BRUNO DE MACEDO ZOREK OLIVEIRA MENDES: PENSAMENTO E TRAJETÓRIA DE UM INTELECTUAL LUSO-BRASILEIRO NO AMBIENTE ILUSTRADO PORTUGUÊS Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel e Licenciado em História. Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. Magnus R. de Mello Pereira CURITIBA 2004 AGRADECIMENTOS
204
Embed
bruno macedo zorek - historia.ufpr.br · Porque, segundo Nietzsche, os seres humanos sentem prazer em dominar o outro. Ou, segundo outros pensadores, Foucault ou mesmo Bourdieu, apenas
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
BRUNO DE MACEDO ZOREK
OLIVEIRA MENDES:
PENSAMENTO E TRAJETÓRIA DE UM INTELECTUAL LUSO-BRASILEIRO NO
AMBIENTE ILUSTRADO PORTUGUÊS
Monografia apresentada como requisito parcial
à obtenção do título de Bacharel e Licenciado
em História. Curso de História, Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes,
Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Magnus R. de Mello
Pereira
CURITIBA
2004
AGRADECIMENTOS
2
Em primeiro lugar, necessariamente devo agradecer ao professor Magnus Pereira, meu
orientador; aquele que, com suas críticas e constantes colaborações, possibilitou que este
trabalho se realiza-se. Agradeço também aos demais professores do Departamento de
História, muitos dos quais estiveram presentes durante quase todo o tempo de minha
passagem pelo curso. Não devo esquecer dos professores dos outros Departamentos também,
principalmente os das línguas clássicas, fundamentais para a minha formação.
O laboratório Cedope foi o lugar onde eu desenvolvi a maior parte do meu trabalho,
portanto, sua presença aqui é obrigatória. Ao CNPq, eu agradeço o financiamento da pesquisa
que resultou nesta monografia.
Os meus colegas de faculdade não sabem o quanto devo a eles. Mais que colegas,
muitos deles se tornaram meus amigos, bons amigos.
Minha família, por me agüentar em casa durante todo o tempo, tanto nos bons como
nos maus dias.
Por fim, e neste caso por ser mais importante, a Ana, sobre quem eu não precis
Um dos grandes problemas da História enquanto disciplina é o da necessidade, quando
pretende explicar qualquer momento histórico, de ou pressupor que o período imediatamente
anterior ao explicado é minimamente conhecido pelo leitor, ou ignorar simplesmente as
ligações temporais futuras ou passadas relativas a este momento. Pois, comumente,
desenvolve-se o texto historiográfico a partir de uma breve explanação sobre quais eram as
condições fundamentais para que determinado contexto se constituísse; isto é, discute-se o
que possibilitou, no passado, que tal contexto se formasse no presente relativo. Ou, de outra
maneira, estabelecem-se balizas temporais e trabalha-se com o que aconteceu dentro do
espaço temporal determinado, esquecendo-se o resto. A primeira possibilidade gera um
problema insolúvel, pois o período anterior ao estudado se constituiu da mesma forma que
este, ou seja, de modo a dever características ao seu antecessor. Logo, o que antecede este
último também é resultado do seu anterior, e assim incessantemente… Portanto, há uma
referência implícita e necessária neste tipo de trabalho historiográfico a uma origem da qual
somos, de uma forma ou outra, o resultado mais recente. No entanto, esta origem não pode ser
alcançada, apenas suposta; e por dois motivos: primeiro porque as fontes mais antigas das
quais o historiador dispõe são limitadas no tempo, o que veio antes destas não se tem como
investigar, e ainda não se inventou uma máquina do tempo que permita observar o passado
anterior; e, dois, porque sempre há uma origem da origem, ou seja, nesta relação sempre há
um antes do antes e, sendo assim, nem com a máquina seria possível, pois o passado se torna
infinito. Por isso, supõe-se, e apenas isto, uma ‘origem original’ que teria iniciado todo o
processo; contudo, como esta origem é inalcansável e todo o decorrer dependente do
movimento inicial, as explicações recortadas feitas pela História são sempre e
necessariamente insuficientes, afinal, em última instância, o problema discutido está ligado a
uma causa desconhecida.
A outra maneira de se fazer História resolve o problema da ‘causa inicial’, pois põe em
xeque a relação fundamental de ‘causa e efeito’. Se se pensar como Nietzsche, a causa só
existe junto com o efeito, porque ela só pode ser definida depois que se tem o efeito; e se a
causa é dependente do efeito, se só surge depois dele, como pode ela vir antes do que a
permite existir? Conclusão: a causa não existe. Só o que existe são as Ações, o mais é ficção.
Não cabe aqui discutir como Nietzsche desenvolve esse raciocínio pormenorizadamente, a
explicação anterior, mesmo grosseira é suficiente para o intento… Ao que interessa: a
5
historiografia que adota esta visão de mundo não precisa explicar o que veio antes, mesmo
porque não há relação entre passado e futuro de maneira causal; por isso, explica apenas o que
balizou e fim. O risco: fazer da História uma prática desprovida de sentido. Mesmo porque,
determinar um sentido para esta prática implica em esperar um efeito dela e, sendo assim,
pressupor que a História seja a causa de alguma coisa, o que não é possível nesta lógica. Disso
se tem que não é preciso fazer História, porque não há um porquê de fazê-la. Na verdade, não
há nenhum porquê, nada é necessário que se faça. Mas, ainda assim, se faz.
Por quê?
Porque, segundo Nietzsche, os seres humanos sentem prazer em dominar o outro. Ou,
segundo outros pensadores, Foucault ou mesmo Bourdieu, apenas o que existe entre os
homens são relações de poder; relações que, em última instância, tendem a legitimar o
discurso do mais forte. Portanto, na batalha dos discursos, cada qual se utiliza dos
instrumentos que detém para desautorizar os outros que disputam posições.
E a História neste contexto é mais um instrumento de dominação… Todavia, ainda há
um fim nobre, mas paradoxal, não só para História, como para todas as Ciências Humanas,
que é o de identificar as estruturas em que os discursos se sustentam para poder descontruí-
las. Assim sendo, cabe aos historiadores e demais cientistas sociais a função de criticar as
formas de dominação e como elas se legitimam. O paradoxo está no fato de que estas ciências
também criticam a si próprias, desconstruindo a forma como constróem e legitimam o próprio
discurso. O que gera uma desconstrução generalizada! E a nobreza estaria na possibilidade
que surge de se tentar construir sobre os escombros uma sociedade mais justa, com uma
distribuição de poderes mais igualitária. O problema é que essa imagem de sociedade, de
justiça, de igualdade etc, é também oriunda de um determinado discurso defendido por um
determinado grupo que tem interesses específicos e que age no mundo através de relações de
poder como todos os demais. Portanto, algo que não se resolve, pois é um círculo vicioso.
Nas meditações que se fizeram em torno deste tema, a escolha de uma única solução
para o problema não foi o que houve. De qualquer forma, é preciso apontar alguma na qual
seja possível sustentar a análise que vem aqui em seguida. A solução – não afirmada, apenas
sugerida – é a seguinte: identificou-se esse problema como sendo religioso. Na verdade,
‘religioso’ não é a melhor palavra, mas colocar como um problema de crença também não
satisfaz. Enfim: se levada ao extremo, a questão chega ao ponto de vista específico que
determinado indivíduo defende; e que, se também levado ao extremo, este ponto de vista
6
revela a crença do mesmo indivíduo em certos princípios definidos arbitrariamente que ele
escolheu acreditar – ou foi escolhido. Por isso, o que baseia essas palavras é um arbítrio.
Acredito que existem estruturas que determinam as possibilidades de ação dos
indivíduos no mundo. Creio que estas estruturas são definidas historicamente, que conforme o
tempo passa, elas se transformam. As mudanças que ocorrem nessas estruturas são fruto das
ações dos indivíduos, portanto, mesmo determinados pelas estruturas, são os indivíduos que
as determinam também. Além disso, a única forma de transformar as estruturas, penso, é
tomando consciência delas, ou seja, através de nossa prática investigativa e de nossa análise.
Daí que muito mais importa a forma como realizamos nossa investigação do que o objeto
sobre o qual nos debruçamos. O objeto, na verdade, pouco importa, qualquer coisa pode ser
instrumento através do qual se faz a crítica, desde que se construa a relação de maneira
adequada. Afinal o objeto não se justifica sozinho como legítimo a ser estudado, é a
importância que se dá a ele em um dado contexto que o legitima. Logo, enfim, é a forma
como se aborda o objeto que justifica um estudo, abrindo a possibilidade de se escolher
qualquer objeto.
No caso, o objeto é um luso-brasileiro que viveu nos finais do século XVIII e no início
do XIX, Luiz António de Oliveira Mendes. A escolha por estudar este personagem está
intimamente vinculada a minha trajetória particular, principalmente dentro da Academia.
Num dado momento, foi-me oferecida a oportunidade de trabalhar com o professor Magnus
Pereira sobre o pensamento econômico dos intelectuais luso-brasileiros durante o período
final do Antigo Regime. Como desdobramento deste trabalho, ainda sob a orientação do
professor Magnus Pereira, comecei a investigar outros aspectos do pensamento daqueles
homens. Oliveira Mendes, sendo um dos envolvidos naquele ambiente e, também por ter sido
pouco estudado pela historiografia até o momento, foi selecionado para a análise nesta
monografia. A sugestão partiu do professor Magnus; da mesma forma, o acesso às obras de
Mendes só foi possível graças à disponibilização que meu orientador ofereceu sobre as fontes.
É preciso falar também do Cedope, o laboratório onde grande parte do trabalho foi
desenvolvida. Este espaço oferece um ambiente propício ao desenvolvimento de pesquisas,
pois há muitas pessoas engajadas nos vários projetos que se desenvolvem por lá. Como todos
os projetos têm alguma proximidade, a troca de informações é muito rica e facilita bastante os
progressos das pesquisas individuais.
7
O trabalho sobre as obras de Oliveira Mendes foi realizado em duas etapas. Num
primeiro momento, foram feitas leituras bibliográficas a respeito da época, do tema, etc, ao
mesmo tempo em que os seus manuscritos foram transcritos. Várias são as obras de Oliveira
Mendes analisadas neste trabalho, mas apenas duas delas foram publicadas, todas as demais
são manuscritas. De modo que, para facilitar a leitura, todos os manuscritos, agora, possuem
uma versão transcrita. O segundo momento foi a análise propriamente dita e que traz como
resultado o que poderá ser lido logo na seqüência.
O texto está dividido em três capítulos. O primeiro deles é uma contextualização geral,
apresenta Portugal no contexto do Iluminismo, o papel dos luso-brasileiros na ilustração
portuguesa, a crise do Antigo regime e, além disso, introduz o indivíduo estudado. O segundo
capítulo se constitui da análise dos textos menores de Oliveira Mendes, desde suas invenções
mecânicas, como suas experiências com tinta de pau-brasil, até a discussão sobre a questão do
carvão combustível, entre outras coisas. O último capítulo, por sua vez, é a análise dos dois
maiores trabalho de Mendes e, de certa forma, os mais importantes, pois seus temas são a
escravidão e a agricultura; assuntos ambos que muito interesse despertavam no ambiente
intelectual português daquela época. Por fim, ainda há a conclusão, onde apresento o
resultado das reflexões desenvolvidas.
CAPÍTULO I
8
A elite política brasileira, à época da Independência, possuía uma certa
homogenidade ideológica singular, principalmente se comparada às elites das outras
colônias latino-americanas. José Murilo de Carvalho, quando explica o processo de
independência brasileira, vincula esta característica ao que ele entende como opções
políticas, dentre outras possíveis, tais como a manutenção da unidade territorial do Brasil e
o estabelecimento da monarquia como sistema de governo depois da separação com
Portugal.1 O historiador demonstra que essa homogenidade era produto de uma estratégia
metropolitana de atração da elite colonial brasileira que buscava alçá-la a condição de
cogestora do Império.2 Esta política foi adotada no período pós-pombalino e se tornou mais
evidente depois da Inconfidência Mineira. Era uma maneira de os portugueses lidarem com
o quinhão mais rico de seus domínios que chegava, naquele momento, a superar em
importância o seu território europeu.
A educação superior era o principal meio através do qual se dava a unificação
ideológica da elite luso-brasileira. Uma parcela expressiva da elite possuía formação
universitária, ao passo que quem não fazia parte deste grupo raramente recebera qualquer
formação escolar: “a elite era uma ilha de letrados num mar de analfabetos”.3 De maneira
diferente da administração espanhola, a Coroa portuguesa evitou construir Universidades
nas colônias e centralizou a educação superior de seus súditos em Coimbra, cidade que
abrigava a única Universidade do Reino. Portanto, a formação universitária da imensa
maioria dos portugueses e luso-brasileiros foi promovida em um único lugar. Os filhos da
elite colonial vinham de diferentes províncias e, conforme a principal atividade econômica
da família, respondiam a interesses diferentes. O deslocamento geográfico e o convívio
com colegas de outras províncias facilitavam a inculcação de uma ideologia homogênea e
diluíam as diferenças regionais entre os universitários.4
O ensino superior em Portugal era dominado pelos jesuítas. A educação oferecida
pela Universidade de Coimbra tinha uma forte orientação escolástica e rejeitava as idéias
iluministas. As concepções comuns na Europa do século XVIII eram consideradas
perigosas em Portugal por questionarem muitos dos dogmas católicos tradicionais. Foi
1 CARVALHO, J. M. A construção da ordem; Teatro de sombras. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Relume Dumará, 1996. 2 Ver também PEREIRA, M. R. de M. “Um jovem naturalista num ninho de cobras: a trajetória de João da Silva Feijó em Cabo verde, em finais do século XVIII”. In: História: Questões & Debates. Curitiba: Editora da UFPR, n. 36, 2002. 3 CARVALHO, J. M. op. cit. p. 55 4 Idem. Ibidem.
9
Pombal quem trouxe as novas idéias para o ambiente acadêmico português. Depois de
explusar os jesuítas do Reino, Sebastião de Carvalho e Melo transferiu o controle dos
sistemas educacionais para os padres do Oratório. Com uma postura mais flexível que a
dos jesuítas, os oratorianos adotaram as propostas pedagógicas pombalinas. A Reforma da
Universidade aconteceu em 1772, os métodos tradicionais dos jesuítas foram substituídos
por uma pedagogia empirista. Enfatizou-se o estudo das ciências naturais e passou-se a
valorizar muito o conhecimento produzido para fins práticos. De acordo com Crippa, essas
mudanças no ensino e na Universidade eram necessárias para que Portugal conseguisse se
adequar aos novos tempos.5 De qualquer forma, é um pouco mais tarde que o Iluminismo
emplaca efetivamente em Portugal, pois, apesar de algumas inspirações ilustradas, a
política do Marquês de Pombal ia de encontro a alguns dos principais ideais deste
movimento filosófico, como, por exemplo, os de tolerância e civilidade.6
Terminada a formação acadêmica, parte dos jovens recém formados eram
recrutados pelo governo português e assumiam cargos administrativos em diferentes partes
do Reino. De início, estes homens ocupavam posições menos importantes e, conforme
ganhavam experiência, eram promovidos para postos de maior destaque nos quadros do
governo. O começo das carreiras era uma espécie de treinamento para as funções
administrativas mais importantes, pois se entendia como necessário garantir funcionários
tecnicamente competentes para a gestão do Império. Ao mesmo tempo, eles circulavam
geograficamente, era muito difícil um indivíduo permanecer num único local durante sua
trajetória política. Esta circulação não era gratuita, fazia parte da mesma estratégia e
colaborava para criar um sentimento de unidade dos domínios portugueses nos membros
da elite.7
Segundo Lyra, os intelectuais luso-brasileiros, principalmente, assumiram aquele
sentimento de unidade de uma maneira particular.8 Recuperaram um tema frequente do
imaginário luso e o transformaram em projeto. Construiriam um novo e todo poderoso
império, o Quinto Império, nas palavras do Pe. Antônio Vieira. Este império teria duas
partes principais: o Brasil e Portugal, mas com um sentido específico, “uma unidade
5 CRIPPA, A. “O conceito de Filosofia na época pombalina”. In: PAIM, A. (org.) Pombal e a cultura brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1982. 6 NEVES, G. P. das. “Guardar mais silêncio do que falar: Azeredo Coutinho, Ribeiro dos Santos e a escravidão”. In: CARDOSO, J. L. (coord.). A economia política e os dilemas do império luso-brasileiro (1790-1822). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. 7 CARVALHO, J. M. de. op. cit. 8 LYRA, M. de L. V. A utopia do poderoso império. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994.
10
atlântica imperial baseada numa pretensa relação de parceria recíproca para a defesa dos
interesses comuns”.9 A partir da colônia americana, os portugueses conseguiriam se impor
às demais potências européias e se tornar a mais importante nação do mundo. Muitos dos
que defendiam este projeto, Vieira inclusive, sugeriram que a Corte se transferisse para o
Brasil e, daqui, promovesse sua política imperial. Quando acontece a fuga da família real
em 1808, muitos entusiastas viram no episódio vergonhoso a possibilidade de Portugal
estar se tornando, finalmente, aquilo que nasceu para ser, um grande império.
O ambiente intelectual que se formou em Portugal depois do início desta política e
que propiciou a produção destas características na elite reinol e colonial é o cenário onde
se desenrolam as ações do indivíduo investigado neste trabalho. Luiz Antônio de Oliveira
Mendes nasceu na cidade da Bahia por volta de 1750.10 É um indivíduo até agora pouco
observado pela historiografia.11 Em se pensando no tratamento dado pelos historiadores a
outros luso-brasileiros que participaram do ambiente intelectual português na mesma
época, faz sentido considerar as contribuições que Mendes legou àquele ambiente.12 Sua
trajetória também foi marcada pela formação em Coimbra. Oliveira Mendes formou-se em
Direito no ano de 1777. Portanto, foi para Portugal durante os anos finais do ministério
pombalino e completou seus estudos já na Universidade Reformada. No período em que
estudou em Portugal, ainda freqüentou como voluntário aulas de Medicina. Estudou
também Filosofia, disciplina que foi tornada obrigatória depois da Reforma. Tanto o
Direito como a Medicina eram disciplinas, guardadas as diferenças que o tempo promove,
muito próximas, em sua configuração geral, ao Direito e à Medicina atuais. A Filosofia,
entretanto, era uma disciplina significativamente diferente daquela com a qual estamos
acostumados. O curso de Filosofia englobava várias áreas de conhecimento, desde a
investigação da natureza física à questões de ética. O que hoje está dividido em disciplinas
9 Idem, Ibidem. p. 118 10 As informações biográficas a seu respeito são poucas e se resumem ao que diz: SILVA, I. F.; ARANHA, B. Diccionario Bibliographico Portuguez. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. (versão digital). 11 O único texto a seu respeito é o Prefácio de José Capela para a reedição de uma Memória de Oliveira Mendes sobre as condições sanitárias dos escravos. MENDES, L. A. de O. Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre a costa d’África e o Brazil. Porto: Publicações Escorpião, 1977. 12 Vários dos indivíduos que compõe o grupo dos luso-brasileiros foram estudados pela historiografia. Dentre eles, há alguns famosos: José Bonifácio, José da Silva Lisboa, Alexandre Ferreira, etc. Os homens de mais destaque são aqueles que participaram de modo ativo no processo de Independência do Brasil. É neste sentido, inclusive, que Maxwell faz seu recorte no ambiente intelectual português e nomeia parte destes homens de “geração de 1790”. MAXWELL, K. Pombal. Paradox of the Enlightenment. Cambridge: University Press, 1995.
11
independentes, como a Física, a Química, a Botânica, etc. bem como a Economia, naquele
momento estava definido como o campo de estudo da Filosofia.
Esta abrangência advinha da concepção de Filosofia desenvolvida pela ilustração
européia durante o século XVIII. O Iluminismo português adotou esta postura e consagrou
o empirismo como sistema privilegiado de compreensão do mundo. No entanto,
diferentemente do empirismo tal como foi concebido – onde todo conhecimento provém da
experiência, ou seja, da observação direta e da reflexão – o empirismo português “mais
parecia uma teoria do bom senso acerca da origem e da classificação das idéias, do que
uma revolucionária teoria, capaz de comprometer as bases dos conhecimentos humanos,
quer filosóficos, quer teológicos”.13
A adoção deste conceito de Filosofia não foi unânime no ambiente intelectual
português e, somente depois da Reforma da Universidade de Coimbra de 1772, é que se
tornou hegemônica. O processo de interiorização deste conceito foi lento e fragmentado,
principalmente porque as novas idéias eram importações dos outros países europeus e
havia em Portugal uma forte resistência do establishment, fundamentalmente orientado
pela tradição escolástica, a estas inovações.14
Todavia, o ponto alto do Iluminismo português foi o período imediatamente
posterior ao ministério pombalino, ou seja, o reinado de D. Maria e a regência de D. João.
O grande indicativo disto foi a criação da Academia de Ciências de Lisboa. A principal
contribuição da Academia ao movimento ilustrado – além da organização de uma
biblioteca e de um museu, da relação com a Universidade de Coimbra e dos contatos com
outras instituições congêneres no exterior – foi o estímulo à produção dos intelectuais
através das publicações que patrocinava.15
Estas publicações atingiam um público específico. Apesar de ter como pretensão
serem lidos por uma larga parcela da população reinol e colonial, os textos dos acadêmicos
acabavam circulando principalmente entre os próprios acadêmicos e membros do
governo.16 Fundamentalmente, era a elite política e intelectual quem absorvia a produção
literária portuguesa. A elite econômica em grande parte era formada por membros tanto do
13 CRIPPA, A. op. cit. p. 29 14 FONZAR, J. “Raízes da reforma do ensino do Marquês de Pombal: o Modernismo na cultura Portuguesa”. In: Educar. Curitiba: Ed. UFPR, jul./dez. 1985. 15 NOVAIS, F. “O reformismo ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 4, n. 7, mar./1984. 16 CARDOSO, J. L. O pensamento económico… op. cit. p. 53 e 54
12
ambiente intelectual (é bom lembrar que os luso-brasileiros que fazem parte deste grupo
eram filhos da elite colonial) como do governo. Portanto, era a parcela dominante da
sociedade, em quase todos as suas subdivisões, que produzia e consumia a literatura
científica da época.
Além da Academia de Ciências e da Universidade de Coimbra, havia mais uma
instituição importante por onde circularam os intelectuais luso-brasileiros, a Casa Literária
do Arco do Cego. A finalidade oficial desta instituição era publicar trabalhos voltados para
o desenvolvimento da agricultura no Brasil. Foi instalada por D. Rodrigo de Sousa
Coutinho em 1799, mas funcionou somente durante dois anos. De qualquer forma,
enquanto ativa, a Tipografia do Arco do Cego publicou intensamente. Ana L. da Cruz
explica que a Casa Literária ainda servia para o ministro do Ultramar controlar
determinados intelectuais luso-brasileiros que, por alguma razão, quisesse manter sob
vigia. Por isso, inclusive, é que ele nomeou como diretor o frei brasileiro Mariano da
Conceição Veloso – indivíduo que não possuía formação acadêmica, mas esteve bastante
envolvido com pesquisas científicas e era homem de confiança de Souza Coutinho.17
A Casa Literária do Arco do Cego pode ser vista, exemplarmente, como a concretização de um projeto político de D. Rodrigo, voltado, a um só tempo para uma política colonial de realçar, interna e externamente, a importância do Brasil e para a ação propagandística de difundir as luzes da ciência, sobretudo no domínio da agricultura, através de publicações ilustradas, bem ao gosto das elites eruditas e acadêmicas. Por outro lado, o Arco do Cego inseria-se também no âmbito do mecenato e das clientelas de D. Rodrigo, a quem interessava a manutenção de um espaço para congregar intelectuais sob sua tutela e patrocínio, como estratégia para evitar comportamentos sediciosos.18
O grupo do Arco do Cego não contou com a participação de Oliveira Mendes. Este
intelectual tornou pública suas contribuições à sociedade lusitana através das sessões e
publicações da Academia de Ciências. Também ele estava inspirado pelo “empirismo
mitigado” típico do ambiente intelectual português, o que se percebe pelas escolhas
temáticas de seus textos. Como a grande maioria dos “filósofos” luso-brasileiros
envolvidos com a Academia de Ciências, Mendes estava preocupado com questões
práticas. Ele escreveu sobre diversos assuntos: problemas na construção de navios; sugeriu
novas tecnologias para os carros (carroças) portugueses; sobre a extração de tinta do pau-
brasil; a plantação de pinheiros; alguns problemas da agricultura em Portugal; inventou
17 CRUZ, A. L. R. B. da. “Verdades por mim vistas e observadas, Oxalá foram fábulas sonhadas”. Curitiba: UFPR, 2004. Tese de doutorado, policopiada, inédita. 18 Idem. Ibidem. p. 133
13
uma espécie de escada de incêndio; falou sobre as condições sanitárias dos escravos;
também sobre a questão do carvão combustível; e outras coisas mais.
Entretanto, Mendes não dedicava seu tempo exclusivamente a estes assuntos, era o
contrário, inclusive, o que se dava. Ele era advogado da Casa de Suplicação de Lisboa e,
por isso, as “applicações Forenses” ocupavam um largo espaço em sua grade horária.
Deste modo, de acordo com ele mesmo, seu trabalho científico ficava em segundo plano.19
Somente no tempo livre era possível concretizar suas propostas. Quando Pierre Bourdieu
faz a crítica da razão erudita, aponta como fundamental “tentar explicitar os pressupostos
inscritos na situação de skholè, tempo livre e liberado das urgências do mundo que torna
possível uma relação livre e liberada com tais urgências e com o próprio mundo”.20
Portanto, a análise das obras de Oliveira Mendes, visto que produzidas em uma situação de
skholè, propicia descobertas sobre características do campo intelectual português e sobre a
posição deste autor no mesmo. Não é possível, é claro, explicar todas as disposições do
campo intelectual português a partir de um único caso. Entretanto, através da observação
de Oliveira Mendes, é possível perceber como as determinações do campo intelectual se
manifestaram neste indivíduo.
Além disso, é preciso realçar um pequeno detalhe: enquanto a maioria dos
intelectuais luso-brasileiros eram funcionários do Estado, Oliveira Mendes não. Ele era um
advogado a viver pelos próprios meios e cuja produção científica não era motivada por esta
participação. Isto não quer dizer que os textos de Mendes não fossem parte de uma
estratégia de se qualificar para receber uma comissão estatal. Muitos escreviam com este
objetivo. Entre os advogados, o desejo era se tornar ouvidor ou, para os que sonhavam
mais alto, juiz da relação da Bahia ou do Rio de Janeiro. Se era essa uma das intenções
subjacentes de Mendes, parece que ele não alcançou seu objetivo. O reconhecimento que
conseguiu se restringiu ao ambiente intelectual.
O interesse direcionado às questões práticas de Mendes e da maioria dos
intelectuais luso-brasileiros está intimamente relacionado a situação política e econômica
que Portugal enfrentava. Desde o ínicio da época moderna, Portugal sofreu um isolamento
cultural e, no decorrer, tornou-se economicamente atrasado. Portugal era entendido como
um país decadente. A antiga potência tornara-se dependente. Dom Luís da Cunha, um
19 MENDES, L. A. de O. Memoria analitico-demonstrativa da maquina de dilatação, e de contração. Lisboa: Officina de Joaquim Jozé Florencio Gonçalves, 1792. p. 23 20 BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 9
14
fidalgo estrangeirado,21 definia seu país como a “melhor e mais lucrativa colônia da
Inglaterra”.22 O principal motivo de tal atraso era econômico. As políticas gestadas pelo
governo, até então, não permitiram a Portugal acompanhar o desenvolvimento dos outros
países europeus. A atitude dos intelectuais, visto que liam seu país como decadente, foi
procurar soluções práticas que diminuíssem o atraso português e os aproximasse, em
termos de poder, das grandes nações européias. As duas principais características do
Iluminismo português derivam desta situação: Portugal não foi um dos centros geradores
do pensamento Iluminista, contudo, foi um dos primeiros países a empreender as reformas
de cunho ilustrado, o que denuncia o descompasso existente entre a “teoria” e a “prática”; e
o isolamento cultural somado a necessidade de eliminar a decadência em Portugal fizeram
com que os portugueses procurassem no exterior as soluções para seus problemas. Daí a
caraterística importação de idéias.23 De qualquer forma, tanto as reformas como as idéias
eram administradas de maneira conservadora. Segundo Neves,
a intelectualidade do império português de fins de Setecentos revela-se povoada de clérigos, que, embora se mostrando incapazes de alcançar uma secularização efectiva do pensamento, ao manterem a religião como uma espécie de clef de voûte do saber humano, nem por isso ignoraram as novas idéias, ainda que adaptando-as à sua moda.24
Concordamos com Neves, mas a ênfase dada a esta questão aqui é a inversa: os intelectuais
luso-brasileiros conheciam e se apropriavam das novas idéias, mesmo que as adaptassem
de maneira conservadora e inspirada pela religião.25
Esse isolamento cultural também significou o estancamento da independentização
dos campos eruditos portugueses. Diferentemente de outros países europeus que, desde o
Renascimento, já manifestavam as primeiras fraturas no campo filosófico, esboçando a
autonomização que mais tarde resultariam nos campos científico, literário e artístico,26
Portugal apresentava estruturas que amarravam os proto-campos em torno de
dependências comuns. Por isso, grande parte dos indivíduos produzia ao mesmo tempo em
21 Os estrangeirados são uma outra categoria de intelectuais portugueses. Há alguma polêmica no uso deste termo tanto histórica como historiograficamente, principalmente sobre os valores vinculados ao adjetivo. Grosso modo, o estrangeirado é aquele que recebeu alguma formação em outros países europeus que não Portugal e que trouxe novidades estrangeiras (normalmente “idéias”) para seu país de origem. 22 Apud: BOXER, C. R. O império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Cia das Letras, 2002. p. 369 23 NOVAIS, F. op. cit. 24 NEVES, G. P das. op. cit. p. 16. 25 Além disso, é preciso também relativizar um pouco a ênfase de Neves na presença dos clérigos, pois é neste momento que uma intelectualidade laica começa a aparecer em Portugal e marcar os ambientes eruditos com suas contribuições. 26 BOURDIEU, P. op. cit.
15
áreas diversas. Mendes não é exceção, além dos trabalhos voltados para a utilidade prática,
escreveu peças de teatro, poesia, obras de educação moral e, inclusive, textos religiosos. A
relativa unidade que os diversos campos eruditos apresentavam dava aos intelectuais luso-
brasileiros, e neste caso Mendes é exemplar, uma ampla possibilidade de produção; quase
como os intelectuais renascentistas que produziam ciência, arte e filosofia ao mesmo
tempo.
Oliveira Mendes produziu a maioria dos seus textos na última década do século
XVIII e na primeira do século seguinte. Especula-se que tenha ocupado posições de
destaque no campo intelectual português, pois há elementos em seus textos que indicam
esta possibilidade. O argumento se sustenta, principalmente, na análise das duas Orações
latinas que Mendes recitou em sessões públicas da Academia de Ciências. Ambas foram
escritas para ocasiões especiais, uma quando Mendes foi nomeado Sócio Correspondente
da Academia e a outra por ocasião do falecimento do Duque de Lafões, fundador e
presidente da mesma instituição. Ser honrado com o título de Sócio Correspondente não
era incomum, grande parte dos membros da Academia possuía uma nomeação equivalente.
Mais raro era, por exemplo, um jovem recém formado ser nomeado Sócio Livre, como
aconteceu com José Bonifácio.27 Mendes também se tornou Sócio Livre, mas apenas em
1824, com mais ou menos 74 anos. Mesmo assim, ser Sócio Correspondente significava a
inclusão e o reconhecimento do indivíduo como membro do grupo. Por outro lado, ser o
orador responsável por homenagear o presidente e fundador da Academia da Ciências por
ocasião de seu falecimento era uma oportunidade única e revela que, naquele momento,
Oliveira Mendes havia acumulado capital simbólico suficiente para ocupar um posto
avançado no campo intelectual português. A cerimônia aconteceu em 7 de janeiro de 1807.
Até então, Mendes publicara apenas, e em 1792, a sua memória sobre uma máquina de
dilatação e contração, espécie de escada de incêndio, que ele mesmo havia concebido.28
Todas as suas demais contribuições foram leituras públicas em sessões da Academia de
Ciências. Seu trabalho mais importante, a memória sobre as condições sanitárias dos
escravos, apesar de ter sido apresentada à Academia em 1793, foi publicada somente em
1812.29 Portanto, o reconhecimento de Mendes como um indivíduo à altura de representar
os lamentos de todos os acadêmicos à morte do Duque de Lafões era devido à elementos
27 SILVA, A. R. C. da .Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio 1783-1823. Campinas: Editora da Unicamp, 1999. p. 27 28 MENDES, L. A. de O. Memoria analitico-demonstrativa… op. cit.
16
de sua trajetória independentes da qualidade reconhecida de seus textos. Ao mesmo tempo,
estes mesmos elementos colaboraram para a legitimação de certas posturas intelectuais
características de Mendes não tão correntes no campo intelectual português. Em outras
palavras: os textos de Oliveira Mendes eram tidos como trabalhos legítimos não só por
causa de sua forma e conteúdo, mas também por conta da posição do autor em relação aos
demais intelectuais dentro dos campos eruditos.30
De maneira diferente de outros seus contemporâneos, os textos posteriores à fuga
da Família Real e à invasão napoleônica não apresentam referências a estes fatos. Mendes
sempre permaneceu fiel aos preceitos da Academia de Ciências, “consagrada à glória e
felicidade pública, para o adiantamento da instrução nacional, perfeição das ciências e das
artes e aumento da indústria popular”.31 Evitou qualquer menção à problemas políticos ou
questionamento do status quo, sempre focou seus esforços em questões importantes e úteis
para a Nação, mas inofensivas e irrelevantes no que diz respeito à política. Talvez por isso
não tenha sido recrutado a participar das publicações da Casa Literária do Arco do Cego,
afinal não ameaçava o governo ou apresentava idéias perigosas.32
Voltou ao Brasil, para a Bahia ao que tudo indica, em data desconhecida. Mas antes
disto, elaborou, juntamente com José Bonifácio, um projeto para a criação da Real
Sociedade Bahiense dos Homens de Letras. Seus estatutos revelavam grandes ambições,
pois previam que esta Sociedade possuiria um observatório astronômico, biblioteca,
museu, um laboratório químico e, inclusive, um horto florestal. Além disso, publicaria um
periódico divulgando resultados de pesquisa e patrocinaria aulas de ciências, literatura,
história, línguas estrangeiras e outras disciplinas. Projeto gestado em 1810, quando a
Família Real já se encontrava no Brasil. A Sociedade Bahiense seria vinculada à Academia
de Ciências de Lisboa. No entanto, o plano se resumiu aos estatutos, tal Sociedade nunca
chegou a ser fundada.33
29 CAPELA, J. “Prefácio”. In: MENDES, L. A. de O. Memória a respeito dos escravos… op. cit. 30 Esta relação não é válida somente pare este caso, na verdade é um dos mecanismos básicos de funcionamento de qualquer campo erudito. Para mais detalhes, ver BOURDIEU, P. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1996. 31 Plano de Estatutos da Academia de Ciências de Lisboa. Apud CARDOSO, J. L. O pensamento económico em Portugal nos finais do século XVIII: 1780-1808. Lisboa: Editorial Estampa, 1989. p. 43 32 De qualquer modo, grande parte dos intelectuais vinculados à Casa Literária estavam “desocupados” quando se reuniram à instituição e Mendes, ao que parece, não se enquadrava nesta categoria. CRUZ, A. L. R. B. da. op. cit. 33 SILVA, C. P. da. A Matemática no Brasil: uma história de seu desenvolvimento. s/c: s/ed, s/d. (versão digital) p. 18
17
No final de 1824, como já dito, Mendes foi passado a classe de Sócio Livre da
Academia de Ciências. Provavelmente, nesta data, ele já se encontrava no Brasil. Esta
nomeação, considerando que Mendes estava com mais ou menos 74 anos, aparentemente
foi uma homenagem dos acadêmicos ao colega ancião. Dois anos depois, seu filho,
Clemente Álvares de Oliveira Mendes e Almeida, exerceu o cargo de Cônsul Geral do
Império em Lisboa, o primeiro a ocupar tal posição depois da Independência do Brasil.
Ignora-se também a data em que Mendes faleceu.34
34 SILVA, I. F.; ARANHA, B. op. cit.
CAPÍTULO II
Neste capítulo serão analisadas a maior parte das obras científicas de Oliveira
Mendes. Os seus textos, em sua maioria, foram leituras realizadas na Academia de
Ciências de Lisboa. No entanto, apenas um deles, nesta primeira selação, foi publicado,
a “Memoria analitico-demonstrativa da maquina de dilataçaõ, e de contracçaõ”; a
outra publicação de Mendes, uma Memória sobre a escravidão, será analisada no
próximo capítulo.
A primeira publicação de Mendes data de 1792, a já citada “Memoria analitico-
demonstrativa da maquina de dilataçaõ, e de contracçaõ”, é uma descrição de um
invento que tem por objetivo principal (ou, pelo menos, como objetivo inspirador)
ajudar as pessoas em caso de incêndio. Este invento é um carro com uma máquina que
contrai e dilata uma escada. Nos incêndios, ela seria usada para resgatar as pessoas que
estivessem presas em edifícios altos. No entanto, seu uso não se resumiria aos resgates,
também seria útil nas reformas de igrejas ou outros prédios altos, por exemplo, evitando
a construção de andaimes; também em campanhas militares, pois permitiria observar de
18
cima os caminhos dos soldados. E ainda há as vantagens econômicas que tal invento
proporcionaria, como, por exemplo, a economia nos reparos necessários às construções
altas, pois, como foi dito, não seria necessária a construção de andaimes, economizando
também tempo; dos prédios públicos, caso incendiados, seria possível salvar itens
valiosos, pois, pela máquina, se retirariam estes objetos; mesmo na guerra, a sugestão
apresenta vantagens econômicas, afinal, com a observação privilegiada, poderiam os
comandantes melhorar suas estratégias e vencer as batalhas mais facilmente, ou seja,
com menos perdas.
Mendes oscila entre uma argumentação racional e outra que poderia ser chamada
“passional”. Sua estratégia é atingir o leitor das duas maneiras. Ao mesmo tempo em
que apresenta as vantagens práticas de se investir no seu invento, aponta para as
vantagens “em si mesmas” que o mesmo invento traria. Na verdade, os dois tipos de
vantagens se confundem, pois, se não são as mesmas, derivam uma da outra. Contudo,
há uma diferença no tratamento dado a elas. As vantagens práticas são explicadas de
modo racional, Mendes relaciona as características de seu invento às práticas cotidianas
da nação e, neste sentido, mostra como as rotinas poderiam ser otimizadas. Por outro
lado, Mendes assume e apresenta como verdade inquestionável a positividade de se
ajudar ao próximo. Inclusive é esta verdade o motor inicial de seu projeto. Quando
Mendes soube do incêndio, tratou de elaborar a máquina para minimizar os danos de
sinistros equivalentes. Isto é sinal da adoção inconteste da moral católica, onde o
altruísmo é uma virtude. Interessante é que o mesmo invento poderia ser utilizado para a
guerra, mas não poderia ser justificado da mesma forma. Neste caso, Mendes usa a
Razão e a Economia para argumentar.
Na continuação do texto, há um anexo que se intitula Tentativas. Nesta parte,
Mendes faz uma série de sugestões de temas que considera urgentes que sejam tratados
por indivíduos competentes, assuntos de interesse geral da nação e que ele promete se
ocupar caso não apareçam trabalhos definitivos sobre. Todas as sugestões têm como
alvo o “Público instruido” e como objetivo: ajudar “em fins tão uteis, como
interessantes”.35 O que ele propõe é a invenção de um mecanismo para tirar água de
poços; um arado de bois que semeie a terra ao mesmo tempo que lavra; uma bomba para
extrair a água dos navios; propõe observações sobre como economizar no consumo de
19lenha; como aumentar e, ao mesmo tempo, economizar combustível para as luzes dos
faróis, aplicando o mesmo conhecimento à iluminação pública de Lisboa; um sistema de
administração da iluminação e da limpeza da capital do Império; um mecanismo de
suspensão de grandes pesos com pouco esforço; um instrumento para limpar as praias;
um aparelho para ajudar nas confecções; um discurso sobre a construção de navios; e,
enfim, um meio de levar um navio recém construído para o mar sem danificá-lo e sem
muito esforço. Todos trabalhos úteis para o progresso da Nação.
35 MENDES, L. A. de O. Memória analítico-demonstrativa da máquina de dilatação, e de contração. Oficina de J. J. F. Gonçalves: Lisboa, 1792. p. 23
20
Alguns desses temas, de fato, Mendes desenvolve mais tarde, mas não todos.
Deste trecho do texto, um dos comentários mais importantes é sobre quando o autor irá
se dedicar aos projetos. Segundo ele, o trabalho como advogado tomava muito do seu
tempo. Em primeiro lugar, isso significa que Mendes era e/ou queria ser reconhecido
como um indivíduo competente no seu ofício, por isso apresentou-o neste momento.
Também justifica uma possível demora em desenvolver as sugestões, pois ele não tinha
muito tempo para empenhar nisto. E, além disto, manifesta uma característica necessária
dos campos eruditos, segundo Bourdieu, que é o tempo livre.36 É somente porque os
indivíduos envolvidos nas atividades intelectuais de uma determinada região num
determinado momento histórico reservam parte de seu tempo para desenvolver práticas
relacionadas à erudição – a leitura seria o exemplo típico –, que o surgimento dos
campos eruditos é possível. Deste modo, tanto a dedicação “diletante” às atividades
científicas de Mendes, bem como o trabalho como advogado são bens que ele aposta no
jogo de reconhecimento do campo intelectual português da época.
Alguns anos depois, em 1805, o autor leu em sessão a memória sobre a extração
da tinta do pau-brasil. O autor inicia seu texto lembrando da qualidade superior dos
tecidos asiáticos. Lembra também que muitas das melhores nações tentaram se igualar
aos orientais neste engenho, mas, por mais que se esforçassem, nunca conseguiram
alcançar a mesma perfeição. E sugere que isto se dá, talvez, porque tal honra esteja
resevada ao Brasil. Sua esperança se baseia nas semelhanças entre a Ásia e o Brasil e
nas palavras de Lineu: “LuSitani quam felices non eSsent, Si noscerent Sua bona”.37
Contudo, o autor não se prende às esperanças. Mais uma vez com o intuito de
promover a industria nacional e como forma de agradecimento à pátria, ele se pôs em
experiências para extrair a tinta do pau-brasil. Este projeto foi motivado por três
reflexões: primeira, que os orientais talvez extraissem suas tintas da mesma forma que
ocidentais e, conforme cria Mendes, o sapão, árvore da qual se produz a tinta da Ásia,
seria idêntico ao pau-brasil; segunda, que havia pau-brasil em abundância, por isso,
seria barato produzir a tinta; e terceira, que os métodos utilizados naquele momento
estavam ultrapassados e poderiam ser melhorados em muitos aspectos. Mendes
36 BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 37 Lusitani quam felices non essent, si noscerent sua bona. Quão felizes não seriam os lusitanos, se conhecessem sua boa. Obs.: a frase descontetualizada não faz muito sentido, pois não há a indicação de qual “boa” os lusitanos não conhecem. No entanto, segundo o que se pode supor através de Mendes, é provável que Lineu estivesse se referindo ao Brasil ou às potencialidades naturais do país.
21
descreve com detalhes suas experiências e explica seu novo método de extração da tinta.
No entanto, lamenta não poder levar suas especulações até o fim, porque em Portugal
não se encontravam determinados ingredientes com facilidade.
Talvez não fosse a intenção do autor, mas é possível extrair de suas palavras
uma crítica comum à Portugal naquela época, porém mal vista pelo governo
principalmente. Primeiramente, Mendes elogia o Brasil e o aponta como possível
potência por causa de seus bens naturais. Num segundo momento, lamenta por Portugal
não possuir os mesmos bens que havia no Brasil e por isto prejudicar suas experiências.
Em outras palavras, diz que Portugal não oferece as vantagens do ponto de vista
agroeconômico que o Brasil apresenta. Levado ao extremo, este ponto de vista
coincidiria aos dos intelectuais que pregavam o abandono do terreno europeu para criar
um império nos trópicos. Contudo, os homens que manifestaram esta opinião, só o
fizeram depois da fuga da família real para o Brasil, ou seja, três anos depois da leitura
desta memória. De qualquer forma, não parece que o autor desejasse criticar Portugal
de fato. Suas palavras soam mais como uma constatação ruim do que como um ataque
às desvantagens lusitanas.
Em outro documento, com certeza anterior à memória sobre a extração de tinta
do pau-brasil, mas sem data, o memorialista já adiantava que tinha realizado
experiências com tintas e deixava a cargo da Academia definir o momento da
publicação dessas. Neste mesmo documento, apresenta suas reflecções sobre a
mastreação dos navios. Esta memória começa com a afirmação de que muito já se
discutiu o assunto na Academia de Ciências. Contudo, ainda era necessário um método
para se conhecer a qualidade dos troncos destinados a mastro, pois, até então, o que se
tinha apresentado eram técnicas de seleção da madeira baseadas na observação dos
“Symptomas externos”, insuficientes no que diz respeito a detecção da qualidade interna
da madeira. Tanto que muitos navios recebiam mastros ruins que só eram percebidos
depois do trabalho pronto ou, ainda pior, quando o navio já estava em alto mar. A
conclusão que Mendes alcança, depois de explicar seu método de análise da madeira, é
que os mastros de ávores brasileras são melhores e mais baratos e, por isso, deveriam
ser adotados por todos os construtores de barcos do reino.
Mais uma vez é possível extrair a mesma crítica contra Portugal. No entanto, o
tom é um pouco diferente. Mendes parece sugerir que existe alguma má vontade dos
22
reinóis em geral em aceitar as visíveis qualidades do Brasil. Esta crítica atinge tanto os
intelectuais que já discutiram muito o problema da mastreação, mas não o resolveram;
como os construtores de navios, marinheiros etc, que teimavam em continuar nos
mesmos erros ao invés de rever sua posição a aceitar a “ajuda” brasileira.
Em 1806, Mendes complementa sua memória sobre a mastreação com uma
sobre a construção de navios. Ele explica que esta memória é como um desdobramento
lógico da anterior, “SubSequente na ordem methodica”, por isso seria coerente discursar
sobre a construção dos navios e a organização da carga no interior deles. Segundo o
memorialista, e assim justifica seu esforço, é por conta de problemas não observados
nestes dois pormenores que a grandes riscos se expõem os marinheiros e os gêneros
transportados. A principal conseqüência desta desatenção é um considerável prejuízo à
navegação e ao comércio de Portugal. Portanto, “hé digno (…) meditarSe com a maior
Circunspeção” sobre esses pormenores e buscar soluções viáveis para tanto,
principalmente para o caso do Brasil, pois é desta colônia que as cargas mais pesadas
são transportadas para a metrópole.
O memorialista demonstra conhecer em detalhes a estrutura dos navios, mas sua
erudição não se restringe aos aspectos técnicos. Também, conforme sugere, conhece a
história náutica, porém, como não pretende examinar como evoluiu a tecnologia de
construção naval, direciona seus esforços para propor melhorias à marinha mercante
portuguesa daquele momento. O autor entrou nos esforços de desvendar os problemas
da construção dos navios tendo como proposta e esperança de recompensa, “a par da
prosperid.e do Comercio, e da navegação, Reunir o Patriotismo a Felicid.e Publica”.
