Heidegger.
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bouo conceitual, o que permite se valer das aberturas
proporcionadas por este pensamento, mas a partir de agora em uma
outra atitude, uma vigilncia contra ingenuidades, a maior delas,
para Derrida, a pretenso de estar fora da metafsica.5
Derrida foi um importante crtico da metafsica, no para pretender
uma sa-da, mas para apontar seus limites e sua clausura, palavra
qual ele recorre com grande frequncia, notadamente nos textos da
dcada de 1970. Nesse perodo, ele est dedicado tarefa de apontar
para a clausura da linguagem, linguagem esta que estava naquele
momento sendo pensada pela lingustica como uma ruptura com
filosofias do sujeito. Ao lado de Claude Lvi-Strauss, Ferdinand de
Saussure o inspirador de grande parte do pensamento estruturalista
e fundador da lin-gustica como disciplina, que se institui com a
publicao, em 1915, do Curso de Lingustica Geral (Saussure, 1995
[1916]), resultado da edio de suas aulas entre 1907 e 1911. A
partir da, a lingustica seria invocada em diversas reas, como a
filosofia, a antropologia, a literatura e a psicanlise (Dosse,
2007:83).
Desde Plato a filosofia j se debatia com a justeza dos nomes. o
que est em jogo, por exemplo, no Crtilo, dilogo em que Scrates,
Hermgenes e Crtilo discutem as caractersticas da linguagem. Para
Crtilo, as palavras so adequadas s coisas por natureza, enquanto
Hermgenes vai defender a ideia de pacto e conveno. Scrates critica
a teoria convencionalista e adere ao na-turalismo, fazendo Crtilo
vencer Hermgenes. Saussure recupera o debate que remontava a Plato,
e que havia sido retomado por estudiosos da linguagem no sculo XIX,
inverte a tradio e se alia a Hermgenes, movimento que ter gran-de
importncia nos estudos de linguagem de todo o sculo XX. Em
Saussure, no haver mais uma unio natural entre uma coisa e seu
nome. O signo far a ligao arbitrria entre um conceito e uma imagem
acstica, entre um significa-do e um significante, e ser ao mesmo
tempo marca de presena do significante e ausncia do
significado.
Entendida pelo estruturalismo como fenmeno social com regras que
se es-tabelecem e se constituem revelia do sujeito, o sistema da
lngua proposto por Saussure representava uma tentativa de ruptura
com o sentido, tentativa cujos
5 Eu no renunciei palavra desconstruo porque isso implicava a
necessidade de memria, de reconexo, de rememorao da histria da
filosofia na qual ns estamos, sem toda vez pen-sar em sair dessa
histria. Em outras ocasies eu muito cedo distingui entre a clausura
e o fim. Trata-se de marcar a clausura da histria, no da metafsica
globalmente, eu jamais acreditei que tenha havido uma metafsica,
isso tambm um preconceito corrente. A ideia que h uma metafsica um
preconceito metafsico. H uma histria e rupturas nessa metafsica.
Falar dessa clausura no quer dizer que ela acabou. Portanto, a
desconstruo, a experincia des-construtiva se coloca entre a
clausura e o fim, na reafirmao da filosofia, mas como abertura de
uma questo sobre a filosofia (Derrida, 2004b).
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limites Derrida denuncia, no para desqualificar as proposies de
Saussure, mas para ir alm delas. Derrida percebe que, embora haja,
por parte de Saussure, uma ruptura com o ideal metafsico de sentido
no reconhecimento de que a ligao entre significante e significado
arbitrria, a lingustica ainda se manteria como mais um sistema
totalizante que pensa a linguagem como capaz de conferir sen-tido a
qualquer termo.
Derrida quer pensar como so arbitrrias as estruturas opositivas
da meta-fsica, como universal/particular, sensvel/inteligvel,
dentro/fora, presena/ausn-cia, masculino/feminino,
natureza/cultura. Ao associar a estrutura binria
signi-ficante/significado tal qual proposta por Saussure aos pares
metafsicos clssicos, Derrida far uma toro na proposta saussuriana.
Se, em Saussure, a presena do significante convoca o significado,
em Derrida nada escapa ao movimento do significante e, em ltima
instncia, a diferena entre o significado e o significante no nada
(Derrida, 2004a:27).
O que era uma diferena opositiva na qual o significado poderia
ser alcanado pela presena do significante passar a ser, para
Derrida, um jogo de remetimentos e referncias em que um
significante depende do seu anterior e do seu posterior para
fornecer algum sentido. Significantes passam, assim, a s serem
compreen-sveis a partir de uma cadeia de significantes, e o
significado aquilo que se d den-tro de uma cadeia de significantes,
num jogo de diferenas. So formulaes como estas que do origem s
crticas a que Derrida se refere: rotular o pensamento da
desconstruo como um pantextualismo viria de uma leitura equivocada
da pro-posio derridiana de que no existe significado, como se com
isto ele pretendesse nos jogar num abismo irracional em que nada
faz nenhum sentido.
Diferenas, diffrance
Pela leitura de Saussure e pela radicalizao da ligao arbitrria
entre signi-ficante e significado, Derrida chega a duas noes
importantes para o pensamento da desconstruo: rastro e diffrance.
Nas primeiras vezes que usou o termo ras-tro, Derrida o props como
substituio do termo signo, em Saussure. Ao invs de signo como
aquele que carrega a ligao entre significante e significado, o
rastro institudo seria o efeito do jogo de referncias da linguagem,
do sistema de envios e reenvios de significantes a significantes,
jogo no qual s se teria o rastro e no a presena do significado.
Este jogo o comentador Geoffrey Bennington (1996) exemplifica
com o uso de um dicionrio. Embora se recorra ao dicionrio em busca
de um significado, s o que se encontra uma remessa infinita a
significantes, no qual o sentido se d
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como efeito, e no no encontro de um significado por trs do
significante. A nfase na palavra efeito tem importncia porque ser
retomada por Butler para se referir a gnero no como substantivo, no
como um sentido por trs do ser, mas como efeito performaticamente
produzido.