Diferente de Azeredo Coutinho,38 por exemplo, Oliveira Mendes não demonstra
estar preocupado com a marinha em geral. Seu foco é sobre o navio. Sobre a marinha,
apenas faz um desdobramento simples do raciocínio, dizendo que se um navio pudesse
ser otimizado, todos os outros poderiam também. Novamente frisa a teimosia dos
construtores, capitães e marinheiros que, mesmo tendo experimentado diversas
situações, continuam a organizar a carga irracionalmente e a construir os navios não
pelos melhores princípios. Neste texto, Mendes é bem enfático no objetivo declarado de
ser útil à nação. Procurou relacionar à crítica o progresso da nação. Portanto, apesar de
manter sua posição de crítico à postura dos homens relacionados à navegação, desviou
23
levemente o argumento de modo a torná-lo menos ofensivo. Funcionou de alguma
forma, pois, no ano seguinte, por conta do falecimento do Duque de Lafões, Mendes
recebe a incumbência de discursar na cerimônia em homengam ao fundador da
Academia de Ciências. Mesmo assim, não foi apenas porque houve uma leve mudança
na nuance de seu discurso que Mendes recebeu este tipo de reconhecimento, muitos
outros fatores estavam envolvidos. No caso, é importante pensar sobre o peso relativo
da postura de Mendes neste texto para este momento de sua trajetória. Afinal, é a partir
deste momento que ele ganha um maior destaque.
No ano de 1811, Mendes apresentou numa sessão da Academia uma memória
sobre combustíveis. Como em outras ocasiões, Mendes inicia seu texto com a citação
latina: “NiSe utile est quod facimus, Stulta est gloria”.39 Na sequência, quando vai às
vias de fato, explica que sua memória se divide em duas partes: na primeira, discute a
economia (no sentido científico do termo) dos combustíveis; e na segunda parte, expõe
um método de fabricação mais barato para o carvão. A estes temas ele se dedica apenas
para poder ser util à nação e agradecido à pátria. Inclusive dispensa a justificativa de seu
empenho porque, fazia pouco, foram impressas suas “tentativas”, nas quais apresentou
os assuntos para os quais dirigia a atenção naquele momento, logo, estava nestes
justificado.
Há mais tempo, Mendes discorreu rapidamente sobre a iluminação pública de
Lisboa. Para falar dos combustíveis, ele relembra o que já havia dito. Em 17 de janeiro
de 1793, o autor publicou pela Academia de Ciências a sua chamada “quinta
tentativa”,40 onde defendia um método de melhorar a iluminação das ruas lisboetas a
partir da reordenação da posição dos lampiões. Portanto, nesta proposta, muito se
economizaria do azeite, pois menos lampiões precisariam ser utilizados. Outra idéia de
Mendes, a sexta tentativa, foi a criação de uma guarda noturna para promover a
tranqüilidade das ruas durante a noite. No entanto, algumas melhorias se faziam
necessárias neste último projeto, principalmente na disposição das companhias de
soldados, para que tivessem mais mobilidade e atendessem as urgências com rapidez.
38 COUTINHO, J. J. da C. A. Obras Econômicas de J. J. da Cunha de Azeredo Coutinho. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966. 39 Nisi utile est quod facimus, stulta est gloria. Se não é útil aquilo que fazemos, a glória é parva. Obs.: dada a ordem das palavras na frase, pode-se concluir que não é uma forma clássica, portanto, é provável que, se for um citação de fato, seja de um autor medieval ou moderno. Outra possibilidade é que a frase seja da autoria do próprio Mendes. 40 Uma das tentativas anaxadas à Memória sobre a máquina de dilatação e contração.
24
De qualquer forma, colocando-se em prática tais projetos, muitos prédios
deixariam de se incendiar, pois menos lampiões haveria para iniciar os acidentes, bem
como, caso acontecesse algum, os guardas, estrategicamente distribuídos, chegariam a
tempo de controlar o fogo.
Por volta de 1799, Mendes se lançou em mais um projeto, pretendia ele extinguir
o papel moeda. Levantou uma série de “arbítrios” para que seu objetivo se cumprisse;
destes, muitos foram utilizados para outros fins, mas com grandes resultados. Um dos
arbítrios pregava que se deveria fundir a prata supérflua das igrejas em moeda corrente.
Segundo o memorialista, as igrejas ficariam com um padrão de empréstimo público que
mais tarde poderia ser resgatado; tal empréstimo seria livre de taxações sucessivas; e,
portanto, os particulares teriam menos fundos “queimados”, como é comum acontecer
por conta das arrecadações públicas. Além do bem público imediato que este arbítrio
traria, no que se refere à política, evitaria que a prata fosse dilapidada sem “Economia
Publica”. Em outras palavras, Mendes sugere que a prata das igrejas era refundida de
uma forma ou outra, portanto, melhor que fosse de modo a beneficiar a sociedade, pois
da outra forma, o metal, aos poucos, desaparecia de Portugal, diluindo-se por toda a
Europa.
Para os momentos de crise, outra sugestão era que os particulares entregassem
seus bens em ouro e prata para a fundição em moeda, em seguida recebendo o
equivalente do que entregaram em metal refundido. No entanto, durante as crises, o
comum era que se pensasse nestas providências quando já era tarde, quando as
preocupações se resumiam a economizar os carvões para fogueira.
O acadêmico explica que não lhe cabe “dar Leý ao Mundo”. Afinal, enquanto
indivíduo, ocupa um espaço extremamente diminuto do corpo social e seu papel, da
mesma forma, também é pequeno. O que lhe compete é diminuir, conforme suas
possibilidades, os males que assolam a sociedade e descobrir maneiras duradoras de
melhorar a vida de seus compatriotas.
Um dos problemas observados pelo memorialista foi que Lisboa vinha
acolhendo uma população excessiva, pois um sem número de pessoas deixava as
províncias, vindo se instalar na capital. A ponto de Lisboa não agüentar mais o inchaço,
demonstrado pelos vários sintomas negativos correntes, como as ruas cheias, nas
palavras do autor, de vadios, malfeitores e mendigos. Disto decorria também que as
25
províncias ficavam desguarnecidas de mão-de-obra, diminundo-se a produção. A
capital, por sua vez, sofria com a carestia de produtos, com o excesso de bocas para
alimentar e com o número de pessoas a abrigar. Enfim, em linguagem contemporânea,
Lisboa sofria dos males ocasionados pelo êxodo rural, e que, neste caso, acontecia,
aparentemente, sem que houvesse um excedente populacional relativo nas províncias. A
partir desta constatação, Mendes desenvolve sua teoria e explica porque as fábricas
devem ser construídas longe da capital. Argumenta que, com as indústrias construídas
nas províncias, não haveria êxodo rural e os produtos seriam mais baratos, pois estaria
eliminado o custo do transporte das matérias-primas, afinal estas eram produzidas nas
províncias também. Por fim, conclui sua memória refletindo sobre como economizar
combustível nas casa e nas indústrias.
Neste texto, o primeiro lido por Mendes depois da fuga da família real, o autor
age com mais liberdade e segurança. Faz várias relações com outros temas dos quais já
havia falado e procura mostrar como o problema do carvão combustível era
fundamental para a vida social portuguesa. Além disso, apresenta algumas idéias pouco
ortodoxas, como transformar a prataria das igrejas em moeda. São dois os motivos
principais pelos quais Mendes relaxa sua postura e ousa: primeiro porque ele já havia se
firmado de alguma forma no campo intelectual português, mesmo sem ter ainda
publicado sua obra principal, mas que, ao que tudo indica, já estava em preparação; e
segundo, a desorganização do governo em Portugal criava novas disposições para o
campo inelectual, pois este ainda era vinculado de maneira muito forte aos outros
campos, principalmente ao político, e, por isso, sofria quase que imediatamente as
consequências das ações políticas.
Relacionada ao transporte dos bens, Mendes redige uma memória sobre
construção de carros (hoje em dia carroças), mas não deixa a data. Mendes divide seu
texto em quatro partes para fazer sua exposição com brevidade. Na primeira parte,
demonstra os problemas dos carros daquela época. Na segunda, fala sobre o tipo de
madeira que deve ser usada na construção dos carros e sobre a proporção das rodas e
eixos. Na terceira, de como as cargas pesadas devem ser carregadas e transportadas. E
na última, a mais importante conforme o autor, ele explica como é possível parar os
carros em terrenos inclinados “Sem retroceSso, nem adiantam.to”, através de uma
26
máquina simples acoplada às rodas. Ou seja, Mendes inventou uma espécie de freio
para os carros.
Através da análise das posturas de Mendes nos seus textos, especula-se que este
sobre os carros seja anterior à fuga da família real, pois segue a “receita” dos demais
textos. Mendes apenas apresenta seu projeto e as vantagens derivadas dele. Não faz,
como na memória sobre o carvão, digressões e especulações. Este é o trabalho mais
técnico do autor.
O único dos textos deste autor que apresentou problemas é a memória sobre a
plantação de pinheiros, pois está faltando uma das páginas, o que prejudica a leitura do
manuscrito. De qualquer forma, a memória é um apelo ao incentivo da plantação de
pinheiros, pois, conforme Mendes, não há o suficiente deste gênero em Portugal, o que
o obriga a importá-lo de outras nações. E como o pinheiro é um produto utilizado para
vários fins, como construção e produção de carvão, seria de grande economia investir na
sua produção, pois evitaria a dependência estrangeira e, para os momentos de carência,
haveria alguma reserva no país.
É um texto que complementa dois outros: a memória sobre o carvão e memória
sobre a agricultura (que será analisada no próximo capítulo). Diferentemente da “escada
de incêndio”, da tinta do pau-brasil, ou dos “freios” para carroças, os temas relacionados
a agricultura chamavam muito a atenção dos membros do campo intelectual português.
Por isso talvez, ou porque a quantidade de informação a respeito fosse maior, Mendes
argumenta com mais cuidado quando fala da agricultura. A preocupação se deslocava
de um simples atrapalho do dia-a-dia para questões de dependência de outros países,
problemas de importação e exportação, produção de manufaturas com a matéria-prima
discutida, etc. A justificativa é sempre a mesma: o progresso da nação.
Como se pode notar, Mendes está quase sempre preocupado com determinados
detalhes que poderiam ser deixados de lado como supérfluos. Mas este supérfluo são
aspectos da infra-estrutura organizacional da sociedade portuguesa que não estão
correspondendo suficientemente bem às demandas desta mesma sociedade. O que
Mendes sempre procura são problemas cotidianos não detectáveis a partir da
especulação ou de amplas generalizações, afinal são problemas específicos só
perceptíveis pela observação sistemática da realidade. O que ele tenta resolver são os
pequenos entraves que dificultam a continuidade do desenvolvimento português.
27
E neste sentido, há alguma unidade em seus textos, pois todos são a explanação
da detecção de um problema aparentemente óbvio, mas que, até o momento, não havia
sido resolvido por conta de falta de reflexão ou teimosia. Portanto, uma atitude para
com o mundo inspirada fortemente pelo empirismo. O que leva a pensar novamente
com Novais e Crippa, que dizem ser característica dos intelectuais portugueses e luso-
brasileiros, eles estarem muito mais ligados à questões práticas do que a abstrações. É
quase como se eles estivessem preparando o terreno para, num futuro próximo, poderem
então se dedicar à filosofia stricto sensu; contudo, algumas questões eram mais urgentes
e precisavam ser resolvidas antes. Mendes é um tipo-ideal neste ambiente: nascido no
Brasil; filho da elite colonial; estudou em Coimbra; membro da Academia de Ciências
de Lisboa; e dedicou-se à ciência no intuito de colaborar com a pátria.
Dada a situação de Portugal no contexto internacional naquele momento, não
fazia muito sentido dedicar a atenção a algo que não dissesse respeito direta e
concretamente à realidade que estavam vivendo, pois estes intelectuais, como se denota
pelso seus textos, pareciam sentir uma determinada urgência de correr atrás do tempo
perdido. Era preciso primeiro construir a casa, para depois se poder morar nela.
CAPÍTULO III
Para este último capítulo foram reservados os dois maiores textos de Oliveira
Mendes. É sintomático que sejam a escravidão e a agricultura os temas tratados neles. A
economia do Império era movimentada fundamentalmente por estas duas atividades. No
ambiente intelectual, ambos os temas eram bastante frequentes. Os problemas da
agricultura discutidos pelos intelectuais diziam respeito às políticas do governo ou à
prática dos agricultores. A constante neste assunto era a afirmação da agricultura como
28
atividade indispensável para Portugal e seus domínios. A escravidão, por sua vez, foi
um assunto que gerou polêmicas. Naquele momento, era inconcebível se abolir a
escravidão no Brasil, mas houve quem fizesse tal proposta. Os posicionamentos frente a
esta questão, portanto, foram diversos. Mendes assume uma postura intermediária, sabia
que não era possível para a colônia brasileira abrir mão do trabalho escravo, mas, ao
mesmo tempo, entendia como constrangedor o tratamento desumano a que os escravos
eram submetidos. Neste primeiro momento, será analisada com vagar o que Mendes diz
sobre a escravidão.
Oliveira Mendes defende que a escravidão é o assunto mais importante a que um
acadêmico pode se dedicar. Ponto de vista divergente do da maioria dos intelectuais
luso-brasileiros que elegiam a agricultura como tema fundamental. Para justificar sua
posição, Mendes argumenta que falar sobre a escravidão, em primeiro lugar, é uma
forma de defender os interesses e a vida dos escravos, a “porção mais desgraçada da
espécie humana”. Em segundo lugar, este assunto diz respeito aos senhores de escravos,
aqueles que se mantêm à custa do trabalho cativo. E, por fim, responde à interesses do
Estado,
que sabe, e pesa, que [os escravos] são tanto mais preciosos, quanto necessários para a estabilidade, e promoção da Agricultura, e das diferentes manufacturas nos Domínios do Ultramar; de cujos transportes continuados, fazendo sucessivamente girar o Comércio, e pôr em actividade a Navegação, se percebem avultadíssimos Direitos.41
Ao defender o tema da escravidão como primordial, Mendes vincula sua
justificativa à problemas de caráter econômico e fortemente relacionados à agricultura.
Quando fala sobre o interesse dos escravos, o autor chama a atenção para a
desumanidade com a qual os cativos são tratados; no entanto, em nenhum momento
condena a prática da escravidão em si. Mendes deixa manifesta que sua indignação é
com a violência. A escravidão, naquele momento, era necessária para o
desenvolvimento do Brasil e, consequentemente, de Portugal. Oliveira Mendes tinha
consciência desta condição e, portanto, propôs que tal atividade precisava sofrer uma
reformulação. Segundo o autor, a desumanidade e a violência do tráfico e do cativeiro
eram irracionais economicamente. Os maus tratos a que eram submetidos os escravos
diminuia muito a possibilidade de sobrevivência da maioria, e os que sobreviviam,
41 MENDES, L. A. de O. Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre a costa d’África e o Brazil. Porto: Publicações Escorpião, 1977. p. 22
29
apesar de serem muito fortes, tinham sua capacidade de trabalhar também reduzida.
Logo, caso os cativos fossem melhor tratados, as chances de sobrevivência seriam muito
maiores. Salvando-se estas vidas, maiores lucros teriam os traficantes que venderiam
mais escravos. Ao mesmo tempo, os senhores de escravos também sairiam ganhando,
pois comprariam homens e mulheres mais saudáveis e, portanto, com mais tempo e
melhor qualidade de trabalho a ser extraída. O Estado, por sua vez, primeiro arrecadaria
mais impostos das transações e, segundo, lucraria com os desenvolvimentos posteriores
da navegação, do comércio e da agricultura. Além disso, há a óbvia vantagem aos
próprios escravos que teriam sua vida melhorada. Este é o argumento central de
Mendes: tratar bem os escravos é igual a aumentar os lucros de todos os envolvidos.
A estratégia do autor é aproximar a racionalidade econômica ao humanitarismo.
Qualquer um destes elementos, se apresentados separadamente, não trariam um
resultado satisfatório às pretensões de Oliveira Mendes.42 Tratar o assunto apenas a
partir do enfoque econômico não seria novidade alguma. Ao passo que, sustentar seu
ponto de vista somente no sofrimento dos negros, não seria argumento suficiente para
modificar a prática. Amarrar os dois argumentos foi a solução encontrada. Contudo, na
apresentação dos seus objetivos, Oliveira Mendes assume a Medicina como o lugar
privilegiado de análise. O que o autor se propõe a fazer é
determinar com todos os seus sintomas as doenças agudas, e crônicas, que mais frequentemente acometem os Pretos recém-tirados da África (…) [e] indicar os métodos mais apropriados para evitá-lo, prevenindo-o, e curando-o.43
Todavia, ele não se resume a este ponto de vista; de acordo com os temas estabelecidos
nos capítulos, Mendes assume uma postura específica. Para explicar de que maneira o
autor se coloca durante o texto, primeiro será exposta a estrutura do livro.
Seu livro é dividido em seis capítulos. No primeiro, o autor discorre sobre as
condições naturais dos negros na África.44 Versa desde sobre o clima e a geografia até
aspectos da liberdade dos negros em seu continente, de seus costumes, das suas
produções e, também importante, das suas vestimentas. No segundo, através de uma
leitura jurídica, expõe os vários modos como os escravos são capturados e traficados. O
42 Não é possível determinar quais eram as pretensões exatas de Mendes, pois os elementos da trajetória deste indivíduo necessários para se chegar a tais conclusões não estão disponíveis nas fontes analisadas. Entretanto, algumas ponderações a respeito são possíveis. 43 MENDES, L. A. de O. op. cit. p. 21
30
terceiro capítulo é sobre a “lastimosa situação dos Pretos escravos”. Divide a escravidão
em três “idades”: a primeira quando são capturados, levados ao porto e vendidos para
serem transportados ao Brasil; a segunda é o momento do transporte transatlântico e do
tempo que aguardam serem comprados por algum senhor no Brasil; a última é a vida
dos escravos no Brasil. O quarto fala a respeito das doenças agudas que acometem os
escravos por conta dos maus tratos que recebem ao longo de toda sua jornada. No
quinto, Mendes explica as doenças crônicas (algumas derivadas das agudas) que
também atacam os escravos, indicando de onde vêm as outras que não derivam das
agudas. No sexto e último capítulo, Mendes escreve sobre como evitar e curar doenças,
“tudo deduzido da experiência (doméstica e não da Clínica), das mais exactas
informações, e da presencial observação deste fatal estrago”.45
O primeiro capítulo começa com uma análise de vários elementos geográficos e
climáticos que conduzem à conclusão de que o “ar” da África é ruim e prejudicial à
saúde. Esta afirmação se baseia na comparação entre o clima africano com o de
Portugal, sendo o último elevado a condição de ideal. Neste momento, Mendes se
identifica como português, pois afirma ser o “nosso” dia de verão mais quente
equivalente a um dia de inverno rigoroso na África. Neste sentido, o autor justifica
cientificamente a mortantade elevada de portugueses na África.46 A explicação para que
os negros não morram tanto, é o fato de serem naturais do local e, portanto,
naturalmente adaptados àquelas condições. Prova disto é o fato de que os negros se
expõem a diversas intempéries (como dormir ao relento, por exemplo) que são fatais aos
europeus e praticamente não sofrem nenhuma enfermidade. Reforça esta concepção ao
falar da água que os africanos consomem. Diferencia água parada de água corrente,
explica que a primeira é ruim e a segunda boa. Os negros da África consomem água
parada.
Neste mesmo capítulo, depois de observar os condicionantes externos do
ambiente, Mendes analisa os costumes dos povos africanos. É claro seu ponto de vista
44 Na verdade, Mendes analisa a região de Angola, mas se refere a ela como África. 45 MENDES, L. A. de O. op. cit. p. 23 46 O prof. Magnus Pereira nota que, no final do século XVIII e início do XIX, era comum o governo português enviar representantes brasileiros do Estado à África, também porque era momento em que se ensaiava um compartilhamento governativo com os colonos brasileiros. Além disso, Pereira sugere que a Coroa percebera a baixa capacidade dos portugueses em se adaptar ao clima africano e a maior sobrevivência de brasileiros no mesmo ambiente e, por isso, adotara tal estratégia. PEREIRA, M. R. de
31
eurocênctrico, pois toma os costumes europeus como os corretos; sua análise se
constitui em enfatizar as proximidades e as diferenças dos costumes africanos aos
europeus. Sobre os africanos, ele afirma,
Estes povos no seu clima natalício têm toda a liberdade no seu viver, e têm como uma regra inálterável, e sem limites tão somente a sua vontade. Não obstante esta franqueza do seu viver, têm certas leis, ainda que muito poucas, a que vivem sujeitos. Adoptam entre os seus costumes a Poligamia, e são severos em fazer guardar, e cumprir (para me explicar assim) no seio da sua incultura a fidelidade conjugal.47
A “liberdade no seu viver” dos africanos, tendo apenas como limite a própria
vontade, é uma concepção de liberdade que Oliveira Mendes supõe nos africanos. Esta
concepção individualista (afinal o limite da liberdade individual é dado pelo próprio
indivíduo) parece ser inspirada no liberalismo clássico.48 No entanto, Mendes não
defende esta liberdade como positiva, pois entende, como um bom advogado, que são
necessárias leis para se manter a ordem social. De qualquer forma, é preciso lembrar
que a liberdade para os africanos era algo mais próximo da liberdade grega do que deste
individualismo. Livre era o homem que pertencia a algum grupo. A não pertinência era
um dos caminhos que levava à escravidão.49
As poucas leis que existiam, portanto, eram importantes e revelavam algum grau
de civilização (e de Estado) da perspectiva adotada por Mendes. Contudo, um dos
costumes que pode ser visto como ordenador social – a poligamia – apresenta uma
contradição que Mendes retrata com ironia. Se os africanos são poligâmicos, como
podem respeitar a fidelidade conjugal? É um paradoxo. Neste ponto fica clara a
limitação do autor derivada de sua postura eurocêntrica. Ele associa fidelidade conjugal
à concepção de casamento cristão europeu, à monogamia. Portanto, julga a poligamia a
partir de uma perspectiva “monogâmica”. Como não existe fidelidade na poligamia
deste ponto de vista, Mendes classifica os africanos como incultos.
O caráter dos africanos, conforme Oliveira Mendes descreve, seria
extremamente passional. O oposto, uma postura contida e controlada, é o ideal
M. “Um jovem naturalista num ninho de cobras: a trajetória de João da Silva Feijó em Cabo verde, em finais do século XVIII”. In: História: Questões & Debates. Curitiba: Editora da UFPR, n. 36, 2002. 47 MENDES, L. A. de O. op. cit. p. 28 48 Para o liberalismo, o indivíduo é o único responsável pelos seus sucessos ou fracassos, portanto, totalmente livre para decidir os rumos de seu destino. É a mesma teoria que defende a não intervenção estatal nos assuntos econômicos das nações. Seu principal teórico é Adam Smith. Ver SMITH, A. A riqueza das nações. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1996. Coleção: Os Economistas 49 MEILLASSOUX, C. Antropologia da Escravidão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
32
civilizado.50 Portanto, o fato de os negros se deixarem levar pelas paixões faz deles
bárbaros. No entanto, “ainda que vivendo no centro da barbaridade, e do gentilismo, [os
africanos são] por gênio resolutos, dóceis, sizudos, e de boa fé”.51 Mendes entende que
todos, independente se negros ou brancos, são seres humanos e que estes são bons por
natureza. Todavia, há diferenças de hierarquia entre os dois grupos dadas
principalmente pelo estado de civilização em que se encontram. Ele não chega a adotar
a idéia rousseauniana do bom selvagem – mesmo porque isto siginificaria uma crítica à
organização dos Estados europeus, a qual ele defende – entretanto, aposta nesta bondade
natural como um facilitador das mudanças propostas no tratamento destinado aos
escravos.
Apesar de conceber os brancos como mais altos na hierarquia racial, Mendes
elogia as qualidades físicas dos negros. “São os Pretos da África sadios, fortes, robustos,
e de uma boa compleição, e natureza no seu tanto”.52 O que o convence disto são as
cicatrizes que os negros têm nos seus rostos. Segundo ele, estas são muito profundas,
mas não ameaçam a vida dos portadores por causa de sua saúde privilegiada. As
cicatrizes são também enfeites, mas não só, indicam o reino, o Presídio,53 e o lugar de
nascimento dos negros. Além disso, os africanos escravizados recebem do Sertanejo que
os captura sua marca particular, útil no reconhecimento caso haja fugas. Nos portos,
recebem no peito a marca das “Armas do Rei, e da Nação”. Esta marca é chamada
Carimbo. Por último, são marcados pelo senhor que os compra, mais uma vez com fogo.
“Sem que nestes lances a natureza ceda a tais martírios”.54
A incrível capacidade dos africanos de sobreviver às constantes agressões ao
corpo remete necessariamente a sua competência como trabalhadores braçais, pois a dor
das marcas e cicatrizes seria muito maior do que a causada pelo trabalho escravo no
Brasil. Mesmo sem querer, ao sugerir isto, Mendes argumenta a favor dos castigos
corporais aos escravos, pois, visto o que aguentaram durante sua trajetória para chegar
ao Brasil, a violência com que os senhores tratavam seus cativos seria menor em
50 Norbert Elias identifica como processo civilizador a contenção progressiva das paixões e a adoção de etiquetas por parte dos povos europeus. Parte deste fenômeno foi a missão civilizatória que os europeus assumiram de levar estes costumes a outros povos do mundo. Mendes, como será desenvolvido melhor mais tarde, defende esta missão neste seu trabalho. Ver ELIAS, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. 51 MENDES, L. A. de O. op. cit. p. 28 52 Idem, Ibidem. p. 28 53 Os presídios eram fortificações portuguesas normalmente avançadas dentro do território africano.
33
comparação à toda a violência anterior. Contudo, é preciso frisar que Mendes não
vincula expressamente a resistência à dor ao trabalho braçal, apenas elogia o vigor dos
africanos. O silêncio, todavia, não desfaz a impressão. Além do mais, na seqüência
imediata deste trecho, o autor fala a respeito dos trabalhos aos quais se dedicam os
negros na África. Depois do elogio, vem a crítica.
“Estes povos pela maior parte vivem na inércia”.55 Segundo Mendes, os
africanos se ocupavam apenas de duas atividades: agricultura e caça. Ele faz questão de
afirmar a agricultura como a atividade mais importante. Descreve quais eram as
principais culturas, mas não parece dar importância econômica a esta informação –
como supor os potenciais agrícolas locais a serem explorados pelos portugueses, por
exemplo – somente explica, para um leitor que supostamente não conhece, quais eram
os gêneros consumidos pelos africanos e a maneira particular de cultivá-los. A caça
seria secundária, praticada apenas quando não havia mais carne e apenas para suprir as
necessidades imediatas. Ademais, cita o trato com marfim e cera como uma atividade
terciária, dois produtos trocados com os sertanejos por tecidos principalmente.
Entretanto, subestima este comércio, pois se detém pouco nele e não o inclui entre as
atividades principais dos africanos.
A crítica de Oliveira Mendes é sobre a suposta inércia dos negros. Como estes
não agiam conforme a lógica econômica européia (grosso modo, uma lógica voltada
para o lucro e à acumulação), Mendes considerava-os inertes. Era a diferença de
perspectiva sobre o trabalho que provocava a crítica de Mendes. Não era importante
para as sociedades próximas a região de Angola, naquele momento, acumular bens
materiais. A lógica econômica local pregava que se fizesse a extração, a partir da caça e
da agricultura, apenas do necessário para a subsistência. O contato com os europeus, no
entanto, já havia começado a mudar a postura dos nativos da África. De qualquer forma,
ainda era relativamente pequena a influência européia no que diz respeito a mentalidade
econômica dos africanos. O mesmo não pode ser dito das atividades econômicas, pois
as atividades européias, especialmente o tráfico de escravos, modificaram bastante os
sistemas de trocas dentro daquele continente.
Devido a importância atribuída à agricultura em Portugal especialmente, mas em
toda Europa também, Mendes se detém mais pormenorizadamente sobre o assunto. A
54 MENDES, L. A. de O. op. cit. p. 29
34
maneira como os africanos praticam esta atividade indigna Oliveira Mendes, daí o autor
atribuir adjetivos negativos aos negros. “São tão inertes, e tão pouco industriosos”,56
que, mesmo toda a família tendo trabalhado na lavra da terra, apenas três a semeiam;
um fura a terra com um pau, outro joga a semente e o terceiro fecha o buraco… Ou
ainda, no preparo dos alimentos: “no centro da sua rusticidade”,57 os africanos usam
poucas ervas para tempero das carnes, alguns, inclusive, comem-as cruas. No mais,
repara nas deficientes irrigição e fertilização dos campos que acontecem apenas por
escassos fenômenos naturais.
A percepção negativa que Mendes tem das práticas de subsistência dos africanos
se deve ao fato de ele estar impregnado pela lógica econômica européia. Durante o
século XVIII especialmente, a maior parte dos europeus absorveu um determinado
ponto de vista econômico e o tomou por universal, por isso a dificuldade de se entender
lógicas alheias. Este ponto de vista tem como principal teórico e representante Adam
Smith.58 No entanto, não é o liberalismo clássico que caracteriza esta perspectiva, mas
sim a mentalidade voltada para o lucro e para a acumulação.
Em seguida, Mendes descreve as habitações dos negros e a forma de construí-
las. As casas dos africanos eram cobertas de palha brava ou folhas do coqueiro. As
paredes eram de taipa. Parecidas com as habitações dos negros no Brasil. A construção
das casas não dava muito trabalho, aos poucos os negros acumulavam o material
necessário e, em mutirão, construíam as casas. Por dentro, a principal característica das
casas era uma cozinha central onde os moradores se aqueciam durante a noite com um
fogueira. Em suma, habitações rústicas condizentes à barbárie local.
Talvez por conta da facilidade com que os negros constróem e mantém suas
estruturas materiais básicas, eles estejam sempre estão em festa, não importa onde. Uma
crítica comum em Portugal aos africanos era contra as constantes festas a que se
entregavam. Na Europa, a valorização do trabalho como atividade enobrecedora, que
ficará mais forte sobretudo no século XIX, já aparecia neste momento. No entanto, neste
caso, o trabalho não é tanto uma atividade nobre, mas se opõe à “inércia” e, por isso, é
valorizado.
55 Idem, Ibidem. p. 29 56 Idem, Ibidem. p. 30 57 Idem, Ibidem. p. 32 58 FONTANA, J. História: análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998. Ver especialmente o Capítulo 4 - Capitalismo e História: A escola escocesa.
35
Mendes ainda descreve o preparo dos alimentos. Preocupa-se em comparar as
práticas alimentares da África com as do Brasil. Percebe que a cachaça brasileira é a
bebida preferida na África, mas não sabe explicar o porquê. Esta preferência, em poucas
palavras, era derivada da importância simbólica que a cachaça ocupava dentro do
sistema de trocas da região. A cachaça era um bem de prestígio, trazia reconhecimento e
poder a quem dominasse o comércio do produto.59
O último ponto abordado pelo autor neste primeiro capítulo é o vestuário. Os
negros, segundo ele, andavam quase nus. As poucas vestimentas que usavam eram de
tecidos importados e rústicos. Além de cobrir o corpo, as roupas serviam de lençóis para
a proteção noturna. Os tecidos eram um dos produtos mais importantes nas trocas entre
os africanos. Os tecidos europeus ocupavam, como a cachaça, uma posição de destaque
entre os bens de prestígio. No entanto, a maior parte dos panos vinha do interior da
própria África, produtos de outros povos trocados por bens locais.
No segundo capítulo, Mendes explica os seis modos possíveis de um indivíduo
se tornar escravo na África. Utiliza o Direito como ponto de vista privilegiado na
análise da questão. Dos seis modos, quatro são derivados de alguma forma de lei, os
dois últimos acontecem pela força. Enfatiza que, apesar de haver poucas leis (quase
nenhuma), as que existem de fato se fazem cumprir.
O primeiro crime é o adultério, o “misturar-se com a mulher, que está adscrita
por outro”.60 Lei prevista também no Direito Romano. O castigo do réu é definido por
um juiz (sova). Este juiz é uma escolha dos africanos entre si, um para cada presídio.
Além dos sovas, há nos presídios os Capitãe-mores que ajudam nos julgamentos. Estes
são investidos do cargo pelos Governadores e possuem soldados a seu serviço. A pena
máxima é a escravidão. Caso o réu seja posto nesta condição, o ofendido passa a ser o
senhor do réu e tem direito de vendê-lo.
Mesmo assim, há uma forma de se “recorrer” da sentença. O condenado pode
nomear outros “subordinados” seus para cumprir a pena em seu lugar (mulheres, filhos,
sobrinhos). Outra fórmula prevista no Direito Romano. As mulheres condenados,
contudo, não podem ser substituídas, pois se entende que elas não têm quem nomear.
59 MEILLASSOUX, C. Op. cit. 60 MENDES, L. A. de O. Op. cit. p. 39
36
“Eis aqui sustentado outro costume dos Romanos, e deles transferido a nós
(portugueses), que as mulheres são princípio, e fim de família”.61
Quando há substitução, é comum serem vários indivíduos nomeados, mais ou
menos conforme a gravidade do crime. Depois há a partilha dos cativos entre os
ofendidos (credores) e os sovas que podem, então, vedê-los como quiserem. O roubo de
frutos de terras alheias é punido da mesma forma. “Eis aqui em um país inculto postos
em prática os capítulos da Lei Aquilia, que eles desconhecem inteiramente.”62 A última
forma legítima de se fazer escravos é através da guerra. Os vencedores trocam o direito
de morte sobre os vencidos pelo cativeiro. Direitos de guerra.
O quinto modo é através da força. Engana-se o indivíduo-alvo e se o prende.
Depois ele é vendido aos Sertanejos nas Feiras. No entanto, isto é visto como um crime,
por isso, caso se prove que alguém cometeu tal ato, este é condenado à escravidão. É a
famosa Lei de Talião. O último modo é um castigo que os pais de família impõem aos
seus filhos, mulheres ou outros. Às vezes por necessidade, às vezes como castigo. Pátrio
Poder e Direito Marital, Jurisprudência Romana.
O Direito era o curso mais procurado da Universidade de Coimbra. A grande
maoiria dos intelectuais portugueses e luso-brasileiros formou-se em Leis. Portanto, era
preciso demonstrar conhecimento nesta área, afinal a maior parte dos leitores saberia
identificar as qualidades intelectuais do autor justo neste pormenor. Por isso, esta é a
parte do texto onde mais aparecem citações. As referências são principalmente autores
da Roma Antiga. As citações servem como sustentação da comparação entre a cultura
européia e a africana.
O terceiro capítulo é subdividido em três partes. São as chamadas idades da
escravidão, cada uma analisada separadamente. A primeira idade é aquela na qual se
inicia o cativeiro e que termina quando os negros são revendidos nos portos para serem
levados ao Brasil ou a outro lugar. Mendes começa o capítulo com a condenação dos
maus tratos aos escravos e com a defesa dos negros.
Reduzido o homem Preto livre à escravidão na África, (…) é o indivíduo da espécie humana o mais infeliz, que se pode considerar. Em aquele instante, em que perdeu a liberdade, perdeu também tudo quanto lhe era bom, e aprazível.63
61 Idem, Ibidem. p. 40 62 Idem, Ibidem. p. 41 63 Idem, Ibidem. p. 43
37
O argumento é inteiramente moral. Aqui o autor não utiliza nenhuma
racionalidade econômica, por exemplo, para justificar que os escravos não podem ser
mau tratados. No entanto, também não é contra a escravidão; lamenta a situação, mas
seu objetivo não é eliminá-la, apenas quer torná-la mais “humana”.
Os escravos, independentemente da forma como chegaram a esta condição,
eram, em geral, trocados por outras mercadorias (tecidos, tabaco, cachaça, armas, etc.)
com os Sertanejos. Da prisão em que se encontravam, os escravos passavam às
correntes. Mendes faz questão de descrever com detalhes todo o processo de
aprisionamento. De tal forma que seu trabalho científico ganha ares dramáticos. O autor
insiste na crueldade do tratamento. É uma forma de sensibilizar o leitor para a prática
que ele, Mendes, repugna.
Criado o clima de revolta no texto. O leitor é chamado à racionalidade. Depois
de desenvolver argumentos emocionais, Mendes parte à argumentação econômica.
Demonstra como esta forma de cuidar dos escravos traz prejuízos a todos os envolvidos
no tráfico. A única função que existiria em mau-tratar os negros seria a de aterorizar os
cativos. A idéia de Mendes é aproximar a postura civilizada da racionalidade
econômica, como se a missão civilizacional dos europeus estivesse necessariamente
ligada ao progresso econômico das nações. Neste caso, os países mais civilizados
seriam também aqueles que mais poder detinham sobre o mundo.
É bom lembrar que Portugal era vista como uma nação decadente pelos
membros dos seus campos eruditos. Sendo assim, a argumentação de Mendes é coerente
com a pretensão de elevar Portugal novamente a condição de potência mundial. Pois
agir civilizadamente era um dos requisitos para tornar Portugal uma nação poderosa.
A segunda idade da escravidão correspondia à viagem entre a África e o destino
final do escravo. O tratamento desumano continuava. Mendes frisa que os escravos
eram mal alimentados, viviam sem condições de higiene, sujeitos a várias doenças e
submetidos a contínuos castigos físicos. Nesta parte, a descrição feita pelo autor diz
respeito ao acondicionamento dos escravos nos portos e nos navios. A situação é
lamentável. Mendes se pergunta como podem os capitães dos navios não perceberem
que é irracional encher os navios de cativos tal como fazem, o desperdício é imenso.
Novamente, ele insiste na argumentação emocional, mas insere um ou outro argumento
econômico na sua exposição.
38
A última idade começa no desembarque e termina junto com a vida do cativo.
Mendes foca o Brasil como lugar privilegiado para a descrição desta etapa.
Há portanto pois anualmente um sem número de escravos transportados de toda a Costa da África ao Brasil; parece que refolgando a humanidade oprimida, seria um dia de triunfo, de glória, e de prazer para a mesma humanidade, que escapando, a tantos perigos, entrava no Cristianismo, no centro, e na unidade da Igreja: porém assim não sucede, porque não sei se diga, que o remanecente de seus dias é mais desgraçado.64 O que Mendes faz aqui é rebater uma das justificativas mais comuns à
escravidão. Segundo muitos, a escravidão era uma forma de trazer os negros para a fé
católica e, desta forma, civilizá-los. Contudo, de acordo com Mendes, isso não
acontecia, pois os escravos eram apenas destinados ao trabalho sem que houvesse
nenhuma preocupação com a sua formação. Mais um motivo para encarar a escravidão
com maus olhos, pois, tal como estava sendo praticada, ela ia de encontro aos princípios
civilizacionais propostos para o desenvolvimento português.
Na sua argumentação, Mendes joga com as possíveis interpretações da realidade
que teriam os escravos. Afirmando, por exemplo, que eles, ao chegarem no Brasil,
esperavam ser bem tratados e ter de tudo o que fosse necessário. Mas isto também não
acontecia. O problema principal era que os senhores de escravo queriam gastar pouco e
não percebiam que, com um mínimo investimento inicial, lucrariam muitas vezes mais
com o mesmo escravo.
Por conta de toda a trajetória traumática a que os escravos eram submetidos, eles
se tornavam criminosos. O sentido legítimo da escravidão, defendido no discurso pelo
menos, portanto, era invertido: ao invés de se civilizar os povos bárbaros, a escravidão
acabava tornando-os mais perversos do que eram em estado natural. Neste sentido, a
proposta do autor é recuperar a função original da escravidão e, para isso, sugere a
mudança no tratamento destinado aos escravos.
Na seqüência, Mendes faz a análise das doenças que geralmente acometem os
negros depois da captura e durante seus transportes. O autor divide as doenças em
agudas e crônicas. As agudas são um pouco mais leves, Mendes classifica nove destas.
As crônicas, são doenças mais complicadas. A primeira delas é a mais interessante,
banzo é o nome africano para a moléstia.
64 Idem, Ibidem. p. 50
39O banzo é um ressentimento entranhado por qualquer princípio, como por exemplo; a saudade dos seus, e da sua pátria; o amor devido a alguém; a ingratidão, e aleivozia, que outro lhe fizera; a cogitação profunda sobre a perda da liberdade; a meditação continuada da aspereza, com que os tratem; o mesmo mau trato, que suportam; e tudo aquilo, que pode melancolizar. É uma paixão da alma, a que se entregam, que só é extinta com a morte: por isso disse, que os Pretos Africanos eram extremosos, fiéis, resolutos, constantíssimos, e susceptíveis no último extremo do amor, e do ódio.65
Muito provavelmente, o banzo era o que hoje conhecemos por depressão. Esta é
a única doença que Mendes não tem um tratamento a receitar. Há ainda mais sete
doenças crônicas. Depois de apresentá-las todas, Mendes descreve um método para se
curarem ou evitarem as doenças.
É um tanto quanto arriscado para o autor caminhar pelo terreno da Medicina.
Consciente disto, Mendes afirma a necessidade de que médicos tivessem feito as
observações. No entanto, ele se considera suficientemente preparado para discorrer
sobre a saúde dos escravos. É bom lembrar que Mendes cursou como voluntário
algumas matérias de Medicina quando estudou na Universidade de Coimbra. Mesmo
assim, Mendes é enfático ao frisar que todas as suas conclusões são deduzidas “das mais
exactas informações, sizuda, e fiel experiência”.66
O capítulo em que Mendes descreve seu método é o mais importante, segundo o
próprio autor. É o capítulo “em que se compreende o fim, a que nos destinamos”.67 A
primeira sugestão de Mendes (e que ele tem como regra) é que, desde o momento da
captura, abrande-se o sofrimento dos escravos. Estes, por serem “bárbaros passionais”,
imediatamente depois de serem capturados são acometidos pelo banzo. Por isso, seria
bem melhor para a saúde dos cativos um tratamento não violento contra eles.
A segunda regra, é que, em cada grupo de cativos, houvesse pelo menos um
curandeiro, pois este indivíduo conheceria as doenças da terra, bem como teria
condições de tratá-las com os recursos dados pela mesma terra. Além de que o preço
pago por um curandeiro era bem menor do que o pago por outros tipos de escravos.
Neste momento, Mendes reconhece a medicina africana, se não como legítima, ao
menos como funcional.
Sugere ainda que as marchas deveriam ser mais lentas, com tempo suficiente
para que os escravos descansassem. As refeições deveriam ser fartas ou, ao menos,
65 Idem, Ibidem. p. 61 66 Idem, Ibidem. p. 67 67 Idem, Ibidem. p. 67
40
suprir o necessário e a água deveria ser abundante. Segundo Mendes, o tráfico, tal como
estava sendo praticado, fazia exatamente o contrário, por isso havia um grande número
de escravos mortos.
Os negros precisariam de tecidos para se cobrirem, principalmente durante as
noites. De acordo com o autor, o gasto com tecidos precisaria ser somado ao custo do
escravo. Contudo, a diferença de preoços seria praticamente irrelevante, visto que o
escravo minimamente protegido das intempéries do clima seria mais valorizado.
A última regra para melhorar a jornada em direção ao porto era que os
Sertanejos levassem caçadores consigo, pois estes poderiam fornecer carne fresca para a
escravatura durante todo o percurso. Isto seria uma grande economia, pois diminuiria a
quantidade de comida a ser levada e, como os escravos não comeriam carne salgada,
evitaria o gasto excessivo de água, pois sem o sal da carne, os cativos teriam menos
sede.
Quanto à estadia nos portos, Mendes observa, em primeiro lugar, que não existe
um motivo prático para se tratar mal os escravos. O motivo desta constatação é que
havia bens em abundância em todos os portos e, por isso, não seria desperdício
alimentar bem os cativos (como pederia ser na viajem do interior para o litoral por
exemplo). Mendes cita neste momento um tal de Raimundo Jalama, o homem que
parece ter fornecido grande parte das informações (senão todas) que o autor utiliza para
produzir sua memória. De qualquer forma, os problemas continuam os mesmos, bem
como a argumentação. A causa da mortandade é a falta de mínimos cuidados para com
os escravos, e a morte dos escravos é economicamente prejudicial a Portugal. Segundo
seus cálculos, o prejuízo gira em torno de 20%.
Sobre as viagens da África para o Brasil, Mendes diz que o primeiro erro dos
traficantes é entulhar os escravos nos navios. O número de mortos nos navios era muito
grande principalmente porque não havia suprimentos para todos. O espaço para os
suprimentos era ocupado por mais escravos. Derivado deste problema, havia a péssima
condição em que o escravo chegava a seu destino. Ainda, caso fosse possível, seria
necessário construir navios especiais para o tráfico, com melhores condições de
acondicionamento dos cativos.
Novamente, Mendes critica a lógica aparentemente econômica que se aplica no
transporte dos escravos. Segundo este lógica, o correto é levar o maior número possível
41
de escravos e com as condições mais precárias, pois isto significaria uma diminuição
nos gastos. Mendes defende que, caso se humanizasse o tratamento dos escravos em
todos os aspectos possíveis, com certeza os lucros seriam maiores.
No Brasil, “todo este tropel de desgraças contra os infelizes escravos; se a tudo
isto eles resistem, e saltam em os países Americanos, os que ali aportam, vem a ser mais
um resto de escravatura, do que homens”.68 Neste sentido, seria preciso que todos
fossem muito bem recebidos, para que pudessem recuperar as forças. Todavia, não era
isto o que acontecia. Os tratamentos desumanos continuavam.
Por isto neste lugar, assim como em todos os outros, tiro por infalível conclusão, que a mortandade, e estrago dos Pretos escravos, quando chegam a aportar à América, de nenhuma outra coisa provém, senão do antecipado mau trato, que é sucedido por outro igual na América, estando eles já debilitados; ao que também se ajunta a variedade do clima, as muitas virações, que o faz mais fresco, e a falta que os atenua do alimento, e do vestuário.69
Mendes defende seu ponto de vista argumentando que alguns homens de poucas
posses compravam os escravos muito doentes, cuidavam dos mesmos e depois os
revendiam, conseguindo consideráveis lucros com a transação. É uma forma de provar
suas idéias, pois, de qualquer maneira, as chances de que, em se adotando a proposta do
autor, os traficantes teriam mais lucros era apenas especulativa. Ou seja, apesar de
Mendes expor suas conclusões como derivadas da “experiência sizuda e fiel”, em última
instância, ele não tinha como provar com fatos e dados concretos as suas afirmações.
Depois de descrever o tratamento destinado aos escravos e as doenças que daí
decorriam, Mendes versa sobre como prevenir e remediar os males causados pelos maus
tratos. A prevenção consistia, basicamente, em fornecer uma boa alimentação, água e
roupas para os escravos. Manter os escravos em ambientes frescos também ajudaria. E,
o óbvio, evitar os maus tratos e a viloência contra os cativos.
As doenças depois de instaladas precisavam ser tratadas. Um dos problemas
freqüentes era o abandono dos cativos enfermos; causa de um grande número de mortes.
Para cada uma das doenças, Mendes propõe um tratamento. Em todas as sugestões de
tratamentos, o autor busca fazer um misto da Medicina européia com as práticas
africanas. O principal objetivo de Mendes era que os escravos fossem curados das
68 Idem, Ibidem. p. 77 69 Idem, Ibidem. p. 77
42
moléstias com o menor gasto possível. Por isso, há uma série de propostas simples
(como banhos freqüentes, por exemplo) que ajudariam no processo de cura.
Mendes conclui sua Memória com duas reflexões. A primeira,é que as doenças
dos escravos, provavelmente se originavam não das mudanças climáticas e geográficas,
mas sim dos sofrimentos pelos quais os escravos passavam durante todas as suas três
idades. A segunda, nas próprias palavras do autor,
que havendo uma rigorosa necessidade da mesma escravatura para a promoção das nossas Fábricas, e estabelecimentos no Brasil, donde nos vem copiosos, e abundantíssimo géneros, e nos quais a Real Coroa percebe os seus justos, e devidos Direitos, a Humanidade, e os interesses da mesma Real Coroa exigem que se resista a estes absurdos.70
A escravidão era necessária ao Sistema Colonial e, necessária especialmente, ao
Brasil que, mesmo depois da Independência, continuou a manter os escravos como a
principal força de trabalho no país. Mendes sabia disto, por isso, em nenhum momento,
cita a possibilidade de se libertarem os escravos. Mas, ao mesmo tempo, entendia que a
situação não poderia continuar da forma como estava. Primeiro porque era irracional
economicamente segundo seu ponto de vista, afinal muito se deixava de lucrar com a
grande mortandade dos escravos. E segundo, porque o tratamento desumano destinado
aos escravos não correspondia às pretensões de Portugal a se tornar novamente uma
grande potência.
Os escravos eram a principal força de trabalho da economia colonial. A
agricultura, por sua vez, era a principal atividade econômica. Mendes fez uma longa
Memória sobre este último assunto também, a que será analisada em seguida. A
Memória sobre a agricultura em Portugal não possui data. Dos manuscritos é, de longe,
o mais extenso, na verdade só se compara em tamanho com a Memória anterior sobre os
escravos. A Introdução redigida por Mendes esboça os princípios sobre os quais será
desenvolvido o texto. Primeiro, que são precisos inventos, planos e indústria para que se
consiga economizar a terra ao mesmo tempo em que se conseguem mais frutos.
Segundo, que é necessário, se se diminuir o trabalho, que ele produza tantos frutos
como antes ou, quando se aumentar ou se mantiver o mesmo esforço sobre a terra, que
cada vez mais frutos sejam produzidos. E terceiro, que se preste um pouco mais de
atenção àquilo que é tido por supérfluo e, às vezes, é muito útil.
70 Idem, Ibidem. p. 89
43
A primeira constatação do memorialista é que, em Portugal, há muitos terrenos
ruins e há outros muitos mal aproveitados. Por isso, há uma grande área que poderia ser
utilizada para a agricultura, mas permanece ociosa. Pois, o fato dos terrenos serem ruins
não impede que o bom agricultor os transforme em área fértil. Então Mendes faz uma
breve explicação de como se deve proceder com cada um dos tipos de terrenos para se
conseguir um bom lugar para plantar.
Uma das ações fundamentais do agricultor para preparar o terreno é a produção
de ‘estrumo’ para fertilizar a terra. Mendes dá, portanto, uma explicação pormenorizada
de como se deve preparar o adubo, bem como conservá-lo e aplicá-lo sobre os terrenos.
Inclusive, há uma explicação sobre o que fazer se o terreno não se tornar fértil de
nenhum modo, que é colocando uma grande quantidade de terra fértil sobre a área até
cobrí-la por completo.
Para se promover a agricultura portuguesa, Mendes sugere que se importe os
arbustos dos mangues brasileiros. O autor quase chega a afirmar que se se plantasse os
tais arbustos em Portugal, seria possível aumentar o território do país, pois estas plantas
criam os mangues e afastam o mar. Mas não chega a tanto, diz apenas que se
conseguiria terrenos mais férteis conforme se utilizasse o lodo onde os arbustros
crescem. Pois sua preocupação era com a manutenção da fertilidade dos campos.
Por conta da desatenção, as plantações portuguesas de trigo e outros grãos não
supriam as necessidades do país. A situação era pior nos anos em que a safra não era
boa por conta de intempéries. O que trazia a necessidade de se importar grãos das
nações estrangeiras, sendo que isso não seria necessário caso se observassem poucos
princípios que alavancariam a agricultura do estado de decadência em que se encontra.
Plantar estes gêneros em algumas das colônias seria um dos primeiros passos, pois traria
resultados a curto prazo, enquanto a agricultura em Portugal iria entrando nos eixos.
No entanto, não bastava que se tivesse terra, agricultores e disposição para o
trabalho. Fazia-se mister que a Coroa incentivasse a agricultura através de isenções ou
de relaxamentos nas taxas, pois, os impostos, tal como estavam organizados, eram
injustos aos agricultores, muito mais taxados que quaisquer outros profissionais.
No final desta memória, o autor volta a falar dos carros. Os argumentos são
próximos aos utilizados no texto específico do tema: os carros atuais são ruins e são
necessários novos, construídos com mais ciência para facilitar os transportes. O
44
fundamental, de qualquer forma, era se abandonar os carros de duas rodas e somente
utilizar, pelo menos no transporte de bens da terra, carros de quatro rodas.
45
CONCLUSÃO
O campo intelectual português no final do Antigo Sistema Colonial era marcado
por algumas disposições bastante claras. A primeira delas era a preferência declarada
por trabalhos voltados para fins práticos. Derivada desta preferência, havia uma certa
desconfiança, às vezes hostil inclusive, contra textos sobre questões teóricas. Esta
característica estava vinculada ao sentimento de urgência presente também no campo
intelectual português. A urgência era em reabilitar Portugal em relação às grandes
potências européias; pois, nos séculos anteriores, Portugal perdera a importância que a
caracterizara no início dos tempos modernos.
Foram tomadas uma série de providências para diminuir o atraso português.
Providências que se constituíram, principalmente, em reformas. O Marquês de Pombal
foi quem iniciou o processo destas reformas que, mais tarde, continuaram no período
mariano. As linhas gerais do campo intelectual português devem muito de suas
características a esta política, pois este campo ainda não possuia autonomia suficiente,
de modo que sofria de imediato as conseqüências das ações do campo político, em
primeiro lugar, mas também do econômico ou outros.
Um dos sintomas desta dependência é a organização e administração da
Universidade de Coimbra, a única do reino. Esta instituição era o local de "treinamento"
da elite reinol e colonial no sentido de prepará-las para assumir cargos administrativos
nos domínios portugueses. Formava homens a partir de uma ideologia homogênea e
buscava minimizar (ou mesmo eliminar) as diferenças regionais entre os alunos: uma
maneira de criar um sentimento de pertencimento a uma unidade composta por Portugal
e todos os seus domínios.
Quando ficou claro que o Brasil era o quinhão mais rico e importante do império
português, a Coroa adotou uma política de atração da elite colonial brasileira e buscou
alçá-la a condição de co-gestora do império. Por isso, formou-se em Coimbra um grupo
particular de estudantes, os luso-brasileiros. Estes homens podem ser agrupados porque
possuem características comuns e que os diferenciam dos demais. Primeiro, as mais
óbvias: eram jovens longe de sua terra natal (o que já propiciava uma identificação) e,
portanto, mais facilmente doutrináveis no que diz respeito a criar o sentimento de
46 unidade do império. Segundo, foram os luso-brasileiros aqueles que mais investiram
na observação científica e na produção de trabalhos voltados à prática. No entanto, este
não foi um movimento isolado, acompanhava o espírito da ilustração européia que
buscava conhecer o mundo através da ciência para poder extrair o máximo de vantagens
dele.
Oliveira Mendes foi um dos luso-brasileiros em meio a este ambiente. Através
de sua obra, é possível perceber algumas de suas estratégias para obter reconhecimento
no campo intelectual em que atuava. Além dos critérios de cientificidade, há alguns
outros elementos que precisam ser levados em conta quando se procura identificar as
características que colaboravam para a determinação da posição do indivíduo no campo
intelectual. Mendes defende certos valores e deixa transparecer algumas características
importantes para que se consiga este tipo de definição. Destas características, algumas
são propositais, mas outras não.
Por exemplo, a família. Mendes defende a família. Para o autor, a família era
uma espécie de unidade fundamental da sociedade e, por isso, cada indivíduo precisava
cumprir o seu papel familiar da melhor maneira possível. Ele estava consciente desta
defesa, ao ponto de descrever o Duque de Lafões – um homem solteiro – como uma
espécie de pai para os membros da Academia de Ciências de Lisboa. Ser um "homem
de família" era uma obrigação moral e, ao mesmo tempo, uma forma – no entendimento
de Mendes – de garantir posições no campo intelectual português. Por isso, também,
Mendes procurava vincular a imagem de um bom pai ou um bom marido à sua própria
pessoa. Talvez a sua insistência neste sentido tenha sido importante para a posterior
promoção de seu filho à cargos diplomáticos.71
A defesa dos valores familiares estava muito próxima da defesa dos valores
cristãos. Uma boa família, bem como uma boa postura em relação a esta passavam
necessariamente pela moral católica. O comportamento digno era o do bom cristão.
Mendes procura deixar clara a sua posição de fiel católico. Mas Mendes é contraditório,
pelo menos no discurso, ao adotar, ao mesmo tempo, os dogmas da Igreja Católica e a
Ciência como Verdade. No entanto, esta postura não era incomum. Uma forma de
agradar a gregos e troianos.
71 Ver: SILVA, I. F.; ARANHA, B. Diccionario Bibliographico Portuguez. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. (versão digital).
47 Quando sua argumentação apela para os sentimentos do leitor, Mendes assume
o ponto de vista do religioso. Por outro lado, a argumentação racional é defendida a
partir da Ciência. Por isso, pode-se especular que este balançar entre perspectivas fosse
algo até necessário para não desagradar a Igreja principalmente, visto que esta
instituição tinha muito poder em Portugal naquele momento (mesmo que não fosse o
que tinha sido há alguns anos antes). De qualquer forma, a racionalidade derivada do
empirismo era um dos critérios de cientificidade observados no campo intelectual
português.
Fundamental, no entanto, parece ser a defesa da nação. Independente do lugar de
onde tenha vindo o indivíduo, é inquestionável a necessidade de se pensar em benefício
de Portugal e seus domínios. Talvez esta seja a "norma de conduta" mais importante dos
intelectuais no ambiente ilustrado português. Não conheço nenhuma notícia de alguém
que tenha ousado transgredir esta regra.
Mendes entendia que o indivíduo existia em função do grupo. Contudo, o grupo
se restringia à nação. Por isso, cabia a ele se esforçar, na medida do possível, para que
os interesses da sociedade fossem observados. Em termos práticos, suas Memórias
manifestavam um objetivo geral de colaborar com o Estado no sentido de promover
alguma melhoria para todos.
Em alguns momentos, Mendes adotou o ponto de vista do europeu (por mais que
fosse baiano). Principalmente quando falou sobre a escravidão. Mesmo assim, em
nenhum momento deixou de ter como horizonte os interesses de Portugal. Este ponto de
vista mais amplo se verifica na defesa da missão civilizacional que supostamente os
europeus teriam com relação ao resto do mundo. Para Mendes, esta missão era
principalmente a evangelização, mas não se resumia a isto. Além de se evangelizar, era
preciso civilizar os povos bárbaros. Duas tarefas próximas, mas distintas.
Parte desta missão civilizacional era domesticar as paixões exaltadas. (Por isso,
Mendes identifica no caráter passional do africanos um vínculo com a barbárie). E, ao
se domesticar as paixões, necessariamente se diminuem os relacionamentos baseados na
violência, pois a Razão assume o lugar antes ocupado pela Paixão e permite que se
negociem as relações sem o apelo à força. Neste sentido, humanizar-se o tráfico de
escravos não era apenas motivado pelo altruísmo, havia uma lógica racional mais
profunda por trás. Oliveira Mendes, contudo, não chega a explicitar esta lógica, quando
sua argumentação é a racional, o autor cai na discussão econômica.
48 Outra defesa de Mendes é a do trabalho. É principalmente pela forma como ele
se relaciona com suas pesquisas que se percebe isto. Mas não só, o agricultor é muito
valorizado pelo autor, identificado como um dos principais cidadãos do reino. Uma
mostra de que havia alguma valorização do esforço, reconhecimento pelo mérito.
BIBLIOGRAFIA
49
BAUMER, F. O pensamento europeu moderno. v.1. Séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1990.
BOURDIEU, P. Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
_____. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001.
BOXER, C. R. O império marítimo português: 1415-1825. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
CARDOSO, J. L. (org.). A Economia Política e os dilemas do Império Luso-Brasileiro (1790-1822). Lisboa: Com. Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.
_____.O Pensamento Econômico em Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1989.
CARVALHO, J. M. A construção da ordem; Teatro das Sombras. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
CARVALHO, R. A Física Experimental em Portugal. Lisboa: Icalp, 1982.
CASSIRER, E. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Ed. Unicamp, 1992.
COUTINHO, J. Obras Econômicas de J. J. da Cunha de Azeredo Coutinho. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966.
CRIPPA, A. O conceito de Filosofia na época pombalina. in PAIM, A. (org.) Pombal e a cultura brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1982.
CRUZ, A. L. R. B. As viagens são os viajantes: Dimensões identitárias dos viajantes naturalistas brasileiros do século XVIII. História: Questões & Debates. Curitiba, n. 36, p. 61-98, 2002. Editora UFPR.
_____. Verdades por mim vistas e observadas, Oxalá foram fábulas sonhadas. Curitiba: UFPR, 2004. (Tese de doutorado, policopiada, inédita)
DIAS, M. O. Aspectos da Ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. São Paulo, v. 278, p. 105-170. Jan.- Mar. 1968.
ELIAS, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
FONTANA, J. História: análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998.
FONZAR, J. “Raízes da reforma do ensino do Marquês de Pombal: o Modernismo na cultura Portuguesa”. In: Educar. Curitiba: Ed. UFPR, jul./dez. 1985.
FRAGOSO, J. Mercados e negociantes imperiais: um ensaio sobre a economia do império português (séculos XVII e XIX). História Questões & Debates, n.º 36, jan./jun. 2002.
FRAGOSO, J.; FLORENTINO, M.. O Arcaísmo como projeto: Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro c. 1790 – c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
LYRA, M. de L. V. A utopia do poderoso império. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994.
MARTIUS, C. F. von. Como se deve escrever a História do Brasil. in: Revista do IHGB. Abr./Jun. 1953. [1844]
50 MAXWELL, K. Pombal. Paradox of the Enlightenment. Cambridge: University
Press, 1995.
MEILLASSOUX, C. Antropologia da Escravidão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
NEVES, G. P. das. “Guardar mais silêncio do que falar: Azeredo Coutinho, Ribeiro dos Santos e a escravidão”. In: CARDOSO, J. L. (coord.). A economia política e os dilemas do império luso-brasileiro. Lisboa: Com. Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.
NOVAIS, F. O reformismo ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 4, n. 7, p. 106, mar./1984
. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777 – 1808). São Paulo: Hucitec, 1995.
PENALVES, A. Visconde de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001.
PEREIRA, M. Um jovem naturalista em um ninho de cobras: A trajetória de João da Silva Feijó em Cabo Verde, em finais do século XVIII. História: Questões & Debates. Curitiba, n. 36, p. 29-60, 2002. Editora UFPR.
SILVA, A. R. C. da .Construção da nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio 1783-1823. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.
SILVA, C. P. da. A Matemática no Brasil: uma história de seu desenvolvimento. s/c: s/ed, s/d. (versão digital)
SILVA, I. F.; ARANHA, B. Diccionario Bibliographico Portuguez. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. (versão digital)
TENGARRINHA, J. (org.) História de Portugal. Bauru: EDUSC; São Paulo: UNESP; Portugal: Instituto Camões, 2001.
FONTES
MENDES, L. A. de O. Memória a respeito dos escravos e do tráfico da escravatura entre a costa d’África e o Brazil. Cadernos “o Homem e a Sociedade”. Publicações Escorpião: Porto, 1977. [1793]
_____. Memória analítico-demonstrativa da máquina de dilatação, e de contração. Oficina de J. J. F. Gonçalves: Lisboa, 1792. p. 23
Mais: ver Anexos.
ANEXOS
[f. 7]72 N.o 1.o -a-
72 Originais pertencentes a: Academia de Ciências de Lisboa. Documento digitalizado pertencente ao
51 A Memoria
Do optimo, Ill.mo, e Ex.mo Senhor
D. João de Bragança,
Duque de Laphõens,
Deixando de especificar todos Seos titulos,
Impregos, e Dignidades.
Q.to ao q’ nos diz Respeito, Sô nos baste Referir,
Que desta Real Academia das Sciencias de Lx.a
fora m.to digno Prezidente,
E della não Reformador, e Instaurador,
Mas sim com grande gloria Sua
Fundador,
E para que nunca Seja esquecido,
E de Seos Socios, e Companheiros, nunca Se aparte,
A Tanta Grandeza, e Merecimento,
Nas pegadas, figuras, e Sombras da Morte
Dedica, conSagra, e offereSse
Este Seo pequeno dever, e limitado obzequio
Luiz Antonio de OLiveira Mendes,
o mais inSuficiente de todos os Socios,
O qual na conformidade do Seo antigo Costume
Recitou na Real Academia
Na SeSsão de 7. de Janeiro de 1807
O Autor anuncia, q’ na tradução, Sem q’ faltase aos penSamentos, mais antes em abono,
ed elucidação delles, Se vio obrigado a valerSe de algum mais ornato, e amplificaçõens,
p.a de todo fugir, e evitar alguma frieza, q’ podeSse Sobrevir ao descurso na falta dos
periodos não Serem cheios.
CEDOPE (Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses). Transcrito por Bruno Zorek e revisado por Rosângela Maria Ferreira dos Santos, em maio de 2004.
52
[f. 8] O! Deos Immortal! Ai de mim! Ai de Ti Academia! Quanta não Seja fantastica, e
aparente a esperança, e a atrevida confiança dos Homens!
Nós Academicos, amabiliSsimos Socios, e com partes na dor, e na Saudade, ainda
hontem, quaze nos fins do anno paSsado, aquî mesmo neste Atheneo fomos vistos estar
m.to alegres, e no ultimo ponto do noSso prazer tão Satisfeitos, como q.m descançando
dormia nas Sombras de huma frondoza arvore, q’ figurava huma extraordinaria fortuna,
q’ nos protegia.
Hoje porem, inSurgindo hum dezar, as agonias, Nôs tristes, apoSsados de amarguras, tê
vestidos de preto por effeitos de hum acazo funisto, ainda q’ esperado nos ReSortes da
desgraça, nos achamos desherdados dos noSsos mesmos prazeres, e das noSsas antigas
alegrias.
No meo, e nos VoSsos abatidos Semblantes, divizo todo genero de diSsabor, e de
melancolias, q.do as inSurgentes tristezas, vindo Contra Nôs de todas as partes, nos
molestão, nos afligem, nos encomodão, e estamos Sendo por ellas Castigados, e
oprimidos.
O! Deos Immortal, muitas vezes invocarei o Ente Supremo, Creador, e destruidor de
tudo!
O! Sabios Companheiros, de Nós Se apar- [f. 8v] tou aquelle, q’ Só atendia, e aspirava
ao q’ era bom, e eSse mismo bom tanto mais prezava, q.do no Centro das Suas
apetencias divizava, q’ elle Se podia converter em noSso bem, e em noSsas utilidades!
De Nôs Se apartou aquelle; q’ no desempenho de todos Seos deveres Sempre desprezou
a avareza. Eu Sô o conhecî, apoderado, e m.to cheio della, q.do tinha por Sua maior
Riqueza, Solido patrimonio, e avultadiSsimos Lucros; e intereSses, o esplendor desta
Real Academia, e o Conhecî tão ambiciozo nesta p.e, q’ Sempre Se abrazava no amor da
Sua maior prosperidade, e ultimada gloria.
Tu impostura, negra mentira, vai viver degradada de mim p.a Sempre! Vai manchar
Labios impuros, bocas mercenarias, e espiritos fracos; q’ submetendo Se Só Se nutrem
da mera adulação! Não projectes offuscar o Heroe do meo elogio!
De Nôs Se apartou a minha; e alegria dos meos Companheiros; o amor de todos
Concidadãons; a Saudade, a vida, a alma desta Real Academia.
Vimos; q’ do Centro dos noSsos CongreSsos sientificos, dos noSsos ajuntamentos, e
das noSsas Conferencias Literarias desaparecera [f. 9] o noSso Prelado; o noSso chefe;
53 e o noSso amabiliSsimo Prezidente; em testimunho do que vejo em Nôs todos
intristecidos, o q’ era bem de esperar, hum justo, e extraordinario RiSentimento a face
de tão conSideravel pirda.
Ai de mim! A mesma Atropos; q’ hé Surda, as inexoraveis Parcas me oução.
Finalm.te de Nôs Se apartou aquelle esclarecido Varão, o melhor de todos os Varõens,
aquelle, q’ em Sí era magestozo, q’ com a Sua ditoza, e Respeitavel Prezença honrava a
todos, o mais illustre da claSse dos Venerandos, e dignos anciõens, o Principal delles, o
Dinasta, o NoSso Prezidente, o Ill.mo, e Ex.mo Senhor D. João de Bragança, Duque de
Laphõens, General em chefe das Armas, cujo magnifico Nome apenas por mim
proferido, e Recordado em as VoSsas Saudozas Lembranças, Suscita com todos adornos
da eloquencia, q’ de fecunda Se torna pobre, as mais ternas ideas de Seo perfeito, e
digno elogio: Aquelle, q’ comandando as tropas, e todos exercitos; tãobem Com todo
amor, e Suma afabilidade nos prezidia, e nos Comandava, por Cuja Cauza, chorando
Marte, juntam.te Soltando gemidos, chora Pallas, e posto q’ donzella, por não ter querido
Cazar com o feio, e ascarozo Vul- [f. 9] cano, LibertandoSe da triste Condição de viuva,
Comtudo chora como Orphão Minerva, chora a Academia.
Neste justo pezar igualm.te Repartido com Marte, e com Pallas, O! Respeitaveis Socios,
tendo eu, q’ fallar do noSso amabilliSsimo Prezidente, não Sabe determinarme, p.a q.l
dos dous me haja de transportar o amor, a veneração, o Respeito, a amizade, a gratidão,
e a Sua mesma Saudoza Memoria.
Se conSultarmos a Historia dos Tempos, eSsa mestra da vida; se desenvolvermos as
antiguidades da Grecia, e as for buscar na Sua origem, entranhando me nos Seos
Costumes, Seguindo as pizadas de Seos antigos escriptores, O! Academicos, Vos bem
Sabeis, q’ em Athenas houvera hum Templo ConSagrado a Deoza Minerva, e ali
tãobem outro dedicado ao Deos Marte, aonde, desputandoSe alternadam.te, Se dicidião
as questõens mais intereSsantes, e Se julgava com todo acerto Sobre o justo, e injusto.
Este ministerio era tão Sagrado, e tão Respeitozo, q’ no Seo principio alî Se ajuntarão os
12 Deozes, p.a q’ ConheceSsem, e julgaSsem o crime de Marte, acuzado por Neptuno,
tendo incorrido no homicidio de Haliothrocio; Seo filho, por haver com força
corrompido a fi- [f. 10] lha Alcippa: a imitação do q’ depois Solão ahi estabelecera os
12 Juizes; substitutos dos Deozes, p.a q’ tãobem ficaSsem julgando.
Nas desputas, e dilemas Saudozos, q’ nas Competencias de mais Sentir, Sustenta Pallas
com Marte; Sem q’ eu Seja Juiz, abracando com imparcialidade hum meio tr.o mais
54 Seguro; demonstrarei; Se a tanto cheguem as minhas debilitadas forças, q’ o Ill.mo, e
Ex.mo Senhor D. João de Bragança, Duque de Laphõens, NoSso Prezidente, de Saudoza
memoria, tanto entre Nós, Como entre todos; fora Reconhecidam.te em extremo hum
verdadeiro, e perfeitiSsimo amador da Sabedoria, das Artes, e Siencias.
Se tanto eu não desempenhar, confiado na VoSsa Candura de animo, na poSse dos
indultos, q’ imploro, ficando Salvo o Seo elogio, q’ por Vôs Seja Cometido a talentos de
outra estima, com grande Satisfação m.a, acreditaime ConSocios; m.to Levarei em gosto,
q’ por Vôs, e por eSse escolhido, eu Seja enSinado.
Quando a tanto eu não chegue, na falta de Rapidos Voos, q’ me denegão a desempenho,
Suprirão as minhas beneficas intençõens, os meos esforços, os meos ardentes, e
SinSeros dezejos, a m.a [f. 10v] SubmiSsão, acatamento, e Respeito, a m.a amizade, a
mesma gratidão, e tudo aquillo mais, q’ Seja Capaz de vos trazer conforto nesta minha,
e voSsa SenSibilidade.
AmabiliSsimos Companheiros, Consternados, e Saudozos Socios, em pouco não Sei,
Como poderei dizer tantas Couzas dignas, e maravilhozas, q’ exornão o Heroe do meo
elogio, e da VoSsa justa Saudade.
O noSso Prezidente desde a tenra idade té q’ contaSse mais de 86 annos, Sempre m.to
aplicadam.te Cultivou as Letras. Neste longo espaSso, e Comprida Carreira m.to de boa
vontade Sacrificou o tempo, as aplicaçõens, as fadigas Literarias, a mesma Vida a
Deoza da Sabedoria, e deste modo, Suscitando exemplos, Citou as Aguias Luzitanas, p.a
q’ Se RemontaSsem.
Por premio dos Seos trabalhos, porq’ m.to amava, e apetecia a mesma Sabedoria, humas
vezes Se lezongeava de a ter adquerido, outras desconfiando de Si mesmo, despido do
amor proprio, desenganado, de q’ a não havia alcançado, nos desvelos de tão
Reconhecida paixão, propondoSe a mais, Se entregava a novos estudos, e nestas
incertezas, p.a q’ melhor conSeguiSse o q’ [f. 11] tanto dezejava, Sempre foi visto
abrazarSe no ConstantiSsimo amor de todas siencias.
Com tanto esforço Se aplicou a estes fins, q’ p.a não perder tempo, e ganhar illustrados
Conhecimentos, com frequencia, cheio de prazer; hia ter aos homens eruditos, p.a q’
comunicandoSe com elles, metendo em giro as ideas adqueridas, m.to mais LucraSse, e
por este meio, e modo na diuturnidade delles aprendeSse.
Na Caza de Sua mesma moradia, Sempre vezitado, e cercado dos homéns Sabios,
procedendo com escolha, a cada paSso no Seo particular Se entregava com
55 familiaridade a huma converSação agradavel, e com isto m.to Se deleitava, chegando a
tal extremo, q’ tê com Saudade dellas Se despedia.
Prezava p.a Seo maior amigo, e tinha Como nota Caracteristica p.a huma nova amizade
aquelle, em q.m divizava talentos, merecim.to, e os maiores graos da dezejada Sabedoria.
Alî, e aquî, O! [f. 11v] Saudade! o admiravamos fallando Com todo aCerto; e com a
maior erudição. Em abono da verd.e, e das minhas affirmativas, tanto ouvirão o
inSensivel destas mesmas paredes, o peSsoal do Atheneo, e nôs mesmos, em testimunho
do q’ entre as noSsas obras, q’ RemaneSsem depozitadas, Como nos Templos de
Apollo, e de Marte, ainda existem os seos bons escriptos, Recitados nas aberturas das
SeSsõens publicas desta Real Academia, q’ tê forão ouvidos para alguns Concidadõens,
a q.m Convido, p.a q’ me autorizem.
No meio de Sua idade Sendo elevado a maior p.e dos Seos titulos, e Dignidades;
cubiçando a Sabedoria, nunca jâmais farto dos bons Conhecimentos, p.a q’ melhor Se
aperfeiçoaSe, Sabendo diverSas Lingoas, de nôs, e da Sua Patria Se apartou, e fora ter
as Naçõens Estranhas.
Alî, excedendo a outros, p.a q’ o ocio o não dominaSse, cuidadozam.te mais aprendía, do
q’ converSava com os ProfeSsores de todas as Artes. Lançando fora de Sí, e a- [f. 12]
borrecendo a preguiça, vagando de huma p.a outra p.e, tanto fazia, Sô p.a Se aproveitar
das converSaçõens eruditas; e fazendo atrahír os Sabios da Sua escolha, com elles Se
comunicava com a maior frequencia. De huns, e outros aprendeo a siencia da guerra, e
da paz, e a hum tempo, Como q.m se dividia Servia a Marte, e a Minerva.
Nos ministerios de Marte não Só cumprira exactam.te com os deveres de hum bom, e
perfeito Soldado no tempo da paz, em q’ Solicito aprendera a Arte da guerra, mas
tãobem no estado della Se entregou aos lances, e açõens mais ariscadas; Sofrendo
aSaltos, e Sendo aCometido; então hê, q’ alî Resplandeceo o destincto valor de tão
Grande Capitão.
Para q’ Se não pretirão Couzas dignas, tão brilhantes, e nos exceSsos do amor da
Sabedoria, nada jámais nelle falte, o admiramos entrando nas Academias mais celebres,
aonde aCompanhado de hum animo incanSavel, e da Sua boa indole, com a maior
Curiozidade; e meudeza tudo obServara com a maior exação.
[f. 12v] ObServou, q’ por intervenção deste Socorro, ajuntandoSe os homens mais
doutos; conferindo entre Si, unidas as forças no desempenho do q.to Se propunhão; as
56 Artes, e as Siencias; dando as mãons entre Si, m.to conSideravelm.te Se adiantavão, e
Se aproximavão, q.to podião a Sua maior perfeição.
ObServou, q’ por este meio, e modo impenhandoSe a agudeza, a disvelada industria,
hum extraordinario esforço Se abraçava com outro esforço, te q’ ambos de comum
acordo conSeguiSsem os Seos dezejados fins.
Finalm.te de perto Se esmerou em obServar; q’ por esta especie de convenção a
agricultura, a industria dos homens, a mão de obra, a fertilidade, a abundancia, os
Comodos dos Cidadõens, e tudo q.to na prosperid.e lhes era util, m.to crescião em
demazia.
Alî mesmo de longe com animo SinSero, e benefico prometera aos Seos Compatriotas
tudo aquillo, q’ no futuro elle havia fazer a bem da Sua Patria, q.do a ella RetornaSse.
Depois de m.tos annos, RestituindoSe a ella Logo lhe Segurara, q’ Se propunha fazer
huma grande, e admiravel obra em Sua utilid.e
Com a testa Coroada de Louros, como q.m triumphava, cheio de prazer, e de jubilo,
fallou [f. 13] a Patria, e lhe dice O! Patria! pela tua felicidade, existencia, duração,
pròsperidade, e aúgmento encarecidam.te vos Rogo, me hajas de crer, q’ eu Sempre te
Serei agradecido, em testimunho do q’ inceSsantem.te me acharás disvelado, e todo
Sempre aplicado em teo benificio por aquelle tempo, e espaSso, q’ eu te dever a
Respiração, e o meo Sangue, Sem Ser gelado, animando o Corpo, circular nas veas.
Tanto pelo q’ dezia Respeito a Patria, m.to mais pelo q’ dezia Respeito ao extraordinario
amor, q’ conSagravâ a Sabedoria, medindo os curtos espaSsos da vida, huma Saâ,
madura, e christaâ PhiloSophia nos Seos desenganos lhe dava a certeza, q’ Como
vivinte, e Ente Subalterno a Seo Creador, havia morrer, e aCabar; e q’ acabando elle,
tãobem acabavãoSe os Seos bons dezejos p.a com a Patria, e p.a com a Sabedoria.
PropondoSe dar a Nôs, e aos Vindouros huns clariSsimos testimunhos do q.to apetecia;
q’ os Seos dezejos, excedendo a huma vida Caduca, e tranzitoria, FoSsem
trancendentes, aSsentando o Seo esclarecido Nome nos Fastos eternos da
Immortalidade, dando mais, q’ fazer a Saturno, Suscitando novo argumento, ganhando
nova Fama, com as Suas mesmas Mãons, q.l Erope, lançando as primei- [f. 13v] ras
pedras; instituio, e erigio Esta Real Academia.
Cuidadoza; disvelada, e escrupulozam.te, tê SubmetendoSe; p.a hum melhor aCerto, a
pluralidade de votos, de todas as partes do Orbe Literario tratou de alistar aquelles
57 Varõens Conspicuos; de toda probid.e, esforçados, de hum dicidido merecim.to, e jâ
acreditados na Republica das Letras.
Ah! Senhores, a modestia, Sendo muda, q’ me Reprehende, p.a q’ não confunda elogios,
me manda Callar, q.do eu tinha m.to, q’ fallar de Vôs!
E quanto por esta vez tão Som.te, posto q’ agradecido, SenSivel ao bem, e aos graos de
huma conferida honra, q’ tanto me destingue, e enobreSse, me peza haver Sido hum dos
da Sua escolha, em q.m taobem Recahirão os voSsos Votos, Sô por temer, q’ huma Leve
Suspeição nas aparencias de hum figurado Soborno, fazendo vacillar a verd.e, denigra o
magestozo quadro da Sua delicada pintura!
A hum tempo o vemos fazindo Recultas p.a o Deos da guerra em difeza da Patria;
matriculando alunos, e novos Sacerdotes p.a a Deoza Minerva, p.a q’ dignam.te
officiaSsem neste Templo da Sabedoria.
[f. 14] Se eu não entraSse de boa vontade neste Sacreficio, dispendendo todos meos
esforços, desmentia a Carta, q’ me derigistes, e aquella, com q’ tanto me honrastes!
Fez com q’ Lx.a Sua Patria, Sustentando, e conServando o Seo antigo Nome, Sem q’
RoubaSse a justa gloria do famozo UliSses, Se transmutaSse em Athenas, a q.l por
intervenção dos triunphos da Sabedoria, q’ a Seos pez Calca as idades, nunca jâmais
podeSse Ser demolida.
Quaze pelos trez annos de Saturno, q’ vivera, isto hé pelos 86 p.a 87 annos, q’ Contara,
havendo conSumido quaze todos no exercicio das Letras, 30 destes annos gostozam.te
empregara nos cuidados, tutoria, e Regencia desta Real Academia.
Quantas vezes Sendo acometido das infirmidades, apenas Recobrando algumas
melhoras, posto q’ oprimido com o pezo dos annos, Sempre firme nos Seos bons
dezejos, porem com os pez mal Seguros nestes pavimentos por Cauza da gota, ainda
mal convalecido, inesperadam.te nos vinha honrar nos dias das quartas feiras das noSsas
SeSsõens, e conferencias Literarias.
Nôs viamos, e todos nôs prezenciavamos, q’ os seos pareceres, e continuados Votos em
as noS- [f. 14v] sas ASembleas, excedendo m.to aos dos outros, erão cheios de huma
Suma agudeza, e Revestidos da maior erudição, e conSumada prudencia, Sempre nelles
Respirava hum indizivel amor, q’ tributava a Esta Real Acadimia.
O NoSso Prezidente, aquelle esclarecido Varão, q’ na claSse, e ordem dos m.tos nobres
era o mais nobre, descendente com toda proximid.e da estirpe, e linhagem Real,
exornado de m.tas Dignidades, e de acomulados empregos, quantas vezes aquî mesmo,
58 Com grande Satisfação Suas, Repetidas Vezes, e inceSsantem.te nos chamava amigos,
Socios, Companheiros, e Sem destinção alguma Soldados, e alunos de Minerva, cujos
epitetos Sendo demonstrativos do amor, q’ nos tinha, apenas hoje Servem de inSentivos
da noSsa justa Saudade?
Elle entre os inumeraveis Sacreficios, e votos, q’ havia feito a Sabedoria, em testimunho
do grande amor, q’ tinha as Siencias, esquecendoSe da Sua mesma grandeza,
Sublimidade, e de tudo aquillo mais, q’ o fazia digno, e Respeitavel, tanto preteria com
abdicaçõens, e de tudo Se despojava no aparente, Só p.a q’ dispendendo q.to em Si
estava, foSse de nôs inSeparavel.
Quantas vezes enfermo, e por isso impoSsi- [f. 15] bilitado de poder conferir, Sendo por
nôs vezitado, com q’ anciedade perguntava por todos, e por cada hum de nôs? com q.ta
miudeza, e exação, huma, e m.tas vezes inquirindo, perguntava pelas obras do concurSo,
pelo exame, e Revizão dellas, pelas outras já Recitadas, pelas minhas, e pelas VoSsas
produçõens, fazendo entrega das q’ a elle hião ter, pela firmeza, estabilid.e, augmento, e
prosperidade desta real Academia?
Nos esforços de a prosperar, p.a q’ nada me escape, e Couza alguma Se não pretira[?],
hê justo, q’ Se não Remetão ao esquecim.to, o q’ dâ tanta gloria a Sua Saudoza
Memoria, trazendoSe a lembrança aquellas fadigas, desconSolos, abatimentos, e
amarguras, q’ elle Suportara nos exceSsos do Seo amor, q.do dezejando a duração,
perpetuidade, e augmento desta Real Academia Com transcendencia as futuras
geraçõens, com gr.de ReSentimento Seo, via : indotada esta Sua filha primogenita.
Muitasvezes Se lembrou aplicar p.a estes fins huma p.e das Suas groSsas Rendas, e o
não podia executar com a dezejada perpetuidade, porq’ lhe obzistia a natureza de bens
de vinculo, e no estado de Solteiro Só lhe deteve o paSso, p.a pertender desanexação, as
prudentes Lembran- [f. 15v] ças, de q’ Sendo a Academia da Proteção Regia, Sem
precedencia de Reprezentação, daquelle modo inSolito; lembrando descuidos, inSultava
a Benificencia Superior, q’ com justa Cauza Se daria por offendida, m.to mais atento o
parentesco, e a Comunicação privada, q’ nada jámais despenSaria.
Nestes extremos o Politico Se combatia com os Seos dezejos, com as Suas intençõens, o
Seo amor com a orfandade, a decadencia, perda, e Ruina com a prosperidade, augmento,
e duração desta Real Academia.
Cumprindo com os deveres de hum perfeito, e amoroziSsimo Pay, e de hum Zelozo, e
vigilantiSsimo Curador da Real Academia, não Só Reprezentou, e pedio de hum modo
59 ordinario, mas tãobem m.to SubmiSsam.te Suplicou aos Seos Augustos Parentes
Reinantes hum Suficiente patrimonio, p.a q’ ella podeSse existir, permanecer, e durar, o
q’ com effeito alcançara dos Senhores Reis, e obtendo SuceSsivas confirmaçõens,
obteve, q’ o Princepe Regente. NoSso Senhor, q’ por vezes nos honra com Sua
aSsintencia, ficaSse Sendo melhor do q’ elle Protector desta Real Academia.
Alem deste exuberantiSsimo Socorro em prova de huma Suma affeição, m.to de Sua li-
[f. 16] vre vontade com mão Larga no particular e no publico com a Real Academia
amplam.te despendia do q’ era Seo; não Só p.a q’ ella duraSse, e Se conServaSse, mas
taobem p.a q’ nos progreSsos da dezejada prosperidade, Sempre hindo avante, e cada
vez mais em augmento, excedendo os Seos dias, e dos Vindouros, p.a Sempre existiSse,
e permaniceSse.
Deste modo por m.tos annos, q’ Se aproximarão a 30, desempenhou, e cumprio com as
vezes de noSso bom, perfeito, e amabiliSsimo Prezidente. Nôs todos lhe dezejavamos
huma vida mais dilatada, p.a q’ tãobem na poSse da noSsa antiga felicidade Elle m.to
mais cumpriSse.
Finalm.te em testimunho da m.a, e da VoSsa gratidão, gemão embora as abobedas do
Templo da Sabedoria, O! Companheiros, O! Academia, O! Marte, O! Tu Pallas! praze a
Deos, a Deos praze, O Ente Infinito permita, q’ este Seja aquelle feliz momento, em q’
Elle, já expiado dos delictos de homem, em Si Receba huma digna Coroa de gloria, q’
exornado da verdadr.a Sabedoria, de tantas Virtudes, das Suas optimas qualidades, esteja
gozando a maior das felicidades.
Praze a Deos, ao [f. 16v] Ente Infinito praze; q’ o Ill.mo, e Ex.mo S.r D. João de
Bragança, Duque de Laphõens, noSso amado Prelado, saudozo, Prezidente, perfeito
Pay, vigilante Curador, desvelado Fundador desta Real Academia; Praze a Deos; a
Marte, a Minerva, q’ Elle p.a Sempre fique gozando de hum descanço eterno, de huma
paz dezejada, e Constante na Graça, e Prezença daquelle Senhor, q’ hé conSolador, e
Retribuidor de tudo.
60
[folha 1f.]
1
SynopSis, Annotaçoéns, e Arbitrios Sobre o augmento da Agricultura de Portugal,
Offerecidas, e dedicadas.
Ao
Ill.mo, e Ex.mo Snr.e Luiz Pinto de Souza, Ministro, Secretario de Estado dos Negocios
Estrangeiros, e comulativam.te Ministro, Secretario de Estado dos Negocios
Ultramarinos, ConSilheiro de Estado, Cavaleiro da ordem do Tozão Douro na Espanha,
comendador, e Grão Cruz da ordem de S. Tiago, e Senhorio dejuro, e herdade de
Ferreiros, e Tendaes.
por
Luiz Antonio de Oliveira Mendes;
Bacharel formado em Leis pela Universidade de Coimbra, e Advogado da Caza da
Suplicação em Lisboa
61 [folha 1v.] [em branco]
[folha 2f.]
2
ExcelentiSsimo Senhor
Sempre o Amparo, e a Proteção dos Grandes em todas as idades foi a frondoza arvore
mais Robusta, e mais elevada do q’ o Cedro, a Sombra da q.l os pequenos, e os sabios
em descanço, tranquilos, e Seguros gostarão huns dos preciozos fructos da Proteção, e
ouvirão outros com satisfação o bom nome das Suas obras:
Para esta empreza, e confiança, q’ agora tomo, de Offerecer, e dedicar a V. Ex.ª as
breves SymnopSis, e annotaçoéns Sobre o augmento, e a dilatação da a agricultura
Nacional, jâ de longe, e aos poucos me propuz a inSinuar-me no benevolo animo de V.
Ex.ª, q.do entrando na contextura dos meos primeiros escriptos peSsoalm.te na prevenção
hum, a hum, como memoriais, q’ me Recomendavão, fui depozitando nas bem feitoras
Mãos de V. Ex.ª:
ESsa boa aceitação posteriorm.te unida ao bom trato, com q’ V. Ex.ª pio, e benevolo me
tem destinguido huma, e outra vez nos negocios da Repar-
[folha 2v.]
tição do meo intereSse, em q’ de perto, e a hum tempo divizei em V. Ex.ª
comprehenção, virtude, docilid.e, amor, afeição, e na grandeza d’alma capaz de tudo q.to
era magnifico, e Sublime, faz com q’ eu honre, e apadrinhe as minhas ideas com o
Heroico nome de V. Ex.ª
Eu escrevendo a V. Ex.ª no prelo, escrevo ao publico, e em q.to elle ociozo cogita na
torpe adulação, V. Ex.ª a fundo conheSe a Sinserid.e, Lizura, e verd.e, com q’ fallo a V.
Ex.ª, em apologia isto me basta. Eu o ultimo dos Cidadáons procuro o primeiro dos
Patriotas, e hum Patriota tão destincto, e tão ilustrado, q’ Sendo Capaz de escolher o q’
hé melhor, pode no Trono com felecid.e da nasção fazer valer alguns dos arbitrios.
Ex.mo Snr’, entrei nestes projectos animado das Lembranças, de q’ m.tas vezes hum
pequeno instrumento, e huma fraca mola faz pôr em movim.to huma gr.de maquina. Se
os meos penSam.tos não forem dignos de V. Ex.ª, e da Patria, V. Ex.ª hê dotado da
62 preciza prudencia p.ª perdoar-me, e a mesma Patria Sem q’ Se entregue a
inSenSibilid.e no Reconhecim.to da inutilid.e do trabalho nunca deixarâ de Ser grata ao
menos aos meos esforços, e bons dezejos.
Ex.mo Snr’, q.m foi Virgilio Sem Mecenas? E como o filho de Peleo vencendo mataria a
Hector sem a introdução de UliSses?
Luiz Antonio de Oliveira Mendes
[folha 3f.]
3
Nihil agricultura melius, nihil homine Libere dignius. Cic. 1 Off. Cap. 42.
[folha 3v.] [em branco]
[folha 4 f.]
4
Introdução
Sendo o homem hum individuo, q’ por neceSsidade da sua mesma exsitencia Se deve
alimentar do q’, e do q.to a terra poSsa commodam.te produzir; por iSso mesmo os
cuidados de huns, em q’ hê mais prompta, e mais efficaz a [officiozade] p.ª com os
outros Seos Semelhantes, Se devem disvelar em procurar os meios, os arbitrios, e os
inventos pelos q.s a terra por medeação da industria, e destes esforços Se facilite a
entrar, e a proSeguir na Sua mesma intrinSeca força produtiva.
Assim, hê, q’ no Seo principio ella espontaneam.te produzia m.to a Satisfação do
homem; porem depois da desobediencia, e da maldição, (discorrendo-Se e Cristaâm.te),
ella por huma Ley Superior pareSe, q’ de certo modo Se arrependera de Ser franca em a
Sua mesma produção; ou pelo menos, q’ se fizera dependente de hum Socorro, e
movim.to externo, p.ª q’ pelo meio do trabalho, e dos inven.tos uteis, ella RecobraSe a
Sua condição perdida, e criminoza com inocente participação dos delictos, tudo porq’ o
homem com abuzo desgraçadam.te transgredira a Ley, e atrevidam.te ofendera ao Autor
da mesma Natureza, do q’ ella Se ReSentira na Comparte da ofenSa.
63 Vindo pois a Ser o trabalho SuceSsivo hum Resultado do Crime, como castigo, e o
homem Reo, constituido na neceSsidade de existir, obrigado a alimentar-Se dos
[folha 4v.]
fructos do mesmo trabalho imprimido, e comunicado a terra, p.ª q’ ella, ainda q’
[imperfetam.te] continua-Se a Suprir, todo Cidadáo nestas circunstancias, q’ Se esforça
nos arbitrios, e nos inventos da milhoração da terra, nos meios, e nos modos pelos q.s
por medeação da industria o trabalho Se diminua, não Sê conSulta a prosperidade, e os
intereSses dos Seos Semelhantes, irmãos na desgraça e na existencia, mas tãobem a
felicid.e; e a melhoração do Seo mesmo patrimonio, como neceSsario p.ª a Sua
Subzistencia, e nisto proSeguindo, proSegui tãobem Socorrendo-Se em trabalhar p.ª Sî
proprio, e p.ª Remediar ao modo poSsivel os estragos da Culpa.
Ou Seja por estes Religiozos principios, ou pelos outros filozoficos, naturaes, e mais
Recentes, de q’ Sendo a terra a mesma q’ dantes era, porq’ os homéns destrahindo-Se
do Seo mais nobre, e primitivo Officio, entregando-Se todos no Seo commum
[apempa], ao ocio, a vaidade, e ao lupo, de acordo entre nôs, ou em seguim.to huns dos
outros Se abstiverão da cultura dos Campos. Seja q.lq.r, q’ seja a origem do noSso
infortunio, p.rq’ não hê do noSso destino entrarmos nas verdadeiras, e unicas
circunstancias do proposto dilema, quero com tudo isto Sô dizer, q’ o homem, q’ hê
verdadeiram.te amigo do outro homem, de Sî mesmo, e da Patria lhe hê Louvavel, q.to
poSsivel Seja, entrar nos esforços; primeiro com q’ a terra economizando-Se de certo
modo Se augmente, Se dilate, Se conServe, e Se faça melhor pelo meio dos planos, dos
arbitrios, e dos inventos, em q’ com gr.de força milita a industria: Segundo, q’ huns, e
outros Se esmerem, em q’ diminuindo-Se o tra-
[folha 5f.]
5
balho, ou sendo elle o mesmo, delle Rezulte a par do menos trabalho os mesmos, e
iguais fructos, e a par do mesmo trabalho outros m.to mais vantajozos: Terceiro, q’ pelo
meio dos socorros, q’ elles nos prestão, e nos inSinua Saibamos com utilidade noSsa
aproveitar m.tas daquellas Couzas, q’ com inadvertencia as temos por Superfluas: Es
aqui o traço da noSsa pintura, e os alicerSes, q’ Se lanção as noSsas Refleçoés.
64 Annotação Primeira.
Em q’ Se Refere q.s, quantos, e porq’ principios entre nôs Se tenhão, e Se Reputem os
terrenos estereis com a individuação e comprehenção dos ociozoz.
Hê indespenSavelm.te certo, q’ no Mundo creado, e com m.ta especialidade no noSso
continente Luzitano, hâ m.tos terrenos incultos, bravios, e espaSsos perdidos, e ociozos
na inutilid.e por 14 principios, deixando, e preterindo-nôz outros m.tos, q’ não São da
noSsa Repartição, e do noSso instituto.