O neologismo diffrance usado pela primeira vez em um texto no
qual Der-rida se dedica leitura de Husserl.6 Sua entrada em cena no
pensamento derridia-no se dar, no entanto, em uma conferncia na
qual Derrida est interessado em demonstrar a impossibilidade de
distino entre linguagem fontica e linguagem escrita. Para isso, ele
introduz a letra a na palavra original diffrence, e cria duas
palavras que so indistintas apenas pelo som, o que servir aos seus
propsitos de problematizar a primazia da fala sobre a escrita e a
ligao entre voz (phon) e sentido (logos).
Diffrance deriva do verbo diffrer, que significa retardar,
adiar, protelar. Di-ffrance pode ser atrasar, adiar, pode ser a ao
de remeter para mais tarde (Derrida, 1991:38). Nesse sentido, a
diffrance pode ser entendida como algo que nunca acontece, como
aquilo que sempre posterga, empurra para depois, desloca para o
futuro, para um futuro que nunca chega. Nesse deslocamento se
poderia afirmar que a diffrance supe um constante processo de
diferenciao. A diffran-ce est no jogo de remetimentos com o outro,
jogo a partir do qual as referncias so constitudas, num devir
permanente em que a identidade fixa substituda pelos efeitos de um
processo contnuo de deslocamento.
Se bastasse substantivar o verbo, diffrance poderia ser
traduzida por adia-mento, mas com esta traduo se perde outro
conjunto de significaes possveis no original. O sufixo ance que, em
francs, uma substantivao do presente con-tnuo (diffrant, adiando),
conota um sentido de extenso temporal impossvel de traduzir para o
portugus (Johnson, 2001).7
Mas diffrance carrega outras possibilidades, como apontar para
um mo-vimento que produz diferentes, que diferencia um movimento
que seria parte integrante de todas as oposies de conceitos como
sensvel/inteligvel etc. A di-ffrance seria o elemento do mesmo (que
se distingue do idntico), no qual essas
6 Assim entendida, a suplementaridade de fato toda a diffrance,
a operao do diferir que, simultaneamente, fissura e retarda a
presena, submetendo-a, ao mesmo tempo, diviso e ao prazo
originrios. A diffrance deve ser pensada antes da separao entre o
diferir como prazo e o diferir como trabalho ativo da diferena.
Evidentemente, isso impensvel a partir da conscincia, isto , da
presena ou simplesmente do seu contrrio, a ausncia ou a no
conscincia (Derrida, 1994:99, com modificaes minhas traduo
brasileira).
7 Houve vrias tentativas de traduo de diffrance: diferana,
diferncia, diferensa, di-feraena. Como nenhuma hegemnica nem parece
resolver a questo da diffrance tal qual prope Derrida, tenho optado
por manter o termo no original.
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oposies se anunciam (Derrida, 2001:15). Aqui, a diffrance
adquire a caracte-rstica de ser a raiz comum de todas as diferenas.
A diffrance no nenhuma diferena particular ou qualquer tipo
privilegiado de diferena, mas sim uma diferencialidade primeira em
funo da qual tudo o que se d s se d, necessa-riamente, em um regime
de diferenas e, portanto, de relao com a alteridade (Duque-Estrada,
2004:51). Em outras palavras, a diffrance nada em si mesma, mas
aquilo que permite que tudo exista num (infinito) processo de
diferenciao.
Por ser esse processo permanente, a diffrance no um conceito, no
tem existncia nem essncia, no a origem de todas as diferenas, no
uma dife-rena primria e primeira, no um tipo privilegiado de
diferena a partir da qual todas as outras diferenas acontecem, no
fixa. Derrida trata essa carac-terstica da diffrance como jogo que
produz as aspas so dele os efeitos de diferena. No entanto, essa
explicao, ele mesmo sabe, corre o risco de nos levar a entender
diffrance como a diferena original, inaugural, prvia, dada, que
sempre esteve l. Derrida est querendo marcar essa ideia de jogo, de
movi-mento de um sistema de reenvios, sem, no entanto, fundar uma
diffrance inau-gural de todas as diferenas. A diffrance vai
aparecer como a produo dessas diferenas, que seriam um efeito da
diffrance. Aparece aqui outro sentido do verbo diferir: no ser
idntico, ser outro, no ser o mesmo, dessemelhar-se, diferenciar-se,
distinguir-se.
Derrida est propondo, assim, que a ideia de significado seja
substituda por um movimento de significao, no qual no h presena
possvel, e a identidade seja substituda por identificao, noo mais
prxima de processo, de movimen-to, de um devir permanente que nunca
se d completamente. Uma identidade nunca dada, recebida ou
alcanada, no, apenas existe o processo interminvel, indefinidamente
fantasmtico, da identificao (Derrida, 1996b:43).
desse processo de identificao e de diferenciao infinita que
Butler se aproximar, aprofundando as aberturas proporcionadas por
pensamentos que, como o de Derrida, anunciam o fim do peso
metafsico da identidade em nome do reconhecimento de uma
alteridade, de uma abertura em relao s diferenas. A fim de se
situar no campo das rupturas ps-estruturalistas, Butler recorre ao
termo diffrance como a marca da diferena entre significado e
significante, ope-rativa e ilimitada da linguagem, transformando
toda referncia em deslocamento potencialmente ilimitado (Butler,
2003:70). Identificao e impossibilidade de presena traos singulares
do pensamento desconstruo em relao tradio filosfica estaro
associadas com a noo de alteridade, caracterstica da lingua-gem que
Derrida acentuar ao longo de toda a sua obra, e que ser importante
no questionamento poltico que ambos os autores faro em relao
afirmao de categorias identitrias na poltica.
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Performances de gnero
Da mesma forma como busquei fazer em relao a Derrida, me parece
neces-srio recuperar o contexto do pensamento de Butler. Seu
Problemas de gnero: feminismo e subverso da identidade, foi
publicado nos EUA em 1990, quando a teoria feminista j estava
imersa, h pelo menos uma dcada, no debate sobre a fixao de uma
identidade para a mulher, questo que se tentava remediar com o uso
da palavra no plural. Assim, teoria e militncia passam a falar em
nome das mulheres, a fim de apontar para o carter abrangente da
categoria mulher e responder s crticas sobre a suposta falta de
representatividade do feminismo, que pretenderia falar em nome de
uma totalidade impossvel de ser resumida em um significante. Havia
mulheres brancas, negras, ocidentais, orientais, jovens, idosas,
escolarizadas, trabalhadoras, donas de casa, pobres, abastadas, e o
substantivo mulher estava longe de poder dar conta de tamanha
diversidade.
Um dos muitos dilogos que Butler estabelece neste livro com
Simone de Beauvoir e com a distino sexo/gnero, to cara s teorias
feministas. Butler vai tentar demonstrar que a oposio sexo/gnero
estaria inscrita na longa tradio de oposies metafsicas que
orientaram o pensamento ocidental. Para Butler, a des-construo da
concepo de gnero seria a desconstruo de uma equao na qual o gnero
funcionaria como o sentido, a essncia, a substncia, categorias que
esto dentro da longa tradio metafsica de hierarquias. Beauvoir diz
claramente que a gente se torna mulher, mas sempre sob uma compulso
cultural a faz-lo. E tal compulso no vem do sexo. No h nada em sua
explicao que garanta que o ser que se torna mulher seja
necessariamente fmea (Butler, 2003:27).
A diviso sexo/gnero parte da ideia de que o sexo natural e o
gnero socialmente construdo e reproduz, segundo Butler, um modelo
binrio que em muito se assemelha ao par significante/significado.
Butler retira da noo de gnero a ideia de que ele decorreria do sexo
e discute em que medida essa distino sexo/gnero arbitrria. o que,
me parece, a autora quer indicar quando afirma: Tal-vez o sexo
sempre tenha sido o gnero, de tal forma que a distino entre sexo e
gnero revela-se absolutamente nenhuma (Butler, 2003, p. 25). Aponto
aqui para o paralelo ao questionamento de Derrida em relao ao par
significante/significado e analogia entre a afirmao de Butler e a
de Derrida, quando ele diz que a dife-rena entre o significado e o
significante no nada.
Se a distino entre sexo e gnero absolutamente nenhuma, no h mais
a essncia do sujeito de cujo sexo natural decorre um determinado
gnero, argumen-tar Butler. Assim como Derrida questionou o signo
como portador da unidade natural entre significante e significado,
Butler vai afirmar que o vnculo entre sexo e gnero supostamente
natural. Para ela, na teoria que defende a identidade
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dada pelo gnero (cultural ou construdo) e no pelo sexo
(natural), existe uma aproximao entre gnero, essncia e substncia.
Aceitar o sexo como um dado natural e o gnero como um dado
construdo, determinado culturalmente, seria aceitar tambm que o
gnero expressaria uma essncia do sujeito. Ela defende que haveria
nessa relao uma unidade metafsica, to metafsica quanto a concep-o
da lingustica que percebe o par significante/significado dentro da
distino sensvel/inteligvel na qual a tradio filosfica sempre se
apoiou.
Assim como Derrida desmontou a unidade do signo, e fez com isso
uma crtica metafsica e s filosofias do sujeito, Butler desmonta a
estrutura binria sexo/gnero. Por isso, proponho articular a
desconstruo de Derrida ao vncu-lo significado e significante e a
desconstruo de Butler ao vnculo entre sexo e gnero. O paralelo se
evidenciaria tambm quando Butler afirma que no existe uma
identidade de gnero por trs das expresses de gnero, e que a
identidade performativamente constituda. O que Derrida diz sobre o
signo que no h significado por trs do significante, e que o sentido
efeito constitudo por uma cadeia de significantes.
Butler vai pensar o gnero como performance, um tipo de
performance que pode ser dar em qualquer corpo, portanto
desconectado da ideia de que a cada corpo corresponderia somente um
gnero. Butler prope repensar o corpo no mais como um dado natural,
mas como uma superfcie politicamente regulada. Na sua leitura de
Beauvoir, ela afirma que
o gnero no deve ser construdo como uma identidade estvel ou um
locus de ao do qual decorrem vrios atos; em vez disso, o gnero uma
identi-dade tenuemente constituda no tempo, institudo num espao
externo por meio de uma repetio estilizada de atos. O efeito do
gnero se produz pela estilizao do corpo e deve ser entendido,
consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos,
movimentos e estilos corporais de vrios tipos constituem a iluso de
um eu permanentemente marcado pelo gnero (Butler, 2003:200, itlico
da autora, negritos meus).
Butler quer discutir o corpo no como natural, mas como to
cultural quan-to o gnero, de tal forma que problematize os limites
de gnero e tome como cultural a vinculao entre sexo e gnero
(Butler, 1987:145). Com a proposio de gnero como performance,
Butler tambm vai solapar o peso metafsico da identidade (de gnero).
Para ela, no h identidades que precedam o exerccio das normas de
gnero, o exerccio mesmo que termina por criar as normas. a repe-tio
das normas de gnero que promove isto, que no pensamento da
desconstru-o chamamos de duplo gesto. A repetio das normas como
performance se d sempre ao mesmo tempo em que se d a possibilidade
de burl-las, de faz-las nem
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verdadeiras, nem falsas:
Se a verdade interna do gnero uma fabricao, e se o gnero
verdadeiro uma fantasia instituda e inscrita sobre a superfcie dos
corpos, ento pare-ce que os gneros no podem ser nem verdadeiros nem
falsos, mas somente produzidos como efeitos de verdade de um
discurso sobre a identidade pri-mria e estvel (Butler, 2003:195,
nfase minha).
Nem verdadeiros/nem falsos uma formulao que se vale do recurso
ao nem/nem, uma formulao frequente no pensamento de Derrida, autor
que trabalha a partir de uma srie de signos de duplo valor, com
palavras que admitem um jogo de contradio e no contradio,
contestando a lgica do ou isto ou aquilo. o que leva Mnica
Cragnolini a chamar o pensamento da desconstruo de pen-samento do
nem/nem:
Diante da metafsica opositiva, caracterizada pelo binarismo, o
pensamen-to da desconstruo se colocou no entre das oposies: nem
verdade nem falsidade, nem presena nem ausncia, seno entre. O entre
est apontan-do para um mbito de oscilao do pensamento, e Derrida
previne para a comodidade metodolgica de convert-lo num novo lugar
do pensamento, ou num recurso que assente bases para o pensamento
(Cragnolini, 2007).