Primeiro; q’ huns São estereis por Sua
[folha 5v.]
natureza, e Situação: Segundo, q’ m.tos são arenozos, e estes de dous modos, ou porq’
São compostos de huma terra arienta, e Solta, q’ de Sî afasta: a cultura, a germinação, e
a produção, ou porq’ as areas do mar, e dos montes por ocazião das cheas, e das
Levadas, achando huma franca entrada, em gr.de altura tem cuberto a Superficie do bom
Campo: Terceiro, q’ m.tos no ocio Se achão cheos, e cubertos de pedriscos, da claSse
dos vagoz: Quarto, q’ outros m.tos, e em gr.de p.e, e espaSso a isto, e a tanto Se achão
Reduzidos pelas frequentes, e multiplicadas [Calvas] das pedreiras Razas, q’ se deixão
ver, ou q’ Logo estão pouco abaixo da Superficie da terra: Quinto, q’ a isto, e a tanto os
outros Se Reduzem pela inadvertencia, em q’ estamos de fazermos cavar, e profundar os
terrenos, p.ª acharmos huma pedreira franca, daq.l fazemos extrahir pedra p.ª as noSsas
edificaçoéns, e p.ª Ser vendida a troco de hum pequeno preço, q’ se conforme, ficando
eterno o prejuizo cauzado: Sexto, q’ nisto mesmo Se continua ainda em pedreiras
elevadas, q’ por Sima tem terrenos, q’ Se cultivão, chegando a ambição de huns a tal
desmancho, q’ atê as oliveiras, e arvores de fructos Se derribão p.ª Semelhante fim, Sem
q’ tenhão prezentes o acordo, e a lembrança, de q’ perdendo o Campo Superior, o
espaSso inferior tãobem Se perde, e Se impoSsibilita a proporção do q.to a extração da
pedra a mais Se dilata: Setimo, q’ em tanta irremediavel perda Se proSegue por Cauza
da Suma facilid.e, q’ hâ em Se tirar emtulho dos mon-
[folha 6f.]
6
65 montes, e terrenos, q’ ficão a borda da agua, por onde paSsão as cheas, e toca com
aRojo o mar na ocazião das suas enchentes; porq’ em vez de Se lhe dificultar a entrada,
esta por este meio mais Se lhe franquea: Outavo, q’ outros m.tos mais terrenos
inSenSivelm.te vamos perdendo pela escalvação, q’ aos poucos vão fazendo as aguas
dos mar, e das cheas, Sem q’ a isto de modo algum se lhe Rezista: Nono, porq’ pelo
meio de estacadas, de cais arteficiaes, de entulhos, e de providencias, q’ nos Sejão uteis
com Revindicação não nos apoSsamos daquillo mesmo, q’ temos perdido: Decimo, p.rq’
por falta deSsa Rezistencia, e percauçoéns as aguas entrando, e continuando nos Seos
esforSsos a mais proSeguem na Sua Conquista, e de hum tal modo, q’ em pouco tempo
hindo avante impoSsibilitão, e fazem Seoz os boons Campoz, o q’ melhor noz certifica
os espraiados Lodos: Undecimo; porq’ não são entulhados os m.tos, e infinitos
espraiados, os xarcos, e as alagoas, q’ Sendo tão prejudiciaes a Saude, ocupão hum gr.de
espaSso ociozo: Decimo Segundo; p.rq’ m.tos dos terrenos, q’ São aptos, e oportunos p.ª
a cultura inadvertidam.te Se ocupão, e Se vão ocupando em Serviços, fabricos, e
estabelecim.tos, q’ bem os despenSarião, Se houveSse a Refleção, de q’ tudo isto deveria
Ser Removido p.ª os terrenos impoSsibilitados: Decimo terceiro; q’ m.tos dos terrenos
Sendo izentos deSses Recontados males, tem contra Sî a peSsima Rezolução de não
Serem franqueados, e gratuitam.te dados com exulação dos pezados foros a q.m bem os
podeSe beneficiar, a vista do desengano, q’ da conServação perene da incul-
[folha 6v.]
cultura delles por teima, e por caprixo nenhum bem nos Rezulta: Decimo quarto; q’
m.tos terrenos Sendo proprios p.ª a plantação de huns tantos generos, indiscretam.te Se
[esperdição] com o trabalho, e com a industria [notro.eo] da plantação de outros, q’ lhe
são ou contrarios, e opostos, ou q.do menos no esperdicio oportunos p.ª a plantação de
outros, o q’ Sô Se deve a falta dos perfeitos conhecim.tos da cultura, e da mesma
agricultura pratica, Servindo-lhe na insciencia de unica Ley, q’ toda terra Sofredora, e
paSsiva indeterminadam.te hê prompta p.ª Se Semear, plantar-Se, e boa p.ª produzir.
Eu dispenSo-me por esta vez tão Som.te de não proSeguir na mais individualid.e de
todos, e de cada hum dos modos e principios pelso q.s os terrenos Se tornão, e Se
conServão ociozos, inuteis, e estereis, tanto p.rq’ o inquieto espirito do Patriota no
avanço de ideas, e de conhecim.tos Suprindo-me, melhor, e mais maduram.te os
obServarâ no encontro de circunstancias, como p.rq’, depois de Recomendados, eSsa
66 enumeração extenSiva não hê propria, e não cabe dentro dos termos de huma breve
annotação.
Annotação Segunda.
Sobre os terrenos, q’ Se tem por estereis, e q’ por iSso com abandono ficão, e Se
conSer-
[folha 7f.]
7
vão no ocio, e na inutilidade incultivados, dando-Se com animação dos agricultores os
arbitrios pelos q.s elles devem Ser Restituidos a cultura.
Hê tanto mais certo, q’ não hâ, e q’ nem pode haver terreno esteril, e q’ Rezista a cultura
na prezença, e nas vantagens da boa industria, e do maior trabalho. Aquelles, q’ São
francos, e mais promptos em produzir, e ainda aquelles outros, q’ exigem algum menor
trabalho, e pouca, ou nenhuma industria, os temos Reconhecidam.te por bons; aquelles
outros porem, q’ pedem, e q’ demandão hum esforçado trabalho, huma disvelada
insdustria, huma previa despozição, e humas tentativas, q’ no Sentir do agricultor são
ociozas, Sô porq’ em hum anno não lavrarão, não Semearão, e não colherão duas vezes,
com abandono São com dizerção condenados a estereis, e a esta claSse ficão
SucceSsivam.te acrescendo todos aquelles outros terrenos da primeira ordem, q’ Sendo
optimos paSsarão a Suficientes, e de Suficientes a estereis.
ESses mesmos terrenos Reconhecidam.te estereis jâ pela Sua natureza, jâ pela Sua
mesma Situação, e jâ pelos effeitos do abandono, tudo de baixo de hum erro manifesto,
Se tornarão fructiferos, e cultivados, despenden-
[folha 7v.]
do-Se com elles hum maior trabalho, e industria, Sendo hum, e outro aplicado com
inteligencia, e de diverSos modos.
Seja a primeira das deligencias o entrar-Se no verdadr.º, e perfeito Conhecim.to de cada
hum dos terrenos p.ª Se ver, e Se obServar o q’ lhes falta, ou o q’ de mais elles em Sî
tem, o q’ não Sendo p.ª todos, Se fazia precizo hum inteligente, e experimentado
Inspector de agricultura pelo menos em cada huma das Comarcas, p.ª q’ pelo Socorro
67 desta boa inspeção conhecendo-Se a natureza, a qualid.e, e ainda mesmo a Situação
delles, destinando-lhes o genero da plantação, e da cultura com escolha, aprovando
huma como propria, e oportuna, e excluindo outra, como contraria, fizeSe mandar
ajuntar a elles alguma outra qualid.e de terra, e das diferentes argilas, e porçoéns
calcareas, q’ o tempira-Se, Sabendo todos, q’ deste tempero a tempo, em ordem e
proporção, ajudando, e Socorrendo huma p.e a outra, fermentando-Se todas entre Sî, o
q’ tudo verte em beneficio do Suco vigetal, hê q’ pode rezultar o Restabelecim.to, e a
perfeição dos terrenos.
Esta imistão, q’ tanto tem depreciza, como de neceSsaria, e de indespenSavel na boa
cultura das terras, a q.m o Camponez no meio da Sua Rusticid.e, e insciencia, e Sô
guiado pela experiencia lhe chama adubo, e corruptivam.te adubio, não hê na Sua praxe,
e desempenho de Suma dificuld.e, combinada a inação,
[folha 8f.]
8
em q’ estiverem os dous terrenos mais proximos, e ambos estereis por diverSos
principios; hum, porq’ Sendo todo argilozo, ou todo de huma terra calcarea, a Sua
desmarcada fortidão em gr.de grao Conforme, torra, dececa, e queima o germem da
Semente, Sem q’ ella jâ mais poSsa produzir e q.do nos esforços de produzir algum
arbusto SobreSahê, este mesmo, ou noSsa força produtiva Se abraza, ou q.do paSsa
avante, Sempre enfezado, pouco florente, e quaze Seco de lhe nenhum fructo Rezulta
pela devoração, q’ precedera, e q’ houvera do Suco vegetal, do q.l Sô Rezulta com a
experiencia o desengano, e a confirmação de esteril: Outro porq’ Sendo inteiram.te
Solto, arenozo, e constituido de huma terra de todo enfraquecida, Sendo tãobem Solta,
Sem q’ poSsa entrar em fermentação, e Se descobre paSsando a Ser comida pelos
paSsaros, e a esperdicar-Se, ou q.do esta Semente Se profunda lhe hê mais facil
apodrecer do q’ germinar-Se.
Nestas circunstancias hum, e outro Senhorio dos terrenos ociozos, e Reputados estereis,
e hum, e outro agricultor, tendo no dezengano a certeza, q’ lhe Serâ Sempre melhor, e
mais util dispender alguma industria, e trabalho, do q’ conServar ambos os terrenos
nesta perfeita inação, abandono, e inutilid.e, dando entre Sî as mãons por meio de
convenções com Rateio das despezas, ou Socorrendo-Se Reciprocam.te com as Suas
abegoarias no tem-
68
[folha 8v.]
po mais ociozo, em q’ a agricultura não exige o trabalho, e o intretimento do gado, dos
Carros, das bestas, e dos homéns do Serviço Rustico, m.to bem, q’ Sem o maior
encomodo, e Sem huma confiavel despeza Se podem esforçar no troco, e mistura igual,
e Reciproca de hum pelo outro terreno, e nesta continuação industrioza dentro de pouco
tempo, e de poucos annos, seg.do a extenção, hum, e outro Senhorio virão a ficar com
os Seos terrenos aperfeiçoados; paSsando cada hum de baldios a Capazes de Serem
cultivados.
Quando porem na contiguid.e não haja a concurrencia destes dous deFeituados terrenos,
q’ em iguaes neceSsidades Reciprocam.te Se Socorrão, então aquelle, q’ precizar deste
beneficio com independencia deste troco, mandará buscar o tereno daquelle Sitio, q’
mais Cómodo, e util lhe Seja, Sempre de baixo da certeza, de q’ a utilid.e Rezultante
m.to q’ mereSe este esforço, encomodo,, e despeza, pois q’ hê curta, e ilimitada toda, e
q.lq.r, q.do della Se fica Lucrando p.ª Sempre.
Para Se perceber a fundo a utilid.e deste arbitrio deveSe pezar, e conSiderar bem, q’ este
terreno infructifero, esteril, e descontinuo entregue a hum perfeito abandono
desgraçadam.te de nada no ocio elle aproveita a Seo Senhorio, porq’ na inprodução, e na
esterilid.e nem ao menos lhe Serve p.ª a pastagem do gado: Nestes tr.os Se pode
conSiderar toda, e q.lq.r despeza, ou ella Seja gr.de, ou pequena, como premio dado a q.m
o fez util, e fructifero, ou como hum tenue,
[folha 9f.]
9
e menor preço pelo q.l eSse mesmo terreno de novo fora comprado, em cuja barateza
ainda m.to, q’ vem a lucrar os Senhorios delles.
Annotação Terceira.
Sobre os terrenos fracos, debeis, ao q’ lhe chamão CanSados, indicando-Se o modo, e
dando-Se o arbitrio pelo q.l elles Se tornem ferteis, e cultivados.
Havendo terrenos, q’ Sendo compostos, e constituidos das porçoéns neceSsarias, das q.s
por Serem bem ordenadas entre Sî, a primeira vista Se espere huma boa, e perfeita
69 produção, e esta Se não conSiga por Ser debil, e fraco o terreno, ao q’ vulgarm.te lhe
chamão terras canSadas, e q’ por iSso as entregão a hum perfeito, e ultimo abandono, de
cuja dizerção nenhuma utilidade Se tira, e mais antes hum grande, e grave prejuizo da
mesma inação, em q’ elles Se conServão, então tirando-Se deSse Seo desamparo, em q’
Se achão, com trabalho, e com industria Se lhe farâ ajuntar, e acrescentar, a maneira de
q.m estruma, huma porção de terra argiloza, o q’ não Sendo ainda bastante, Se lhe
ajuntarâ de mais alguma Cinza, calice, ou cal, Servindo de regra, q’ obServada a
natureza, e a qualid.e do terreno pri-
[folha 9v.]
meiro, Sô a adjunção da terra argiloza, e calcarea a poderà Refazer, e vivificar por
effeitos de hum novo Recobro de forças, q’ Se exvahirão em as primeiras, antigas, e
precedentes produçoéns.
Neste Seo Restabelecim.to Se deve Sempre ajuntar huma p.e correspondente de estrumo,
de Sorte, q’ todo terreno antigo fique cuberto desta especie de beneficio; observando-Se
nelle huma bem graduada alternativa, e de hum tal modo, q’ encostando-Se,
aproximando-Se, e Sucedendo huns montinhos aos outros, venhão elles a cubrir com
altura toda Superficie.
Estando o Campo, e o terreno aSsim motizado, e cuberto, Se deverâ Lavrar a terra do
modo mais profundo, q’ poder conSeguir o arado, o q’ Se farâ por duas vezes no Seo
Comprimento e extenção, e terminado q’ seja este trabalho, o mesmo, e outro tanto Se
praticarâ atraveSsada, e transversalm.te a maneira de hum xadrez, de Sorte, q’ tudo bem
se misture com a terra do Solo, e fique pelo meio desta lavra humas pequenas Covas, e
huns novos montes, p.ª q’ nas covas Se poSsa Receber, e depozitar SuceSsivam.te as
aguas do inverno, e nos montinhos entranhar-Se a fresquidão do Sereno, o calor, e
aSsistencia do Sol, q’ farâ cortir, e fermentar entre Sî todas estas partes compostas, bem
intendido, q’ este beneficio todo deve Ser feito nos fins do mez de Agosto o mais
taradar, a espera das primeiras aguas do mez de Setembro.
[folha 10f.]
10
70 No mez de Janeiro, ou no de Fevereiro em dias Secos Se deverâ fazer outra igual
Lavra da terra do mesmo modo, o q’ Se repetirâ em o mez de Abril, ou de Maio antes
das ultimas aguas.
No decurSo do verão Sobre todo este antigo beneficio jâ Recebido Se tornarâ a fazer
outro em tudo a imitação do primeiro, e procedendo-Se antes das primeiras aguas em
outra Lavra dos mesmo modo; despois dellas, havendo tido a terra hum anno de
descanço, e de beneficio, Sendo então depois de Sua lavrada p.ª a Semeadura, ficarâ
perfeita, boa, e habil p.ª todo genero de cultura, e o Campo tê ali dizerto, e dezamparado
valendo hum bom, e conSideravel preço.
Por tantas vezes Se Repetirâ este beneficio na SuceSsão dos annos, q.tas elle Se tronar
enfraquecido, o q’ Serâ dificultozo, Suprindo-Se annualm.te com alguma especie de
amanho, Sendo o principal com alguma porção de estrumo, Rezervado, depozitado,
curtido, e beneficiado com economia do modo, q’ Se indica em a competente, e
posterior annotação.
Annotação Quarta.
Sobre o vicio, esperdicio, e falta de economia, q’ hâ e q’ Se observa em o noSso uzual
estrumo.
[folha 10v.]
Como o estrumo na agricultura Seja tão preciozo Como o ouro, e hum dos generos nella
do maior precizão, e por iSso mesmo de dificultoza abundancia pela Sua grande, e
Suma aplicação, e extração; elle na Sua conServação, depozito, augmento, e fabrico Se
faz digno de hum bem penSado arbitrio, e de todos os esforços da mais disvelada
industria.
Discorrendo-Se Sobre aquelle de q’ actualm.te uzamos, e Sobre o modo, com q’ elle Se
ajunta, se faz, e Se conServa de hum p.ª o outro anno, ou pelo menos p.ª o tempo
competente, obServamos q' elle hê o menos forte, o menos substancial, e o mais
imperfeito, q’ Se pode considerar; tudo p.rq’ q.do elle hê lançado, e junto a terra, q’ vai a
estrumar, alî chega destituido de todo Seo balSamo, suco, e força, pois q’ ella Se tem
inadvertidam.te esperdiçado, e de hum tal modo, q’ não duvidamos affirmar, q’ o
Remanicente delle Sem Socorro, Sem Cautelas, e Sem pervençoéns por Sî mesmo
salvo, Lançado na terra, vem a Ser huma especie de caniço arido, de Lixo, e de
71 folhagem Seca, e esta Sô miuda, trilhada, muida, e Solta, Sem q’ em Sî tenha a menor
Substancia, vindo a Ser q.do m.to huns Restos de estrumo.
Para entrarmos em a demonstração facil das noSsas affirmativas, e no perfeito
conhecim.to da grande perda, q’ de hum modo Se fabrica o estrume arteficial dos
vegetais, e q’ tãobem de hum certo modo Se ajunta, Se guarda, e Se dopozita todo
aquel-
[folha 11f.]
11
le outro, q’ ou Seja arteficial, ou natural, ou misto.
Quanto ao primeiro modo a experiencia nos enSina entre os Seos desenganos, q’
[emilhado], com q.l se faz o estrumo arteficial dos vegetais entre nôs, Sem q’ se lhe
ajunte alguma outra materia, q’ lhe dando o precizo Corpo em Sî Receba a Sua
substancia, e o q’, e o q.to elle tenha de preciozo, vem a Ser o Cortar, ajuntar, carregar, o
espelhar pelas estradas, (o q’ cauza huma peSsima publica Servidão), ou nos patios, e
currais dos gados, a exceição de algumas coretelhas Cobertas, indestintam.te hum grande
numero de carradas de mato, p.ª q’ este Seja trilhado pelos paSsageiros, e por todo
genero de Servidão publica, de q’ não podem despenSar os circunvizinhos, e os
viajantes de longe, ou pelos animaes, no q’ Se procede com rez conhecidos erros, q’ São
dignos de huma prompta emenda.
Primeiro, q’ Sendo trilhado, e moido o mato atê o estado de Ser Reduzido a tal, e q.l
estrumo, vindo as chuvas, q’ o [calão], e q’ o penetrão atê o Seo centro, por baixo,
oculta, e Sulapadam.te por huma especie de distilacão lhe vão Roubando com diverSão
todo Suco vegetal, e tudo q.to elle tenha, e poSsa ter demais estimavel, e de mais
preciozo, Sendo cómunicado, e entranhado na terra, cuja superficie o mato cobre, e
vindo com as chuvas as enxurradas, estas comSigo Levão huma, e a maior p.e delle,
fazendo com q’ elle Se espalhe, ou seja velôsm.te levado p.ª onde elle Se não faz
precizo.
[folha 11v.]
OS experimentados agricultores não tem deixado de conhecer, e de Reflectir com
Reconhecim.to da Sua vizivel perda, e prejuizo Sobre este primeiro erro; p.rq’ vemos, q’
72 elles p.ª Rezistirem as levadas das aguas na porta dos Seos pateos, nas partes mais
inclinadas dos terenos delles, e ainda mesmo em as publicas estradas tem feito
atraveSsar alguns pinheiros, q’ Rezistindo as enxurradas alî fação deixar, e Reprezar
aquella p.e mais gorSseira do estrumo, q’ elles a Seos olhos veem Surgir, com o q’ nada
Remedeão; porq’ a parte mais Substancial, e a mais Subtil delle vai unida, desfeita, e
incorporada na agua, a q.l não ficando, foge, e desapareSe, o q’ Se efetua, ou por Sima
da madeira atraveSsada, ou destilada, e Subtilm.te com diverSão, e perda aos poucos por
entre ella.
Segundo, q’ ainda q.do aSsim, e tanto não Sucede-Se, q’ as mesmas aguas Sô paSsando
por elle, Lavando-o continuadam.te, lhe Roubão toda Substancia, e aquella p.e mais
precioza, q’ elle tenha: Terceiro, q’ eSse mesmo uzo, e acto da Servidão publica, q’
inceSsnatem.te por Sima delle paSsa, hê bastante p.ª q’ elle aos poucos vâ
desaparecendo.
Quanto ao Segundo modo; quando dentro dos muros, dos pateos dos predios Rusticos, e
das herdades, e ainda fora delles Se vai Repondo, e guardando em monte eSse mesmo
estrumo arteficial, o outro natural, ou misto, q’ p.ª alî Se carrega, e Se transporta, por
mais alto, q’ Seja eSse monte, SuceSsivam.te elle Se deixa calar da
[folha 12f.]
12
agua da invernadas tê o Seo Centro, porq’ hê hum Corpo Súmam.te esponjozo; da hî Se
Segue, q’ estâ Sendo continuadam.te Lavado com outra tanta, e com a mesma perda da
Sua precioza substancia, e Suco, vindo este Remanicente, q’ Se Salva, a Ser
Semelhante, e quaze irmão do primeiro.
Annotação Quinta.
Do modo Como com economia Serâ guardado, Rezervado, e inSenSivel feito o estrume
Sem huma maior, e conSideravel despeza.
Sendo o estrumo na agricultura hum dos generos da primeira neceSsidade, eSsencialm.te
precizo, e por iSso mesmo o mais preciozo, na guarda, conServa, e fabrico delle m.to q’
73 Se deve disvelar hum perfeito, bom, e abil agricultor, Começando esta Sua empreza
pelo Sitio, Lugar, modo, e meio pelo q.l elle Se deve guardar, Ser feito, e fabricado, Sem
q’ Se diSipe, e Se experdiSe pelos meios, e modos, q’ ficão indicados, os q.s devem Ser
prevenidos, e acautelados com toda preciza economia, precedendo a tudo isto a certeza,
derivada dos principios estabelecidos, q’ a peSsa mais intereSsante, q’ poSsa ter q.lq.r
quinta, e fazenda Sempre deve Ser a Caza, Receptaculo, Sítio, e lugar, em q’ este
thezouro Se depozite, Se gu-
[folha 12v.]
arde, e Se fabrique, Sem q’ nos hajamos de esquecer do arbitrio, com q’ elle ao mesmo
tempo Se vâ com acrescimo manobrando.
Para hum, e outro fim Se escolherâ na quinta, ou fazenda proximo a principal Caza da
habitação do Colono hum terreno, [que] Seja menos apto p.ª agricultura, e não havendo
com eSse defeito, e incapacid.e Se lancarâ mão de q.lq.r outro na certeza, de q’ eSse
campo, ou espaSso não se esperdiça, e mais antes hê o q’ mais, e melhor Se aproveita.
Nelle Se farâ hum foSso, ou caldeira quadrada de oitenta palmos, ou ainda maior,
Segundo a grandeza da fazenda, ou quinta, o q’ Serâ arbitrario ao Colono, e de 20
palmos de alto, cujo desentulho Serâ aproveitado p.ª igualar o terreno da fazenda na
proximid.e do foSso, q.do isto não concorra, e p.ª tanto Se não faSsa precizo, Serâ o
entulho aplicado p.ª algum dos fins jâ indicados, ou p.ª os outros, q’ Se hão de indicar.
ESse foSso, ou Caldeira Serâ feito a medida das poSsibilid.es do Lavrador, bem
intendido, q’ q.to mais dispendioza, mais proveitoza p.ª os noSsos fins. Serâ todo plano,
do foSso lageado podendo Ser; na falta do Lagedo Ladrilhado de huns novos tijolos
vidrados na Superficie, q’ Se mandarão fazer p.ª
[folha 13f.]
13
este fim: na falta delle com o noSso tijolo ordinario; na falta delle calçado com pedra
preta, juntados, e cheos os intermedios, e os pequenos vaóns com cal de boa tempera, e
na falta com terra, e melhor com calice, como Se pratica nas noSsas uzuaes Calçadas, o
q’ tudo gradualm.te Se faz precizo, p.ª q’ o Suco, e o gaz do estrumo, q’ Se guarda, q’ Se
depozita, e q’ Se vai fazendo Se não divirta, Se não diSsipe, e Se não cómunique o Seo
mesmo oliozo com a terra, e p.ª q’ taobem por effeitos desta cömunicação na SuceSsão
74 dos annos em Seguim.to do q’ Se aproveita não Se faça m.to mais alto, e mais
profundo o mesmo d.º foSso.
Quando o Lavrador for destituido de poSses, ou p.ª me explicar melhor, não Se achar
com forças, p.ª acudir a agricultura, e a esta tão neceSsaria Obra, Se contentarâ
Simplesm.te com o foSso terreo Sem Ser guarnecido, como Se indica, Sendo bem
intendido, q’ delle Sempre Se tirarâ maiores intereSses no depozito, guarda, conServa, e
fabrico do Seo estrumo, do q’ procedendo-Se neste artigo a Revelia, Como atê agora Se
tem procedido, Sobre o q’ competentem.te jâ Se discorrera.
Os quatro lados do quadrado do foSso Serão acompanhados, e guarnecidos de paredes
de pedra, e cal, as q.s ao mesmo tempo, q’ Servem de Resguardo, p.ª q’ a Substancia, e o
Suco do estrumo com divertimento, e com diSsipação Se não cómunique com a terra
dos mesmos lados, Servem táobem p.ª q’ amparando a mesma terra delles por ocazião
das chuvas do inverno em a Sua continuação Se não precipite.
[folha 13v.]
Estas paredes nos trez lados da quadradura do foSso sempre vencerão o terreno externo,
Superior, e impinado, na altura de trez palmos, p.ª que Servindo de Resguardo, afaste, e
desvie precipitaçoéns, e outros m.tos SuceSsos. A Superficie da parede elevada dos trez
lados Serâ guarnecida de Retretes p.ª flores, ou p.ª Se semear nelles com Rezerva as
tenras plantas, que hão de Ser mudadas p.ª os canteiros de Rega, em cuja obra Se
guardarâ huma especie de declive, p.ª q’ do tanque proximo, Soltando-Se o anel de
agua, ella por Sî mesmo, Sem nenhum outro trabalho Se Regue.
Quando a Superficie das indicadas paredes em tudo isto Se não aproveite, Se farâ cubrir
com lages, e aSsentos de pedra, as q.s Servindo a hum tempo p.ª este fim, Sevirão
tãobem em ordem p.ª a guarda, e depozito das colhidas aboboras, q’ alî ficão a mão,
Como neceSsarias p.ª o Sustento dos porcos, as q.s devendo Ser Retiradas p.ª a Sua
conServa do humido terreno, e expostos ao Sol, e ao tempo, Se tirarão tão bem dos
telhados, q’ Se extroem por ocazião deste Serviço, e Sobre posto pezo.
Em hum dos angulos do Lado do poente haverâ hum portão fechado de largura de 6 a 8
palmos, e em Seguimento delle p.ª o foSso huma escala, ou Rampa, q’ dê descida, e
Servidão p.ª elle, e esta doce, e Suave pela q.l poSsa cómodam.te Subir, e descer hum
carro, e o mesmo gado, q’ alî Se Recolher. Esta Rampa Serâ calçada, e terâ tãobem o
Seo parapeito competente
75
[folha 14f.]
14
por aquella p.e, em q’ descendo Se dilata pela extenção do foSso.
No Lado do foSso, q’ fica ao nascente, ficando os mais lados francos p.ª a entrada, e
aSsistencia do Sol, na distancia de 20 palmos haverâ por igual em todo elle huma
pequena Rampa na altura de quatro palmos p.ª a praça, e p.ª o plano do foSso, e alî Se
correrão duas paredes; a Saber huma encostada a terra p.ª a Sustentar, e a outra na
distancia dos d.os 20 palmos, aonde ComeSsa [a baixa], e pequena rampa p.ª o foSso, e
esta parede terâ duas portas, huma, q’ dê Serventia a [legoaria], e outra, q’ dê Serventia
a estrebaria.
Na altura dito, a 12 palmos Se correrâ hum viga-me, e soalho, erescendo-Se as paredes
em todos os Seos Lados: por Sima de huns, e outros cómodos ficarão os palheiros em
huma altura competente, e estes com duas portas opostam.te nos topos, p.ª q’ de huma, e
de outra p.e Se [Saha] p.ª as terras; a saber huma por onde Se Recolha a palha, p.ª o gado
vacum, e outra por onde Se Recolha a palha, p.ª o Sustento das bestas Cavalares, Se as
houver. Da p.e, em q’ Se Recolher a palha p.ª o gado vacum haverâ na Correspondencia
da manjadoura hum alçapão, p.ª por elle Se lançar a palha preciza p.ª o Sustento delle, e
o mesmo, e tanto haverâ da p.e das bestas Cavalares, com
[folha 14v.]
divizão e Separação ao meio de hum, e outro palheiro, q.do precizo Seja.
Segundo estas dimenSoéns claro estâ, q’ das [tenas] p.ª dentro dos palheiros Se decerâ
de 4, a Seis palmos, o q’ hê conveniente p.’ milhor depozito, e guarda de huma e outra
palha. Na parede, em q’ ficão as duas portas Sobre a Rampa, q’ vai p.ª o foSso, por
Sima das referidas portas haverâ huma, ou duas janelas Rasgadas, seg.do as divizoéns
dos palheiros p.ª q’ por ellas, q’ andarão Rentes ao Sobrado, Se lançe p.ª o foSso o Lixo,
q.do os palheiros se varrerem. Nestes palheiros opostam.te em os Seos 4 Lados por Sima
das portas, e das janellas haverão 4 pequenos oculos, ou frestas por onde Refazendo-Se,
entre o ar, o q’ Se az precizo p.ª a boa, e melhor ConServação da palha.
No lado, q’ fica oposto a Rampa, q’ pelo portão dâ Servidão a Caldeira, e abegoaria,
Sobre pilares de pedra, e cal, ou onde madeiras Se correrâ hum [tilheiro] em toda Sua
distancia de largura de dez, a 12 palmos p.ª alî Se recolherem da chuva as cabras, os
76 carneiros, q’ alî pernoitão, e toda mais creação. Emcostado a parede do fundo de
baixo do tilheiro Se correrão os puleiros p.ª as galinhas, piruz V., e na ultima ordem de
Sima cazinhas p.ª pombos, o q’ Se pode Remedear, e com mais duração com
[agulheiros], feitos neSsa mesma parede, desde o Seo principio, o q’ Sendo bom p.ª o
verão, não dispenSão algumas Cazinholas de madeira p.ª o inverno.
[folha 15f.]
15
Encostado a parede do lado do poente Se aSsentarão duas, ou trez pios de pedra
neceSsarias p.ª Se lançar a comida p.ª os porcos, q’ pelo foSso andarão Soltos: Na
parede da Rampa maior se farão coelheiras.
Estando tudo aSsim mais, ou menos perfeitam.te construido, e prompto p.ª manobrar, e
cada huma das Couzas p.ª os Seos diverSos misteres, hê certo, q’ todos estes animais
trazidos, e conServados em hum ponto de união Sempre dentro do foSso, caldeira, e
[almoSega] são outros tantos fabricantes, q’ de dia, e de noite inSensivelm.te trabalhão
por conta do agricultor, e p.ª hum conhecido augmento, e fabrico do estrumo, e de dous
modos modos [sic], hum pelo q’, q q.to estercão, e outro pelo q’ andando, e movendo-Se
de Continuo moem, e desfazem o Lançado mato, tê com o preciozo alcalino das ourinas,
q’ ajudando a Cortar, e apodrecer velozm.te o mato, fermentão o estrumo, e lhe
entroduzem a p.e espirituoza, e volatil do Seo gaz.
Na Praça desta Caldeira Se lancarâ tudo q.to Se apanhar a mão a exceição das pedras
duras, e de dificil diSsolução, q’ os q’ forem moles, argilaceas, e promptas a
desfazerem-Se pelo acido das ourinas terão huma m.to boa aceitação, e aplicação no
augmento, e fabrico do d.º estrumo.
Não perderâ o vigilante agricultor o Seo tempo, e a Sua pequena despeza, Se no angulo
do foSso paralelo ao do portão, e maior Rampa fizer Construir hum pequeno forno,
como os do cal, q’ fique com a boca p.ª a caldeira, dentro do q.l pela p.e Superior, q’
iguala
[folha 15v.]
ao parapeito, vâ lançando algumas carradas dos oSsos de todos animais, ou pelo menos
aquelles, q’ Se for achando, encontrando, e ajuntando, no q’ Se comprehenderâ o
amago, ou Sabugo dos xavelhos, do mesmo modo alguma porção de pedra calcarea no
77 Sitios, em q’ a houver, o q’ Serâ facil, pelo m.to, q’ ella hê de comum, e Se a fazenda,
ou quinta for Situada nas proximidades do mar do mar [sic] Se aproveitarão, e Se
mandarão buscar p.ª dentro deste forno em bestas, ou em Carro as m.tas Cascas de ostras,
e de todo, e q.lq.r marisco, q’ nas praias Se achão com abundancia disperSas; em fim
neSse forno se hirâ depozitando tudo q.to tenha Resistencia a disfazer-Se, e apodrecer,
como hê a Sola, o carro velho, [Serraduras], os Cestos, q’ cabão de Servir, os Sabugos
das maSarochas do milho, as vergas dos molhos das [vides], toda especie de Caniço, o
q’ tudo Sendo intermiado com pinhas, a limpadura dos pinhais, e com os troncos dos
matos, q’ na Caldeira Se hirâ escolhendo, Se lancarâ fogo em o tempo Competente,
havendo as pervençoéns, de Se ter Sempre coberta a boca Superior do forno, p.ª o afaste
das humidades do Sereno, e das chuvas, q.do mais não Seja Senão com o mato, de cuja
manobra m.to q’ Se tirarâ p.ª o foSso, e p.ª ajuda do estrumo huma boa, e perfeita Cinza,
e misturada com ella huma gr.de porção de cal.
Todos os dias, q.do poSsa Ser, ou q.do menos em cada huma das Semanas, Se alimparâ
com paz, e com vacoiras tanto a abegoaria, como a Cavallariça, lançando-Se o estrumo
nàtural pela Rampa baixa, e esta calcada; p.ª o foSso, aSsim como por ella corre diaria,
e inceSsantem.te a ourina de hum, e de outro gado. O mes-
[folha 16f.]
16
mo Se praticarâ em Cada Semana nas parteleiras dos pombos, puleiros das galinhas, e
Coelheiras. Alî Se lançarâ o Lixo da Caza, o dos palheiros, q.do forem varridos, as
Cinzas, q.lq.r estrumos de outras p.es transportados p.ª aquelle depozito, e guarda; o
bagaço da azeitona, da uva, o Seo Retraco, e folhelho, q’ Sendo guardado, e depozitado
em as estaçoéns Competentes, Se hirâ por vezes diariam.te lançando em a pia dos porcos
p.ª Seo pasto, e Se,pre de manhaâ antes da Comida, p.ª q’ os animais da Cortelha por
elle mais entrem; as forças de todas as frutas, e ligumes, todo genero de [Subejjos]; os
troncos, e raizes indestinctam.te de todas as plantas, e com mais frequencia das tenras,
de q’ se Sustenta o lavrador, e as q’ se vendem; as folhas velhas deSsas mesmas plantas,
q’ todos os dias Sendo vizitadas Serão trazidas em gr.de Sestos com transporte p.ª a alma
Sega; o folhelho, e a limpadura das eiras; os fructos verdes, e engoiados, q’ não vão
avante, e os outros, q’ o vento varejando os lança por terra, e em huma palavra tudo q.to
com facilid.e o acazo offerecer p.ª Se transportar, ajuntar, e lançar, o q’ Sendo escolhido
78 pelos animais p.ª o Seo Sustento, o q.l Se tornarâ em estrumo, o remanicente
desprezado virâ a conSeguir o mesmo fim.
Para q’ seja augmentado o fabrico do estrumo o bom Lavrador terâ por perceito
inalteravel, q’ Socorra a industria, q’ em cada dia Se meta, e Se lançe na Caldeira no fim
do trabalho huma carrada de q.lq.r mato, e q.do iSso não poSsa Ser, ao
[folha 16v.]
menos Seja tarifa, q’ cada hum dos trabalhadores, e Serventes ao recolher tragão a
pouca Carga do mato, q’ puderem trazer.
Isto não é tão dificultozo, como a primeira vista pareSse Ser, huma vez, q’ houver a
percaução, e a lembrança de Se impôr ao pastor das Cabras, das ovelhas, e do gado a
obrigação, q’ no acto de o vigiar, e de o apascentar, Suave, e descançadam.te na ordem
do dia Se impregue, levando comSigo o instrumento neceSsario, no Corte, e ajuntam.to
do mato, p.ª q’ elle esteja prompto na ocazião, em q’ o Carro, e os transportadores
cheguem, dizendo na Sahida p.ª q’ Sitio Se destina a fazer em aquelle dia o Corte, e o
ajuntam.to delle.
Serâ huma jococid.e alem de Louvavel, q’ inculque indutria, e bond.e neSse mesmo
pastor, Se elle com exuberancia das suas obrigaçoéns entrar com disvello na economia
de fezer na ordem do dia huns pequenos molhos de mato, a imitação dos de carqueja, p.ª
no fim da tarde os atar, e os espetar nos xavelhos do Seo gado, trazendo como p.ª cada
hum delles a Sua cea, o q’ parecendo dificultoso, e estranho no principio ao gado pela
novid.e, dentro de pouco tempo habituado, elle mesmo jâ aCostumado ao transporte em
o espaSso medido Se aproximarâ voluntario a Receber a Sua tarefa, e deste modo Se
q.do o numero das cabeças talvez q’ Se dispenSe o transporte pelo meio dos Serventes, e
ainda mesmo dos Carros.
[folha 17f.]
17
Sendo de q.lq.r dos modos SuceSsivam.te na ordem dos dias da Semana certo o
transporte do mato, em hum dos dias Se farâ transportar huma carrada de boa terra, e de
vez em q.to de caliça, tendo Sempre preferencia, q.do haja, a do lixo, e moinho das
propriedades, q’ de novo se edefição, e Se concertão, em q’ vem a hum tempo a mistura
da cal, da terra, da Serradura, e do cisco velho, e novo da madeira, tudo p.ª dar hum
79 Corpo ao estrumo, e Receber em Sî a Substancia, e a p.e mais Subtil delle, q.do Se vai
fabricando, e não perderâ nem o trabalho, e nem a despeza Se em cada mez fizer
espalhar por Sima do carretado, e depozitado mato huma carrada de cal, e Cinza
fabricada no forno, ou de outra q.lq.r com esta mistura, e por este meio, modo, e Sistema
não tema o bom Lavrador de achar em Caza, e em arrecadaçãp p.ª Sima de 200 carradas
no fim do anno de hum bom, e perfeito estrumo.
Entre as Cinzas, Lixo, e engredientes, q’ Se deve aplicar a factura, e ao fabrico dos
estrumos Serão com economia aproveitadas as Cinzas, e o lixo dos ferreiros, as q.s em
Sî levão as fezes, as pequenas fagulhas, e a limalha do ferro, q’ Sendo lançadas na
Caldeira, por onde Corre a ourina do gado, e dos viventes, em q’ Se comprehende a do
homem, o acido della dissolvendo-os em ferrugem, esta emcorporando-Se ao estrumo
lhe darâ huma conSideravel, e indizivel fortidão pelo meio de hum 3.º Rezultado.
Igualm.te Se aproveitarâ com-
[folha 17v.]
preferencia o Lixo das carvoarias; e na ordem dos ingridientes, como o mais principal,
os Subejos, e os Remanicentes dos dos cortumes, p.rq’ com elles vem huma gr.de porção
de cal, na falta o Seo alcalino, os cabellos, q’ largão os coiros, huma imenSid.e de Casca
de arvores, o Sublime estrumo, q’ se lhe ajunta p.ª este fim, e mais do q’ tudo isto a
precioza colha, q’ de Sî largão os Coiros, e peles nos dias da infuzão, o q’ Sendo m.to
Substancial vai dar hum novo tom ao estrumo, q’ se fabrica.
Vem a Ser mais do q’ desmazelo, q’ o fabrico do tão neceSsario estrumo m.to Senão
adiante nos contornos da grande Capital de Lx.ª, tê aquella espaçoza distancia, donde
descem em carros os generos, os viveres p.ª o Seo Suprimento, e tudo aquillo mais, q’
p.ª ella indestinctam.te Se transporta; e igualm.te, q’ o mesmo, e tanto mais Se não
pratique com estreita, e plena obServancia na grande Longitude do Riba Tejo, em todas
as Suas circumvizinhanças de huma, e outra p.e, tê aquilles Limites donde os mesmos
Carros descem Carregados a procurar o facil embarque, do q’ transportão, fazendo-Se
no Retorno conduzir p.ª as fornadas Caldeiras, e foSsos ordenados o Lixo, e as
varreduras das Ruas de Lx.ª, cuja imundice metida em trabalho, e em depozito della
Resultaria hum perfeito estrumo, e deste conSumo, e extração alem de Se conSeguir
com facilid.e a limpeza da Ruas, Se fartava melhor os campos com felicid.e da a
80 agricultura do neceSsario estrumo, ainda q’ no principio Se impuzeSem condenações,
e multas aos carros, q’ no Retor-
[folha 18f.]
18
no, hindo vazios, não foSsem a hum certo Sitio, e monte Receber a Sua pouca, ou m.ta
Carga, o q’ Sendo estabalecido m.tos cazaes heverião, q’ por hum modico preço a
Compra-Se nas estradas por onde eSses d.os carros paSsaSsem:
Não se diga, q’ os animais, q’ morão, q’ vivem, e q’ pernoitão na Caldeira, e foSso
comem, destroem, e conSomem huma gr.de p.e do mato, q’ alî SuceSsivam.te Se vai
lançando, e depozitando, aSsim como tudo mais. Da quî Se Seguem não menos de
quatro comodos, e Conhecidas utilidades ao disvelado agricultor: 1.ª, q’ deste modo
ajuda a Sustentar huma porção de criação de animais da primeira neceSsid.e p.ª o Seo
Sustento, e p.ª Se valer delles, q.do lhe for precizo, ou p.ª Serem vendidos, q.do lhe Sobre,
o q’ entra na claSe de hum dos Rendimentos do predio:
2.ª, q’ eSses mesmos animais lhe vão calcando, moendo, e trabalhando o estrumo no
Seo fabrico:
3.ª, q’ elles posto q’ comão Suficientem.te tudo q.to lhes baste p.ª o Seo Sustento,
diminuindo por huma p.e o q’ ali no foSso Se lança, e Se tem, por outra, elles
continuadam.te estrumando vão Repondo, e deixando jâ fabricada, e aperfeiçoada huma
gr.de p.e daquillo mesmo, q’ Comerão, e com hum desmarcado exceSso de utilid.e em o
gado, q’ sahê a pastar por fora, p.rq’ de noite paSsando quaze toda em descanço trazem,
deixão, e Repoem o q’ de dia na pastagem comerão:
4.ª, q’ como na Caldeira, e almacega tudo Se lança, em cuja claSse entrão as cascas das
frutas, o folhelho das uvas, m.tas ervagens,
[folha 18v.]
folhas, e troSsos tenros, o q’ entrando em podridão, e fabrico quaze tudo desapareSe,
isto aSsim jâ não Sucede sendo aproveitada na Comida pelos animais, q’ dellas mais
gostão, e q’ a ellas mais Se entregão, e por este modo, e arbitrio se pode afirmar, q’ de
cada arrouba destes inSignificantes Restos, q’ comem, os q.s certam.te desaparecerião, e
com m.to mais atenção, e certeza em as faltas macias, e tenras, chegão os animais na
81 espiculação a Repôr, e a deixar cozido, prompto, e fabricado de 6 à 8 arrateis de hum
bom, e perfeito estrumo natural.
Não deve entrar em objeção, derivada esta da experiencia do estrumo natural dos
porcos, q’ Sendo de per Sî lançado em q.lq.r cultura a faz secar, não produzir, e não hir
avante, p.ª da hî Se tirar o argum.to, de q’ devem Ser Removidos da Cortelha, almacega,
ou foSso, o q’ hê de facil convencim.to, entrando-Se na Combinação de ideas, e estas
Sempre Relativas as m.tas inSurgentes utilidades:
1.ª, q’ como o estrumo natural destes animais hê Sumam.te quente, e forte por iSso
mesmo na Cortelha, e no depozito Se faz neceSsario, e precizo, como p.ª o tempero do
outro estrumo arteficial dos vegetais, q’ Sendo [nimiam.te] fresco, vem a Ser a vista
delle algum tanto fraco, e menos forte, e nestas circunstancias estâ elle tão Longe de Ser
prejudicial, q’ em cazo tal vem a Ser util, e neceSsario.
2.ª, q’ aproveitando alî aquelles animais tudo q.to podem a-
[folha 19f.]
19
proveitar, Se adianta com economia o Sustento, e o crescimento de huma porção de
gado, q’ vem a Ser a fartura do Lavrador no tempero de todas suas ervas, plantas, e
Legumes.
3.ª, q’ estes animais andando Sempre em hum continuado giro, e com vagarozo paSso,
melhor do q’ nenhum Outro quebra, corta, e moe o lançado mato, e tudo q.to ali Se
lança.
4.ª, q’ eSses animais não tendo as patas Razas, e mais antes angulares, e os dedos aSsim
dos dos pez, como das maóns pontudas, estas lhes Servem a hum tempo de certo, e
prompto instrumento, p.ª q’ com a ponta das unhas, quinas, e gumes doas angulos
milhor do q’ nenhum outro corte, e pique SuceSsivam.te, e de continuo o mato, e todo o
genero, q’ Se lance p.ª o fim do estrumo no foSso.
5.ª, q’ como hê propried.e neSses animais o foSsarem, Revolvendo elles no dia m.tas
vezes os compostos, q’ alî Se deitão p.ª o fabrico do estrumo, nelles acha o agricultor
huns incancaveis, e infaliveis Operarios, q’ Sô pelo Sustento trabalhão, militanto
Sempre com acrescimo, e com proveito do agricultor por todas Sobred.as indicadas
utilidades.
82 Por ultimo não entre em Refleção, q’ as aguas, q’ em Sî [Recebem] a caldeira em todo
Seo espaSso no decurSo do inverno, e ainda aquellas, q’ a ella vem ter dos telhados dos
palheiros, podem Ser no depozito prejudiciais ao estrumo, q’ Se estâ, e q’ Se vai
fabricando, p.rq’ eSsa mesma agua Se
[folha 19v.]
faz preciza p.ª cortir, desfazer, e amaçar os compostos, e os ingridientes, q’ ali vão
Sendo depozitados p.ª factura do estrumo, o q’ conSumindo-Se, e gastando-Se hûma das
Suas p.es, outra Secando-Se, e outra purificando-Se com o calor do estrumo tê ao ponto
da Sua Redução a terra, e cal, ainda vem a Ser tão pouca, q’ p.ª acudir-Se ao incendio do
mesmo estrumo por ocazião do gaz, e dos alcalinos, q’ Se ajuntão, e q’ a hum ponto Se
defecão, Serâ precizo ao agricultor na força do calor por providencia acudir-lhe de vez
em q.to com borrufos de agua transportada, o q’ tão bem Servirâ p.ª o milhor fabrico do
estrumo, em q’ Se continua, e Se vai proSeguindo.