No se trata, assim, de estabelecer um novo lugar, mas de aceitar
permanecer na oscilao e de no sucumbir a esta comodidade
metodolgica que novamente estabiliza, ainda que em outro lugar, o
que poderia haver de oscilante na proposi-o nem feminino/nem
masculino. Novas identidades, por mais diversas e ml-tiplas que
sejam, so fixaes que eliminam o carter contingente da performance
de gnero tal qual pensada por Butler (2003:199).
Ao pensar o gnero como performativo, Butler indica que no h
essncia ou identidade nos signos corporais, e prope pensar sobre
trs dimenses contin-gentes da corporeidade: sexo anatmico, aquele
dado pela biologia; identidade de gnero, aquela que Beauvoir tratou
como uma construo social; e performance de gnero, sendo o elemento
do performativo, aqui, aquilo que perturba as asso-ciaes binrias
sexo/gnero, sexo/performance, gnero/performance, e aponta para o
carter imitativo de todo gnero. Performance, assim, aponta para uma
contingncia radical (Butler, 2003:196) em relao ao gnero e ao sexo,
para uma desnaturalizao e para o carter de fabricao de toda
identidade sexual. A dimenso contingente do gnero como performance
sugere a necessidade de repetio que, ao mesmo tempo em que a
reencenao de um conjunto de sig-nificados j estabelecidos
socialmente, tambm, a cada vez, uma nova experi-
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ncia de performance ou o que a autora chama de repetio
estilizada de atos (Butler, 2003:200).
O fato de a realidade do gnero ser criada mediante performances
sociais contnuas significa que as prprias noes de sexo essencial e
de mascu-linidade ou feminilidade verdadeiras ou permanentes tambm
so cons-titudas, como parte da estratgia que oculta o carter
performativo do gnero e as possibilidades performativas de
proliferao das configuraes de gnero fora das estruturas restritivas
da dominao masculina e da he-terossexualidade compulsria (Butler,
2003:201, itlicos da autora).
Neste ponto, quero marcar outro paralelo entre Derrida e Butler.
Ela dir que a identidade de gnero se constri relativamente pela
prtica, na mesma linha dos atos de fala de Austin (Femenas,
2003:80). Os conceitos de performativo e atos de fala fazem parte
da obra do linguista ingls John Austin (1960 [1911]), autor que ser
referncia comum a Butler e Derrida. Austin props uma diviso entre
atos de fala constatativos e performativos. Enquanto o constatativo
estaria dentro do registro de falso/verdadeiro (O cu azul, um
constatativo verdadeiro, A terra quadrada, um constatativo falso),
os performativos so atos de fala que, por no descreverem nem
relatarem, no esto submetidos ao regime de verificao da verdade. So
enuncia-dos proferidos na primeira pessoa do singular, no presente
indicativo, afirmativo e na voz ativa, que realizam uma ao (Ottoni,
2002). Derrida vai se interessar pelo carter performativo da
linguagem e pelo fato de que o performativo no tem o seu referente
fora de si (como o significante, cujo referente o significado), nem
descreve qualquer coisa fora ou antes da linguagem. O performativo
produz, opera, transfor-ma uma situao, tendo assim valor de fora8
(Derrida, 1991:363). Exemplo de um ato de fala performativo seria
Eu os declaro marido e mulher, no qual est suposta a autoridade de
quem a profere, o contexto e as suas circunstncias.9
Como os atos de fala, os atos de gnero ou o que Butler chama de
estilos de carne seriam performativos que estariam fora do regime
falso/verdadeiro e apontariam para a fragilidade da normatividade
de gnero ao explicitarem que a norma s pode funcionar como uma
estrutura de citao e de repetio contnua. Corpos performam gneros, e
o fazem pela repetio, sem nunca serem idnticos a si mesmos.
Residiria a a originalidade das proposies de Butler:
8 No que, como observa Derrida, h uma grande proximidade com
Nietzsche e a sua percepo de que todo sentido dado por um ato de
fora.
9 Derrida prope uma discusso a respeito do contexto e das
circunstncias na formulao dos enunciados de Austin, debate, no
entanto, que foge ao aspecto da linguagem que est em jogo neste
trabalho (Derrida, 1991).
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A originalidade do pensamento [de Butler] est no fato de ela
operar uma desconstruo no por uma libertao a essas normas, mas por
uma forma de subverso que se elabora no prprio ato de atender a
essas normas. As identidades, assim, no precedem o exerccio da
norma, mas esse exerc-cio mesmo que acaba por criar as identidades.
A repetio das normas est sempre acompanhada da possibilidade de
subvert-las (Le Blanc, 2011).
No gnero como performativo, o que se repete deve ser o mesmo,
mas no pode nunca ser idntico. Esta , nos termos de Geoffrey
Bennington, a lei da repetio: O que se repete deve ser o mesmo (s
existe o mesmo se isso se repete, e s existe repetio do mesmo), mas
no pode em nenhum caso ser idntico (1996:18). G-nero passa a ser,
assim, uma repetio de normas que j no retornam mais a um gnero
original como a cadeia de significantes, em Derrida, no retorna a
um significado original mas se d pela repetio de normas que podem
ser transgredi-das, imitadas, parodiadas, explicitando a
arbitrariedade do par sexo/gnero.
Butler e o recurso pardia ou de volta a Nietzsche
O filsofo alemo Friedrich Nietzsche uma referncia para os
ps-estru-turalistas franceses que, a partir da dcada de 1960,
voltaram a Nietzsche para recuperar o que havia de transgressor no
seu pensamento. Fazem parte desta re-abilitao de Nietzsche na Frana
os textos de Gilles Deleuze (1962) e de Michel Foucault (2009
[1964]). Nietzsche foi um pensador de mltiplas facetas, cuja obra
propositalmente no constitui um corpus sistemtico, linear ou
estvel. Qualquer tentativa de compreend-lo10 j em si contraditria
com o objetivo de seus textos. Mas ainda assim no me parece
violento ou arbitrrio afirmar que a linguagem para este autor, cuja
formao inicial foi em filologia, um tema crucial. Categorias como
estilo, metfora e pardia so invocadas por Nietzsche nas suas
marteladas contra a tradio metafsica. O estilo ser contraposto por
ele ao sentido; a me-tfora, ao ideal aristotlico do conceito; e a
pardia, ao prprio e ao original. Em Nietzsche, originrio j no ter
mais a ligao com original, origem ou pri-meiro, passando a
funcionar como repetio e diferena, e a ideia de autentici-
10 Para Nietzsche, ser compreendido seria a maior violncia a ser
cometida contra ele. Na leitura de Maria Cristina Ferraz, nas
passagens de Ecce Homo em que Nietzsche rejeita qual-quer
identificao do seu pensamento com o idealismo alemo, haveria
referncias a Malvida, amiga 28 anos mais velha, com quem ele
mantinha relao quase maternal, mas tambm a figura que encarnaria
essa indesejvel compreenso do seu pensamento. Quem pensou ter
compreendido alguma coisa a meu respeito, havia-me refeito como
algo sua imagem; no raro um oposto de mim, um idealista, por
exemplo (Nietzsche apud Ferraz, 1994:37).
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dade, implicada na noo de originalidade, deixa de ser
subordinada ao modelo da identidade para aderir ao movimento da
pardia (Ferraz, 2002:105). por esta aposta na pardia que Nietzsche
vai destituir de substncia qualquer modelo de identidade,
radicalizando, com a pardia, a ausncia do ideal de prprio.
Como em Nietzsche, em Butler a pardia j no mais ligada a um
ideal de origem: A noo de pardia de gnero ou gneros/sexos pardicos,
que Butler defende, no pretende dispor de um original anterior cuja
identidade a pardia imita. Em verdade, para Butler, a pardia j
propriamente um original (Femen-as, 2003:117). a Nietzsche que
Butler recorre para afirmar que no h identidade de gnero por trs
das expresses de gnero; essa identidade performativa-mente
constituda pelas prprias expresses tidas como seus resultados
(Butler, 2003:48). Vladimir Safatle valoriza em Butler o uso
poltico da pardia de gnero, que a autora vai perceber, por exemplo,
nos travestis, nas drag queens e nas prti-cas de cross-dressing.
Ela sugere, assim, que o travesti subverte distines to caras tradio
metafsica, como interno/externo, imitao/original, zombando da ideia
de uma verdadeira identidade de gnero.
Crtica pardica que, por inaugurar um deslocamento perptuo de
identi-dades, teria a fora de sugerir a abertura para processos de
ressignificao capazes de se disseminarem na malha social. Essa
crtica articulada atravs do embaralhamento da diferena ontolgica
entre essncia e aparncia s possvel porque a aparncia elevada aqui
condio de simulacro ou, ainda, de fetiche que desorienta a prpria
noo de identidade e represen-tao fixa por, ao mesmo tempo,
adequar-se e no adequar-se diferena sexual e aos modos de sexuao
tais como seriam postos pela Lei (Safatle, 2008:170, nfase
minha).
Com a referncia ao par essncia/aparncia estamos de volta a
Nietzsche, para quem no se pode pretender conhecer a natureza e o
mundo atravs da separao entre essncia e aparncia. Seu pensamento
ser uma guinada radical em direo aparncia, iluso, superfcie, ao
sonho, mentira, aos quais ele vai atribuir mais importncia do que
ao ideal de verdade. Para Nietzsche, s o que h o mundo aparente, e
a aparncia no o contrrio da essncia, mas a nica realidade
(Ma-chado, 2002). Ao fazer a apologia da aparncia, nem Nietzsche
nem Butler estariam pretendendo uma mera inverso que instituiria a
aparncia como lugar de verdade.
Em Nietzsche, a valorizao da aparncia ser uma forma de superar a
dico-tomia essncia/aparncia e apontar para as diferenas, os
matizes, para alm dos pares binrios. Em Butler, como observa
Safatle, a aparncia elevada condio de simulacro. Para ela, em
Beauvoir ainda h um apego biologia que garantiria o ideal de
essncia e, por isso, no pensamento da filsofa francesa, corpos
biologica-
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mente dados como macho se tornam homens e corpos biologicamente
dados como fmea se tornam mulheres, o que s pode acontecer se
considerarmos que homem e mulher j so formas modelizadas de
existncia corporal (Femenas, 2003:39).
Desconstruo no destruio
H um problema em dizer que Butler desconstruir o par binrio
sexo/gnero sem discutir as diferenas, nem sempre bem aceitas, entre
desconstruo e destrui-o. um mau entendimento do pensamento da
desconstruo perceb-lo como uma destruio, e esta confuso, proposital
ou no, foi responsvel por muitas das crticas feitas a Derrida.
Butler desconstri o par binrio sexo/gnero, mas no para destru-lo o
que levaria compreenso de que, se a dualidade sexo/gnero foi
fundamental para o movimento do feminismo, sua destruio levaria ao
seu abandono. a percepo, por exemplo, da comentadora Mara Luisa
Femenas (2003) no captulo A crtica a Beauvoir, no qual, desde o
ttulo e em diversas outra passagens, h esta ideia de que a leitura
de Butler pretende destruir ou des-qualificar o pensamento de
Beauvoir. Por exemplo:
Interessa-me assinalar que Butler no pretende compreender a
posio feno-menolgica e existencialista de Beauvoir, no uma exegeta
do pensamento da filsofa francesa. Ao contrrio, me parece que ela
toma como ponto de partida (anclaje) para desenvolver sua prpria
teoria e assim fundamentar uma concepo performativa de agncia e, em
um sentido amplo, de po-ltica (Femenas, 2003:20).
A confuso entre desconstruo, crtica e destruio foi
sistematicamente enfren-tada por Derrida. Mas da mesma maneira como
defendi acima que Derrida pretendeu apontar para os limites do
estruturalismo e sua inscrio na tradio metafsica ou o que ele
chamou de sedimentos ocultos para ir alm da lingustica de Saussure,
tambm defendo que Butler leu Beauvoir no para renunciar a todas as
aberturas proporcionadas pela pensadora francesa, para ficar nos
termos com que Derrida se referiu ao estruturalismo, mas a fim de
ir alm do que j havia sido proposto por Be-auvoir. Da mesma forma
que o par significante/significado foi importante para Der-rida
avanar em direo ao rastro e diffrance, sem a distino sexo/gnero
talvez no tivesse sido possvel, para Butler, apontar para o carter
performativo do gnero.