Annotação Sexta
Em q’ se dâ hum novo arbitrio pelo q.l, e pelo meio de hum terreno arteficial com
economia Se poupem, e Se Reduzão a cultura todos aquelles espaSsos, q’ se achão, e q’
estão ociozos, p.rq’ os terrenos, ou São inteiram.te bravios, Soltos, barrentos, arenozos, e
tão fracos, q’ jâ não podem Receber beneficio algum algum com inutilid.e da imistão, ou
p.rq’ a Sua superficie Se ache impedida, e ocupada pela
[folha 20f.]
20
imenSidade de pedriscos, ou porq’ eSsa Superficie Se ache substituida pelo [calva] das
pedreiras Razas, q’ Se deixão ver, ou por aquellas, q’ posto q’ ocultas, existem Logo
abaixo da Superficie dos terrenos.
Quando Se obServar, q’ o terreno ou hê inteiram.te arenozo, cheo de huma imenDid.e de
pedrisco, e este da claSse dos vagos, solto, barrento, ou tão argilozo, e ainda terreo, e
este tão fraco, q’ Se conheça, q’ todo, e q.lq.r beneficio lhe vem a Ser inutil, e
esperdiçado, e dificultoza em todo cazo Sem proveito a imistão de q.lq.r outra terra
83 estranha, então pelo outro maior esforço do trabalho, e da industria Se tratarâ com
desempenho deste arbitrio fazer hum terreno superficial, e inteiram.te novo, conduzindo-
Se p.ª este fim de outra p.e huma terra, q’ seja de boa escolha, acumulando-Se esta ao
antigo terreno por q.lq.r dos indicados principios infructifero, ociozo, e inertil, e isto
pelo menos na altura de cinco a Seis palmos, bem intendido, q’ q.to mais alto for este
entulho, q’ Se lançar, e q’ Se conduzir, mais Seguro Serâ o desempenho deste plano, e
milhor ficarâ Sendo a propried.e do terreno.
Este modo, meio, e Sistema de Se aproveitar com economia, e com utilid.e conhecida os
terrenos estereis, infructiferos, arenozos, e cubertos de pedrisco, hê e deve Ser
extenSivo a
[folha 20v.]
todos aquelles outros, q’ por calvos, e descubertos nelles se deixão ver grandes Lapas, e
pedreiras, e ainda a aquelles outros Superficiaes, em q’ Logo abaixo, e Rente a elles
estão Como ocultas outras mais pedreiras, as q.s Sendo cobertas com o novo terreno do
modo indicado, jâ temos hum terreno novo, e hum espaço, q’ tendo estado no ocio, e na
inutilid.e, Se tornou a util, e acultivado.
A primeira vista bem Se deixa conhecer, q’ este modo do preparo dos terrenos não hê
proprio, e menos apto, e acomodado p.ª todo gênero de plantação, mas Sim, e tão Som.te
p.ª toda aquella cultura, q’ não depender de maior profundid.e; quero dizer, p.ª toda
cultura, q’ for Superficial, e nunca p.ª a plantação de arvores fructiferas, p.rq’ as Suas
Raizes, e Ramificações dellas procurando profundidade encontrarão a Roxa, a lapa, o
pedrisco, o mesmo velho terreno arenozo, e infructifero, q’ as farâ manter no estado da
improdução.
DispenSome de anunciar, e de individuar as diverSas culturas da claSse dsa
Superficiais, p.rq’ ellas São m.to bem Sabidas, e bastarâ lembrar, q’ ficão Sendo
Suficientes, e proprios p.ª todo genero de Legumes, de ervas, de batatas de grão, e entre
estes com grande preferencia p.ª a lavra, do trigo, do Centeio, da sevada, e do milho, q’
por não termos q.to nos baste Somos fornecidos por Nasçoéns estranhas, q’ nos levão,
Sem Ser a troco, no Re-
[folha 21f.]
21
84 torno o noSso preciozo Realizado, e em peSsoa, ou o Seo equivalente em letras
Cambiais, q’ tanto oprimem a noSsa Praça, Sem q’ nos demore a Refleção, de q’ q.do Se
Retirão vão carregados, e abarrotados de generos, os q.s Sô São Levados, e
transportados, ou q.do São pedidos por outros, q’ não intereSsarão em a Sua Carga
deixada, e conSumida; ou pelos noSsos espiculadores, q’ com expozição vão a entrar
em tentativas.
Tãobem eSses terrenos superficiaes, q’ com este arteficio podem, e devem Ser
construidos, com a economia perciza Se aplicarão, e m.to principalm.te aos maritimos, e
aos q’ São Sugeitos as inuncaçoens, q.do menos p.ª os pastos beneficiados, o q’ Sendo
desconhecido entre nôs temos gr.de falta p.ª a pastagem dos noSsos gados, do q’ talvez
q’ nos Rezulte a neceSsid.e das carnes, q’ pela maior população, e menor produção, e
criação dellas vão Subindo a hum gr.de preço, q.do aliàs no decurSo de 25 annos as
tivermos por menos 15r’ em arretel, do q’ taobem com infalibilid.e nos Rezulte pela
falta de gados o atrazam.to da agricultura, tudo p.rq’ este artigo, q’ hê digno de entrar em
objecto, não tem merecido os disvelos da noSsa industria, q’ teria por Regras antes do
Restabalecim.to, e abundancia deste genero: 1.ª, nunca matarem-Se vacas, novilhas, e
vitellas precizas p.ª a fecundid.e, e propagação do gado: 2.ª, nunca matarem-Se bizerros,
e vitelos, p.rq’ neSsa pouca id.e perdemos as arroubas a q’ elles São ResponSaveis pelo
futuro crescim.to
Havendo, ainda q’ Seja aos poucos, esta especie de dilatação de terreno como destino
das mencionadas culturas, e com m.to mais atenção na proximid.e das povoações
maiores, e ainda junto a outra
[folha 21v.]
q.lq.r, aonde os generos fazendo-Se precizos, conSumindo-Se Se poupão os transportes
da importação, e exportação delles p.ª mais longe, q.do não em dez annos, em hum
Ceculo, e nos Seg.tes poderemos pela força do trabalho, e da industria bem destribuida
adquerir perfeitam.te a noSsa [manumiSsão] com triumfo Sobre a ambição dos
estranhos, q’ nos olhão como p.ª feudatarios, e atê dependentes do proprio Sustento.
Não hê inteiram.te nova esta Lembrança de com acrescimo se fazer bom e util q.lq.r
espaSso ociozo pelo meio dos terrenos superficiaes, mas Sim derivada da experiencia, e
do mesmo, q’ jâ vî praticado no noSso Continente, ainda q’ Sem o dezejado effeito.
85 Na Serra de Monte Achique, vulgarm.te chamada a Cabeça, houve hum estrangeiro,
Comerciante da noSsa praça, chamado João Perret, hoje falecido, q’ alî m.to comodam.te
Comprara hum gr.de terreno, e este m.to pedrento. A pedra Solta, vaga, ambulante, e
ainda aquella, q’ elle pode mandar tirar com pouco Custo, e despeza foi aproveitada em
huns bons, altos, e fortes muros, com q’ ficou este terreno espacozo no seo circuito
fechado, e esta obra na Sua conSideravel extenção, e bond.e tirando-lhe as forças,
conSumio huma gr.de p.e do seo fundo.
As pedreiras firmes, e as Lapas por meio de [Surribaçoéns], e de terrenos, q’ fez mudar,
e conduzir, forão cubertos na altura de dez, a 12 palmos do modo, q’ deixamos
indicado, e p.ª Levar mais Se-
[folha 22f.]
22
gura a espiculação, e este arbitrio, pondo talvez em praxe o q’ vira, e obServara no
Reino, e Provincia do Seo natalicio, propondo-Se a q’ a terra vaga, Sobreposta, e
Superficial não foSse Levada pela chuva, pelas enchentes, e pelas aguas escorridas dos
montes, Seguindo as vertentes, e os vestigios das q’ abunda aquelle terreno, entre Roxas
pelo meio de abertura de valas as fez encanar, e gastando em tudo com comprehenção
de huma decente Caza, e m.tas Officinas curioza, e perfeitam.te feitas, bons 80$
cruzados, p.rq’ falacera não paSsara pelo disgosto, comeSado em vida, de ver vendida
esta Sua arteficioza fazenda por 21$ cruzados.
Este Seo projecto Sendo optimo poderia ter Sido menos dispendiozo, Se elle não Se
disvelaSe tanto no milhar, no mais forte, e no mais Sumptuozo: Se Se contenta-Se em
Se intrincheirar tão Som.te comvalados, fugindo a grande despeza dos dilatados muros
de pedra, e cal, com q’ Se feixou, o q’ Sô bastaria, e q.do m.to Levantando os de pedra
Seca com [emboço], e Reboque na extenção da estrada, q’ vai p.ª Mafra.
Tornou-Se-lhe de certo modo inutil este Seo gr.de trabalho, industria, e despeza pelo
genero da plantação, a q’ Se propoz em aquelle d.º arteficiozo terreno, no q’ Se
prejudicara o publico, p.rq’ a 35 annos a esta p.e entregando-Se disveladam.te a
plantação das Amoreiras p.ª o beneficio, e fabrico da Seda, obtendo do mesmo publico
3$ pez de Amoreiras entre as m.tas mais, q’ Se mandarão buscar a Italia p.ª a propagação
dellas, Sendo
86 [folha 22v.]
ellas alî plantadas nos primeiros quatro, e cinco annos nada houve mais florente, e nem
mais bem vingado, de forte, q’ entre elle, e os Seos amigos paSsava por huma especie
de devertimento hirem Se Rever em aquelles tenros arbustos, q’ m.to prometião.
Depois de 4, e 5 annos Se observou, q’ todos aquelles arbustos entrarâo a mudar de Cor,
isto hê de hum verde claro, a hum verde escuro, como Se vê em as arvores velhas:
observou-Se, q’ estes arbustos nada mais crescerão, e q’ Sô Se coparão, e q’ a m.tos
delles catindo a folha por ocazião do invero nunca jâmais a Recobravão, ficando no
mesmo estado atê Se cecarem de todo: Neste meio tempo dos 4, e dos 5 annos se
disvelou aquelle agricultor em fazer plantaçoéns de m.tos Ramos, derigindo-Se a
propagação desta nova planta em gr.de numero: Ocupou-Se em fazer huma gr.de
despozição, Cazaz, e parteleiras p.ª a creação do bixo da Seda, q’ a isto corresponde-Se,
e ao q’ Se projectava ainda plantar.
Nos dous annos seg.tes depois do engroSsam.to dos toros, e dos troncos Se obServou, q’
ora huma, q’ ora outra arvore entrou com gr.de força a cecar, e todas mais Seguirão o
mesmo destino. Entrando em obServaçoéns vî, q’ aquelle terreno Superficial, q’ era no
Seo principio de 10 a 12 palmos calando-Se, habatendo-Se, e condencando-Se com o
tempo, e com as chuvas em os SuceSivos annos Se tornara a 6, e a 8 palmos de altura, e
mandando arrancar huma das ar-
[folha 23f.]
23
vores jâ cecas, obServei, q’ a Sua Raiz principal era quaze da groSura do mesmo tronco,
e quaze Raza em a Sua extremid.e, o q’ bem me inculcava, q’ aSsim q’ a Raiz chegara
ao penedo, q’ houvera, Sem q’ o podeSe Romper, RetroceSso, o q’ dera. Cauza a
engroSsar a principal Raiz, o mesmo tronco, e a Copar-Se, o q’ m.to mais me certeficou
as m.tas Ramificaçoéns, q’ Se cortarão, e estas extenSivas a todo o circuito do terreno, e
da Raiz principal, aonde havia alguma extensão, e tortura pela terra adiante, como o.m a
procurava, o q’ nunca pode ser bastante, p.ª q’ as d.as arvores vegetaSem, nem ainda
com a conServação do estado, em q’ ellas Se achavão.
Desenganado aquelle colono com este mao SuceSso das Suas primeiras tentativas, de
pouco lhe aproveitava primeira Lição; p.rq’ posteriorm.te Se propoz a fazer huma quinta
mimoza; de pouco Rendim.to, e mandou p.ª este fim vir de fora, e com despeza os
87 enxertos das milhores frutas, e os fez plantar nos lugares aonde a agua lhe era mais
perene, do q’ ainda colhera m.tos fructos, ficando aquella quinta Reduzida a pomar, q’
Sô Se conServa a poder de amanho, de estrumo, da agua, e da vigilancia, e ainda q’ pela
Sua morte a deixaSe neste pê, com tudo pelo tempo adiante, a exceição das q’ se achão
plantadas em terreno mais profundo, espero a mesma Sorte, o q’ jâ vai sucedendo em
poder de 3.º com a desculpa de arvores velhas, q.do São novas, e Reformadas, tudo p.rq’
Se ignora a perfeita historia deste terreno, q’ vai a Ser desconhecida no maior
[folha 23v.]
numero dos annos, q’ cada vez mais vão decorrendo.
Pelos effeitos daquelle mao SuceSo, pelo q.to de mais SuceSivam.te espero, e com a
Recupilação do q’ fica dito não me proponho a entrar na Reprovação desta especie de
terreno arteficial, e Superficial; Sô me proponho com Rateficação a confirmar o q’ jâ Se
dice, q’ não Serve elle p.ª a plantação de arvores, cujas Raizes demandão, e pedem a
profundid.e do mesmo terreno p.ª a dilatação dellas.
Proponho-me Sim a demonstrar com a maior evidencia, q’ elle fica Sendo apto, e
oportuno p.ª a cultura, e Sementeria de todo, e q.lq.r ligume, e grão, fazendo Sempre
preferir aquelle, q’ seja da noSsa primeira utilid.e, e neceSsid.e; p.rq’ torno a dizer, q’ Se
aquelle agricultor Se contentaSe Sô com o cerco dos valados, e houveSe feito plantar
q.lq.r dos indicados generos, elle certam.te haveria tirado da Sua agricultura m.tas, e
grandes utilidades, e o Seo arteficio, e industria, alem de louvavel, teria Sido bem
Recebida, e a Seo exemplo por m.tos abraçada.
Não pareSa Ser de pouca atenção, proveito, e consideração este arbitrio, e o Seo
desempenho de Suma
[folha 24f.]
24
dificuld.e; a q.l vem a Ser nenhuma a vista das utilidades insurgentes, do uzo fructo
Rezultante, da fruição perene, q’ este terreno aSsim beneficiado entra a prestar ao bom,
e industriozo agricultor, e a vista tãobem do novo valor, e do maior preço, q’ entra a ter
este novo solo; porq’ vemos, q’ do pouco, ou nada da Sua primitiva estimação, ella
paSsa a valer mais, e m.to por dous principios: 1.º porq’ aSsim com acrescimo Se vê
beneficiado pelo meio da industria, q’ lhe dando huma nova forma, lhe deo hum novo
88 valor: 2.º, p.rq’ entrando a produzir, entra, e comeSsa a Ser grato, e benefico com os
fructos ao mesmo agricultor, q’ o beneficiara, e q’ o tirara da inercia p.ª a utilid.e
Não nos deve aSustar, e menos Retroceder o paSso com inofficiozid.e deste bem
concebido plano, e arbitrio o terror panico, nascido da preocupação, q’ nos poSsa
acometer na dificuld.e do desempenho deste pensamento, o q’ aSsim, e Sempre de
ordinario Sucede em todo, e q.lq.r projecto, q’ de novo entra a parecer; p.rq’ q.to elle tem
de novo, contra elle entra a inSurgir, e a Sofrer outras tantas opoziçoéns, e inSultos, q’
vem a Ser contraria a Sua subzistencia, promoção, e duração.
O q’, e o q.to fica dito com a maior facilid.e se pode verificar nos lugares contornos, em
q’ Se vão abrindo, e indireitando
[folha 24v.]
as novas estradas, havendo as percauçoéns, e a lembrança, q’ em vez de Se fazer com o
desentulho hum novo monte, ou hum Cordão de terra a borda, e a frente das estradas, o
q’ não dâ expedição as aguas em prejuizo dos Campos, e das terras entrixeiradas, q’
eSsa mesma terra Se transporte p.ª os Lugares, e espeSsos arenozos, cheos de pedriscos,
de lapas, e de pedreiras Razas, q’ Se deixem ver a Superficie, ainda q’ o Senhorio do
campo beneficiado haja de prestar algum Socorro, e ajuda nesta obras, q’ lhe vem a Ser
tão util, observando-Se neste beneficio do transporte do terreno vago, ou mesmo nas
Surribaçoéns dos montes mais vezinhos Sempre a indicada iguald.e de 5 atê 6 palmos,
Sendo bem intendido, q’ q.to mais alto poSsa Ser eSse novo terreno Sobreposto, e p.ª alî
conduzido, m.to melhor, e mais preciozo elle ficarâ Sendo, e de m.to maior valor p.ª Seo
Senhorio.
Quando porem neste Sitio, e contiguid.e de Semelhantes terrenos, e espaSsos calvos não
houver Rompimento, abertura, aplainação, e destrocim.to de estradas, donde a hum
tempo, e com hum Sô trabalho Se poSsa comodam.te transportar o terreno, ainda q’ toda
despeza do transporte Seja a Custa do Senhorio do terreno ociozo, aproveitando-Se tão
Som.te da Cava, e da promptidão do entulho, tratarâ de surribar algum pequeno monte,
q’ se ache mais pro-
[folha 25f.]
25
89 ximo, e mais vezinho, preferindo Sempre aquelle, q’ por medeação da Cava
desfazendo-Se o pequeno monte ou lingueta de terra o Campo Se dilate por aquella p.e,
q’ ocupa o monte, ou ligueta, fazendo-Se eSse campo no Seo nivel, q.do poSsa Ser,
igual, e Comunicavel ao outro, q’ lhe Seja proximo, e vezinho, e na falta pelo menos
com declive p.ª elle, p.ª melhor expedição das aguas.
Não concorrendo, e não Se podendo verificar em Circunstancias tais esta tamanha
utilid.e, q’ a hum tempo Se Realiza por dous diferentes modos: 1.º de Se alargar o
Campo pelo espaço, q’ deixa vago o pequeno monte, ou ligueta: 2.º o de Se unir, e fazer
igual ao outro Campo vezinho; então a todo custo em Carros, (diferentes dos q’ uzamos,
Como Se descreverâ na annotação Respectiva), cem bestas, ou de q.lq.r outro modo, Se
deve transportar o terreno de outra p.e, p.ª com elle Se formar o Solo Superficial de 5 a 6
palmos de altura, repetindo-Se m.tas vezes, q’ todo trabalho, e despeza Serâ bem
impregada neste aSsumpto, e desempenho pelo novo, e maior valor, q’ em Si Recebe
este Solo aSsim beneficiado, o q’ em concurrencia m.to q’ mereSe a pena, e o trabalho,
contrabalanciada a despeza com a utilid.e della Rezultante.
Para se facilitar no Seo desempenho este traçado plano, e p.ª q’ na execução delle mais,
e m.to Se poupe a despeza do transporte do terreno, entrando-Se em a preciza, economia,
Se
[folha 25v.]
entrarâ taobem na escolha de hum bom terreno proximo aonde profundando-Se Se
poSsa extrahir, e fazer conduzir delle a porção de terra, q’ neceSsaria Seja p.ª esta obra,
porem Sempre com as Cautelas, de q’ no Retorno Se faça transportar p.ª o centro da
mina outro terreno arrenozo, [sic] e cheio de pedrisco a propo.ção do q’ dalî Se leva, no
q’ Se continuarâ avante, e em todo aquelle espaSso, seg.do a neceSsid.e [o poder] na
conclusão, vindo a Ser o ultimo trabalho, q’ eSse mesmo lugar do FoSso venha a Ser
cuberto, e igualado com o mesmo bom terreno.
Annotação Septima
Sobre o arbítrio, e providencias, q’ se dão p.ª Serem aproveitados os terrenos arenozoz,
e p.ª q’ as areas não entrem, e não ocupem os bons terrenos, como Repelidas, e
afastadas pela construção de hum Cais arteficial, concluindo-Se como, e de q’ modo
com permanencia devem Ser construidas as estacadas.
90
[folha 26f.]
26
Esta especie de beneficio despendido no modo, e meio de Serem formados os terrenos
arteficiais deve Ser extenSivo a aquelles m.tos, e consideraveis terrenos, q’ Se tem, e q’
Se vão tornando ociozos pelas diverSoêns dos Rios, q’ deixão as Suas matrizes pelas
aluvioéns, cheas, correntes das aguas dos montes, q’ em tempos proprios engroSsando
os Rios, e fazendo tresbordar a agua p.ª fora dos Seos Limites, [fazem] trazer tãobem
huma imenSid.e de areas, q’ aos poucos, e SuceSivam.te entrando pelas terras as vão
cubrindo, e por meio de huma guerra Surda vão conquistando a melhor porção do noSso
patrimonio, e com tanto exceSso, q’ no decurso dos annos, e dos Ceculos chegão a
Suplantar Lugares, Villas, e Cidades.
Dous são os modos, e os meios de Serem prevenidos estes annuais inSultos, q’ por m.tas
vezes São Repetidos: 1.º pela encanação dos Rios, e abertura das valas: 2.º Pelos Cais
arteficiais, fazendo-Se estacadas intricheiradas, e fortificadas com a plantação de
algumas arvores, q’ as faça com permanencia, q.do não perpetuas, duraveis, Como São
Sobreiros, Salgueiros, alamos, choupos, vimes, e outras m.tas, as q.s produzindo Se
poSsão conServar, p.ª q’ havendo este Resguardo, q’ afaste, e q’ Rezista a entrada da
agua das enchentes, tãobem afaste a entrada das m.tas, e continuadas areas, q’ ellas
arrastão, o q’ Sendo aSsim feito, Logo, e Sem demora Se deverâ principiar o entulho do
terreno arenozo, q’ Sendo con-
[folha 26v.]
quistado pelas inundaçoéns Se acha ociozo, e perdido, e m.to mais pela franca entrada, e
novas conquistas Se poderâ perder, não havendo estas pervençoéns.
Serâ feita a estacada aSsim plantada em duas ordens, porem Sempre desencontrada
huma da outra, tendo a largura de 6 a 8 palmos; entre huma, e outra estacada Se hirâ
lançando terra, q’ não Seja arienta p.ª não Ser disfeita, e levada pelos primeiros, e
SuceSivos impetos da agua, e neste fabrico do Cais arteficial nos intermedios com a
terra Se hirâ lançando alguma pedra com advertencia, de q’ q.to mais groSsa for melhor,
e encostado a huma, e a outra estacada pela p.e anterior a ella Se hirâ lançando em a Sua
extensão, e isto tê a altura da estacada, alguma madeira, e paos Compridos, e
intermeados ao longo, q’ mais, e melhor Se conServem Suplantados, e estendidos na
91 terra, e na humid.e, no q’ poderão ter a premazia os noSsos pinheiros, tudo p.ª q’ a
trinxeira, e cais artefical mais se forte fique, o q’ igualm.te Se praticarâ encostado a
primeira Linha da estacada, q’ fica da p.e do tereno, q’ de novo se ha de formar Sobre a
arca, q’ ocupara o antigo, e p.ª q’ eSsa trinxeira, estacada, e cais arteficial ganhe
equilibrio p.ª Sustentar a terra do novo terreno, q’ a ella ha de Ser encostado, e p.ª q’
taobem a corrente das aguas nella logo Se não impregue, Se farâ huma Rampa, escala,
ou escarpa da estacada com declive p.ª o Sitio, ou lugar do Rio em q’ Se espera a
enchente, ou levada, a q.l Serâ Refeita, e Re-
[folha 27f.]
27
parada em todos os annos.
Feita do Sobred.º modo, e com a maior perfeição na frente a estacada, trincheira, ou cais
arteficial Logo, e primeiro Se comeSarâ a entulhar da estacada p.ª dentro, e Sempre por
toda Sua direção, e extensão, p.ª q’ este entulho encostado ao parapeito em ordem,
dando huma nova força, e hum bem conhecido Reforço a trinxeira, fique, e esteja
prompto p.ª Rezistir a q.lq.r inundação, e inxente, e p.ª q’ tãobem interiorm.te Sustente o
equilibrio da Rampa exterior, depois do q’, jâ com este afaste, com maior descanço Se
continuarâ no entulho do Remanicente do terreno arenozo, espraiado, e cheo de Lodo.
Adverte-Se primeiro, q’ imprehendendo-Se huma obra desta natureza, e tão util, em
hum anno, ou em dous Serão metidas, e plantadas em verde, e m.to melhor Serâ com
algumas Raizes as estacas, q.do mais não Seja de arvores Silvestres, p.ª se dar tempo a q’
ellas peguem, e comoSem a vegetar: Adverte-Se Segundo, q’ estando firme, e florente
huma, e outra estacada, Como Se dezeja, e se faz neceSsario, de 4 em 4 annos, ou q.do
mais precizo for, se farâ hum corte em toda Sua Ramage em os tempos oportunos, do q’
Rezultarâ não menos de trez utilidades:
1.ª a de não fazer Sombra a eSse mesmo terreno arteficiozo em prejuizo da produção:
2.ª a de q’ com o corte mais Se engroSarão os troncos, e Se profun-
[folha 27v.]
darão as Raizes, o q’ verte em maior Segurança, duração, e perpetuidada das mesmas
estacadas:
92 3.ª, a de Se aproveitar deste modo, e SuceSivam.te a Ramage p.ª o estrumo, e a lenha,
de q’ temos tanta falta:
Adverte-Se 3.º, q’ nesta empresa, aSsim como no desempenho de todos os mais
arbitrios, não nos deve esmorecer a lembrança, de q’ os Rendim.tos, e os lucros não
correspondem a huma tamanha despeza, propondo-Se a Regula-los pelos primeiros
annos, q.do aliàs em todos estabelecim.tos Sempre Se Regula a conta, e o calculo pelo
tempo, e espeSso de dez annos, no q.l Sempre entra por exação a melhoria, e o preço
Real da Couza, q’ se fizera de hum novo, e maior valor.
Este artigo, aSsim considerado hê de huma gr.de monta, e de huma consideravel utilid.e,
medida esta por todos os Seos Lados: 1.º, q’ se poupa hum terreno ociozo, e inutil: 2.º,
q’ hê hum dos modos de Se economizar o noSso patrimonio tão preciozo, q.l hê a terra:
3.º, q’ esta por este dos generos, de q’ nôs mais precizamos, conSeguindo-Se alem da
independencia do Socorro estranho a barateza delles, do q’ hê inSeparavel a abundancia,
e a fartura: 5.º, q’ por este meio, e modo Se Reziste a q’ pela entrada, e aceSso franco
das aguas, e das areas não Se perca, hindo avante a conquista, maior porção de terreno,
do q’ aquella, q’ jâ Se acha perdida no ocio, e na inutilid.e, alem daquella ou-
[folha 28f.]
28
tra, q’ tem desaparecido nos escalvados, por onde o mar entrando, e as aguas aos poucos
Se dilata na esperança, e na poSse, em q’ Se confia de mais se dilatar, o q’ bem poderâ
Servir de exemplo entre outros o Rio [Mondego]: o q.l vizivelm.te Sulapando
[maraxoéns] de terra, q’ nelle Se sepultão, vai SuceSivam.te fazendo Seo o gr.de, e
famozo Campo de Coimbra.
Hum terreno, ou espaSso desta natureza de todo perdido, e entregue no ocio a hum
inteiro abandono pareSe, q’ na Sua desgraça merecendo as primeiras atençoéns, deveria
Ser dado Sem onus de foro, ou de pensão com toda facilid.e, e franqueza a toda aquella
peSsoa industrioza, q’ se propuzeSe a querer beneficiar; porq’ a despeza do beneficio
m.to q’ vem a vencer o tenue preSso do Seo quaze nenhum valor, vindo todos nôs no
comum da [Curatela] a lucrar por meio deste novo contrato, Levando como certo o
Suprimento de todo, e q.lq.r [apuro] q’ elle pode-Se, e entra-Se a produzir!
voluntaria, deveria Ser voluntaria, e neceSsaria na prompta enrtega de Semelhantes
terrenos, e ainda mesmo de todos os mais Sobre ditos Sem a menor penSão, aos
93 industriozos agricultores, os q.s tendo Sido poSsuidos pelos [directos], e primitivos
Snr.es, estes ou por negligentes, ou por impoSsibilitados os não tem podido, e nem
querido cultivar, contentando-Se Sô com a vão, e prejudicial gloria de os poSsuir na
inação, q.do aliàs não hâ, e nem poderâ jâmais haver hum Legitimo,
[folha 28v.]
e justo poSsuidor, do q’ aquelle, q’ tirando o terreno da inercia, e do abandono o tem
beneficiado, e porq’ em noSso prejuizo não nos deve de morar os mal intendidos
principios, a estreiteza, e a Subtileza da Dir.to, de q’ ninguem deve Ser privado, e
desapoSsado do q’ hê Seo, Servirão de optimas Regras a eSse Respeito.
Primeira, q’ havendo a Couza, e a utilid.e publica no Cazo daquelle abandono, e de
Relição, q’ esta deve prevaler a particular, e ao vão Caprixo: 2.ª, q’ aquillo, q’ me não
faz mal, e a outros aproveita, facailm.te, e de boa vont.e Se deve conceder, e permetir: 3.ª
q’ não hâ modo, e meio mais bem Lembrado, e escogitado de Se promover a
agricultura, do q’ Liberta-la de foros, de medidas, de penSoens, e de laudemios, ficando
Sô a justa [Ciza] por Ser Rendas do Estado, q’ tem Suas aplicaçoéns: 4.ª, q’ todos os
Senhorios de Semelhantes terrenos impoSsibilitados, ou negligentes Serião primeiro
Requeridos com huma especie de Cominação e de [prescrio] maneira Sobre d.ª, ficando
franco Requerer q.lq.r p.ª Sî, na certeza de q’ os bens desta natureza, Sendo aSsim
conServados, e detidos na inercia, e na inutilid.e nem aproveitão aos Senhorios, nem ao
publico, nem a Socied.e, e nem o 3.º
Contrariam.te Se poderâ Reflectir, q’ todas as providencias expendidas Sobre a
Construção dos Cais arteficiais, e das estacadas com a plantação de arvores m.to q’
poderão Ser provei-
[folha 29f.]
29
tozas na Rezistencia da agua doce, e dos montes, q’ ocazionão as cheas, e a entrada das
areas, o q’ não poderâ Ser util, e verificar-Se na entrada das aguas do mar, as q.s
trazendo areas, e Sulapando os terrenos tãobem conquistão, tudo p.rq’ na contiguid.e do
mar não podem as estacadas Ser de arvores productivas, q’ alî Se plantem.
Neste cazo entrando-Se nos esforços do degredo do mal, e nas prevençoéns, de q’ elle a
mais não vâ, e ainda mesmo Recobrando-Se o Campo perdido Se farão as estacadas do
94 modo Sobre d.º com estacas Secas, e não plantadas, devendo-Se no emtanto p.ª
Semelhante fim entrar-Se na descuberta com disvelo das madeiras, e arvores, q’ podem
florecer, e vegetar, Sendo banhadas pela agua Salgada, ainda q’ foSse por meio de hum
bom estabelecido premio, e com m.to boas esperanças Se pode entrar em as […] dos
[Manaus] arvoredo ma- […]
OS q’ não forem huns verdadr.os amigos da Patria, e os q’ não tiverem hum perfeito
conhecim.to do Mundo cultivado, e a verdadr.ª idea do ultimo ponto di perfeição, e de
adiantam.to, o q’ elle ainda pode chegar pelo meio da industria, e do trabalho, a q’ Se
poupão, Lerão estas noSsas annotaçoéns com huma especie de irrizão, ou pelo menos
inSenSiveis ao Patriotismo, e ao bem Publico com-
[folha 29v.]
hum Criminado indeferentismo; tendo, e conSiderando por Superfluo, por
desneceSsario tanto, e tão desmarcado trabalho, p.ª Se conSeguir huma Couza, e humas
certas porçoéns de fructos, q’ no Seo penSar São de pouca conSideração, perSuadindo-
Se, q’ ainda Sem elle os estão poSsuindo, e desfructando na inSenSibilid.e; e na falta do
ultimo, e do perfeito conhecim.to do mal, q’ experimentão.
Sirva-lhe p.ª Seo desengano de primeiro, e de unico argum.to, /preterindo por brevid.e
outros m.tos/, destructivo das Suas danozas preocupaçoéns, de espelho, e de famozo
exemplo a mercantil Olanda, Nasção Florente, q’ contando poucos ceculos de
estabelecim.to, trabalhando em conServar, em economizar, e em dilatar o Seo terreno, no
afaste p.ª conSeguir o Seo augmento, tê fazendo guerra ao mar, ella Se vê farta, e com
tanta abundancia, q’ nos estâ Suprindo com m.tos, p.ª não dizer com todos dos Seos
preciozos generos, q’ lhe Subejão.
Annotação Oitava
[folha 30f.]
30
Sobre os Mangues, arbusto maritimo do Brazil, indicando-Se, q.do mais não Seja, senão
por tentativas, os meios, aos modos pelos q.s elles podem Ser transportados, e plantados
em Portugal, concluindo-Se com as utilidades, q’ Se poderâ tirar do transporte deste
95 arbusto, e analogas, ainda q’ com mais proveito, a aquellas mesmas, q’ Se tirâo em
aquelle Continente.
Em todas as grandes, extenSivas, e dilatadiSsimas praias daquelle vasto imperio, e
precioza Conquista, com m.to mais frequencia, e abundancia em as margens dos m.tos,
grandes, e extenSivos Rios, q’ tanto na distancia de legoas por ella Se entranhão, em
todas aquellas p.es, q’ Sendo, espraiadas São lodozas, e ainda mesmo nos contornos
dellas, em a terra firme, barrenta, e vermelha, aonde Razas por oCazião das aguas vivas
em cada hum dos mezes o mar a mais Se avança, dando entrada em maior espaSso a
agua Salgada, Sô porq’ deste modo menSalm.te São banhados os Mangues, alî Sem
amanho, Sem cultura, e Sem industria espontania, e voluntariam.te nascem de continuo,
e SuceSivam.te hum gr.de
[folha 30v.]
numero destes arbustos, os q.s por iSso mesmo os chamamos arbustos maritimos.
Como pois de huma, e de outra p.e dos m.tos, e grandes Rios daquelle famozo continente
este genero de arbusto maritimo hê continuado, e Constante, em a Sua geral produção, e
esta extenSiva tê aonde o mar pode chegar com latitude na prescripção dos Seos limites,
em todo este espaSso com comprehenção dos espraiados Lodos Se forma huma denSa, e
vistoza mata, q’ dâ com apoio creação a m.tas aves, e animais, q’ Sendo Rasteiras, e não
volateis Se Retirão, e Se mudão por experiencia; q.do as aguas Lunarm.te crescem, e por
cauza da Sua denSid.e, altura, e dilatação a mesma d.ª florente mata faz com q’ os Rios
Se não vejão ainda de p.es Superiores, donde Se ademira, vendo-Se p.e das velas das
embarcaçoéns, q’ por alî navegão nas enchentes das marês, marcando, e discrevendo os
Rios, parecer, q’ eSsas mesmas pequenas embarcaçoéns navegão pela terra Rapida, e
velozm.te.
Esta especiê de arvoredo por m.tos annos, q’ conte de existencia nunca jâmais excede de
40 a cincoenta palmos de altura, e a maior groSsura do Seo tronco vem a Ser como a da
mais groSsa vara de Castanho, havendo porem pela maior p.e m.tos troncos da groSsura
das varas ordinarias, e finas do mesmo Castanho. Cada huma destas arvores, q’ nunca
nascem abastecidas, ao pê de Sî
[folha 31f.]
96 31
tem hum, ou m.tos fradores, em tanta abundancia, q’ m.tos vem a Ser os Mangues
pequenos, e com m.to mais frequencia em aquellas p.es, como no longe, e fim das praias,
aonde o mar nas enchentes menos Se demora, no q’ Se obServa, q’ q.to mais esta arvore
vem a Ser, e a estar Chegada ao mar, e por ella mais constantem.te, e com maior
aSsistencia banhada, m.to mais florente, e crescida vem a Ser cada huma destas arvores.
Na distancia de trez, e de quatro palmos do Seo tronco Sahem Como espias p.ª o lodo,
alem da Raiz principal, trez quatro, ou mais finas Raizes, q’ não excedem na groSsura
aos arcos de barril, e as mais groSsas, Como os de pipa, as q.s m.to q’ Segurão cada
huma destas arvores.
A madeira deste arvoredo hê precioza, tanto p.rq’ ella hê m.to forte, como m.to fiel, o q’
bem Se vê por amostra em a madeira de cada hum dos noSsos fuzos: della Se pode
extahir a mais fina, e firme tinta em beneficio tê das noSsas fabricas de estamparia: A
casca dos Mangues em aquelle continente, q’ corresponde aquî a do Sobro, e do pinho
Se aproveita Sem mais beneficio p.ª tingir as m.tas Redes de pescar, e nos cortumes dos
coiros, donde provem Ser chamada a folhas daquelle Pais, folha vermelha: dos troncos
mais iguais, e mais bem tirados, e finos em proporção com escolha se extrahem as varas
p.ª as m.tas embarcaçoéns, e canoas, e ainda mesmo p.ª nellas Serem atadas as velas de
humas, e outras: dos
[folha 31v.]
mais groSsos, e dos mais Reforçados se aproveitão, e Se extrahem os milhores varaes
das [Seges], q’ ali Se uzão, e q’ p.ª Portugal São Remetidos, e mandados; os esgalhos, e
a madeira mais fina, e a mais delgada aqui alem da Continuada factura dos Luzos, Se
aproveitão em os melhores Raios das Rodas das Seges: a mesma folha deste arvoredo
deitada de enfuzão tinge: eSsa mesma folha hê m.to Semelhante a do loiro, ainda q’ mais
incorpada, e alguma Couza mais Redonda: este arvoredo hê m.to groSseiro, e por iSso
mesmo m.to mais Robusto: Os Senhorios delles mais discretos os desbastão, e os mais
inerteis [acito] os cortão, e os levão p.ª o fogo, e p.ª as lenhas dos Seos fabricos.
O modo, e o Sistema de Ser transportado p.ª Portugal este genero de arbustos maritimos,
tão neceSsarios p.ª o desempenho dos noSsos fins, e projectos dos cais arteficiaes, e das
estacadas firmes, e florentes, na certeza de q’ jâ vegetão Sendo banhados pelo mar,
posto q’ em Paiz estranho, ao meo penSar, q.do mais Seja, Senão por tentativas
97 derivadas da experiencia da Sua mesma existencia, do omni modo, e generalid.e da
mesma agua Salgada,, do tosco, Robusto, e forte do mesmo arbusto, não poderâ Ser
outro, Como o primeiro, e o mais facil, Se não pelo meio das Sementes, q’ Se mandem
buscar p.ª este fim, pois q’alî Se observa, q’ cahindo ella em ocazioéns de baixa mar,
entranhando-Se pelo lodo,
[folha 32f.]
32
terra, e area dão ocazião a nascer Sem cultura, e Sem o menor trabalho aquella
imenSid.e de arbustos desta especie.
Ora feito aSsim, e tanto Sucede Sendo tudo entregue a hum mero, e puro acazo, Sem a
menor industria, vigilancia, e cuidado, como m.to mais não Se deve esperar de huma
Sementeira Regular, industrioza, e da propagação deste arbusto, em q’ nenhuma
Semente Se perde, Sendo de propozito metida, e plantada na baixa mar, e com descanço
por todas aquellas p.es, aonde chegão as maiores aguas, tudo com precedencia de huma
pozitiva cultura.
Para Se levar neste artigo mais Segura a espiculação, e a tentativa, confiando-nos m.to
da Robustez da arvore, do groSeiro desta plantação, e Semeadura, da identid.e, e
generalid.e da mesma agua Salgada, faltando-nos Sô a combinação entre Sî dos
diferentes climas, Serâ acertado, q’ eSsas Sementes, aSsim como os mesmos arbustos
Sejão metidos no lodo, e nas p.es, em q’ o mar alcança, em diverSas estaçoéns do anno,
Sendo a mais preferida Sempre a da primavera, e ainda mesmo em o estio, p.ª q’ do
modo, q’ nos hê poSsivel procuremos a ardencia, e a correspondencia do clima pelo
menos no principio da plantação, e Semeadura deste arbusto, ocazião em q’ ella Se farâ
tanto mais neceSsaria p.ª a Sua primeira vegetação.
Alem de Se
[folha 32v.]
Ententar por este meio, e modo a propagação deste genero de arvoredo, q.do não baste,
e não Surta o dezejado effeito por ocazião das Sementes introduzidas, e depozitadas no
lodo, e nas mais p.es indicadas, Sem q’ se dê a espiculação por perdida, e por
desanimada pelo nenhum effeito do Rezultado de hum Sô anno, devendo-Se aliàs
continuar em alguns mais, e por diversas p.es do Reino, tê com variação de outras novas
98 Sementes, mandadas buscar de diversos Sitios do Brazil p.ª este fim, estendendo-Se a
tentativa atê aos termos, e as circunstancias de Se mandar buscar eSsas Sementes mais,
ou menos secas, mais, ou menos maduras; q.do depois de poucos annos Se tire o
desengano da inprodução, no Brazil em Caixoéns cheos de Lodo Salgado Serão
[abucelados] hum proporcionado numero de pez destes arbustos, q’ alî hâ com tanta
abundancia, os q.s duas vezes no dia a imitação de humas mares arteficiaes Serão
banhados, e enSartados de agua Salgada, q’ na viagem hê prompta.
Este transporte dependendo de alguma curiozid.e, e Sendo digno de hum espirito
indagador, e propagador, vem a Ser de huma pequena despeza, e de nenhum prejuizo ao
Navio em o Seo frete, porq’ o Caixão Se porâ firme em huma das amuradas ao pê de
algum dos [embornaes] p.ª a expedição da agua Salgada, q’ o Caixão verter, e dentro
delle com o lodo, e com os arbustos Se hirâ abaulando em gr.de, e proporcionado
numero, e q.do de manhâ Se lava, e Se agua o convez, e a
[folha 33f.]
33
tolda Serâ elle cheo de agua Salgada, q’ Sendo prompta não custa dinr.º, e não diminue
a aguada do Navio, o q’ outro tanto Se Repetirâ de tarde.
Quando deste Segundo arbitrio não Se tire o dezejado effeito, o q.l pareSe Ser infalivel,
temendo-Se, e dando-se algumas providencias, p.ª q’ a continuada aSsistencia do Sol
não prejudique a este arbusto Resen tirando, e mudado, haverâ a cautela de Ser o caixão
alguma Couza alta em todos os Seos lados, e com Suficiencia p.ª q’ o lodo Sô ocupe a
metade da altura delle, e o Remanicente pela folhagem, e pequenas Ramas deste
arbusto, Sendo tudo ordenado de hum tal modo, q’ o caixão Razam.te Se poSsa cubrir
com Sua tampa nas ocazioéns da maior intenção do Sol, e q.do isto não baste, e a
descuriozid.e aborreça tanto encomodo, em o mesmo Caixão deitados Se hirão pondo
estes pequenos arvoredos com camadas de lodo, no q’ Se continuarâ tê a Superficie, e
boca do Caixão, o q’ tanto, e o mesmo Se poderâ praticar Sendo elles postos em pe no
mesmo Caixão, cubrindo-Se de lodo Salgado, e deitando-Se nelle diariam.te com
abundancia agua Salgada, e alî como em huma facil conServa Serâ transportado mais
groSseiram.te, e Sem maior encomodo esta especie de arbusto. Tãobem Se poderâ tentar
eSse transporte, sendo os pequenos arvoredos no Caixão acamados, e cubertos de Sal,
99 porq’ ao tempo, q’ se ocultão do calor do Sol, alî partecipão da humidade Salina, e da
fresquidão do mesmo Sal.
Levando-Se
[folha 33v.]
ao ultimo ponto este noSso intento, q.do a groSsaria dos embarcadiços Rezista a este
facil modo de transporte, pela precizão, q’ temos delles, Se tentarâ pelo menos, q’
Sendo feitos huns molhos de m.tos pez destes arbustos, sejão huns metidos, e lançados
na area da bomba, aonde Sempre todo Navio fazendo, a junta agua Salgada, a q.l, ou
mais, ou menos Se Refaz SuceSivam.te, ainda q’ Se extraha pela bomba, e Sejão outros
atados, e metidos com a maior Segurança com as Raizes p.ª baixo na grade, ou meza q’
fica, e estâ firme no beque do Navio, e de hum tal modo, q’ q.do o Navio dê a Sua arfada
continuadam.te sejão eSsas mesmas Raizes banhadas, p.ª q’ o arbusto Sempre Se
conServe Sombrio, e florente, q.do tanto Se poSsa conSeguir.
Sendo de q.lq.r dos modos transportados, e postas a Salvo huma certa, e Suficiente
porção destes uteis, e neceSsarios arvoredos, no q’ Se continuarâ tê q’ bastem, e atê q’
dos plantados Se poSsa tirar novas produçoéns, Ser aí elles mandados dispor com
Repartição, e SuceSivam.te em as m.tas legoas das margens dos infinitos Rios de agua
salgada, e em aquellas m.tas partes, em q’ ella entra por ocazião das maiores aguas, e
com m.to maior preferencia em aquelles sitios, aonde o mar vai aos poucos Sulapando a
terra, e os campos, fazendo-os na quista Seos, e aonde ha o de Ser feitas as estacadas p.ª
com ellas Se Rezistir a estes inSultos, e aos outros das cheas, e entradas das areas,
[folha 34f.]
34
Sem q’ nos demore as irrezoluçoéns do m.to trabalho, de q’ em vida no crescim.to das
arvores o não veremos vingado na percepção de utilidades, ao q’ deve prevalecer, alem
da incerteza, o amor da Patria, os bons dezejos da conServação, e augmento della, e a
Refleção bem Patriotica, de q’ os vindouros, e os q’ actualm.te nos Substituem hão de
vir a Ser, e jâ São viventes, q’ devem Ser socorridos pela noSsa industria, e filantropia.
Do transporte, e da plantação destes arvoredos maritimos em todas as margens dos
noSsos diverSos Rios, na gr.de, e m.ta extensão delles, nas diverSas Comarcas do Reino,
em q’ elles hajão, e existão Se tirarão m.tas, e conSideraveis utilidades: 1.ª, q’ teremos
100 com permanencia, e com duração huma florente estacada maritima, q’ m.to forte
fique a construção dos Cais arteficiaes: 2.ª, q’ por medeação delles, fazendo feliz o
arteficio dos Cais, com elles Se impidirâ a q’ o mar aos poucos não vâ Sulapando novas
terras; e fazendo franca entrada nos Razos, e bons campos com perda delles: 3.ª, q’ com
eSse mesmo duravel, e permanente arteficio Se Rezistirâ as enchentes dos Rios, e a
entrada de humas, e outras areas: 4.ª, q’ por medeação desta firme estacada, q’ a tudo
Rezista Se entrarâ na Reivindicação dos Campos perdidos pelo meio dos parapeitos, e
do novo Campo arteficial: 5.ª, q’ poupando-Se, e economizando-Se o terreno, tantas, e
tantas margéns, e praias ociozas as viremos ter com produção cubertas de huma madeira
tão forte, tão fiel, e de tanta duração: 6.ª, q’ as varas mais finas destes arbustos Sendo
boas, e fortes p.ª todos os ministerios, Serão optimas p.ª as pareiras, e p.ª Serem
expostas ao tempo: 7.ª, q’ as mais groSsas excedendo em duração, e em qualid.e
[folha 34v.]
as de castanho Serão excelentes p.ª os telhados das noSsas futuras edeficações: 8.ª q’
eSsas mesmas, e as mais Reforçadas Servirão p.ª os mastros, e Remos das
embarcaçoéns pequenas com gr.de Rezistencia a forca, ao tempo, e as tempestades: 9.ª,
q’ as de menos Reforço se aproveitarão, como agora Servem transportadas do Brazil,
com m.tos mais fabricos: 10, q’ da folha, casca, e madeira destes arbustos Se pode
extrahir a melhor, a mais firme, e fina tinta, com vizivel, e manifesta utilid.e das noSsas
fabricas, Servindo de amostra, e de exemplar o q’ Sem maior industria na Sua extração
prestão no Brazil nos Costumes, e tituraria das Redes da pesca, q’ tomão a fixa, e
permanente Cor dos fuzos em novo, e outras m.tas utilidades se poderão delles derivar
Compatriotando-Se comnosco este arbusto, Sendo franco, e prompto as experiencias.
Annotação Nona.
Em q’ se individuão algumas Cauzas do atrazam.to, e da deminuição dos noSsos
terrenos, o q’ verte em prejuizo da agricultura nascional, indicando-Se al-
[folha 35f.]
35
gumas providencias, por medeação da q.s o Campo, e as terras melhor Se conServem, e
de certo modo Se augmentem.
101
Todo, e q.lq.r Lavrador, q’ hê Snr’ do Campo, e das terras, a cujo trabalho elle Se
entrega, ou p.ª q’ delle haja de extrahir, e colher os fructos neceSsarios p.ª o Seo
sustento, e da numeroza familia, q’ Sendo Sua o aCompanha, ou p.ª q’ na maior
abundancia delles com Sobra, e acrescimo os haja de meter em venda, deve bem
conhecer interna, e externam.te a qualid.e do terreno, q’ na Sua actualid.e estâ Sendo
entregue ao Seo fabrico, e trabalho.
Do perfeito conhecim.to interno Rezulta o vir elle a Saber do q’, e do q.to o terreno
cometido Seja Capaz, p.ª q’ por medeação do pezo das Suas forças, qualid.e, e Capacid.e
proporcione a elle a Semeadura, e a plantação dos generos, q’ lhe sejão correspondentes
e proprios.
Da falta deste perfeito conhecim.to nasce o prejuizo Contrario ao Seo trabalho, e ao bem
commum da Socied.e, q’ por desiguald.e de proporçoéns indestinctam.te entregando, e
Sacrificando o lavrador o terreno a plantação de huns generos, q’ lhe não São proprios,
da hî Rezulta a confuzão, e o troco, de q’ huns, e outros Lavradores andando como
perdidos na agricultura Se entregão ao q’ Se não devião entregar, de
[folha 35v.]
sorte, q’ neste indiscreto combate Se perde o tempo, o amanho, o esforço, e a industria,
e o mesmo Campo na cultura do q’ lhe hê improprio, p.rq’ a natureza do terreno, e a
qualid.e da planta, e da Semeadura militando contra tudo isto entre Sî opostam.te faz o
Seo dever, o q’ jâ aSsim não Sucederia acomodando com Conhecim.to ao terreno o q’
lhe era, e vinha a Ser mais comodo, proprio, e oportuno, e a maior p.e da lavoura por
desgraça noSsa Se acha Reduzida a esta confeSsada, e Reconhecida mizeria.
Da mesma falta deste perfeito conhecim.to nasçe, q’ dormindo os lavradores na
insciencia, descançando, e confiando Sô tudo do terreno, do amanho, e do trabalho, a q’
cegam.te Se entregão desconhecendo o q’ lhe falta, e vem a Ser neceSsario p.ª o tempero
delle, e dahî nasce, q’ de todo ignorando as diversas p.es, e as qualidades das imistoéns,
adjunçoéns, e dos mesmos Simplez, com q’ Se formaliza hum bom composto,
conServando o terreno em Ser, ou ajuntando-lhe Sem sciencia, Sem obServação, e Sem
experiencia o q’ arbitrariam.te querem, e a torto, e a dir.to, dahî Rezulta, q’ o Seo
trabalho, q’ o Seo amanho, q’ a Semeadura, q’ a plantação, e q’ o mesmo Campo lhe
102 venha a Ser inutil, Como Se foSse detido, e conServa de na pura inercia com gr.de
prejuizo noSso, da agricultura, e do bem Comum
[folha 36f.]
36
da Socied.e, de q.m Somos membros, q’ hê a q’ vem a Sentir e a experimentar eSsa
diminuição de hum terreno, q’ existindo hê constitutivo do Seo patrimonio.
O agricultor habil, e industriozo Sabe, q’ entre os m.tos e os diverSos terrenos, q’ são
Capazes de cultura, Sempre hê o milhor, e deve Ser preferido p.ª o Seo trabalho, q.do Se
entre em escolha aquelle, q’ hê Razo, e plano, vindo este a Ser o mais digno da Sua
industria, e do Seo primeiro objecto, devendo dar nelle por bem impregado todo genero
de amanho, e isto por huma Razão bem natural, q’ com infalibilid.e Se acha corroborada
pela propria experiencia, p.rq’ neSsa qualid.e de terrenos Se acha por igual permanente,
duravel, e existente o Suco da terra, o q’ alguns lhe chamam o olioprodutivo.
Daquî não quero inferir menos com estabelecim.to de regra firme, e invariavel, q’ não
os planos inclinados, e com m.to mais evidencia em as Subidas, e descidas das Ladeiras
com a mesma concurrencia dos inclinados planos, em cujos cazos, e circumstancias a
alavanca tãobem inclinada entra a fazer o Seo dever, e a cumprir com todos os Seos
officios mechanicos, com a maior facilid.e o mesmo Carro Se tomba, ao q’ tem
141 acompanhado gr.des, e infinitas desgraças, o q’ Se deve ocorrer com providencias, q’
as afastem.
Sendo o carro huma machina tão pezada, como na Realid.e hê, vem a Ser certo, e
infalivel, q’ huma p.e das forças dos bois, (alem da irrigularid.e de Sua mâ construção, a
falta da Repartição do pezo, e Carga Sobre huma neceSsaria, e Suficiente baza),
inutilm.te Se esperdiça Sô em a arrastar, q.do aliàs por m.tas, e maiores, q’ foSsem as
forças todas Sem distração Se deverião poupar, e economizar p.ª Serem empregadas na
condução da Carga, q’ elles arrastão, e transportão.
Como toda carga, e pezo, q’ Se propoem a Ser conduzida, e transportada, Sendo posta
Sobre o Carro, vem a ficar como depozitada Sobre huma balança, Servindo-lhe de
braços a metade do Carro, q’ se despede do eixo p.ª a extremid.e delle, e outra metade,
q’ do eixo
[folha 69f.]
69
por meio da lança do carro Se vai terminar no jugo de bois, tudo p.rq’ o Carro Seg.do a
Sua constructura Sô trabalha Sobre hum unico eixo, e duas Rodas, o equilibrio da Carga
posta nesta balança hê difficultiSsimo de Ser conServado, e Reduzido a huma fiel, e
Rigoroza praxe, e isto por duas Razoéns: 1.ª p.rq’ o Rustico, groSseiro, e insciente
carreiro aRuma a carga como melhor pode, como Sucede, e como esta Se lhe offerece:
2.ª, q’ ainda q’ o carreiro foSse o mais experiente, e a peSsoas mais Limada, e pervista,
nunca a poderia aRumar de outro modo com exacta obediencia, e com hum fiel
desempenho do procurado, dezejado, e neceSsario equilibrio, p.rq’ nos olhos, nas
maóns, e na pozitura dos volumes não pode ter com exactidão a Regular certeza do pezo
della.
Sendo, como hê, indespenSavel, e Sempre certa com infalibilid.e a perda do equilibrio
da Carga posta Sobre o Carro, ou posta Sobre a descripta, e demonstrada balança, hê
certo, q’ eSsa infalivel perda do equilibrio, vem a fazer com q’ a Carga de q.lq.r modo,
q’ Se conSidere venha a oprimir mais, do q’ se pode explicar o gado, q’ a ella Se
Submete p.ª a transportar; porq’ Se Se conSiderar, q’ o equilibrio falta, e q’ a Carga
mais pende p.ª a extremid.e do Carro, a imaginação Supra a explicação, e a pintura, de
q’ Sendo
142 [folha 69v.]
chamada mais a Carga p.ª a extremid.e, q’ os bois se afogão ao tempo do trabalho do
transporte, vindo este a Ser m.to mais Laboriozo, p.rq’ tem m.to mais q’ vencer na falta
do equilibrio: Se Se conSiderar, q’ a mesma Carga na perda do equilibrio pende, e estâ
toda na desiguald.e da balança p.ª a p.e da lança, e do jugo, temos, q’ toda pezada carga
Se vem a depozitar no jugo de ambos os bois, e q’ estes em vez de arrastar, de Rolar, e
transportar a Carga, a vem carregar toda Sobre Sî, e nesta opreSsão obServamos, q’ os
bois subcumbidos a cada paSso afocinhão, Se curvão, vão a terra, e no transporte pelo
menos Levão as cabeças, e as ventas proximas ao chão, a q’ tanto os obriga o pezo
concurrento, e depozitado na extremid.e da lança, q’ vem descancar no jugo de ambos os
bois.
Ainda q.do a carga por huma fiel, e não achada mão com o maior, e mais exacto
equilibrio foSse posta, e arrumada Sobre o carro, ou balança, aSsim mesmo na manobra,
exercicio, trabalho, e transporte Sempre o d.º equilibrio Se veria a perder nas Subidas, e
descidas das Ladeiras, em cujas diverSas operaçoéns obServamos nas subidas a Carga
Sempre procurando a extremid.e dos carros, e nas descidas derigida toda p.ª o jugo dos
bois, e ahî vemos, q’ nas sabidas os bois posto q’ afo
[folha 70f.]
70
gados Sempre Levão as cabeças alterozas, p.rq’ a lança dos carros, q’ obedece, e
corresponde ao maior pezo da extremidade do carro na falta do equilibrio as Suspende,
e as faz Levantar: mais vemos, q’ nas decidas, gravitando todo pezo p.ª o jugo dos bois,
tudo pela falta do equilibrio perdido, q’ estes espumando, e afocinhando a cada paSso
Se curvão, hindo ao chão hora hum, e hora outro.
Nos carros, de q’ actualm.te nos Servimos finalm.te se obServa hum palmar defeito, o q.l
dâ cauza a m.tas mais desgraças, e vem este a Ser, q’ como elle Sô trabalha Sobre hum
eixo, e duas pequenas Rodas, como temos dito, toda carga, q’ Sobre elle Se depozita
vem a ter, e a procurar o Seo ponto, e centro de gravid.e, e estando o carro com a Sua
Carga em algum plano mais, ou menos inclinado, o q’ hê frequentiSsimo, e ordinario,
porq’ os planos Rectos São RariSsimos, ou pelo menos em concurrencia m.to menos,
eSse centro, e ponto de gravid.e Sempre vem a Ser o ponto da preferia da Roda, q’
ficando mais baixa toca, e descança na Superficie do terreno, e procurando o Carreiro
143 nesta pozitura, e Situação virar o carro, e entrando nestes esforços ambos os bois,
com a maior facilid.e, e promptidão, ou Se tomba o Carro, ou se parte o eixo, e o
mesmo, e outro tanto Sucederia em q.lq.r outro eixo, q’ m.to mais forte foSse, e neste
acto de
[folha 70v.]
se tombar, de estalar, e de Se partir Repentinam.te o eixo, vindo por terra de q.lq.r modo
a Carga m.tos Se fazem infelizes vidas da desgraça, e dos mizeros [SuaSsos].
Annotacão Decima quarta.
Em q’ se descreve a configuração dos Carros, de q deveremos uzar.
OS carros, de q’ deveremos uzar no trafico, e transporte de tudo q.to nos hê precizo, e
neceSsario Sempre Serão de quatro Rodas, e isto pelas quatro mechanicas Razoéns: 1.ª
porq’ deste modo Solidam.te vem o carro a Sustentar com toda firmeza, e perpetuid.e a
configuração de hum verdadr.º paralelogramo, o q.l Servindo de huma Regular baze a
todo, e a q.lq.r pezo, farâ
[folha 71f.]
71
com q’ nunca jâmais o Carro com facilid.e Se tombe: 2.ª porq’ toda Carga, e pezo
Repartindo-Se com iguald.e pelos dous eixos, conSeguintem.te taobem Se vem a
Repartir pelas quatro Rodas do Carro: 3.ª, q’ todo pezo, e q.lq.r carga jâ Se transporta
com independencia, e exulação do antigo equilibrio: 4.ª porq’ deste modo, descancando
todo pezo, e Carga pozitivam.te Sobre o carro, fição os bois em toda sua Liberd.e, Livres
da opreSsão, e com as forças Rezervadas, como deve Ser, p.ª unicam.te arrastarem a
carga, q’ transportão.
As Rodas destes novos carros Sempre Serão do tamanho das das [sic] noSsas seges, e
desta maioria das Rodas Rezultão varias utilidades. 1.ª, de q’ Sendo aSsim maiores
avanção na condução, e no transporte maior espaSso, e conSeguintem.te mais caminho:
2.ª, q’ com huma Sô tirada dos bois pondo-Se ellas em movim.to m.to q’ Se poupão as
forças aos mesmos bois: 3.ª, q’ o pezo, e a Carga vem a ficar sobre, e proximo ao eixo,
144 aonde fica existindo, e permanicendo o ponto de gravid.e, o q’ m.to concorre p.ª q’ o
carro Senão poSsa tombar.
Estas Rodas São as q’ se devem mover, p.rq’ des-
[folha 71v.]
cançando com Repozição o pezo, e a Carga Sobre o eixo, vindo o pezo ter as Rodas por
comunicação, e por partecipação, jâ elle q.do não Seja alguma Couza menor, não obriga
tanto as Rodas, o q’ m.to facilita o trabalho, e o transporte na maior força da condução, e
melhor Salva na prompta volubilid.e, q.lq.r encontro, e Rezistencia, como de pedras, e de
outra q.lq.r couza encontradiça.
O ultimo eixo, ou Seg.do Sendo de ferro, e Semelhante aos das Seges deve Ser firmem
aSsim como hê nas mesmas Seges; pelo Contrario o primeiro, e ao mesmo tempo as
Rodas, em tudo igual, e Semelhante ao Seg.do, Serâ Sempre movidiço pelas Razoéns, q’
depois Se indicarão, cujo movim.to tanto das Rodas, como do eixo a hum tempo m.to
concorre p.ª maior volubilid.e do carro no giro do Seo trabalho.
As Rodas Serão em tudo Semelhantes as das Seges, e aSsim fabricadas, posto q’ com
algum mais Reforço, seg.do a destinção dos Carros, como Logo Se farâ: do jugo de cada
hum dos bois pela p.e externa virão dous tirantes, a Saber hum de cada Lado, q’ certos
prendão na testa, ou topo da mez dos carros, o q’ Servirâ não Sô p.ª q’ estes ajudem a
puxar o Carro, mas tãobem
[folha 72f.]
72
p.ª q’ obriguem aos bois, q.do castigados pelo pezo, q’ arrastão, e q’ conduzem, a não
Sahirem com o Corpo p.ª fora da direção, e linha do trabalho nos transportes, como
uzualm.te Sucede por falta deste apoio, do q’ Rezulta, q’ hum dos bois folga, e foge com
o Corpo ao Serviço, e q’ o outro Sô trabalha, o q’ ocaziona hum m.to mao, e desigual
trabalho.
Não entre em duvida, e nem Sirva da menor objeção a lembrança de q’ os carros de
quatro Rodas não podem obedecer com promptidão as voltas, e aos cimicirculos, q’
elles descrevem nas encruzilhadas das estradas, nas Ruas, nos becos, e em todo, e q.lq.r
corte dos angulos, o q’ de neceSsid.e ha de, e deve fazer por obrigação do Seo destino, e
trabalho.
145 Isto m.to q’ Se Supre da maneira, e modo Seg.te Sendo o primeiro eixo Rotundo,
voluvel, trabalhando dentro dos olhos, ou buracos de dous curtos ferros, q’ devem
descer, e estar oposta, e paralelam.te nos angulos dentro da bacia, ou estrado do Carro na
distancia do topo, e do lado della palmo, e meio com pouco diferença.
Estes dous ferros do olho p.ª Sima em toda extensão da groSsura da meza do Carro deve
ter, e descrever
[folha 72v.]
huma fiel, e perfeita figura triangular. Este triangulo mais pequeno deve paSsar, e
trabalhar de outro perfeito triangulo vazado de ferro maior, q’ estarâ cravado nos dous
angulos da meza do Carro, Sendo hum, e outro triangulo feito entre Sî com huma tal
dimenção, e proporção, q’ na manobra, e exercicio do trabalho, fallando na faze de
todos, descreva a figura de hum fino Samão, e este Sempre imperfeito, e concebido de
hum tal modo, q’ nunca o triangulo menor poSsa dar volta inteira dentro do triangulo
maior, e esta peSsa Se terminarâ com hum botão, ou chapa no mesmo ferro, q’ fique
excedendo a groSsura da meza do Carro, trabalhando este Sempre Sobre outro ferro do
triangulo maior, q’ Se mandara entranhar, e cravar no Lugar competente em a meza, e
bacia do Carro.
Sendo aSsim bem ordenadas estas duas peSsas, fabricada huma, e outra com a folga
perciza, hê certo, q’ esta folga dâ a outra tãobem preciza, p.ª q’ o Carro, descrevendo o
cimiciuculo, q’ o triangulo menor descreve dentro do maior, dê a volta aSsim a dir.ta,
como a esquerda, q’ lhe Seja neceSsaria no giro, e trafico do Seo trabalho.
D
[folha 73f.]
73
Dada a forma, e o modo, com q’ na Sua generalid.e devem Ser construidos os novos
Carros, devemos agora fazer a destinção dos carros, q’ São destinados p.ª o carreto, e o
transporte das Couzas mais maneiras, como São milho, trigo, todo o genero de grão, de
ligumes, Sal, terra &, o q’ pede huma facil, e prompta descarga, dos outros mais fortes,
e mais Reforçados, q’ Serão proprios p.ª em Sî transportarem Couzas de maior pezo.
Aquelles basta q’ tenhão as Rodas, ainda q’ mais groSseiras, como as das Seges. Na
meza do Carro p.ª o Seo fundo Se farâ firme huma peSsa da boa madeira, q’ p.ª o centro
da p.e do topo, e do fim do Carro Se estreite, a q.l descreva huma figura quaze piramidal,
146 cortada esta na distancia de trez palmos na profundid.e, de Sorte, q’ dentro della a
granel, e Solta, como em huma medida, ou [fanga] Se lançe os indicados generos, e tudo
aquillo mais, q’ Se queira transportar, de maneira, q’ chegando-Se ao Sitio do
transporte, correndo-Se, e desprendendo-Se o ferrolho, ou prizão, q’ feixa o fundo da
peSsa, aberto o postigo do fundo, de pancada Se despeja o q’ Se conduzira, com o q’ Se
poupa a despeza dos Sacos, e o inutil trabalho, como
[folha 73v.]
no transporte da terra, e da area, de Se estar a despejar, e a descarregar por vezes, o q’
hê extenSivo a todos os mais generos desta natureza, Legumes &.
OS carros porem destinados p.ª o transporte de maiores pezos terão as Rodas, e os eixos
do mesmo feitio, porem com m.to mais Reforço, e a bacia, ou estrados destes carros Serâ
feita p.ª Sua maior Levidão de hum grade de boa, e fiel madeira.
Nem Se diga, q’ os eixos, e q’ as Rodas deste feitio não poderão em Sî Suportar os
maiores pezos, e graves Cargas, p.rq’, levando nôs firmes os principios, e Sempre diante
dos olhos, como certos, e infaliveis, de q’ o pezo, e a Carga Se Reparte pelo dous eixos,
e pelas quatro Rodas, Se vemos, q’ as noSsas Seges de ordinario Sem destroço dentro
de Sî carregão duas peSsoas, q’ pezão de quatro, a cinco arrobas, es aquî oito arrobas;
duas peSsoas mais na Sua tabua; es aquî outras oito arrobas, e no Seo todo dezaseis
arrobas, a estas acresção mais quatro do pezo da Sege, e o jogo, es aquî vinte arrobas;
Logo Sendo tudo em dobro Reforçado, Sem ademiração veremos, q’ os dous eixos, e q’
as quatro Rodas bem podem Su-
[folha 74f.]
74
portar, conduzir, e transportar o pezo, e a carga de quarenta arrobas, o q’ bastarâ, q’
carregue q.lq.r carro, p.rq’ tãobem com mais neste exercicio, e ministerio não poderão os
bois.
Fim
147
[f. 104]73
N.o 13 Memoria
Sobre o methodo, q' se deve obServar na extração da tinta do pao Brazil, em vizivel
beneficio das fabricas do Reino,
a q.l foi Lida na SeSsão publica de 11 de Julho de 1805.
As boas, e finas tintas, com q' os Aziaticos esmaltão as Suas manufacturas, tem Servido
de fortes estimulos a todas Naçõens industriozas; e por mais, q' cada huma dellas tenha
Caprixado neste artigo, ainda té hoje o desempenho, a par da industria, não tem
Correspondido as Suas fadigas: Talvez q' esta gloria esteja Rezervada p.a o Continente
do Brazil, com elles emparelhado nos acazos venturozos dos Seos descubrim.tos:
Esperanço-me q.to poSso nos Sentimentos de Lineo, q.do me diz = LuSitani quam felices
non eSsent, Si noscerent Sua bona =, e tãobem em conSiderar, q' Sendo analogos os
Socorros, q' prestão hum, e outro Conti [f. 104v] nemte, os da Costa de Coromandel não
São mais afortunados nas invençõens do Sapao, e da Xaya, com q' Suprem o Colorido,
do q' nôs na descoberta do pao Brazil.
73 Originais pertencnetes a: Academia de Ciências de Lisboa. Documento microfilmado pertencente ao CEDOPE (Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses). Transcrito por Rosângela Maria Ferreira dos Santos, em março de 2004.
148 Se estas fortunas, e Riquezas São germanas, meos SinSeros Votos, Sendo
agradecido a Patria, q' me nutre, São os de promover a industria Nacional? Se meos
anuncios não Corresponderem aos apetecidos acertos, na fallencia delles, terão quebra
meos dezejos?
Entre os meos enSaios Curiozos, e ao mesmo tempo uteis, em beneficio das fabricas da
estamparia, e tinturaria da Seda, do algudão, das Lans, do papel, e de todo q.lq.r outro
genero, me propuz extrahir do pao Brazil a tinta, q' elle mais podeSse dar em Socorro de
todos estes fabricos.
Concebî este projecto impelido de tres SuceSsivas Refleçõens, q' me não
despenSarão entrar em hum manifesto util: 1.a, de q' talvez q' os Povos orientaes Se
valerão deste mesmo modo de extractos, e esta Simples desconfiança fez [f. 105] pôr em
agitação as minhas primeiras ideas concebidas no proSeguimento da dezejada
Combinação, Reputando Ser entre elles o Sapao identico ao noSso pao Brazil: 2.a, de q'
este genero de tinta nacional por abundantiSsima, e menos despendioza, deve Ser
aquella, de q' mais devemos uzar com excelencia da Sua fina Cor na tinturaria dos
indicados g.nros: 3.a, de q' a actualid.e com q' Se procede nesta extração hê a menos
industrioza, q' se pode Supor, e conSiderar; porq' se estraga nesta operação na inutilid.e
a maior p.e da d.a tinta, q' ficando preterida no esperdicio, e no abandono, deixa de Ser
extrahida.
Falhando o 1.o do Refutado Sistema, com q' prezentem.te se faz este inSuficiente
extracto, p.a depois paSsar ao noSso, todos Sabem, q' elle conSiste, em fazer lascar,
mutilar, e partir em p.es minutiSsimas o d.o pao Brazil, deitandoSe de infuzão por pouco
tempo na agua Simples, ao q' apenas, Sem mais proporção, Se lhe ajunta huma arbitraria
quantid.e de pedra [f. 105v] hume, q.do Se propronhe aproveitar a fecula do mesmo pao.
Os fabricantes Se desenganão, q' por este meio, e modo nada ConSeguem; porq'
depois de dias vem achar a tinta, e o extracto pouco forte, havendo aliás depozitado em
Suas caldeiras huma Suficiente porção de pao Brazil, q' não Corresponde ao extrahido, e
ainda mesmo eSsa porção de estracto Sempre declina em hum Carmezim, q' foge p.a
Roxo, entrando na partecipação de ambas as Cores, por falta de hum estimulante
graduado, q' Segure, e faça mais avivar.
EntregandoSe a espiculaçõens, apetecendo huma extração tanto mais forte,
quanto peremptoria, paSsão a Referver a mesma Sobred.a infuzão, no q' procedem com
erro manifesto; porq' RequeimandoSe a Cor, desapareSse o escarlate, a Cor de Roza
149 viva, e Seca, e tudo Se transmuta em hum Carmezim, mais, ou menos adusto, e
apertado, Seg.do a força desta apuração, maior, [f. 106] e menor activid.e do fogo, q' se
lhe aplica.
O q' acabamos de dizer nos effeitos de huma extração acelerada, e obrigada, bem
nos certefica, tanto a mesma cor perdida, degenerada, e transmutada em Carmezim,
como o Remanicente do pao Brazil, q' vai Ser achado Roxo escuro, denegrido, e quaze
preto, seg.do a vivacid.e, constancia, e dutação do fogo.
Esta degeneracão hé certa, e infalivel, não Sô porq' a activid.e do fogo Refervera
a natural Cor, em cuja operação ella fugira, e desaparecera com perda della, mas tãobem
porq' por meio deste esforço involuntario Se obrigara a madeira Suprir ao estracto com
as mais partes, de q' ella Se compoem.
O que Se Reflecte hê de tanta crença na prezença de experiencias, q' m.to desenganão, q'
ainda mesmo no desempenho do novo Sistema obServei, q' Sendo a infuzão demorada
por mais tempo, [f. 106v] do q' devia Ser, fermentada a materia, havendo diSolução das
p.es, fui achar degeneradas as d.as Cores em Carmezim mais, ou menos apertado, Seg.do
o tempo, e a qualid.e dos Compostos.
Sô me libertei desta precipitação no estado da Seg.da obServação, fazendo Retirar de 8
em 8 dias huma porção Certa de fluido, e todo aquelle extracto, introduzindo, e
Repondo mera doze dos fluidos, identicos aos primeiros, Sendo progreSsivo nas
Subtraçõens, e intruzõens de 8 em 8 dias, Sempre pelo dimidio, te a terminação total de
meio quartilho, como depois indicarei.
Os mesmos fabricantes achandoSe alcançados em utilidades, Lançando Suas
vistas p.a todos mais extractos, e Compozição dos Coloridos, lhe tem feito ajuntar certos
acidos, tanto p.a ConSeguirem huma mais prompta extração, Como p.a fazerem avivar a
mesma Cor extrahida.
[f. 107] Porem com isto mesmo nada conSeguem; porq' Sô obtem a degeneração da
Cor, e o prejuizo de fazer estragada, e de nenhuma duração as fazendas, q' São tintas, e
estampadas com as desta tempera, o q' com dano, e perda noSsa Se verifica, com mais,
ou menos adjunção delles, em todo geneno de fabrico de huma, e outra claSse.
Devemos pois por via de huma Regra inalteravel, fugir, q.to mais Se poSsa, dos acidos,
tanto p.a Se evitar a degeneração da Cor, como p.a conServarmos com maior
Rezistencia, e duração as fazendas do noSso fabrico, ou pelo menos graduar, e temperar
a Compozição de tal modo, visto q' elles São generos da primeira neceSsid.e na
150 diSsolução, p.a q' elles no Contrabalanço venhão a Ser menos prejudiciaes: Devemos
igualmente fugir das Operaçõens a fogo, tê com economia da lenha, pelas Razõens jâ
indicadas, e Sobreditas.
Nesta em [f. 107v] preza dilatei as minhas vistas p.a o Suco dos Vegetaes, q'
foSse mais capaz de extrahir a Cor do pao Brazil, e de mais a entranhar com perpetuid.e
em toda, e q.lq.r fazenda.
Entre outros m.tos, q' hâ no Continente do Brazil, dei preferencia a trez, q' tãobem São
uzuaes, e vulgares entre os orientaes, cujo Suco cahindo em q.lq.r fazenda, Sem q' a
estrague, crava, e entranha nella huma nodoa perpetua.
O primeiro Suco vegetal Seja o das bananeiras, cujos troncos, e talos das Suas dilatadas
folhas, tê hoje inuteis, na certeza de q' cada huma destas arvores Se Cortão, colhido o
unico fructo, paSsados por q.lq.r moenda, como a das Canas do aSucar, por Serem m.to
limphaticos, darão Super abundante quantidade de fluido, com q' Se Supra não Só a este
extracto, mas tãobem a todo q.lq.r outro genero de tinturaria de diverSa Cor.
O Segundo, [f. 108] seja o Suco do Cajû, de cujos fructos por agrestes m.to
abunda todo Brazil, ainda mesmo nas Suas matas, e Com tanta fartura, q' os Nacionaes
daquelle Continente, alem de os comer, os convertem, e fazem uzo delles p.a Suas
Limonadas, p.a a factura do vinagre, e do vinho, aplicandoSe tãobem por meio de huma
medecina pratica, natural, e Rustica, p.a o Curativo da queixa, e infirmidade celtica,
produzindo hum feliz effeito.
AdverteSe, q' a virtude de entranhar a nodoa, e toda, e q.lq.r Cor, q' a ella Se
ajunte, tãobem Se acha na goma, q' produz as grandes arvores destes fructos; por Ser
ella hum sublimado delles, e do mesmo Suco vegetal.
O terceiro Seja o Suco do Coco verde, ao q' lhe chamão Coco mole, cuja Casca, e
entrecasco Se estroe, e Se esperdiça com frequencia naquelle Paiz, huma vez, q'
partidos, aproveitão a nata do mesmo Coco.
Sendo pois pizada esta Casca [f. 108v] em Verde, fazendoSe della q.lq.r infuzão,
ainda mesmo em agua Simples, Se extrahe della huma cor m.to Segura, aCanelada, e
perpetua.
Não hezito affirmar, q' os Aziaticos com esta tintura natural, m.to frequente, e
abundante, mais, ou menos forte, dão huma permanente Cor as Suas gangas, Suprindo
com ella ao algudão amarello, q' não chega a tanto, como demonstrarei, q.do
periodicam.te tratar deSse artigo de profiSsão, e porq' a primeira banhada Seja mais
151 forte, e de melhor cor, a q' aCompanha huma fiação mais fina, e igual, desta
operação fraternizada me perSuadom, q' inSurgem as gangas[?] da primeira Sorte, q'
merecendo maior preSso, lhe chamão tãobem da primeira agua de Nanquim, o q' jâ Se
não verifica nas gangas da 2.a, e terceira Sorte, q' aproveitão o Resto da infuzão, por
onde São paSsadas gradualm.te
[f. 109] Cada hum destes trez productos da Natureza São bem dignos de huma especial
memoria, atentas as Suas utilidades Conhecidas, e desconhecidas, ao q' me prometo
anunciar pela Sua ordem, p.a q' avivando, e expertando genios Raros, indagadores, e
obServadores, aos poucos Se formaliza com força unida, e desafiada huma historia
Brazilica, posto q' parcial, e individual, de q' temos Suma falta
Não incorri nos descuidos de fazer achar, e ajuntar ao dezejado extracto da tinta do pao
Brazil huma especie de Composto, q' Sendo universal, e Comum a aquelle, e ao noSso
Continente, m.to CooperaSse p.a a extração da d.a tinta, e q' ao mesmo tempo a fizeSse
Segurar, e entranhar em toda qualid.e de fazenda, q' precizaSe Ser tinta, e estampada e
entre alguns, q' podem ter esta aplicação, força, e virtude, preferî o de meia 4.a [f. 109v]
de Casca de Romaâ, bem moida, deitada de infuzão em huma Canada de agua de
Sisterna, o q' tãobem Se pode Socorrer com igual porção da baga verde do Cipreste, em
Lugar da Casca de Romaâ.
Seja pois a Receita da extração da tinta do pao Brazil
Primeiro do q' tudo, Se deve fazer grozar o pao Brazil, ReduzindoSe a huma Serradura
de madeira, p.a mais Se facilitar a extração, e a diSolução.
Seja o depozito da Serradura do pezo de hum arratel na infuzão de duas Canadas do
Suco, de q.lq.r dos vegetaes, q' deixo indicado, (e na falta em duas Canadas da agua
Simples de Sisterna), e juntam.te em duas Canadas do fluido do Sal Microcosmico,
incorporandoSelhe hum arratel de pedra huma: Depois de 8 dias, Se Retire a infuzão
apurada, e [f. 110] sendo esta primeira tinta perfeitiSsima, no Remanicente da Serradura
depozitada Se lhe introduza Canada, e meia de Cada hum dos fluidos com adjunção de
trez quartas de pedra hume; decorridos 8 dias Se Subtraha a infuzão, e Se Reponha
huma canada de Cada hum dos fluidos com Suprimento, e adjunçào de meio aratel de
pedra hume: findos os 8 dias Se torne a Retirar a infuzão, e Se lhe acrescente meia
Canada de Cada hum dos fluidos, encorporandoSelhe huma quarta de pedra hume;
depois de 8 dias Se desvie a infuzão, e Se acrescente hum quartilho de Cada hum dos
152 fluidos, e Se depozite meia quarta de pedra hume: paSsados 8 dias Se faça a
Costumada Retirada, e Se lhe introduza meio quartilho de cada hum dos fluidos com
acrescimo de huma onça de pedra hume, e depois de 8 dias Se faça a Retirada,
havendoSe a extração por feita, com e Repozição desta ultima quantid.e Se Continuarâ
Sempre de 8 em 8 dias, obServandoSe o fraco [f. 110v] da tinta, q' Se for extrahindo.
Para q' o extracto Seja perfeito, e nas Retiradas das infuzõens não aCompanhe p.a da
Serradura do pao Brazil, e tãobem p.a q' da mesma natureza sejão as feculas, q' se hirão
conServando, e depozitando em Separado em alguma porção de tinta p.a o fabrico da
perfeita Sinopla, deve a d.a Serradura na infuzão estar clauzurada em hum pequeno
Saco, pouco apertado, p.a melhor Se proceder na extração, e Sahir toda ella pura.
AdeverteSe, q' q.do pertendermos extrahir a d.a tinta unicam.te escarlate, e este m.to vivo,
deverâ Ser feito todo extracto da forma aSima indicado, tão Somente com adjunção do
fluido do Sal Microcosmico, Sendo eSsa doze inteira com Remoção, e preterição de
q.lq.r outro fluido, porem Sempre com adjunção das estabelecidas quantidades de pedra
hume.
Por meio deste Sistema, de q.lq.r dos modos concebido, com pou [f. 111] co mais
de 400 r' de dispeza, alem da industria, e da mão de obra, Se farâ o extracto de dez
Canadas de boa, e fina tinta do pao Brazil, e p.a q' a cor extrahida mais Se avive,
Sustentando o escarlate, e este não decline em Carmezim pelo tempo, q' durar a infuzão,
se ajuntarâ no principio de cada huma das operaçõens huma pequena porção do Suco do
Limão azedo, e este graduado, e Repartido de tal modo, q' no extracto das dez Canadas
desta tinta nunca exceda adjunção de hum quartilho deste Suco, q' excedendo, Se porâ a
perder toda tinta, entrando na degeneração de hum amarelo adusto, e agemado.
AdverteSe, q' este extracto deve Ser feito, LançandoSe o Saco da Serradura de
infuzão em hum vazo, e Redoma de Vidro, e na falra em Tina, ou vazo Vidrado, e
nunca em vazilha de Cobre, de estanho, de Latão, e de q.lq.r outro metal, p.a q' estes
acidos, posto q' modeficados, não entrem na diSolução dos metaes no longo tempo das
SuceSsivas infuzõens, Suscitando [f. 111v] a degeneração da Cor a proporção, q' se for
extrahindo.
Fiz o indicado extracto com adjunção do Suco vegetal das Bananeiras, e por Se
pouco vulgar neste continente, o fiz tãobem com a infuzão da Casca de Romaâ, e da
Ruiva: ProSegui nas tentativas da Cor escarlate mais fina, e mais Subida no Simples
fluido do Sal Microcosmico, com exterminação, e Remoção de q.lq.r outro fluido, e
153 nesta p.e obServei, q' p.a melhor perfeição da tinta devia a quantid.e da Serradura
principiar por meio arratel, e em cada huma das operaçõens hir Sempre ajuntando huma
proporcional p.e na mesma porção dos fluidos Subtrahidos, té inteirar o aratel da d.a
Serradura, e tudo Correspondeo ao q' dezejava, porq' me deo perfeito escarlate, o
Carmezim, Cor de Roza viva, e Seca.
Com a d.a tinta fiz tingir a Seda, o algudão em Rama, a laâ, o pano de linho, o
paninho fabricado em Inglaterra, e o papel, do q' aprezento amostras.
[f. 112] Fiz tingir a pena branca, e o junco, o q' tudo tomou a Cor escarlate, e Sendo
atinta Capaz de penetrar o vidro da pena, e do jundo, adquerî a Certeza, de q' a d.a tinta
era finiSsima.
Era bem digno de entrar em concurSo os dous aSumptos: 1.o descubriSe o modo, e o
Sistema, de Se fazer perpetua, e ConServada esta Cor, ainda mesmo depois de Ser
paSsada pela infuzão da Ruiva, com Rezistencia a todo uzo, e Lavages: 2.o, descubrirSe
o modo, e o Sistema de Se dar Corpo a d.a tinta, p.a com ella Se pintar a fresco, e a olio
com aSistencia, e duração, da Sua primitiva cor.
Como por effeitos desta extração na diSsolução das partes ficão feculas da Cor
escarlate, e Carmezim, o q' se deve a adjunção da pedra hume, e ao fluido do Sal
Microcosmico, o q' m.to ajuda ao dezejado extracto, tratandoSe de Ser aproveitadas, fico
trabalhando, e com boas esperanças, no acerto, e Compozição da perfeita Sinopla.
Se eu [f. 112v] merecer a fê publica de fiel Escriptor, o Synedrio Academico
Crea, q' com huma quarta de Serradura do páo Brazil fiz o extracto, com q' procedî, e
me entreguei a todas estas experiencias, e q' ainda me Sobrou tintura p.a mais.
Oh! Patria, se destes meos inventos, e tentativas Rezultar utilidades, ellas não Sejão
minhas, todas Sejão VoSsas!
Luiz Antonio de oLiveira Mendes
154
[f. 113]74 N.o 14.
NiSe utile est quod facimus, Stulta est gloria
Memoria Sobre a Economia da materia Combustivel
Esta Memoria Se divide em duas Partes
Na primeira tratarei da pozitiva Economia, q' deve haver nos generos Combustiveis, q'
São aplicados a todas noSsas percizõins, conSumos, e fabricos, e com toda intenção aos
noSsos particulares, e domesticos uzos.
Na Segunda p.e Se tratarâ da Compozição de Certo Carvão arteficial; q' por menos
despendiozo vem a Ser Socorrente da dezejada Economia da materia Combostivel.
Como bom Patriota, apenas valendome das distraçõens do q.to me ocupa no neceSsario,
e pezado trafico da minha Subsistencia, Sem q' nada deva ao Publico, tudo porem aos
meos esforços, Sempre me propuz do modo poSsivel, entre escaças fadigas, Ser util a
Nação, e agradecido a Patria.
Nào precizo perante Vôs, e a mesma Patria, valerme de hum justificativo, q'
acreditandome Verdadeiro, melhor indeniza meos SinSeros Sentimentos; porq' no prello
a pouco, cunhando o manifesto das minhas [ileg.] aplicaçõens, fiz transmiSsivel em
extracto o montão de objectos, a q' me havia proposto.
Se me hê Licito, Sem q' me esqueça da ordem, e do Sistema, Recordar-me do paSsado,
não Sô p.a vos entreter na quadra benigna das voSsas atençõens; mas tãobem p.a melhor
afiançar me, no volatil, como introductivo a esta Memo [f. 113v] ria, trarei a lembrança
Certos aSumptos por mim tratados, q' o tempo de nôs afasta.
74 Originais pertencentes a; Academia de Ciências de Lisboa. Documento digitalizado pertencente ao CEDOPE (Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses). Transcrito por Rosângela Maria Ferreira dos Santos, em maio de 2004.
155 Hé Certo, q' em beneficio Comum Lembrei a iluminacão da Cidade, o q' Segundo
meos bons dezejos, ainda não tem chegado com Economia Publica ao aproximado
ponto da Sua exigida perfeição.
Propondome mais Ser util, do q' Remediar o mal, fez o objecto da minha quinta
Tentativa, entre as m.tas, q' impreSsas, p.a q' melhor CorreSsem, fiz publicar na SeSsão
gr.de desta Real Academia de 17 de Janr.o de 1793, q' havia particular methodo de
ordenar huma Luz Central, a q.l bem Suprida, e Reproduzida, com afaste de Sombras
impeditivas; della Rezultava hum gr.de augmento de luz.
Eis aquî hum novo Sistema pelo q.l Se economizava o azeite da noSsa actual
illuminação. O Publico Sente a perda, e entra no maior dispendio de Suprir p.a hum Só
fim quadruplicadas Luzes, q.do huma lhe bastaria. Nôs experimentamos, q' não obstante
todo este esperdicio, na maior p.e da noite as Luzes, q.do não morrem, Se conServão em
triste orfandade.
Hê Certo, q' em ocazião oportuna, e m.to a tempo, acautelando a Segurança interna da
Cid.e, e prosperando a tranquilidade Publica, inculquei q.to pude a creação das guardas
nocturnas, e tanto fizera o objecto da m.a Sexta Tentativa, e não obstante haverSe
abraçado este arbitrio, Com tudo na preterição de algumas [f. 114] couzas, ainda elle jaz
em huma gr.de p.e de outra tanta imperfeição; porq' na divizão deste Corpo por
Companhia; em cada huma, Seg.do o Local dellas, lhes falta o depozito neceSsario de
huma bomba, a q' foSsem advertptos[?] Certo numero de aguadeiros, e de artifices de
habitaçõens aproximadas, p.a q' com os Soldados daquella guarda houveSsem de acudir
com presteza em toda hora a q.lq.r incendio, aSsim q' foSse perSentido.
Eis aquî por meio de providencias instantaneas, ou pelo menos pouco alongadas, hum
dos meios pelos q' com Economia Publica, deixaria de Ser incendiados m.tos predios, o
q' tanto, a q' vertia, mediando Cautellas, em utilid.e de muitos particulares.
Pelos annos de 1799, entre preceitos, q' me forão gratos, Reforçados pelos Rogos da
verdadr.a amizade, de q' me Resta a Saudade, me entreguei de profiSsão a infinitos
arbitrios, q' Só tinhão por fins em materia Sugeita a extinção da moeda papel.
Muitos delles Superiorm.te forão, e estão Sendo abraçados p.a outros detalhes, q' com
infalibilid.e São m.to mais intereSsantes.
Hum dos arbitrios fora, q' a Prata superflua das Igrejas, ficando ellas com hum Padrão
de emprestimo Publico, foSse fundida em moeda Corrente, p.a q' com ella Se entraSse
neSse Resgate, eximindoSe o mes [f. 114v] mo Publico do pagam.to de hum juro
156 acrescido em trato SuceSsivo, LibertandoSe os particulares, seg.do Suas urgencias, de
verem huma, e m.tas vezes circularm.te queimados os Seos fundos por intervenção dos
Continuados, e auterados Rebates, em cujo trafico tão exuberante, atê a malignid.e
escandecida nas multiplicadas perdas chegou a Supor, e a conSiderar com audacia, q'
mãons traidoras, e pouco fieis nas arecadaçõens Publicas, e nos pagamentos Circulares
com Lucro proprio bem dispunhão a maior intruzão.
Reforcei os meos penSamentos, q' tendo origem na neceSsid.e Publica não deixavão de
ver ao longe o Solapado orgulho do genio devorante da paciente Europa, todo apostado
tornar de manSso em bravo o touro da filha de Agenor, com as Refleçõens Politicas, de
q' Secundariam.te por este meio, e modo Se diminuia de antemão a venenoza Cobiça do
filho das Furias, de hum amigo em todos os tempos fantastico, sô no precario com
despozição da fraude entregue de proficão a projetos fubulozos, q' bem se manifestarão
no tempo da desmascarada perfidia.
Por effeitos pois deste arbitrio Se inventariarão, e Se Repezarão as Pratas das Igrejas, e
emq.to Crimino em torpe trafico, as váns promeSsas do germen das maldades, do
apostata da Razão, da verd.e, e da honra, juramen [f. 115] tadas na ireligião de huma
neutralidade fingida, e abstendome de tudo q.to hê Politico, Reconheço ignorar a Cauza,
porq' hum arbitrio tào util Como intereSsante, apenas bem disposto, deixaSse de hir
avante.
O certo hê, q' as Pratas das Igrejas Refundidas, padecendo huma total transformaçào no
Seo fizico, metidas em Laboratorio Politico Se queimarão Sem Economia Publica, e de
todo desaparecerão com grande perda noSsa, e com exterminio irreSarcivel do noSso
preciozo.
Entre eSses mesmos projectos tãobem Lembrei, q' em quadra Critica, q.do as noSsas
neceSsidades mais instavão, Seria util huma Copioza fundição de moeda de prata, e
ouro, RecebendoSe com franqueza hum, e outro genero dos particulares, entregandoSe a
p.es o monetario, equivalente delles.
A falta desta providencia, Lembrada a tempo, deo Cauza a q' a mordentiSsima
uzura, nutrindoSe de huma queima Lastimoza, nos Sordidos intereSses devoraSse o
Restante do noSso preciozo, paSsando os particulares pelo grande disgosto, e perda de
verem queimados, ainda a m.to Custo com officiozidades, os Seos fundos pela metade
do Seo justo valor.
157 Depois de tempos aSsim hê, q' aparecerão eSsas mesmas Saudaveis
Providencias, porem foi, q.do jâ nos achavamos debelitados, e apenas Sô ocupados em
economizar os pequenos Carvõens da fogueira grande.
[f. 115v] Ao Academico não Compete dar Leý ao Mundo, porq' elle está entregue com
vezes de Pay da Patria, a q.m bem o Rege. Só lhe pertence na Sua individualidade, como
minutiSsima p.e integrante do Corpo Social sofrer no particular paciente oclotrismo[?]
dos males neceSsarios. Só lhe Compete na SubmiSsão procurar adoçalos q.to mais lhe
Seja poSsivel, fazer com q' eSse mesmo conforto Seja transcendente a Seos
Compatriotas, e p.a q' elle seja tanto mais efficaz, Se deve disvellar em descubrir meios,
e modos pelos q.s eSses mesmos malles em Sua gr.de parte Sejão minorados.
Quando pelos annos de 1793 me entreguei as d.as Tentativas, q' se autorizarão Com
decididas experiencias, fallando Com particularidade da quarta Tentativa, q' entra em
privativo objecto desta Memoria, a q.l tem por fins a economia da materia Combustivel,
e com especialid.e daquella, q' se faz preciza, e indespenSavel aos noSsos particulares
ConSumos, e domesticos uzos, foi excitado de trez Couzaes, q' no Seo Sequente
infalivelm.te nos havia molestar, como agora experimentamos.
Primeira, q' desde então com grande força os habitantes de todo Reino, proporcionalm.te
dizenhando as Provincias, segundo Seos fins, e intereSses, por huma Reunião
acomulativa Se encorporavel a esta Capital, Como [f. 116] Patria Comum a todos.
A experiencia, q' he mestra de tudo, nos enSinou no futuro, q' da[?] dizerção frequente
dos Lugares territorios, e do voluntario abandono dos natalicios, a habitação em Lx.a
chegou a tal ponto pelo augmento da povoação, q' os predios urbanos sendo
insufficientes, poucos, e deminutos p.a Receber e hospedar a infinitos Concurrentes,
Cellanio[?] os duellos Judiciaes, q' houverão a eSe Respeito, tanto derá[?] Cauza, a q'
elles SobiSsem a huma escandaloza Carestia.