Por causa desta suposta sinonmia entre desconstruo e destruio,
Derrida foi muitas vezes interpelado a dar uma explicao para o que
seja desconstruo. De todas as respostas que ele deu a esta
pergunta, cito um trecho que, embora longo, pode ajudar a desfazer
esta associao to frequente entre desconstruo e destruio:
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preciso entender esse termo desconstruo no no sentido de
dissoluo ou de destruio, mas de analisar as estruturas sedimentadas
que formam os elementos discursivos, a discursividade filosfica na
qual ns pensamos. Isso passa pela lngua, pela cultura ocidental,
pelo conjunto disso que define nosso pertencimento a essa histria
da filosofia. A palavra desconstruo existia j em francs, mas seu
uso era muito raro. Ela me serviu desde o incio para tra-duzir um
termo vindo de Heidegger, que falava em destruio, e outro vindo de
Freud, que falava em dissociao. Mas muito rpido, naturalmente, eu
ten-tei marcar em que, sob as mesmas palavras, isso que eu chamava
de descons-truo no era simplesmente nem heideggeriano nem
freudiano. Eu consagrei alguns trabalhos a marcar uma certa dvida
ao olhar de Freud, de Heidegger, e a uma certa inflexo disso que eu
chamei de desconstruo (Derrida, 2004a).
Desta forma, Derrida e, no meu argumento, tambm Butler no esto
preten-dendo destruir os autores que leem, mas para me manter nas
metforas arqui-tetnicas escavar as camadas que fundamentaram
determinados conceitos a fim de mostrar como estes foram construdos
sobre certas premissas ou fundaes que encerram os limites de tais
conceitos. A dessedimentao teria, assim, a funo de trazer tona
aquilo que precisou ser recalcado, rebaixado, na construo de um
conceito ou de uma teoria.
Tanto quando Derrida l Saussure como quando Butler l Beauvoir,
nenhum dos dois pretende nem desqualificar as proposies dos autores
que leem, nem destruir, mas ir alm daquilo que s pde ser proposto
sobre determinados fecha-mentos. Trata-se, assim, de (re)abrir
determinadas questes, de olhar novamente para elas, de reler os
autores no para abandon-los, mas principalmente para no
abandon-los. No caso de Butler, trata-se de voltar a Beauvoir no
para abando-nar a teoria feminista que nela se inicia, mas
principalmente para no abandon--la, reconhecendo e esgarando os
limites do que j havia sido pensado sobre a distino sexo/gnero. Ou,
como bem pontua Safatle (2008:169): Tal teoria [a de Butler] nasce
de uma tomada de posio que procura levar s ltimas consequ-ncias a
distino entre sexo (configurao determinada biologicamente) e gnero
(construo culturalmente determinada).
A questo de Butler, portanto, no seria contra a distino
sexo/gnero ou contra a poltica feminista, mas uma estratgia que
pretende problematizar permanentemente essa categoria [a categoria
da identidade], sob quaisquer de suas formas (Butler, 2003:184,
nfase minha). Esta seria a tarefa poltica.
Para ela, um problema poltico que tanto a teoria quanto a
militncia femi-nistas tenham se baseado no termo mulheres como algo
que designe uma identi-dade comum. Por isso, Butler prope uma
crtica radical necessidade de a poltica feminista se fundamentar
numa base nica e permanente, que s funcionaria den-tro da ideia de
identidade. A desconstruo da identidade no a desconstruo
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da poltica; ao invs disso, ela estabelece como polticos os
prprios termos pelos quais a identidade articulada (Butler,
2003:213.). Nas palavras de Safatle: Ela [Butler] insistir que a
tarefa poltica central consiste na crtica das categorias
iden-titrias engendradas e naturalizadas pelo ordenamento jurdico
donde se deduz a funo poltica de uma teoria performativa do sexual
(2008:169).
Para terminar: pelo menos dois desafios polticos
Em Butler, o questionamento do par sexo/gnero o caminho adotado
para apontar para os problemas polticos do par masculino/feminino.
O primeiro de-safio poltico estaria em ir alm desta dicotomia para
pensar numa formulao cara ao pensamento da desconstruo em nem
masculino, nem feminino, sem com isso instituir um terceiro termo
(o hermafrodita, o transexual, o homossexu-al, o transgnero, para
citar alguns exemplos). Destaco aqui um problema que diz respeito
instituio de um terceiro termo por exemplo, o transgnero como um
tipo de soluo ou sada para o par opositivo masculino/feminino.
Neste nem/nem proposto por Cragnolini e acima mencionado, h duas
nfases importantes: a primeira, a da oscilao, a da no fixao. A
segunda nfase diz respeito a esta comodidade metodolgica de
converter este entre oscilante em um novo lugar no pensamento. A
instituio de um terceiro termo diz respeito, no meu ponto de vista,
a esta comodidade que novamente estabiliza, ainda que em outro
lugar, o que poderia haver de oscilante em nem feminino/nem
masculino.
Um dos desdobramentos das proposies de Butler foi o entendimento
que me parece equivocado de que ela estaria ao mesmo tempo
abandonando o concei-to de gnero, fundador da teoria feminista,
para tambm abandonar o feminismo, e com isso defender o
fortalecimento das teorias queer, dos movimentos de gays, lsbicas e
transgneros em detrimento do feminismo como uma bandeira
ultrapas-sada. A autora tambm tentou apontar para este problema em
uma entrevista da qual considero importante destacar duas afirmaes:
1. Eu diria que sou uma te-rica feminista antes de ser uma terica
queer ou gay ou uma terica lsbica. Meu compromisso com o feminismo
provavelmente meu primeiro compromisso; 2. Parece-me que combater a
dualidade sexo/gnero atravs da teoria queer, disso-ciando esta
teoria do feminismo, um grande erro (Butler, 1994).