Desta acceSsão[?] perene e SuceSsiva [*] Se Seguirão huns Certos males, q' mais Se
Sofrerão, e Se Sofrem, do q' Se Recintão; porem preterindo muitos, não me poderei
despenSar de Referir os mais principaes, quais Vem a Ser, q' Lisboa neSse[?]
gigantesco ficou Sendo huma estatua, q' tendo Seos membros debelitados, e
enfraquecidos, q' erão as Provincias, Só ficoû Com o peito de bronze[?] p.a com
Rezistencia, e fortaleza melhor Sofrer este gravamen[?].
* Consta uma estampilha no valor de 10 Réis.
158 Que deste Seo acrescimo indestinto Se Seguirâ ficar ella Onerada com Vadios,
malfeitores, e pelo menos com a desgraçada mindicidade. Que por Cauza [f. 116v] desta
extraordinaria Concurrencia todos generos conSuptiveis da primeira neceSsidade, atenta
a prompta extração Sobirão a hum maior preSso, paSsando ao extremo de os não haver:
Quê os generos Provincianos, ainda q' poucos proporcionalm.te por falta de Operarios,
devendo desaparecer nas distancias em os Suprimentos daquelles individuos, q' ali
devião Ser Constantes, conServados em humas partes na Carestia, por os não haver, e
em outras na barateza, e na perda, entrarão a exigir huns Caros transportes, q' na
exportação gravando os Sobrecarregavão.
Foi a Segunda Razão impulSiva, q' me Recomendou entrar em a d.a 4.a Tentativa as
Serias Cogitaçõens, de q' neSses esopaSsos alongados, atenta a diuturnidade dos tempos
com influencia grande dos acrescidos habitantesm, jâ Se havião em trato SuceSsivo
Reduzido a Sinzas a maior p.e das Lenhas, e dos matos Confinantes, e q' nas estreitezas
de hum Suprimento diario feito aos noSsos uzos, e ConSumos domesticos, a q' não
podiamos faltar, SocorrendoSe a noSsa Subzistencia hiamos buscar eSsas mesmas
Lenhas tanto Longê, q.to mais Se cortavão, e Se conSomião.
Finalm.te fora a 3.a Cauzal, q' tanto me empelira, ter obServado, q' no Centro da Capital,
[f. 117] mediando novos estabelecimentos Se aSsentavão infinitas fabricas, e com maior
forçâ da Repartição daquellas, q' demandavão a inceSsante queima das Lenhas, e de
todo mais Combustivel, Como erão as de Cal, de Tijolo, de Telha, de azulejos, de
Vidros, de chapeos, de aguardente, de Saboarias, de Louça de todas qualidades, de
Refinaçõens de aSucar, de pâo, de biscouto, de bolaxas, das maSsas de diferentes
especies, e outras m.tas ficando Longê de nôs as de papel, de branqueaçõens, de
estamparias, de fiaçõens, de tecelagéns, e outras mais, q' exigem, q' as drogas, e generos
da primeira neceSsid.e p.a Seos Suprimentos foSsem daquî transportados com
conduçõens, e Reconduçõens ociozas.
PondoSe de parte as conSideraçõens, q' nos não pertencem, de q' talves[?] q' Seria
Conveniente, q' as fabricas na Sua univerSalid.e deverião Ser aSsentadas nas Provincias
em Razão do augmento da Povoação, e de ficar mais Comoda a mão de obra, o q' faz
baratear os generos fabricados, hê Certo, q' q.s erraSsem, q.r acertaSsem os antigos,
dentro de meio Seculo viamos, q' em Carros era Conduzido p.a Suprimento desta Capital
das distancias de trez, e quatro Legoas o pão já fabricado daquelles Sitios, aonde o trigo,
e o mais grão [f. 117v] era plantado, moido, e manufacturado, com economia grande
159 dos transportes desneceSsarios, e da mesma materia combustivel, q' se aproveitava
nas proximidades do Seo mesmo fabrico.
Cabendo em Refleção atendivel, tãobem hê Certo, q' hum, e m.tos Copos, q' hum, e m.tos
chapeos, ficão Sendo, atento o Seo pouco pezo, generos de facil transporte, q.do aliás em
Seos fabricos jâ tem conSumido outros m.tos generos, como a lenha, q' por putados[?]
são de dificil, e despendioza Condução.
[*] A Razão m.to q' aprova, q' Sô Se transportem os generos jâ fabricados, e q' Se
OffereSsem promptos na Sua existencia p.a Serem aplicados aos noSsos pozitivos uzos,
e ConSumos, e não aquelles, q' por neceSsidade do fabrico de todo desaparecerão, e Se
conSumirão no mesmo fabrico.
Militem m.to embora eSses ConstantiSsimos descuidos, ao menos do modo poSsivel
tratemos de os Reparar no mesmo Local das aSsentadas fabricas, com Recomendada
especialidade aos noSsos particulares, e domesticos uzos, entregandonos com proveito
gr.de a duas meras, e Simples Refleçõens, q' por manifestas, e autorizadas por
experiencias merecerão na Crença toda atenção
Primeira, [f. 118] q' hê hum erro Comum, ogServando tanto neste Continente,
Como no do Brazil nas apuraçõens da agua das Canas do aSucar, e nas destillaçõens da
agua ardente, SupriremSe as fornalhas inceSsantem.te com q.ta mais Lenha ellas poSsão
ConSumir, e devorar, no q' desapareSsem Serras deste genero, na perSuazão erronea, de
q' q.to mais Se forneSse, e Se amontoa o Combustivel, m.to mais adiantão o Seo fabrico,
q.do aliás Sem q' conSigão Seos fins, desta inadvertencia Sô Se Segue com
Superfluidade hum vizivel esperdicio da materia combustivel, o q' outro tanto com a
mesma inRefleção, e negligencia prejudicial Se pratica em Cada huma de noSsas Cazas.
Segunda, q' q.r as fornalhas Se derijão aquecer o concavo dos fornos, q.r em
fazer Referver nas Caldeiras os fluidos, apurar, e destillar, hê certo, o q' decide m.tas
experiencias, q' no demonstrativo prefiro[?] p.a não Ser molesto, q' huma, e outra Couza
Recebendo em Si o ultimado grao de Calor, nunca jâmais elle poderâ Sobir a mais,
vindo a Ser baldados, e desneceSsarios outros acrescidos esforços, dos q.s Só Rezulta a
devoração ocioza, a prejudicial, e inutil queima do mesmo Combustivel, e de tudo q.to
Se fabrica.
Em todos estes diferentes objectos Serâ nas Cautellas o unico, e o principal trabalho,
fazer, com q' a materia Sugeita em Sí Receba o Seo ultimado grao de Calor,
* Idem.
160 graduandoSe este de tal modo, q' fique Sempre ConstantiSsimo, e permanente na Sua
intenção com total afaste da queima inutil do amontuado Combustivel
Destas minhas fadigas [f. 118v] Rezultarão as ConSequencias, de q' apenas
huma Carrada de lenha, e a 4.a p.e da materia Combustivel Se conSumia com proveito, e
indispenSabilid.e no fabrico, e q' trez Carradas da mesma Lenha Se queimavão com
perda grande no Sacrificios da inutilidade, e esta tanto mais SenSivel na progreção
infinita.
Se acazo pois as duas precedentes Refleçõens forem adoptadas, como mereSsem com
gr.de proveito, e Economia noSsa, por meio das indicadas advertencias, sendo com toda
especialidade aplicadas aos noSsos domesticos, particulariSsimos uzos, naquelle termo
feliz, em q' com Lucro triplicado no afaste do esperdicio Se economizar deste modo, ate
[*] em noSsas fornalhas domesticas, todo genero combustivel; a 1.a p.e desta Memoria,
pelo q' lhe diz Respeito, Serâ então premiada com a imortalid.e do Emblema Academico
= NiSe utile es quod facimus stulia est. gloria.
Apresentada na ASsembleia ordinaria do dia 27 de Abril de 1811.
J.P. Fragozo.
Luiz Antonio de OLiveira Mendes
[f. 17]75 Ludovicus Antonius de oLivr.a Mendes,
nuper Academia natus,
Academiæ
* Idem. 75 Originais pertencentes a: Academia de Ciências de Lisboa. Documento digitalizado pertencente ao CEDOPE (Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses). Transcrito por Rosângela Maria Ferreira dos Santos, maio de 2004.
161 Optimam fortunam,
Summam que felicitatem
inperpetuum
deSiderat.
[f. 18] Quanta cum spe, Sodales optimi, Academici inquam, anterioribus annis, quaSi ab
incunabulis Academiæ, quatuor firme percurrentibus Lustris, pro Virili ad Academiam
[ileg.] scripta miSiSsem.
Quod placuit diSserere, indeliciis habui, non Solum, ut deme mediocriter
scribente, in Ariopago aliquod, qualecum que ve testestimonium præbuiSsem, sed
etiam, ut vestro induteos animo, paulatim accedens, tacite dicerem, quantum a scribi in
alunorum album appetecerem, æxistimarem.
Post tempus indeSideriis sterum, al que iterum conabar idem, et hoc ingurgete scripta
moleste injudicata permanSerunt, de nique SupreSso nomine, in Academiam Contuli.
Opera in ad picendum qued tantum optabam, inter Suffragia, auspicius CommiSsa, in
Tantorum virorum PræSentia Suffragari emergerunt.
Obid, inSuspecto judicio, ignoto viro, injudicandis quam Celitior noneSsem! Summa
cum Laude Paladios Labores me Ceteris præcellentim, Laureata fronte, Tu Academia in
fortunam promovere, auguratam felicitatem, er omne id, quod bonum, optimum que Sit,
ad ampliùs oh! utinam augere potuiSsem.
Dixi.
[f. 90]76 [desenho]
[f. 91] N.o 12
Memoria Sobre a melhoria dos Carros.
Eu a dividirei em quatro partes, abracando o methodo Synthetico, p.a q' tãobem abraSse
a brevidade, e a poSsivel Concizão.
76 Originais pertencnetes a: Academia de Ciências de Lisboa. Documento microfilmado pertencente ao CEDOPE (Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses). Transcrito por
163 Na primeira parte, discorrerei Sobre os defeitos dos noSsos actuaes Carros.
Na Segunda Sobre a qualidade das madeiras, e modo, com q' devem Ser Construidos;
Sobre a grandeza, e numero das Suas Rodas, dos eixos, e Seos movimentos.
Na terceira Sobre o modo, com q' os grandes pezos, Como de huma Coluna, peSsa de
ferro, e bronze, ou huma grande trave, Sejão Suspendidos, p.a Serem transportados.
Na quarta, e a mais principal, Sobre o modo, com q' Se pode fazer parar hum Carro,
estando Carregado, Sem RetroceSso, nem adiantam.to, aSsim nos planos inclinados das
Sobidas, Como das decidas, dandoSe folego ao gado, Com economia das Suas forças
esperdiçadas, tudo por effeitos de huma maquina facil, Singela, e menos Complicada, q'
esteja inente as Rodas, e aos mesmos Carros, Sem q' seja impeditiva do movimento
ordinario, e progreSsivo delles.
[f. 91v] Parte Primeira
Sobre os defeitos dos noSsos actuaes Carros.
Os Caros de transporte, de q' actualm.te uzamos, São m.to mal Construidos, e p.a tanto
convencer, e demonstrar, primeiram.te affirmamos, q' nelles não hâ huma Sô Couza, q'
deva Ser aprovada, e q' mais facilite o transporte; pelo Contrario, tudo q.to nelles Se vê,
e Se observa, hé oposto, p.a q' elles mais se dificulte, e por iSso eSsa actual Construção
delles deve Ser de nôs degradada.
DiscorrendoSe Sobre a Sua Configuração, Combinada com os preceitos, movimentos,
forças fizicas, e Mechanicas, vemos, q' a meza dos Carros, a q' Se Segue o xideiro,
Sendo tudo Reposto em hum eixo Comum, se propenhe a descrever huma balança, o q'
conSegue, q.do avemos imperfeitiSsima pela desigualdade dos Seos braços.
Entremos em demonstração.
Para q' melhor Se perceba huma verd.e tão manifesta, deve SaberSe, q' a metade da
meza dos mesmos Carros, q' descança no eixo [f. 92] Comum, com acrescimo do
xideiro; ou lança, q' SobreSahe, hê Comprida, e prolongada, e por conSequencia mais
pezada, de q' o Remanicente, e a outra metade da meza, q' fica na p.e posterior do
mesmo eixo, q' não tem tal acrescimo.
Havendo desigualdade em hum dos braços da d.a balança, Como demonstrado fica, hê
bem Certo, q' elle descreve huma alavanca, ou hum braço da balança Romana, o q.l
Rosângela Maria Ferreira dos Santos, em março de 2004.
164 trabalhando pelo augmento do pezo, o adquire, e ConSegue, huma vez q' em toda
Sua maioria, e extenção Recebe a metade do pezo depozitado no eixo Comum, o q.'
descança com este acrescimo no jugo dos bois, q' Se impregão em aRastar os Carros, e
tudo, q' os sobrecarrega.
A noSsa inadvertencia chega a hum tal ponto a eSse Respeito, q' ainda quando vejamos
a cada paSso bicar o gado nos planos Rectos, Sendo bem manifesta a Cauza, nem por
iSso Se tem tratado de huma tão neceSsaria emenda, e Reforma.
Ainda quando por hum abSurdo, Se podeSse conSiderar em Si perfeita eSsa balança,
Como o transporte tem, q' vencer na desigualdade dos Caminhos, e das estradas os
planos inclinados das Sobidas, e descidas, Se [f. 92v] gueSe, q' no 1.o Cazo, perdendo a
balança o Seo natural equilibrio, vindo todo pezo ter ao braço posterior, este faz com q'
o gado, entrando em esforços, jâmais poSsa proSeguir, maltratandoSe, e afogandoSe
com as broixas de Coiro, q' sofocão, e apertão Suas gargantas.
No Segundo Cazo das descidas, por oCazião de Se hir depozitar todo pezo no
cabeçalho, canga, e jugo dos bois, estas afocinhandoSe o primam, Sem poder hir avante,
e por mais, q' Se esforção, q.do m.to, Só fazem Suspender o pezo; q' os Carrega, aflige, e
incomoda, e Se proSeguem, apenas São movidos, e impelidos pelo mesmo pezo, q' os
oprime.
Em q.lq.r destas operaçõens, as minhas Serias Refleçõens tem visto os mesmos bois,
humas vezes Lagrimar de Sentidos, e outras espumar de Raivozos, a q.m acompanhão
internecidos balidos, memoriaes estes, q'a natureza oprimida manda a Razão, os q.'
Sendo aceitos pelo bom filozopho, intristecendoSe, disto mesmo Se deve Compadecer.
As Rodas dos noSsos Carros São demaziadam.te pequenas, e por iSso pouco conduzem
p.a q' os transportes Sejão facilitados, pela Razão manifesta, de q' vencem menos
espaSso de terreno, e alem deste defeito acresce o [f. 93] outro, de q' m.to cooperão, p.a
q' os Carros Carregados Se tombem com toda, e maior promptidão.
Para Ser mais infalivel este desgraçado SuceSso com perda da vida de m.tos, q' nos
descuidos, e inadvertencias Se aproximão aos mesmos Carros, acrexce, q' as
chamaceiras, e bunecas, em q' estão firmes os cocõens, tudo Cavalgado Sobre o eixo
Comum do Rodeiro, fazem Suspender a meza do Carro a huma tal altura, q' o plano
della vem a vencer a preferia de ambas as Rodas.
Como pois o plano da meza dos Carros hé paralelogramo, e os foeiros adjacentes,
Cravados nella, vão formar hum Solido da mesma natureza, Construido pela futura
165 Carga, SegueSse, q' todo Centro de gravidade excedendo, e Sendo m.to Superior as
preferias das Rodas, precipitandoSe huma dellas nos falSos de q.lq.r dos panos, Com
toda, e maior facilid.e os d.os Carros Se tombão.
SegueSse tãobem, q' a figura paralelograma, descripta pela meza dos carros, e
confirmada pelo Solido da Carga, não deve Ser aprovada, mas antes excluida, por
menos Segura.
[f. 93v] Acresce nesta p.e por ultimo, q' esta mesma meza dos Carros, com Sua Carga
adjacente q' excede a cercumferencia das Rodas, descançando no eixo Comum, por
grande erro tem huma folga, q' com Relação a meza, e a meaâ exçede a meio palmo, e
porq' não trabalha justa com as d.as Rodas, q.do Sucede encontrar falSos em q.lq.r dos
planos, perdendo a mesma Carga Centras o Seo equilibrio, vindo de infuste a pancada
forte, augmentada a força della pello pezo, Contra a Roda paciente, ou o eixo Se quebra
no ponto da força impregada, ou Rezistindo a ella o Carro Se tomba.
Aquî torno a Concluir, q' a d.a folga deve Ser proscrevida, p.a Se obviar q.lq.r dos danos,
q' São de peSsimas ConSequencias.
Parte Segunda.
Em q' Se trata da qualidade das madeiras, de q' devem os Carros Ser Construidos, da
Configuração delles, da grandeza, e numero das Suas Rodas, dos eixos, e dos Seos
movimentos. [f. 94] Posto q' as madeiras, de q' se faz hum Constante uzo na Construção
dos Carros, como São Sobro, ulmo, e outras mais, Sejão as melhores, q' hajão no noSso
Continente, Comtudo no estado da melhoria, Se deve na substituição fazer uzo de outras
m.to mais fortes, e Rezistentes.
Para Se demonstrar a inSuficiencia das madeiras adaptadas neste Constante uzo,
bastarâ, q' Se entre em trez Refleçõens, e todas m.to atendiveis, pelo m.to, q' desenganão,
Certeficão, e Comprovão.
Primeira, q' as buecas, e cocoins trabalhando no eixo Comum do Rodeiro, o desgasta, e
o moe de tal Sorte, q' o adelgaçando, chega a formar hum fraco, pelo q.' o eixo, Sem
poder Rezistir ao pezo, e a força da pancada forte, ordinariam.te Se quebra, Como a
esperiencia, mestra de tudo, Constantem.te desengana, aprova, e Confirma.
Segunda, q' p.a mais Se desviar este Reconhecido mal, Se tem deixado a indicada folga,
tudo p.a q' as bonecas, e os [f. 94v] cocõens não trabalhem em hum ponto Certo,
166 havendo o desengano, de q' Se o fizeSsem, moendo, e gastando o eixo Constantem.te,
em pouco tempo o Cortarião, cedendo a debilid.e, e a fraqueza a força do pezo, e ao
trabalho.
Terceira, q' p.a Se auxiliar a inSuficiencia deSsas madeiras, Se tem adoptado, darSe
maior groSsura as Suas peSsas, do q' deverião ter, paSsandoSe te a forrar as mezas dos
mesmos Carros.
As madeiras pois, de q' se deve fazer hum constante uzo, Serão pela Sua ordem, as da
Sucupira do Brazil, as de Pao Roxo, Pao ferro, e Pao d'arco, todas do mesmo
Continente, pela Razão, dispenSandome de fazer huma Rigoroza Analyze, de q' São
madeiras m.to fieis, e fortes, e por iSso mesmo m.to mais Rezistentes a todo trabalho, e
ao pezo, q' o Carro ha de transportar.
Nào obita, q' ellas na Combinação Sejão alguma Couza mais pezadas; por q' entrandoSe
no precizo disconto, ellas exigem menos groSsura, e nenhuns Reforços.
[f. 95] Ainda q.do Se podeSse Conciderar, q' os Carros Construidos ficarião mais
dispendiozos, e alguma Couza mais pezados, Comtudo no estado da melhoria, da
Segurança, da duração, e do afaste de desgraças, tudo Se deve omitir, e Sempre abraçar
o indicado pelos fundamentos expostos.
A configuração dos novos Carros, dandoSe mais Largura, do q' aquella, q' os actuaes
Carros tem, deve Ser quadrada, porq' todo Solido Construido, ou todo Corpo formado,
q' tem huma baze desta natureza, hé mais firme, e mais Seguro, do q' outro q.lq.r, pois q'
fica Sendo Composto de quatro angulos Rectos, e estes entre Si iguais.
Hé Certo, q' o Solido da Carga não excedendo ao quadrado, nunca jâmais Se poderá
tombar, e p.a q' tanto Suceda, e Se verifique, Se farâ precizo primeiro, o q' hê dificil de
Suceder, q' o falSo enContrado no terreno exceda a altura do mesmo quadrilatero, e q.do
Se conSidere, q' huma, e outra Couza m.to exede, e poderâ aContecer, Comtudo Serâ
m.to mais Raro o SuceSso de tombarSe, aSsim Como m.to mais frequente, Sendo os
Carros construidos Com bazes estranhas, q' descrevão outras figuras, q' não Seja esta do
quadrado.
[f. 95v] As mezas dos Carros nunca Serão Rolas, e gradadas, como alguns Sentem,
propondoSe a fazelas mais Leves. DemonstraSe. Ou isto Se pode ConSeguir, e Se deve
fazer por meio de traveSsas, q' sobreponhão, ou por meio de entalhes, e de emalhetados
de cutelo, Reciprocam.te feitos na madeira de humas, e outras peSsas.
167 No primeiro Cazo a madeira, q' Sobrepoem Constantem.te em todas as peSsas da
grade, q' se ha de fazer firme com Reforçados pregos, vem no Sobre posto, por meio de
huns quadrados ocultos, a Comprehender aquella mesma madeira q' ocuparião os
quadrados Rotos, e vazios, q' se deixão ver no xadrez da mesma meza dos Carros.
No Segundo Cazo, Como q.tos mais fortes Reciprocam.te em Si Receber as peSsas da
Construção, m.to mais fraco, e falSificado ficarâ Sendo o Corpo Construido, ainda
mesmo no Cazo de Serem eSses Cortes m.to justos, e acertados, o q' nunca Se poderâ
fazer, Sem q' em alguns delles fique alguma falha, folga, e menor intervallo, de q.lq.r
tamanho, e qualid.e, q' elle Seja, daquî Se Segue, q' o d.o Corpo Construido Serâ menos
Rezistente [f. 96] ao trabalho, e Sempre prompto, e obediente a gemer, a SentirSe, e a
quebrarSe, cedendo a força, e a grandeza do pezo, q' ha de transportar.
Para Se obviar os falSificados, e ao mesmo tempo aCautelarSe a deminuição do pezo
das mezas dos Carros, dispenSandoSe, q' sejão forradas, Se despenSarão tãobem as
traveSsas, q' as ReforSsem, huma vez, q' as d.as mezas Sejão Construidas da maneira
Seg.te
Aparelhada a madeira do quadrado da meza dos Carros, Sendo bem faciada, e
Reçalteada huma Contra a outra, p.a q' Sobrepondo pouco, Se adquira o neceSsario
descanço; em p.es Certas, com distancia de palmo e meio, Serâ brocada com huma pua,
ou varrumão e fazendoSe huns cavilhõens da mesma madeira do comprimento do
quadrado, e da groSsura do ferro da pua, ou do varrumão, a força de maca Se farão
entranhar as d.as Cavilhas, e deste modo a meza do Carro ficarâ tendo tanta
ConSistencia, Como Se foSse feita de hum Sô pranxão.
Este [f. 96v] modo de Construir, alem de Ser firmiSsimo, e m.to forte, não hé nada novo,
porq' aSsim Se pratica no Brazil na Construição das Naos de guerra, Como Se pode
AdverteSe, q' nas peSsas paralelas aos lados do quadrado, q' tãobem São paralelas as
Rodas do Carro, nos angulos do quadrado Sahirão huñs braços de dous a trez palmos, q'
em Si hão de Receber os moitõens precizos p.a a Maquina de Suspender os maiores
pezos, e da p.e externa nas Suas extremidades os olhos das quatro alavancas, precizas p.a
fazer parar os Carros Carregados nos planos inclinados das Sobidas, e descidas.
As Rodas dos novos Carros Construidos Sempre Serão quatro com Relação, e
correspondencia aos quatro angulos do quadrado da meza: Serão de maior grandeza, q'
168 poSsão Ser, e admita o tamanho do quadrado, e p.a q' ellas ganhem maior espaSso,
Se farâ com q' os Rodeiros, e eixos, sendo fixos trabalhem com proximidad.e as
extrimedades do quadrado, [f. 97] p.a q' p.e da Circunferencia das Rodas fiquem fora do
mesmo quadrado, porem Sempre acompanhada, e defendida dos braços angulares,
Sobre Sahidos, Como aSima Se indicara.
As ditas Rodas Serão Construidas do mesmo modo, q' a meza, tudo p.a adquerir tanta
força, e ConSistencia, como Se foSse feita de madeira inteiriça, poupandoSe a groSsura
do Reforço, do meão, as Relhas interiores, q' falSeficão o todo dellas, as meias Luas de
ferro, as chapas, gateados, as paSsadeiras, e outras m.tas Couzas; porq' Como as ditas
Rodas no Seo movimento Circular por vezes ha de chegar ao ponto da emenda, q'
Suporte todo pezo transportado, nesta Continuação aluindoSe, e ReSentindoSe, Serâ
m.to facil, posto q' chapeadas, quebraremSe.
Igualm.te Se deve proscrever o uzo de Serem as Rodas Construidas com Raios, Como
alguns Sentem, propondoSe a desviar o pezo dellas, o q' alem de Ser mais despendiozo,
Como os d.os Raios não podem Ser entranhados na [f. 97v] preferia das Rodas, e no
Cilindro do eixo Comum, Se não por meio de entalhes, o q' traz debelid.e, e fracos aos
Corpos Construidos; havendo no giro dellas oCazião alternada, em q' todo pezo, ora
descançe, e Se depozite no falSo da Roda, ora perpendicular em hum Sô ponto do Raio
della, SegueSe, q' encontrandoSe em q.lq.r dos planos a menor Cavidad.e, Serâ Certo, e
infalivel com a força da pancada RenderSe o Raio por mais forte, q' elle seja, e por
ConSequencia a mesma Roda
AdverteSe, q' eSsas novas Rodas devem Ser vestidas, e chapeadas de ferro da mais forte
tempera, e no aSsentamento deSsas chapas Se deve obServar, e praticar, q' ellas fiquem
Lizas, Sem Cabeças pontudas de pregos, q' Sobreponhão, como actualm.te com vizivel
erro Se executa, procurandoSe deste modo poupar a chapa de ferro, ou Rasto, Sem Se
advertir, q' com isto Se impoSsibilita, e Se dificulta o proSeguimento dos Carros, porq'
nesta operação, havendo huma Roda quaze dentada, os bois não Sô tem, q' medir as
Suas forças com o pezo, p.a lhe dar movim.to, mas [f. 98] tãobem em vencer, e
desapegar a Roda, q' Se acha emtalado no vão das pedras das calçadas, e Cravada na
terra, Como bem Se obServa no Rasto de q.lq.r Carro.
Os dous eixos Comúns das quatro Rodas devem Ser aSsentados com firmeza na meza
dos Carros, dispenSandoSe chamaceiras, bunecas, e coçõens, Como peSsas não Sô
desneceSsarias, e Superfluas, mas tãobem Como prejudiciaes; porq' concorrendo p.a a
169 elevação da meza, e do Centro da gravid.e, Cooperão p.a q' os Carros Se tombem, e
tãobem p.a q' se adelgaSse o eixo do mesmo Carro, Como demonstrado fica.
A Razão porq.' eSsas Rodas devem girar, e Rolar nas extrimidades dos eixos hê
clariSsima; porq' Sendo certo, q' o pezo p.r quantos mais movimentos Se Reparte, mais
facil vem a Ser o movimento do pezo, q' suporta no transporte delle, concluo com a
preciza Legitimid.e, q' eSsas quatro Rodas voluveis ao mesmo tempo nas extremidades
do eixo, e do quadrado m.to facelitão o pertendido, e dezejado transporte.
Torno a cocluir por exuberancia, q' q.to mais forem o numero das Rodas, mais [f. 98v]
prompto Será o movimento do pezo, e o mesmo transporte.
Hé tempo de Concluir por ultimo, Sem abuzarmos das atençõens, q' Se nos propuzemos
a Construir hum Carro de m.to maior duração, as extremidades dos eixos Sempre Serão
forradas de chapas de ferro, e igualm.te o Circulo do Centro das Rodas, tudo p.a q' hum
ferro trabalhe outro ferro, e huma madeira não Castigue outra madeira, ainda no Cazo
de Ser forte, e m.to Rezistente ao trabalho, ao pezo, e a força.
Parte Terceira
Sobre o modo, com q' os grandes pezos devem Ser Suspendidos, p.a Serem
transportados.
O Carro aSsim Construido vistirâ e Cobrirâ a peSsa, ou pezo, q' ha de transportar, e
colocado Sobre elle pelos intervalos das Rodas em as extremidades do mesmo d.o pezo,
opostam.te de Cada parte Se meterão trez alavanças, alçapremas, ou braços de huma
balança [f. 99] Romana: A extremidade do Referido pezo virâ ter hum ganxo, q' abranja
a prizão, q' elle tiver, e a Corda, q' Se Segue ao ganxo paSsarâ primeiro pela Roldana,
ou pequeno moitão, q' estiver por baixo do xideiro, depois pelo outro, q' estiver firme no
anel da extremidade do braSso direito, Sahido no quadrado, e por ultimo pelo outro do
braço esquerdo.
Na parte inferior do pezo no quadrado da meza do Carro, e nos braços SobreSahidos se
despora a mesma operação, Servindo tudo de aparelho.
Na parte Superior, e inferior da meza do Carro, aonde Se achar firme ao pao quadrado,
q' nas extremidades forma os eixos do Rodeiro, Se aSsentarâ huma porca, ou Rosca de
parafuzo, a q.l abrangerâ a altura tanto da groSsura da madeira da meza, Como a outra
do pao diagonal, q' nas extremidades ha de formar os diferentes eixos.
170 Por esta Rosca paSsarâ hum Reforçado parafuzo de ferro, q' na p.e inferior tenha hum
Curto ganxo, q' vâ Receber o pezo, q' ha de Suspender.
[f. 99v] Nas cabeças dos d.os dous parafuzos haverão huns Cortes, ou moças profundas,
em q' Caibão justos os palmetados das quatro alavancas, q' por não trabalharem Servirão
de braçadeiras, ou animanivelas.
Estando tudo aSsim disposto, e ordenado, a hum tempo Se impregarão no pezo todas
estas forças Repartidas, e augmentadas de hum modo extraordinario, porem aplicadas, e
trazidas por união de forças a hum Sô ponto de Suspender, o q' farâ por maior, q' Seja o
pezo.
Hê justo, q' se demonstre.
Como pois deixamos estavelecido, q' o pezo Repartido pelos diverSos movimentos, por
este meio, e modo mais Se facilita o transporte, e por conSequencia a Suspenção delle
por effeitos da força impregada, hé Certo, q' de huma p.e Contra o pezo, e a favor da
Suspenção, Se vem aplicadas trez alavancas, ou trez braços da balança Romana, e de
outra p.e opostam.te outraz trez.
Eis aquî não menos, do q' seis estimulos, ou atritos, ou 6 movimentos comunicados ao
pezo, e impregados na Suspenção delle.
[f. 100] Hé Certo, q' a corda, q' prende na p.e Superior do pezo, paSsando pelas trez
Roldanas, o q' outro tanto Se verifica na p.e inferior delle, Servindo de Condutor,
tãobem Serve de Comunicar ao pezo os outros 6 movimentos das Roldanas, agitadas
pela força, q' impregada na extremidade da Corda, della com Reforço vem partecipar o
Corpo, q' Se quer Suspendido.
Hé certo, q' os dois parafuzos, postos em movimento pelas alavancas, braçadeiras, e
animanivelas, por este Conductor tãobem Se vão Comunicar ao Solido, q' Se procura
Suspender, e com alguma mais excelencia, porq' ao mesmo tempo, q' Suspendem,
prendendo, e Contrahindo a Si todos outros movimentos na Rosca, Servindo de
depozitarios, tãobem Servem p.a q' huma vez q' adqueridos, nunca já Retrocedão,
desviandoSe infortunios no Cazo de Se quebrar a Corda, ou as alçapremas.
Eis aqui não menos de 14 movimentos, a Saber 6 das alavancas, ou alçapremas, 6 das
Roldanas, e dous dos parafuzos, todos de huma vez impregados no Corpo, q' ha de Ser
transportado, e Como todos [f. 100v] elles em Si tenhão augmentos de força, hé Certo,
q' calculados os 14 movimentos, elles vem a Comprehender em Si outros muitos
171 movimentos, q' São bem Capazes de Suspender todo, e q.lq.r maior pezo, por grande,
e mais extraordinario, q' elle Seja.
Haverâ alem de tudo isto duas Cordas, Correntes, ou tirantes, q' prendão na extremidade
dos braços anteriores, e da Canga, ou Cabecalho, q' Servindo de apoio, e de espias,
Cooperem, p.a q' os dous bois metidos em esforços proSigão certos, todas Suas forças
em tempo neste Conato Sejão impregadas com igualdade no trabalho, e nas pertençoins
de transportar, e Conduzir, e p.a q' Sendo hum delles de memos Robustez, ou negandoSe
por malicia aos mesmos esforços, hum boi não maltrata outro boi, Seo Companheiro.
Parte quarta.
Sobre o modo, com q' Se pode fazer parar os Carros Carregados nos planos inclinados
das Sobidas, e descidas, auxiliandoSe os transportes, SocorrendoSe, e dan [f. 101] doSe
Socorro, e folego ao gado, p.a q' nos esforços não esperdiSsem Suas forças, tudo por
effeitos de huma maquina Simples, e menos Complicada, inherente ao mesmo Carro.
Na parte interior das quatro Rodas dos Carros com proximidade aos Circulos dos quatro
eixos estarão aSsentadas com a maior firmeza quatro Rodas menores de ferro, q' Sendo
dentadas terão huns quadrados no Centro, p.a q' Cada huma melhor Se aSsente, e Se
firme na madeira das Rodas principaes do mesmo Carro.
Nas extremidades dos quatro braços indicados, por meio de parafuzos estarão firmados
os olhos dos aneis folgados de Cada huma das alavancas.
Haverão outros parafuzos, com Respeito a Cada huma dellas, firmados nos lados da
meza do Carro, em q' se depozitem, e descanSsem as extremidades das alavancas
Soltas, q.do não trabalhão, e os Carros Se movem, e Caminhão nos planos Rectos.
Quando os Carros Carregados entrarem a descer e Se quizer dar folego ao gado, [f.
101v] Socorro, e descanço, p.a Se fazer, com q' elles parem, e não proSigão nos planos
inclinados das descidas, obzistindoSe a precipitação, Se desprenderâ, Se Soltarâ, e Se
tirarâ do descanço, e do Sobreposto as duas alavancas anteriores, e os Seos palmetados
virão Cravar Certos, e infustar nos dentes, q' lhe competir das Rodas menores, tãobem
anteriores, e impedindoSe deste modo, tão Reforçado, os movimentos das Rodas
maiores, tãobem se impidirâ, q' os Carros Carregados não proSigão, não Se adiante, e
não Se precipitem.
172 Quando os d.os Carros Se propuzerem Sobir algumas Ladeiras, e montar os planos
inclinados das Sobidas, descançando as alavancas anteriores, q' ficarão sobrepostas nos
parafuzos, Se Soltarão as duas alavancas posteriores, q' descançavão, e Soltas ellas,
hirão Constantem.te contando no SuceSsivo os dentes das Rodas menores posteriores, de
Sorte, q' q.do as Rodas maiores, e por conSequencia os Carros queirão entrar em hum
movimento Retrogado, Sendo os dentes das Rodas menores alçapremados pelos
palmetados das alavancas posteriores, q' lhe in [f. 102] fustão, nunca jâmais poderão
elles Retroceder com perda dos espaSsos, e dos terrenos, q' nas Sobidas tiverem
avançado, adquerido, e ganhado.
Deste modo teremos hum perfeito, e Reforçado Carro, bem Capaz de Rezistir a todo
trabalho, e Sendo firme, e mais Seguro, q.to Se poSsa conSiderar, alem das utilidades
inSurgentes, aSima indicadas, conSultandoSe intereSses, acautelandoSe danos, e
prejuizos, no Centro dos bons dezejos, afastando, e prevenindo infortuneos, apetecemos
Ser uteis a humanid.e, não Sô nas fadigas de huma vida trabalhoza, mas tãobem
tomando Sobre nôs no desvio a curatela dos Seos males, e desgraças, q' deste modo de
alguma Sorte ficão prevenidas.
Se tanto for util ao Publico, milite o proverbio Academico: os Sabios de Athenas, do
Athineo, do Ariopago, escrevão nos Templos de Minerva, de Apollo, e de Marte,
Capitolios da Sabedoria, na Repozição de triumphos conSeguidos, o preciozo emblema,
ditado por Pallas =
NeSi utile, quod facimus stulta est gloria.
Luiz Antonio de oLivr.a Mendes.
173
[f. 216]77 Entre os meos enSaios Curiozos, e ao mesmo tempo uteis, em beneficio das
fabricas de Seda, estamparia, tinturarias, e laneficios, invejando as delicadas, finas, e
firmes Cores, com q' os Aziaticos promovem estes Ramos da Sua industria, me propuz
extrahir do pao Brazil a tinta, q' elle podeSse dar em Socorro de todas estas
manufacturas.
Trez Couzas obServei no desempenho deste projecto, q' São bem dignas de atenção: 1.a,
q' a tinta extrahida do d.o pao hê a mais fina, q' Se pode conSiderar, porq' metendoSe
nella de infuzão q.lq.r pano de Seda, de algudão, de Lãz, e alguma folha de papel por
espaSso de 24 horas toma huma huma cor tão fixa, q' nunca desmereSse.
Eu Levaria as minhas tentativas ao ultimo ponto, Se neste continente me foSse poSsivel
ter a agua do Caijû, dos cocos em verde, e o Suca das bananeiras; porq' cada huma
destas aguas entranhão huma nodoa com a Segurança das Cores, q' ellas admitem, q' hê
mais facil RomperSe com o uzo a fazenda, do q' extinguirSe a entranhada nodoa, e
Seg.do obServei [f. 216v] no Paiz do meo Natalicio não hezito affirmar, q' os Aziaticos
Se valem destes Socorros p.a mais Segurarem as Cores em todas Suas manufacturas,
certeficado, de q' elles tem com abundancia todas eSsas plantas, donde forão
transportadas p.a o Brazil no tempo primitivo da Sua in cultura.
77 Originais pertencnetes a: Academia de Ciências de Lisboa. Documento microfilmado pertencente ao CEDOPE (Centro de Documentação e Pesquisa de História dos Domínios Portugueses). Transcrito por Rosângela Maria Ferreira dos Santos, em março de 2004.
174 Segunda, q' q.lq.r porção de pao Brazil, Reduzida a Serradura, perene, e
constantemente, paSsando por ella 15 dias, ou trez Semanas de infuzão, continua dar a
extração da tinta, e fallando com experiencia, havendo trez mezes, q' Se acha de infuzão
huma certa porção de serradura de pao Brazil, q' não excede huma quarta, havendo
extrahido huma gr.de porção de tinta, q' tem tingido entre outras Couzas huma Resma de
papel, ainda me não desenganou, q' deixava de dar a extrahida tinta mais, ou menos
forte, do q' me Rezulta a Certeza, q' eSsa tinta, SabendoSe extrahir, vem Ser a mais
Comoda, q' pode Ser.
Terceira, q' o Seo extrato hê Simples Sem mais despeza, a exceição de alguma pedra
hume, q' se ajunta, o q' mais certefica a Comodidade, e a barateza da d.a tinta.
[f. 217] Feito o extrato da d.a tinta em Seo ponto Sublime fiz tingir o pequeno pano de
Seda, e destemperando-a fiz tingir em Cor mais desvanecida o Setim papel, e em Cor
m.to mais desvanecida o pano de Caça.
O mesmo, e outro tanto pratiquei na tinturaria do papel, Sendo a 1.a tinta a mais forte, e
destemperando fiz tingir a Seg.da folha do papel da amostra, no q' continuei
progreSsivam.te atê a 4.a tinta, e folha de papel da cor mais desvanecida.
Tentando em querer fazer degenerada a d.a tinta, a 1.a, e mais forte a Reduzî a hum
Carmezim escuro, declinando alguma Couza a Roxo, e da Seg.da amostra do papel
Carmezim a Reduzî a Cor de violate, e da ultima amostra do papel cor de Roza Seca a
cor de flor de pecigueiro.
Fiz as tentativas, q' me pareSserão uteis: meti na infuzão as duas penas, Sem q' foSsem
ao fogo, e Sahirão da Cor escarlate, q' aprezento, e na tinta degenerada metî a 3.a pena,
q' Sahio Carmezim. Na d.a infuzão meti tãobem por tentativa algum juneo, e porq' a d.a
tinta paSsara, e penetrara bem o vidro da pena, e do juneo, ti [f. 217v] ve hum claro
testimunho, de q' a d.a tinta era fina, alem de a ter posto ao Sol, ao Sereno, e a chuva, em
q' pouco, ou nada desmerecera.
Fiz extrahir alguma p.e mais Subtil da d.a tinta, dando lhe Corpo da mesma tinta, p.a q'
ao Leo, e a tempera Se podeSe com ella pintar, a q.l aprezento, e moida ella ha de ter
todo bom effeito.
Quando a Real Academica aprove este meo invento, e descuberta, e o julgue digno de
utilid.e ao publico, e aos noSsos fabricos tratarei de anunciar o modo, e o Sistema, q' se
deve praticar na extração da d.a tinta.
175 Luiz Antonio de OLiveira Mendes
[f. 218] N. 8.
Memoria Sobre o modo de Se conhecer, q.do os Paos do Brazil, q' hão de Servir p.a a
mastrezção das Naos, e dos Navios, Se achão perfeitos no Seo interior, p.a Serem
Cortados.
Posto q' Sabia, e eruditam.te neste Atheneo Se tenha demonstrado, q.to mais poSsa
Concorrer, p.a q' pelos Symptomas externos Se conheça, q' q.lq.r pao de Certo Lote Se
ache Capaz, e idoneo p.a Sofrer o neceSsario Corte, p.a com elle Se acudir as noSsas
precizõens, q' instão pelo melhor acerto, Comtudo ainda nos Resta, p.a aconSumação de
hum objecto tão intereSsante, conhecer, Se elle no Seo interior esteja maduro, São, e
perfeito, Sem q' depois de frustrado trabalho, e conSideravel despeza; feita no Corte,
desbaste, e condução, venhamos a ficar, entre enganos, mal Servidos, perSuadindo nos,
de q' nos achamos Senhor de hum bom, e Suficiente pao, q.do aliás elle não presta, e em
Si hê menos Capaz, p.a o ministerio, q' elle vai Ser [f. 218v] aplicado.
Hê tão intereSsante, e digno de maior atenção este aSumpto, q' alem de Se procurar
deste modo acautelar os danos, e prejuizos inSurgentes de huma Superflua, e
conSideravel despeza, tãobem Se procura ReSalvar outros tanto mais calamitozos, e de
peSsimas ConSequencias, q.s vem a Ser, conhecerSe este defeito oculto no alto mar, q.do
o d.o pao, aplicado a mastreação, metido em paSsivo trabalho, não podendo Rezistir a
elle, Se Rende, ao q' Se Segue huma Certa, e infalivel desalvoração Com perda, e Risco
das vidas, e da fazenda.
Torno a dizer, q' não bastão os indicantes meram.te externos, p.a nos Certeficar
de hum modo Certo, infalivel, e terminantiSsimo, de q' com effeito o d.o pao no Seo
todo Se acha São, maduro, e perfeito, q.do aliás tudo isto Sô nos Certefica, o q' nos pode
Certeficar, q' na Sua maior p.e, e circumferencia Se acha tal, q.l nos indica, o q' de
nenhum modo entre escrupulos, desconfianças, e incertezas nos pode trazer a
infalibilidade, de q' na permanencia da Sua vege [f. 219] tação elle Se acha São, e igual
no Seo todo.
Bem pode acontecer, Como as vezes aconteSse, na falta desta Certeza fizica, oculta, e
desconhecida aos noSsos olhos, q' hum pao, q' a Seo favor tenha todos indicativos
externos de perfeito, isto não Corresponda no Seo intrinSeco, e Se não verifique no Seo
176 amago, e Coração, ao q' lhe chamão Cerne, estando elle vazio, ouco, ou verde no Seo
interior, e Sendo Cortado, ocazião em q' elle morre, começando a epoca da Sua natural
destruição, originandoSe a podridão no fraco do verde interno, della no oculto do Seo
Centro entrarâ a existir huma nova falha, e macula, q' o faça menos Capaz de Rezistir ao
trabalho, a q' vai Ser Sacreficado.
Logo isto tanto mais inculca a extrema neceSsid.e, q' hâ, de Se entrar em huma
averiguação tanto mais exacta a este Respeito.
Nem Se diga, q' havendo em toda arvore q' vegeta, hum Ramo perpendicular, Superior,
e mais elevado, q' Corresponda ao Seo [f. 219v] amago, Coração, Cerne, e a Raiz
principal, mais groSsa, e mais dilatada, este Ramo no Seo externo pela diferença da Cor
do Seo verde, neceSsaria, e infalivelm.te demonstra, q' o d.o pao no Seo interior Se acha
verde, ou maduro, Capaz, ou inSuficiente p.a Sofrer o neceSsario Corte.
Isto, e tanto Só poderâ concorrer, q.do m.to, p.a obServação, e Conhecimento, de q' com
effeito o d.o pao Se ache, ou Se deixe de achar, verde no Seo interno; não poderâ de
nenhum modo Ser aplicavel a indagação, de q' elle no Seo interior Se ache viciado,
podre, e cheio de cavidades, ocultas aos noSsos olhos.
Logo Se deve Recorrer a outros principios, e a outras mais Severas, e exactas
indagaçõens.
Ainda mesmo no primeiro Cazo, de Se conSiderar diverSa a cor deSsa Ramificação
Superior com alguma diferença da Cor dos outros Ramos, não poderemos entrar em
huma Combinação fiel, e infalivel, por m.tas Razõens, q' nos Rezistem.
Primeira, pelo pouco, q' huma Cor difere [f. 220] da outra.
Segunda, porq' huns Ramos Se confundem com os outros do mesmo tronco, e ainda
mesmo com os das mais arvores circumvezinhas.
Terceira, porq' Sendo estas arvores com Relação aos Seos troncos de huma demaziada,
e conSideravel elevação, na Sua Suma distancia, e altura, a q' não chega huma perpicaz
vista, não hâ oportunid.e, p.a Se entrar em huma obServação tão Rigoroza.
Quarta, porq' Como estes paos de Lote Se achão pela maior p.e dentro das matas
Virgens, aonde tudo hê denSo, e escuro pela contiguid.e de huns a outros, esta Confuzão
nos inhibe de toda obServação.
Quinta, porq' as vezes poderâ aContecer, q' na Sua Superiord.e esteja de vez, e maduro o
d.o pao, ocazião em q' o verde de toda Ramage Serâ igual, e deixe de estar no Seo
Centro, aonde Se originarâ a macula, e o defeito, huma vez q' elle Seja Cortado.
177 Antes de entrarmos no anuncio do modo de Se conhecer o pao maduro, e
Livre de Cavidades, de Vicio, e de de [f. 220v] feitos no Seo intrinSeco, deve SaberSe
com natureza de historia, e introductiva a materia Sugeita, q' nas matas Reaes nos
Estados do Brazil, e nas diverSas Capitanias delle, todo pao da ClaSse dos escolhidos, q'
tem de 4 a 5 palmos de diametro, e 100 palmos de altura, Sendo bem feitos, e
perpendicularm.te elevados, Sofrem a marca Real de hum = R =, gravado a fogo, p.a q',
aSsim indicado, Se não Corte, e nelle Se não toque, e tem Crime, e Sanção penal q.m
entra en transgreSsão da Ley imposta.