Ao apontar para a impossibilidade de dissociao, Butler
suspenderia a in-genuidade das revolues da teoria queer para
coloc-la numa multiplicidade de repeties dentro da qual seu
ineditismo surgiria da repetio de gestos, discursos, teorias e
polticas que lhe so anteriores, sem com isso se pretenderem
originrias.
Sobre este aspecto, cito uma proposio de Derrida que se liga
ideia de repeti-
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o, tal qual acima formulada por Bennington: O indito surge, quer
se queira, quer no, da multiplicidade de repeties. Eis o que
suspende a oposio ingnua entre tra-dio e renovao, memria e porvir,
reforma e revoluo (Derrida, 2004c:331-332).
O segundo desafio poltico posto pelas suas proposies, contra o
qual muitas tericas feministas se insurgiriam (sobretudo as
marxistas, por razes que sero apre-sentadas a seguir), o seu
questionamento de uma poltica feminista que exigiria a estabilidade
da categoria mulher. Por isso, ela chama a ateno para como, na luta
pela emancipao e a democratizao, podemos adotar modelos de dominao
pe-los quais fomos oprimidas, no percebendo que um modo da dominao
funcionar mediante a regulao e a produo de sujeitos (Butler,
1998a:23).
O argumento da filsofa o de que, ao contrrio do que defendem as
polticas feministas herdeiras da tradio humanista da qual Derrida
tambm ser um crtico o gnero seria um fenmeno inconstante e
contextual que denotaria um ponto relativo de convergncia entre
conjuntos especficos de relaes, cultural e historicamente
convergentes (Butler, 2003:29). A autora estaria propondo alguma
coisa que pode soar como impossvel que o sujeito feminino venha a
deixar de ser o motor da poltica feminista, e indo ainda mais longe
ao apontar o paradoxo que existe em toda prtica poltica exige a
fixao dos sujeitos em categorias restritas para poder libert-los. O
paradoxo se estenderia tambm a qualquer teoria que pretenda se
estabelecer a partir da criao de novas identidades.
pelo caminho do abalo da diviso sexo/gnero, aqui exposto, que
Butler chegar crtica ao ideal de sujeito para desmontar a ideia de
um sujeito uno, as mulheres, que legitime o feminismo na sua tarefa
de emancipao.
Qualquer esforo para dar contedo universal ou especfico
categoria mulheres, supondo-se que essa garantia de solidariedade
exigida de ante-mo, produzir necessariamente faces, e que a
identidade como ponto de partida jamais se sustenta como base slida
de um movimento poltico feminista. As categorias de identidade
nunca so meramente descritivas, mas sempre normativas e, como tal,
exclusivistas. Isso no quer dizer que o termo mulheres no deva ser
usado, ou que devamos anunciar a mor-te da categoria. Ao contrrio,
se o feminismo pressupe que mulheres designa um campo de diferenas
indesignvel, que no pode ser totalizado ou resumido por uma
categoria de identidade descritiva, ento o prprio termo se torna um
lugar de permanente abertura e re-significao. Eu diria que os
rachas entre as mulheres a respeito do contedo do termo devem ser
preservados e valorizados, que esses rachas constantes devem ser
afirmados como o fundamento infundado da teoria feminista.
Desconstruir o sujeito do feminismo no , portanto, censurar sua
utilizao, mas, ao contrrio, liberar o termo num futuro de mltiplas
significaes, emancip-lo das on-
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tologias maternais ou racistas s quais esteve restrito e fazer
dele um lugar onde significados no antecipados podem emergir
(Butler, 1998a:24).
So proposies frequente ou propositalmente confundidas com o
abandono da categoria de sujeito. Afinal, se a luta pela emancipao
das mulheres foi feita em nome da construo das mulheres como
sujeitos de direitos, estaramos diante de um impasse: se a
reivindicao da emancipao no feita pelo sujeito feminino, quem
emancipar? (Butler, 1992a:79).
Neste aspecto, Butler herdeira do pensamento da desconstruo e
objeto das mesmas crticas de pensadores marxistas a Derrida. Como
observa Duro (2006), no Brasil ainda so poucos os trabalhos que se
propem a pensar sobre aproximaes e distncias entre
ps-estruturalismo e marxismo. Uma das excees apontadas pelo autor o
artigo de Anamaria Skinner, do qual falarei a seguir. Proporcional
ao siln-cio da academia brasileira das duas correntes de pensamento
que Duro atribui ao carter estanque da nossa vida intelectual foi a
dimenso do debate, que mobili-zou os pesquisadores de ambas as
correntes nos EUA, inclusive as tericas feministas.
Quando se fala sobre o debate entre marxistas e
ps-estruturalistas, im-possvel ignorar um dos mais notveis e
virulentos crticos de Derrida no campo marxista, Terry Eagleton. No
me cabe aqui, no espao destas consideraes fi-nais, recuperar o
conjunto de seus argumentos, mas apenas uma questo que diz respeito
diretamente ao tema deste artigo: a pertinncia de insistir ou no no
uso, na poltica, da categoria sujeito. Para Eagleton, a desconstruo
da tradicional autonomia do sujeito se parece cada vez mais com a
condio de preservao da liberdade do burgus liberal (Egleaton,
1981). Sua crtica ser repetida por muitas tericas
feministas-marxistas, para as quais o abandono da categoria sujeito
no feminismo seria o abandono do prprio ideal de emancipao.11
Como Derrida encara a acusao de que o pensamento da desconstruo
teria liquidado o sujeito? Questionando o pressuposto da existncia
de um sujeito centrado que teria sido liquidado. Para Derrida, o
sujeito no foi liquidado porque nunca esteve l, e o que os
ps-estruralistas fizeram foi reinterpretar, deslocar, reinscrever,
mas no liquidar com o sujeito: O diagnstico de liquidao do su-jeito
denuncia em geral uma iluso, ele acusa: se quis liquidar, se
acreditou que fosse possvel faz-lo, e ns no deixaremos faz-lo
(Derrida, 1992:270). Quando questiona essa liquidao que, segundo
ele, nunca houve, ao invs de aceitar o debate sobre se o pensamento
da desconstruo teria sido mais um a promover a liquidao do sujeito,
o primeiro movimento de Derrida desconstruir as duas
11 Em 1998, Judith Butler (1998a) e Nancy Fraser estabeleceram
(1998), nas pginas da New Left Review, um debate sobre o lugar do
feminismo na esquerda e no contexto do capitalismo tardio. Mais
sobre este debate em Bacci et al. (2003).