Este pao, q' fica gozando da Sua izenção, e imunid.e, huns lhe chamão pao de Rey, e
outros pao de Ley, e affirmão, q' tudo isto em Si promiscuam.te hé o mesmo, porq'
aquelles incultos Certanejos viciando a primitiva palavra entrarão Corrompidam.te a
chamar pao de Ley.
Porem, eu Sempre direi, Sem q' Se faça questão de nome, q' o Seo proprio, e verdadeiro
apelido, hé pao de Ley; porq' as clauzulas, condiçõens, e Requezitos do dezignado pao
ter 4 p.a 5 palmos de diametro, e 100 palmos de altura, forão os q' o Reconhecerão
izento de hum vulgar Corte, impondo a pena a q.m transgredir, [f. 221] e Sendo esta a
Ley, e a Sanção penal, q' o izenta, e priviligia, tãobem deve Ser, donde derive o Seo
proprio, e verdadeiro nome.
Os Homéns pretos naturaes da Africa, e com extenção, e transcendencia aquelles outros,
q' não São, lhe chamão pao de Carimbo, e isto porq' Carimbo na lingoa Africana quer
dizer, e Se chama aquella marca, q' com a letra = R = os homens Pretos Recebem a
ferro, e a fogo, (com dor geme, e estremeSse a Natureza humana)!, q.do pagão os
Direitos p.a o Brazil, e porq' outro tanto vem praticado em aquellas arvores, q' Recebem
a marca Real, por iSso lhe chmão pao de Carimbo, Sobre cuja palavra jâ diSsertei na
memoria da Cauza das infirmidades dos homens pretos Recen tirados da Africa p.a
America, q' Se acha encorporada ao volume quarto das Memorias Economicas, e deixo
Referido, e lançado no Dicionario da Lingoa Africana.
Desta expreSsão, aliás vulgar naquelle Continente, se faz hum frequente uzo, e se acha
tão adoptada por effeitos desta analogia, e derivação, q' todos por equivalen [f. 221v] cia
no Sentido translaticio della Se valem, p.a exprimir, e Significar o páo de Ley.
Para Se conhecer, q' q.lq.r pao desta marca, ou q' q.lq.r Outro, q' Se queira Cortar, Se
acha Libertado das maculas, defeitos, vicios, falhas, Cavidades, e falSos no Seo interior,
ou ainda mesmo, de q' Se acha verde no Seo Centro, entrarão nesta operação duas
178 peSsoas vigilantes, e haverâ hum prego grande de aço, e huma Canula do mesmo
aço, huma, e outra peSsa Sem a menor falha.
Na arvore, q' Se escolher p.a Ser Cortada, Se cravarâ o prego, hum dos
individuos hirâ pôr o ouvido bem Rente ao tronco do pao na p.e oposta ao fixado prego,
de tal modo, q' não entre ar, nem Som algum externo; Com a palma da mão taparâ o
outro ouvido, e estando prompto farâ Signal ao Companheiro, p.a q' dê com a Canula
huma pancada forte em o d.o prego.
[f. 222] Esta mesma Operação Se farâ nas trez Restantes partes da Circumferencia do
tronco da arvore, q' se destinar Ser Cortada, tudo p.a q' a experiencia Seja fiel, e as
operaçõens enchendo os Seos deveres, Sejão Conformes.
Se elle ouvir o toque baSso, e Rouco, hê Signal evidentiSsimo, q' o amago,
Coração, e Cerne do páo Se acha verde, e defeituozo com esta macula.
Se o Som do toque da Canula no prego Cravado fizer zunida, ecco no Seo interior, Serâ
hum Signal Certo, e infalivel, de q' no Centro do pao hâ cavidades ocultas aos noSsos
olhos, vicios, e falSos, aonde Retumba, Se detem, e Se depozita, entrando em giro eSse
Som do toque Comunicado.
Finalm.te Se o Som nas 4 Operaçõens for igual, fino, puro, Corrente, Sem RetroceSso e
detenção alguma, bem Como o toque da Campainha, e da experiencia da Louca, q' não
hé falhada, Se tirarâ a [f. 222v] certeza, de q' o pao no Seo todo Se acha São, e Sem
macula alguma.
A Razão, porq' tudo isto Corresponde ao q' dezejamos Saber, Se deriva de huma
demonstração fizica, q.l vem a Ser.
O Som, q' auxilia noSsas experiencias, hê nascido do encontro, e concuSsão da Canula
no prego cravado, e fixado no tronco da arvore: Este Som nascente da materia
homogenea, q.l hê a Canula, e o prego, este por Se achar encorporado ao pao, por hum
tal mediador, o 3.o Rezultado, q.l hê o Som Se comunica a materia ethorogenea, q.l hê o
tronco da arvore, e por effeitos desta Comunicação, o mesmo Som Se dilata por toda
extenção della, Sustentando o Som do toque da materia Contacta, huma vez q' eSsa
materia ethorogenea esteja Capaz, habil, e disposta p.a Receber.
O modo, e a Sufficiencia de o Receber com igualdade, Sem discrepancia,
deminuição, quebra, e Rezistencia do mesmo Som, hê estar, e acharSe o madeiro per [f.
223] feito, habil, São, igual, Sem macula, e vicio algum no Seo interior, como no Cazo
dos noSsos dezejados acertos.
179 Ainda mesmo estas experiencias Sendo auxiliares, e de algum modo exactiSsimas,
com aproximação ao q' Se procura Saber, haverâ hum novo Cazo, em q' todas ellas
desmintão, q.l vem a Ser, havendo na p.e Superior, inferior, ou em q.lq.r dos Seus Lados
do páo, e do tronco da arvore huma pequena fenda, por onde Livrem.te fara o Som
Comunicado do toque, e conceição da Cancela no prego, em cuja pervenção
descubrindo providencias uteis a este Respeito com Conhecim.to de Cauza entrarâ, e
proSeguirâ algum genio tanto feliz, q.to illustrado, q' auxiliando-me em huma empreza,
q' tenho por proveitoza, melhor aCautelle tanto os estragos da economia nas Superfluas
despezas, q' afinal Se ReconheSem perdidas, como ReSalve a perda das vidas, e
fazendas dos noSsos Compatriotas.
[f. 223v] AdverteSe, q' na escolha do madeiro, e pao, q' se destinar, p.a Ser Cortado,
Sempre Se darâ preferencia a aquelle, q' tenha melhor Seguimento, e q' nos espaSsos, e
longos annos da Sua vegetação, extenção, e dilatação, tenha Sido mais izento de ter tido
galhos na Comprida idade da Sua duração, e existencia.
Porque todos Sabem, q' eSses galhos, e Ramages, posto q' não existentes, forão
oriundos, e tiverão por May a medula interior do mesmo pao, donde elles Se derivão, os
q.s nos esforços irrezestiveis da Sua natural vegetação, Rompendo, e aCostando os
filamentos, de q' Se compoem o madeiro, formalizão hum falSo, e fraco em o d.o pao,
ao q' lhe chamamos vulgarm.te nôs, e isto bem, e melhor se obServa em q.lq.r esqueleto
botanico, e na folha de q.lq.r arvore, q' Sendo hum modelo do tronco Comum, toda Sua
Ramificação, figurada em Linhas, q' Se dilatão prende, e nasce da preferia do sutalo[?].
[f. 224] Deste modo escolheremos hum bom, e perfeito pao de maior, ou menor Lote,
seg.do as noSsas precizõens, o q' tendo principio na escolha dos madeiros Suficientes p.a
a mastreação das Naos, e Fragatas, Serâ extenSivo aos particulares, e a todos, e q.s q.r
Senhorios, e proprietarios de dilatadas, e densas matas naquelle Continente, o q' poderâ
entrar em objecto de hum novo Ramo de Comercio, tê hoje desconhecido.
Porem, p.a q' elle melhor se firme, e Se estabeleça em favor, e em Socorro da noSsa
independencia, e economia particular, se faz precizo debelar, e desvanecer dous erros
comúns, e inveterrados, q' tendo as Suas Raizes mais firmes, e mais dilatadas do q'
aquelles madeiros no Continente do Seo natalicio, Se nutrem com a inSuficiencia, e
desconhecimentos de alguns Nauticos, e por iSso tem elles hum facil, e prompto, e
prompto convencim.to.
180 Primeiro, de q' a mastreação dos Paos do [f. 224v] Brazil hê Sumam.te pezada: 2.o, q'
a mastreação total destes paos, porq' hê m.to mais forte, não brandea, não verga, não
entra em flexibilid.e nas ocaziõens precizas, e não obedece a força, e a furia dos Ventos,
e das tempestades inSurgentes, e estas declamaçõens Continuas a tem Condenado a hum
quaze desuzo, ao q' Sô Recorrem no Cazo da extrema neceSsidade.
Quanto a primeira Cauzal de hum tão prejudicial afaste, todos Sabem, q' o pezo
pelas Leis phizico-Mecanicas Sempre procura o Seo Centro de gravidade: Toda
mastreação, Seg.do estes incontrastaveis principios por huma Ley intrinSeca primeiro
gravita Sobre a quilha do Navio; eSsa quilha, o mesmo Casco, e todo Navio descança,
Seg.do as Leis phizico-hydraulicas Sobre as colunas de agua, q' o Suspende, o q' Se faz
demonstravel de dous modos.
Primeiro, q' todo, e q.lq.r Navio não Se Suspende, Sem ter huma Suficiente coluna de
agua, q' medindo no Seo espaSso, vencen [f. 225] do, ou pelo menos equilibrando o Seo
pezo, o faz pôr em nado:
Segundo, q' depozitandoSe em todo, e q.lq.r Navio maior porção de Carga do q' peza a
Coluna de agua Correspondente ao espaSso, q' elle ocupa, a q.l no Seo todo o Suspende,
e o conServa em nado, elle Se soSobra, e vai a pique, corroborrandoSe hum, e outro
demonstrativo com o infeliz SuceSso, de q' q.do Sucede haver agua aberta em q.lq.r
Navio, introduzindoSe, e RepondoSe no porão delle huma grande porção de agua, q'
augmentando o pezo interno a proporção do q' diminue a Coluna de agua externa, q' o
Suspende, o d.o Navio emContinente Se Submerge.
Logo q.m Suporta todo pezo da mastreação não hê a quilha, nem o Navio, mas Sim a
Coluna de agua Correspondente, q' o Suspende, e poem em nado, a q.l tem por baze as
outras m.tas colunas de agua, q' não contrabalanção, e não ComenSurão o total pezo do
d.o Navio.
[f. 225v] Entra em Refleção atendivel, q' Como toda mastreação de paos do Brazil, por
iSso mesmo, q' elles São mais fortes, e mais fieis, seg.do a lotação, e a maioria dos
Navios, ella Sendo mais delgada, de menos Corpo, e tãobem menos pezada, vem na
deminuição a equilibrarSe com a mastreação de pinho, q' demanda maior groSsura.
Quanto ao Seg.do abuzo, inveterado erro, e falSa Supozição, p.a concluirmos com acerto,
deve SaberSe, q' q.lq.r mastreação de pinho, q.do brandea, e Se verga, hê pela força do
vento impregada com maior, ou menor violencia no Seo Velame.
181 Se eSsa força hê mediocre, e Só Capaz de fazer vergar a mastreação, m.to
Constantem.te melhor Sofre a mastreação, q' for de paos do Brazil, por Ser de madeira
mais forte, fiel, e mais Rezistente.
Se eSsa força imprimida for extraordinaria, tal, q.l faça estalar a mastreação de pinho, e
desalvorar o Navio, excedendo ao [f. 226] brandeo, e a flexibilid.e, a tudo isto melhor
Rezistirâ a mastreação de paos do Brazil; por iSso mesmo, q' hê de madeira tanto mais
forte, fiel, e Constante.
A tudo isto de mais acresce, q' por Cauza deSse bradeo, q' Se tem por util, e neceSsario,
Se procura a destruição de todo Navio, porq' Se deixa o Seo maSsame Sempre folgado,
p.a q' elle aCompanhe a eSsa elasticidade.
Toda enxarxia do Navio prende nos Cadernaes, e botõens das mezas: ESsas
mezas Se achão fixas ao Cavername, e entrando a jogar o Navio na maior força do Seo
trabalho, p.a Se acautelar, defender, e poupar a mastreação, alem de fazer estalar, e
estragar todas espias, viradouros, e maSsame meudo, q.m Sofre todo trabalho hê o casco
do Navio, q' metido em aperto, e em forços, abalandoSe o Cavername, Se Segue a agua
aberta, e as prejudiciaes avarias.
Pelo Contrario Sendo a mastreação dos Navios de paos do Brazil, posta ella de tal [f.
226v] modo, e maneira, q' metida em trabalho venha a ficar a prumo, aCompanhada da
enxarxia quaze justa, q' a ampara, e lhe Serve de apoio, Sendo toda mastreação bem
espiada, Longe de estallar as espias, como Sucede na mastreação de pinho, metida em
jogo, e em brandeo, q.m vem a Soportar toda força, e trabalho hé a mastreação, e não o
Navio.
Trez Simples Refleçõens devem terminar este descurSo: 1.a, Se a extrema neceSsid.e
nos obriga por vezes, na falta da mastreação de pinho, a valer deste genero de
mastreação? 2.a, Se alguns, q' não podem dispender groSsas Somas nas
importantiSsimas mastreaçõens de pinho, aSsim Se Suprem, e Se Remedeão? 3.a, Se a
d.a mastreação de pinho evidentem.te hé a mais fraca, porq' alem de Ser de inferior
qualid.e, Se compoem de duas, e trez antenas, q' Se cintão com ferro, e maSsame, e Se
lhe ajuntão Xumeias, e Contra Xumeias tãobem cintadas, p.a Se Reforcar a fraqueza, e a
força unida, p.a q' desterrandoSe abuzos inveterados, não Se deve fa [f. 227] zer hum
Constante uzo da mastreação dos paos do noSso Brazil, chegando tê a influir em hum
novo genero de mercancia.
182 Deste modo, alem de Se Socorrer, m.to Lucrarâ o Comercio, e Navegação;
nos livraremos de maiores despezas, o noSso preciozo a eSse titulo, no abandono do q'
temos com injuria, e irrizão noSsa, não hirâ quaze a Revelia p.a os Reinos Estrangeiros:
Os meos unicos intereSses, e Reconhecidos Lucros no Centro dos meos Votos,
testimunhados por Compatriotas, q' me ouvem, Sejão o dezejar Ser util ao Publico, a
Patria, ao Estado.
Luiz Antonio de oLiveira Mendes
183
[folha 7 (1)]
N.º 1.º a- 7
A Memória
Do optimo, Ill.mo, e Ex.mo Senhor D. João de Bragança, Duque de Laphoéns, Deixando
de especificar todos Seos titulos, Impregos, e Dignidades.
Q.to ao q’ nos diz Respeito, Só nos baste Referir, Que desta Real Academia das
Sciencias de Lx.ª fora m.to digno Prezidente, E della não Reformador, e Instaurador,
Mas sim com grande gloria Sua Fundador, E para que nunca Seja esquecido, E de Seos
Socios, e Companheiros, nunca Se aparte, A Tanta Grandeza, e Merecimento, Nas
pegadas, figuras, e Sombras da Morte Dedica, conSagra, e offereSse Este Seo pequeno
dever, e limitado obzequio Luiz Antonio de Oliveira Mendes, o mais inSuficiente de
todos os Socios, o qual na conformidade do Seo antigo Costume Recitou na Real
Academia Na SeSsão de 7. de Janeiro de 1807
O Autor anuncia, q’ na tradução, sem q’ falta-se aos penSamentos, mais antes ém
abono, e de lucidação delles, Se vio obrigado a valerSe de algum mais ornato, e
amplificaçoéns, p.ª de todo fugir, e evitar alguma frieza, q’ podeSse sobrevir ao
descurso na falta dos periodos não Serem cheios.
[folha 8 (2)]
8
O! Deos Immortal! Ai de mim! Ai de Ti Academia! Quanta não seja fantastica, e
aparente a esperança, e a atrevida confiança dos Homens!
Nós Academicos, amabiliSsimos Socios, e compartes na dor, e na Saudade, ainda
hontem, quaze nos fins do anno paSsado, aquî mesmo neste Atheneo78 fomos vistos
78
a.te.neu sm (gr athénaion) 1 Antig Em Atenas, templo de Atená em que poetas e sábios liam as suas obras em público. Em Roma, escola de estudos filosóficos, literários etc., fundada por Adriano. 2 Associação científica ou literária. 3 Estabelecimento de instrução.
184 estar m.to alegres, e no ultimo ponto do noSso prazer tão Satisfeitos, como q.m
descançando dormia nas Sombras de huma frondoza arvore, q’ figurava [dhuma]79
extraordinaria fortuna, q’ nos protegia.
Hoje porem, inSurgindo hum dezar,80 as agonias, Nôs tristes, [apoSiados]81 de
amarguras, tê82 vestidos de preto por effeitos de hum acazo funisto, ainda q’ esperado
nos [ReSortes]83 da desgraça, nos achamos desherdados dos noSsos mesmos prazeres, e
das noSsas antigas alegrias.
No meu, e nos VoSsos abatidos Semblantes, divizo todo genero de diSsabor, e de
melancolias, q.do as inSurgentes tristezas, vindo Contra Nôs de todas as partes, nos
molestão, nos afligem, nos encomodão, e estamos Sendo por ellas Castigados, e
oprimidos.
O! Deos Immortal, muitas vezes invocarei o Ente Supremo, Creador, e destruidor de
tudo!
O! Sabios Companheiros, de Nós Se apar-
[folha 8 verso (3)]
tou aquelle, q’ Só atendia, e aspirava ao q’ era bom, e eSse mismo bom tanto mais
prezava, q.do no Centro das suas apetencias divisava, q’ elle Se podia converter em
noSso bem, e em noSsas utilidades!
De Nôs Se apartou aquelle; q’ no desempenho de todos Seos deveres Sempre desprezou
a avareza. Eu Sô o conhecî, apoderado, e m.to cheio della, q.do tinha por Sua maior
Riqueza, Solido patrimonio, e avultadiSsimos Lucros; e intereSses, o esplendor desta
Real Academia, e o Conhecî tão ambiciozo nesta p.e, q’ Sempre Se abrazava no amor da
Sua maior prosperidade, e ultimada gloria.
MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Cia. Melhoramentos, 1998 – (Dicionários Michaelis). 79
As duas primeiras letras estão borradas. 80 de.sar sm (cast desaire) 1 Desaire. 2 Ato indecoroso. 3 Falta de elegância. 4 fig Mancha; desdouro. 5 Revés de fortuna. 6 Desastre. MICHAELIS… Op. cit. 81
Outra possibilidade: apoSsado. De qualquer forma, as duas palavras possuem o mesmo significado. a.pos.se.a.do adj (part de apossear) V apossado. MICHAELIS… Op. cit. 82
Interpretação: até. 83
Outra possibilidade: Refortes; Interpretação: [?]
185 Tu impostura, negra mentira, vai viver degradada de mim p.ª Sempre! Vai manchar
Sabios impuros, bocas mercenarias, e espiritos fracos; q’ submetendo Se Só Se nutrem
da mera adulação! Não projectes offuscar o Heroe do meo elogio!
De Nôs Se apartou a minha; e alegria dos meos Companheiros; o amor de todos
Concidadaóns; a Saudade, a vida, a alma desta Real Academia.
Vimos; q’ do Centro dos noSsos congreSsos sientificos, dos noSsos ajuntamentos, e das
noSsas Conferencias Literarias desaparecera
[folha 9 (4)]
9
o noSso Prelado; o noSso chefe; e o noSso amabiliSsimo Prezidente; em testimunho do
que vejo em Nôs todos intristecidos, o q’ era bem de esperar, hum justo, e
extraordinario RiSentimento a face de tão conSideravil pirda.
Ai de mim! A mesma Atropos;84 q’ hé Surda, as inexoraveis Parcas85 me oução.
Finalm.te de Nôs Se apartou aquelle esclarecido Varão, o melhor de todos os Varoéns,
aquelle, q’ em Si era magestozo, q’ com a Sua ditoza, e Respeitavel Prezença honrava a
todos, o mais illustre da claSse dos Venerandos, e dignos ancioéns, o Principal delles, o
Dinasta, O NoSso Prezidente, o Ill.mo, e Ex.mo Senhor D. João de Bragança, Duque de
Laphoéns, General em chefe das Armas, cujo magnifico Nome apenas por mim
proferido, e Recordado em as VoSsas Saudozas Lembranças, Suscita com todos adornos
da eloquencia, q’ de fecunda Se torna pobre, as mais ternas ideas de Seo perfeito, e
digno elogio: Aquelle, q’ comandando as tropas, e todos exercitos; tãobem Com todo
amor, e Suma afabilidade nos prezidia, e nos Comandava, por Cuja Cauza, chorando
Marte,86 juntam.te87 Soltando gemidos, chora Pallas,88 e posto q’ donzella, por não ter
querido Cazar com o feio e ascarozo Vul-
84
Á.tro.po sm (gr átropos) […] 3 Poét A morte. MICHAELIS… Op. cit. Átropos: a mais velha das três parcas. Ver nota seguinte. 85
par.ca sf (lat parca) 1 Mit Cada uma das três deusas (Cloto, Láquesis, Átropos) que fiavam, dobravam e cortavam o fio da vida. 2 fig A morte. MICHAELIS… Op. cit. 86
Mar.te sm (lat Marte) 1 Deus da guerra, na mitologia grega e latina. […] 3 Guerra. 4 Homem guerreiro. MICHAELIS… Op. cit. 87
Outra possibilidade: juntan.se. 88
Palas – gigante cujo nome Minerva [ou Atena] adotou quando presidia à guerra e aos combatentes, pelo fato de havê-lo vencido, tendo-lhe arrancado a pele que ela levou consigo em sinal de triunfo.
186
[folha 9 verso (5)]
cano,89 Libertando-Se da triste Condição de viuva, Contudo chora como [Orphão]90
Minerva,91 chora a Academia.
Neste justo pezar igualm.te Repartido com Marte, e com Pallas, O! Respeitaveis Socios,
tendo eu, q’ fallar do noSso amabilliSsimo Prezidente, não Sabe determinarme, p.ª q.l
dos dous me haja de transportar o amor, a veneração, o Respeito, a amizade, a gratidão,
e a Sua mesma Saudoza Memoria.
Se consultarmos a Historia dos Tempos, eSsa mestra da vida; se desenvolvermos as
antiguidades da Grecia, e as for buscar na Sua origem, entranhando-me nos Seos
Costumes, Seguindo as pizadas de Seos antigos escriptores, O! Academicos; Vos bem
Sabeis, q’ em Athenas houvera hum Templo ConSagrado a Deoza Minerva, e ali
tãobem outro dedicado ao Deos Marte, aonde, desputando-Se alternadam.te, Se dicidião
as questoéns mais intereSsantes, e Se julgava com todo acerto Sobre o justo, e injusto.
Este ministerio era tão Sagrado, e tão Respeitozo, q’ no Seo principio ali Se ajuntarão os
12 Deozes, p.ª q’ ConheceSsem, e julgaSsem o crime de Marte, acuzado por Neptuno,92
tendo incorrido no homicidio de [Haliothrocio];93 seo filho, por haver com força
corrompido a fi-
VITORIA, L. Dicionário da Mitologia. Rio de Janeiro: Editora Gertum Carneiro, s/d. p. 83 89
Vulcano, deus romano do fogo e da metalurgia, de origem itálica. Cultuado em Roma desde a fundação da cidade, é identificado ao Hefestos grego. Grande Enciclopédia Laurousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998. 90
Interpretações: 1. Órfã: considerando que o Duque de Lafões fosse pai de Minerva e, portanto, da Academia; 2. Orfeão: como se Minerva chorasse de maneira semelhante a um coro; 3. Orfeu: nesta hipótese, Minerva estaria chorando à moda do poeta. Orfeu, personagem da mitologia grega, poeta e músico da Trácia, filho do rei Éagro ou de Apolo, segundo diferentes versões. Famoso por seus dotes musicais, encantava a tudo e a todos com sua lira. Quando morreu Eurídice, sua mulher, Orfeu ficou desesperado e desceu aos Infernos para buscá-la. Obteve o consentimento das divindades, mas havia uma condição: Orfeu não deveria olhar para Eurídice antes de atingirem a claridade. Na volta, porém, já prestes a sair dos Infernos, ele não resistiu e voltou-se para ver a amada. Nesse momento Eurídice lhe foi arrebatada para sempre, e Orfeu foi condenado a viver sozinho na Terra. A ele é atribuída a invenção da lira e dos rituais divinatórios e mágicos. Grande Enciclopédia Laurousse Cultural. Op. cit. 91
Mi.ner.va sf (de Minerva, np) 1 Deusa do paganismo greco-romano que presidia às artes e às ciências. […] MICHAELIS… Op. cit. 92
Ne.tu.no sm (lat Neptunu) 1 Mit Divindade que presidia ao mar (chamada Posídon pelos gregos). […] 3 poét O mar. MICHAELIS… Op. cit.
187 [folha 10 (6)]
10
lha [Alcippa]:94 a imitação do q’ depois [Solão]95 ali estabelecera os 12 Juizes substitutos
dos Deozes, p.ª q’ tãobem ficaSsem julgando
Nas desputas, e dilemas Saudozos, q’ nas Competencias de mais Sentir, Sustenta Pallas
com Marte; Sem que eu Seja Juiz, abracando com imparcialidade hum [meio tr.º]96 mais
Seguro; demonstrarei; Se a tanto cheguem as minhas debilitadas forças, q’ o Ill.mo, e
Ex.mo Senhor D. João de Bragança, Duque de Laphoéns, NoSso Prezidente; de Saudoza
memoria, tanto entre Nós, Como entre todos; fora Reconhecidam.te em extremo hum
verdadeiro, e perfeitiSsimo amador da Sabedoria, das Artes, e Siencias.
Se tanto eu não desempenhar, confiado na VoSsa Candura de animo, na poSse dos
indultos, q’ imploro, ficando Salvo o Seo elogio, q’ por Vôs Seja Cometido a talentos de
outra estima, com grande Satisfação m.ª,97 acreditai-me ConSocios; m.to levarei em
gosto, q’ por Vôs, e por eSse, escolhido, eu Seja enSinado.
Quando a tanto eu não chegue, na falta de Rapidos Voos, q’ me denegão a desempenho,
Suprirão as minhas beneficas intençoéns, os meos esforços, os meos ardentes, e
SinSeros dezejos, a m.ª
[folha 10 verso (7)]
93
Alirrocio ou Halirrotio: filho de Netuno assassinado por Marte. Obs.: a primeira letra está borrada. Ver nota seguinte. 94
Alcipa – filha de Marte e esposa de Alirrocio, filho de Netuno. Alirrocio inflingindo maus tratos a sua esposa foi morto por Marte o qual foi julgado por um tribunal augusto de atenienses.* Tão eloquentemente se houve na sua defesa que foi absolvido. Esse tribunal tomou desde então o nome de Areópago (Ares significa Marte, em grego e pagos, colina). VITORIA, L. Op. cit. p. 11 Variação encontrada: Alcipe. * Obs.: em outras versões da história, a assembléia que julga Marte é formada pelos Deuses, como expõe Mendes. Ver: http://www.facom.ufba.br/com112_2000_1/mitos/ares.htm 95
Interpretação: Sólon. Sólon, estadista ateniense (c. 640 - c. 558 a.C.), um dos Sete Sábios da grécia. membro de uma família aristocrática, mas empobrecida, ficou conhecido quando persuadiu os atenienses a lutarem contra Mégara pela posse de Salamina. Escreveu poemas de grande inspiração cívica dirigidos a seus concidadãos. Seu nome ficou ligado à reforma social e política que provocou a expansão da Grécia. Tendo se tornado arconte (594-593 a.C.), aboliu as dívidas fundiárias, mandou repatriar os cidadãos vendidos ao estrangeiro como escravos e proibiu a servidão por dívidas. Dividiu os cidadãos em quatro classes, segundo a renda, o que acabou com o império das grandes famílias; estabeleceu um conselho de 400 elementos e aumentou os poderes da Assembléia. Com suas reformas, Sólon estabeleceu as bases daquilo que seria mais tarde, a partir de Clístenes, a democracia ateniense. Grande Enciclopédia Laurousse Cultural. Op. cit. 96
O trecho está um pouco borrado. 97
Outra possibilidade: pr.ª.
188 SubmiSsão, acatamento, e Respeito, a m.ª amizade, a mesma gratidão, e tudo aquillo
mais, q’ Seja Capaz de vos trazir conforto nesta minha, e voSsa SenSibilidade.
AmabiliSsimos Companheiros; Consternados, e Saudozos Socios, em pouco não Sei,
Como poderei dizer tantas Couzas dignas, e maravilhosas, q’ exornão98 o Heroe do meo
elogio, e da VoSsa justa Saudade.
O noSso Prezidente desde a tenra idade té99 q’ contaSse mais de 86 annos, Sempre
[m.to]100 aplicadam.te Cultivou as Letras. Neste longo espaSso, e Comprida Carreira m.to
de boa vontade Sacrificou o tempo, as aplicaçoéns, as fadigas Literarias, a mesma vida a
Deoza da Sabedoria, e deste modo, Suscitando exemplos, citou as Aguias Luzitanas,101
p.ª q’ Se RemontaSsem.
Por premio dos Seos trabalhos, por q’ m.to amava, e apetecia a mesma Sabedoria, humás
vezes Se lezongeava de a ter adquerido, outras desconfiando de Si mesmo, despido do
amor proprio, desenganado, de q’ a não havia alcançado, nos desvelos102 de tão
Reconhecida paixão, propondo-se a mais, Se entregava a novos estudos, e nestas
incertezas, p.ª q’ melhor conSeguiSse o q’
[folha 11 (8)]
11
tanto dezejava, sempre foi visto abrazar-se no ConstantiSsimo amor de todas siencias.
Com tanto esforço Se aplicou a estes fins, q’ p.ª não perder tempo, e ganhar illustrados
Conhecimentos, com frequencia, cheio de prazer; hia ter aos homens eruditos, p.ª q’
comunicando-se com elles, metendo em giro as ideas adqueridas, m.to mais LucraSse, e
por este meio, e modo na diuturnidade103 delles aprendeSse.
Na Caza de Sua mesma moradia, Sempre vezitado, e cercado dos homéns e Sabios,
procedendo com escolha, a cada paSso no Seo particular Se entregava com
des.ve.los (é) sm (de desvelar) 1 Ato ou efeito de desvelar-se; cuidado carinhoso. 2 Vigilância, cuidado, zelo, atenção. 3 Dedicação, afeição. 4 Objeto dessa afeição: “As letras e o irmão são seus desvelos” (Morais). Pl: desvelos (ê). MICHAELIS… Op. cit. 103
di.u.tur.ni.da.de sf (lat diuturnitate) Duração longa; largo espaço de tempo. MICHAELIS… Op. cit.
189 familiaridade a huma converSação agradavel, e com isto m.to Se deleitáva, chegando
a tal extremo, q’ tê104 com Saudade [delles]105 Se despedia.
Prezava p.ª Seo maior amigo, e tinha Como nota Caracteristica p.ª huma nova amizade
aquelle, em q.m divizava [talentos],106 merecim.to, e os maiores grãos da dezejada
Sabedoria.
Alî, e aquî, O!
[folha 11 verso (9)]
Saudade! o admirávamos fallando com todo aCerto; e com a maior erudição. Em abono
da verd.e, e das minhas affirmativas, tanto ouvirão o [inSensivel]107 destas mesmas
paredes, o peSsoal do Atheneo, e nôs mesmos, em testimunho do que entre as noSsas
obras, q’ [RemaniSsem]108 depois todas, Como nos templos de Apollo,109 e de Marte,
ainda existem os seos bons escriptos, Recitados nas aberturas das SeSsoens publicas
desta Real Academia, q’ tê110 forão ouvidos para alguns Concidadoens, a q.m Convido,
p.ª q’ me autorizem…
No meio de Sua idade[,] Sendo elevado a maior p.e dos Seos titulos, e Dignidades;
cubiçando a Sabedoria, nunca jâ mais farto dos bons Conhecimentos, p.ª q’ melhor Se
aperfeiçoa-Se, Sabendo diverSas Linguas, de nôs, e da Sua Patria Se apartou, e [foi a]111
ter as Naçoéns Estranhas.
Alî, excedendo a outros, p.ª q’ o ocio o não dominaSse, cuidadozam.te mais aprendía do
q’ converSava com os ProfeSsores de tódas as Artes. Lançando fora de Si, e [a-
Interpretação: remanescessem. re.ma.nes.cer (lat remanescere) vint Ficar de sobra; restar, sobejar, sobrar: Remanescem ainda certos obstáculos. MICHAELIS… Op. cit. 109
a.po.lo sm (lat Apollo, np) […] 5 Mit greco-romana Deus que conduzia o carro do Sol e era o chefe das nove musas. MICHAELIS… Op. cit. 110
Interpretação: até. 111
Outra possibilidade: fora.
190 12
borricendo]112 a preguiça, vagando de huma p.ª outra p.e, tanto fazia, Sô p.ª Se aproveitar
das converSaçoéns eruditas; e fazindo Atrahír os Sabios de Sua escolha, com elles Se
comunicava com a maior frequencia. De huns, e outros aprendeo a siencia da guerra, e
da paz, e a hum tempo, Como q.m se dividia Servia a Marte, e a Minerva.
Nos ministerios de Marte não Só [cumpria]113 exactam.te com os deveres de hum bom, e
perfeito Soldado no tempo da paz, em q’ Solicito aprendera a Arte da guerra, mas
tãobem no estado della Se entregou aos lances, e açoéns mais aRiscadas; Sofrendo
aSaltos, e Sendo aCometido; então hé, q’ alî Resplandeceo o destincto valor de tão
Grande Capitão.
Para q’ Se não pretirão114 Couzas dignas, tão brilhantes, e nos exceSsos do amor da
Sabedoria, nada já mais nelle falte, o admiramos entrando nas Academias mais cilebris,
aonde aCompanhado de hum animo incanSavel, e da Sua boa indole, com a maior
Curiozidade; e miudeza tudo obServara com a maior exação.115
[folha 12 verso (11)]
ObServou, q’ por intervenção deste Socorro, ajuntando-Se os homens mais doutos;
conferindo entre Si, unidas as forças no desempenho do q.to Se propunhão; as Artes, e as
Siencias; dando as maons entre Si, m.to consideravelm.te Se adiantavão, e Se
aproximavão, q.to podião a Sua maior perfeição.
ObServou, q’ por este meio, e modo impenhandoSe a agudeza, a disvelada116 industria,
hum extraordinario esforço Se abraçava com outro esforço, te117 q’ ambos de comum
acordo conSeguiSsem os Seos dezejados fins.
Finalm.te de perto Se esmerou em observar; q’ por esta especie de convenção a
agricultura, a industria dos homens, a mão de obra, a fertilidade, a abundancia, os
112
Outra possibilidade: aborrecando. 113
A última letra está borrada. 114
pre.te.rir (lat praeterire) vtd 1 Ir além; ultrapassar: Preterir os limites do tolerável. 2 Deixar de parte; não dar importância a; não fazer caso de: Atendia a todos, sem preterir ninguém. Preteriu a vida eterna pelas vanglórias terrenas. 3 Omitir: Muito meticuloso, não preteria pormenores. 4 Abstrair, prescindir de: Preterindo particularidades, o caso torna-se diferente. […] MICHAELIS… Op. cit. 115
191 Comodos dos Cidadoéns, e tudo q.to na prosperid.e [lhes era]118 util, m.to [crescião]:119
em demazia.
Ali mesmo de longe com animo SinSero, e benefico prometera aos Seos Compatriotas
tudo aquillo, q’ no futuro elle havia fazer a bem da Sua Patria, q.do a ella RetornaSse.
Depois [de m.tos]120 annos, RestituindoSe a ella logo lhe [Segurara],121 q’ Se propunha
fazer huma grande, e admirável obra em Sua utilid.e
Com a testa Coroada de louros, como q.m triumphava, cheio de prazer, e de jubilo,
fallou
[folha 13 (12)]
13
a Patria; e lhe dice: O! Patria! pela tua felicidade, existencia, duração, prósperidade, e
áugmento encarecidam.te vos Rogo, me hajas de crer, q’ eu Sempre te Serei agradecido,
em testimunho do q’ inceSsantem.te me acharás disvelado,122 e todo Sempre aplicado em
teo benificio por aquelle tempo, e espaSso, q’ eu te dever a Respiração, e o meo Sangue,
Sem Ser gelado, animando o Corpo, circular nas veas.
Tanto pelo q’ dezia Respeito a Patria, m.to mais pelo q’ dezia respeito ao extraordinario
amor, q’ conSagravâ a Sabedoria, medindo os curtos espaSsos da vida, huma [Saã],123
madura, e [chrislãa].124 PhiloSophia nos Seos desenganos lhe dava a certeza, q’ Como
vivinte, e Ente Subalterno a Seo Creador, havia morrer, e aCabar; e q’ acabando elle,
tãobem acabavãoSe os Seos bons dezejos p.ª com a Patria, e p.ª com a Sabedoria
Propondo-Se dar a Nôs, e aos vindouros huns clariSsimos testimunhos do q.to apetecia;
q’ os Seos dezejos, excedendo a huma vida Caduca, e tranzitoria, FoSsem
trancendentes; aSsentando o Seo esclarecido Nome nos [Fastos]125 eternos da
118
Outra possibilidade: lhe sera. 119
As duas primeiras letras estão borradas. 120
Outras possibilidades: den.ter – dem.ter – de n.ter – de m.ter – den.tos – de n.tos. 121
Outra possibilidade: Segurava. 122
Ver nota 25. 123
Interpretação: Sã. 124
Interpretação: cristã. 125
fas.to […] sm pl Registro público de fatos ou obras memoráveis; anais; história. MICHAELIS… Op. cit.
192 Immortalidade, dando mais, q’ fazer a Saturno,126 Suscitando novo argumento,
ganhando nova Fama, com as Suas mesmas Maóns, q.l Erope,127 lançando as primei-
[folha 13 verso (13)]
ras pedras; instituio, e erigio Esta Real Academia.
Cuidadoza; disvelada,128 e escrupulozam.te, tê129 Submetendo Se; p.ª hum melhor aCerto,
a pluralidade de votos, de todas as partes do Orbe Literario tratou de alistar aquelles
Varoéns Conspicuos;130 de toda probid.e, esforçados, de hum dicidido merecim.to, e jâ
acreditados na Republica das Letras.
Ah! Senhores, a modestia, Sendo muda, q’ me Reprehende, p.ª q’ não confunda elogios,
me manda Callar, q.do eu tinha m.to, q’ fallar de Vôs!
E quanto por esta vez tão Som.te, posto q’ agradecido, SenSivel ao bem, e aos graos de
huma conferida honra, q’ tanto me destingue, e enobreSse, me peza haver Sido hum dos
da Sua escolha, em q.m taobem Recahirão os voSsos Votos, Sô por temer, q’ huma leve
Suspeição nas aparencias de hum figurado Soborno, fazendo vacillar a verd.e, denigra o
magestozo quadro da Sua delicada pintura.
A hum tempo o vemos fazindo [Recultas]131 p.ª o Deos da guerra em difeza da Patria;
matriculando alunos, e novos Sacerdotes p.ª a Deoza Minerva, p.ª q’ dignam.te
officiaSsem neste Templo da Sabedoria.
[folha 14 (14)]
14
Se eu não entraSse de boa vontade neste Sacrificio, dispendendo todos meos esforcos
[sic], desmentia a Carta, q’ me derigistes, e aquella, com q’ tanto me honrastes!
126
Saturno, divindade itálica e romana, identificada ao Cronos dos gregos. Deus dos vinhateiros e dos camponeses, instalou-se na Itália (Lácio), que governou e onde fez reinar a idade de ouro. Tinha um templo no Fórum de Roma. Grande Enciclopédia Laurousse Cultural. Op. cit. 127 Erope – Nome della moglie dell'empio Atrèo la quale si lasciò sedurre dal cognato Tieste, da cui ebbe i due figli che Atrèo imbandì, in un convito, al fratello Tieste. Prima, essa aveva sposato Plistène; e benché Atrèo avesse, poi, avuto da lei Agamennone e Menelao, quando seppe dei rapporti intercorsi tra lei e Tieste, la fece annegare. http://www.i-2000net.it/mitologia/EEE/Erope.htm 128
Ver nota 25. 129
Interpretação: até. 130
cons.pí.cuo adj (lat conspicuu) 1 Que dá nas vistas. 2 Distinto, ilustre, notável. MICHAELIS… Op. cit. 131
[?]
193 Fez com q’ Lx.ª Sua Patria, Sustentando, e conServando o Seo antigo Nome, sem q’
RoubaSse a justa gloria do famozo UliSses,132 Se transmutaSse em Athenas,133 a q.l por
intervenção dos triunphos da Sabedoria, q’ a Seos pés Calca as idades, nunca já mais
podeSse Ser demolida.
Quaze pelos trez annos de Saturno,134 q’ vivera, isto hé pelos 86 p.ª 87 annos, q’
Contara, havendo conSumido quaze todos no exercicio das letras, 30 destes annos
gostozam.te empregara nos cuidados, tutoria, e Regencia desta Real Academia.
Quantas vezes Sendo acometido das inFirmidades, apenas Recobrando algumas
melhoras, posto q’ oprimido com o pezo dos annos, Sempre firme nos Seos bons
dezejos, porem com os pez mal Seguros nestes pavimentos [por]135 Cauza da gota,136
ainda mal convalecido, inesperadam.te nos vinha honrar nos dias das quartas feiras das
noSsas SeSsoéns, e conferencias Literarias.
Nôs viamos, e todos nôs prezenciavamos, q’ os seos pareceres, e continuados Votos em
as noS-
[folha 14 verso (15)] *
sas ASembleas, excedendo m.to aos dos outros e não cheios de huma Suma agudeza, e
Revestidos da maior erudição, e conSumada prudencia, Sempre nelles Respirava hum
indizivel amor, q’ tributava a Esta Real Acadimia.
O NoSso Prezidente, aquelle esclarecido Varão, q’ na claSse, e ordem dos m.tos nobres
era o mais nobre, descendente com toda proximid.e da estirpe, e linhagem Real,
[exornado] de m.tas Dignidades, e de acomulados empregos, quantas vezes aquî
mesmo, Com grande Satisfação Suas, Repetidas Vezes, e inceSsantem.te nos chamava
amigos, Socios, Companheiros, e Sem distinção alguma Soldados, e alunos de Minerva,
cujos epitetos Sendo demonstrativos do amor, q’ nos tinha, apenas hoje Servem de
inSentivos da noSsa justa Saudade?
132 133 134
sobre os três anos… 135
Outra possibilidade: per. 136
go.ta (ô) sf (lat gutta) […] 3 Med Moléstia constitucional, muitas vezes hereditária, caracterizada pelo excesso de ácido úrico e pelos ataques de artrite aguda, que são acompanhados de dor, inchação e vermelidão das pequenas articulações. […] MICHAELIS… Op. cit.
194 Elle entre os inumeraveis Sacrificios, e votos, q’ havia feito a Sabedoria, em
testimunho do grande amor, q’ tinha as Siencias, esquecendo Se da Sua mesma
grandeza, Sublimidade, e de tudo aquillo mais, q’ o fazia digno, e Respeitavel, tanto
[preteria] com [abolicaçoéns], e de tudo Se despojava no aparente, Só p.ª q’
dispendendo q.to em Si estava, foSse de nós inSeparavel.
Quantas vezes enfermo, e por isso impoSsi-
[f. 16]
15
bilitado de poder conferir, Sendo por nós vezitado, com q’ anciedade perguntava por
todos, e por cada hum de nós? com q.ta miudeza e [exação], huma, e m.tas vezes
inquirindo, perguntava pelas obras do concurSo, pelo exame, e Revizão dellas, pelas
outras já Recitadas, pelas minhas, e pelas VoSsas produçoéns, fazendo entrega dos q’ a
elle hião ter, pela firmeza, estabilid.e, augmento, e prosperidade desta real Academia.
Nos esforços de [aprosperar], p.ª q.l nada me escape, e Couza alguma Senão [pretira],
hé justo, q’ senão remetão ao esquecim.to, o q’ dâ tanta gloria a Sua Saudoza Memoria,
trazendo-Se a lembrança aquellas fadigas, desconSolos, abatimentos, e amarguras, q’
elle Suportava nos exceSsos do Seo amor, q.do dezejando a duração, perpetuidade, e
augmento desta Real Academia Com transcendencia as futuras geraçoéns, com gr.de
reSentimento Seo, via : indotada esta Sua filha primogenita.
Muitasvezes Se lembrou aplicar p.ª estes fins huma p.e das Suas groSsas Rendas, e o
não podia executar com a dezejada perpeturidade, porq’ lhe obzistia a natureza de bens
de vinculo, e [ao] estado de Solteiro Só lhe deteve o paSso, p.ª pertencer desanexação,
as prudentes Lembran-
[f. 17]
ças, de q’ Sendo a Academia da proteção regia, Sem prudencia de Reprezentação,
daquelle modo inSolito; lembrando descuidos, inSultava a Benificiencia Superior, q’
com justa Cauza Se daria por offendida, m.to mais atendo o parentesco, e a
Comunicação privada, q’ nada ja mas despeSaria.
Nestes extremos o Politico Se combatia com os Seos dezejos, com as Suas intençoéns, o
Seo amor com a orfandade, e decadencia, perda, e Ruina com a prosperidade, augmento,
e duração desta Real Academia.
195 Cumprindo com os deveres de hum perfeito, e amoroziSsimo Pais, e de hum Zelozo,
e vigilantiSsimo Curador da Real Academia não Só reprezentou, e pedio de hum modo
ordinario, mas tãobem m.to SubmiSsam.te Suplicou aos Seos Augustos Parentes
Reinantes hum Suficiente patrimonio, p.ª q.l ella podaSse existir, permanecer, e durar, o
q’ com effeito alcançara dos Senhores Reis, e obtendo SuceSsivas confirmaçoéns,
obteve, q’ o Princepe regente. NoSso Senhor, q.l por vezes nos honra com Sua
aSsintencia, ficaSse Sendo melhor do q.l elle Protector desta Real Academia
Alem deste exuberantiSsimo Socorro em prova de huma Suma affeição, m.to de Sua li-
[f. 18]
16
vre vontade com mão larga no particular e no publico com a Real Academia amplam.te
despendia do q’ era Seo; não Só p.ª q’ ella duraSse, e Se conServaSse, mas taobem p.ª
q’ nos progreSsos da dezejada prosperidade, Sempre hindo avante, e dada vez mais em
augmento, excedendo os Seos dias, e dos Vindouros, p.ª Sempre existiSse, e
permaniceSse.
Deste modo por m.tos annos, q’ Se aproximarão a 30, desempenhou, e cumpriu com as
vezes de noSso bom, perfeito, e amabiliSsimo Prezidente. Nós todos lhe dezejavamos
huma vida mais dilatada, p.ª q’ tãobem na poSse da noSsa antiga felicidade Elle m.to
mais cumpriSse.
Finalm.te em testimunho da m.ª, e da VoSsa gratidão, [gemão] embora as abobedas do
Templo da Sabedoria, O! Companheiros, O! Academia, O! Marte, O! Tu Pallas! [praze]
a Deos, a Deos praze, O Ente Infinito permita, q’ este Seja aquelle [solei] momento, em
q’ Elle, já expiado dos delictos de homem, em Si Receba huma digna Coroa de gloria,
q’ exornado da verdadr.a Sabedoria, de tantas Virtudes, das Suas optimas qualidades,
esteja gozando a maior das felicidades.
Praze a Deos, ao
[f. 19]
Ente Infinito praze; q’ o Ill.mo, e Ex.mo S.r D. João de Bragança, Duque de Laphoéns,