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premissas, apresentadas em forma de pergunta, com as quais seu
interlocutor, Je-an-Luc Nancy, havia comeado a entrevista: 1. quem
vem depois do sujeito?; 2. um certo discurso havia concludo pela
sua liquidao?
No deslocamento destas duas perguntas que constavam nos termos
do convite feito por Nancy a Derrida, ele contrape duas outras
questes: 1. o que advm do problema das pressuposies clssicas do
sujeito?; 2. quem ou o que respon-de questo do quem? Derrida prope
que se desomogeneze a referncia a qualquer coisa como o Sujeito:
Nunca houve para ningum O Sujeito, eis o que eu gostaria de comear
por dizer. O sujeito uma fbula (Derrida, 1992:279). A colocao da
questo do sujeito faria parte de um pensamento que insiste em
afir-mar a existncia de um ser-presente, a presena a si, a
identidade, a propriedade, a personalidade, o ego, a conscincia, a
vontade, a intencionalidade, a liberdade e a humanidade, marcas que
a tradio filosfica atribuiria a um sujeito estvel.
Sobretudo interessa a Derrida discutir o que ele chama da
instituio violen-ta do quem como sujeito (Derrida, 1992:297). Mas
quem, ns?, pergunta ele, apontando para a estrutura violenta que
afirma o ns como os europeus adultos machos brancos carnvoros e
capazes de sacrifcios e deixa de fora todo o dife-rente, todo o
outro que no esteja enquadrado nesse esquema que estaria implcito
no conceito de sujeito. No que diz respeito a esse ns, remeto a
Paulo Cesar Duque-Estrada, quando ele lembra que, por maiores que
sejam as nobres intenes da evocao desse ns, ideais como justia,
liberdade, emancipao, solidarie-dade, que sempre so dirigidas a um
ns, devem ser postos sob suspeita, uma suspeita que ele chama de
radical e sem trguas.
Por um pensamento sempre aportico, do que propriamente a partir
ou com base em algum terreno firme de igualdade e identidade,
enfim, a partir de uma universalidade que possa imprimir no
pensamento crtico uma orientao. Isto no quer dizer, como se poderia
concluir e, novamente, de modo preci-pitado que a universalidade
esteja sendo abandonada. Tal seria no apenas indesejvel como, de
resto, impossvel (Duque-Estrada, 2004:43-44).
Numa clara referncia a esta mesma pergunta, mas quem, ns?,
Butler pro-pe suspeitar do ns, mulheres, ecoando as indagaes
derridianas sobre quem ou o que responde questo quem?. Para isso,
ela indica ainda que, sempre que houve O sujeito, este sujeito foi
masculino (Butler, 1992b:9), e ignorou as caracte-rsticas de
instabilidade e relacionalidade que o distanciam da determinao
clssi-ca do sujeito da razo. H, nas proposies polticas de Butler,
um reconhecimento da instabilidade do quem a que Derrida se refere,
a partir do qual ela vai apontar para o paradoxo da necessidade de
fixar os sujeitos em categorias das quais pre-tendia libert-los.
Este paradoxo, no entanto, no diz respeito apenas fixao da
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categoria identitria mulher, mas fixao de qualquer categoria
identitria, como gay, lsbicas, transgnero, transexual etc., que
aparece nas suas proposies de gnero como performance, como j se
discutiu aqui.
Neste ponto, me parece importante recuperar uma afirmao de
Butler:
H o refro que, justamente agora, quando as mulheres comeam a
assumir o lugar de sujeitos, as posies ps-modernas chegam para
anunciar que o sujeito est morto (h uma diferena entre posies do
ps-estruturalismo, que afirmam que o sujeito nunca existiu, e
posies ps-modernas, que sus-tentam que o sujeito outrora teve
integridade, mas no a tem mais). Algu-mas veem isso como uma
conspirao contra as mulheres e outros grupos privados de direitos
que s agora comeam a falar em sua prpria defesa. [...] Temos aqui
certamente uma advertncia de que na luta pela emanci-pao e a
democratizao podemos adotar os modelos de dominao pelos quais fomos
oprimidas, no percebendo que um modo de a dominao funcionar
mediante a regulao e produo de sujeitos (Butler, 1998a:23)
Este refro seria a crtica das marxistas s suas proposies de no
mais afirmar a categoria mulher como sujeito para depois libert-la,
mas reconhecer que a fixao da categoria mulher j em si violenta e
que aceitar divergncias, fragmentaes e rupturas, ao invs de afirmar
uma unidade totalizante, tambm parte de um processo poltico. A
aposta de Butler que, sem a exigncia da camisa de fora da unidade,
outras aes concretas, ou o que ela chama de unidades provisrias
portanto, mais fragmentrias, menos coerentes podem surgir a par-tir
da constituio de identidades que podem ganhar vida e se dissolver,
o que do meu ponto de vista justifica suas declaraes sobre o erro
de combater a dualidade sexo/gnero atravs de qualquer teoria que
pretenda afirmar novas identidades.
Encerro retomando uma observao de Anamaria Skinner sobre
Espectros de Marx, livro de Derrida que ser o pontap inicial para
os debates entre marxistas e ps-estruturalistas nos EUA. A autora
conclui sua leitura afirmando que, para Derrida, caberia a cada um
determinar o que e em que Marx deve continuar presente nessa
atualidade (Skinner, 2000:74, nfase da autora). Na eleio desta
herana, Derrida e Butler so pensadores que teriam escolhido manter
presentes o ideal de emancipao, mas abandonando a perspectiva de
emancipar um sujeito como categoria identitria. O gesto poltico,
aqui, fazer deste paradoxo a afirma-tividade e os termos de suas
reivindicaes.
Recebido: 04/12/2011
Aceito para publicao: 19/03/2012
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